Iracema

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José de Alencar

Prólogo

Meu amigo.

Este livro o vai naturalmente encontrar em seu pitoresco sítio da
várzea, no doce lar, a que povoa a numerosa prole, alegria e esperança
do casal.

Imagino que é a hora mais ardente da sesta.

O sol a pino dardeja raios de fogo sobre as areias natais; as aves emudecem;
as plantas languem. A natureza sofre a influência da poderosa irradiação
tropical, que produz o diamante e o gênio, as duas mais brilhantes expanções
do poder criador.

Os meninos brincam na sombra do outão, com pequenos ossos de reses,
que figuram a boiada. Era assim que eu brincava, há quantos anos, em
outro sítio, não mui distante do seu. A dona da casa, terna
e incansável, manda abrir o coco verde, ou prepara o saboroso creme
do buriti para refrigerar o esposo, que pouco há recolheu de sua excursão
pelo sítio, e agora repousa embalandose na macia e cômoda rede.

Abra então este livrinho, que lhe chega da corte imprevisto. Percorra
suas páginas para desenfastiar o espírito das cousas graves
que o trazem ocupado.

Talvez me desvaneça amor do ninho, ou se iludam as reminiscências
da infância avivadas recentemente. Se não, creio que, ao abrir
o pequeno volume, sentirá uma onda do mesmo aroma silvestre e bravio
que lhe vem da várzea. Derrama-o, a brisa que perpassou nos espatos
da carnaúba e na ramagem das aroeiras em flor.

Essa onda é a inspiração da pátria que volve
a ela, agora e sempre, como volve de contínuo o olhar do infante para
o materno semblante que lhe sorri.

O livro é cearense. Foi imaginado aí, na limpidez desse céu
de cristalino azul, e depois vazado no coração cheio das recordações
vivaces de uma imaginação virgem. Escrevi-o para ser lido lá,
na varanda da casa rústica ou na fresca sombra do pomar, ao doce embalo
da rede, entre os múrmuros do vento que crepita na areia, ou farfalha
nas palmas dos coqueiros.

Para lá, pois, que é o berço seu, o envio.

Mas assim mandado por um filho ausente, para muitos estranho, esquecido talvez
dos poucos amigos, e só lembrado pela incessante desafeição,
qual sorte será a do livro ?

Que lhe falte hospitalidade, não há temer. As auras de nossos
campos parecem tão impregnadas dessa virtude primitiva, que nenhuma
raça habita aí, que não a inspire com o hálito
vital. Receio, sim, que o livro seja recebido como estrangeiro e hóspede
na terra dos meus.

Se porém, ao abordar as plagas do Mocoripe, for acolhido pelo bom
cearense, prezado de seus irmãos ainda mais na adversidade do que nos
tempos prósperos, estou certo que o filho de minha alma achará
na terra de seu pai, a intimidade e conchego da família.

O nome de outros filhos enobrece nossa província na política
e na ciência; entre eles o meu, hoje apagado, quando o trazia brilhantemente
aquele que primeiro o criou.

Neste momento mesmo, a espada heróica de muito bravo cearense vai
ceifando no campo da batalha ampla messe de glória. Quem não
pode ilustrar a terra natal, canta as suas lendas, sem metro, na rude toada
de seus antigos filhos.

Acolha pois esta primeira mostra para oferecê-la a nossos patrícios
a quem é dedicada.

Este pedido foi um dos motivos de lhe endereçar o livro; o outro saberá
depois que o tenha lido.

Muita cousa me ocorre dizer sobre o assunto, que talvez devera antecipar
à leitura da obra, para prevenir a surpresa de alguns e responder às
observações ou reparos de outros.

Mas sempre fui avesso aos prólogos; em meu conceito eles fazem à
obra, o mesmo que o pássaro à fruta antes de colhida; roubam
as primícias do sabor literário. Por isso me reservo para depois.

Na última página me encontrará de novo; então
conversaremos a gosto, em mais liberdade do que teríamos neste pórtico
do livro, onde a etiqueta manda receber o público com a gravidade e
reverência devida a tão alto senhor.

Rio de Janeiro, maio de 1865.

J. DE ALENCAR

I

Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes
da carnaúba.

Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol
nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros;

Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco
aventureiro manso resvale à flor das águas.

Onde vai a afouta jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta
ao fresco terral a grande vela?

Onde vai como branca alcíone buscando o rochedo pátrio nas
solidões do oceano?

Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce,
mar em fora.

Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano; uma
criança e um rafeiro que viram a luz no berço das florestas,
e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem.

A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante, que ressoa entre o marulho
das vagas:

– Iracema !

O moço guerreiro, encostado ao mastro, leva os olhos presos na sombra
fugitiva da terra; a espaços o olhar empanado por tênue lágrima
cai sobre o jirau, onde folgam as duas inocentes criaturas, companheiras de
seu infortúnio.

Nesse momento o lábio arranca d’alma um agro sorriso

Que deixara ele na terra do exílio?

Uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci,
à calada da noite, quando a lua passeava no céu argenteando
os campos, e a brisa rugitava nos palmares.

Refresca o vento.

O rulo das vagas precipita. O barco salta sobre as ondas e desaparece no
horizonte. Abre-se a imensidade dos mares, e a borrasca enverga, como o condor,
as foscas asas sobre o abismo.

Deus te leve a salvo, brioso e altivo barco, por entre as vagas revoltas,
e te poje nalguma enseada amiga. Soprem para ti as brandas auras; e para ti
jaspeie a bonança mares de leite!

Enquanto vogas assim à discrição do vento, airoso barco,
volva às brancas areias a saudade, que te acompanha, mas não
se parte da terra onde revoa.

II

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte,
nasceu Iracema.

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros
que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.

O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia
no bosque como seu hálito perfumado.

Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão
e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo da grande nação
tabajara, o pé grácil e nu, mal roçando alisava apenas
a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.

Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe
o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos
da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos.
Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto

Iracema saiu do banho; o aljôfar d’água ainda a roreja, como
à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa,
empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o
sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste

A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela As vezes
sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras
remexe o uru te palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos
fios do crautá , as agulhas da juçara com que tece a renda,
e as tintas de que matiza o algodão.

Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos,
que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.

Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho,
se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta.
Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste
das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.

Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no
arco partiu Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido.

De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada,
mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua
mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu
mais d’alma que da ferida.

O sentimento que ele pos nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém
a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro,
sentida da mágoa que causara.

A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva
o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste
ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada.

O guerreiro falou:

– Quebras comigo a flecha da paz?

– Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde
vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu ?

– Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos
já possuíram, e hoje têm os meus.

– Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldeias,
e à cabana de Araquém, pai de Iracema.

III

O estrangeiro seguiu a virgem através da floresta.

Quando o sol descambava sobre a crista dos montes, e a rola desatava do fundo
da mata os primeiros arrulhos, eles descobriram no vale a grande taba; e mais
longe, pendurada no rochedo, à sombra dos altos juazeiros, a cabana
do Pajé.

O ancião fumava à porta, sentado na esteira de carnaúba,
meditando os sagrados ritos de Tupã. O tênue sopro da brisa carmeava,
como frocos de algodão, os compridos e raros cabelos brancos. De imóvel
que estava, sumia a vida nos olhos cavos e nas rugas profundas.

O Pajé lobrigou os dois vultos que avançavam; cuidou ver a
sombra de uma árvore solitária que vinha alongando-se pelo vale
fora.

Quando os viajantes entraram na densa penumbra do bosque, então seu
olhar como o do tigre, afeito às trevas, conheceu Iracema e viu que
a seguia um jovem guerreiro, de estranha raça e longes terras.

As tribos tabajaras, dalém Ibiapaba, falavam de uma nova raça
de guerreiros, alvos como flores de borrasca, e vindos de remota plaga às
margens do Mearim. O ancião pensou que fosse um guerreiro semelhante,
aquele que pisava os campos nativos.

Tranqüilo, esperou.

A virgem aponta para o estrangeiro e diz:

– Ele veio, pai.

– Veio bem. É Tupã que traz o hóspede à cabana
de Araquém.

Assim dizendo, o Pajé passou o cachimbo ao estrangeiro; e entraram
ambos na cabana.

O mancebo sentou-se na rede principal, suspensa no centro da habitação.

Iracema acendeu o fogo da hospitalidade; e trouxe o que havia de provisões
para satisfazer a fome e a sede: trouxe o resto da caça, a farinha-d’água,
os frutos silvestres, os favos de mel, o vinho de caju e ananás.

Depois a virgem entrou com a igaçaba, que na fonte próxima
enchera de água fresca para lavar o rosto e as mãos do estrangeiro.

Quando o guerreiro terminou a refeição, o velho Pajé
apagou o cachimbo e falou:

– Vieste ?

– Vim; respondeu o desconhecido.

– Bem-vindo sejas. O estrangeiro é senhor na cabana de Araquém.
Os tabajaras tem mil guerreiros para defendê-lo, e mulheres sem conta
para servi-lo. Dize, e todos te obedecerão.

– Pajé, eu te agradeço o agasalho que me deste. Logo que o
sol nascer, deixarei tua cabana e teus campos aonde vim perdido; mas não
devo deixá-los sem dizer-te quem é o guerreiro, que fizeste
amigo.

– Foi a Tupã que o Pajé serviu: ele te trouxe, ele te levará.
Araquém nada fez pelo seu hóspede; não pergunta donde
vem e quando vai Se queres dormir, desçam sobre ti os sonhos alegres;
se queres falar, teu hóspede escuta.

O estrangeiro disse:

– Sou dos guerreiros brancos, que levantaram a taba nas margens do Jaguaribe,
perto do mar, onde habitam os pitiguaras, inimigos de tua nação.
Meu nome é Martim, que na tua língua quer dizer filho de guerreiro;
meu sangue, o do grande povo que primeiro viu as terras de tua pátria.
Já meus destroçados companheiros voltaram por mar às
margens do Paraíba, de onde vieram; e o chefe, desamparado dos seus,
atravessa agora os vastos sertões do Apodi. Só eu de tantos
fiquei, porque estava entre os pitiguaras de Acaracu, na cabana do bravo Poti,
irmão de Jacaúna, que plantou comigo a árvore da amizade.
Há três sóis partimos para a caça; e perdido dos
meus, vim aos campos dos tabajaras.

– Foi algum mau espírito da floresta que cegou o guerreiro branco
no escuro da mata: respondeu o ancião.

A cauã piou, além, na extrema do vale. Caía a noite.

IV

O Pajé vibrou o maracá e saiu da cabana, porém o estrangeiro
não ficou só.

Iracema voltara com as mulheres chamadas para servir o hóspede de
Araquém, e os guerreiros vindos para obedecer-lhe.

– Guerreiro branco, disse a virgem, o prazer embale tua rede durante a noite;
e o sol traga luz a teus olhos, alegria à tua alma.

E assim dizendo, Iracema tinha o lábio trêmulo, e úmida
a pálpebra.

– Tu me deixas? perguntou Martim.

– As mais belas mulheres , da grande taba contigo ficam.

– Para elas a filha de Araquém não devia ter conduzido o hóspede
à cabana do Pajé.

– Estrangeiro, Iracema não pode ser tua serva. É ela que guarda
o segredo da jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para
o Pajé a bebida de Tupã.

O guerreiro cristão atravessou a cabana e sumiu-se na treva.

A grande taba erguia-se no fundo do vale, iluminada pelos fachos da alegria.
Rugia o maracá; ao quebro lento do canto selvagem, batia a dança
em torno a rude cadência O Pajé inspirado conduzia o sagrado
tripúdio e dizia ao povo crente os segredos de Tupã.

O maior chefe da nação tabajara, Irapuã , descera do
alto da serra Ibiapaba, para levar as tribos do sertão contra o inimigo
pitiguara. Os guerreiros do vale festejam a vinda do chefe, e o próximo
combate.

O mancebo cristão viu longe o clarão da festa; passou além
e olhou o céu azul sem nuvens A estrela morta s que então brilhava
sobre a cúpula da floresta, guiou seu passo firme para as frescas margens
do rio das garças.

Quando ele transmontou o vale e ia penetrar na mata, surgiu um vulto de Iracema.
A virgem seguira o estrangeiro como a brisa sutil que resvala sem murmurejar
por entre a ramagem.

– Por que, disse ela, o estrangeiro abandona a cabana hospedeira sem levar
o presente da volta ? Quem fez mal ao guerreiro branco na terra dos tabajaras
?

O cristão sentiu quanto era justa a queixa; e achou-se ingrato.

– Ninguém fez mal ao teu hóspede, filha de Araquém.
Era o desejo de ver seus amigos que o afastava dos campos dos tabajaras. Não
levava o presente da volta; mas leva em sua alma a lembrança de Iracema.

– Se a lembrança de Iracema estivesse n’alma do estrangeiro, ela não
o deixaria partir. O vento não leva a areia da várzea, quando
a areia bebe a água da chuva.

A virgem suspirou:

– Guerreiro branco, espera que Caubi volte da caça. O irmão
de Iracema tem o ouvido sutil que pressente a boicininga entre os rumores
da mata; e olhar do oitibó que vê melhor nas trevas. Ele te guiará
às margens do rio das garças.

– Quanto tempo se passará antes que o irmão de Iracema esteja
de volta na cabana de Araquém?

– O sol, que vai nascer, tornará com o guerreiro Caubi aos campos
do Ipu.

– Teu hóspede espera, filha de Araquém; mas se o sol tornando
não trouxer o irmão de Iracema, ele levará o guerreiro
branco à taba dos pitiguaras

Martim voltou à cabana do Pajé.

A alva rede, que Iracema perfumara com a resina do beijoim, guardava-lhe
um sono calmo e doce.

O cristão adormeceu ouvindo suspirar entre os murmúrios da
floresta, o canto mavioso da virgem indiana.

V

O galo da campina ergue a poupa escarlate fora do ninho. Seu límpido
trinado anuncia a aproximação do dia.

Ainda a sombra cobre a terra. Já o povo selvagem colhe as redes na
grande taba e caminha para o banho O velho Pajé que velou toda a noite,
falando às estrelas, conjurando os maus espíritos das trevas
, entra furtivamente na cabana

Eis retroa o boré pela amplidão do vale.

Travam das armas os rápidos guerreiros, e correm ao campo. Quando
foram todos na vasta ocara circular, Irapuã, o chefe, soltou o grito
de guerra:

– Tupã deu à grande nação tabajara toda esta
terra. Nós guardamos as serras, donde manam os córregos, com
os frescos ipus onde cresce a maniva e o algodão; e abandonamos ao
bárbaro potiguara , comedor de camarão, as areias nuas do mar,
com os secos tabuleiros sem água e sem florestas. Agora os pescadores
da praia, sempre vencidos, deixam vir pelo mar a raça branca dos guerreiros
de fogo, inimigos de Tupã. Já os emboabas estiveram no Jaguaribe;
logo estarão em nossos campos; e com eles os potiguaras. Faremos nós,
senhores das aldeias, como a pomba, que se encolhe em seu ninho, quando a
serpente enrosca pelos galhos ?

O irado chefe brande o tacape e o arremessa no meio do campo. Derrubando
a fronte, cobre o rúbico olhar:

– Irapuã falou: disse.

O mais moço dos guerreiros avança:

– O gavião paira nos ares. Quando o nambu levanta, ele cai das nuvens
e rasga as entranhas da vítima. O guerreiro tabajara, filho da serra,
é como o gavião.

Troa e retroa a pocema da guerra.

O jovem guerreiro erguera o tacape; e por sua vez o brandiu Girando no ar,
rápida e ameaçadora, a arma do chefe passou de mão em
mão.

O velho Andira irmão do Pajé, a deixou tombar, e calcou no
chão, com o pé ágil ainda e firme.

Pasma o povo tabajara da ação desusada. Voto de paz em tão
provado e impetuoso guerreiro! É o velho herói, que cresceu
na sanha, crescendo nos anos, é o feroz Andira quem derrubou o tacape,
núncio da próxima luta?

Incertos todos e mudos escutam:

– Andira, o velho Andira, bebeu mais sangue na guerra do que já bebêram
cauim nas festas de Tupã, todos quantos guerreiros alumia agora a luz
de seus olhos. Ele viu mais combates em sua vida, do que luas lhe despiram
a fronte. Quanto crânio de potiguara escalpelou sua mão implacável,
antes que o tempo lhe arrancasse o primeiro cabelo ? E o velho Andira nunca
temeu que o inimigo pisasse a terra de seus pais; mas alegrava-se quando ele
vinha, e sentia com o faro da guerra a juventude renascer no corpo decrépito,
como a árvore seca renasce com o sopro do inverno A nação
tabajara é prudente. Ela deve encostar o tacape da luta para ranger
o membi da festa. Celebra, Irapuã, a vinda dos emboabas e deixa que
cheguem todos aos nossos campos. Então Andira te promete o banquete
da vitória!

Desabriu, enfim, Irapuã a funda cólera:

– Fica tu, escondido entre as igaçabas de vinho, fica, velho morcego,
porque temes a luz do dia e só bebes o sangue da vítima que
dorme. Irapuã leva a guerra no punho de seu tacape. O terror que ele
inspira voa com o rouco som do boré. O potiguara já tremeu ouvindo
rugir na serra, mais forte que o ribombo do mar.

VI

Martim vai a passo e passo por entre os altos juazeiros que cercam a cabana
do Pajé.

Era o tempo em que o doce aracati chega do mar, e derrama a deliciosa frescura
pelo árido sertão. A planta respira; um suave arrepio erriça
a verde coma da floresta.

O cristão contempla o ocaso do sol. A sombra, que desce dos montes
e cobre o vale, penetra sua alma. Lembra-se do lugar onde nasceu, dos entes
queridos que ali deixou. Sabe ele se tornará a vê-los algum dia?

Em torno carpe a natureza o dia que expira. Soluça a onda trépida
e lacrimosa; geme a brisa na folhagem; o mesmo silencio anela de opresso.

Iracema parou em face do jovem guerreiro:

– É a presença de Iracema que perturba a serenidade no rosto
do estrangeiro?

Martim pousou brandos olhos na face da virgem:

– Não, filha de Araquém: tua presença alegra, como a
luz da manhã. Foi a lembrança da pátria que trouxe a
saudade ao coração pressago.

– Uma noiva te espera?

O forasteiro desviou os olhos. Iracema dobrou a cabeça sobre a espádua,
como a tenra palma da carnaúba, quando a chuva peneira na várzea.

– Ela não é mais doce do que Iracema, a virgem dos lábios
de mel, nem mais formosa! murmurou o estrangeiro.

– A flor da mata é formosa quando tem rama que a abrigue, e tronco
onde se enlace. Iracema não vive n’alma de um guerreiro: nunca sentiu
a frescura do seu sorriso.

Emudeceram ambos, com os olhos no chão, escutando a palpitação
dos seios que batiam opressos.

A virgem falou enfim:

– A alegria voltará logo &agragrave; alma do guerreiro branco; porque

Iracema quer que ele veja antes da noite a noiva que o espera.

