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Crianças ladronas
As aventuras sinistras dos “Capitães da Areia” – A cidade infestada por crianças
que vivem do furto – urge uma providência do Juiz de Menores e do chefe de
polícia – ontem houve mais um assalto.
Já por várias vezes o nosso jornal, que é sem dúvida o órgão das mais legítimas
aspirações da população baiana, tem trazido noticias sobre a atividade criminosa
dos “Capitães da Areia”, nome pelo qual é conhecido o grupo de meninos assaltantes
e ladrões que infestam a nossa urbe. Essas crianças que tão cedo se dedicaram
à tenebrosa carreira do crime não têm moradia certa ou pelo menos a sua moradia
ainda não foi localizada. Como também ainda não foi localizado o local onde
escondem o produto dos seus assaltos, que se tornam diários, fazendo Jus a
unia Imediata providência do Juiz de Menores e do dr. Chefe de Polícia.
Esse bando que vive da rapina se compõe, pelo que se sabe, de uni número
superior a 100 crianças das mais diversas idades, indo desde os8 aos 16 anos.
Crianças que, naturalmente devido ao desprezo dado à sua educação por pais
pouco servidos de sentimentos cristãos, se entregaram no verdor dos anos a
uma vida criminosa.
São chamados de “Capitães da Areia” porque o cais é o seu quartel-general.
E têm por comandante um mascote dos seus 14 anos, que é o mais terrível de
todos, não só ladrão, como já autor de um crime de ferimentos graves, praticado
na tarde de ontem. Infelizmente a Identidade deste chefe é desconhecida.
O que se faz necessário é unia urgente providência da policia e do juizado
de menores no sentido da extinção desse bando e para que recolham esses precoces
criminosos, que já não deixam a cidade dormir em paz o seu sono tão merecido,
aos Institutos de reforma de crianças ou às prisões. Passemos agora a relatar
o assalto de ontem, do qual foi vítima um honrado comerciante da nossa praça,
que teve sua residência furtada em mais de um conto de réis e um seu empregado
ferido pelo desalmado chefe dessa malta de jovens bandidos.
Na residência do comendador Jose Ferreira
No Corredor da Vitória, coração do mais chique bairro da cidade, se eleva
a bela vivenda do Comendador José Ferreira, dos mais abastados e acreditados
negociantes desta praga, com loja de fazendas na rua Portugal. É um gosto
ver o palacete do comendador, cercado de jardins, na sua arquitetura colonial.
Pois ontem esse remanso de paz e trabalho honesto passou uma hora de indescritível
agitação e susto com a invasão que sofreu por parte dos “Capitães da Areia”.
Os relógios badalavam as três horas da tarde e a cidade abafava de calor
quando o jardineiro notou que algumas crianças vestidas de molambos rondavam
o jardim da residência do comendador. O jardineiro tratou de afastar da frente
da casa aqueles incômodos visitantes. E, como eles continuassem o seu caminho,
descendo a rua, Ramiro, o jardineiro, volveu ao seu trabalho nos jardins do
fiando do palacete. Minutos depois, porém, era o Assalto.
Não tinham passado ainda cinco minutos quando o jardineiro Ramiro ouviu gritos
assustados vindos do interior da residência. Eram gritos de pessoas terrivelmente
assustadas. Armando-se de uma foice o jardineiro penetrou na casa e mal teve
tempo de ver vários moleques que, como um bando de demônios (na expressão
curiosa de Ramiro), fugiam saltando as janelas, carregados com objetos de
valor da sala de jantar. A empregada que havia gritado estava cuidando da
senhora do comendador, que tivera um ligeiro desmaio em virtude do susto que
passara. O Jardineiro dirigiu-se às pressas para o jardim, onde teve lugar
a Aconteceu que no jardim a linda criança que é Raul Ferreira, de 11 anos,
neto do comendador, que se achava de visita aos avós, conversava com o chefe
dos “Capitães da Areia”, que é reconhecível devido a um talho que tem no rosto.
Na sua inocência, Raul ria para o malvado, que sem dúvida pensava em furtá-lo.
O jardineiro se atirou então em cima do ladrão. Não esperava, porém, pela
reação do moleque, que se revelou um mestre nestas brigas. E o resultado é
que, quando pensava ter seguro o chefe da malta, o jardineiro recebeu uma
punhalada no ombro e logo em seguida outra no braço, sendo obrigado a largar
o criminoso, que fugiu.
A polícia tomou conhecimento do fato, mas até o momento que escrevemos a
presente nota nenhum rastro dos “Capitães da Areia” foi encontrado. O Comendador
José Ferreira, ouvido pela nossa reportagem, avalia o seu prejuízo em mais
de uni conto de réis, pois só o pequeno relógio de sua esposa estava avaliado
em 900$ e foi furtado.
Urge uma providência
Os moradores do aristocrático bairro estão alarmados e receosos de que os
assaltos se sucedam, pois este não é o primeiro levado a efeito pelos “Capitães
da Areia”.
Urge uma providência que traga para semelhantes malandros um justo castigo
e o sossego para as nossas mais distintas famílias. Esperamos que o ilustre
Chefe de Polícia e o não menos ilustre dr. Juiz de Menores saberão tomar as
devidas providências contra esses criminosos tão Jovens e já tão ousados.
A opinião da inocência
A nossa reportagem ouviu também o pequeno Raul, que, como dissemos, tem onze
anos e já é dos ginasianos mais aplicados do Colégio Antônio Vieira. Raul
mostrava uma grande coragem, e nos disse acerca da sua conversa com o terrível
chefe dos “Capitães da Areia”.
— Ele disse que eu era um tolo e não sabia o que era brincar. Eu respondi
que tinha uma bicicleta e muito brinquedo. Ele riu e disse que tinha a rua
e o cais. Fiquei gostando dele, parece um desses meninos de cinema que fogem
de casa para passar aventuras.
Ficamos então a pensar neste outro delicado problema para a infância que
é o cinema, que tanta idéia errada infunde às crianças acerca da vida. Outro
problema que está merecendo a atenção do dr. Juiz de Maiores. A ele volveremos.
Carta do Secretário do Chefe de polícia à
Redação do Jornal da Tarde
Sr. Diretor do Jornal da Tarda
Cordiais saudações.
Tendo chegado ao conhecimento do dr. Chefe de Polícia a local publicada ontem
na segunda edição desse jornal sobre as atividades dos “Capitães da Areia”,
bando de crianças delinqüentes, e o assalto levado a efeito por este mesmo
bando na residência do comendador José Ferreira, o dr. Chefe de Polícia se
apressa a comunicar à direção deste jornal que a solução do problema compete
antes ao juiz de maiores que à policia. A polícia neste caso deve agir em
obediência a um pedido do dr.
Juiz de Menores. Mas que, no entanto, vai tomar sérias providências para
que semelhantes atentados não se repitam e para que os autores do de anteontem
sejam presos para sofrerem o castigo merecido.
Pelo exposto fica claramente provado que a polícia não merece nenhuma crítica
pela sua atitude em face desse problema. Não tem agido com maior eficiência
porque não foi solicitada pelo juiz de menores.
Cordiais saudações.
Secretário do Chefe de Policia.
Folheando, num dos raros momentos de lazer que me deixam as múltiplas e variadas
preocupações do meu espinhoso cargo, o vosso brilhante vespertino, tomei conhecimento
de unia epístola do Infatigável doutor Chefe de Polícia do Estado, na qual
dizia dos motivos por que a Polícia não pudera até a data presente intensificar
a meritória campanha contra os menores delinqüentes que infestam a nossa urbe.
Justifica-se o doutor Chefe de Polícia declarando que não possuía ordens do
juizado de menores no sentido de agir contra a delinqüência infantil. Sem
querer absolutamente culpar a brilhante e infatigável Chefia de Polícia, sou
obrigado, a bem da verdade (essa mesma verdade que tenho colocado como o farol
que ilumina a estrada da minha vida com a sua luz puríssima), a declarar que
a desculpa não procede. Não procede, sr.
Diretor, porque ao juizado de menores não compete perseguir e prender os
menores delinqüentes e, sim, designar o local onde devem cumprir pena, nomear
curador para acompanhar qualquer processo conta eles instaurado, etc. Não
cabe ao juizado de menores capturar os pequenos delinqüentes. Cabe velar pelo
seu destino posterior.
E o sr. doutor Chefe de Polícia sempre há de me encontrar onde o dever me
chama, porque jamais, em 50 anos de vida impoluta, deixei de cumpri-lo.
Ainda nestes últimos meses que decorreram mandei para o Reformatório de Menores
vários menores delinqüentes ou abandonados. Não tenho culpa, porém, de que
fujam, que não se impressionem com o exemplo de trabalho que encontram naquele
estabelecimento de educação e que, por meio da fuga, abandonem um ambiente
onde se respiram paz e trabalho e onde são tratados com o maior carinho. Fogem
e se tornam ainda mais perversos, como se o exemplo que houvessem recebido
fosse mau e daninho.
Por quê? Isso é um problema que aos psicólogos cabe resolver e não a mim,
simples curioso da filosofia.
