Cinco Minutos – José de Alencar

PUBLICIDADE

Clique nos links abaixo para navegar no capítulo desejado:

José de Alencar

Capítulo 1

É uma história curiosa a que lhe vou contar, minha prima. Mas
é uma história e não um romance. Há mais de dois
anos, seriam seis horas da tarde, dirigi-me ao Rocio para tomar o ônibus
de Andaraí.

Sabe que sou o homem menos pontual que há neste mundo; entre os meus
imensos defeitos e as minhas poucas qualidades, não conto a pontualidade,
essa virtude dos reis e esse mau costume dos ingleses.

Entusiasta da liberdade, não posso admitir de modo algum que um homem
se escravize ao seu relógio e regule as suas ações pelo
movimento de uma pequena agulha de aço ou pelas oscilações
de uma pêndula.

Tudo isto quer dizer que, chegando ao Rocio, não vi mais ônibus
algum ; o empregado a quem me dirigi respondeu :

– Partiu há cinco minutos.

Resignei-me e esperei pelo ônibus de sete horas. Anoiteceu.

Fazia uma noite de inverno fresca e úmida; o céu estava calmo,
mas sem estrelas.

A hora marcada chegou o ônibus e apressei-me a ir tomar o meu lugar.

Procurei, como costumo, o fundo do carro, a fim de ficar livre das conversas
monótonas dos recebedores, que de ordinário têm sempre
uma anedota insípida a contar ou uma queixa a fazer sobre o mau estado
dos caminhos.

O canto já estava ocupado por um monte de sedas, que deixou escapar-se
um ligeiro farfalhar, conchegando-se para dar-me lugar.

Sentei-me; prefiro sempre o contato da seda à vizinhança da
casimira ou do pano.

O meu primeiro cuidado foi ver se conseguia descobrir o rosto e as formas
que se escondiam nessas nuvens de seda e de rendas.

Era impossível.

Além de a noite estar escura, um maldito véu que caía
de um chapeuzinho de palha não me deixava a menor esperança.

Resignei-me e assentei que o melhor era cuidar de outra coisa.

Já o meu pensamento tinha-se lançado a galope pelo mundo da
fantasia, quando de repente fui obrigado a voltar por uma circunstância
bem simples.

Senti no meu braço o contato suave de um outro braço, que me
parecia macio e aveludado como uma folha de rosa.

Quis recuar, mas não tive ânimo; deixei-me ficar na mesma posição
e cismei que estava sentado perto de uma mulher que me amava e que se apoiava
sobre mim.

Pouco a pouco fui cedendo àquela atração irresistível
e reclinando-me insensivelmente; a pressão tornou-se mais forte; senti
o seu ombro tocar de leve o meu peito; e a minha mão impaciente encontrou
uma mãozinha delicada e mimosa, que se deixou apertar a medo.

Assim, fascinado ao mesmo tempo pela minha ilusão e por este contato
voluptuoso, esqueci-me, a ponto que, sem saber o que fazia, inclinei a cabeça
e colei os meus lábios ardentes nesse ombro, que estremecia de emoção.

Ela soltou um grito, que foi tomado naturalmente como susto causado pelos
solavancos do ônibus, e refugiou-se no canto.

Meio arrependido do que tinha feito, voltei-me como para olhar pela portinhola
do carro, e, aproximando-me dela, disse-lhe quase ao ouvido :

– Perdão!

Não respondeu; conchegou-se ainda mais ao canto.

Tomei uma resolução heróica.

– Vou descer, não a incomodarei mais.

Ditas estas palavras rapidamente, de modo que só ela ouvisse, inclinei-me
para mandar parar.

Mas senti outra vez a sua mãozinha, que apertava docemente a minha,
como para impedir-me de sair.

Está entendido que não resisti e que me deixei ficar ; ela
conservava-se sempre longe de mim, mas tinha-me abandonado a mão, que
eu beijava respeitosamente.

De repente veio-me uma idéia. Se fosse feia! se fosse velha! se fosse
uma e outra coisa!

Fiquei frio e comecei a refletir.

Esta mulher, que sem me conhecer me permitia o que só se permite ao
homem que se ama, não podia deixar com efeito de ser feia e muito feia.

Não lhe sendo fácil achar um namorado de dia, ao menos agarrava-se
a este, que de noite e às cegas lhe proporcionara o acaso.

É verdade que essa mão delicada, essa espádua aveludada…
Ilusão! Era a disposição em que eu estava!

A imaginação é capaz de maiores esforços ainda.

Nesta marcha, o meu espirito em alguns instantes tinha chegado a uma convicção
inabalável sobre a fealdade de minha vizinha.

Para adquirir a certeza renovei o exame que tentara a princípio: porém,
ainda desta vez, foi baldado; estava tão bem envolvida no seu mantelete
e no seu véu, que nem um traço do rosto traía o seu incógnito.

Mais uma prova! Uma mulher bonita deixa-se admirar e não se esconde
como uma pérola dentro da sua ostra.

Decididamente era feia, enormemente feia!

Nisto ela fez um movimento, entreabrindo o seu mantelete, e um bafejo suave
de aroma de sândalo exalou-se.

Aspirei voluptuosamente essa onda de perfume, que se infiltrou em minha alma
como um eflúvio celeste.

Não se admire, minha prima; tenho uma teoria a respeito dos perfumes.

A mulher é uma flor que se estuda, como a flor do campo, pelas suas
cores, pelas suas folhas e sobretudo pelo seu perfume.

Dada a cor predileta de uma mulher desconhecida, o seu modo de trajar e o
seu perfume favorito, vou descobrir com a mesma exatidão de um problema
algébrico se ela é bonita ou feia.

De todos estes indícios, porém, o mais seguro é o perfume;
e isto por um segredo da natureza, por uma lei misteriosa da criação,
que não sei explicar.

Por que é que Deus deu o aroma mais delicado à rosa, ao heliotrópio,
à violeta, ao jasmim, e não a essas flores sem graça
e sem beleza, que só servem para realçar as suas irmãs?

É decerto por esta mesma razão que Deus só dá
à mulher linda esse tato delicado e sutil, esse gosto apurado, que
sabe distinguir o aroma mais perfeito…

Já vê, minha prima, porque esse odor de sândalo foi para
mim como uma revelação.

Só uma mulher distinta, uma mulher de sentimento, sabe compreender
toda a poesia desse perfume oriental, desse hat-chiss do olfato, que nos embala
nos sonhos brilhantes das Mil e uma Noites, que nos fala da Índia,
da China, da Pérsia,

dos esplendores da Ásia e dos mistérios do berço do
sol.

O sândalo é o perfume das odaliscas de Stambul e das huris do
profeta; como as borboletas que se alimentam de mel, a mulher do Oriente vive
com as gotas dessa essência divina.

Seu berço é de sândalo ; seus colares, suas pulseiras,
o seu leque, são de sândalo; e, quando a morte vem quebrar o
fio dessa existência feliz, é ainda em uma urna de sândalo
que o amor guarda as suas cinzas queridas.

Tudo isto me passou pelo pensamento como um sonho, enquanto eu aspirava ardentemente
essa exalação fascinadora, que foi a pouco e pouco desvanecendo-se.

Era bela!

Tinha toda a certeza; desta vez era uma convicção profunda
e inabalável.

Com efeito, uma mulher de distinção, uma mulher de alma elevada,
se fosse feia, não dava sua mão a beijar a um homem que podia
repeli-la quando a conhecesse; não se expunha ao escárnio e
ao desprezo.

Era bela!

Mas não a podia ver, por mais esforços que fizesse.

O ônibus parou; uma outra senhora ergueu-se e saiu.

Senti a sua mão apertar a minha mais estreitamente; vi uma sombra
passar diante de meus olhos no meio do ruge-ruge de um vestido, e quando dei
acordo de mim, o carro rodava e eu tinha perdido a minha visão.

Ressoava-me ainda ao ouvido uma palavra murmurada, ou antes suspirada quase
imperceptivelmente:

– Non ti scordar di me! …

Lancei-me fora do ônibus; caminhei à direita e à esquerda;
andei como um louco até nove horas da noite.

Nada!

Capítulo 2

QUINZE dias se passaram depois de minha aventura.

Durante este tempo é escusado dizer-lhe as extravagâncias que
fiz.

Fui todos os dias a Andaraí no ônibus das sete horas, para ver
se encontrava a minha desconhecida; indaguei de todos os passageiros se a
conheciam e não obtive a menor informação.

Estava a braços com uma paixão, minha prima, e com uma paixão
de primeira força e de alta pressão, capaz de fazer vinte milhas
por hora.

Quando saía, não via ao longe um vestido de seda preta e um
chapéu de palha que não lhe desse caça, até fazê-lo
chegar à abordagem.

No fim descobria alguma velha ou alguma costureira desjeitosa e continuava
tristemente o meu caminho, atrás dessa sombra impalpável, que
eu procurava havia quinze longos dias, isto é, um século para
o pensamento de um amante.

Um dia estava em um baile, triste e pensativo, como um homem que ama uma
mulher e que não conhece a mulher que ama.

Recostei-me a uma porta e dai via passar diante de mim uma miríade
brilhante e esplêndida, pedindo a todos aqueles rostos indiferentes
um olhar, um sorriso, que me desse a conhecer aquela que eu procurava.

Assim preocupado, quase não dava fé do que se passava junto
de mim, quando senti um leque tocar meu braço, e uma voz que vivia
no meu coração, uma voz que cantava dentro de minha alma, murmurou
:

– Non ti scordar di me!…

Voltei-me.

Corri um olhar pelas pessoas que estavam junto de mim, e apenas vi uma velha
que passeava pelo braço de seu cavalheiro, abanando-se com um leque.

– Será ela, meu Deus? pensei horrorizado

E, por mais que fizesse, os meus olhos não se podiam destacar daquele
rosto cheio de rugas.

A velha tinha uma expressão de bondade e de sentimento que devia atrair
a simpatia; mas naquele momento essa beleza moral, que iluminava aquela fisionomia
inteligente, pareceu-me horrível e até repugnante.

Amar quinze dias uma sombra, sonhá-la bela como um anjo, e por fim
encontrar uma velha de cabelos brancos, uma velha coquette e namoradeira!

Não, era impossível! Naturalmente a minha desconhecida tinha
fugido antes que eu tivesse tempo de vê-la.

Essa esperança consolou-me ; mas durou apenas um segundo.

A velha falou e na sua voz eu reconheci, apesar de tudo, apesar de mim mesmo,
o timbre doce e aveludado que ouvira duas vezes.

Em face da evidência não havia mais que duvidar. Eu tinha amado
uma velha, tinha beijado a sua mão enrugada com delírio, tinha
vivido quinze dias de sua lembrança.

Era para fazer-me enlouquecer ou rir; não me ri nem enlouqueci, mas
fiquei com um tal tédio e um aborrecimento de mim mesmo que não
posso exprimir.

Que peripécias, que lances, porém, não me reservava
ainda esse drama, tão simples e obscuro!

Não distingui as primeiras palavras da velha logo que ouvi a sua voz;
foi só passado o primeiro espanto que percebi o que dizia.

– Ela não gosta de bailes.

– Pois admira, replicou o cavalheiro ; na sua idade!