Martim sorriu do ingênuo desejo da filha do Pajé

– Vem! disse a virgem.

Atravessaram o bosque e desceram ao vale. Onde morria a falda da colina,
o arvoredo era basto: densa abóbada de folhagem verde-negra cobria
o ádito agreste, reservado aos mistérios do rito bárbaro.

Era de jurema o bosque sagrado. Em torno corriam os troncos rugosos da árvore
de Tupã; dos galhos pendiam ocultos pela rama escura os vasos do sacrifício;
lastravam o chão as cinzas de extinto fogo, que servira à festa
da última lua.

Antes de penetrar o recôndito sítio, a virgem que conduzia o
guerreiro pela mão, hesitou, inclinando o ouvido sutil aos suspiros
da brisa. Todos os ligeiros rumores da mata tinham uma voz para a selvagem
filha do sertão. Nada havia porém de suspeito no intenso respiro
da floresta.

Iracema fez ao estrangeiro um gesto de espera e silêncio; logo depois
desapareceu no mais sombrio do bosque. O sol ainda pairava suspenso no viso
da serrania; e já noite profunda enchia aquela solidão.

Quando a virgem tornou, trazia numa folha gotas de verde e estranho licor
vazadas da igaçaba, que ela tirara do seio da terra. Apresentou ao
guerreiro a taça agreste:

– Bebe!

Martim sentiu perpassar nos olhos o sono da morte; porém logo a luz
inundou-lhe os seios d’alma; a força exuberou em seu coração.
Reviveu os dias passados melhor do que os tinha vivido: fruiu a realidade
de suas mais belas esperanças.

Ei-lo que volta à terra natal, abraça a velha mãe, revê
mais lindo e terno o anjo puro dos amores infantis.

Mas por que, mal de volta ao berço da pátria, o jovem guerreiro
de novo deixa o teto paterno e demanda o sertão?

Já atravessa as florestas; já chega aos campos do Ipu. Busca
na selva a filha do Pajé. Segue o rasto ligeiro da virgem arisca, soltando
à brisa com o crebro suspiro o doce nome:

– Iracema! Iracema !…

Já a alcança e cinge-lhe o braço pelo talhe esbelto.

Cedendo à meiga pressão, a virgem reclinou-se ao peito do guerreiro,
e ficou ali trêmula e palpitante como a tímida perdiz, quando
o terno companheiro lhe arrufa com o bico a macia penugem.

O lábio do guerreiro suspirou mais uma vez o doce nome e soluçou,
como se chamara outro lábio amante. Iracema sentiu que sua alma se
escapava para embeber-se no ósculo ardente.

A fronte reclinara, e a flor do sorriso expandia-se como o nenúfar
ao beijo do sol.

Súbito a virgem tremeu; soltando-se rápida do braço
que a cingia, travou do arco.

VII

Iracema passou entre as árvores, silenciosa como uma sombra; seu olhar
cintilante coava entre as folhas, qual frouxo raio de estrelas; ela escutava
o silêncio profundo da noite e aspirava as auras sutis que aflavam .

Parou. Uma sombra resvalava entre as ramas; e nas folhas crepitava um passo
ligeiro, se não era o roer de algum inseto. A pouco e pouco o tênue
rumor foi crescendo e a sombra avultou.

Era um guerreiro. De um salto a virgem estava em face dele, trêmula
de susto e mais de cólera.

– Iracema! exclamou o guerreiro recuando.

– Anhanga turbou sem dúvida o sono de Irapuã, que o trouxe
perdido ao bosque da jurema, onde nenhum guerreiro penetra contra a vontade
de Araquém.

– Não foi Anhanga, mas a lembrança de Iracema, que turbou o
sono do primeiro guerreiro tabajara. Irapuã desceu do seu ninho de
águia para seguir na várzea a garça do rio. Chegou, e
Iracema fugiu de seus olhos As vozes da taba contaram ao ouvido do chefe que
um estrangeiro era vindo à cabana de Araquém.

A virgem estremeceu. O guerreiro cravou nela o olhar abrasado:

– O coração aqui no peito de Irapuã, ficou tigre. Pulou
de raiva. Veio farejando a presa. O estrangeiro está no bosque, e Iracema
o acompanhava. Quero beber-lhe o sangue todo: quando o sangue do guerreiro
branco correr nas veias do chefe tabajara, talvez o ame a filha de Arequém.

A pupila negra da virgem cintilou na treva, e de seu lábio borbulhou,
como gotas do leite cáustico de eufórbia, um sorriso de desprezo:

– Nunca Iracema daria seu seio, que o espírito de Tupã habita
só, ao guerreiro mais vil dos guerreiros tabajaras! Torpe é
o morcego porque foge da luz e bebe o sangue da vítima adormecida!

– Filha de Araquém, não assanha o jaguar. O nome de Irapuã
voa mais longe que o goaná do lago, quando sente a chuva além
das serras. Que o guerreiro branco venha, e o seio de Iracema se abra para
o vencedor.

– O guerreiro branco é hóspede de Araquém. A paz o trouxe
aos campos de Ipu, a paz o guarda. Quem ofender o estrangeiro, ofende o Pajé.

Rugiu de sanha o chefe tabajara:

– A raiva de Irapuã só ouve agora o grito de vingança.
O estrangeiro vai morrer.

– A filha de Araquém é mais forte que o chefe dos guerreiros,
disse Iracema travando da inúbia. Ela tem aqui a voz de Tupã,
que chama seu povo.

– Mas não chamará! respondeu o chefe escarnecendo

– Não, porque Irapuã vai ser punido pela mão de Iracema.
Seu primeiro passo é o passo da morte.

A virgem retraiu dum salto o avanço que tomara, e vibrou o arco. O
chefe cerrou ainda o punho do formidável tacape; mas pela vez primeira
sentiu que pesava ao braço robusto. O golpe que devia ferir Iracema,
ainda não alçado, já lhe trespassava, a ele próprio,
o coração

Conheceu quanto o varão forte é, pela sua mesma fortaleza,
mais cativo das grandes paixões.

– A sombra de Iracema não esconderá sempre o estrangeiro à
vingança de Irapuã. Viu é o guerreiro, que se deixa proteger
por uma mulher

Dizendo estas palavras, o chefe desapareceu entre as árvores.

A virgem sempre alerta volveu para o cristão adormecido; e velou o
resto da noite a seu lado. As emoções recentes, que agitaram
sua alma, a abriram ainda mais à doce afeição, que iam
filtrando nela os olhos do estrangeiro.

Desejava abrigá-lo contra todo o perigo, recolhê-lo em si como
em um asilo impenetrável. Acompanhando o pensamento, seus braços
cingiam a cabeça do guerreiro, e a apertavam ao seio.

Mas, quando passou a alegria de o ver salvo dos perigos da noite, entrou-a
mais viva inquietação, com a lembrança dos novos perigos
que iam surgir.

– O amor de Iracema é como o vento dos areais; mata a flor das arvores:
suspirou a virgem.

E afastou-se lentamente.

VIII

A alvorada abriu o dia e os olhos do guerreiro branco. A luz da manhã
dissipou os sonhos da noite, e arrancou de sua alma a lembrança do
que sonhara. Ficou apenas um vago sentir, como fica na mouta o perfume da
flor que o vento da serra desfolha na madrugada.

Não sabia onde estava.

A saída do bosque sagrado encontrou Iracema: a virgem reclinava num
tronco áspero do arvoredo; tinha os olhos no chão; o sangue
fugira das faces; o coração lhe tremia nos lábios, como
gota de orvalho nas folhas do bambu.

Não tinha sorrisos, nem cores, a virgem indiana: não tem borbulhas,
nem rosas, a acácia que o sol crestou; não tem azul, nem estrelas,
a noite que enlutam os ventos.

– As flores da mata já abriram aos raios do sol; as aves já
cantaram: disse o guerreiro. Por que só Iracema curva a fronte e emudece
?

A filha do Pajé estremeceu. Assim estremece a verde palma, quando
a haste frágil foi abalada; rorejam do espato as lágrimas da
chuva, e os leques ciciam brandamente.

– O guerreiro Caubi vai chegar à taba de seus irmãos. O estrangeiro
poderá partir com o sol que vem nascendo.

– Iracema quer ver o estrangeiro fora dos campos dos tabajaras; então
a alegria voltará a seu seio.

– A juruti, quando a árvore seca, foge do ninho em que nasceu. Nunca
mais a alegria voltará ao seio de Iracema: ela vai ficar, como o tronco
nu, sem ramas, nem sombras.

Martim amparou o corpo trêmulo da virgem; ela reclinou lânguida
sobre o peito do guerreiro, como o tenro pâmpano da baunilha que enlaça
o rijo galho do angico.

O mancebo murmurou:

– Teu hóspede fica, virgem dos olhos negros: ele fica para ver abrir
em tuas faces a flor da alegria, e para sorver, como o colibri, o mel de teus
lábios.

Iracema soltou-se dos braços do mancebo, e olhou-o com tristeza:

– Guerreiro branco, Iracema é filha do Pajé, e guarda o segredo
da jurema. O guerreiro que possuisse a virgem de Tupã morreria.

– E Iracema?

– Pois que tu morrias!…

Esta palavra foi como um sopro de tormenta. A cabeça do mancebo vergou
e pendeu sobre o peito; mas logo se ergueu.

– Os guerreiros de meu sangue trazem a morte consigo, filha dos tabajaras.
Não a temem para si, não a poupam para o inimigo. Mas nunca
fora do combate eles deixarão aberto o camucim da virgem na taba de
seu hóspede. A verdade falou pela boca de Iracema. O estrangeiro deve
abandonar os campos dos tabajaras.

– Deve: respondeu a virgem como um eco.

Depois a sua voz suspirou:

– O mel dos lábios de Iracema é como o favo que a abelha fabrica
no tronco da andiroba : tem na doçura o veneno. A virgem dos olhos
azuis e dos cabelos do sol guarda para seu guerreiro na taba dos brancos o
mel da açucena.

Martim afastou-se rápido; mas voltou lentamente. A palavra tremia
em seu lábio:

– O estrangeiro partirá pata que o sossego volte ao seio da virgem.

– Tu levas a luz dos olhos de Iracema, e a flor de sua alma.

Reboa longe na selva um clamor estranho. Os olhos do mancebo alongam-se.

– É o grito de alegria do guerreiro Caubi: disse a virgem. O irmão
de Iracema anuncia que é chegado aos campos dos tabajaras.

– Filha de Araquém, guia teu hóspede à cabana. É
tempo de partir.

Eles caminharam par a par, como dois jovens cervos que ao pôr do sol
atravessam a capoeira recolhendo ao aprisco de onde lhes traz a brisa um faro
suspeito.

Quando chegavam perto dos juazeiros, viram que passava além o guerreiro
Caubi, vergando os ombros robustos ao peso da caça. Iracema caminhou
para ele.

O estrangeiro entrou só na cabana.

IX

O sono da manhã pousava nos olhos do Pajé como névoas
de bonança pairam ao romper do dia sobre as profundas cavernas da montanha.

Martim parou indeciso; mas o rumor de seu passo penetrou no ouvido do ancião,
e abalou seu corpo decrépito.

– Araquém dorme! murmurou o guerreiro devolvendo o passo.

O velho ficou imóvel:

– O Pajé dorme porque já Tupã voltou o rosto para a
terra e a luz correu os maus espíritos da treva. Mas o sono é
leve nos

olhos de Araquém, como o fumo do sapé no cocuruto da serra.
Se o estrangeiro veio para o Pajé, fale; seu ouvido escuta.

– O estrangeiro veio, para te anunciar que parte.

– O hóspede é senhor na cabana de Araquém; todos os
caminhos estão abertos para ele. Tupã o leve à taba dos
seus.

Vieram Caubi e Iracema:

– Caubi voltou: disse o guerreiro tabajara. Traz a Araquém o melhor
de sua caça.

– O guerreiro Caubi é um grande caçador de montes e florestas.
Os olhos de seu pai gostam de vê-lo.

O velho abriu as pálpebras e cerrou-as logo:

– Filha de Araquém, escolhe para teu hóspede o presente da
volta e prepara o moquém da viagem. Se o estrangeiro precisa de guia,
o guerreiro Caubi, senhor do caminho , O acompanhará.

O sono voltou aos olhos do Pajé.

Enquanto Caubi pendurava no fumeiro as peças de caça, Iracema
colheu a sua alva rede de algodão com franjas de penas, e acomodou-a
dentro do uru de palha trançada.

Martim esperava na porta da cabana. A virgem veio a ele:

– Guerreiro, que levas o sono de meus olhos, leva a minha rede também.
Quando nela dormites, falem em tua alma os sonhos de Iracema.

– Tua rede, virgem dos tabajaras, será minha companheira no deserto:
venha embora o vento frio da noite, ela guardará para o estrangeiro
o calor e o perfume do seio de Iracema.

Caubi saiu para ir à sua cabana, que ainda não tinha visto
depois da volta. Iracema foi preparar o moquém da viagem. Ficaram sós
na cabana o Pajé que ressonava, e o mancebo com sua tristeza.

O sol, transmontando, já começava a declinar para o ocidente,
quando o irmão de Iracema tornou da grande taba.

– O dia vai ficar triste , disse Caubi. A sombra caminha para a noite. É
tempo de partir.

A virgem pousou a mão de leve no punho da rede de Araquém.

– Ele vai! murmuraram os lábios trêmulos.

O Pajé levantou-se em pé no meio da cabana e acendeu o cachimbo.
Ele e o mancebo trocaram a fumaça da despedida.

– Bem-ido seja o hóspede, como foi bem-vindo à cabana de Araquém.

O velho andou até à porta para soltar ao vento uma espessa
baforada de tabaco; quando o fumo se dissipou no ar, ele murmurou:

– Jurupari se esconda para deixar passar o hóspede do Pajé.
Araquém voltou à rede e dormiu de novo. O mancebo tomou as armas
que chegando, suspendera às varas da cabana, e dispôs-se a partir.

Adiante seguiu Caubi; a alguma distancia o estrangeiro; logo após,
Iracema.

Desceram a colina e entraram na mata sombria. O sabiá do sertão,
mavioso cantor da tarde, escondido nas moitas espessas da ubaia , soltava
os prelúdios da suave endecha.

A virgem suspirou:

– A tarde é a tristeza do sol. Os dias de Iracema vão ser longas
tardes sem manhã, até que venha para ela a grande noite.

O mancebo se voltara. Seu lábio emudeceu, mas os olhos falaram. Uma
lágrima correu pela face guerreira, como as umidades que durante os
ardores do estio transudam da escarpa dos rochedos.

Caubi avançado sempre, sumira-se entre a densa ramagem.

O seio da filha de Araquém arfou, como o esto da vaga que se franja
de espuma e soluça. Mas sua alma, negra de tristura, teve ainda um
pálido reflexo para iluminar a seca flor das faces. Assim em noite
escura vem um fogo-fátuo luzir nas brancas areias do tabuleiro.

– Estrangeiro, toma o último sorriso de Iracema… e foge!

A boca do guerreiro pousou na boca mimosa da virgem. Ficaram ambos assim
unidos como dois frutos gêmeos do araçá, que saíram
do seio da mesma flor.

A voz de Caubi chamou o estrangeiro. Iracema abraçou para não
cair, o tronco de uma palmeira.

X

Na cabana silenciosa medita o velho Pajé.

Iracema está apoiada no tronco rudo, que serve de esteio. Os grandes
olhos negros, fitos nos recortes da floresta e rasos de pranto, estão
naqueles olhares longos e trêmulos enfiando e desfiando os alfajôres
das lágrimas, que rorejam as faces.

A ará, pousada no jirau fronteiro, alonga para sua formosa senhora
os verdes tristes olhos. Desde que o guerreiro branco pisou a terra dos tabajaras,
Iracema a esqueceu.

Os róseos lábios da virgem não se abriram mais para
que ela colhesse entre eles a polpa da fruta ou a papa do milho verde; nem
a doce mão a afagara uma só vez, alisando a dourada penugem
da cabeça.

Se repetia o mavioso nome da senhora, o sorriso de Iracema já não
se voltava para ela, nem o ouvido parecia escutar a voz da companheira e amiga,
que dantes tão suave era ao seu coração.

Triste dela! A gente tupi a chamava jandaia , porque sempre alegre estrugia
os campos com seu canto fremente. Mas agora, triste e muda, desdenhada de
sua senhora, não parecia mais a linda jandaia, e sim o feio urutau
que somente sabe gemer.

O sol remontou a umbria das serras; seus raios douravam apenas o viso das
eminências.

A surdina merencória da tarde, precedendo o silêncio da noite,
começava de velar os crebros rumores do campo. Uma ave noturna, talvez
iludida com a sombra mais espessa do bosque, desatou o estrídulo.

O velho ergueu a fronte calva:

– Foi o canto da inhuma que acordou o ouvido de Araquém? disse ele
admirado.

A virgem estremecera, e já fora da cabana, voltou-se, para responder
à pergunta do Pajé:

– É o grito de guerra do guerreiro Caubi!

Quando o segundo pio da inhuma ressoou, Iracema corria na mata como a corça
perseguida pelo caçador. Só respirou chegando à campina,
que recortava o bosque, como um grande lago.

Quem seus olhos primeiro viram, Martim, estava tranqüilamente sentado
em uma sapopema, olhando o que passava ali. Contra, cem guerreiros tabajaras
com Irapuã à frente, formavam arco. O bravo Caubi os afrontava
a todos, com o olhar cheio de ira e as armas valentes empunhadas na mão
robusta.

O chefe exigira a entrega do estrangeiro, e o guia respondera simplesmente:

– Matai Caubi antes.

A filha do Pajé passara como uma flecha: ei-la diante de Martim, opondo
também seu corpo gentil aos golpes dos guerreiros. Irapuã soltou
o bramido da onça atacada na furna.

– Filha do Pajé, disse Caubi em voz baixa: conduz o estrangeiro à
cabana: só Araquém pode salvá-lo.

Iracema voltou-se para o guerreiro branco:

– Vem!

Ele ficou imóvel.

– Se tu não vens, disse a virgem, Iracema morrerá contigo.

Martim ergueu-se; mas longe de seguir a virgem, caminhou direito a Irapuã.
Sua espada flamejou no ar.

– Os guerreiros de meu sangue, chefe, jamais recusaram combate. Se aquele
que tu vês não foi o primeiro a provocá-lo, é porque
seus pais lhe ensinaram a não derramar sangue na terra hospedeira.

O chefe tabajara rugiu de alegria; sua mão possante brandiu o tacape.
Mas os dois campeões mal tiveram tempo de medir-se com os olhos; quando
fendiam o primeiro golpe, já Caubi e Iracema estavam entre eles.

A filha de Araquém debalde rogava ao cristão, debalde o cingia
nos braços buscando arrancá-lo ao combate. De seu lado Caubi
em vão provocava Irapuã para atrair a si a raiva do chefe.