O que quero deixar claro e cristalino, sr. Diretor, é que o doutor Chefe
de Polícia pode contar com a melhor ajuda deste juizado de menores para intensificar
a campanha contra os menores delinqüentes.
De V. Exa., admirador e patrício grato, Juiz de Menores.
Desculpe os erros e a letra pois não sou costumeira nestas coisas de escrever
e se hoje venho a vossa presença é para botar os pontos nos ii. Vi no jornal
uma notícia sobre os furtos dos “Capitães da Areia” e logo depois veio a polícia
e disse que ia perseguir eles e então o doutor dos menores veio com uma conversa
dizendo que era uma pena que eles não se emendavam no reformatório para onde
ele mandava os pobres. É pra falar no tal do reformatório que eu escrevo estas
mal traçadas linhas. Eu queria que seu jornal mandasse uma pessoa ver o tal
do reformatório para ver como são tratados os filhos dos pobres que têm a
desgraça de cair nas mãos daqueles guardas sem alma.
Meu filho Alonso teve lá seis meses e se eu não arranjasse tirar ele daquele
inferno em vida, não sei se o desgraçado viveria mais seis meses. O menos
que acontece pros filhos da gente é apanhar duas e três vezes por dia. O diretor
de lá vive caindo de bêbedo e gosta de ver o chicote cantar nas costas dos
filhos dos pobres.
Eu vi isso muitas vezes porque eles não ligam pra gente e diziam que era
para dar exemplo. Foi por isso que tirei meu filho de lá. Se o jornal do senhor
mandar uma pessoa lá, secreta, há de ver que comida eles comem, o trabalho
de escravo que têm, que nem um homem forte agüenta, e as surras que tomam.
Mas é preciso que vá secreto senão se eles souberem vira um céu aberto.
Vá de repente e há de ver quem tem razão.E por essas e outras que existem
os “Capitães da Areia”. Eu prefiro ver meu filho no meio deles que no tal
reformatório. Se o senhor quiser ver unia coisa de cortar o coração vá lá.
Também se quiser pode conversar com o Padre José Pedro, que foi capelão de
lá e viu tudo isso. Ele também pode contar e com melhores palavras que eu
não tenho.
Maria Ricardina, costureira.
Carta do Padre Jose Pedro à Redação do jornal da Tarde
Sr. Redator do Jornal da Tarde. Saudações em Cristo.
Tendo lido, no vosso conceituado jornal, a carta de Maria Ricardina que apelava
para mim como pessoa que podia esclarecer o que é a vida das crianças recolhidas
ao reformatório de menores, sou obrigado a sair da obscuridade em que vivo
para vir vos dizer que infelizmente Maria Ricardina tem razão. As crianças
no aludido reformatório são tratadas como feras, essa é a verdade. Esqueceram
a lição do suave Mestre, sr. Redator, e em vez de conquistarem as crianças
com bons tratos, fazem-nas mais revoltadas ainda com espancamentos seguidos
e castigos físicos verdadeiramente desumanos. Eu tenho ido lá levar às crianças
o consolo da religião e as encontro pouco dispostas a aceitá-lo devido naturalmente
ao ódio que estão acumulando naqueles jovens corações tão dignos de piedade.
O que tenho visto, sr. Redator, daria um volume.
Muito grato pela atenção. Servo em Cristo, Padre José Pedro (Carta publicada
na terceira página do Jornal da Tarde, sob o título Será Verdade? e sem comentários.)
Carta do Diretor do Reformatório à Redação do Jornal Da Tarde
Exmo. Sr. Diretor do Jornal da Tarde. Saudações.
Tenho acompanhado com grande interesse a campanha que o brilhante órgão
da imprensa baiana, que com tão rútila inteligência dirigis,
tem feito contra os crimes apavorantes dos “Capitães da areia”,
bando de delinqüentes que amedronta a cidade e Impede que ela viva sossegadamente.
Foi assim que li duas cartas de acusações contra o estabelecimento
que dirijo e que a modéstia (e somente a modéstia, sr. Diretor)
me impede que chame de modelar.
Quanto à carta de uma mulherzinha do povo, não me preocupei
com ela, não merecia a minha resposta. Sem dúvida é uma
das multas que aqui vêm e querem impedir que o Reformatório cumpra
a sua santa missão de educar os seus filhos. Elas os criam na rua,
na pândega, e como eles aqui são submetidos a uma vida exemplar,
elas são as primeiras a reclamar, quando deviam beijar as mãos
daqueles que estão fazendo dos seus filhos homens de bem. Primeiro
vêm pedir lugar para os filhos.
Depois sentem falta deles, do produto dos furtos que eles levam para casa,
e então saem a reclamar contra o Reformatório. Mas, como já
disse, sr. Diretor, esta carta não me preocupou.
Não é uma mulherzinha do povo quem há de compreender
a obra que estou realizando à frente deste estabelecimento.
O que me abismou, sr. Diretor, foi a carta do Padre José Pedro. Este
sacerdote, esquecendo as funções do seu cargo, velo lançar
contra o estabelecimento que dirijo graves acusações. Esse padre
(que eu chamarei padre do demônio, se me permitis uma pequena ironia,
sr. Diretor) abusou das suas funções para penetrar no nosso
estabelecimento de educação em horas proibidas pelo regulamento
e contra ele eu tenho de formular uma séria queixa: ele tem incentivado
os menores que o Estado colocou a meu cargo à revolta, à desobediência.
Desde que ele penetrou os umbrais desta casa que os casos de rebeldia e contravenções
aos regulamentos aumentaram.
O tal padre é apenas um instigador do mau caráter geral dos
menores sob a minha guarda. E por isso vou fechar-lhe as portas desta casa
de educação.
Porém, sr. Diretor, fazendo minhas as palavras da costureira que
escreveu a este jornal, sou eu quem vem vos pedir que envieis um redator ao
Reformatório. Disso faço questão. Assim podereis, e o
público também, ter ciência exata e fé verdadeira
sobre a maneira como são tratados os menores que se regeneram no Reformatório
Baiano de Menores Delinqüentes e Abandonados. Espero o vosso redator
na segunda-feira. E se não digo que ele venha no dia que quiser é
que estas visitas devem ser feitas nos dias permitidos pelo regulamento e
é meu costume nunca me afastar do regulamento. Este é o motivo
único por que convido o vosso redator para segunda-feira.
Pelo que vos fico imensamente grato, como pela publicação
desta. Assim ficará confundido o falso vigário de Cristo.
Criado agradecido e admirador atento, Diretor do Reformatório Baiano
de Menores Delinqüentes e Abandonados (Publicada na 3º página
do Jornal da Tarde com um clichê do reformatório e uma notícia
adiantando que na próxima segunda-feira irá um redator do Jornal
da Tarde ao reformatório.) Um Estabelecimento Modelar onde Reinam a
Paz e o Tratado – um Diretor que é um Amigo – ótima comida –
crianças ladronas em Caminho da Regeneração – Acusações
Improcedentes – só um Incorrigível reclama – o Reformatório
Baiano é uma grande Família – onde deviam estar os Capitães
da Areia.
(Títulos da reportagem publicada na segunda edição
de terça-feira do jornal da Tarde, ocupando toda a primeira página,
sobre o Reformatório Baiano, com diversos clichês do prédio
e um do diretor.) Sob a lua, num velho trapiche abandonado, as crianças
dormem.
Antigamente aqui era o mar.
Nas grandes e negras pedras dos alicerces do trapiche as ondas ora se rebentavam
fragorosas, ora vinham se bater mansamente. A água passava por baixo
da ponte sob a qual muitas crianças repousam agora, iluminadas por
uma réstia amarela de lua. Desta ponte saíram inúmeros
veleiros carregados, alguns eram enormes e pintados de estranhas cores, para
a aventura das travessias marítimas. Aqui vinham encher os porões
e atracavam nesta ponte de tábuas, hoje comidas. Antigamente diante
do trapiche se estendia o mistério do mar-oceano, as noites diante
dele eram de um verde escuro, quase negras, daquela cor misteriosa que é
a cor do mar à noite.
Hoje a noite é alva em frente ao trapiche. É que na sua frente
se estende agora o areal do cais do porto. Por baixo da ponte não há
mais rumor de ondas. A areia invadiu tudo, fez o mar recuar de muitos metros.
Aos poucos, lentamente, a areia foi conquistando a frente do trapiche. Não
mais atracaram na sua ponte os veleiros que iam partir carregados. Não
mais trabalharam ali os negros musculosos que vieram da escravatura. Não
mais cantou na velha ponte uma canção um marinheiro nostálgico.
A areia se estendeu muito alva em frente ao trapiche. É nunca mais
encheram de fardos, de sacos, de caixões, o imenso casarão.
Ficou abandonado em meio ao areal, mancha negra na brancura do cais.