– Que quer! não acha prazer nestas festas ruidosas e nisto mostra
bem que é minha filha.

A velha tinha uma filha e isto podia explicar a semelhança extraordinária
da voz. Agarrei-me a esta sombra, como um homem que caminha no escuro.

Resolvi-me a seguir a velha toda a noite, até que ela se encontrasse
com sua filha : desde este momento era o meu fanal, a minha estrela polar.

A senhora e o seu cavalheiro entraram na saleta da escada. Separado dela
um instante pela multidão, ia segui-la.

Nisto ouço uma voz alegre dizer da saleta:

– Vamos, mamã!

Corri, e apenas tive tempo de perceber os folhos de um vestido preto, envolto
num largo burnous de seda branca, que desapareceu ligeiramente na escada.

Atravessei a saleta tão depressa como me permitiu a multidão,
e, pisando calos, dando encontrões à direita e à esquerda,
cheguei enfim à porta da saída,

O meu vestido preto sumiu-se pela portinhola de um cupê, que partiu
a trote largo.

Voltei ao baile desanimado; a minha única esperança era a velha;
por ela podia tomar informações, saber quem era a minha desconhecida,
indagar o seu nome e a sua morada, acabar enfim com este enigma, que me matava
de emoções violentas e contrárias.

Indaguei dela.

Mas como era possível designar uma velha da qual eu só sabia
pouco mais ou menos a idade?

Todos os meus amigos tinham visto muitas velhas, porém não
tinham olhado para elas.

Retirei-me triste e abatido, como um homem que se vê em luta contra
o impossível.

De duas vezes que a minha visão me tinha aparecido, só me restavam
uma lembrança, um perfume e uma palavra!

Nem sequer um nome!

A todo momento parecia-me ouvir na brisa da noite essa frase do Trovador,
tão cheia de melancolia e de sentimento, que resumia para mim toda
uma história.

Desde então não se representava uma só vez esta ópera
que eu não fosse ao teatro, ao menos para ter o prazer de ouvi-la repetir.

A princípio, por uma intuição natural, julguei que ela
devia, como eu, admirar essa sublime harmonia de Verdi, que devia também
ir sempre ao teatro.

O meu binóculo examinava todos os camarotes com uma atenção
meticulosa; via moças bonitas ou feias, mas nenhuma delas me fazia
palpitar o coração.

Entrando uma vez no teatro e passando a minha revista costumada, descobri
finalmente na terceira ordem sua mãe, a minha estrela, o fio de Ariadne
que me podia guiar neste labirinto de dúvidas.

A velha estava só, na frente do camarote, e de vez em quando voltava-se
para trocar uma palavra com alguém sentado no fundo.

Senti uma alegria inefável.

O camarote próximo estava vazio; perdi quase todo o espetáculo
a procurar o cambista incumbido de vendê-lo. Por fim achei-o e subi
de um pulo as três escadas.

O coração queria saltar-me quando abri a porta do camarote
e entrei.

Não me tinha enganado; junto da velha vi um chapeuzinho de palha com
um véu preto rocegado, que não me deixava ver o rosto da pessoa
a quem pertencia.

Mas eu tinha adivinhado que era ela; e sentia um prazer indefinível
em olhar aquelas rendas e fitas, que me impediam de conhecê-la, mas
que ao menos lhe pertenciam.

Uma das fitas do chapéu tinha caído do lado do meu camarote,
e, em risco de ser visto, não pude suster-me e beijei-a a furto.

Representava-se a Traviata e era o último ato; o espetáculo
ia acabar, e eu ficaria no mesmo estado de incerteza.

Arrastei as cadeiras do camarote, tossi, deixei cair o binóculo, fiz
um barulho insuportável, para ver se ela voltava o rosto.

A platéia pediu silêncio; todos os olhos procuraram conhecer
a causa. do rumor; porém ela não se moveu; com a cabeça
meio inclinada sobre a coluna, em uma lânguida inflexão, parecia
toda entregue ao encanto da música.

Tomei um partido.

Encostei-me à mesma coluna e, em voz baixa, balbuciei estas palavras
:

– Não me esqueço!

Estremeceu e, baixando rapidamente o véu, conchegou ainda mais o largo
burnous de cetim branco.

Cuidei que ia voltar-se, mas enganei-me ; esperei muito tempo, e debalde.

Tive então um movimento de despeito e quase de raiva; depois de um
mês que eu amava sem esperança, que eu guardava a maior fidelidade
à sua sombra, ela me recebia friamente.

Revoltei-me.

– Compreendo agora, disse eu em voz baixa e como falando a um amigo que estivesse
a meu lado, compreendo por que ela me foge, por que conserva esse mistério
; tudo isto não passa de uma zombaria cruel, de uma comédia,
em que

eu faço o papel de amante ridículo. Realmente é uma
lembrança engenhosa! Lançar em um coração o germe
de um amor profundo ; alimentá-lo de tempos a tempos com uma palavra,
excitar a imaginação pelo mistério; e depois, quando

esse namorado de uma sombra, de um sonho, de uma ilusão, passear pelo
salão a sua figura triste e abatida, mostrá-lo a suas amigas
como uma vítima imolada aos seus caprichos e escarnecer do louco! É
espirituoso! O orgulho da mais vai- dosa mulher deve ficar satisfeito!

Enquanto eu proferia estas palavras, repassadas de todo o fel que tinha no
coração, a Charton modulava com a sua voz sentimental essa linda
ária final da Traviata, interrompida por ligeiros acessos de uma tosse
seca.

Ela tinha curvado a cabeça e não sei se ouvia o que eu lhe
dizia ou o que a Charton cantava; de vez em quando as suas espáduas
se agitavam com um tremor convulsivo, que eu tomei injustamente por um movimento
de impaciência.

O espetáculo terminou, as pessoas do camarote saíram e ela,
levantando sobre o chapéu o capuz de seu manto, acompanhou-as lentamente.

Depois, fingindo que se tinha esquecido de alguma coisa, tornou a entrar
no camarote e estendeu-me a mão.

– Não saberá nunca o que me fez sofrer, disse-me com a voz
trêmula.

Não pude ver-lhe o rosto; fugiu, deixando-me o seu lenço impregnado
desse mesmo perfume de sândalo e todo molhado de lágrimas ainda
quentes.

Quis segui-la; mas ela fez um gesto tão suplicante que não
tive ânimo de desobedecer-lhe.

Estava como dantes; não a conhecia, não sabia nada a seu respeito;
porém ao menos possuía alguma coisa dela; o seu lenço
era para mim uma relíquia sagrada.

Mas as lágrimas? Aquele sofrimento de que ela falava?

O que queria dizer tudo isto?

Não compreendia; se eu tinha sido injusto, era uma razão para
não continuar a esconder-se de mim. Que queria dizer este mistério,
que parecia obrigada a conservar?

Todas estas perguntas e as conjeturas a que elas davam lugar não me
deixaram dormir.

Passei uma noite de vigília a fazer suposições, cada
qual mais desarrazoada.

Capítulo 3

RECOLHENDO-ME no dia seguinte, achei em casa uma carta.

Antes de abri-la conheci que era dela, porque lhe tinha imprimido esse suave
perfume que a cercava como uma auréola.

Eis o que dizia :

"Julga mal de mim, meu amigo ; nenhuma mulher pode escarnecer de um
nobre coração como o seu.

"Se me oculto, se fujo, é porque há uma fatalidade que
a isto me obriga. E só Deus sabe quanto me custa este sacrifício,
porque o amo!

"Mas não devo ser egoísta e trocar sua felicidade por
um amor desgraçado.

"Esqueça-me.

Reli não sei quantas vezes esta carta, e, apesar da delicadeza de
sentimento que parecia ter ditado suas palavras, o que para mim se tornava
bem claro é que ela continuava a fugir-me.

Essa assinatura era a mesma letra que marcava o seu lenço e à
qual eu, desde a véspera, pedia debalde um nome!

Fosse qual fosse esse motivo que ela chamava uma fatalidade e que eu supunha
ser apenas escrúpulo, senão uma zombaria, o melhor era aceitar
o seu conselho e fazer por esquecê-la.

Refleti então friamente sobre a extravagância da minha paixão
e assentei que com efeito precisava tomar uma resolução decidida.

Não era possível que continuasse a correr atrás de um
fantasma que se esvaecia quando ia tocá-lo.

Aos grandes males os grandes remédios, como diz Hipócrates.
Resolvi fazer uma viagem.

Mandei selar o meu cavalo, meti alguma roupa em um saco de viagem, embrulhei-me
no meu capote e saí, sem me importar com a manhã de chuva que
fazia.

Não sabia para onde iria. O meu cavalo levou-me para o Engenho-Velho
e eu daí me encaminhei para a Tijuca, onde cheguei ao meio-dia, todo
molhado e fatigado pelos maus caminhos.

Se algum dia se apaixonar, minha prima, aconselho-lhe as viagens como um
remédio soberano e talvez o único eficaz.

Deram-me um excelente almoço no hotel; fumei um charuto e dormi doze
horas, sem ter um sonho, sem mudar de lugar.

Quando acordei, o dia despontava sobre as montanhas da Tijuca.

Uma bela manhã, fresca e rociada das gotas de orvalho, desdobrava
o seu manto de azul por entre a cerração, que se desvanecia
aos raios do sol.

O aspecto desta natureza quase virgem, esse céu brilhante, essa luz
esplêndida, caindo em cascatas de ouro sobre as encostas dos rochedos,
serenou-me completamente o espírito.

Fiquei alegre, o que havia muito tempo não me sucedia.

O meu hóspede, um inglês franco e cavalheiro, convidou-me para
acompanhá-lo à caça; gastamos todo o dia a correr atrás
de duas ou três marrecas e a bater as margens da Restinga.

Assim passei nove dias na Tijuca, vivendo uma vida estúpida quanto
pode ser: dormindo, caçando e jogando bilhar.

Na tarde do décimo dia, quando já me supunha perfeitamente
curado e estava contemplando o sol, que se escondia por detrás dos
montes, e a lua, que derramava no espaço a sua luz doce e acetinada,
fiquei triste de repente.

Não sei que caminho tomavam as minhas idéias; o caso é
que daí a pouco descia a serra no meu cavalo, lamentando esses nove
dias, que talvez me tivessem feito perder para sempre a minha desconhecida.

Acusava-me de infidelidade, de traição; a minha fatuidade

dizia-me que eu devia ao menos ter-lhe dado o prazer de ver-me.

Que importava que ela me ordenasse que a esquecesse?

Não me tinha confessado que me amava, e não devia eu resistir

e vencer essa fatalidade, contra a qual ela, fraca mulher, não podia
lutar?

Tinha vergonha de mim mesmo; achava-me egoísta, cobarde, irrefletido,
e revoltava-me contra tudo, contra o meu cavalo que me levara à Tijuca,
e o meu hóspede, cuja amabilidade ali me havia demorado.

Com esta disposição de espírito cheguei à cidade,
mudei de traje e ia sair, quando o meu moleque me deu uma carta.

Era dela.

Causou-me uma surpresa misturada de alegria e de remorso :

"Meu amigo.

"Sinto-me com coragem de sacrificar o meu amor à sua felicidade;
mas ao menos deixe-me o consolo de amá-lo.