A um gesto de Irapuã, os guerreiros afastaram os dois irmãos;
o combate prosseguiu.

De repente o rouco som da inúbia reboou pela mata; os filhos da serra
estremeceram reconhecendo o estrídulo do búzio guerreiro dos
pitiguaras, senhores das praias ensombradas de coqueiros. O eco vinha da grande
taba, que o inimigo talvez assaltava já.

Os guerreiros precipitaram levando por diante o chefe. Com o estrangeiro
só ficou a filha de Araquém.

XI

Os guerreiros tabajaras, acorridos à taba, esperavam o inimigo diante
da calçara.

Não vindo ele, saíram a buscá-lo.

Bateram as matas em torno e percorreram os campos; nem vestígios encontraram
da passagem dos pitiguaras; mas o conhecido frêmito do búzio
das praias tinha ressoado ao ouvido dos guerreiros da montanha; não
havia duvidar.

Suspeitou Irapuã que fosse um ardil da filha de Araquém para
salvar o estrangeiro, e caminhou direito à cabana do Pajé. Como
trota o guará pela orla da mata, quando vai seguindo o rasto da presa
escápula, assim estugava o passo o sanhudo guerreiro.

Araquém viu entrar em sua cabana o grande chefe da nação
tabajara, e não se moveu. Sentado na rede, com as pernas cruzadas,
escutava Iracema. A virgem referia os sucessos da tarde; avistando a figura
sinistra de Irapuã, saltou sobre o arco e uniu-se ao flanco do jovem
guerreiro branco.

Martim a afastou docemente de si, e promoveu o passo.

A proteção, de que o cercava, a ele guerreiro, a virgem tabajara,
o desgostava.

– Araquém, a vingança dos tabajaras espera o guerreiro branco;
Irapuã veio buscá-lo.

– O hóspede é amigo de Tupã: quem ofender o estrangeiro,
ouvirá rugir o trovão.

– O estrangeiro foi quem ofendeu a Tupã, roubando sua virgem, que
guarda os sonhos da jurema.

– Tua boca mente como o ronco da jibóia : exclamou Iracema. Martim
disse:

– Irapuã é vil e indigno de ser chefe de guerreiros valentes!

O Pajé falou grave e lento:

– Se a virgem abandonou ao guerreiro branco a flor de seu corpo, ela morrerá;
mas o hóspede de Tupã é sagrado; ninguém o ofenderá;
Araquém o protege.

Bramiu Irapuã; o grito ronco troou nas arcas do peito, como o frêmito
da sucuri na profundeza do rio.

– A raiva de Irapuã não pode mais ouvir-te, velho Pajé!
Caia ela sobre ti, se ousares subtrair o estrangeiro à vingança
dos tabajaras.

O velho Andira, irmão do Pajé, entrou na cabana; trazia no
punho o terrivel tacape; e nos olhos uma sanha ainda mais terrível.

– O morcego vem te chupar o sangue, Irapuã, se é que tens sangue
e não lama nas veias, tu que ameaças em sua cabana o velho Pajé.

Araquém afastou o irmão:-Paz e silêncio, Andira.

O Pajé desenvolvera a alta e magra estatura, como a caninana assanhada,
que se enrista sobre a cauda, para afrontar a vítima em face. Afundaram-lhe
as rogas; e repuxando as peles engelhadas, esbugalharam os dentes alvos e
afilados:

– Ousa um passo mais, e as iras de Tupã te esmagarão sob o
peso desta mão seca e mirrada!

– Neste momento, Tupã não é contigo! replicou o chefe.

O Pajé riu; e seu riso sinistro reboou pelo espaço como o regougo
da ariranha.

– Ouve seu trovão e treme em teu seio, guerreiro, como a terra em
sua profundeza.

Araquém proferindo essa palavra terrível, avançou até
o meio da cabana; ali ergueu a grande pedra e calcou o pé com força
no chão; súbito, abriu-se a terra. Do antro profundo saiu um
medonho gemido, que parecia arrancado das entranhas do rochedo.

Irapuã não tremeu, nem enfiou de susto; mas sentiu estremecer
a luz nos olhos, e a voz nos lábios.

– O senhor do trovão é por ti; o senhor da guerra será
por Irapuã: disse o chefe.

O torvo guerreiro deixou a cabana; com pouco seu grande vulto mergulhou se
nas sombras do crepúsculo.

O Pajé e seu irmão travaram a prática na porta da cabana.

Ainda surpreso do que vira, Martim não tirava os olhos da funda cava,
que a planta do velho Pajé abrira no chão da cabana. Um surdo
rumor, como o eco das ondas quebrando nas praias, ruidava ali.

Cismava o guerreiro cristão; ele não podia crer que o deus
dos tabajaras desse a seu sacerdote tamanho poder.

Percebendo o que passava n’alma do estrangeiro, Araquém acendeu o
cachimbo e travou do maracá :

– É tempo de aplacar as iras de Tupã, e calar a voz do trovão.

Disse e partiu da cabana.

Iracema achegou-se então do mancebo; levava os lábios em riso,
os olhos em júbilo:

– O coração de Iracema está como o abati d’água
do rio. Ninguém fará mal ao guerreiro branco na cabana de Araquém.

– Arreda-te do inimigo, virgem dos tabajaras: respondeu o estrangeiro com
aspereza de voz.

Voltando brusco para o lado oposto, furtou o semblante aos olhos ternos e
queixosos da virgem.

– Que fez Iracema, para que o guerreiro branco desvie seus olhos, como se
ela fora o verme da terra?

As falas da virgem ressoaram docemente no coração de Martim.
Assim ressoam os murmúrios da aragem nas frondes da palmeira. Teve
o mancebo desgosto de si, e pena dela:

– Não ouves tu, virgem formosa? exclamou ele, apontando para o antro
fremente.

– É a voz de Tupã!

– Teu deus falou pela boca do Pajé: "Se a virgem de Tupã
abandonar ao estrangeiro a flor de seu corpo, ela morrerá!"

Iracema pendeu a fronte abatida:

– Não é a voz de Tupã que ouve teu coração,
guerreiro de longes terras, é o canto da virgem loura, que te chama!

O rumor estranho que saía das profundezas da terra apagou-se de repente:
fez-se na cabana tão grande silêncio, que ouvia-se pulsar o sangue
na artéria do guerreiro, e tremer o suspiro no lábio da virgem.

XII

O dia enegreceu; era noite já.

O Pajé tornara à cabana; sopesando de novo a grossa laje, fechou
com ela a boca do antro. Caubi chegara também da grande taba, onde
com seus irmãos guerreiros, se recolhera depois que bateram a floresta,
em busca do inimigo pitiguara.

No meio da cabana, entre as redes armadas em quadro, estendeu Iracema a esteira
da carnauba, e sobre ela serviu os restos da caça, e a provisão
de vinhos da última lua. Só o guerreiro tabajara achou sabor
na ceia, porque o fel do coração que a tristeza espreme não
amargurara seu lábio.

O Pajé enchia o cachimbo da erva de Tupã; o estrangeiro respirava
o ar puro da noite para refrescar o sangue efervescente, a virgem destilava
sua alma como o mel de um favo nos crebros soluços que lhe estalavam
entre os lábios trêmulos.

Já partiu Caubi para a grande taba; o Pajé traga as baforadas
do fumo, que prepara o mistério do rito sagrado.

Levanta-se no ressono da noite um grito vibrante, que remonta ao céu.

Ergue Martim a fronte e inclina o ouvido. Outro clamor semelhante ressoa.
O guerreiro murmura, que o ouça a virgem e só ela:

– Escutou, Iracema, cantar a gaivota?

– Iracema escutou o grito de uma ave que ela não conhece.

– É a atiati, a garça do mar, e tu és a virgem da serra,
que nunca desceu às alvas praias onde arrebentam as vagas.

– As praias são dos pitiguaras, senhores das palmeiras.

Os guerreiros da grande nação que habitava as bordas do mar,
se chamavam a si mesmos pitiguaras, senhores dos vales; mas os tabajaras,
seus inimigos, por escárnio os apelidavam potiguaras, comedores de
camarão.

Temeu Iracema ofender o guerreiro branco; por isso falando dos pitiguaras,
não lhes recusou o nome guerreiro que eles haviam tomado para si.

O estrangeiro reteve por um instante a palavra no lábio prudente,
enquanto refletia:

– O canto da gaivota é o grito de guerra do valente Poti, amigo de
teu hóspede!

A virgem estremeceu por seus irmãos. A fama do bravo Poti, irmão
de Jacaúna, subiu das ribeiras do mar ao cimo da Ibiapaba; rara é
a cabana onde já não rugiu contra ele o grito da vingança,
porque cada golpe do válido tacape deitou um guerreiro tabajara em
seu camucim.

Cuidou Iracema que Poti vinha à frente de seus guerreiros para livrar
o amigo. Era ele sem duvida que fizera retroar o búzio das praias,
no momento do combate. Foi com um tom misturado de doçura e tristeza
que replicou:

– O estrangeiro está salvo; os irmãos de Iracema vão
morrer, porque ela não falará.

– Despede essa tristeza de tua alma. O estrangeiro partindo-se de teus campos,
virgem tabajara, não deixará neles rasto de sangue, como o tigre
esfaimado.

Iracema tomou a mão do guerreiro branco e beijou-a.

– Teu sorriso, filha do Pajé, apagou a lembrança do mal que
eles me querem.

Martim ergueu-se e caminhou para a porta.

– Onde vai o guerreiro branco?

– Ao encontro de Poti.

– O hóspede de Araquém não pode sair desta cabana, porque
os guerreiros de Irapuã o matarão.

– Um guerreiro só pede proteção a Deus e a suas armas.
Não carece que o defendam os velhos e as mulheres.

– Que vale um guerreiro só contra mil guerreiros? Valente e forte
é o tamanduá, que mordem os gatos selvagens por serem muitos
e o acabam. Tuas armas só chegam até onde mede a sombra de teu
corpo; as armas deles voam alto e direito como o anajê.

– Todo o guerreiro tem seu dia.

– Não queres tu que morra Iracema, e queres que ela te deixe morrer!

Martim ficou perplexo.

– Iracema irá ao encontro do chefe pitiguara e trará a seu
hóspede as falas do guerreiro amigo.

Saiu enfim o Pajé da sua contemplação. O maracá
rugiu-lhe na destra; tiniram os guizos com o passo hirto e lento.

Chamou ele a filha de parte:

– Se os guerreiros de Irapuã vierem contra a cabana, levanta a pedra
e esconde o estrangeiro no seio da terra.

– O hóspede não deve ficar só; espere que volte Iracema.
Ainda não cantou a inhuma.

Tornou a sentar-se na rede o velho. A virgem partiu, cerrando a porta da
cabana.

XIII

Avança a filha de Araquém nas trevas; pára e escuta.

O grito da gaivota terceira vez ressoa a seu ouvido; vai direito ao lugar
donde partiu; chega à borda de um tanque; seu olhar investiga a escuridão,
e nada vê do que busca.

A voz maviosa, débil como sussurro de colibri, murmura:

– Guerreiro Poti, teu irmão branco te chama pela boca de Iracema.

Só o eco respondeu-lhe.

– A filha de teus inimigos vem a ti, porque o estrangeiro te ama, e ela ama
o estrangeiro.

Fendeu-se a lisa face do lago e um vulto se mostra, que nada para a margem,
e surge fora.

– Foi Martim, que te mandou, pois tu sabes o nome de Poti, seu irmão
na guerra.

– Fala, chefe pitiguara; o guerreiro branco espera.

– Torna a ele e diz que Poti é chegado para o salvar.

– Ele sabe; e mandou-me a ti.

– As falas de Poti sairão de sua boca para o ouvido de seu irmão.

– Espera então que Araquém parta e a cabana fique deserta;
eu te guiarei à presença do estrangeiro.

– Nunca, filha dos tabajaras, um guerreiro pitiguara passou a soleira da
cabana inimiga, se não foi como vencedor. Conduz aqui o guerreiro do
mar.

– A vingança de Irapuã fareja em roda da cabana de Araquém.
Trouxe o irmão do estrangeiro bastantes guerreiros pitiguaras para
o defender e salvar ?

Poti refletiu:

– Conta, virgem das serras, o que sucedeu em teus campos depois que a eles
chegou o guerreiro do mar.

Referiu Iracema como a cólera de Irapuã se havia assanhado
contra o estrangeiro, até que a voz de Tupã, chamada pelo Pajé,
tinha acalmado seu furor:

– A raiva de Irapuã é como a andira: foge da luz e voa nas
trevas.

A mão de Poti cerrou súbito os lábios da virgem; sua
fala parecia um sopro:

– Suspende a voz e o respiro, virgem das florestas; o ouvido inimigo escuta
na sombra.

As folhas creditavam de manso, como se por elas passasse a fragueira nambu.
Um rumor, partido da orla da mata, vinha discorrendo pelo vale.

O valente Poti, resvalando pela relva, como o ligeiro camarão, de
que ele tomara o nome e a viveza, desapareceu no lago profundo. A água
não soltou um murmúrio, e cerrou sobre ele sua onda límpida.

Voltou Iracema à cabana; em meio do caminho perceberam seus olhos
as sombras de muitos guerreiros que rojavam pelo chão como a intanha

Vendo-a entrar, Araquém partiu.

A virgem tabajara contou a Martim o que ouvira de Poti; o guerreiro cristão
ergueu-se de um ímpeto para correr em defesa de seu irmão pitiguara.
Cingiu-lhe Iracema o colo com os lindos braços:

– O chefe não carece de ti: ele é filho das águas; as
águas o protegem. Mais tarde o estrangeiro escutará as falas
do amigo.

– Iracema, é tempo que teu hóspede deixe a cabana do Pajé
e os campos dos tabajaras. Ele não tem medo dos guerreiros de Irapuã:
tem medo dos olhos da virgem de Tupã.

– Estes fugirão de ti.

– Fuja deles o estrangeiro, como o oitibó da estrela da manhã.

Martim promoveu o passo.

– Vai, guerreiro ingrato; vai matar teu irmão primeiro, depois a ti.
Iracema te seguirá até aos campos alegres onde vão as
sombras dos que morrem.

– Matar meu irmão, dizes tu, virgem cruel.

– Teu rasto guiará o inimigo aonde se oculta o guerreiro do vale.

O cristão estacou em meio da cabana; e ali permaneceu mudo e quedo.
Iracema, receosa de fitá-lo, punha os olhos na sombra do guerreiro
que a chama projetava na vetusta parede da cabana.

O cão felpudo, deitado no borralho, deu sinal de aproximar-se gente
amiga. A porta entretecida dos talos da carnaúba foi aberta por fora.
Caubi entrou.

– O cauim perturbou o espírito dos guerreiros; eles vêm contra
o estrangeiro.

A virgem ergueu-se de um ímpeto:

– Levanta a pedra que fecha a garganta de Tupã, para que ela esconda
o estrangeiro.

O guerreiro tabajara, sopesando a laje enorme, emborcou-a no chão.

– Filho de Araquém, deita-te na porta da cabana, e nunca mais te levantes
da terra, se um guerreiro passar por cima de teu corpo

Caubi obedeceu; a virgem cerrou a porta.

Decorreu breve trato. Ressoa perto o estrupido dos guerreiros; travam-se
as vozes iradas de Irapuã e Caubi,

– Eles vem; mas Tupã salvará seu hóspede.

Nesse instante, como se o deus do trovão ouvisse as palavras de sua
virgem, o antro mudo em princípio, retroou surdamente.

– Ouve! É a voz de Tupã.

Iracema cerra a mão do guerreiro e o leva à borda do antro.
Somem-se ambos nas entranhas da terra.

XIV

Os guerreiros tabajaras, excitados com as copiosas libações
do espumante cauim, se inflamam à voz de Irapuã que tantas vezes
os guiou ao combate, quantas à vitória.

Aplaca o vinho a sede do corpo, mas acende outra sede maior na alma feroz.
Rugem vinganças contra o estrangeiro audaz que afrontando suas armas,
ofende o deus de seus pais e o chefe de guerra, o primeiro varão tabajara.

Lá tripudiam de furor, e arremetem pelas sombras; a luz vermelha do
ubiratã , que brilha ao longe, os guia à cabana de Araquém.
De espaço em espaço erguem-se do chão os que primeiro
vieram para vigiar o inimigo.

– O Pajé está na floresta! murmuram eles.

– E o estrangeiro? pergunta Irapuã.

– Na cabana com Iracema.

Lança o grande chefe terrível salto; já é chegado
à porta da cabana, e com ele seus valentes guerreiros.

O vulto de Caubi enche o vão da porta; suas armas guardam diante dele
o espaço de um bote do maracajá.

– Vis guerreiros são aqueles que atacam em bando como os caititus.
O jaguar , senhor da floresta, e o anajê, senhor das nuvens, combatem
só o inimigo.

– Morda o pó a boca torpe que levanta a voz contra o mais valente
guerreiro dos guerreiros tabajaras.

Proferidas estas palavras, ergue o braço de Irapuã o rígido
tacape, mas estaca no ar; as entranhas da terra outra vez rugem, como rugiram,
quando Araquém acordou a voz tremenda de Tupã.

Levantam os guerreiros medonho alarido, e cercando seu chefe, o arrebatam
ao funesto lugar e à cólera de Tupã, contra eles concitado.

Caubi estende-se de novo na soleira da porta; seus olhos adormecem; mas o
ouvido sutil vela no sono.

Emudeceu a voz de Tupã,

Iracema e o cristão, perdidos nas entranhas da terra, descem a grata
profunda. Súbito, uma voz que vinha reboando pela crasta, encheu seus
ouvidos:

– O guerreiro do mar escuta a fala de seu irmão?

– É Poti,o amigo de teu hóspede: disse o cristão para
a virgem,

Iracema estremeceu:

– Ele fala pela boca de Tupã.

Martim respondeu enfim ao pitiguara.

– As falas de Poti entram n’alma de seu irmão.

– Nenhum outro ouvido escuta?

– Os da virgem que duas vezes em um sol defendeu a vida de teu irmão!

– A mulher é fraca; o tabajara traidor, e o irmão de Jacaúna
prudente.

Iracema suspirou e pousou a cabeça no peito do mancebo:

– Senhor de Iracema, cerra seus ouvidos para que ela não onça,

Martim repeliu docemente a gentil fronte:

– Fale o chefe pitiguara; só o escutam ouvidos amigos e fiéis.

– Tu ordenas, Poti fala. Antes que o sol se levante na serra, o guerreiro
do mar deve partir para as margens do ninho das garças; a estrela morta
o guiará. Nenhum tabajara o seguirá, porque a inúbia
dos pitiguaras rugirá da banda da serra,

– Quantos guerreiros pitiguaras acompanham seu chefe valente?

– Nenhum; Poti veio só, Quando os espíritos maus das florestas
separaram o guerreiro do mar de seu irmão, Poti veio em seguimento
do rasto. Seu coração não deixou que voltasse para chamar
os guerreiros de sua taba; mas despediu o cão fiel ao grande Jacaúna.