Durante anos foi povoado exclusivamente pelos ratos que ai atravessavam
em corridas brincalhonas, que rolam a madeira das portas monumentais, que
o habitavam como senhores exclusivos. Em certa época um cachorro vagabundo
o procurou como refúgio contra o vento e contra a chuva. Na primeira
noite não dormiu, ocupado em despedaçar ratos que passavam na
sua frente. Dormiu depois de algumas noites, ladrando à lua pela madrugada,
pois grande parte do teto já ruíra e os raios da lua penetravam
livremente, iluminando o assoalho de tábuas grossas. Mas aquele era
um cachorro sem pouso certo e cedo partiu em busca de outra pousada, o escuro
de uma porta, o vão de urna ponte, o corpo quente de uma cadela. E
os ratos voltaram a dominas até que os Capitães da Areia lançaram
as suas vistas para o casarão abandonado.
Neste tempo a porta caíra para um lado e um do grupo, certo dia em
que passeava na extensão dos seus domínios (porque toda a zona
do areal do cais, como aliás toda a cidade da Bahia, pertence aos Capitães
da Areia), entrou no trapiche.
Seria bem melhor dormida que a pura areia, que as pontes dos demais trapiches
onde por vezes a água subia tanto que ameaçava levá-los.
E desde esta noite uma grande parte dos Capitães da Areia dormia no
velho trapiche abandonado, em companhia dos ratos, sob a lua amarela. Na frente,
a vastidão da areia, uma brancura sem fim.
Ao longe, o mar que arrebentava no cais. Pela porta viam as luzes dos navios
que entravam e saiam. Pelo teto viam o céu de estrelas, alua que os
iluminava.
Logo depois transferiram para o trapiche o depósito dos objetos que
o trabalho do dia lhes proporcionava. Estranhas coisas entraram então
para o trapiche. Não mais estranhas, porém, que aquela meninos,
moleques de todas as cores e de idades as mais variadas1 desde os 9 aos 16
anos, que à noite se estendiam pelo assoalho e por debaixo da ponte
e dormiam, indiferentes ao vento que circundava o casarão uivando,
indiferentes à chuva que muitas vezes os lavava, mas com os olhos puxados
para as luzes dos navios, com os ouvidos presos às canções
que vinham das embarcações…
É aqui também que mora o chefe dos Capitães da Areia
Pedro Bala. Desde cedo foi chamado assim, desde seus cinco anos. Hoje tem
15 anos. Há dez que vagabundeia nas ruas da Bahia. Nunca soube de sua
mãe, seu pai morrera de um balaço. Ele ficou sozinho e empregou
anos em conhecer a cidade. Hoje sabe de todas as suas ruas e de todos os seus
becos. Não há venda, quitanda, botequim que ele não conheça.
Quando se incorporou aos Capitães da Areia (o cais recém-construído
atraiu para as suas areias todas as crianças abandonadas da cidade)
o chefe era Raimundo, o Caboclo, mulato avermelhado e forte.
Não durou muito na chefia o caboclo Raimundo. Pedro Bala era muito
mais ativo, sabia planejar os trabalhos, sabia tratar com os outros, trazia
nos olhos e na voz a autoridade de chefe. Um dia brigaram. A desgraça
de Raimundo foi puxar uma navalha e cortar o rosto de Pedro, um talho que
ficou para o resto da vida. Os outros se meteram e como Pedro estava desarmado
deram razão a ele e ficaram esperando a revanche, que não tardou.
Uma noite, quando Raimundo quis surrar Barandão, Pedro tomou as dores
do negrinho e rolaram na luta mais sensacional a que as areias do cais jamais
assistiram. Raimundo era mais alto e mais velho. Porém Pedro Bala,
o cabelo loiro voando, a cicatriz vermelha no rosto, era de uma agilidade
espantosa e desde esse dia Raimundo deixou não só a chefia dos
Capitães da Areia, como o próprio areal. Engajou tempos depois
num navio.
Todos reconheceram os direitos de Pedro Bala à chefia, e foi desta
época que a cidade começou a ouvir falar nos Capitães
da Areia, crianças abandonadas que viviam do furto. Nunca ninguém
soube o número exato de meninos que assim viviam.
Eram bem uns cem e destes mais de quarenta dormiam nas ruínas do
velho trapiche.
Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agressivos, soltando palavrões
e fumando pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que
a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas.
Noite dos Capitães da Areia
A grande noite de Paz da Bahia veio do Cais, envolveu os saveiros, o forte,
o quebra-mar, se estendeu sobre as ladeiras e as torres das igrejas. Os sinos
já não tocam as ave-marias que as seis horas há muito
que passaram. E o céu está cheio de estrelas, se bem a lua não
tenha surgido nesta noite clara. O trapiche se destaca na brancura do areal,
que conserva as marcas dos passos dos Capitães da Areia, que já
se recolheram. Ao longe, a fraca luz da lanterna da Porta do Mar, botequim
de marítimos, parece agonizar. Passa um vento frio que levanta a areia
e torna difíceis os passos do negro João Grande, que se recolhe.
Vai curvado pelo vento como a vela de um barco. E alto, o mais alto do bando,
e o mais forte também, negro de carapinha baixa e músculos retesados,
embora tenha apenas treze anos, dos quais quatro passados na mais absoluta
liberdade, correndo as ruas da Bahia com os Capitães da Areia. Desde
aquela tarde em que seu pai, carroceiro gigantesco, foi pegado por um caminhão
quando tentava desviar o cavalo para um lado da rua, João Grande não
voltou pequena casa do morro. Na sua frente estava a cidade misteriosa, e
ele partiu para conquistá-la. A cidade da Bahia, negra e religiosa,
é quase tão misteriosa como o verde mar. Por isso João
Grande não voltou mais. Engajou com 9 anos nos Capitães da Areia,
quando o Caboclo ainda era o chefe e o grupo pouco conhecido, pois o Caboclo
não gostava de se arriscar. Cedo João Grande se fez um dos chefes
e nunca deixou de ser convidado para as reuniões que os maiorais faziam
planejar os furtos. Não que fosse um bom organizador de assalta uma
inteligência viva. Ao contrário, doía-lhe a cabeça
se tinha que pensar. Ficava com os olhos ardendo, como ficava também
quando via alguém fazendo maldade com os menores. Então seus
músculos se retesavam e estava disposto a qualquer briga. Mas a sua
enorme força muscular o fizera temido. O Sem-Pernas dizia dele: —
Este negro é burro mas é uma prensa…
E os menores, aqueles pequeninos que chegavam para o grupo cheios de receio
tinham nele o mais decidido protetor. Pedro, o chefe, também gostava
de ouvi-lo.
E João Grande bem sabia que não era por causa da sua força
que tinha a amizade do Bala. Pedro achava que o negro era bom e não
se cansava de dizer: — Tu é bom, Grande. Tu é melhor que a
gente. Gosto de você — e batia pancadinhas na perna do negro, que ficava
encabulado.
João Grande vem vindo para o trapiche. O vento quer impedir passos
e ele se curva todo, resistindo contra o vento que levanta a areia. Ele foi
à Porta do Mar beber um trago de cachaça com o Querido-de-Deus,
que chegou hoje dos mares do Sul, de uma pescaria. O Querido-de-Deus é
o mais célebre capoeirista da cidade.
Quem não o respeita na Bahia? No jogo de capoeira de Angola ninguém
pode se medir com o Querido-de-Deus, nem mesmo Zé Moleque, que deixou
fama no Rio de Janeiro.
O Querido-de-Deus contou as novidades e avisou que no dia seguinte apareceria
no trapiche para continuar as lições de capoeira que Pedro Bala,
João Grande e o Gato tomam.
João Grande fuma um cigarro e anda para o trapiche. As marcas dos
seus grandes pés ficam na areia, mas o vento logo as destrói.
O negro pensa que nessa noite de tanto vento são perigosos os caminhos
do mar.
João Grande passa por debaixo da ponte — os pés afundam na
areia — evitando tocar no corpo dos companheiros que já dormem. Penetra
no trapiche. Espia um momento indeciso até que nota a luz da vela do
Professor. Lá está ele, no mais longínquo canto do casarão,
lendo à luz de uma vela. João Grande pensa que aquela luz ainda
é menor e mais vacilante que a da lanterna da Porta do Mar e que o
Professor está comendo os olhos de tanto ler aqueles livros de letra
miúda. João Grande anda para onde está o Professor, se
bem durma sempre na porta do trapiche, como um cão de fila, o punhal
próximo da mão, para evitar alguma surpresa.
Anda entre os grupos que conversam, entre as crianças que dormem,
e chega para perto do Professor. Acocora-se junto a ele e fica espiando a
leitura atenta do outro.
João José, o Professor, desde o dia em que furtara um livro
de histórias numa estante de uma casa da Barra, se tomara perito nestes
furtos. Nunca, porém, vendia os livros, que ia empilhando num canto
do trapiche, sob tijolos, para que os ratos não os roessem. Lia-os
todos numa ânsia que era quase febre. Gostava de saber coisas e era
ele quem muitas noites, contava aos outras histórias de aventureiros,
de borne do mar, de personagens heróicos e lendários, histórias
que faziam aqueles olhos vivos se espicharem para o mar ou para as misteriosas
ladeiras da cidade, numa ânsia de aventuras e de heroísmo. João
José era o único que lia correntemente entre eles e, no entanto,
só estive na escola ano e meio. Mas o treino diário da leitura
despertara completamente sua imaginação e talvez fosse ele o
único que tivesse uma certa consciência do heróico das
suas vidas. Aquele saber, aquela vocação para contar histórias,
fizera-o respeitado entre os Capitães Areia, se bem fosse franzino,
magro e triste, o cabelo moreno caindo sobre os olhos apertados de míope.
