Conceição Evaristo – Vida
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Nascimento: 29 de novembro de 1946 (68 anos), Belo Horizonte, Minas Gerais
Uma das mais importantes escritora negra do país que a maioria dos brasileiros nunca ouviram falar.
Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 1946.
De origem humilde, migrou para o Rio de Janeiro na década de 1970. Graduou-se em Letras pela UFRJ, trabalhou como professora da rede pública de ensino da capital fluminense e da rede privada de ensino superior.
É mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Rio. No momento, está concluindo doutorado em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense. Em sua pesquisa, estuda as relações entre a literatura afro-brasileira e as literaturas africanas de língua portuguesa.
Participante ativa dos movimentos de valorização da cultura negra em nosso país, estreou na arte da palavra em 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas na série Cadernos Negros, suporte de que se utiliza até hoje.
Em 2003, veio a público o romance Ponciá Vicêncio, pela editora Mazza, de Belo Horizonte. Seu segundo livro, outro romance, Becos da memória, foi escrito em fins dos anos 1970 e início dos 1980.
Ficou engavetado por cerca de 20 anos até sua publicação, em 2006. Desde então, os textos de Evaristo vêm angariando cada vez mais leitores, sobretudo após a indicação de seu primeiro livro como leitura obrigatória do Vestibular da UFMG, em 2007.
A escritora participou ainda de publicações coletivas na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Sua obra de estreia foi traduzida para o inglês e está em processo de tradução para o espanhol.
A obra em prosa de Conceição Evaristo é habitada, sobretudo, por excluídos sociais, dentre eles favelados, meninos e meninas de rua, mendigos, desempregados, beberrões, prostitutas, “vadios” etc., o que ajuda a compor um quadro de determinada parcela social que se relaciona de modo ora tenso, ora ameno, com o outro lado da esfera, composta de empresários, senhoras de posses, policiais, funcionários do governo, dentre outros.
Personagens como Di Lixão, Duzu-Querença, Ana Davenga e Natalina, presentes no universo dos contos publicados nos Cadernos Negros; Ponciá Vicêncio, Vô Vicêncio, Luandi, Nêngua Kainda, Zé Moreira, Bilisa e Negro Glimério, listados em Ponciá Vicêncio; Maria-Nova (desdobramento ficcional da autora?), Maria Velha, Vó Rita, Negro Alírio, Bondade, Ditinha, Balbina, Filó Gazogênia, Cidinha-Cidoca, Tio Totó e Negra Tuína, de Becos da memória, exemplificam, no plano da ficção, o universo marginal que a sociedade tenta ocultar.
Conceição Evaristo
Becos da memória é marcado por uma intensa dramaticidade, o que desvela o intuito de transpor para a literatura toda a tensão inerente ao cotidiano dos que estão permanentemente submetidos à violência em suas diversas modalidades. Barracos e calçadas, bordéis e delegacias compõem o cenário urbano com que se defrontam os excluídos de todos os matizes e gradações, o que insinua ao leitor qual a cor da pobreza brasileira.
No entanto, a autora escapa das soluções fáceis: não faz do morro território de glamour e fetiche; tampouco, investe no traço simples do realismo brutal, o qual acaba transformando a violência em produto comercial para a sedenta sociedade de consumo.
Os fragmentos que compõem Becos da memória procuram aliar a denúncia social a um lirismo de tom trágico, o que remonta ao mundo íntimo dos humilhados e ofendidos, tomados no livro como pessoas sensíveis, marcadas, portanto, não apenas pelos traumas da exclusão, mas também por desejos, sonhos e lembranças. Violência e intimismo, realismo e ternura, além de impactarem o leitor, revelam o compromisso e a identificação da intelectualidade afrodescendente com aqueles colocados à margem do que o discurso neoliberal chama de progresso.
Sabendo que é possível à obra (re)construir a vida, através de “pontes metafóricas”, pelo projeto literário de Conceição Evaristo vislumbram-se pistas de possíveis percursos e leituras de cunho biográfico. Na configuração do romance em questão pululam aqui e ali, ora na ficção, ora em entrevistas, ora em textos acadêmicos, peças para a montagem de seu quebracabeça literário e biográfico. Uma das peças desse jogo parece ser a natureza da relação contratual estabelecida entre o leitor e o espaço autoficcional em que se insere Becos da memória. Aqui, a figura autoral ajuda a criar imagens de outra(s) Evaristo(s), projetada(s) em seus personagens, como Maria-Nova, por exemplo. Em outras palavras, processa-se uma espécie de exercício de elasticidade de um eu-central.
Desliza-se com facilidade na prosa de Evaristo entre o romance e a escrita de si. Se, tradicionalmente, aquele se preocupa com o universal humano e esta, com o particular ou com o indivíduo, a autora propõe a junção dos dois gêneros, pois, para ela, pensar a si é também pensar seu coletivo.
Do ponto de vista formal não é diferente: não se utilizam capítulos, mas fragmentos, bem a gosto do narrador popular benjaminiano. Nessa perspectiva, vê-se o mundo através da ótica dos fragmentos e dos indivíduos anônimos que compõem boa parte da teia social.