– O chefe pitiguara está só; não deve rugir a inúbia
que chamará contra si todos os guerreiros tabajaras.

– Assim é preciso para salvar o irmão branco; Poti zombará
de Irapuã, como zombou quando combatiam cem contra ti,

A filha do Pajé que ouvia calada, debruçou-se ao ouvido do
cristão:

– Iracema quer te salvar e a teu irmão; ela tem seu pensamento. O
chefe pitiguara é valente e audaz; Irapuã é manhoso e
traiçoeiro como a acauã . Antes que chegues à floresta,
cairás; e teu irmão da outra banda cairá contigo.

– Que fará a virgem tabajara para salvar o estrangeiro e seu irmão
? perguntou Martim.

– A lua das flores vai nascer. É o tempo da festa, em que os guerreiros
tabajaras passam a noite no bosque sagrado, e recebem do Pajé os sonhos
alegres. Quando estiverem todos adormecidos, o guerreiro branco deixará
os campos de Ipu, e os olhos de Iracema, mas sua alma, não.

Martim estreitou a virgem ao seio; mas logo a repeliu. O toque de seu corpo,
doce como a açucena da mata, e macio como o ninho do beija-flor, magoou
seu coração, porque lhe recordou as palavras terríveis
do Pajé.

A voz do cristão transmitiu a Poti o pensamento de Iracema; o chefe
pitiguara, prudente como o tamanduá, pensou e respondeu:

– A sabedoria falou pela boca da virgem tabajara. Poti espera o nascimento
da lua.

XV

Nasceu o dia e expirou.

Já brilha na cabana de Araquém o fogo, companheiro da noite.
Correm lentas e silenciosas no azul do céu, as estrelas, filhas da
lua, que esperam a volta da mãe ausente.

Martim se embala docemente; e como a alva rede que vai e vem, sua vontade
oscila de um a outro pensamento. Lá o espera a virgem loura dos castos
afetos; aqui lhe sorri a virgem morena dos ardentes amores.

Iracema recosta-se langue ao punho da rede; seus olhos negros e fúlgidos,
ternos olhos de sabiá, buscam o estrangeiro e lhe entram n’alma. O
cristão sorri; a virgem palpita; como o saí, fascinado pela
serpente, vai declinando o lascivo talhe, que se debruça enfim sobre
o peito do guerreiro.

Já o estrangeiro a preme ao seio; e o lábio ávido busca
o lábio que o espera, para celebrar nesse ádito d’alma, o himeneu
do amor.

No recanto escuro o velho Pajé, imerso em funda contemplação
e alheio às cousas deste mundo, soltou um gemido doloroso Pressentira
o coração o que não viram os olhos? Ou foi algum funesto
presságio para a raça de seus filhos, que assim ecoou n’alma
de Araquém?

Ninguém o soube.

O cristão repetiu do seio a virgem indiana. Ele não deixará
o rasto da desgraça na cabana hospedeira. Cerra os olhos para não
ver; e enche sua alma com o nome e a veneração de seu Deus:

– Cristo! . . . Cristo! . . .

Volta a serenidade ao seio do guerreiro branco, mas todas as vezes que seu
olhar pousa sobre a virgem tabajara, ele sente correr-lhe pelas veias uma
onda de ardente chama. Assim quando a criança imprudente revolve o
brasido de intenso fogo, saltam as faúlhas inflamadas que lhe queimam
as faces.

Fecha os olhos o cristão, mas na sombra de seu pensamento surge a
imagem da virgem, talvez mais bela. Embalde chama o sono às pálpebras
fatigadas; abrem-se, malgrado seu.

Desce-lhe do céu ao atribulado pensamento uma inspiração.

– Virgem formosa do sertão, esta é a ultima noite que teu hóspede
dorme na cabana de Araquém, onde nunca viera, para teu bem e seu. Faze
que seu sono seja alegre e feliz.

– Manda; Iracema te obedece. Que pode ela para tua alegria?

O cristão falou submisso, para que não o ouvisse o velho Pajé:

– A virgem de Tupã guarda os sonhos da jurema que são doces
e saborosos!

Um triste sorriso pungiu os lábios de Iracema:

– O estrangeiro vai viver para sempre à cintura da virgem branca;
nunca mais seus olhos verão a filha de Araquém, e ele já
quer que o sono feche suas pálpebras, e que o sonho o leve à
terra de seus irmãos!

– O sono é o descanso do guerreiro, disse Martim; e o sonho a alegria
d’alma. O estrangeiro não quer levar consigo a tristeza da terra hospedeira,
nem deixá-la no coração de Iracema!

A virgem ficou imóvel.

– Vai, e torna com o vinho de Tupã.

Quando Iracema foi de volta, já o Pajé não estava na
cabana; tirou a virgem do seio o vaso que ali trazia oculto sob a carioba
de algodão entretecida de penas. Martim lho arrebatou das mãos,
e libou as gotas do verde e amargo licor.

Agora podia viver com Iracema, e colher em seus lábios o beijo, que
ali viçava entre sorrisos, como o fruto na corola da flor. Podia amá-la,
e sugar desse amor o mel e o perfume, sem deixar veneno no seio da virgem.

O gozo era vida, pois o sentia mais forte e intenso; o mal era sonho e ilusão,
que da virgem não possuia senão a imagem.

Iracema afastara-se opressa e suspirosa.

Abriram-se os braços do guerreiro adormecido e seus lábios;
o nome da virgem ressoou docemente.

A juruti, que divaga pela floresta, ouve o terno arrulho do companheiro;
bate as asas, e voa a conchegar-se ao tépido ninho. Assim a virgem
do sertão, aninhou-se nos braços do guerreiro.

Quando veio a manhã, ainda achou Iracema ali debruçada, qual
borboleta que dormiu no seio do formoso cacto. Em seu lindo semblante acendia
o pejo vivos rubores; e como entre os arrebóis da manhã cintila
o primeiro raio do sol, em suas faces incendidas rutilava o primeiro sorriso
da esposa, aurora de fruído amor.

A jandaia fugira ao romper d’alva e para não tornar mais à
cabana.

Vendo Martim a virgem unida ao seu coração, cuidou que o sonho
continuava; cerrou os olhos para torná-los a abrir.

A pocema dos guerreiros, troando pelo vale, o arrancou ao doce engano; sentiu
que já não sonhava, mas vivia. Sua mão cruel abafou nos
lábios da virgem o beijo que ali se espanejava.

– Os beijos de Iracema são doces no sonho; o guerreiro branco encheu
deles sua alma. Na vida, os lábios da virgem de Tupã amargam
e doem como o espinho da jurema.

A filha de Araquém escondeu no coração a sua ventura.
Ficou tímida e inquieta, como a ave que pressente a borrasca no horizonte.
Afastou-se rápida, e partiu.

As águas do rio banharam o corpo casto da recente esposa.

Tupã já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras.

XVI

O alvo disco da lua surgiu no horizonte.

A luz brilhante do sol empalideceu a virgem do céu, como o amor do
guerreiro desmaia a face da esposa.

– Jaci !… Mãe nossa!. . . exclamaram os guerreiros tabajaras.

E brandindo os arcos, lançaram ao céu com a chuva das flechas,
o canto da lua nova:

"Veio no céu a mãe dos guerreiros; já volta o rosto
para ver seus filhos. Ela traz as águas, que enchem os rios e a polpa
do caju.

"Já veio a esposa do sol; já sorri às virgens da
terra, filhas suas. A doce luz acende o amor no coração dos
guerreiros e fecunda o seio da jovem mãe."

Cai a tarde.

Folgam as mulheres e os meninos na vasta ocara; os mancebos, que ainda não
ganharam nome de guerra por algum feito brilhante, discorrem no vale.

Os guerreiros seguem Irapuã ao bosque sagrado, onde os espera o Pajé
e sua filha para o mistério da jurema. Iracema já acendeu os
fogos da alegria, Araquém está imóvel e extático
no seio de uma nuvem de fumo.

Cada guerreiro que chega depõe a seus pés uma oferenda a Tupã.
Traz um a suculenta caça; outro a farinha-d’água; aquele o saboroso
piracém da traíra. O velho Pajé, para quem são
estas dádivas, as recebe com desdém.

Quando foram todos sentados em torno do grande fogo, o ministro de Tupã
ordena o silêncio com um gesto, e tres vezes clamando o nome terrível,
enche-se do deus, que o habita:

– Tupã! . . . Tupã! . . . Tupã ! . . .

De grota em grota o eco ao longe repercutiu.

Vem Iracema com a igaçaba cheia do verde licor. Araquém decreta
os sonhos a cada guerreiro, e distribui o vinho da jurema, que transporta
ao céu o valente tabajara.

Este, grande caçador, sonha que os veados e as pacas correm de encontro
às suas flechas para se traspassarem nelas; fatigado por fim de ferir,
cava na terra o bucã , e assa tamanha quantidade de caça, que
mil guerreiros em um ano não acabariam.

Outro, fogoso em amores, sonha que as mais belas virgens tabajaras deixam
a cabana de seus pais e o seguem cativas de seu querer. Nunca a rede de chefe
algum embalou mais voluptuosas carícias, do que ele frui naquele êxtase.

O herói sonha tremendas latas e horríveis combates, de que
sai vencedor, cheio de glória e fama. O velho renasce na prole numerosa,
e como o seco tronco donde rebenta nova e robusta sebe, ainda cobre-se de
flores.

Todos sentem a felicidade tão viva e continua, que no espaço
da noite cuidam viver muitas luas. As bocas murmuram; o gesto fala; e o Pajé,
que tudo escuta e vê, colhe o segredo no intimo d’alma.

Iracema, depois que ofereceu aos chefes o licor de Tupã, saiu do bosque.
Não permitia o rito que ela assistisse ao sono dos guerreiros e ouvisse
falar os sonhos.

Foi dali direito à cabana, onde a esperava Martim:

– Toma tuas armas, guerreiro branco. É tempo de partir.

– Leva-me aonde está Poti, meu irmão.

A virgem caminhou para O vale; o cristão a seguiu. Chegaram à
falda do rochedo, que ia morrer à beira do tanque, em um maciço
de verdura.

– Chama teu irmão!

Soltou Martim o grito da gaivota. A pedra que fechava a entrada da gruta
caiu; e o vulto do guerreiro Poti apareceu na sombra.

Os dois irmãos encostaram a fronte na fronte e o peito no peito, para
exprimir que não tinham ambos mais que uma cabeça e um coração.

– Poti está contente porque vê seu irmão, que o mau espírito
da floresta arrebatou de seus olhos.

– Feliz é o guerreiro que tem ao flanco um amigo como o bravo Poti;
todos os guerreiros o invejarão.

Iracema suspirou, pensando que a afeição do pitiguara bastava
à felicidade do estrangeiro.

– Os guerreiros tabajaras dormem. A filha de Araquém vái guiar
os estrangeiros.

Seguiu a virgem adiante; os dois guerreiros após. Quando tinham andado
o espaço que transpõe a garça de um vôo, o chefe
pitiguara tornou-se inquieto e murmurou ao ouvido do cristão:

– Manda à filha do Pajé que volte à cabana de seu pai.
Ela demora a marcha dos guerreiros.

Martim estremeceu; mas a voz da prudência e da amizade penetrou em
seu coração. Avançou para Iracema, e tirou do seio a
voz mais terna para acalentar a saudade da virgem:

– Quanto mais afunda a raiz da planta na terra, mais custa arrancá-la.
Cada passo de Iracema no caminho da partida é uma raiz que lança
no coração de seu hóspede.

– Iracema quer te acompanhar até onde acabam os campos dos tabajaras,
para voltar com o sossego em seu coração.

Martim não respondeu. Continuaram a caminhar, e com eles caminhava
a noite; as estrelas desmaiaram, e a frescura da alvorada alegrou a floresta.
As roupas da manhã, alvas como o algodão, apareceram no céu.

Poti olhou a mata e parou. Martim compreendeu e disse a Iracema:

– Teu hóspede já não pisa os campos dos tabajaras. É
o instante de separar-te dele.

XVII

Iracema pousou a mão no peito do guerreiro branco:

– A filha dos tabajaras já deixou os campos de seus pais; agora pode
falar.

– Que segredo guardas em teu seio, virgem formosa do sertão?

– Iracema não pode mais separar-se do estrangeiro.

– Assim é preciso, filha de Araquém. Torna à cabana
de teu velho pai, que te espera.

– Araquém já não tem filha.

Martim tornou com gesto rudo e severo:

– Um guerreiro de minha raça jamais deixou a cabana do hóspede,
viúva de sua alegria. Araquém abraçará sua filha,
para não amaldiçoar o estrangeiro ingrato.

Curvou a virgem a fronte; velando-se com as longas tranças negras
que se espargiam pelo colo, cruzando ao grêmio os lindos braços,
recolheu em seu pudor. Assim o róseo cacto, que já desabrochou
em linda flor, cerra em botão o seio perfumado.

– Iracema te acompanhará, guerreiro branco, porque ela já é
tua esposa.

Martim estremeceu.

– Os maus espíritos da noite turbaram o espírito de Iracema.

– O guerreiro branco sonhava, quando Tupã abandonou sua virgem. A
filha do Pajé traiu o segredo da jurema.

O cristão escondeu as faces à luz.

– Deus!… clamou seu lábio trêmulo.

Permaneceram ambos mudos e quedos.

Afinal disse Poti:

– Os guerreiros tabajaras despertam.

O coração da virgem, como o do estrangeiro, ficou surdo à
voz da prudência. O sol levantou-se no horizonte; e o seu olhar majestoso
desceu dos montes à floresta. Poti, de pé, mudo e quedo, como
um tronco decepado, esperou que seu irmão quisesse partir.

Foi Iracema quem primeiro falou:

– Vem: enquanto não pisares as praias dos pitiguaras, tua vida corre
perigo.

Martim seguiu silencioso a virgem, que fugia entre as árvores como
a selvagem cutia. A tristeza lhe confrangia o coração; mas a
onda de perfumes que deixava na brisa a passagem da formosa tabajara, açulava
o amor no seio do guerreiro. Seu passo era tardo, o peito lhe ofegava.

Poti cismava. Em sua cabeça de mancebo morava o espírito de
um abaeté . O chefe pitiguara pensava que o amor é como o cauim,
o qual bebido com moderação, fortalece o guerreiro, e tomado
em excesso, abate a coragem do herói. Ele sabia quanto era veloz o
pé do tabajara; e esperava o momento de morrer defendendo o amigo.

Quando as sombras da tarde entristeciam o dia, o cristão parou no
meio da mata Poti acendeu o fogo da hospitalidade A virgem desdobrou a alva
rede de algodão franjada de penas de tucano, e suspendeu-a aos ramos
da árvore:

– Esposo de Iracema, tua rede te espera.

A filha de Araquém foi sentar-se longe, na raiz de uma árvore,
como a cerva solitária, que o ingrato companheiro afugentou do aprisco.
O guerreiro pitiguara desapareceu na espessura da folhagem.

Martim ficou modo e triste, semelhante ao tronco d’árvore a que o
vento arrancou o lindo cipó que o entrelaçada. A brisa perpassando
levou um murmúrio:

– Iracema!

Era o balido do companheiro; à cerva, arrufando-se, ganhou o doce
aprisco.

A floresta destilava suave fragrância e exalava arpejos harmoniosos;
os suspiros do coração se difundiram nos múrmuros do
deserto. Foi a festa do amor e o canto do himeneu.

Já a luz da manhã coou na selva densa. A voz grave e sonora
de Poti repercutiu no sussurro da mata:

– O povo tabajara caminha na floresta!

Iracema arrancou-se dos braços que a cingiam e do lábio que
a tinha cativa; saltando da rede como a rápida zabelê, travou
das armas do esposo e levou-o através da mata.

De espaço a espaço, o prudente Poti escutava as entranhas da
terra; sua cabeça movia-se pesada de um a outro lado, como a nuvem
que se balança no cocuruto do rochedo, aos vários lufos da próxima
borrasca.

– O que escuta o ouvido do guerreiro Poti?

– Escuta o passo veloz do povo tabajara. Ele vem como tapir rompendo a floresta.

– O guerreiro pitiguara é a ema que voa sobre a terra; nós
o seguiremos como suas asas: disse Iracema.

O chefe sacudiu de novo a fronte:

– Enquanto o guerreiro do mar dormia, o inimigo correu. Os que primeiro partiram
já avançam além com as pontas do arco.

A vergonha mordeu o coração de Martim:

– Fuja o chefe Poti e salve Iracema. Só deve morrer o guerreiro mau,
que não escutou a voz de seu irmão e o pedido de sua esposa-Martim
arrepiou o passo:

– Não foi a alma do guerreiro do mar, que falou Poti e seu irmão
só têm uma vida.

O lábio de Iracema não falou; sorriu.

XVIII

Treme a selva com o estrupido da carreira do povo tabajara. O grande Irapuã,
primeiro, assoma entre as árvores. Seu olhar rúbido viu o guerreiro
branco entre nuvens de sangue; o ronco bravio do tigre rompe de seu peito
cavernoso.

O chefe tabajara e seu povo iam precipitar-se sobre os fugitivos, como a
vaga encapelada que arrebenta no Mocoripe.

Eis que late o cão selvagem.

O amigo de Martim solta o grito da alegria:

– O cão de Poti guia os guerreiros de sua taba em socorro teu.

O rouco búzio dos pitiguaras estruge pela floresta. O grande Jacaúna,
senhor das praias do mar, chegava do rio das garças com seus melhores
guerreiros.

Os pitiguaras recebem o primeiro ímpeto do inimigo nas pontas irriçadas
de suas flechas, que eles despedem do arco aos molhos, como o cuandu os espinhos
do seu corpo. Logo após soada pocema, estreita-se o espaço,
e a luta se trava face a face.

Jacaúna atacou Irapuã. Prossegue o horrível combate
que bastara a dez bravos, e não esgotou ainda a força dos grandes
chefes. Quando os dois tacapes se encontram, a batalha toda estremece como
um só guerreiro, até às entranhas.

O irmão de Iracema veio direito ao estrangeiro, que arrancara a filha
de Araquém à cabana hospitaleira; o faro da vingança
o guia; a vista da irmã assanha a raiva em seu peito. O guerreiro Caubi
assalta com furor o inimigo.

Iracema, unida ao flanco de seu guerreiro e esposo, viu de longe Caubi e
falou assim:

– Senhor de Iracema, ouve o rogo de tua escrava; não derrama o sangue
do filho de Araquém. Se o guerreiro Caubi tem de morrer, morra ele
por esta mão, não pela tua.

Martim pôs no rosto da virgem olhos de horror:

– Iracema matará seu irmão?

– Iracema antes quer que o sangue de Caubi tinja sua mão que a tua;
porque os olhos de Iracema vêem a ti, e a ela não.