Apelidaram-no de Professor porque num livro furtado ele aprendera a fazer
mágicas com lenços níqueis e também porque, contando
aquelas histórias que lia e muitas que inventava, fazia a grande e
misteriosa mágica de os transportar para mundos diversos, fazia com
que os olhos vivos dos Capitães da Areia brilhassem como só
brilham as estrelas da noite da Bahia. Pedro Bala nada resolvia sem o consultar
e várias vezes foi a imaginação Professor que criou os
melhores planos de roubo. Ninguém sabia, entanto, que um dia, anos
passados, seria ele quem haveria de contar em quadros que assombrariam o país
a história daquelas vidas e muitas outras histórias de homens
lutadores e sofredores. Talvez só o sou se Don’Aninha, a mãe
do terreiro da Cruz de Opô Afonjá, porque Don’Aninha sabe de
tudo que Yá lhe diz através de um búzio noites de temporal.
João Grande ficou muito tempo atento à leitura. Para o negro
aquelas letras nada diziam. O seu olhar ia do livro para a luz oscilante da
vela, e desta para o cabelo despenteado do Professor. Terminou por se cansar
e perguntou com sua voz cheia e quente: — Bonita, Professor? Professor desviou
os olhos do livro, bateu a mão descarnada no ombro do negro, seu mais
ardente admirador: — Uma história zorreta, seu Grande — seus olhos
brilhavam.
— De marinheiro? — É de um negro assim como tu. Um negro macho
de verdade.
— Tu conta? — Quando findar de ler eu conto. Tu vai ver só que
negro…
E volveu os olhos para as páginas do livro. João Grande acendeu
um cigarro barato, ofereceu outro em silêncio ao Professor e ficou fumando
de cócoras, como que guardando a leitura do outro. Pelo trapiche ia
um rumor de risadas, de conversas, de gritos. João Grande distinguia
bem a voz do Sem-Pernas, estrídula e fanhosa.
O Sem-Pernas falava alto, ria muito. Era o espião do grupo, aquele
que sabia se meter na casa de uma família uma semana, passando por
um bom menino perdido dos pais na imensidão agressiva da cidade. Coxo,
o defeito físico valera-lhe o apelido. Mas valia-lhe também
a simpatia de quanta mãe de família o via, humilde e tristonho,
na sua porta pedindo um pouco de comida e pousada por uma noite. Agora, meio
do trapiche, O Sem-Pernas metia a ridículo o Gato, que perde todo um
dia para furtar um anelão cor de vinho, sem nenhum valo, real, pedra
falsa, de falsa beleza também.
Fazia já uma semana que o Gato avisara a meio mundo: — Vi um anelão,
seu mano, que nem de bispo. Um anelão bom pro meu dedo.
Batuta mesmo. Tu vai ver quando eu trouxer…
— Em que vitrine? — No dedo de um pato. Um gordo que todo dia toma o bonde
de Brotas na Baixa do Sapateiro.
E o Gato não descansou enquanto não conseguiu, no aperto um
bonde das seis horas da tarde, tirar o anel do dedo do homem, escapulindo
na confusão, porque o dono logo percebeu. Exibia o anel no dedo médio,
com vaidade. O Sem-Pernas ria: — Arriscar cadeia por uma porcaria! Um troço
feio…
— Que tem tu com isso? Eu acho bom, tá acabado.
— Tu é burro mesmo. Isso no prego não dá nada.
— Mas dá simpatia no meu dedo. Tou arranjando uma comida Falavam
naturalmente em mulher apesar do mais velho ter apenas 16 anos.
Cedo conheciam os mistérios do sexo.
Pedro Bala, que ia entrando, desapartou o começo de briga. João
Grande deixou o Professor lendo e veio para junto do chefe. O Sem-Pernas ria
sozinho, resmungando acerca do anel. Pedro o chamou e foi com ele e com João
Grande para o canto onde estava Professor…
— Vem cá, Professor.
Ficaram os quatro sentados. O Sem-Pernas acendeu uma ponta de charuto caro,
ficou saboreando. João Grande espiava o pedaço de mar que se
via através da porta, além do areal. Pedro falou: — Gonzales
do 14 falou hoje comigo…
— Quer mais corrente de ouro? Da outra vez… — atalhou O Sem-Pernas.
–Não. Tá querendo chapéu. Mas só topa de feltro.
Palhinha não vale, diz que não tem saída. E também…
— Que é que tem mais? — novamente interrompeu O Sem-Pernas.
— Tem que muito usado não presta.
–Tá querendo muita coisa. Se ainda pagasse que valesse a pena.
— Tu sabe, Sem-Pernas, que ele é um bicho caiado. Pode não
pagar bem, mas é uma cova. Dali não sai nada, nem a gancho.
–Também paga uma miséria. E é interesse dele não
dizer nada. Se ele abrir a boca no mundo não há costas largas
que livre ele do xilindró…
— Tá bom, Sem-Pernas, você não quer topar o negócio,
vá embora, mas deixe a gente combinar as coisas direito.
— Não tou dizendo que não topo. Tou só falando que
trabalhar pra um gringo ladrão não é negócio.
Mas se tu quer…
— Ele diz que desta vez vai pagar melhor. Uma coisa que pague a pena. Mas
só chapéu de feltro bom e novo. Tu, Sem-Pernas, podia ir com
uns fazer esse negócio.
Amanhã de noite Gonzales manda um empregado do 14 aqui pra trazer
os miúdos e levar as carapuças.
— Bom lugar e nos cinemas — disse o Professor voltando-se para O Sem-Pernas.
— Bom é na Vitória… — e o Sem-Pernas fez um gesto de desprezo.
— É só entrar nos corredores e aquilo é chapéu
garantido… Tudo gente de nota — Também tem guarda em penca…
–Tu liga pra guarda? Se ainda fosse fira… Guarda é pra correr
picula. Tu vai comigo, Professor? — Vou. Mesmo que tou precisando de um chapéu.
Pedro Bala falou: — Arranja os que quiser, Sem-Pernas. Este negócio
fica por tua conta.
Menos o Grande e o Gato, que eu tenho um negócio com eles pra amanhã
— virou-se para João Grande. — Um negócio do Querido-de-Deus.
— Ele já teve me avisando. E diz-que de noite vem pra capoeira.
Pedro voltou-se para o Sem-Pernas, que já se retirava para ir combinar
com Pirulito a formação do grupo que ia em cata de chapéus
no dia seguinte: — Olha, Sem-Pernas, tu trata de avisar que se algum for
bispado trate de dar o suíte para outro lado. Não venha pra
cá.
Pediu um cigarro, João Grande deu. O Sem-Pernas, já afastado,
chamava Pirulito.
Pedro foi em busca do Gato, tinha um assunto a conversar com ele. Depois
voltou, se estendeu perto do lugar onde estava Professor. Este retornou ao
seu livro, sobre o qual se debruçou até que a vela queimou-se
toda e a escuridão do trapiche o envolveu. João Grande caminhou
vagarosamente para a porta, onde se deitou ao comprido, o punhal no cinto.
Pirulito era magro e muito alto, uma cara seca, meio amarelada, os olhos
encovados e fundos, a boca rasgada e pouco risonha. O Sem-Pernas primeiro
fez pilhéria perguntando se ele já estava rezado, depois entrou
no assunto da pilhagem de chapéus, acertaram que a levariam um certo
número de meninos que escolheram cuidadosamente, marcaram as zonas
onde operariam e se separaram. Pirulito então foi para o seu canto
costumeiro. Dormia invariavelmente ali, onde as paredes do trapiche faziam
um ângulo. Tinha disposto carinhosamente as suas coisas: um cobertor
velho, um travesseiro que trouxera certa vez de um hotel onde penetrara levando
as malas de um viajante, um par de calças que vestia aos domingos junto
com uma blusa de cor indefinida, porém mais ou menos limpa. E pregados
na parede, com pregos pequenos, dois quadros de santos: um Santo Antônio
carregando um Menino Deus (Pirulito se chamava Antônio e tinha ouvido
dizer que Santo Antônio era brasileiro) e uma Nossa Senhora das Sete
Dores que tinha o peito cravado de setas: sob o seu quadro uma flor murcha.
Pirulito recolheu a flor, aspirou-a, viu que não tinha mais perfume.
Então a amarrou junto ao bentinho que trazia no peito e do bolso do
velho paletó que vestia retirou um cravo vermelho que colhera num jardim,
mesmo sob as vistas do guarda, naquela hora indecisa do crepúsculo.
E colocou o cravo por baixo do quadro, enquanto fitava a santa com um olhar
comovido. Logo ajoelhou-se. Os outros, a princípio, faziam muita pilhéria
quando o viam de joelhos, rezando. Porém já haviam se acostumado
e ninguém mais reparava. Começou a rezar e seu arde asceta se
pronunciou ainda mais, seu rosto de criança ficou mais pálido
e mais grave, suas mãos longas e magras se levantaram ante o quadro.