Neste livro de corte tanto biográfico quanto memorialístico, nota-se o que a autora chama de escrevivência, ou seja, a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil. Tanto na vida da autora quanto em Becos da memória, a leitura antecede e nutre as escritas de Evaristo e de Maria-Nova, razão pela qual lutam contra a existência em condições desfavoráveis. Ler é também arquivar a si, pois se selecionam momentos e estratégias de elaboração do passado, o qual compõe as cenas vividas, escritas e recriadas em muitos de seus personagens. Finalmente, decodificar o universo das palavras, para a autora e para Maria-Nova, torna-se uma maneira de suportar o mundo, o que proporciona um duplo movimento de fuga e inserção no espaço.
Não menos importante, a escrita também abarca estas duas possibilidades: evadir para sonhar e inserir-se para modificar.
O lugar de enunciação mostra-se solidário e identificado com os menos favorecidos, vale dizer, sobretudo, com o universo das mulheres negras. E o universo do sujeito autoral parece ser recriado através das caracterizações físicas, psicológicas, sociais e econômicas de suas personagens do gênero feminino.
Maria-Nova, presente em Becos da memória, aos nossos olhos, compõe-se, mais do que todas as personagens, de rastros do sujeito autoral: menina, negra, habitante durante a infância de uma favela e que vê na escrita uma forma de expressão e resistência à sorte de seu existir. Uma ponte metafórica que arriscamos instalar permite ver em comum, ainda, o fato de serem provenientes de famílias sustentadas por matriarcas lavadeiras, transitantes entre os mundos da prosperidade e da miséria, ou seja, Conceição e Maria-Nova cumpriram, no espaço familiar em que estiveram, o papel de mediação cultural que aperfeiçoou o processo de bildung (confirma palavra em inglês?) de uma e de outra.
A obra se constrói, então, a partir de “rastros” fornecidos por aqueles três elementos formadores da escrevivência: corpo, condição e experiência. O primeiro elemento reporta à dimensão subjetiva do existir negro, arquivado na pele e na luta constante por afirmação e reversão de estereótipos. A representação do corpo funciona como ato sintomático de resistência e arquivo de impressões que a vida confere. O segundo elemento, a condição, aponta para um processo enunciativo fraterno e compreensivo com as várias personagens que povoam a obra. A experiência, por sua vez, funciona tanto como recurso estético quanto de construção retórica, a fim de atribuir credibilidade e poder de persuasão à narrativa. No livro em questão, a voz enunciativa, num tom de oralidade e reminiscência, desfia situações, senão verdadeiras, verossimilhantes, ocorridas no “morro do Pindura Saia”, espaço que bem se assemelha ao da infância da autora. Arriscamos dizer que há “jogo especular”, portanto, entre a experiência do sujeito empírico e de Maria-Nova, para além da simetria do espaço da narrativa (favela) e do espaço da infância e da juventude da autora (idem).
Outro bom exemplo de jogo especular consiste em uma situação por que realmente passou Evaristo e que se repete com Maria-Nova. Aliás, tem sido realmente um verdadeiro trauma para crianças negras estudar na escola tópicos relativos à escravidão e seus desdobramentos. Enquanto a professora se limitava à leitura de um conteúdo abstrato e com visão eurocêntrica acerca do passado escravocrata, Maria-Nova não conseguia enxergar naquele ato – e na escola – sentido para a concretude daquele assunto. Afinal, ela e a autora viviam e sentiam na pele as consequências da exploração do homem pelo homem na terra brasilis. Sujeito-mulher-negra, abandonada à própria sorte a partir do dia 14 de maio de 1888,
Maria-Nova olhou novamente a professora e a turma. Era uma história muito grande! Uma história viva que nascia das pessoas, do hoje, do agora. Era diferente de ler aquele texto. Assentou-se e, pela primeira vez, veio-lhe um pensamento: quem sabe escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua mente (p. 138).
A garota, ciente de que a história das lutas dos negros no Brasil começava já com as primeiras levas diaspóricas, parece repetir o célebre questionamento de Gayatri Spivac: “pode o subalterno falar?”. Mais que isso: falar, ser ouvido, redigir outra história, outra versão, outra epistemologia, que leve em conta não o arquivamento das versões dos vencidos, mas que valorize o sujeito comum, anônimo, do dia a dia. Talvez Maria-Nova nem tenha se dado conta de que o que ela havia pensado era exatamente a fundamentação de boa parte dos Estudos Pós-Coloniais e da História Nova. Nesse sentido, os corpos-textos de Maria-Nova e Conceição Evaristo possuem em comum a missão política de inventar outro futuro para si e para seu coletivo, o que lhes imbui de uma espécie de dever de memória e dever de escrita. Vejamos: “agora ela [Maria-Nova] já sabia qual seria a sua ferramenta, a escrita. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, que era de cada um e de todos. Maria-Nova, um dia, escreveria a fala de seu povo (p. 161).
E a escrita acompanhará a pequena até a última página do livro, o que nos permite pensar que a missão ainda está em processo: “não, ela [Maria-Nova] jamais deixaria a vida passar daquela forma tão disforme. […] Era preciso viver. ‘Viver do viver’. […] O pensamento veio rápido e claro como um raio. Um dia ela iria tudo escrever” (p. 147).
E escreveu em seu mundo de papel. Coube a Evaristo registrar o desejo de Maria-Nova e, logo, seu próprio desejo. O desdobramento de uma em outra e as pontes metafóricas que pretendemos instaurar não esgotam as possibilidades de leituras, mas permitem a possibilidade de muitas outras, que despertem o afã de também escrever. Luiz Henrique Silva de Oliveira
Fonte: dx.doi.org
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