Travam a luta os guerreiros. Caubi combate com furor; o cristão defende-se
apenas; mas a seta embebida no arco da esposa guarda a vida do guerreiro contra
os botes do inimigo.

Poti já prostrou o velho Andira e quantos guerreiros topou na luta
seu válido tacape. Martim lhe abandona o filho de Araquém e
corre sobre Irapuã.

– Jacanna é um grande chefe, seu colar de guerra dá três
voltas ao peito. O tabajara pertence ao guerreiro branco.

– A vingança é a honra do guerreiro, e Jacaúna preza
o amigo de Poti.

O grande chefe pitiguara levou além o formidável tacape. Renhiu-se
o combate entre Irapuã e Martim. A espada do cristão

batendo na clava do selvagem, fez-se em pedaços. O chefe tabajara
avançou contra o peito inerte do adversário.

Iracema silvou como a boicininga; e arrojou-se contra a fúria do guerreiro
tabajara. A arma rígida tremeu na destra possante do chefe e o braço
caiu-lhe desfalecido.

Soava a pocema da vitória. Os guerreiros pitiguaras conduzidos por
Jacaúna e Poti varriam a floresta. Fugindo, os tabajaras arrebataram
seu chefe ao ódio da filha de Araquém que o podia abater, como
a jandaia abate o prócero coqueiro roendo-lhe. o cerne.

Os olhos de Iracema, estendidos pela floresta, viram o chão juncado
de cadáveres de seus irmãos; e longe o bando dos guerreiros
tabajaras que fugia em nuvem negra de pó. Aquele sangue que enrubescia
a terra, era o mesmo sangue brioso que lhe ardia nas faces de vergonha.

O pranto orvalhou seu lindo semblante

Martim afastou-se para não envergonhar a tristeza de Iracema.

XIX

Poti voltou de perseguir o inimigo. Seus olhos se encheram de alegria, vendo
salvo o guerreiro branco.

O cão fiel o seguia de perto, lambendo ainda nos pêlos do focinho
a marugem do sangue tabajara, de que se fartara; o senhor o acariciava satisfeito
de sua coragem e dedicação. Fora ele quem salvara Martim, trazendo
ali com tanta diligência os guerreiros de Jacaúna.

– Os maus espíritos da floresta podem separar outra vez o guerreiro
branco de seu irmão pitiguara. O cão te seguirá daqui
em diante, para que mesmo de longe Poti acuda a teu chamado.

– Mas o cão é teu companheiro e amigo fiel.

– Mais amigo e companheiro será de Poti, servindo a seu irmão
que a ele. Tu o chamarás Japi, e será o pé ligeiro com
que de longe corramos um para o outro.

Jacaúna deu o sinal da partida

Os guerreiros pitiguaras caminharam para as margens alegres do rio onde bebem
as garças; ali se erguia a grande taba dos senhores das várzeas.

O sol deitou-se e de novo se levantou no céu. Os guerreiros chegaram
aonde a serra quebrava para o sertão; já tinham passado aquela
parte da montanha, que por ser despida de arvoredo e tosquiada como a capivara,
a gente de Tupã chamava Ibiapina .

Poti levou o cristão aonde crescia um frondoso jatobá , que
afrontava as árvores do mais alto píncaro da serrania, e quando
batido pela rajada, parecia varrer o céu com a imensa copa

– Neste lugar nasceu teu irmão: disse o pitiguara.

Martim estreitou ao peito o tronco amigo:

– Jatobá, que viste nascer meu irmão Poti, o estrangeiro te
abraça

– O raio te decepe, árvore do guerreiro Poti, quando seu irmão
o abandonar.

Depois o chefe assim falou:

– Ainda Jacaúna não era um guerreiro, Jatobá, o maior
chefe, conduzia os pitiguaras à vitória. Logo que as grandes
águas correram, ele caminhou para a serra. Aqui chegando, mandou levantar
a taba, para estar perto do inimigo e vencê-lo mais vezes. A mesma lua
que o viu chegar, alumiou a rede onde Saí, sua esposa, lhe deu mais
um guerreiro de seu sangue. O luar passava por entre as folhas do jatobá;
e o sorriso pelos lábios do varão possante, que tomara seu nome
e robustez.

Iracema aproximou-se.

A rola, que marisca na areia, se afasta-se o companheiro, adeja inquieta
de ramo em ramo e arrula para que lhe responda o ausente amigo Assim a filha
das florestas errara pelas encostas, modulando o singelo canto mavioso

Martim a recebeu com a alma no semblante; e levando a esposa do lado do coração
e o amigo do lado da força, voltou ao rancho dos pitiguaras.

XX

A lua cresceu

Três sóis havia que Martim e Iracema estavam nas terras dos
pitiguaras, senhores das margens do Camocim e Acaracu Os estrangeiros tinham
sua rede na vasta cabana de Jacaúna. O valente chefe guardou para si
o prazer de hospedar o guerreiro branco.

Poti abandonou sua taba para acompanhar seu irmão de guerra na cabana
de seu irmão de sangue, e gozar dos instantes que sobejavam para a
amizade, no coração do guerreiro do mar.

A sombra já se retirou da face da terra; e Martim viu que ela não
se retirava ainda da face da esposa, desde o dia do combate.

– A tristeza mora n’alma de Iracema!

– A alegria para a esposa só vem de ti; quando teus olhos a deixam,
as lágrimas enchem os seus.

– Por que chora a filha dos tabajaras?

– Esta é a taba dos pitiguaras, inimigos de seu povo. A vista de Iracema
já conheceu o crânio de seus irmãos espetado na caiçara;
seu ouvido já escutou o canto de morte dos cativos tabajaras; a mão
já tocou as armas tintas do sangue de seus pais.

A esposa pousou as duas mãos nos ombros do guerreiro, e reclinou ao
peito dele:

– Iracema tudo sofre por seu guerreiro e senhor. A ata é doce e saborosa;
mas quando a machucam, azeda. Tua esposa quer que seu amor encha teu coração
das doçuras do mel.

– Volte o sossego ao seio da filha dos tabajaras; ela vai deixar a taba dos
inimigos de seu povo.

O cristão caminhou para a cabana de Jacaúna. O grande chefe
alegrou-se vendo chegar seu hóspede; mas a alegria fugiu logo de sua
fronte guerreira. Martim dissera:

– O guerreiro branco parte de tua cabana, grande chefe.

– Alguma coisa te faltou na taba de Jacaúna?

– Nada faltou a teu hóspede. Ele era feliz aqui; mas a voz do coração
o chama a outros sítios.

– Então parte e leva o que é preciso para a viagem. Tupã
te fortaleça, e traga outra vez à cabana de Jacaúna,
para que ele festeje tua boa-vinda.

Poti chegou; sabendo que o guerreiro do mar ia partir, disse:

– Teu irmão te acompanha.

– Os guerreiros de Poti precisam de seu chefe.

– Se tu não queres que eles vão com Poti, Jacaúna os
conduzirá à vitória.

– A cabana de Poti ficará deserta e triste.-Deserto e triste será
o coração de teu irmão longe de ti. O guerreiro do mar
deixa as margens do rio das garças, e caminha para as terras onde o
sol se deita. A esposa e o amigo seguem sua marcha.

Passou além da fértil montanha, onde a abundância dos
frutos criava grande quantidade de mosca, de que lhe veio o nome de Meruoca
.

Atravessam os campos que banha o rio das garças, e avistam longe no
horizonte uma alta serrania. Expira o dia; nuvem negra voa das bandas do mar:
são os urubus que pastaram nas praias a carniça, e com a noite
voltam ao ninho.

Os viajantes dormem aí, em Uruburetama. Com o segundo sol chegaram
às margens do rio, que nasce na quebrada da serra e desce a planície
enroscando-se como uma cobra. Suas voltas contínuas enganam a cada
passo o peregrino, que vai seguindo o tortuoso curso; por isso foi chamado
Mundaú.

Perlongando as frescas margens, viu Martim no seguinte sol os verdes mares
e alvas praias, onde as ondas murmurosas soluçam às vezes e
outras raivam de fúria, rebentando em frocos de espuma.

Os olhos do guerreiro branco se dilataram pela vasta imensidade; seu peito
suspirou. Esse mar beijava também as brancas areias do Potengi, seu
berço natal, onde ele vira a luz americana.

Arrojou-se nas ondas e pensou banhar seu corpo nas águas da pátria,
como banhara sua alma nas saudades dela.

Iracema sentiu que lhe chorava o coração; mas não tardou
que o sorriso de seu guerreiro o acalentasse.

Entretanto Poti do alto da rocha fisgava o saboroso camoropim que brincava
na pequena baía do Mundaú; e preparava o moquém para
a refeição.

XXI

Já descia o sol das alturas do céu.

Chegam os viajantes à foz do rio onde se criam em grande abundância
as saborosas traíras, suas praias são povoadas pela tribo dos
pescadores, da grande nação dos pitiguaras.

Eles receberam os estrangeiros com a hospitalidade generosa, que era uma
lei de sua religião; e Poti com o respeito que merecia tão grande
guerreiro, irmão de Jacaúna, maior chefe da forte gente pitiguara.

Para repousar os viajantes, e acompanhá-los na despedida, o chefe
da tribo tomou Poti, Martim e Iracema na jangada, e abrindo a vela à
brisa, levou-os até muito longe na costa.

Os pescadores em suas jangadas seguiam o chefe e atroavam os ar com o canto
de saudade e os múrmuros do uraçá, que imita os soluços
do vento

Além da barra da Piroquara ‘ estava mais entrada para as serras, a
tribo dos caçadores. Eles ocupavam as margens do Soipé, cobertas
de matas, onde os veados, as gordas pacas e os macios jacus abundavam Assim
os habitadores dessas margens lhes deram o nome de país da caça.

O chefe dos caçadores, Jaguaraçu, tinha sua cabana à
beira do lago, que forma o rio perto do mar Aí acharam os viajantes
o mesmo agasalho que haviam recebido dos pescadores

Depois que partiram do Soipé, os viajantes atravessaram o Rio Taíba,
em cujas margens vagavam bandos de porcos-do-mato; mas longe corria o Cauípe,
onde se fabricava excelente vinho de caju.

No outro sol viram um lindo rio que surdia no mar cavando uma bacia na rocha
viva.

Além assomava no horizonte um alto morro de areia que tinha a alvura
da espuma do mar. O cabo sobranceiro parece a cabeça calva do condor,
esperando ali a borrasca, que vem dos confins do oceano.

– Poti conhece o grande morro das areias? perguntou o cristão

– Poti conhece toda a terra que têm os pitiguaras, desde as margens
do grande rio, que forma um braço do mar, até à margem
do rio onde habita o jaguar. Ele já esteve no alto do Mocoripe, e de
lá viu correr no mar as grandes igaras dos guerreiros brancos, teus
inimigos, que estão no Mearim.

– Por que chamas tu Mocoripe, ao grande morro das areias?

– O pescador da praia, que vai na jangada, lá onde voa a ati, fica
triste, longe da terra e de sua cabana, em que dormem os filhos de seu sangue.
Quando ele torna e seus olhos primeiro avistam o morro das areias, o prazer
volta a seu coração. Por isso ele diz que o morro das areias
dá alegria.

– O pescador diz bem; porque teu irmão ficou contente como ele, vendo
o monte das areias.

Martim subiu com Poti ao cimo do Mocoripe. Iracema seguindo com os olhos
o esposo, divagava como a jaçanã em torno do lindo seio, que
ali fez a terra para receber o mar.

De passagem ela colhia os doces cajus, que aplacam a sede aos guerreiros,
e apanhava conchas mimosas para ornar seu colo

Os viajantes estiveram em Mocoripe três sóis. Depois Martim
levou seus passos além. A esposa e o amigo tornaram à embocadura
do rio cujas margens eram alagadas e cobertas de mangue. O mar entrando por
ele, formava uma bacia cheia de água cristalina, e cavada na pedra
como um camucim.

O guerreiro cristão percorrendo essa paragem, começou de cismar.
Até ali ele caminhava sem destino, movendo seus passos ao acaso; não
tinha outra intenção mais que afastar-se das tabas dos pitiguaras
para arrancar a tristeza do coração de Iracema. O cristão
sabia por experiência que a viagem acalenta a saudade, porque a alma
dorme enquanto o corpo caminha. Agora sentado na praia, pensava.

Veio Poti.

– O guerreiro branco pensa; o seio do irmão está aberto para
receber seu pensamento.

– Teu irmão pensa que este lugar é melhor do que as margens
do Jaguaribe para a taba dos guerreiros de sua raça. Nestas águas
as grandes igaras que vêm de longes terras, se esconderiam do vento
e do mar; daqui elas iriam ao Mearim destruir os brancos tapuias , aliados
dos tabajaras, inimigos de tua nação.

O chefe pitiguara meditou e respondeu:

– Vai buscar teus guerreiros. Poti plantará sua taba junto da mairi
de seu irmão.

Aproximava-se Iracema. O cristão com um gesto ordenou silêncio
ao chefe pitiguara.

– A voz do esposo se cala, e seus olhos se abaixam quando chega Iracema.
Queres tu que ela se afaste?

– Quer teu esposo que chegues mais perto, para que sua voz e seus olhos penetrem
mais dentro de tua alma.

A formosa selvagem desfez-se em risos, como se desfaz a flor do fruto que
desponta; e foi debruçar-se na espádua do guerreiro.

– Iracema te escuta.

– Estes campos são alegres, e ainda mais serão quando Iracema
neles habitar. Que diz teu coracão?

– O coração da esposa está sempre alegre junto de seu
guerreiro e senhor.

Seguindo pela margem do rio, o cristão escolheu o lugar para levantar
a cabana. Poti cortou esteios dos troncos da carnaúba; a filha de Araquém
ligava os leques da palmeira para vestir o teto c as paredes; Martim cavou
a terra e fabricou a porta das fasquias da taquara.

Quando veio a noite, os dous esposos armaram a rede em sua nova cabana; e
o amigo no copiar que olhava para o nascente.

XXII

Poti saudou o amigo e falou assim:

– Antes que o pai de Jacaúna e Poti, o valente guerreiro Jatobá,
mandasse sobre todos os guerreiros pitiguaras o grande tacape da nação
estava na destra de Batuireté, o maior chefe, pai de Jatobá
Foi ele que veio pelas praias do mar até o rio do jaguar, e expulsou
os tabajaras para dentro das terras, marcando a cada tribo seu lagar; depois
entrou pelo sertão até à serra que tomou seu nome.

Quando suas estrelas eram muitas , e tantas que seu camucim já não
cabia as castanhas que marcavam o número; o corpo vergou para a terra,
o braço endureceu como o galho do ubiratã que não verga;
a luz dos olhos escureceu.

"Chamou então o guerreiro Jatobá e disse: -Filho, toma
o tacape da nação pitiguara. Tupã não quer que
Batuireté o leve mais à guerra, pois tirou a força de
seu corpo, o movimento do seu braço e a luz de seus olhos. Mas Tupã
foi bom para ele, pois lhe deu um filho como o guerreiro Jatobá.

"Jatobá empenhou o tacape dos pitiguaras. Batuireté tomou
o bordão de sua velhice e caminhou. Foi atravessando os vastos sertões,
até os campos viçosos onde correm as águas que vêm
das bandas da noite. Quando o velho guerreiro arrastava o passo pelas margens,
e a sombra de seus olhos não lhe deixava que visse mais os frutos nas
árvores ou os pássaros no ar, ele dizia em sua tristeza:-Ah!
meus tempos passados!

"A gente que o ouvia chorava a ruína do grande chefe; e desde
então passando por aqueles lugares, repetia suas palavras; donde veio
chamar-se o rio e os campos, Quixeramobim .

"Batuireté veio pelo caminho das garças até aquela
serra que tu vês longe, e onde primeiro habitou. Lá no píncaro,
o velho guerreiro fez seu ninho alto como o gavião, para encher o resto
de seus dias, conversando com Tupã. Seu filho já dorme embaixo
da terra, e ele ainda na outra lua cismava na porta de sua cabana, esperando
a noite que traz o grande sono. Todos os chefes pitiguaras, quando acordam
à voz da guerra, vão pedir ao velho que lhes ensine a vencer,
porque nenhum outro guerreiro jamais soube como ele combater. Assim as tribos
não o chamam mais pelo nome, senão o grande sabedor da guerra,
Maranguab.

"O chefe Poti vai à serra ver seu grande avô; mas antes
que o dia morra, ele estará de volta na cabana de seu irmão.
Tens tu outra vontade ?"

– O guerreiro branco te acompanha para abraçar o grande chefe dos
pitiguaras, avô de seu irmão, e dizer ao ancião que ele
renasceu no filho de seu filho.

Martim chamou Iracema; e partiram ambos guiados pelo pitiguara para a serra
do Maranguab, que se levantava no horizonte. Foram seguindo o curso do rio
até onde nele entrava o Ribeiro de Pirapora.

A cabana do velho guerreiro estava junto das formosas cascatas, onde salta
o peixe no meio dos borbotões de espuma. As águas ali São
frescas e macias, como a brisa do mar, que passa entre as palmas dos coqueiros,
nas horas da calma.

Batuireté estava sentado sobre uma das lapas da cascata; o sol ardente
caía sobre sua cabeça, nua de cabelos e cheia de rugas como
o jenipapo Assim dorme o jaburu na borda do lago.

– Poti é chegado à cabana do grande Maranguab, pai de Jatobá,
e trouxe seu irmão branco para ver o maior guerreiro das nações.

O velho soabriu as pesadas pálpebras, e passou do neto ao estrangeiro
um olhar baço. Depois o peito arquejou e os lábios murmuraram:

– Tupã quis que estes olhos vissem antes de se apagarem, o gavião
branco junto da narceja.

O abaetê derrubou a fronte aos peitos, e não falou mais, nem
mais se moveu.

Poti e Martim julgaram que ele dormia e se afastaram com respeito para não
perturbar o repouso de quem tanto obrara na longa vida. Iracema, que se banhava
na próxima cachoeira, veio-lhes ao encontro, trazendo na folha da taioba
favos de mel puríssimo.

Discorreram os amigos pelas floridas encostas até que as sombras da
montanha se estenderam pelo vale. Tornaram então ao lugar onde tinham
deixado o Maranguab.

O velho ainda lá estava na mesma atitude, com a cabeça derrubada
ao peito e os joelhos encostados à fronte. As formigas subiam-lhe pelo
corpo; e os tuins adejavam em torno e pousavam-lhe na calva.

Poti pôs a mão no crânio do ancião e conheceu que
era finado; o guerreiro morrera de velhice. Então o chefe pitiguara
entoou o canto da morte; e foi à cabana buscar o camucim, que transbordava
com as castanhas do caju. Martim contou cinco vezes cinco mãos

Entanto Iracema colhia nas florestas a andiroba, para ungir o corpo do velho
que a mão piedosa do neto encerrou no camucim. O vaso fúnebre
ficou suspenso ao teto da cabana.