Todo seu rosto tinha unia espécie de auréola e a sua voz tonalidades
e vibrações que os companheiros não conheciam. Era como
se estivesse fora do mundo, não no velho e arruinado trapiche, mas
numa outra terra, junto com Nossa Senhora das Sete Dores. No entanto, sua
reza era simples e não fora sequer aprendida em catecismos. Pedia que
a Senhora o ajudasse a um dia poder entrar para aquele colégio que
estava no Sodré, e de onde saíam os homens transformados em
sacerdotes.
O Sem-Pernas, que vinha combinar um detalhe da questão dos chapéus
e que, desde que o vira rezando, trazia uma pilhéria preparada, uma
pilhéria que só com o pensar nela ele ria e que iria desconcertar
completamente Pirulito, quando chegou perto e viu Pirulito rezando, de mãos
levantadas, olhos fixos ninguém sabia onde,o rosto aberto em êxtase
(estava como que vestido de felicidade), parou, o riso burlão murchou
nos seus lábios e ficou a espiá-lo meio a medo, possuído
de um sentimento que era um pouco de inveja e um pouco de desespero.
O Sem-Pernas ficou parado, olhando. Pirulito não se mona. Apenas seus
lábios tinham um lento movimento. O Sem-Pernas costumava burlar dele,
como de todos os demais do grupo, mesmo de Professor, de quem gostava, mesmo
de Pedro Bala, a quem respeitava. Logo que um novato entrava para os Capitães
da Areia formava uma idéia ruim de Sem-Pernas. Porque ele logo botava
um apelido, ria de um gesto, de uma frase do novato. Ridicularizava tudo,
era dos que mais brigavam. Tinha mesmo fama de malvado.
Uma vez fez tremendas crueldades com um gato que entrara no trapiche. E
um dia cortara de navalha um garçom de restaurante para furtar apenas
um frango assado. Um dia em que teve um abscesso na perna o rasgou friamente
a canivete e na vista de todos o espremeu rindo. Muitos do grupo não
gostavam dele, mas aqueles que passavam por cima de tudo e se faziam seus
amigos diziam que ele era um sujeito bom. No mais fundo do seu coração
ele tinha pena da desgraça de todos. E rindo, e ridicularizando, era
que fugia da sua desgraça. Era como um remédio. Ficou parado
olhando Pirulito, que rezava concentrado. No rosto do que rezava ia uma exaltação,
qualquer coisa que ao primeiro momento o Sem-Pernas pensou que fosse alegria
ou felicidade.
Mas fitou o rosto do outro e achou que era uma expressão que ele
não sabia definir.
E pensou, contraindo o seu rosto pequeno, que talvez por isso ele nunca
tivesse pensado em rezar, em se voltar para o céu de que tanto falava
o padre José Pedro quando vinha vê-los. O que ele queria era
felicidade, era alegria, era fugir de toda aquela miséria, de toda
aquela desgraça que os cercava e os estrangulava. Havia, é verdade,
a grande liberdade das ruas. Mas havia também o abandono de qualquer
carinho, a falta de todas as palavras boas. Pirulito buscava isso no céu,
nos quadros de santo, nas flores murchas que trazia para Nossa Senhora das
Sete Dores, como um namorado romântico dos bairros chiques da cidade
traz para aquela a quem ama com intenção de casamento. Mas o
Sem-Pernas não compreendia que aquilo pudesse bastar. Ele queria uma
coisa imediata, uma coisa que pusesse seu rosto sorridente e alegre, que o
livrasse da necessidade de rir de todos e de rir de tudo. Que o livrasse também
daquela angústia, daquela vontade de chorar que o tomava nas noites
de inverno.
Não queria o que tinha Pirulito, o rosto cheio de uma exaltação.
Queria alegria, uma mão que, o acarinhasse, alguém que com muito
amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem
sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que
vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam,
empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera família.
Vivera na casa de um padeiro a quem chamava meu padrinho e que o surrava.
Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome,
um dia levaram-no preso. Ele quer um carinho, u’a mão que passe sobre
os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na
cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa
em volta de uma saleta.
Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram
nas suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor
daquela hora. Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes.
A perna coxa se recusava a ajudá-lo. E a borracha zunia nas suas costas
quando o cansaço o fazia parar.
A princípio chorou muito, depois, não sabe como, as lágrimas
secaram. Certa hora não resistiu mais, abateu-se no chão. Sangrava.
Ainda hoje ouve como os soldados riam e como nu aquele homem de colete cinzento
que fumava um charuto. Depois encontrou os Capitães da Areia (foi o
Professor quem o trouxe, haviam feito camaradagem num banco de jardim) e ficou
com eles. Não tardou a se destacar porque sabia como nenhum afetar
uma grande dor e assim conseguir enganar senhoras, cujas casas eram depois
visitadas pelo grupo já ciente de todos os lugares onde havia objetos
de valor e de todos os hábitos da casa. E o Sem-Pernas tinha verdadeira
satisfação ao pensar em quanto o xingariam aquelas senhoras
que o haviam tomado por um pobre órfão. Assim se vingava, porque
seu coração estava cheio de ódio.
Confusamente desejava ter uma bomba (como daquelas de certa história
que o Professor contara) que arrasasse toda a cidade, que levasse todos pelos
ares. Assim ficaria alegre.
Talvez ficasse também se viesse alguém, possivelmente uma
mulher de cabelos grisalhos e mãos suaves, que o apertasse contra o
peito, que acarinhasse seu rosto e o fizesse dormirum sono bom, um sono que
não estivesse cheio dos sonhos da noite na cadeia.
Assim ficaria alegre, o ódio não estaria mais no seu coração.
E não teria mais desprezo, inveja, ódio de Pirulito que, de
mãos levantadas e olhos fixos, foge do seu mundo de sofrimentos para
um mundo que conheceu nas conversas do padre José Pedro.
Um rumor de conversas se aproxima. Vem um grupo de quatro entrando no silêncio
que já reina na noite do trapiche. O Sem-Pernas se estremece, ri nas
costas de Pirulito, que continua a rezar. Encolhe os ombros, decide deixar
para a manhã do dia seguinte o acerto dos detalhes do furto dos chapéus.
E como tem medo de dormir, vai ao encontro do grupo que chega, pede um cigarro,
diz dichotes sobre a aventura de mulheres que os quatro contam: — Uns franguinhos
como vocês, quem é que vai acreditar que seja capaz de derrubar
uma mulher? Isso devia ser algum xibungo vestido de menina.Os outros se irritam:
— Tu também se faz de besta. Se quer é só vim com a
gente amanhã. Assim tu pode conhecer a zinha, que é um peixão.
O Sem-Pernas ri, sardônico: — Não gosto de xibungo.
E sai andando pelo trapiche.
O Gato ainda não está dormindo. Sempre sai depois das onze
horas. É o elegante do grupo. Quando chegou, alvo e rosado, Boa-Vida
tentou conquistá-lo.
Mas já naquele tempo o Gato era de uma agilidade incrível
e não vinha, como Boa-Vida pensava, da casa de uma família.
Vinha do meio dos Índios Maloqueiros, crianças que m vivem sob
as pontes de Aracaju. Fizera a viagem na rabada de um trem. Conhecia bem a
vida de um grupo de crianças abandonadas. E já tinha da mais
de 13 anos.
Assim conheceu logo os motivos por que Boa-Vida, mulato troncudo e feio,
o tratou com tanta consideração, lhe ofereceu cigarros e lhe
deu parte do seu jantar e correu com ele a cidade. Depois bateram juntos um
par de sapatos novos que estava exposto na porta de uma casa na Baixa dos
Sapateiros. Boa-Vida tinha dito: — Deixa estar, que eu sei onde se pode vender.
O Gato espiou seus sapatos puídos.
— Eu tava querendo eles pra mim. Já tou precisando…
— Tu com um sapato ainda tão bom… — se admirou Boa-Vida, que
raras vezes levava sapatos e que, naquele momento, estava descalço.
— Eu pago a tua parte. Quanto tu pensa? Boa-Vida olhou para ele. O Gato
levava gravata, um paletó remendado e, coisa espantosa!, levava meias.
— Tu é da elegância, hein? — sorriu.
— Não nasci para essa vida. Nasci para o grande mundo — disse o
Gato, repetindo uma frase que ouvira certa vez de um caixeiro-viajante num
cabaré de Aracaju.
Boa-Vida achava-o decididamente lindo. O Gato tinha um ar petulante, e embora
não fosse uma beleza efeminada, agradava a Boa-Vida, que, além
de tudo, não tinha muita sorte com mulheres, pois aparentava muito
menos que 13 anos, baixo e acachapado. O Gato era alto e sobre os seus lábios
de 14 anos começava a surgir uma penugem de bigode que ele cultivava.
Boa-Vida naquele momento o amou com certeza, porque disse: — Tu pode ficar
com eles… Eu te dou minha parte.
— Tá certo. Fico te devendo.
Boa-Vida quis aproveitar os agradecimentos do outro para iniciar sua conquista.