"Há dois dias que espero debalde vê-lo passar e acompanhá-lo
de longe com um olhar! Não me queixo; não sabe nem deve saber
em que ponto de seu caminho o som de seus passos faz palpitar um coração
amigo.

"Parto hoje para Petrópolis, donde voltarei breve; não
lhe peço que me acompanhe, porque devo ser-lhe sempre uma desconhecida,
uma sombra escura que passou um dia pelos sonhos dourados de sua vida.

"Entretanto eu desejava vê-lo ainda uma vez, apertar a sua mão
e dizer-lhe adeus para sempre.

C.

A carta tinha a data de 3; nós estávamos a 10; havia oito dias
que ela partira para Petrópolis e que me esperava.

No dia seguinte embarquei na Prainha e fiz essa viagem da baía, tão
pitoresca, tão agradável e ainda tão pouco apreciada.

Mas então a majestade dessas montanhas de granito, a poesia desse
vasto seio de mar, sempre alisado como um espelho, os grupos de ilhotas graciosas
que bordam a baía, nada disto me preocupava.

Só tinha uma idéia… chegar; e o vapor caminhava menos rápido
do que meu pensamento.

Durante a viagem pensava nessa circunstância que a sua carta me revelara,
e fazia-me por lembrar de todas as ruas por onde costumava passar, para ver
se adivinhava aquela onde ela morava e donde todos os dias me via sem que
eu suspeitasse.

Para um homem como eu, que andava todo o dia desde a manhã até
a noite, a ponto de merecer que a senhora, minha prima, me apelidasse de Judeu
Errante, este trabalho era improfícuo.

Quando cheguei a Petrópolis, eram cinco horas da tarde; estava quase
noite.

Entrei nesse hotel suíço, ao qual nunca mais voltei, e enquanto
me serviam um magro jantar, que era o meu almoço, tomei informações.

– Têm subido estes dias muitas famílias? perguntei eu ao criado.

– Não, senhor.

– Mas, há coisa de oito dias não vieram da cidade duas senhoras?

– Não estou certo.

– Pois indague, que preciso saber e já ; isto o ajudará a obter
informações.

A fisionomia sisuda do criado expandiu-se ao tinir da moeda e a língua
adquiriu a sua elasticidade natural.

– Talvez o senhor queira falar de uma senhora já idosa que veio acompanhada
de sua filha?

– É isso mesmo.

– A moça parece-me doente; nunca a vejo sair.

– Onde está morando?

– Aqui perto, na rua de…

– Não conheço as ruas de Petrópolis; o melhor é
acompanhar-me e vir mostrar-me a casa,

– Sim senhor.

O criado seguiu-me e tomamos por uma das ruas agrestes da cidade alemã.

Capítulo 4

A noite estava escura.

Era uma dessas noites de Petrópolis, envoltas em nevoeiro e cerração.

Caminhávamos mais pelo tato do que pela vista, dificilmente distinguíamos
os objetos a uma pequena distância; e muitas vezes, quando o meu guia
se apressava, o seu vulto perdia-se nas trevas.

Em alguns minutos chegamos em face de um pequeno edifício construído
a alguns passos do alinhamento, e cujas janelas estavam esclarecidas por uma
luz interior.

É ali.

– Obrigado.

O criado voltou e eu fiquei junto dessa casa, sem saber o que ia fazer.

A idéia de que estava perto dela, que via a luz que a esclarecia,
que tocava a relva que ela pisara, fazia-me feliz.

É coisa singular, minha prima! O amor que é insaciável
e exigente e não se satisfaz com tudo quanto uma mulher pode dar, que
deseja o impossível, às vezes contenta-se com um simples gozo
d’alma, com uma dessas emoções delicadas, com um desses nadas,
dos quais o coração faz um mundo novo e desconhecido.

Não pense, porém, que eu fui a Petrópolis só
para contemplar com enlevo as janelas de um chalé; não; ao passo
que sentia esse prazer, refletia no meio de vê-la e falar-lhe.

Mas como?…

Se soubesse todos os expedientes, cada qual mais extravagante, que inventou
a minha imaginação! Se visse a elaboração tenaz
a que se entregava o meu espírito para descobrir um meio de dizer-lhe
que eu estava ali e a esperava!

Por fim achei um; se não era o melhor, era o mais pronto.

Desde que chegara, tinha ouvido uns prelúdios de piano, mas tão
débeis que pareciam antes tirados por uma mão distraída
que roçava o teclado, do que por uma pessoa que tocasse.

Isto me fez lembrar que ao meu amor se prendia a recordação
de uma bela música de Verdi; e foi quanto bastou.

Cantei, minha prima, ou antes assassinei aquela linda romanza; os que me
ouvissem tomar-me-iam por algum furioso; mas ela me compreenderia.

E de fato, quando eu acabei de estropiar esse trecho magnífico de
harmonia e sentimento, o piano, que havia emudecido, soltou um trilo brilhante
e sonoro, que acordou os ecos adormecidos no silêncio da noite.

Depois daquela cascata de sons majestosos, que se precipitavam em ondas de
harmonia do seio daquele turbilhão de notas que se cruzavam, deslizou
plangente, suave e melancólica uma voz que sentia e palpitava, exprimindo
todo o amor que

respira a melodia sublime de Verdi.

Era ela que cantava!

Oh! não posso pintar-lhe, minha prima, a expressão profundamente
triste, a angústia de que ela repassou aquela frase de despedida :

Non ti scordar di me.
Addio!…

Partia-me a alma.

Apenas acabou de cantar, vi desenhar-se uma sombra em uma das janelas; saltei
a grade do jardim; mas as venezianas descidas não me permitiam ver
o que se passava na sala.

Sentei-me sobre uma pedra e esperei.

Não se ria, D… ; estava resolvido a passar ali a noite ao relento,
olhando para aquela casa e alimentando a esperança de que ela viria
ao menos com uma palavra compensar o meu sacrifício.

Não me enganei.

Havia meia hora que a luz da sala tinha desaparecido e que toda a casa parecia
dormir, quando se abriu uma das portas do jardim e eu vi ou antes pressenti
a sua sombra na sala.

Recebeu-me com surpresa, sem temor, naturalmente, e como se eu fosse seu
irmão ou seu marido. É porque o amor puro tem bastante delicadeza
e bastante confiança para dispensar o falso pejo, o pudor de convenção
de que às vezes

costumam cercá-lo.

– Eu sabia que sempre havias de vir, disse-me ela.

– Oh! não me culpes! se soubesses!

– Eu culpar-te? Quando mesmo não viesses, não tinha o direito
de queixar-me.

– Por que não me amas!

– Pensas isto? disse-me com uma voz cheia de lágrimas.

– Não! não!… Perdoa!

Perdôo-te, meu amigo, como já te perdoei uma vez; julgas que
te fujo, que me oculto de ti, porque não te amo e, entretanto, não
sabes que a maior felicidade para mim seria poder dar-te a minha vida.

– Mas então por que esse mistério?

– Esse mistério, bem sabes, não é uma coisa criada por
mim e sim pelo acaso ; se o conservo, é porque, meu amigo…,tu não
me deves amar.

– Não te devo amar! Mas eu amo-te!…

Ela recostou a cabeça ao meu ombro e eu senti uma lágri-ma
cair sobre meu seio.

Estava tão perturbado, tão comovido dessa situação
incompreensível, que me senti vacilar e deixei-me cair sobre o sofá.

Ela sentou-se junto de mim; e, tomando-me as duas mãos, disse-me um
pouco mais calma:

– Tu dizes que me amas!

– Juro-te!

– Não te iludes talvez?

– Se a vida não é uma ilusão, respondi, penso que não,
porque a minha vida agora és tu, ou antes, a tua sombra.

– Muitas vezes toma-se um capricho por amor; tu não conheces de mim,
como dizes, senão a minha sombra!…

– Que me importa? ..

– E se eu fosse feia? disse ela, rindo.

– Tu és bela como um anjo! Tenho toda a certeza.

– Quem sabe?

– Pois bem; convence-me, disse eu, passando-lhe o braço pela cintura
e procurando levá-la para uma sala vizinha, donde filtravam os raios
de uma luz.

Ela desprendeu-se do meu braço.

A sua voz tornou-se grave e triste.

– Escuta, meu amigo ; falemos seriamente. Tu dizes que me amas ; eu o creio,
eu o sabia antes mesmo que me dissesses. As almas como as nossas quando se
encontram, se reconhecem e se compreendem. Mas ainda é tempo; não
julgas

que mais vale conservar uma doce recordação do que entregar-se
a um amor sem esperança e sem futuro?…

– Não, mil vezes não! Não entendo o que queres dizer;
o meu amor, o meu, não precisa de futuro e de esperança, porque
o tem em si, porque viverá sempre!…

– Eis o que eu temia; e, entretanto, eu sabia que assim havia de acontecer
; quando se tem a tua alma, ama-se uma só vez.

– Então por que exiges de mim um sacrifício que sabes ser impossível?

– Porque, disse ela com exaltação, porque, se há uma
felicidade indefinível em duas almas que ligam sua vida, que se confundem
na mesma existência, que só têm um passado e um futuro
para ambas, que desde a flor da idade até à velhice

caminham juntas para o mesmo horizonte, partilhando os seus prazeres e as
suas mágoas, revendo-se uma na outra até o momento em que batem
as asas e vão abrigar-se no seio de Deus, deve ser cruel, bem cruel,
meu amigo, quando, tendo-se apenas encontrado, uma dessas duas almas irmãs
fugir deste mundo,

e a outra, viúva e triste, for condenada a levar sempre no seu seio
uma idéia de morte, a trazer essa recordação, que, como
um crepe de luto, envolverá a sua bela mocidade, a fazer do seu coração,
cheio de vida e de amor, um túmulo para guardar as cinzas do passado!
Oh! deve ser horrível!…

A exaltação com que falava tinha-se tornado uma espécie
de delírio; sua voz, sempre tão doce e aveludada, parecia alquebrada
pelo cansaço da respiração.

Ela caiu sobre o meu seio, agitando-se convulsivamente em um acesso de tosse.

Capítulo 5

ASSIM ficamos muito tempo imóveis, ela, com a fronte apoiada sobre
o meu peito, eu, sob a impressão triste de suas palavras.

Por fim ergueu a cabeça; e, recobrando a sua serenidade disse-me com
um tom doce e melancólico:

– Não pensas que melhor é esquecer do que amar assim?

– Não! Amar, sentir-se amado, é sempre um gozo imenso e um
grande consolo para a desgraça. O que é triste, o que é
cruel, não é essa viuvez da alma separada de sua irmã,
não; aí há um sentimento que vive, apesar da morte, apesar
do tempo. É, sim, esse vácuo do coração que não
tem uma afeição no mundo e que passa como um estranho por entre
os prazeres que o cercam.

– Que santo amor, meu Deus! Era assim que eu sonhava ser amada! …

– E me pedias que te esquecesse!…

– Não! não! Ama-me; quero que me ames ao menos…

– Não me fugirás mais?

– Não.

– E me deixarás ver aquela que eu amo e que não conheço?
perguntei, sorrindo.

– Desejas?

– Suplico-te!