Depois que plantou urtiga à porta, para defender contra os animais
a oca abandonada, Poti despediu-se triste daqueles sítios, e tornou
com seus companheiros à borda do mar.

A serra onde estava outrora a cabana tomou o nome de Maranguape; assim chamada
porque ai repousa o sabedor da guerra.

XXIII

Quatro luas tinham alumiado o céu depois que Iracema deixara os campos
do Ipu; e três depois que ela habitava nas praias do mar a cabana de
seu esposo.

A alegria morava em sua alma. A filha dos sertões era feliz, como
a andorinha, que abandona o ninho de seus pais, e peregrina para fabricar
novo ninho no país onde começa a estação das flores.
Também Iracema achara ali nas praias do mar um ninho do amor, nova
pátria para seu coração.

Como o colibri borboleteando entre as flores da acácia, ela discorria
as amenas campinas. A luz da manhã já a encontrava suspensa
ao ombro do esposo e sorrindo, como a enrediça que entrelaça
o tronco robusto, e todas as manhãs o coroa de nova grinalda.

Martim partia para a caça com Poti. A virgem separava-se dele então,
para sentir ainda mais ardente o desejo de vê-lo.

Perto havia uma formosa lagoa no meio de verde campina. Para lá volvia
a selvagem o ligeiro passo. Era a hora do banho da manhã; atirava-se
à água e nadava com as garças brancas e as vermelhas
jaçanãs.

Os guerreiros pitiguaras, que apareciam por aquelas paragens, chamavam essa
lagoa Porangaba, ou lagoa da beleza, porque nela se banhava Iracema, a mais
bela filha da raça de Tupã.

E desde esse tempo as mães vinham de longe mergulhar suas filhas nas
águas da Porangaba, que tinha a virtude de dar formosura às
virgens e fazê-las amadas pelos guerreiros.

Depois do banho, Iracema divagava até as faldas da serra do Maranguab,
onde nascia o ribeiro das marrecas, o Jereraú. Ali cresciam na frescura
e na sombra as frutas mais saborosas de todo o país; delas fazia a
virgem copiosa provisão, e esperava embalando-se nas ramas do maracujá,
que Martim tornasse da caça.

Outras vezes não era a Jereraú que a levava sua vontade, mas
do oposto lado, a Sapiranga , cujas águas inflamavam os olhos, como
diziam os pajés. Cerca daí havia um bosque frondoso de muritis,
que formavam no meio do tabuleiro uma grande ilha de formosas palmeiras.

Iracema gostava do Muritiapuá, onde o vento suspirava docemente; ali
espolpava ela o vermelho coco, para fabricar a bebida refrigerante, adoçada
com o mel da abelha, e enchia dela a igaçaba, destinada a estancar
a sede dos guerreiros durante a maior calma do dia.

Uma manhã Poti guiou Martim à caça. Caminharam para
uma serra, que se levanta ao lado da outra do Maranguab, sua irmã.
O alto cabeço se curva à semelhança do bico adunco da
arara; pelo que os guerreiros a chamaram Aratanha. Eles subiram pela encosta
da Guaiúba por onde as águas descem para o vale, e foram até
o córrego habitado pelas pacas.

Só havia sol no bico da arara, quando os caçadores desceram
de Pacatuba ao tabuleiro. De longe viram Iracema, que viera esperá-los
à margem de sua lagoa da Porangaba. Caminhava para eles com o passo
altivo da garça que passeia à beira d’água: por cima
da carioba trazia uma cintura das flores da maniva, que era o símbolo
da fecundidade. Colar das mesmas cingia-lhe o colo e ornava os rijos seios
palpitantes.

Travou da mão do esposo, e a impôs no regaço:

– Teu sangue já vive no seio de Iracema. Ela será mãe
de teu filho.

– Filho, dizes tu? exclamou o cristão em júbilo.

Ajoelhou ali e cingindo-a com os braços, beijou o seio fecundo da
esposa.

Quando ele ergueu-se, Poti falou:

– A felicidade do mancebo é a esposa e o amigo; a primeira dá
alegria, o segundo dá força. O guerreiro sem a esposa é
como a árvore sem folhas nem flores: nunca ela verá o fruto
O guerreiro sem amigo é como a árvore solitária que o
vento açouta no meio do campo: o fruto dela nunca amadurece. A felicidade
do varão é a prole, que nasce dele e faz seu orgulho; cada guerreiro
que sai de suas veias é mais um galho que leva seu nome às nuvens,
como a grimpa do cedro. Amado de Tupã é o guerreiro que tem
uma esposa, um amigo e muitos filhos; ele nada mais deseja senão a
morte gloriosa.

Martim uniu o peito ao peito de Poti:

– O coração do esposo e do amigo falou por tua boca. O guerreiro
branco é feliz, chefe dos pitiguaras, senhores das praias do mar; a
felicidade nasceu para ele na terra das palmeiras, onde recende a baunilha;
e foi gerada no sangue de tua raça, que tem no rosto a cor do sol.
O guerreiro branco não quer mais outra pátria, senão
a pátria de seu filho e de seu coração.

Ao romper d’alva, Poti partiu para colher as sementes de crajuru que dão
a bela tinta vermelha, e a casca do angico de onde se extrai a cor negra mais
lustrosa. De caminho sua flecha certeira abateu o pato selvagem que plainava
nos ares. O guerreiro arrancou das asas as longas penas, e subindo ao Mocoripe,
rugiu a inúbia. A refega que vinha do mar levou longe, bem longe, o
rouco som. O búzio dos pescadores do Trairi, e a trombeta dos caçadores
do Soipé, responderam.

Martim banhou-se n’água do rio, e passeou na praia para secar o corpo
ao vento e ao sol. Ao seu lado ia Iracema e apanhava o âmbar amarelo,
que o mar arrojava. Todas as noites a esposa perfumava seu corpo e a alva
rede, para que o amor do guerreiro se deleitasse nela.

Voltou Poti.

XXIV

Foi costume da raça, filha de Tupã, que o guerreiro trouxesse
no corpo as cores de sua nação.

Traçavam em princípio negras riscas sobre o corpo, à
semelhança do pêlo do quati de onde procedeu o nome dessa arte
da pintura guerreira. Depois variaram as cores, e muitos guerreiros costumaram
escrever os emblemas de seus feitos.

O estrangeiro tendo adotado a pátria da esposa e do amigo, devia passar
por aquela cerimônia, para tornar-se um guerreiro vermelho, filho de
Tupã. Nessa intenção fora Poti se prover dos objetos
necessários.

Iracema preparou as tintas. O chefe, embebendo as ramas da pluma, traçou
pelo corpo os riscos vermelhos e pretos, que ornavam a grande nação
pitiguara. Depois pintou na fronte uma flecha e disse:

– Assim como a seta traspassa o duro tronco, assim o olhar do guerreiro penetra
n’alma dos povos.

No braço pintou um gavião:

– Assim como o anajê cai das nuvens, assim cai o braço do guerreiro
sobre o inimigo.

No pé esquerdo pintou a raiz do coqueiro:

– Assim como a pequena raiz agarra na terra o alto coqueiro, o pé
firme do guerreiro sustenta seu corpo robusto.

No pé direito pintou uma asa:

– Assim como a asa do majoí rompe os ares, o pé veloz do guerreiro
não tem igual na corrida.

Iracema tomou a rama da pena e pintou uma abelha sobre folha de árvore;
sua voz ressoou entre sorrisos:

– Assim como a abelha fabrica o mel no coração negro do jacarandá,
a doçura está no peito do mais valente guerreiro.

Martim abriu os braços e os lábios para receber corpo e alma
da esposa.

– Meu irmão é um grande guerreiro da nação pitiguara;
ele precisa de um nome na língua de sua nação.

– O nome de teu irmão está em seu corpo, onde o pôs tua
mão.

– Coatiabo! exclamou Iracema.

– Tu disseste; eu sou o guerreiro pintado; o guerreiro da esposa e do amigo.

Poti deu a seu irmão o arco e o tacape, que são as armas nobres
do guerreiro. Iracema havia tecido para ele o cocar e a araçóia,
matos dos chefes ilustres.

A filha de Araquém foi buscar à cabana as iguarias do festim
e os vinhos de jenipapo e mandioca. Os guerreiros beberam copiosamente e trancaram
as danças alegres. Durante que volviam em torno dos fogos da alegria,
ressoavam as canções.

Poti cantava:

– Como a cobra que tem duas cabeças em um só corpo, assim é
a amizade do Coatiabo e Poti.

Acudiu Iracema:

– Como a ostra que não deixa o rochedo, ainda depois de morta, assim
é Iracema junto a seu esposo.

Os guerreiros disseram:

– Como o jatobá na floresta, assim é o guerreiro Coatiabo entre
o irmão e a esposa: seus ramos abraçam os ramos do ubiratã,
e sua sombra protege a relva humilde.

Os fogos da alegria arderam ate que veio a manhã; e com eles durou
o festim dos guerreiros.

XXV

A alegria ainda morou na cabana, todo o tempo que as espigas de milho levaram
a amarelecer.

Uma alvorada, caminhava o cristão pela borda do mar. Sua alma estava
cansada.

O colibri sacia-se de mel e perfume; depois adormece em seu branco ninho
de cotão, até que volta no outro ano a lua das flores. Como
o colibri, a alma do guerreiro também satura-se de felicidade, e carece
de sono e repouso.

A caça e as excursões pelas montanhas em companhia do amigo,
as carícias da terna esposa que o esperavam na volta, e o doce carbeto
no copiar da cabana, já não acordavam nele as emoções
de outrora. Seu coração ressonava.

Quando Iracema brincava pela praia, os olhos do guerreiro retiravam-se dela
para se estenderem pela imensidade dos mares.

Viram umas asas brancas, que adejavam pelos campos azuis. Conheceu o cristão
que era uma grande igara de muitas velas, como construíam seus irmãos;
e a saudade da pátria apertou-lhe no seio.

Alto ia o sol; e o guerreiro na praia seguia com os olhos as asas brancas
que fugiam. Debalde a esposa o chamou à cabana, debalde ofereceu a
seus olhos, as graças dela e os frutos melhores do campo. Não
se moveu o guerreiro, senão quando a vela sumiu-se no horizonte.

Poti voltou da serra, onde pela primeira vez fora só. Tinha deixado
a serenidade na fronte de seu irmão e achava ali a tristeza. Martim
saiu-lhe ao encontro:

– A igara grande do branco tapuia passou no mar. Os olhos de teu irmão
a viram, que voava para as margens do Mearim, aliados dos tupinambás,
inimigo de tua e minha raça.

– Poti é senhor de mil arcos; se é teu desejo ele te acompanhará
com seus guerreiros às margens do Mearim para vencer o tapuitinga e
seu amigo, o pérfido tupinambá.

– Quando for tempo, teu irmão te dirá.

Os guerreiros entraram na cabana,. onde estava Iracema. A maviosa canção
nesse dia tinha emudecido nos lábios da esposa. Ela tecia suspirando
a franja da rede materna, mais larga e espessa que a rede do himeneu.

Poti, que a viu tão ocupada, falou:

– Quando a sabiá canta, é o tempo do amor; quando emudece,
fabrica o ninho para sua prole: é o tempo do trabalho.

– Meu irmão fala como a rã quando anuncia a chuva; mas a sabiá
que faz seu ninho, não sabe se dormirá nele.

A voz de Iracema gemia. Seu olhar buscou o esposo. Martim pensava: as palavras
de Iracema passaram por ele, como a brisa pela face lisa da rocha, sem eco
nem rumores.

O sol brilhava sempre sobre as praias do mar, e as areias refletiam os raios
ardentes; mas nem a luz que vinha do céu, nem a luz que refletia da
terra, espancaram a sombra n’alma do cristão. Cada vez o crepúsculo
era maior em sua fronte.

Chegou das margens do rio das garças um guerreiro pitiguara, mandado
por Jacaúna a seu irmão Poti. Ele veio seguindo o rasto dos
viajantes até o Trairi, onde os pescadores o guiaram à cabana.

Poti estava só no copiar; ergueu-se e abaixou a fronte para escutar
com respeito e gravidade as palavras que lhe mandava seu irmão pela
boca do mensageiro:

– O tapuitinga, que estava no Mearim, veio pelas matas até o princípio
da Ibiapaba, onde fez aliança com Irapuã, para combater a nação
pitiguara. Eles vão descer da serra às margens do rio em que
bebem as garças, e onde tu levantaste a taba de teus guerreiros. Jacaúna
te chama para defender os campos de nossos pais: teu povo carece de seu maior
guerreiro.

– Volta às margens do Acaracu, e teu pé não descanse
enquanto não pisar o chão da cabana de Jacaúna. Quando
aí estiveres, dize ao grande chefe: "Teu irmão é
chegado à taba de seus guerreiros". E tu não mentirás.

O mensageiro partiu.

Poti vestiu suas armas, e caminhou para a várzea, guiado pelo passo
de Coatiabo. Ele o encontrou muito além, vagando entre os canaviais
que bordam as margens de Aquiraz.

– O branco tapuia está na Ibiapaba para ajudar os tabajaras a combater
contra Jacaúna. Teu irmão corre a defender a terra de seus filhos,
e a taba onde dorme o camucim de seu pai. Ele saberá vencer depressa
para voltar à tua presença.

– Teu irmão parte contigo. Nada separa dois guerreiros amigos quando
troa a inúbia da guerra.

– Tu és grande como o mar e bom como o céu.

Abraçaram-se, e partiram com o rosto para as bandas do nascente.

XXVI

Caminhando, caminhando, chegaram os guerreiros à margem de um lago,
que havia nos tabuleiros.

O cristão parou de repente e voltou o rosto para as bandas do mar:
a tristeza saiu de seu coração e subiu à fronte.

– Meu irmão, disse o chefe, teu pé criou raiz na terra do amor;
fica. Poti voltará breve.

– Teu irmão te acompanha; ele disse, e sua palavra é como a
seta de teu arco: quando soa, é chegada.

– Queres tu que Iracema te acompanhe às margens do Acaracu?

– Nós vamos combater seus irmãos. A taba dos pitiguaras não
terá para ela mais que tristeza e dor. A filha dos tabajaras deve ficar.

– Que esperas então?

– Teu irmão se aflige porque a filha dos tabajaras pode ficar triste
e abandonar a cabana, sem esperar por sua volta. Antes de partir ele queria
sossegar o espírito da esposa.

Poti refletiu:

– As lágrimas da mulher amolecem o coração do guerreiro,
como o orvalho da manhã amolece a terra.

– Meu irmão é um grande sabedor. O esposo deve partir sem ver
Iracema.

O cristão avançou, Poti mandou-lhe que esperasse: da aljava
de setas que Iracema emplumara de penas vermelhas e pretas e suspendera aos
ombros do esposo, tirou uma.

O chefe pitiguara vibrou o arco; a seta rápida atravessou um goiamum
que discorria pelas margens do lago; só parou onde a pluma não
a deixou mais entrar.

Fincou o guerreiro no chão a flecha, com a presa atravessada, e tornou
para Coatiabo:

– Podes partir. Iracema seguirá teu rasto; chegando aqui, verá
tua seta, e obedecerá à tua vontade.

Martim sorriu; e quebrando um ramo do maracujá, a flor da lembrança,
o entrelaçou na haste da seta, e partiu enfim seguido por Poti.

Breve desapareceram os dois guerreiros entre as árvores. O calor do
sol já tinha secado seus passos na beira do lago. Iracema inquieta
veio pela várzea, seguindo o rasto do esposo até o tabuleiro.
As sombras doces vestiam os campos quando ela chegou à beira do lago.

Seus olhos viram a seta do esposo fincada no chão, o goiamum trespassado,
o ramo partido, e encheram-se de pranto.

– Ele manda que Iracema ande para trás, como o goiamum, e guarde sua
lembrança, como o maracujá guarda sua flor todo o tempo até
morrer.

A filha dos tabajaras retraiu os passos lentamente, sem volver o corpo, nem
tirar os olhos da seta de seu esposo; depois tornou à cabana. Aí
sentada à soleira, com a fronte nos joelhos esperou, até que
o sono acalentou a dor em seu peito.

Apenas alvorou o dia, ela moveu o passo rápido para a lagoa, e chegou
à margem. A flecha lá estava como na véspera: o esposo
não tinha voltado.

Desde então à hora do banho, em vez de buscar a lagoa da beleza,
onde outrora tanto gostara de nadar, caminhava para aquela, que vira seu esposo
abandoná-la. Sentava-se junto à flecha, até que descia
a noite; então recolhia à cabana.

Tão rápida partia de manhã, como lenta voltava à
tarde. Os mesmos guerreiros que a tinham visto alegre nas águas da
Porangaba, agora encontrando-a triste e só, como a garça viúva,
na margem do rio, chamavam aquele sítio da Mecejana, que significa
a abandonada.

Uma vez que a formosa filha de Araquém se lamentava à beira
da lagoa da Mecejana, uma voz estridente gritou seu nome do alto da carnaúba:

– Iracema! Iracema!…

Ergueu ela os olhos e viu entre as folhas da palmeira sua linda jandaia,
que batia as asas, e arrufava as penas com o prazer de vê-la.

A lembrança da pátria, apagada pelo amor, ressurgiu em seu
pensamento. Viu os formosos campos do Ipu, as encostas da serra onde nascera,
a cabana de Araquém, e teve saudades; mas naquele instante, ainda não
se arrependeu de os ter abandonado.

Seu lábio gazeou um canto. A jandaia abrindo as asas, esvoaçou-lhe
em torno e pousou no ombro. Alongando fagueira o colo, com o negro bico alisou-lhe
os cabelos e beliscou a boca mimosa e vermelha como a pitanga.

Iracema lembrou-se que tinha sido ingrata para a jandaia, esquecendo-a no
tempo da felicidade; mas a jandaia vinha para a consolar agora no tempo da
desventura.

Essa tarde não voltou só à cabana. Durante o dia seus
dedos ágeis teceram o formoso uru de palha, que forrou da felpa macia
da monguba, para agasalhar sua companheira e amiga.

Na seguinte alvorada foi a voz da jandaia que a despertou. A linda ave não
deixou mais sua senhora; ou porque depois da longa ausência não
se fartasse de a ver, ou porque adivinhasse que ela tinha necessidade de quem
a acompanhasse em sua triste solidão.

XXVII

Uma tarde Iracema viu de longe dois guerreiros que avançavam pelas
praias do mar. Seu coração palpitou mais apressado.

Instante depois ela esquecia nos braços do esposo tantos dias de saudade
e abandono que passara na solitária cabana.

Martim e seu irmão haviam chegado à taba de Jacaúna,
quando soava a inúbia: eles guiaram ao combate os mil arcos de Poti.
Ainda dessa vez os tabajaras, apesar da aliança dos brancos tapuias
do Mearim, foram levados de vencida pelos valentes pitiguaras.