E baixou a mão pelas coxas do Gato, que se esquivou só com
o jogo do corpo. O Gato riu consigo mesmo e não disse nada. Boa-Vida
achou que não devia insistir, senão era capaz de espantar o
menino. Ele não sabia nada do Gato e nem imaginava que este conhecia
seu jogo. Andaram juntos parte da noite, vendo a iluminação
da cidade (o Gato estava assombrado), e por volta das onze foram para o trapiche.
Boa-Vida mostrou o Gato a Pedro e levou-o depois para o lugar onde dormia:
— Tenho aqui um lençol. Dá pra nós dois.
O Gato deitou. Boa-Vida se estendeu ao lado. Quando pensou que o outro estava
dormindo o abraçou com uma mão e com a outra começou
a puxar-lhe as calças devagarinho.
Num minuto o Gato estava de pé: — Tu te enganou, mulato. Eu sou
é homem.
Mas Boa-Vida já não via nada, só via seu desejo, a
vontade que tinha do corpo alvo do Gato, de enrolar o rosto nos cabelos morenos
do Gato, de apalpar as carnes duras das coxas do Gato. E se atirou em cima
dele com intenção de derrubá-lo e forçá-lo.
Mas o Gato desviou o corpo, passou-lhe a perna, Boa-Vida se estendeu de nariz.
Já tinha se formado um grupo em torno. O Gato disse: — Ele pensava
que eu era maricas. Tu te faz de besta.
Arrancou com o lençol de Boa-Vida para outro canto e dormiu e dormiu.
Levaram algum tempo inimigos, mas depois voltaram às boas e agora,
pa quando o Gato se cansa de uma pequena, entrega ao Boa-Vida.
Uma noite o Gato andava pelas ruas das mulheres, o cabelo muito lustroso
de brilhantina barata, uma gravata enrolada no pescoço, assoviando
como se fosse um daqueles malandros da cidade. As mulheres o olhavam e riam:
— Olha aquele frangote… O que quererá por aqui? O Gato respondia
aos sorrisos e seguia. Esperava que uma o chamasse e fizesse o amor com ele.
Mas não queria por dinheiro, não só porque os níqueis
que possuía não passavam de mil e quinhentos, ou como porque
os Capitães da Areia não gostavam de pagar mulher.
Tinham as negrinhas de dezesseis anos para derrubar no areal.
As mulheres olhavam para a sua figura de garoto. Sem dúvida achavam-no
belo na sua meninice viciada e gostariam de fazer o amor com ele. Mas não
o chamavam porque aquela era a hora em que agi esperavam os homens que pagavam,
e elas tinham que pensar na casa e no almoço do dia seguinte. Se contentavam
assim com rir e fazer pilhérias. Sabiam que dali sairia um daqueles
vigaristas que enchem a vida de uma mulher, que lhe tomam dinheiro, dão
pancadas, mas também dão muito amor. Muitas delas gostariam
de ser a primeira mulher deste malandro tão jovem. Mas eram dez horas,
hora dos homens que pagavam. E o Gato andava de um lado para ou inutilmente.
Foi quando viu Dalva, que vinha pela rua embuçada num capote de peles
apesar da noite deverão. Ela passou por ele quase da o ver. Era uma
mulher de uns trinta e cinco anos, corpo forte, rosto cheio de sensualidade.
O Gato a desejou imediatamente. Foi a dela. Viu quando entrou em casa sem
se voltar. Ficou na esq esperando.
Minutos depois ela apareceu na janela. O Gato subiu desceu a rua, mas ela
nem o olhava. Depois passou um velho, atendeu ao chamado dela, entrou. O Gato
ainda esperou, porém, mesmo depois do velho ter saído muito
apressado, procurando não ser visto, ela não voltou à
janela.
Noites e noites o Gato volveu à mesma esquina só para vê-la.
Agora tudo o que conseguia em dinheiro era para comprar trajes usados e se
pôr elegante. Tinha o dom da elegância malandra, que está
mais no jeito de andar, de colocar o chapéu e dar um laço despreocupado
na gravata que na roupa propriamente. O Gato desejava Dalva do mesmo modo
como desejava comida ao ter fome, como desejava dormir ao ter sono. Já
não atendia ao chamado das outras mulheres quando, passada a meianoite,
elas já tinham feito para as despesas do dia seguinte e então
queriam o amor juvenil do pequeno malandro. Uma vez foi com uma só
para saber da vida de Dalva. Foi assim que se inteirou de que ela tinha um
amante, um tocador de flauta num café, que tomava o dinheiro que ela
fazia e ainda tomava porres colossais na sua casa, atrapalhando a vida de
todas as rameiras do prédio.
O Gato voltava todas as noites. Dalva nunca lhe deu sequer um olhar. Por
isso ele ainda a amava mais. Ficava numa espera dolorosa até meia hora
depois de meia-noite, quando o flautista chegava e, depois de a beijar na
janela, entrava pela porta mal iluminada. Então o Gato ia para o trapiche,
a cabeça cheia de pensamentos: se um dia o flautista não viesse…
Se o flautista morresse… Era fraco, talvez não agüentasse nem
o peso dos quatorze anos do Gato. E apertava a navalha que levava na blusa.
E uma noite o flautista não veio. Nesta noite Dalva andara pelas
ruas como uma doida, voltara tarde para casa, não recebera nenhum homem
e agora estava ali, postada na janela, apesar de já ter dado as doze
horas há muito tempo. Aos poucos a rua foi ficando deserta. Não
restaram senão o Gato na esquina e Dalva, que ainda esperava na janela.
O Gato sabia que aquela era a sua noite e estava alegre. Dalva desesperava.
Então o Gato começou a passear de um lado para o outro da rua
até que a mulher o notou e fez um sinal. Ele veio logo, sorrindo.
— Tu não é um frangote que fica na esquina toda noite? —
Quem fica na esquina sou eu. Agora essa coisa de frangote…
Ela sorriu tristemente: Tu quer me fazer um favor? Te dou uma coisa — mas
logo pensou e fez um gesto. — Não. Tu com certeza tá esperando
tua comida e não vai perder tempo.
— Posso, sim. A que estou esperando não vem agora.
— Então eu quero, filhinho, que tu vá na rua Rui Barbosa.
O número é 35.
Procura seu Gastão. E no primeiro andar. Diz a ele que estou esperando.
O Gato saiu humilhado. Primeiro pensou em não ir e em nunca mais
voltar a ver Dalva. Mas depois se decidiu a ir para ver de perto o flautista
que tinha coragem de abandonar uma mulher tão bonita. Chegou no prédio
(um sobrado negro de muitos andares), subiu as escadas, no primeiro andar
perguntou a um garoto que dormia no corredor qual era o quarto do Sr. Gastão.
O garoto mostrou o último quarto, o Gato bateu na porta. O flautista
veio abrir, estava de cuecas e na cama o Gato viu uma mulher magra. Estavam
os dois bêbados.
O Gato falou: — Venho da parte de Dalva.
— Diga àquela bruaca que não me amole. Tou chateado dela
até aqui… — e punha a mão aberta na garganta.
De dentro do quarto a mulher falou: — Quem é esse cocadinha? —
Não te mete – disse o flautista, mas logo acrescentou: — É
um recado da bruaca da Dalva. Tá se pelando que eu volte.
A mulher riu um riso canalha de bêbada: — Mas tu agora só
quer tua Bebezinha, não é? Vem me dar um beijinho, anjo sem
asas.
O flautista riu também: — Tá vendo, pedaço de gente?
Diz isso a Dalva.
— Tou vendo um couro espichado ali, sim senhor. Que urubu você arranjou,
hein, camarada? O flautista o olhou muito sério: — Não fale
de minha noiva — e logo: — Quer tomar um trago? É caninha da boa.
O Gato entrou. A mulher na cama se cobriu. O flautista riu:
— É um filhote somente. Não faz medo.
— Mesmo esse couro — disse o Cato — não me tenta. Nem pra me tocar
bronha.
Bebeu a cachaça. O flautista já voltara para a cama e beijava
a mulher. Nem viram que o Gato saía e que levava a bolsa da prostituta,
que estava esquecida na cadeira, sobre vestidos. Na rua o Gato contou sessenta
e oito mil-réis. Jogou a bolsa no pé da escada, meteu o dinheiro
no bolso. E foi para rua de Dalva, assoviando.
Dalva o esperava na janela. O Gato olhou para ela fixamente: — Vou emborcar…
— e foi entrando sem esperar resposta.
Dalva, mesmo no corredor, perguntou: — O que foi que ele disse? — No quarto
te digo. Me mostre onde é.
Entraram no quarto. A primeira coisa que o Gato viu foi um retrato de Gastão
tocando flauta, vestido de smoking. Sentou na cama olhando o retrato. Dalva
espiava espantada e mal pôde novamente interrogar: — O que foi que
ele disse? O Gato respondeu: — Senta aqui — e indicou a cama.
— Esse frangote… — murmurou ela.
— Olha, bichinha, ele tá grudado com outra, sabe? Também
eu disse as boas aos dois. E depois pelei a bruaca — meteu a mão no
bolso, tirou o dinheiro. — Vamos rachar isso.