– Não sou eu tua?…

Lancei-me para a saleta onde havia luz e coloquei o lampião sobre
a mesa do gabinete em que estávamos.

Para mim, minha prima, era um momento solene; toda essa paixão violenta,
incompreensível, todo esse amor ardente por um vulto de mulher, ia
depender talvez de um olhar.

E tinha medo de ver esvaecer-se, como um fantasma em face da realidade, essa
visão poética de minha imaginação, essa criação
que resumia todos os tipos.

Foi, portanto, com uma emoção extraordinária que, depois
de colocar a luz, voltei-me.

Ah!…

Eu sabia que era bela; mas a minha imaginação apenas tinha
esboçado o que Deus criara.

Ela olhava-me e sorria.

Era um ligeiro sorriso, uma flor que se desfolhava nos seus lábios,
um reflexo que iluminava o seu lindo rosto.

Seus grandes olhos negros fitavam em mim um desses olhares lânguidos
e aveludados que afagam os seios d’alma.

Um anel de cabelos negros brincava-lhe sobre o ombro, fazendo sobressair
a alvura diáfana de seu colo gracioso.

Tudo quanto a arte tem sonhado de belo e de voluptuoso desenhava-se naquelas
formas soberbas, naqueles contornos harmoniosos que se destacavam entre as
ondas de cambraia de seu roupão branco.

Vi tudo isto de um só olhar, rápido, ardente e fascinado!

Depois fui ajoelhar-me diante dela e esqueci-me a contemplá-la.

Ela me sorria sempre e se deixava admirar.

Por fim tomou-me a cabeça entre as mãos e seus lábios
fecharam-me os olhos com um beijo.

– Ama-me, disse.

O sonho esvaeceu-se.

A porta da sala fechou-se sobre ela, tinha-me fugido.

Voltei ao hotel.

Abri a minha janela e sentei-me ao relento.

A brisa da noite trazia-me de vez em quando um aroma de plantas agrestes
que me causava íntimo prazer.

Fazia lembrar-me da vida campestre, dessa existência

doce e tranqüila que se passa longe das cidades, quase no seio da natureza.

Pensava como seria feliz, vivendo com ela em algum canto isolado, onde pudéssemos
abrigar o nosso amor em um leito de flores e de relva.

Fazia na imaginação um idílio encantador e sentia-me
tão feliz que não trocaria a minha cabana pelo mais rico palácio
da terra.

Ela me amava.

Só essa idéia embelezava tudo para mim; a noite escura de Petrópolis
parecia-me poética e o murmurejar triste das águas do canal
tornava-se-me agradável.

Uma coisa, porém, perturbava essa felicidade; era um ponto negro,
uma nuvem escura que toldava o céu da minha noite de amor.

Lembrava-me daquelas palavras tão cheias de angústia e tão
sentidas, que pareciam explicar a causa de sua reserva para comigo: havia
nisto um quer que seja que eu não compreendia.

Mas esta lembrança desaparecia logo sob a impressão de seu
sorriso, que eu tinha em minh’alma, de seu olhar, que eu guardava no coração,
e de seus lábios, cujo contato ainda sentia.

Dormi embalado por estes sonhos e só acordei quando um raio de sol,
alegre e travesso, veio bater-me nas pálpebras e dar-me o bom dia.

O meu primeiro pensamento foi ir saudar a minha casinha; estava fechada.

Eram oito horas.

Resolvi dar um passeio para disfarçar a minha impaciência; voltando
ao hotel, o criado disse-me terem trazido um objeto que recomendaram me fosse
entregue logo.

Em Petrópolis não conhecia ninguém; devia ser dela.

Corri ao meu quarto e achei sobre a mesa uma caixinha de pau-cetim; na tampa
havia duas letras de tartaruga incrustadas : C. L.

A chave estava fechada em uma sobrecarta com endereço a mim; dispus-me
a abrir a caixa com a mão trêmula e tomado por um triste pressentimento.

Parecia-me que naquele cofre perfumado estava encerrada a minha vida, o meu
amor, toda a minha felicidade.

Abri.

Continha o seu retrato, alguns fios de cabelos e duas folhas de papel escritas
por ela e que li de surpresa em surpresa.

Capítulo 6

EIS o que ela me dizia:

"Devo-te uma explicação, meu amigo.

"Esta explicação é a história da minha vida,
breve história, da qual escreveste a mais bela página.

"Cinco meses antes do nosso primeiro encontro completava eu os meus
dezesseis anos, a vida começava a sorrir-me.

"A educação rigorosa que me dera minha mãe, me
conservara menina até àquela idade, e foi só quando ela
julgou dever correr o véu que ocultava o mundo aos meus olhos, que
eu perdi as minhas idéias de infância e as minhas inocentes

ilusões.

"A primeira vez que fui a um baile, fiquei deslumbrada no meio daquele
turbilhão de cavalheiros e damas, que girava em torno de mim sob uma
atmosfera de luz, de música, de perfumes.

"Tudo me causava admiração; esse abandono com que as mulheres
se entregavam ao seu par de valsa, esse sorriso constante e sem expressão
que uma moça parece tomar na porta da entrada para só deixá-lo
à saída, esses galanteios sempre os mesmos e sempre sobre um
tema banal, ao passo que me excitavam a curiosidade, faziam desvanecer o entusiasmo
com que tinha acolhido a notícia que minha mãe me dera da minha
entrada nos salões.

"Estavas nesse baile; foi a primeira vez que te vi.

"Reparei que nessa multidão alegre e ruidosa tu só não
dançavas nem galanteavas, e passeavas pelo salão como um espectador
mudo e indiferente, ou talvez como um homem que procurava uma mulher e só
via toilettes.

"Compreendi-te e, durante muito tempo, segui-te com os olhos; ainda
hoje me lembro dos teus menores gestos, da expressão do teu rosto e
do sorriso de fina ironia que às vezes fugia-te pelos lábios.

"Foi a única recordação que trouxe dessa noite,
e quando adormeci, os meus doces sonhos de infância, que, apesar do
baile, vieram de novo pousar nas alvas cortinas de meu leito, apenas foram
interrompidos um instante pela tua imagem, que me sorria.

"No dia seguinte reatei o fio de minha existência, feliz, tranqüila
e descuidosa, como costuma ser a existência de uma moça aos dezesseis
anos.

"Algum tempo depois fui a outros bailes e ao teatro, porque minha mãe,
que guardara a minha infância, como um avaro esconde o seu tesouro,
queria fazer brilhar a minha mocidade.

"Quando cedia ao seu pedido e me ia aprontar, enquanto preparava o meu
simples traje, murmurava: – Talvez ele esteja.

"E esta lembrança, não só me tornava alegre, mas
fazia com que procurasse parecer bela, para te merecer um primeiro olhar.

"Ultimamente era eu quem, cedendo a um sentimento que não sabia
explicar, pedia a minha mãe para irmos a um divertimento, só
na esperança de encontrar-te.

"Nem suspeitavas então que, entre todos aqueles vultos indiferentes,
havia um olhar que te seguia sempre e um coração que adivinhava
os teus pensamentos, que se expandia quando te via sorrir e contraía-se
quando uma sombra de

melancolia anuviava o teu semblante.

"Se pronunciavam o teu nome diante de mim, corava e na minha perturbação
julgava que tinham lido esse nome nos meus olhos ou dentro de minh’alma, onde
eu bem sabia que ele estava escrito.

"E, entretanto, nem sequer ainda me tinhas visto; se teus olhos haviam
passado alguma vez por mim, tinha sido em um desses momentos em que a luz
se volta para o íntimo, e se olha, mas não se vê.

"Consolava-me, porém, que algum dia o acaso nos reuniria, e então
não sei o que me dizia que era impossível não me amares.

"O acaso deu-se, mas quando a minha existência já se tinha
completamente transformado.

"Ao sair de um desses bailes, apanhei uma pequena constipação,
de que não fiz caso. Minha mãe teimava que eu estava doente,
e eu achava-me apenas um pouco pálida e sentia às vezes um ligeiro
calafrio, que eu curava, sentando-me ao piano e tocando alguma música
de bravura.

"Um dia, porém, achei-me mais abatida; tinha as mãos e
os lábios ardentes, a respiração era difícil,
e ao menor esforço umedecia-se-me a pele com uma transpiração
que me parecia gelada.

"Atirei-me sobre um sofá e, com a cabeça recostada ao
colo de minha mãe, caí em um letargo que não sei quanto
tempo durou. Lembro-me somente que, no momento mesmo em que ia despertando
dessa sonolência que se apoderara de mim, vi minha mãe, sentada
à cabeceira de meu leito, chorando, e um homem dizia-lhe algumas palavras
de consolo, que eu ouvi como em sonho:

"- Não desespere, minha senhora; a ciência não é
infalível, nem os meus diagnósticos são sentenças
irrevogáveis.

Pode ser que a natureza e as viagens a salvem. Mas é preciso não
perder tempo.

"O homem partiu.

"Não tinha compreendido as suas palavras, às quais não
ligava o menor sentido.

"Passando um instante, ergui tranqüilamente os olhos para minha
mãe, que escondeu o lenço e tragou em silêncio o seu pranto
e os seus soluços.

"- Tu choras, mamãe?

"- Não, minha filha… não… não é nada.

"- Mas tu estás com os olhos cheios de lágrimas!… disse
eu assustada.

"- Ah! sim!… uma notícia triste que me contaram há pouco…
sobre uma pessoa… que tu não conheces.

"- Quem é este senhor que estava aqui?

"- É o Dr. Valadão, que te veio visitar.

"- Então eu estou muito doente, boa mamãe?

"- Não, minha filha, ele assegurou que não tens nada;
é apenas um incômodo nervoso.

"E minha querida mãe, não podendo mais conter as lágrimas
que saltavam dos olhos, fugiu, pretextando uma ordem a dar.

"Então, à medida que a minha inteligência ia saindo
do letargo, comecei a refletir sobre o que se tinha passado.

"Aquele desmaio tão longo, aquelas palavras que eu ouvira ainda
entre as névoas de um sono agitado, as lágrimas de minha mãe
e a sua repentina aflição, o tom condoído com que o médico
lhe falara.

"Um raio de luz esclareceu de repente o meu espírito.

Estava desenganada.

– O poder da ciência, o olhar profundo, seguro, infalível, desse
homem que lê no corpo humano como em um livro aberto, tinha visto no
meu seio um átomo imperceptível.

"E esse átomo era o verme que devia destruir as fontes da vida,
apesar dos meus dezesseis anos, apesar de minha organização,
apesar de minha beleza e dos meus sonhos de felicidade!"

Aqui terminava a primeira folha, que eu acabei de ler entre as lágrimas
que me inundavam as faces e caíam sobre o papel.

Era este o segredo de sua estranha reserva; era a razão por que me
fugia, por que se ocultava, por que ainda na véspera dizia que se tinha
imposto o sacrifício de nunca ser amada por mim.

Que sublime abnegação, minha prima! E, como eu me sentia pequeno
e mesquinho à vista desse amor tão nobre!

Capítulo 7

CONTINUEI a ler :

"Sim, meu amigo!…

"Estava condenada a morrer; estava atacada dessa moléstia fatal
e traiçoeira, cujo dedo descarnado nos toca no meio dos prazeres e
dos risos, nos arrasta ao leito, e do leito ao túmulo, depois de ter
escarnecido da natureza, transfigurando as suas belas criações
em múmias animadas.