Nunca tão disputada vitória e tão renhida pugna se pelejou
nos campos que regam o Acaracu e o Camucim; o valor era igual de parte a parte,
e nenhum dos dois povos fora vencido, se o deus da guerra, o torvo Aresqui,
não tivesse decidido dar estas plagas à raça do guerreiro
branco, aliada dos pitiguaras.

Logo após a vitória o cristão tornara às praias
do mar, onde havia construído sua cabana e onde o esperava a terna
esposa. De novo sentiu em sua alma a sede do amor; e tremia de pensar que
Iracema houvesse partido, deixando ermo aquele sítio tão povoado
outrora pela felicidade.

Como a seca várzea, com a vinda do inverno reverdece e se matiza de
flores, a formosa filha do sertão com a volta do esposo reanimou-se;
e sua beleza esmaltou-se de meigos e ternos sorrisos.

Outra vez sua graça encheu os olhos do cristão, e a alegria
voltou a habitar em sua alma.

O cristão amou a filha do sertão, como nos primeiros dias,
quando parece que o tempo nunca poderá estancar o coração.
Mas breves sóis bastaram para murchar aquelas flores de uma alma exilada
da pátria.

O imbu , filho da serra, se nasce na várzea porque o vento ou as aves
trouxeram a semente, vinga, achando boa terra e fresca sombra; talvez um dia
cope a verde folhagem e enflore. Mas basta um sopro do mar, para tudo murchar.
As folhas lastram o chão; as flores, leva-as a brisa.

Como o imbu na várzea, era o coração do guerreiro branco
na terra selvagem. A amizade e o amor o acompanharam e fortaleceram durante
algum tempo, mas agora longe de sua casa e de seus irmãos, sentia-se
no ermo. O amigo e a esposa não bastavam mais à sua existência,
cheia de grandes desejos e nobres ambições.

Passava os já tão breves, agora longos sóis, na praia,
ouvindo gemer o vento e soluçar as ondas Com os olhos engolfados na
imensidade do horizonte, buscava, mas embalde, descobrir no azul diáfano
a alvura de uma vela perdida nos mares.

Distante da cabana, se elevava à borda do oceano um alto morro de
areia; pela semelhança com a cabeça do crocodilo o chamavam
os pescadores Jacarecanga, Do seio das brancas areias escaldadas pelo ardente
sol, manava uma água fresca e pura; assim destila a alma do seio da
dor lágrimas doces de alivio e consolo.

A esse monte subia o cristão; e lá ficava cismando em seu destino.
As vezes lhe vinha à mente a idéia de tornar à sua terra
e aos seus; mas ele sabia que Iracema o acompanharia; e essa lembrança
lhe remordeu o coração. Cada passo mais que afastasse dos campos
nativos a filha dos tabajaras, agora que ela não tinha o ninho de seu
coração para abrigar-se, era uma porção da vida
que lhe roubava.

Poti conhece que Martim deseja estar só, e afasta-se discreto. O guerreiro
sabe o que aflige a alma do seu irmão; e tudo espera do tempo, porque
só o tempo endurece o coração do guerreiro, como o cerne
do jacarandá.

Iracema também foge dos olhos do esposo, porque já percebeu
que esses olhos tão amados se turbam com a vista dela, e em vez de
se encherem de sua beleza como outrora, a despedem de si. Mas seus olhos dela
não se cansam de acompanhar à parte e de longe o guerreiro senhor,
que os fez cativos.

Ai da esposa!… Sentiu já o golpe no coração e como
a copaíba ferida no âmago, destila as lágrimas em fio.

XXVIII

Uma vez o cristão ouviu dentro em sua alma o soluço de Iracema:
seus olhos buscaram em torno e não a viram.

A filha de Araquém estava além, entre as verdes moitas de ubaia,
sentada na relva. O pranto desfiava de seu belo semblante; e as gotas que
rolavam a uma e uma caíam sobre o regaço, onde já palpitava
e crescia o filho do amor. Assim caem as folhas da árvore viçosa
antes que amadureça o fruto.

– O que espreme as lágrimas do coração de Iracema?

– Chora o cajueiro quando fica tronco seco e triste. Iracema perdeu sua felicidade,
depois que te separaste dela.

– Não estou eu junto de ti?

– Teu corpo está aqui; mas tua alma voa à terra de teus pais
e busca a virgem branca, que te espera.

Martim doeu-se. Os grandes olhos negros que a indiana pousara nele o tinham
ferido no íntimo.

– O guerreiro branco é teu esposo; ele te pertence.

Sorriu em sua tristeza a formosa tabajara:

– Quanto tempo há que retiraste de Iracema teu espírito? Dantes,
teu passo te guiava para as frescas serras e alegres tabuleiros: teu pé
gostava de pisar a terra da felicidade, e seguir o rasto da esposa. Agora
só buscas as praias ardentes, porque o mar que lá murmura vem
dos campos em que nasceste; e o morro das areias, porque do alto se avista
a igara que passa.

– É a ânsia de combater o tupinambá que volve o passo
do guerreiro para as bordas do mar, respondeu o cristão.

Iracema continuou:

– Teu lábio secou para a esposa; assim a cana, quando ardem os grandes
sóis, perde o mel, e as folhas murchas não podem mais cantar
quando passa a brisa. Agora só falas ao vento da praia para que ele
leve tua voz à cabana de teus pais.

– A voz do guerreiro branco chama seus irmãos para defender a cabana
de Iracema e a terra de seu filho, quando o inimigo vier.

A esposa meneou a cabeça:

– Quando tu passas no tabuleiro, teus olhos fogem do fruto do jenipapo e
buscam a flor do espinheiro; a fruta é saborosa, mas tem a cor dos
tabajaras; a flor tem a alvura das faces da virgem branca: Se cantam as aves,
teu ouvido não gosta já de escutar o canto mavioso da graúna,
mas tua alma se abre para o grito do japim, porque ele tem as penas douradas
como os cabelos daquela que tu amas!

– A tristeza escurece a vista de Iracema, e amarga seu lábio. Mas
a alegria há de voltar à alma da esposa, como volta à
árvore a verde rama.

– Quando teu filho deixar o seio de Iracema, ela morrerá, como o abati
depois que deu seu fruto. Então o guerreiro branco não terá
mais quem o prenda na terra estrangeira.

– Tua voz queima, filha de Araquém, como o sopro que vem dos sertões
do Icó, no tempo dos grandes calores. Queres tu abandonar teu esposo
?

– Não vêem teus olhos lá o formoso jacarandá,
que vai subindo às nuvens? A seus pés ainda está a seca
raiz da murta frondosa, que todos os invernos se cobria de rama e bagos vermelhos,
para abraçar o tronco irmão. Se ela não morresse, o jacarandá
não teria sol para crescer tão alto. Iracema é a folha
escura que faz sombra em tua alma; deve cair, para que a alegria alumie teu
seio.

O cristão cingiu o talhe da formosa índia e a estreitou ao
peito. Seu lábio pousou ao lábio da esposa um beijo, mas áspero
e morno.

XXIX

Poti voltou do banho.

Segue na areia o rasto de Coatiabo, e sobe ao alto da Jacarecanga. Aí
encontra o guerreiro em pé no cabeço do monte, com os olhos
alongados e os braços estendidos para os largos mares.

Volve o pitiguara as vistas e descobre uma grande igara, que vem sulcando
os verdes mares, impelida pelo vento:

– É a grande igara dos irmãos de meu irmão que vem buscá-lo?

O cristão suspirou:

– São os guerreiros brancos inimigos de minha raça, que buscam
as praias da valente nação pitiguara, para a guerra da vingança:
eles foram derrotados com os tabajaras nas margens do Camucim; agora vem com
os seus amigos, os tupinambás, pelo caminho do mar.

– Meu irmão é um grande chefe. Que pensa ele que deve fazer
seu irmão Poti?

– Chama os caçadores de Soipé e os pescadores do Trairi. Nós
iremos a seu encontro.

Poti acordou a voz da inúbia; e os dois guerreiros partiram ambos
para o Mocoripe. Pouco além viram os guerreiros de Jaguaraçu
e Camoropim que corriam ao grito de guerra. O irmão de Jacaúna
os avisou da vinda do inimigo.

A grande igara corre nas ondas, ao longo da terra que se dilata até
às margens do Parnaíba. A lua começava a crescer quando
ela deixou as águas do Mearim; ventos contrários a tinham arrastado
para os altos mares, muito além de seu destino.

Os guerreiros pitiguaras, para não espantarem o inimigo, se ocultam
entre os cajueiros; e vão seguindo pela praia a grande igara: durante
o dia avultam as brancas velas; de noite os fogos atravessam a negrura do
mar, como vaga-lumes perdidos na mata.

Muitos sóis caminharam assim. Passam além do Camucim, e afinal
pisam as lindas ribeiras da enseada dos papagaios.

Poti manda um guerreiro ao grande Jacaúna e se prepara para o combate.
Martim, que subiu ao morro de areia, conhece que o maracatim vem abrigar-se
no seio do mar; e avisa seu irmão.

O sol já nasceu; os guerreiros guaraciabas e os tupinambás,
seus amigos, correm sobre as ondas nas ligeiras pirogas e pojam na praia.
Já formam o grande arco, e avançam como o cardume do peixe quando
corta a correnteza do rio.

No centro estão os guerreiros do fogo, que trazem o raio; nas asas
os guerreiros do Mearim, que brandem o tacape.

Mas nação alguma jamais vibrou o arco certeiro, como a grande
nação pitiguara; e Poti é o maior chefe, de quantos chefes
empunharam a inúbia guerreira. A seu lado caminha o irmão, tão
grande chefe como ele, e sabedor das manhas da raça branca dos cabelos
do sol.

Durante a noite os pitiguaras fincam na praia a forte caiçara de espinho,
e levantam contra ela um muro de areia, onde o rio esfria e se apaga. Aí
esperam o inimigo. Martim manda que outros guerreiros subam à copa
dos mais altos coqueiros; ali defendidos pelas largas palmas, esperam o momento
do combate.

A seta de Poti foi a primeira que partiu, e o chefe dos guaraciabas o primeiro
herói que mordeu o pó da terra estrangeira. Rugem os trovões
na destra dos guerreiros brancos; mas os raios que desferem mergulham-se na
areia, ou se perdem nos ares.

As setas dos pitiguaras já caem do céu, já voam da terra,
e se embebem todas no seio do inimigo. Cada guerreiro tomba crivado de muitas
flechas, como a presa que as piranhas disputam nas águas do lago.

Os inimigos embarcam outra vez nas pirogas, e voltam ao maracatim em busca
dos grandes e pesados trovões, que um homem só, nem dois, podem
manejar.

Quando voltam, o chefe dos pescadores, que corre nas águas do mar
como o veloz camoropim, de que tomou o nome, se arroja nas ondas, e mergulha.
Ainda a espuma não se apagara, e já a piroga inimiga se afundou,
parecendo que a tragara uma baleia.

Veio a noite, que trouxe o repouso.

Ao romper d’alva, o maracatim fugia no horizonte para as margens do Mearim.
Jacaúna chegou, não mais para o combate e só para o festim
da vitória.

Nessa hora em que o canto guerreiro dos pitiguaras celebrava a derrota dos
guaraciabas, o primeiro filho que o sangue da raça branca gerou nessa
terra da liberdade, via a luz nos campos da Porangaba.

XXX

Iracema, sentindo que se lhe rompia o seio, buscou a margem do rio, onde
crescia o coqueiro.

Estreitou-se com a haste da palmeira. A dor lacerou suas entranhas; porém
logo o choro infantil inundou sua alma de júbilo.

A jovem mãe, orgulhosa de tanta ventura, tomou o tenro filho nos braços
e com ele arrojou-se às águas límpidas do rio. Depois
suspendeu-o à teta mimosa; seus olhos então o envolviam de tristeza
e amor.

– Tu és Moacir, o nascido de meu sofrimento.

A ará, pousada no olho do coqueiro, repetiu Moacir; e desde então
a ave amiga unia em seu canto ao nome da mãe, o nome do filho.

O inocente dormia; Iracema suspirava:

– A jati fabrica o mel no tronco cheiroso do sassafrás; toda a lua
das flores voa de ramo em ramo, colhendo o suco para encher os favos; mas
ela não prova sua doçura, porque a irara devora em uma noite
toda a colmeia. Tua mãe também, filho de minha angústia,
não beberá em teus lábios o mel de teu sorriso.

A jovem mãe passou aos ombros a larga faixa de macio algodão,
que fabricara para trazer o filho sempre unido ao flanco; e seguiu pela areia
o rasto do esposo, que há três sóis se partira. Ela caminhava
docemente para não despertar a criancinha, adormecida como o passarinho
sob a asa materna.

Quando chegou junto ao grande morro das areias, viu que o rasto de Martim
e Poti seguia ao longo da praia; e adivinhou que eles eram partidos para a
guerra. Seu coração suspirou; mas seus olhos secos buscaram
o semblante do filho.

Volve o rosto para o Mocoripe:

– Tu és o morro da alegria; mas para Iracema não tens senão
tristeza.

Tornando, a recente mãe pousou a criança adormecida na rede
de seu pai, viúva e solitária em meio da cabana; e deitou-se
ao chão, na esteira onde repousava, desde que os braços do esposo
se não tinham mais aberto para recebê-la.

A luz da manhã entrava pela cabana, e Iracema viu entrar com ela a
sombra de um guerreiro.

Caubi estava em pé na porta.

A esposa de Martim ergueu-se de um ímpeto e saltou avante para proteger
o filho. Seu irmão levantou da rede a ela uns olhos tristes, e falou
com a voz ainda mais triste:

– Não foi a vingança que arrancou o guerreiro Caubi aos campos
dos tabajaras; ele já perdoou. Foi a vontade de ver Iracema, que trouxe
consigo toda a sua alegria.

– Então bem-vindo seja o guerreiro Caubi na cabana de seu irmão:
respondeu a esposa abraçando-o.

– O nascido de teu seio dorme nessa rede; os olhos de Caubi gostariam de
vê-lo.

Iracema abriu a franja de penas; e mostrou o lindo semblante da criança.
Caubi depois que o contemplou por muito tempo, entre risos, disse:

– Ele chupou tua alma.

E beijou nos olhos da jovem mãe, a imagem da criança, que não
se animava tocar, receoso de ofendê-la.

A voz trêmula da filha ressoou:

– Ainda vive Araquém sobre a terra?

– Pena ainda; depois que tu o deixaste, sua cabeça vergou para o peito
e não se ergueu mais.

– Tu lhe dirás que Iracema já morreu, para que ele se console.

A irmã de Caubi preparou a refeição para o guerreiro,
e armou no copiar a rede da hospitalidade para que ele repousasse das fadigas
da jornada. Quando o viajante satisfez o apetite, ergueu-se com estas palavras:

– Diz onde está teu esposo e meu irmão, para que o guerreiro
Caubi lhe dê o abraço da amizade.

Os lábios suspirosos da mísera esposa se moveram, como as pétalas
do cacto que um sopro amarrota, e ficaram mudos. Mas as lágrimas debalharam
dos olhos, e caíram em bagas.

O rosto de Caubi anuviou-se:

– Teu irmão pensava que a tristeza ficará nos campos que abandonaste;
porque trouxeste contigo todo o riso dos que te amavam!

Iracema enxugou os olhos:

– O esposo de Iracema partiu com o guerreiro Poti para as praias do Acaracu.
Antes que três sóis tenham iluminado a terra ele voltará,
e com ele a alegria à alma da esposa.

– O guerreiro Caubi o espera para saber o que ele fez do sorriso que morava
em teus lábios.

A voz do tabajara enrouquecera; seu passo inquieto volveu a esmo pela cabana.

XXXI

Iracema cantava docemente, embalando a rede para acalentar o filho.

A areia da praia crepitou sob o pé forte e rijo do guerreiro tabajara,
que vinha das bordas do mar depois da abundante pesca.

A jovem mãe cruzou as franjas da rede, para que as moscas não
inquietassem o filho acalentado, e foi ao encontro do irmão:

– Caubi vai tornar às montanhas dos tabajaras! disse ela com brandura.

O guerreiro anuviou-se:

– Tu despedes teu irmão da cabana para que ele não veja a tristeza
que a enche.

– Araquém teve muitos filhos em sua mocidade; uns a guerra levou e
morreram como valentes; outros escolheram uma esposa e geraram por sua vez
numerosa prole; filhos de sua velhice, Araquém só teve dois.
Iracema é a rola que o caçador tirou do ninho. Só resta
o guerreiro Caubi ao velho Pajé, para suster seu corpo vergado, e guiar
seu passo trêmulo.

– Caubi partirá quando a sombra deixar o rosto de Iracema.

– Como a estrela que só brilha de noite, vive Iracema em sua tristeza.
Só os olhos do esposo podem apagar a sombra em seu rosto. Parte, para
que eles não se turvem com tua vista.

– Teu irmão parte para te fazer a vontade; mas ele voltará
todas as vezes que o cajueiro florescer, para sentir em seu coração
o filho de teu ventre.

Entrou na cabana. Iracema tirou da rede a criança; e ambos, mãe
e filho, palpitaram sobre o peito do guerreiro tabajara. Depois, Caubi passou
a porta e sumiu-se entre as árvores.

Iracema, arrastando o passo trêmulo, o acompanhou de longe até
que o perdeu de vista na orla da mata Aí parou: quando o grito da jandaia
de envolta com o choro infantil, a chamou à cabana, a areia fria onde
esteve sentada, guardou o segredo do pranto que embebera.

A jovem mãe suspendeu o filho à teta; mas a boca infantil não
emudeceu. O leite escasso não apojava o peito.

O sangue da infeliz diluía-se todo nas lágrimas incessantes
que não lhe estancavam nos olhos; pouco chegava aos seios, onde se
forma o primeiro licor da vida.

Ela dissolveu a alva carimã e preparou ao fogo o mingau para nutrir
o filho. Quando o sol dourou a crista dos montes, partiu para a mata, levando
ao colo a criança adormecida.

Na espessura do bosque estava o leito da irara ausente; os tenros cachorrinhos
grunhem enrolando-se uns sobre os outros. A formosa tabajara aproxima-se de
manso. Prepara para o filho um berço da macia rama do maracujá;
e senta-se perto.

Põe no regaço um por um os filhos da irara; e Ihes abandona
os seios mimosos, cuja teta rubra como a pitanga ungiu do mel da abelha. Os
cachorrinhos famintos sugam os peitos avaros de leite.

Iracema curte dor, como nunca sentiu; parece que lhe exaurem a vida; mas
os seios vão-se intumescendo; apojaram afinal, e o leite, ainda rubro
do sangue de que se formou, esguicha.

A feliz mãe arroja de si os cachorrinhos, e cheia de júbilo
mata a fome ao filho. Ele é agora duas vezes filho de sua dor, nascido
dela e também nutrido.

A filha de Araquém sentiu afinal que suas veias se estancavam; e contudo
o lábio amargo de tristeza recusava o alimento que devia restaurar-lhe
as forças. O gemido e o suspiro tinham crestado com o sorriso e o sabor
em sua boca formosa.