— Tá com outra, não é? Mas meu Senhor do Bonfim há
de fazer com que os dois fique entrevado. Senhor do Bonfim é meu santo.
Foi até onde estava o quadro do santo. Fez a promessa e voltou.
— Guarda teu dinheiro. Tu ganhou direito.
O Gato repetiu: — Senta aqui.
Desta vez ela sentou, ele a pegou e a derrubou na cama. Depois que ela gemeu
com o amor e com os tabefes que ele lhe deu, murmurou: — O frangote parece
um homem…
Ele se levantou, endireitou as calças, foi até onde estava
o retrato do flautista Gastão e o rasgou.
— Vou tirar um retrato pra tu botar ai.
A mulher riu e disse: — Vem, bichinho bom. Que malandro não vai
sair dai! Vou te ensinar tanta coisa, meu cachorrinho.
Fechou a porta do quarto. O Gato tirou a roupa.
Por isso o Gato sai toda meia-noite e não dorme no trapiche. Só
volta pela manhã para ir com os outros para as aventuras do dia.
O Sem-Pernas se aproximou e pilheriou: — Agora tu vai mostrar o anel, não
é? — Tu não tem nada com isso — o Gato fumava um cigarro.
— Tu quer vir pra ver se topa alguma mulher que te queira assim coxo? —
Não vou em casa de couros. Sei onde tem coisas que valha a pena.
Mas o Gato não estava disposto a conversar e o Sem-Pernas continuou
a sua peregrinação através do trapiche.
O Sem-Pernas encostou-se junto a uma parede e deixou que o tempo passasse.
Viu o Gato sair por volta das onze e meia. Sorriu porque ele havia lavado
a cara, posto brilhantina no cabelo e ia marchando com aquele passo gingado
que caracteriza os malandros e os marítimos. Depois o Sem-Pernas ficou
muito tempo olhando as crianças que dormiam. Ali estavam mais ou menos
cinqüenta crianças, sem pai, sem mãe, sem mestre. Tinham
de si apenas a liberdade de correr as ruas. Levavam vida nem sempre fácil,
arranjando o que comer e o que vestir, ora carregando uma mala, ora furtando
carteiras e chapéus, ora ameaçando homens, por vezes pedindo
esmola.
E o grupo era de mais de cem crianças, pois muitas outras não
dormiam no trapiche. Se espalhavam nas portas dos arranha-céus, nas
pontes, nos barcos virados na areia do Porto da Lenha. Nenhuma delas reclamava.
Por vezes morria um de moléstia que ninguém sabia tratar, Quando
calhava vir o padre José Pedro, ou a mãe-de-santo Don’Aninha
ou também o Querido-de-Deus, o doente tinha algum remédio. Nunca,
porém, era como um menino que tem sua casa. O Sem-Pernas ficava pensando.
E achava que a alegria daquela liberdade era pouca para a desgraça
daquela vida.
Voltou-se porque ouviu movimento. Alguém se levantava no meio do
casarão. O Sem-Pernas reconheceu o negrinho Barandão, que se
dirigia de manso para o areal de fora do trapiche. O Sem-Pernas pensou que
ele ia esconder qualquer coisa que furtara e não quem mostrar aos companheiros.
E aquilo era um crime conta as Leis do bando. O Sem-Pernas seguiu Barandão,
atravessando ente os que dormiam. O negrinho já tinha transposto a
porta do trapiche e dava a volta no prédio para o lado esquerdo.
Em cima era o céu de estrelas.
Barandão agora caminhava apressadamente. O Sem-Pernas notou que ele
se dirigia para o outro extremo do trapiche, onde a areia era mais fina ainda.
Foi então pelo outro lado e chegou a tempo de ver Barandão que
se encontrava com um vulto.
Logo o reconheceu: era Almiro, um do grupo, de doze anos, gordo e preguiçoso.
Deitaram-se juntos, o negro acariciando Admiro. O Sem-Pernas chegou a ouvir
palavras. Um dizia: meu filhinho, meu filhinho. O Sem-Pernas recuou e a sua
angústia cresceu.
Todos procuravam um carinho, qualquer coisa fora daquela vida: o Professor
naqueles livros que lia a noite toda, o Gato na cama de unia mulher da vida
que lhe dava dinheiro, Pirulito na oração que o transfigurava,
Barandão e Almiro no amor na areia do cais. O Sem-Pernas sentia que
uma angústia o tomava e que era impassível dormir. Se dormisse
viriam os maus sonhos da cadeia. Queria que aparecesse alguém a quem
ele pudesse torturar com dichotes. Queria uma briga. Pensou em ir acender
um fósforo na perna de um que dormisse. Mas quando olhou da porta do
trapiche, sentiu somente pena e uma doida vontade de fugir. E saiu correndo
pelo areal, correndo sem fito, fugindo da sua angústia.
Pedro Bala acordou com um ruído perto de si. Dormia de bruços
e olhou por baixo dos braços. Viu que um menino se levantava e se aproximava
cautelosamente do canto de Pirulito. Pedro Bala, no meio do sana em que estava,
pensou, a princípio, que se tratasse de um caso de pederastia. E ficou
atento para expulsar o passivo do grupo, pois uma das leis do grupo era que
não admitiriam pederastas passivos.
Mas acordou completamente e logo recordou que era impossível, pois
Pirulito não era destas coisas. Devia se tratar de furto. Realmente
o garoto já abria o baú de Pirulito. Pedro Bala se atirou em
cima dele.
A luta foi rápida. Pirulito acordou, mas os demais dormiam.
— Tu tá roubando um companheiro? O outro ficou calado, coçando
o queixo ferido. Pedro Bala continuou: — Amanhã tu vai embora… Não
quero mais tu com a gente. Vai ficar com a gente de Ezequiel, que vive roubando
uns dos outros.
— Eu sé queria era ver…
— Que era que tu vinha ver com as mãos? — Juro que era só
para ver aquela medalha que ele tem.
— Desembucha esta história direito senão leva porrada.
Pirulito se meteu: — Deixa ele, Pedro.Era bem capaz de querer ver mesmo
a medalha. É uma medalha que o padre José Pedro me deu.
— E isso mesmo — disse o menino–, eu só queria ver. Juro — mas
tremia de medo. Sabia que a vida de um expulso dos Capitães da Areia
ficava difícil.
Ou entrava para o grupo de Ezequiel, que vivi todo dia na cadeia, ou acabava
no reformatório.
Pirulito intercedeu de novo e Pedro Bala voltou para perto do Professor.
Então o menino disse com a voz ainda temendo: — Vou contar pra você
saber. Foi uma menina que eu vi hoje. Tava na Cidade de Palha. Eu tinha entrado
na casa com idéia ti abafar um paletó, quando ela veio e ficou
perguntando o que eu queria. Aí topamos a conversar. Eu disse que amanhã
ia levar um presente pra ela. Porque foi boa, boa assim comigo, sabe? — e
agora gritava parecia que tinha raiva.
Pirulito tomou a medalha que o padre lhe dera, ficou mirando. De repente
estendeu para o menino: — Tome. Dê a ela. Mas não conte a Pedro
Bala.
Volta Seca entrou no trapiche quando a madrugada já ia alta. O cabelo
de mulato sertanejo estava revolto. Calçava alpercatas como quando
viera da caatinga. O seu rosto sombrio se projetou dentro do casarão.
Passou por cima do corpo do negro João Grande. Cuspiu adiante, passou
o pé em cima. Apertado no braço trazia um jornal.
Olhou todo o salão procurando alguém. Segurou o jornal com
as mãos grandes e calosas logo que distinguiu onde estava Professor.
E sem se importar da hora tardia se dirigiu para lá e começou
a chamá-lo: — Professor… Professor…
— O que é? — Professor estava semi-adormecido.
— Eu quero uma coisa.
Professor sentou-se. O rosto sombrio de Volta Seca estava meio invisível
na escuridão.
— É tu, Volta Seca? Que é que tu quer? — Quero que tu leia
pra eu ouvir essa notícia de Lampião que o Diário traz.
Tem um retrato.
— Deixa pra amanhã que eu leio.
— Lê hoje, que eu amanhã te ensino a imitar direitinho um
canário.
O Professor buscou uma vela, acendeu, começou a ler a notícia
do jornal.
Lampião tinha entrado numa vila da Bahia, matara oito soldados, deflorara
moças, saqueara os cofres da Prefeitura. O rosto sombrio de Volta Seca
se iluminou. Sua boca apertada se abriu num sorriso. E ainda feliz deixou
o Professor, que apagava a vela, e foi para o seu canto. Levava o jornal para
cortar o retrato do grupo de Lampião.
Dentro dele ia uma alegria de primavera.
Ponto das Pitangueiras
Esperavam que o guarda andasse. Este demorou olhando o céu, mirando
a rua deserta. O bonde desapareceu na curva. Era o último dos bondes
da linha de Brotas naquela noite. O guarda acendeu um cigarro. Com o vento
que fazia, gastou três fósforos.
Depois suspendeu a gola da capa, pois havia um frio úmido que o vento
trazia das chácaras onde balouçavam mangueiras e sapotizeiros.