"É impossível descrever-te o que se passou então
em mim; foi um desespero mudo e concentrado, mas que me prostrou em uma atonia
profunda; foi uma angústia pungente e cruel.

"As rosas da minha vida apenas se entreabriam e já eram bafejadas
por um hálito infetado; já tinham no seio o germe de morte que
devia fazê-las murchar!

"Meus sonhos de futuro, minhas tão risonhas esperanças,
meu puro amor, que nem sequer ainda tinha colhido o primeiro sorriso, este
horizonte, que há pouco me parecia tão brilhante, tudo isto
era uma visão que ia sumir-se, uma luz que

lampejava prestes a extinguir-se.

"Foi preciso um esforço sobre-humano para esconder de minha mãe
a certeza que eu tinha sobre o meu estado e para gracejar dos seus temores,
que eu chamava imaginários.

"Boa mãe! Desde então só viveu para consagrar-se
exclusivamente à sua filha, para envolvê-la com esse desvelo
e essa proteção que Deus deu ao coração materno,
para abrigar-me com suas preces, sua solicitude e seus carinhos, para lutar
à força de amor e de dedicação contra o destino.

"Logo no dia seguinte fomos para Andaraí, onde ela alugara uma
chácara, e aí, graças a seus cuidados, adquiri tanta
saúde, tanta força, que me julgaria boa se não fosse
a sentença fatal que pesava sobre mim.

"Que tesouro de sentimento e de delicadeza que é um coração
de mãe, meu amigo! Que tato delicado, que sensibilidade apurada, possui
esse amor sublime!

"Nos primeiros dias, quando ainda estava muito abatida e era obrigada
a agasalhar-me, se visses como ela pressentia as rajadas de um vento frio
antes que ele agitasse os renovos dos cedros do jardim, como adivinhava a
menor neblina antes que a primeira gota umedecesse a laje do nosso terraço!

"Fazia tudo por distrair-me; brincava comigo como uma camarada de colégio;
achava prazer nas menores coisas para excitar-me a imitá-la; tornava-se
menina e obrigava-me a ter caprichos.

"Enfim, meu amigo, se fosse a dizer-te tudo, escreveria um livro e esse
livro deves ter lido no coração de tua mãe, porque todas
as mães se parecem.

"Ao cabo de um mês tinha recobrado a saúde para todos,
exceto para mim, que às vezes sentia um quer que seja como uma contração,
que não era dor, mas que me dizia que o mal estava ali, e dormia apenas.

"Foi nesta ocasião que te encontrei no ônibus de Andaraí
; quando entravas, a luz do lampião iluminou-te o rosto e eu te reconheci.

"Faze idéia que emoção sentira quando te sentaste
junto de mim.

"O mais tu sabes; eu te amava e era tão feliz de ter-te ao meu
lado, de apertar a tua mão, que nem me lembrava como te devia parecer
ridícula uma mulher que, sem te conhecer, te permitia tanto.

"Quando nos separamos, arrependi-me do que tinha feito.

"Com que direito ia eu perturbar a tua felicidade, condenar-te a um
amor infeliz e obrigar-te a associar tua vida a uma existência triste,
que talvez não te pudesse dar senão os tormentos de seu longo
martírio?!

"Eu te amava; mas, já que Deus não me tinha concedido
a graça de ser tua companheira neste mundo, não devia ir roubar
ao teu lado e no teu coração o lugar que outra mais feliz, porém
menos dedicada, teria de ocupar.

"Continuei a amar-te, mas impus-me a mim mesma o sacrifício de
nunca ser amada, por ti.

"Vês, meu amigo, que não era egoísta e preferia
a tua à minha felicidade. Tu farias o mesmo, estou certa.

"Aproveitei o mistério do nosso primeiro encontro e esperei que
alguns dias te fizessem esquecer essa aventura e quebrassem o único
e bem frágil laço que te prendia a mim.

"Deus não quis que acontecesse assim; vendo-te só em um
baile, tão triste, tão pensativo, procurando um ser invisível,
uma sombra e querendo descobrir os seus vestígios em algum dos rostos
que passavam diante de ti, senti um prazer imenso.

"Conheci que tu me amavas; e, perdoa, fiquei orgulhosa dessa paixão
ardente, que uma só palavra minha havia criado, desse poder do meu
amor, que, por uma força de atração inexplicável,
tinha-te ligado à minha sombra.

"Não pude resistir.

"Aproximei-me, disse-te uma palavra sem que tivesses tempo de ver-me;
foi essa mesma palavra que resume todo o poema do nosso amor e que, depois
do primeiro encontro, era, como ainda hoje, a minha prece de todas as noites.

"Sempre que me ajoelho diante do meu crucifixo de marfim, depois de
minha oração, ainda com os olhos na cruz e o pensamento em Deus,
chamo a tua imagem para pedir-te que não te esqueças de mim.

"Quando tu te voltaste ao som da minha voz, eu tinha entrado no toilette;
e pouco depois saí desse baile, onde apenas acabava de entrar, tremendo
da minha imprudência, mas alegre e feliz por te ter visto ainda uma
vez.

"Deves agora compreender o que me fizeste sofrer no teatro quando me
dirigias aquela acusação tão injusta, no momento mesmo
em que a Charton cantava a ária da Traviata.

"Não sei como não me traí naquele momento e não
te disse tudo; o teu futuro, porém, era sagrado para mim, e eu não
devia destruí-lo para satisfação de meu amor próprio
ofendido.

"No dia seguinte escrevi-te; e assim, sem me trair, pude ao menos reabilitar-me
na tua estima; doía-me muito que, ainda mesmo não me conhecendo,
tivesses sobre mim uma idéia tão injusta e tão falsa.

"Aqui é preciso dizer-te que no dia seguinte ao do nosso primeiro
encontro, tínhamos voltado à cidade, e eu te via passar todos
os dias diante de minha janela, quando fazias o teu passeio costumado à
Glória.

"Por detrás das cortinas, seguia-te com o olhar, até que
desaparecias no fim da rua, e este prazer, rápido como era, alimentava
o meu amor, habituado a viver de tão pouco.

"Depois da minha carta tu deixaste de passar dois dias, estava eu a
partir para aqui, donde devia voltar unicamente para embarcar no paquete inglês.

"Minha mãe, incansável nos seus desvelos, quer levar-me
à Europa e fazer-me viajar pela Itália, pela Grécia,
por todos os países de um clima doce.

"Ela diz que é para – mostrar-me os grandes modelos de arte e
cultivar o meu espírito, mas eu sei que essa viagem é a sua
única esperança, que não podendo nada contra a minha
enfermidade, quer ao menos disputar-lhe a sua vítima durante mais algum
tempo.

"Julga que fazendo-me viajar, sempre me dará mais alguns dias
de existência, como se estes sobejos de vida valessem alguma coisa para
quem já perdeu a sua mocidade e o seu futuro.

"Quando ia embarcar para aqui, lembrei-me de que talvez não te
visse mais e, diante dessa derradeira provança, sucumbi. Ao menos o
consolo de dizer-te adeus!…

"Era o último!

"Escrevi-te segunda vez; admirava-me da tua demora, mas tinha uma quase
certeza de que havias de vir.

"Não me enganei.

"Vieste, e toda a minha resolução, toda a minha coragem
cedeu, porque, sombra ou mulher, conheci que me amavas como eu te amo.

"O mal estava feito.

"Agora, meu amigo, peço-te por mim, pelo amor que me tens, que
reflitas no que te vou dizer, mas que reflitas com calma e tranqüilidade.

"Para isto parti hoje de Petrópolis, sem prevenir-te, e coloquei
entre nós o espaço de vinte e quatro horas e uma distância
de muitas léguas.

"Desejo que não procedas precipitadamente e que, antes de dizer-me
uma palavra, tenhas medido todo o alcance que ela deve ter sobre o teu futuro.

"Sabes o meu destino, sabes que sou uma vítima, cuja hora está
marcada, e que todo o meu amor, imenso, profundo, não te pode dar talvez
dentro em bem pouco senão o sorriso contraído pela tosse, o
olhar desvairado pela febre e carícias roubadas aos sofrimentos.

"É triste; e não deves imolar assim a tua bela mocidade,
que ainda te reserva tantas venturas e talvez um amor como o que eu te consagro.

"Deixo-te, pois, meu retrato, meus cabelos e minha história;
guarda-os como uma lembrança e pensa algumas vezes em mim: beija esta
folha muda, onde os meus lábios deixaram-te o adeus extremo.

"Entretanto, meu amigo, se, como tu dizias ontem, a felicidade é
amar e sentir-se amado; se te achas com forças de partilhar essa curta
existência, esses poucos dias que me restam a passar sobre a terra,
se me queres dar esse consolo supremo, único que ainda embelezaria
minha vida, vem!

"Sim, vem! iremos pedir ao belo céu da Itália mais alguns
dias de vida para nosso amor; iremos aonde tu quiseres, ou aonde nos levar
a Providência.

"Errantes pelas vastas solidões dos mares ou pelos cimos elevados
das montanhas, longe do mundo, sob o olhar protetor de Deus, à sombra
dos cuidados de nossa mãe, viveremos tanto um como outro, encheremos
de tanta afeição os nossos dias, as nossas horas, os nossos
instantes, que, por curta que seja a minha existência, teremos vivido
por cada minuto séculos de amor e de felicidade.

"Eu espero; mas temo.

"Espero-te como a flor desfalecida espera o raio de sol que deve aquecê-la,
a gota de orvalho que pode animá-la, o hálito da brisa que vem
bafejá-la. Porque para mim o único céu que hoje me sorri,
são teus olhos; o calor que pode me fazer viver, é o do teu
seio.

"Entretanto temo, temo por ti, e quase peço a Deus que te inspire
e te salve de um sacrifício talvez inútil!

"Adeus para sempre, ou até amanhã!"

CARLOTA

Capítulo 8

DEVOREI toda esta carta de um lanço de olhos.

Minha vista corria sobre o papel como o meu pensamento, sem parar, sem hesitar,
poderia até dizer sem respirar.

Quando acabei de ler, só tinha um desejo: era o de ir ajoelhar-me
a seus pés e receber como uma bênção do céu
esse amor sublime e santo.

Como sua mãe, lutaria contra o destino, cercá-la-ia de tanto
afeto e de tanta adoração, tornaria sua vida tão bela
e tão tranqüila, prenderia tanto sua alma à terra, que
lhe seria impossível deixá-la.

Criaria para ela com o meu coração um mundo novo, sem as misérias
e as lágrimas deste mundo em que vivemos; um mundo só de ventura,
onde a dor e o sofrimento não pudessem penetrar.

Pensava que devia haver no universo algum lugar desconhecido, algum canto
de terra ainda puro do hálito do homem, onde a natureza virgem conservaria
o perfume dos primeiros tempos da criação e o contato das mãos
de Deus quando a formara.

Aí era impossível que o ar não desse vida; que o raio
do sol não viesse impregnado de um átomo de fogo celeste; que
a água, as árvores, a terra, cheia de tanta seiva e de tanto
vigor, não inoculassem na criatura essa vitalidade poderosa da natureza
no seu primitivo esplendor.