XXXII

Descamba o sol.

Japi sai do mato e corre para a porta da cabana.

Iracema sentada com o filho no colo, banha-se nos raios do sol e sente o
frio arrepiar-lhe o corpo. Vendo o animal, fiel mensageiro do esposo, a esperança
reanima seu coração; quer erguer-se para ir ao encontro de seu
guerreiro senhor, mas os membros débeis se recusam à sua vontade.

Caiu desfalecida contra o esteio. Japi lambia-lhe a mão fria e pulava
travesso para fazer sorrir a criança, soltando uns doces latidos de
prazer. Por vezes, afastava-se para correr até a orla da mata chamando
o senhor; logo tornava à cabana para festejar a mãe e o filho.

Por esse tempo pisava Martim os campos amarelos do Tauape; seu irmão
Poti, o inseparável, caminhava a seu lado.

Oito luas havia que ele deixara as praias de Jacarecanga. Vencidos os guaraciabas,
na baía dos papagaios, o guerreiro cristão quis partir para
as margens do Mearim, onde habitava o bárbaro aliado dos tupinambás.

Poti e seus guerreiros o acompanharam. Depois que transpuseram o braço
corrente do mar que vem da serra de Tauatinga e banha as várzeas onde
se pesca o piau, viram enfim as praias do Mearim, e a velha taba do bárbaro
tapuia.

A raça dos cabelos do sol cada vez ganhava mais a amizade dos tupinambás;
crescia o número dos guerreiros brancos, que já tinham levantado
na ilha a grande itaoca, para despedir o raio.

Quando Martim viu o que desejava, tornou aos campos da Porangaba, que ele
agora trilha. Já ouve o ronco do mar nas praias do Mocoripe; já
lhe bafeja o rosto o sopro vivo das vagas do oceano.

Quanto mais seu passo o aproxima da cabana, mais lento se torna e pesado.
Tem medo de chegar; e sente que sua alma vai sofrer, quando os olhos tristes
e magoados da esposa entrarem nela.

Há muito que a palavra desertou de seu lábio seco; o amigo
respeita este silêncio, que ele bem entende. É o silêncio
do rio quando passa nos lugares profundos e sombrios.

Tanto que os dois guerreiros tocaram as margens do rio, ouviram o latir do
cão, a chamá-los e o grito da ará, que se lamentava.

Eram mui próximos à cabana, apenas oculta por uma língua
de mato. O cristão parou calcando a mão no peito para sofrear
o coração, que saltava como o poraquê.

– O latido de Japi é de alegria: disse o chefe.

– Porque chegou; mas a voz da jandaia é de tristeza. Achará
o guerreiro ausente a paz no seio da esposa solitária; ou terá
a saudade matado em suas entranhas o fruto do amor?

O cristão moveu o passo vacilante. De repente, entre os ramos das
árvores, seus olhos viram, sentada à porta da cabana, Iracema,
com o filho no regaço, e o cão a brincar. Seu coração
o arrojou de um ímpeto, e a alma lhe estalou nos lábios:

– Iracema!. . .

A triste esposa e mãe soabriu os olhos, ouvindo a voz amada. Com esforço
grande, pôde erguer o filho nos braços, e apresentá-lo
ao pai, que o olhava extático em seu amor.

– Recebe o filho de teu sangue. Era tempo; meus seios ingratos já
não tinham alimento para dar-lhe!

Pousando a criança nos braços paternos, a desventurada mãe
desfaleceu, como a jetica, se lhe arrancam o bulbo. O esposo viu então
como a dor tinha consumido seu belo corpo; mas a formosura ainda morava nela,
como o perfume na flor caída do manacá .

Iracema não se ergueu mais da rede onde a pousaram os aflitos braços
de Martim. O terno esposo, em quem o amor renascera com o júbilo paterno,
a cercou de carícias que encheram sua alma de alegria, mas não
a puderam tornar à vida: o estame de sua flor se rompera.

– Enterra o corpo de tua esposa ao pé do coqueiro que tu amavas. Quando
o vento do mar soprar nas folhas, Iracema pensará que é tua
voz que fala entre seus cabelos.

O doce lábio emudeceu para sempre; o último lampejo despediu-se
dos olhos baços.

Poti amparou o irmão na grande dor. Martim sentiu quanto um amigo
verdadeiro é precioso na desventura; é como o outeiro que abriga
do vendaval o tronco forte e robusto do ubiratã, quando o cupim lhe
broca o âmago.

O camucim, que recebeu o corpo de Iracema, embebido de resinas odoríferas,
foi enterrado ao pé do coqueiro, à borda do rio. Martim quebrou
um ramo de murta, a folha da tristeza, e deitou-o no jazigo de sua esposa.

A jandaia pousada no olho da palmeira repetia tristemente:

– Iracema!

Desde então os guerreiros pitiguaras, que passavam perto da cabana
abandonada e ouviam ressoar a voz plangente da ave amiga, afastavam-se, com
a alma cheia de tristeza, do coqueiro onde cantava a jandaia.

E foi assim que um dia veio a chamar-se Ceará o rio onde crescia o
coqueiro, e os campos onde serpeja o rio.

XXXIII

O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do
Ceará, levando no frágil barco o filho e o cão fiel.
A jandaia não quis deixar a terra onde repousava sua amiga e senhora.

O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria.
Havia aí a predestinação de uma raça ?

Poti levantava a taba de seus guerreiros na margem do rio e esperava o irmão
que lhe prometera voltar. Todas as manhãs subia ao morro das areias
e volvia os olhos ao mar, para ver se branqueava ao longe a vela amiga.

Afinal volta Martim de novo às terras, que foram de sua felicidade,
e são agora de amarga saudade. Quando seu pé sentiu o calor
das brancas areias, em seu coração derramou-se um fogo que o
requeimou: era o fogo das recordações que ardiam como a centelha
sob as cinzas.

Só aplacou essa chama quando ele tocou a terra, onde dormia sua esposa;
porque nesse instante seu coração transudou, como o tronco do
jataí nos ardentes calores, e orvalhou sua tristeza de lágrimas
abundantes.

Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco, para fundar
com ele a mairi dos cristãos. Veio também um sacerdote de sua
religião, de negras vestes, para plantar a cruz na terra selvagem.

Poti foi o primeiro que ajoelhou aos pés do sagrado lenho; não
sofria ele que nada mais o separasse de seu irmão branco. Deviam ter
ambos um só deus, como tinham um só coração.

Ele recebeu com o batismo o nome do santo, cujo era o dia; e o do rei, a
quem ia servir, e sobre os dous o seu, na língua dos novos irmãos.
Sua fama cresceu e ainda hoje é o orgulho da terra, onde ele primeiro
viu a luz.

A mairi que Martim erguera à-margem do rio, nas praias do Ceará,
medrou. Germinou a palavra do Deus verdadeiro na terra selvagem; e o bronze
sagrado ressoou nos vales onde rugia o maracá.

Jacaúna veio habitar nos campos da Porangaba para estar perto de seu
amigo branco; Camarão erguera a taba de seus guerreiros nas margens
da Mecejana.

Tempo depois, quando veio Albuquerque, o grande chefe dos guerreiros brancos,
Martim e Camarão partiram para as margens do Mearim a castigar o feroz
tupinambá e expulsar o branco tapuia.

Era sempre com emoção que o esposo de Iracema revia as plagas
onde fora tão feliz, e as verdes folhas a cuja sombra dormia a formosa
tabajara.

Muitas vezes ia sentar-se naquelas doces areias, para cismar e acalentar
no peito a agra saudade.

A jandala cantava ainda no olho do coqueiro; mas não repetia já
o mavioso nome de Iracema.

Tudo passa sobre a terra.

Carta

ao Dr. Jaguaribe

Eis-me de novo, conforme o prometido.

Já leu o livro e as notas que o acompanham; conversemos pois.

Conversemos sem cerimônia, em toda familiaridade, como se cada um estivesse
recostado em sua rede, ao vaivém do
lânguido balanço, que convida à doce prática.

Se algum leitor curioso se puser à escuta, deixá-lo. Não
devemos por isso de mudar o tom rasteiro da intimidade pela frase
garrida das salas.

Sem mais.

Há de recordar-se você de uma noite que, entrando em minha casa,
quatro anos a esta parte, achou-me rabiscando um livro.
Era isso em uma quadra importante, pois que uma nova legislatura, filha de
nova lei, fazia sua primeira sessão; e o país tinha os
olhos nela, de quem esperava iniciativa generosa para melhor situação.

Já estava eu meio descrido das cousas, e mais dos homens; e por isso
buscava na literatura diversão à tristeza que me infundia
o estado da pátria entorpecida pela indiferença. Cuidava eu
porém que você, político de antiga e melhor têmpera,
pouco se
preocupava com as cousas literárias, não por menospreço,
sim por vocação.

A conversa que tivemos então revelou meu engano; achei um cultor e
amigo da literatura amena; e juntos lemos alguns trechos
da obra, que tinha, e ainda não perdeu, pretensões a um poema.

É como viu e como então lhe esbocei a largos traços,
uma heróica que tem por assunto as tradições dos indígenas
brasileiros e
seus costumes. Nunca me lembrara eu de dedicar-me a esse gênero de literatura,
de que me abstive sempre, passados que
foram os primeiros e fugaces arroubos da juventude. Suporta-se uma prosa medíocre,
e até estima-se pelo quilate da idéia;
mas o verso medíocre é a pior triaga que se possa impingir ao
pior leitor.

Cometi a imprudência quando escrevi algumas cartas sobre a Confederação
dos Tamoios de dizer: "as tradições dos indígenas
dão matéria para um grande poema que talvez um dia apresente
sem ruído nem aparato, com modesto fruto de suas vigílias".

Tanto bastou para que supusessem que o escritor se referia a si, e tinha
já em mão o poema; várias pessoas perguntaram-me
por ele. Meteu-me isto é brios literários; sem calcular das
forças mínimas para empresa tão grande que assoberbou
dois
ilustres poetas, tracei o plano da obra, e a comecei com quase tal vigor que
a levei de um fôlego ao quarto canto.

Esse fôlego susteve-se cerca de cinco meses, mas amorteceu; e vou lhe
confessar o motivo.

Desde cedo, quando começaram os primeiros pruridos literários
uma espécie de instinto me impelia a imaginação para
a raça
selvagem indígena. Digo instinto, porque não tinha eu então
estudos bastantes para apreciar devidamente a nacionalidade de
uma literatura, era simples prazer que me deleitada na leitura das crônicas
e memórias antigas.

Mais tarde, discernindo melhor as cousas, lia as produções
que se publicavam sobre o tema indígena; não realizavam elas
a
poesia nacional, tal como me aparecia no estudo da vida selvagem dos autóctonos
brasileiros. Muitas pecavam pelo abuso dos
termos indígenas acumulados uns sobre os outros, o que não só
quebrava a harmonia da língua portuguesa, como perturbava a
inteligência do texto. Outras eram primorosas no estilo e ricas de belas
imagens; porém faltava-lhes certa rudez ingênua de
pensamento e expressão, que devia ser a linguagem dos indígenas.

Gonçalves Dias é o poeta nacional por excelência; ninguém
lhe disputa na opulência da imaginação, no fino lavor
do verso, no
conhecimento da natureza brasileira e dos costumes selvagens. Em suas poesias
americanas aproveitou muitas das mais lindas
tradições dos indígenas; e em seu poema não concluído
dos Timbiras, propôs-se a descrever a epopéia brasileira.

Entretanto, os selvagens de seu poema falam uma linguagem clássica,
o que lhe foi censurado por outro poeta de grande estro,
o Dr. Bernardo Guimarães; eles exprimem idéias próprias
do homem civilizado, e que não é verossímil tivessem
no estado da
natureza.

Sem dúvida que o poeta brasileiro tem de traduzir em sua língua
as idéias, embora rudes e grosseiras, dos índios; mas nessa
tradução está a grande dificuldade; é preciso
que a língua civilizada se molde quanto possa à singeleza primitiva
da língua
bárbara; e não represente as imagens e pensamentos indígenas
senão por termos e frases que ao leitor pareçam naturais na
boca do selvagem.

O conhecimento da língua indígena é o melhor critério
para a nacionalidade da literatura. Ele nos dá não só
o verdadeiro estilo,
como as imagens poéticas do selvagem, os modos de seu pensamento, as
tendências de seu espírito, e até as menores
particularidades de sua vida.

E nessa fonte que deve beber o poeta brasileiro, é dela que há
de sair o verdadeiro poema nacional, tal como eu o imagino.

Cometendo portanto o grande arrojo, aproveitei o ensejo de realizar as idéias
que me flutuavam no espírito, e não eram ainda
plano fixo, a reflexão consolidou.as e robusteceu.

Na parte escrita da obra foram elas vazadas em grande cópia. Se a
investigação laboriosa das belezas nativas, feita sobre
imperfeitos e espúrios dicionários, exauria o espírito;
a satisfação de cultivar essas flores agrestes da poesia brasileira,
deleitada. Um dia porém fatigado da constante e aturada meditação
ou análise para descobrir a etimologia de algum vocábulo,
assaltou-me um receio.

Todo este improbo trabalho que às vezes custava uma só palavra,
me seria levado à conta ? Saberiam que esse escrópulo
d’ouro fino tinha sido desentranhado da profunda camada, onde dorme uma raça
extinta ? Ou pensariam que fora achado na
superfície e trazido ao vento da fácil inspiração?

E sobre esse, logo outro receio.

A imagem ou pensamento com tanta fadiga esmerilhados seriam apreciados em
seu justo valor, pela maioria dos leitores ? Não
os julgariam inferiores a qualquer das imagens em voga, usadas na literatura
moderna?

Ocorre-me um exemplo tirado deste livro. Guia, chamavam os indígenas,
senhor do caminho, piguara. A beleza da expressão
selvagem em sua tradução literal e etimológica, me parece
bem saliente. Não diziam sabedor do caminho, embora tivessem
termo próprio, couab, porque essa frase não exprimiria a energia
de seu pensamento. O caminho no estado selvagem não
existe; não é coisa de saber; faz-se na ocasião da marcha
através da floresta ou do campo, e em certa direção;
aquele que o
tem e o dá, é realmente senhor do caminho.

Não é bonito ? Não está ai uma jóia da
poesia nacional ?

Pois haverá quem prefira a expressão — rei do caminho,
embora os brasis não tivessem rei, nem idéia de tal instituição.
Outros se inclinaram à palavra guia, como mais simples e natural em
português, embora não corresponda ao pensamento do
selvagem.

Ora, escrever um poema que devia alongar-se para correr o risco de não
ser entendido, e quando entendido não apreciado,
era para desanimar o mais robusto talento, quanto mais a minha mediocridade.
Que fazer? Encher o livro de grifos que o
tornariam mais contuso e de notas que ninguém lê ? Publicar a
obra parcialmente para que os entendidos preferissem o
veredito literário? Dar leitura dela a um circulo escolhido, que emitisse
juízo ilustrado ?

Todos estes meios tinham seu inconveniente, e todos foram repelidos: o primeiro
afeava o livro; o segundo o truncava em
pedaços; o terceiro não lhe aproveitaria pela cerimonioso benevolência
dos censores. O que pareceu melhor e mais acertado
foi desviar o espírito dessa obra e dar-lhe novos rumos.

Mas não se abandona assim um livro começado, por pior que ele
seja; ai nessas páginas cheias de rasuras e borrões dorme a
larva. do pensamento, que pode ser ninfa de asas douradas, se a inspiração
fecundar o grosseiro casulo. Nas diversas pausas
de suas preocupações o espírito volvia pois ao livro,
onde estão ainda incubados e estarão cerca de dois mil versos
heróicos.

Conforme a benevolência ou serenidade de minha consciência, às
vezes os acho bonitos e dignos de verem a luz; outras me
parecem vulgares, monótonos, e somenos a quanta prosa charra tenho
eu estendido sobre o papel. Se o amor de pai abranda
afinal esse rigor, não desvanece porém nunca o receio de "perder
inutilmente meu tempo a fazer versos para caboclos".

Em um desses volveres do espírito à obra começada, lembrou-me
de fazer uma experiência em prosa. O verso pela sua
dignidade e nobreza não comporta certa flexibilidade de expressão
que entretanto não vai mal à prosa mais elevada. A
elasticidade da frase permitiria então que se empregassem com mais
clareza as imagens indígenas, de modo a não passarem
desapercebidas. Por outro lado conhecer-se-ia o efeito que havia de ter o
verso pelo efeito que tivesse a prosa.

O assunto para a experiência, de antemão estava achado. Quando
em 1848 revi nossa terra natal, tive a idéia de aproveitar
suas lendas e tradições em alguma obra literária. Já
em São Paulo tinha começado uma biografia do Camarão.
Sua mocidade,
a amizade heróica que o ligava a Soares Moreno, a bravura e lealdade
de Jacaúna, aliado dos portugueses, e suas guerras
contra o célebre Mel Redondo; ai estava o tema. Faltava-lhe o perfume
que derrama sobre as paixões do homem e da mulher.

Sabe você agora o outro motivo que eu tinha de lhe endereçar
o livro; precisava dizer todas estas cousas, contar o como e por
que escrevi Iracema. li com quem melhor conversaria sobre isso do que com
uma testemunha de meu trabalho, a única, das
poucas, que respira agora as auras cearenses ?

Este livro é pois um ensaio ou antes amostra. Verá realizadas
nele minhas idéias a respeito da literatura nacional; e achará
ai
poesia inteiramente brasileira, haurida na língua dos selvagens. A
etimologia de nomes das diversas localidades, e certos modos
de dizer tirados da composição das palavras, são de cunho
original.

Compreende você que não podia eu derramar em abundância
essas riquezas no livrinho agora publicado, porque elas ficariam
desfloradas na obra de maior vulto, a qual só teria a novidade da fábula.
Entretanto há aí de sobra para dar matéria à crítica
e
servir de base ao juízo dos entendidos.

Se o público ledor gostar dessa forma literária que me parece
ter algum atrativo, então se fará um esforço para levar
ao cabo o
começado poema, embora o verso tenha perdido muito de seu primitivo
encanto. Se porém o livro for acoimado de sediço, e
Iracema encontrar a usual indiferença que vai acolhendo o bom e o mau
com a mesma complacência, quando não é silêncio
desdenhoso e ingrato; nesse caso o autor se desenganará de mais esse
gênero de literatura, como já se desenganou do teatro,
e os versos, como as comédias, passarão para a gaveta dos papéis
velhos, relíquias autobiográficas.

Depois de concluído o livro e quando o reli já aparado na estampa,
conheci que me tinham escapado senão que se devam
corrigir, noto algum excesso de comparações, repetição
de certas imagens, desalinho no estilo dos últimos capítulos.
Também
me parece que devia conservar aos nomes das localidades sua atual versão,
embora corrompida.

Se a obra tiver segunda edição será escoimada destes
e doutros defeitos que lhe descubram os entendidos.

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