Iríamos, pois, a uma dessas solidões desconhecidas; o mundo
abria-se diante de nós e eu sentia-me com bastante força e bastante
coragem para levar o meu tesouro além dos mares e das montanhas, até
achar um retiro onde esconder a nossa felicidade.

Nesses desertos, tão vastos, tão extensos, não haveria
sequer vida bastante para duas criaturas que apenas pediam um palmo de terra
e um sopro de ar, a fim de poderem elevar a Deus, como uma prece constante,
o seu amor tão puro?

Ela dava-me vinte e quatro horas para refletir e eu não queria nem
um minuto, nem um segundo.

Que me importavam o meu futuro e a minha existência se eu os sacrificaria
de bom grado para dar-lhe mais um dia de vida?

Todas estas idéias, minha prima, cruzavam-se no meu espirito, rápidas
e confusas, enquanto eu fechava na caixinha de pau-cetim os objetos preciosos
que ela encerrava, copiava na minha carteira a sua morada, escrita no fim
da carta, e atravessava o espaço que me separava da porta do hotel.

Aí encontrei o criado da véspera.

– A que horas parte a barca da Estrela?

– Ao meio-dia.

Eram onze horas; no espaço de uma hora eu faria as quatro léguas
que me separavam daquele porto.

Lancei os olhos em torno de mim com uma espécie de desvario.

Não tinha um trono, como Ricardo III, para oferecer em troca de um
cavalo; mas tinha a realeza do nosso século, tinha dinheiro.

A dois passos da porta do hotel estava um cavalo, que o seu dono tinha pela
rédea.

– Compro-lhe este cavalo, disse eu, caminhando para ele, sem mesmo perder
tempo em cumprimentá-lo.

– Não pretendia vendê-lo, respondeu-me o homem cortesmente;
mas, se o senhor está disposto a dar o preço que ele vale.

– Não questiono sobre o preço; compro-lhe o cavalo arreado
como está.

O sujeito olhou-me admirado; porque, a falar a verdade, os seus arreios nada
valiam.

Quanto a mim, já lhe tinha tomado as rédeas da mão;
e, sentado no selim, esperava que me dissesse quanto tinha de pagar-lhe.

– Não repare, fiz uma aposta e preciso de um cavalo para ganhá-la.

Isto deu-lhe a compreender a singularidade do meu ato e a pressa que eu tinha;
recebeu sorrindo o preço do seu animal e disse, saudando-me com a mão,
de longe, porque já eu dobrava a rua:

– Estimo que ganhe a aposta; o animal é excelente!

Na verdade era uma aposta que eu tinha feito comigo mesmo, ou antes com a
minha razão, a qual me dizia que era impossível apanhar a barca,
e que eu fazia uma extravagância sem necessidade, pois bastava ter paciência
por vinte e quatro horas.

Mas o amor não compreende esses cálculos e esses raciocínios
próprios da fraqueza humana; criado com uma partícula do fogo
divino, ele eleva o homem acima da terra, desprende-o da argila que o envolve
e dá-lhe força para dominar todos os obstáculos, para
querer o impossível.

Esperar tranqüilamente um dia para dizer-lhe que eu a amava e queria
amá-la com todo o culto e admiração que me inspirava
a sua nobre abnegação, me parecia quase uma infâmia.

Seria dizer-lhe que tinha refletido friamente, que tinha pesado todos os
prós e os contras do passo que ia dar, que havia calculado como um
egoísta a felicidade que ela me oferecia.

Não só a minha alma se revoltava contra esta idéia;
mas parecia-me que ela, com a sua extrema delicadeza de sentimento, embora
não se queixasse, sentiria ver-se o objeto de um cálculo e o
alvo de um projeto de futuro.

A minha viagem foi uma corrida louca, desvairada, delirante. Novo Mazzeppa,
passava por entre a cerração da manhã, que cobria os
píncaros da serrania, como uma sombra que fugia rápida e veloz.

Dir-se-ia que alguma rocha colocada em um dos cabeços da montanha
tinha-se despreendido de seu alvéolo secular e, precipitando-se com
todo o peso, rolava surdamente pelas encostas.

O galopar do meu cavalo formava um único som, que ia reboando pelas
grutas e cavernas e confundia-se com o rumor das torrentes.

As árvores, cercadas de névoa, fugiam diante de mim como fantasmas;
o chão desaparecia sob os pés do animal; às vezes parecia-me
que a terra ia faltar-me e que o cavalo e cavaleiro rolavam por algum desses
abismos imensos e profundos, que devem ter servido de túmulos titânicos.

Mas, de repente, entre uma aberta de nevoeiro, eu via a linha azulada do
mar e fechava os olhos e atirava-me sobre o meu cavalo, gritando-lhe ao ouvido
a palavra de Byron: – Away!

Ele parecia entender-me e precipitava essa corrida desesperada; não
galopava, voava; seus pés, como impelidos por quatro molas de aço,
nem tocavam a terra.

Assim, minha prima, devorando o espaço e a distância, foi ele,
o nobre animal, abater-se a alguns passos apenas da praia; a coragem e as
forças só o tinham abandonado com a vida e no termo da viagem.

Em pé, ainda sobre o cadáver desse companheiro leal, via a
coisa de uma milha o vapor que singrava ligeiramente para a cidade.

Aí fiquei, perto de uma hora, seguindo com os olhos essa barca que
a conduzia; e quando o casco desapareceu, olhei os frocos de fumaça
do vapor, que se enovelaram no ar e que o vento desfazia a pouco e pouco.

Por fim, quando tudo desapareceu e que nada me falava dela, olhei ainda o
mar po r onde havia passado e o horizonte que a ocultava aos meus olhos.

O sol dardejava raios de fogo; mas eu nem me importava com o sol; todo o
meu espírito e os meus sentidos se concentravam em um único
pensamento; vê-la, vê-la em uma hora, em um momento, se possível
fosse.

Um velho pescador arrastava nesse momento a sua canoa à praia.

Aproximei-me e disse-lhe :

– Meu amigo, preciso ir à cidade, perdi a barca e desejava que você
me conduzisse na sua canoa.

– Mas se eu agora mesmo é que chego!

– Não importa; pagarei o seu trabalho, também o incômodo
que isto lhe causa.

– Não posso, não, senhor, não é lá pela
paga que eu digo que estou chegando; mas é que passar a noite no mar
sem dormir não é lá das melhores coisas; e estou caindo
de sono.

– Escute, meu amigo…

– Não se canse, senhor; quando eu digo não, é não;
e está dito.

E o velho continuou a arrastar a sua canoa.

– Bem, não falemos mais nisto; mas conversemos.

– Lá isto como o senhor quiser.

– A sua pesca rende-lhe bastante?

– Qual! rende nada!…

– Ora diga-me! Se houvesse um meio de fazer-lhe ganhar em um só dia
o que pode ganhar em um mês, não enjeitaria decerto?

– Isto é coisa que se pergunte?

– Quando mesmo fosse preciso embarcar depois de passar uma noite em claro
no mar?

– Ainda que devesse remar três dias com três noites, sem dormir
nem comer.

– Nesse caso, meu amigo, prepare-se, que vai ganhar o seu mês de pescaria;
leve-me à cidade.

– Ah! isto já é outro falar ; por que não disse logo?…

– Era preciso explicar-me?!

– Bem diz o ditado que é falando que a gente se entende.

– Assim, é negócio decidido. Vamos embarcar?

– Com licença; preciso de um instantinho para prevenir a mulher ;
mas é um passo lá e outro cá.

– Olhe, não se demore ; tenho muita pressa.

– É em um fechar de olhos, disse ele, correndo na direção
da vila.

Mal tinha feito vinte passos, parou, hesitou, e por fim voltou lentamente
pelo mesmo caminho.

Eu tremia; julgava que se tinha arrependido, que vinha apresentar-me alguma
nova dificuldade. Chegou-se para mim de olhos baixos e coçando a cabeça.

– O que temos, meu amigo? perguntei-lhe com uma voz que esforçava
por ter calma.

– É que… o senhor disse que pagava um mês…

– Decerto; e, se duvida, disse, levando a mão ao bolso.

– Não, senhor, Deus me defenda de desconfiar do senhor!

Mas é que… sim, não vê, o mês agora tem menos
um dia que os outros!

Não pude deixar de sorrir-me do temor do velho; nós estivamos
com efeito, no mês de fevereiro.

– Não se importe com isto; está entendido que, quando eu digo
um mês, é um mês de trinta e um dias; os outros são
meses aleijados, e não se contam.

– É isso mesmo, disse o velho, rindo-se da minha idéia; assim
como quem diz, um homem sem um braço. Ah!… ah!…

E, continuando a rir-se, tomou o caminho de casa e desapareceu.

Quanto a mim, estava tão contente com a idéia de chegar à
cidade em algumas horas, que não pude deixar também de rir-me
do caráter original do pescador.

Conto-lhe estas cenas e as outras que se lhe seguiram com todas as suas circunstâncias
por duas razões, minha prima.

A primeira é porque desejo que compreenda bem o drama simples que
me propus traçar-lhe ; a segunda é porque tenho tantas vezes
repassado na memória as menores particularidades dessa história,
tenho ligado de tal maneira o meu pensa-

mento a essas reminiscências, que não me animo a destacar delas
a mais insignificante circunstância; parece-me que se o fizesse, separaria
uma parcela de minha vida.

Depois de duas horas de espera e de impaciência, embarquei nessa casquinha
de noz, que saltou sobre as ondas, impelida pelo braço ainda forte
e ágil do velho pescador.

Antes de partir fiz enterrar o meu pobre cavalo; não podia deixar
assim exposto às aves de rapina o corpo desse nobre animal, que eu
tinha roubado à afeição do seu dono, para imolá-lo
à satisfação de um capricho meu.

Talvez lhe pareça isto uma puerilidade; mas a senhora é mulher,
minha prima, e deve saber que, quando se ama como eu amava, tem-se o coração
tão cheio de afeição, que espalha uma atmosfera de sentimento
em torno de nós e inunda até

os objetos inanimados, quanto mais as criaturas, ainda irracionais, que um
momento se ligaram à nossa existência para realização
de um desejo.

Capítulo 9

ERAM seis horas da tarde.

O sol declinava rapidamente e a noite, descendo do céu, envolvia a
terra nas sombras desmaiadas que acompanhavam o ocaso.

Soprava uma forte viração de sudoeste, que desde o momento
da partida retardava a nossa viagem; lutávamos contra o mar e o vento.

O velho pescador, morto de fadiga e de sono, estava exausto de forças;
a sua pá, que a princípio fazia saltar sobre as ondas como um
peixe o frágil barquinho, apenas feria agora a flor da água.

Eu, recostado na popa, e com os olhos fitos na linha azulada do horizonte,
esperando a cada momento ver desenhar-se o perfil do meu belo Rio de Janeiro,
começava seriamente a inquietar-me na minha extravagância e loucura.

À proporção que declinava o dia e que as sombras cobriam
o céu, esse vago inexprimível da noite no meio das ondas, a
tristeza e melancolia que infunde o sentimento da fraqueza do homem em face
dessa solidão imensa de água e de céu, se apoderavam
do meu espírito.

Pensava então que teria sido mais prudente esperar o dia seguinte
e fazer uma viagem breve e rápida, do que sujeitar-me a mil contratempos
e mil embaraços, que no fim de contas nada adiantavam.

Com efeito já tinha anoitecido; e, ainda que conseguíssemos
chegar à cidade por volta de nove ou dez horas, só no dia seguinte
poderia ver Carlota e falar-lhe.

De que havia servido, pois, todo o meu arrebatamento, toda a minha impaciência?
Tinha morto um animal, tinha incomodado um pobre velho, tinha atirado às
mãos cheias dinheiro, que poderia melhor empregar socorrendo algum
infortúnio e cobrindo esta obra de caridade com o nome e a lembrança
dela.

Concebia uma triste idéia de mim; no meu modo de ver então
as coisas, parecia-me que eu tinha feito do amor, que é uma sublime
paixão, apenas uma estúpida mania; e dizia interiormente que
o homem que não domina os seus sentimentos, é um escravo, que
não tem o menor merecimento quando pratica um ato de dedicação.

Tinha-me tornado filósofo, minha prima, e decerto compreenderá
a razão.

No meio da baía, metido em uma canoa, à mercê do vento
e do mar, não podendo dar largas à minha impaciência de
chegar, não havia senão um modo de sair desta situação,
e este era arrepender-me do que tinha feito.

Se eu pudesse fazer alguma nova loucura, creio piamente que adiaria o arrependimento
para mais tarde, porém era impossível.

Tive um momento a idéia de atirar-me à água e procurar
vencer a nado a distância que me separava dela; mas era noite, não
tinha a luz de Hero para guiar-me, e me perderia nesse novo Helesponto.

Foi decerto uma inspiração do céu ou o meu anjo da guarda
que me veio advertir que naquela ocasião eu nem sabia mesmo de que
lado ficava a cidade.

Resignei-me, pois, e arrependi-me sinceramente.

Dividi com o meu companheiro algumas provisões que tínhamos
trazido; e fizemos uma verdadeira colação de contrabandistas
ou piratas.

Caí na asneira de obrigá-lo a beber uma garrafa de vinho do
Porto, bebendo eu outra para acompanhá-lo e fazer-lhe as honras da
hospitalidade. Julgava que deste modo ele restabeleceria as forças
e chegaríamos mais depressa.

Tinha-me esquecido de que a sabedoria das nações, ou a ciência
dos provérbios, consagra o princípio de que devagar se vai ao
longe.

Acabada a nossa magra colação, o pescador começou a
remar com uma força e um vigor que me reanimaram a esperança.

Assim, docemente embalado pela idéia de vê-la e pelo marulho
das ondas, com os olhos fitos na estrela da tarde, que se ia sumindo no horizonte
e me sorria como para consolar-me, senti a pouco e pouco fecharem-se-me as
pálpebras, e dormi.

Quando acordei, minha prima, o sol derramava seus raios de ouro sobre o manto
azulado das ondas: era dia claro.

Não sei onde estávamos; via ao longe algumas ilhas; o pescador
dormia na proa, e ressonava como um boto.

A canoa tinha vogado à mercê da corrente; e o remo, que caira
naturalmente das mãos do velho, no momento em que ele cedera à
força invencível do sono, tinha desaparecido.

Estávamos no meio da baía, sem poder dar um passo, sem poder
mover-nos.

Aposto, minha prima, que a senhora acaba de dar uma risada, pensando na cômica
posição em que me achava; mas seria uma injustiça zombar
de uma dor profunda, de uma angústia cruel como a que sofri então.

Os instantes, as horas, corriam de decepção em decepção;
alguns barcos que passaram perto, apesar dos nossos gritos, seguiram o seu
caminho, não podendo supor que com o tempo calmo e sereno que fazia,
houvesse sombra de perigo para uma canoa que boiava tão levemente sobre
as ondas.

O velho, que tinha acordado, nem se desculpava; mas a sua aflição
era tão grande que quase me comoveu; o pobre homem arrancava os cabelos
e mordia os beiços de raiva.

As horas correram assim nessa atonia do desespero. Sentidos em face um do
outro, talvez culpando-nos mutuamente do que sucedia, não proferíamos
uma palavra, não fazíamos um gesto.

Por fim veio a noite. Não sei como não fiquei louco, lembrando-me
de que estávamos a 18, e que o paquete devia partir no dia seguinte.

Não era unicamente a idéia de uma ausência que me afligia;
era também a lembrança do mal que ia causar-lhe, a ela, que,
ignorando o que se passava, me julgaria egoísta, suporia que a havia
abandonado e que ficara em Petrópolis, divertindo-me.

Aterrava-me com as conseqüências que poderia ter esse fato sobre
a sua saúde tão frágil, sobre a sua vida, e me condenava
já como assassino.

Lancei um olhar alucinado sobre o pescador e tive ímpetos de abraçá-lo
e atirar-me com ele ao mar.

Oh! como sentia então o nada do homem e a fraqueza da nossa raça,
tão orgulhosa de sua superioridade e do seu poder!

De que me serviam a inteligência, a vontade e essa força invencível
do amor, que me impelia e me dava coragem para arrostar vinte vezes a morte?

Algumas braças d’água e uma pequena distância me retinham
e me encadeavam naquele lugar como a um poste; a falta de um remo, isto é,
de três palmos de madeira, criava para mim o impossível; um círculo
de ferro me cingia, e para quebrar essa prisão, contra a qual toda
a minha razão era impotente, bastava-me que fosse um ente irracional.

A gaivota, que frisava as ondas com a ponta de suas asas brancas; o peixe,
que fazia cintilar um momento seu dorso de escamas à luz das estrelas;
o inseto, que vivia no seio das águas e plantas marinhas, eram reis
dessa solidão, na qual o homem não podia sequer dar um passo.

Assim, blasfemando contra Deus e sua obra, sem saber o que fazia nem o que
pensava, entreguei-me à Providência; embrulhei-me no meu capote,
deitei-me e fechei os olhos, para não ver a noite adiantar-se, as estrelas
empalidecerem e o dia raiar.

Tudo estava sereno e tranqüilo; as águas nem se moviam ; apenas
sobre a face lisa do mar passava, uma aragem tênue, que se diria hálito
das ondas adormecidas.

De repente, pareceu-me sentir que a canoa deixara de boiar à discrição
e singrava lentamente; julgando que fosse ilusão minha, não
me importei, até que um movimento contínuo e regular convenceu-me.

Afastei a aba do capote e olhei, receando ainda iludir-me; não vi
o pescador; mas a alguns passos da proa percebi os rolos de espuma que formavam
um corpo, agitando-se nas ondas.

Aproximei-me e distingui o velho pescador, que nadava, puxando a canoa por
meio de uma corda que amarrara à cintura, para deixar-lhe os movimentos
livres.

Admirei essa dedicação do pobre velho, que procurava remediar
a sua falta por um sacrifício que eu supunha inútil: não
era possível que um homem nadasse assim por muito tempo.

Com efeito, passados alguns instantes, vi-o parar e saltar ligeiramente na
canoa como temendo acordar-me; a sua respiração fazia uma espécie
de burburinho no seu peito largo e forte,

Bebeu um trago de vinho e com o mesmo cuidado deixou-se cair n’água
e continuou a puxar a canoa.

Era alta noite quando nesta marcha chegamos a uma espécie de praia,
que teria quando muito duas braças. O velho saltou e desapareceu.

Fitando a vista nas trevas, vi uma claridade, que não pude distinguir
se era fogo, se luz, senão quando uma porta, abrindo-se, deixou-me
ver o interior de uma cabana.

O velho voltou com um outro homem, sentaram-se sobre uma pedra e começaram
a falar em voz baixa. Senti uma grande inquietação; na verdade,
minha prima, só me faltava, para completar a minha aventura, uma história
de ladrões.

A minha suspeita, porém, era injusta; os dois pescadores estavam à
espera de dois remos que lhes trouxe uma mulher, e imediatamente embarcaram
e começaram a remar com uma força espantosa.

A canoa resvalou sobre as ondas, ágil e veloz como um desses peixes
de que havia pouco invejava a rapidez.

Ergui-me para agradecer a Deus, ao céu, às estrelas, às
águas, a toda a natureza enfim, o raio de esperança que me enviavam.

Uma faixa escarlate já se desenhava no horizonte; o oriente foi-se
esclarecendo de gradação em gradação, até
que deixou ver o disco luminoso do sol.

A cidade começou a erguer-se do seio das ondas, linda e graciosa,
como uma donzela que, recostada sobre um monte de relva, banhasse os pés
na corrente límpida de um rio.

A cada movimento de impaciência que eu fazia, os dois pescadores dobravam-se
sobre os remos e a canoa voava. Assim nos aproximamos da cidade, passamos
entre os navios, e nos dirigimos à Glória, onde pretendia desembarcar,
para ficar mais próximo de sua casa.

Em um segundo tinha tomado a minha resolução; chegar, vê-la,
dizer-lhe que a seguia, e embarcar-me nesse mesmo paquete em que ela ia partir.

Não sabia que horas eram; mas há pouco havia amanhecido; tinha
tempo para tudo, tanto mais que eu só precisava de uma hora. Um crédito
sobre Londres e a minha mala de viagem eram todos os meus preparativos; podia
acompanhá-la ao fim do mundo.

Já via tudo cor-de-rosa, sorria à minha ventura e gozava da
alegre surpresa que ia causar-lhe, a ela que já não me esperava.

A surpresa, porém, foi minha.

Quando passava diante de Villegaignon, descobri de repente o paquete inglês
: as pás se moviam indolentemente e imprimiam ao navio essa marcha
vagarosa do vapor, que parece experimentar as suas forças, para precipitar-se
a toda a carreira.

Carlota estava sentada sob a tolda, com a cabeça encostada ao ombro
de sua mãe e com os olhos engolfados no horizonte, que ocultava o lugar
onde tínhamos passado a primeira e última hora de felicidade.

Quando me viu, fez um movimento como se quisesse lançar-se para mim;
mas conteve-se, sorriu-se para sua mãe, e, cruzando as mãos
no peito, ergueu os olhos ao céu, como para agradecer a Deus, ou para
dirigir-lhe uma prece.

Trocamos um longo olhar, um desses olhares que levam toda a nossa alma e
a trazem ainda palpitante das emoções que sentiu noutro coração;
uma dessas correntes elétricas que ligam duas vidas em um só
fio.

O vapor soltou um gemido surdo; as rodas fenderam as águas; e o monstro
marinho, rugindo corno uma cratera, vomitando fumo e devorando o espaço
com os seus flancos negros, lançou-se.

Por muito tempo ainda vi o seu lenço branco agitar-se ao longe, como
as asas brancas do meu amor, que fugia e voava ao céu.

O paquete sumiu-se no horizonte.

Capítulo 10

O resto desta história, minha prima, a senhora conhece , com exceção
de algumas particularidades.

Vivi um mês, contando os dias, as horas e os minutos; e tempo corria
vagarosamente para mim, que desejava poder devorá-lo.

Quando tinha durante uma manhã inteira olhado o seu retrato, conversado
com ele, e lhe contado a minha impaciência e o meu sofrimento, começava
a calcular as horas que faltavam para acabar o dia, os dias que faltavam para
acabar a semana e as semanas que ainda faltavam para acabar o mês.

No meio da tristeza que me causara a sua ausência, o que me deu um
grande consolo foi uma carta que ela me havia deixado e que me foi entregue
no dia seguinte ao da sua partida.

"Bem vês, meu amigo, dizia-me ela, que Deus não quer aceitar
o teu sacrifício. Apesar de todo o teu amor, apesar de tua alma, ele
impediu a nossa união; poupou-te um sofrimento e a mim talvez um remorso.

"Sei tudo quanto fizeste por minha causa e adivinho o resto; parto triste
por não te ver, mas bem feliz por sentir-me amada, como nenhuma mulher
talvez o seja neste mundo."

Esta carta tinha sido escrita na véspera da saída do paquete;
um criado que viera de Petrópolis e a quem ela incumbira de entregar-me
a caixinha com o seu retrato, contou-lhe metade das extravagâncias que
eu praticara para chegar à cidade no mesmo dia.

Disse-lhe que me tinha visto partir para a Estrela, depois de perguntar a
hora da saída do vapor; e que embaixo da serra referiram-lhe como eu
tinha morto um cavalo para alcançar a barca e como me embarcara em
uma canoa.

Não me vendo chegar, ela adivinhara que alguma dificuldade invencível
me retinha, e atribuía isto à vontade de Deus, que não
consentia no meu amor.

Entretanto, lendo e relendo a sua carta, uma coisa me admirou; ela não
me dizia um adeus, apesar de sua ausência e apesar da moléstia,
que podia tornar essa ausência eterna.

Tinha-me adivinhado! Ao mesmo tempo que fazia por me dissuadir, estava convencida
de que a acompanharia.

Com efeito parti no paquete seguinte para a Europa.

Há de ter ouvido falar, minha prima, se é que ainda não

o sentiu, da força dos pressentimentos do amor, ou da segunda vista
que tem a alma nas suas grandes afeições.

Vou contar-lhe uma circunstância que confirma este fato.

No primeiro lugar onde desembarquei, não sei que instinto, que revelação,
me fez correr imediatamente ao correio; parecia-me impossível que ela
não tivesse deixado alguma lembrança para mim.

E de fato em todos os portos da escala do vapor havia, uma carta que continha
duas palavras apenas:

"Sei que tu me segues. Até logo."

Enfim cheguei à Europa e vi-a. Todas as minhas loucuras e os meus
sofrimentos foram compensados pelo sorriso de inexprimível gozo com
que me acolheu.

Sua mãe dizia-lhe que eu ficaria no Rio de Janeiro, mas ela nunca
duvidara de mim! Esperava-me como se a tivesse deixado na véspera,
prometendo voltar.

Encontrei-a muito abatida da viagem; não sofria, mas estava pálida
e branca como uma dessas Madonas de Rafael, que vi depois em Roma.

Às vezes uma languidez invencível a prostrava; nesses momentos
um quer que seja de celeste e vaporoso a cercava, como se a alma exalando-se
envolvesse o seu corpo.

Sentado ao seu lado, ou de joelhos a seus pés, passava os dias a contemplar
essa agonia lenta; sentia-me morrer gradualmente, à semelhança
de um homem que vê os últimos clarões da luz que vai extinguir-se
e deixá-lo nas trevas.

Uma tarde em que ela estava ainda mais fraca, tínhamo-nos chegado
para a varanda.

A nossa casa em Nápoles dava sobre o mar; o sol, transmontando, escondia-se
nas ondas; um raio pálido e descorado veio enfiar-se pela nossa janela
e brincar sobre o rosto de Carlota, sentada ou antes deitada em uma conversadeira.

Ela abriu os olhos um momento e quis sorrir ; seus lábios nem tinham
força para desfolhar o sorriso.

As lágrimas saltaram-me dos olhos; havia muito que eu tinha perdido
a fé, mas conservava ainda a esperança; esta desvaneceu-se com
aquele reflexo do ocaso, que me parecia o seu adeus à vida.

Sentindo as minhas lágrimas molharem as suas mãos, que eu beijava,
ela voltou-se e fixou-me com os seus grandes olhos lânguidos.

Depois, fazendo um esforço, reclinou-se para mim e apoiou as mãos
sobre o meu ombro.

– Meu amigo, disse ela com voz débil, vou pedir-te uma coisa, a última;
tu me prometes cumprir?

– Juro, respondi-lhe eu, com a voz cortada pelos soluços.

– Daqui a bem pouco tempo… daqui a algumas horas talvez… Sim! sinto faltar-me
o ar!…

– Carlota!…

– Sofres, meu amigo! Ah! se não fosse isto eu morreria feliz.

– Não fales em morrer!

– Pobre amigo, em que deverei falar então? Na vida?…

Mas não vês que a minha vida é apenas um sopro… um
instante que breve terá passado?

– Tu te iludes, minha Carlota.

Ela sorriu tristemente.

– Escuta; quando sentires a minha mão gelada, quando as palpitações
do meu coração cessarem, prometes receber nos lábios
a minha alma?

– Meu Deus!…

– Prometes? sim?…

– Sim.

Ela tornou-se lívida; sua voz suspirou apenas:

– Agora!

Apertei-a ao peito e colei os meus lábios aos seus. Era o primeiro
beijo de nosso amor, beijo casto e puro, que a morte ia santificar.

Sua fronte se tinha gelado, não sentia a sua respiração
nem as pulsações de seu seio.

De repente ela ergueu a cabeça. Se visse, minha prima, que reflexo
de felicidade e alegria iluminava nesse momento o seu rosto pálido!

– Oh! quero viver! exclamou ela.

E com os lábios entreabertos aspirou com delícia a aura impregnada
de perfumes que nos enviava o golfo de Ischia.

Desde esse dia foi pouco a pouco restabelecendo-se, ganhando as forças
e a saúde; sua beleza. reanimava-se e expandia-se como um botão
que por muito tempo privado de sol, se abre em flor viçosa.

Esse milagre, que ela, sorrindo e corando, atribuía ao meu amor, foi-nos
um dia explicado bem prosaicamente por um médico alemão que
nos fez uma longa dissertação a respeito da medicina.

Segundo ele dizia, a viagem tinha sido o único remédio e o
que nós tomávamos por um estado mortal não era senão
a crise que se operava, crise perigosa, que podia matá-la, mas que
felizmente a salvou.

Casamo-nos em Florença na igreja de Santa Maria Novella.

Percorremos a Alemanha, a França, a Itália e a Grécia;
passamos um ano nessa vida errante e nômade, vivendo do nosso amor e
alimentando-nos de música, de recordações históricas,
de contemplações de arte.

Criamos assim um pequeno mundo, unicamente nosso; depositamos nele todas
as belas reminiscências de nossas viagens, toda a poesia dessas ruínas
seculares em que as gerações que morreram, falam ao futuro pela
voz do silêncio; todo o enlevo

dessas vastas e imensas solidões do mar, em que a alma, dilatando-se
no infinito, sente-se mais perto de Deus.

Trouxemos das nossas peregrinações um raio de sol do Oriente,
um reflexo de lua de Nápoles, uma nesga do céu da Grécia,
algumas flores, alguns perfumes, e com isto enchemos o nosso pequeno universo.

Depois, como as andorinhas que voltam com a primavera para fabricar o seu
ninho no campanário da capelinha em que nasceram, apenas ela recobrou
a saúde e as suas belas cores, viemos procurar em nossa terra um cantinho
para esconder

esse mundo que havíamos criado.

Achamos na quebrada de uma montanha um lindo retiro, um verdadeiro berço
de relva suspenso entre o céu e a terra por uma ponta de rochedo.

Aí abrigamos o nosso amor e vivemos tão felizes que só
pedimos a Deus que nos conserve o que nos deu; a nossa existência é
um longo dia, calmo e tranqüilo, que começou ontem, mas que não
tem amanhã.

Uma linda casa, toda alva e louçã, um pequeno rio saltitando
entre as pedras, algumas braças de terra, sol, ar puro, árvores,
sombras, …eis toda a nossa riqueza.

Quando nos sentimos fatigados de tanta felicidade, ela arvora-se em dona
de casa ou vai cuidar de suas flores; eu fecho-me com os meus livros e passo
o dia a trabalhar. São os únicos momentos em que não
nos vemos.

Assim, minha prima, como parece que neste mundo não pode haver um
amor sem o seu receio e a sua inquietação, nós não
estamos isentos dessa fraqueza.

Ela tem ciúmes de meus livros, como eu tenho de suas flores. Ela diz
que a esqueço para trabalhar; eu queixo-me de que ela ama as suas violetas
mais do que a mim.

Isto dura quando muito um dia; depois vem sentar-se ao meu lado e dizer-me
ao ouvido a primeira palavra que balbuciou o nosso amor: – Non ti scordar
di me.

Olhamo-nos, sorrimos e recomeçamos esta história que lhe acabo
de contar e que é ao mesmo tempo o nosso romance, o nosso drama e o
nosso poema.

Eis, minha prima, a resposta à sua pergunta; eis por que esse moço
elegante, como teve a bondade de chamar-me, fez-se provinciano e retirou-se
da sociedade, depois de ter passado um ano na Europa.

Podia dar-lhe outra resposta mais breve e dizer-lhe simplesmente que tudo
isto sucedeu porque me atrasei cinco minutos.

Desta pequena causa, desse grão de areia, nasceu a minha felicidade;
dele podia resultar a minha desgraça. Se tivesse sido pontual como
um inglês, não teria tido uma paixão nem feito uma viagem;
mas ainda hoje estaria perdendo o meu

tempo a passear pela rua do Ouvidor e a ouvir falar de política e
teatro.

Isto prova que a pontualidade é uma excelente virtude para uma máquina;
mas um grave defeito para um homem.

Adeus, minha prima. Carlota impacienta-se, porque há muitas horas
que lhe escrevo; não quero que ela tenha ciúmes desta carta
e que me prive de enviá-la.

Minas, 12 de agosto.

Abaixo da assinatura havia um pequeno post-scriptum de uma letra fina e delicada
:

"P. S. – Tudo isto é verdade, D…, menos uma coisa.

"Ele não tem ciúmes de minhas flores, nem podia ter, porque
sabe que só quando seus olhos não me procuram é que vou
visitá-las e pedir-lhes que me ensinem a fazer-me bela para agradá-lo.

"Nisto enganou-a ; mas eu vingo-me, roubando-lhe um dos meus beijos,
que lhe envio nesta carta.

"Não o deixe fugir, prima; iria talvez revelar a nossa felicidade
ao mundo invejoso."

Veja também

John Locke

PUBLICIDADE John Locke, nascido em Wrington (Inglaterra), estudou em Oxford. Em 1688, fora nomeado membro …

Gugu Liberato

PUBLICIDADE Antonio Augusto Liberato de Moraes, muito conhecido por” Gugu”, foi um importante apresentador de …

Friedrich Nietzsche

Friedrich Nietzsche

PUBLICIDADE Quem foi Friedrich Nietzsche? O filósofo alemão influente Friedrich Nietzsche (1844-1900) é conhecido por seus …

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site é protegido por reCAPTCHA e pelo Googlepolítica de Privacidade eTermos de serviço aplicar.