Os três meninos esperavam que o guarda andasse para poder atravessar
de um lado para o outro da rua e entrar na travessa sem calçamento.
O Querido-de-Deus não tinha podido vir. Toda a tarde tinha passado
na Porta do Mar esperando o homem que não veio. Se ele tivesse vindo
seria mais fácil, pois com o Querido-de-Deus ele não ia discutir,
mesmo porque devia muita coisa ao capoeirista. Mas não tinha vindo,
a informação fora errada, e o Querido-de-Deus já tinha
uma viagem acertada para essa noite. Ia a ltaparica.
Durante a tarde, num terreninho que havia no findo da Porta do Mar, fizeram
treinos do jogo capoeira. O Gato prometia ser, com algum tempo, um lutador
capaz de se pegar com o próprio Querido-de-Deus. Pedro Bala também
tinha muito jeito. Dos três o menos ágil era o negro João
Grande muito bom numa luta onde pudesse empregar sua enorme força física
Assim mesmo aprendia o bastante para se livrar de um mais forte ele. Quando
se cansaram passaram para a sala. Pediram quatro pi e o Gato sacou um baralho
do bolso das calças. Um velho bar sebento, de canas muito grossas.
O Querido-de-Deus afirmava o homem viria, o camarada que lhe dera a informação
era um sujeito seguro. Era negócio para render muito e o Querido-de-
Deus preferia chamar os Capitães da Areia, seus amigos, a um dos malandros
do cais. Sabia que os Capitães da Areia valiam mais que muitos homens
e tinham a boca calada.
A Porta do Mar estava quase deserto àquela hora. Somente dois marinheiros
de um baiano bebiam cerveja ao fundo, conversando, O Gato pôs o baralho
em cima da mesa e propôs: — Quem topa uma ronda? O Querido-de-Deus
pegou no baralho: — Tá mais que marcado, seu Gato. Um baralhinho bem
velho…
— Se tu tem outro eu não me importa.
— Não. Vamos com esse mesmo.
Começaram o jogo. O Gato descobria duas cartas na mesa, os outros
apostavam numa, a banca ficava com a outra. A princípio Pedro Bala
e o Querido-de-Deus ganharam.
João Grande não estava jogando (conhecia demais o baralho
do Gato), só fazia espiar, rindo com seus dentes alvos, quando o Querido-de-Deus
dizia que estava com sorte neste dia porque era o dia de Xangô, seu
santo. Sabia que a sorte seria só no princípio e que quando
o Gato começasse a ganhar não pararia mais. Certo momento o
Gato começou a ganhar. Quando ganhou a primeira vez, disse com uma
voz meio triste: — Também já era tempo. Tava com um peso da
mãe! João Grande abriu mais seu sorriso, O Gato ganhou de novo.
Pedro Bala se levantou, recolheu os níqueis que havia ganho. O Gato
olhou desconfiado: Tu não vai botar nada agora? — Agora não
que vou mijar… – e foi para os fundos do bar.
O Querido-de-Deus ficou perdendo. João Grande ria e o capoeirista
se afundava.
Pedro Bala tinha voltado, mas não jogava. Ria com João Grande,
O Querido-de- Deus passou tudo quanto tinha ganho. João Grande disse
entre dentes: — Vai entrar no capital…
— Ainda tou perdendo — falou o Gato.
Reparou que Pedro tinha voltado: — Tu não arrisca mais nada? Não
vai na dama? — Tou cansado de jogar… — e Pedro Bala piscou para o Gato
como que dizendo que ele se contentasse com o Querido-de-Deus.
O Querido-de-Deus passou cinco mil-réis do capital. Só ganhara
duas vezes durante as últimas jogadas e estava meio desconfiado. O
Gato abriu o baralho na mesa.
Puxou um rei e um sete.
— Quem vai? — perguntou.
Ninguém foi. Nem mesmo o Querido-de-Deus, que olhava o ar baralho
muito desconfiado. O Gato perguntou: — Tá pensando que tem treita?
Pode espiar. Eu faço jogo limpo…
João Grande soltou uma daquelas suas gargalhadas escandalosas. Pedro
Bala e o Querido-de-Deus riram também. O Gato olhou para João
Grande com raiva: — Esse negro é burra como uma porta. Tu não
tá venda…
Mas não completou a frase, porque os dois marinheiros baiano, que
já miravam o jogo há bastante tempo, se aproximaram. Um deles,
o mais baixo, que estava bêbado, falou para o Querido- de-Deus: — Pode-se
entrar nesta brincadeira? — A banca é deste moço.
Os marinheiros olharam desconfiados para o menino. Mas baixo cutucou o outro
com o cotovelo e murmurou qualquer coisa ao ouvido. O Gato riu para dentro
porque sabia que ele estava dizendo que seria fácil arrancar o dinheiro
daquela criança.
Se abancaram os dois e o Querido-de-Deus achou estranho que Pedro Bala se
abancasse também. João Grande, no entanto, não só
não achou estranho se abancou também. Ele sabia que era preciso
tapear os marinheiros e então era necessário que a gente do
grupo perdesse também. Os marinheiros, do mesmo modo que tinha acontecido
com o Querido-de-Deus, começaram ganhando. Mas durou pouca a aragem
da sorte e em breve só o Gato ganhava dos quatro. Pedro Bala soltava
aclamações: — Esse Gato quando tem sorte é um caso sério…
— Também, quando dá de perder, perde a noite toda — replicou
João Grande e esta sua réplica deu grande confiança aos
marinheiros sobre a honestidade do jogo e a possibilidade da sorte virar.
E continuaram a jogar e a perder. O baixo só dizia: — A sorte tem
de virar…
O outro, que tinha um bigodinho, jogava calado e cada vez apostava mais
alto.
Também Pedro Bala subia o valor das suas apostas. Certa hora o de
bigodinho virou pro Gato: — A banca topa cinco mil? O Gato coçou o
cabelo cheio de brilhantina barata, aparentando uma indecisão que os
companheiros sabiam que não possuía.
Vá lá. Topo. Só pra dar meio de você livrar teu
prejuízo.
O de bigodinho apostou cinco mil. O baixo foi com três mil-réis.
Foram ambos num ás contra um valete da banca. Pedro Bala e João
Grande foram no ás também. O Gato começou a virar as
cartas. A primeira era um nove. O baixo batia com os dedos, o outro puxava
o bigodinho. Veio em seguida um dois e o baixo disse: — Agora é o
ás. Dois, depois um… — e batia com os dedos.
Mas veio um sete e depois um dez e então veio um valete. O Gato arrastou
a mesa, enquanto Pedro Bala fazia uma cara de grande aborrecimento e dizia:
— Amanhã, quando o peso te pegar, tu vai ver que te arraso.
O baixo confessou que estava limpo. O de bigodinho meteu as mãos
nos bolsos: — Tou só com os níqueis pra pagar a cerveja. O
garoto é um braço.
Se levantaram, cumprimentaram o grupo, pagaram a cerveja que tinham bebido
na outra mesa. O Gato os convidou a voltarem no outro dia. O baixo respondeu
que o navio deles saía aquela noite para Caravelas. Só quando
voltasse. E se foram, de braço dado, comentando a pouca sorte.
O Gato contou o lucro. Sem juntar o dinheiro que Pedro Bala e João
Grande haviam perdido, existia um lucro de trinta e oito mil-réis.
O Gato devolveu o dinheiro de Pedro Bala, depois o de João Grande,
ficou um minuto pensando. Meteu a mão no bolso, tirou os cinco mil
réis que o Querido-de-Deus havia perdido anteriormente: — Toma, batuta.
Tinha trapaça, eu não quero embolsar teu cobre…
O Querido-de-Deus beijou a nota com satisfação, bateu a mão
nas costas do Gato: — Tu vai longe, menino. Tu pode enricar com essas treitas.
Mas já o sol se punha e o homem não vinha. Eles pediram outra
pinga. Com o cair da tarde o vento que vinha do mar aumentou. O Querido-de-Deus
começava a ficar impaciente. Fumava cigarro sobre cigarro. Pedro Bala
espiava para a porta. O Gato dividiu os trinta e oito mil-réis pelos
três. João Grande perguntou: — Como teria ido o Sem-Pernas com
o abafa de chapéus? Ninguém respondeu. Esperavam o homem e agora
tinham a impressão que ele não viria. A informação
tinha sido errada. Não ouviam sequer a canção que vinha
do mar.
A Porta do Mar estava deserta e seu Felipe quase dormia no balcão.
Não tardaria, no entanto, a estar cheia, e então todo acerto
seria impossível com o homem. Ele não haveria de querer conversar
ali com o salão cheio. Poderiam conhecê-lo, e ele não
queria isto. Tampouco o queriam os Capitães da Areia. Em verdade, o
Gato não sabia de que se tratava. E pouco má sabiam Pedro Bala
e João Grande. Sabiam quanto sabia o Querido-de-Deus, a quem o negócio
tinha sido proposto e que o tinha aceito para Pedro Bala e os Capitães
da Areia. No entanto, ele mesmo tinha apenas vagas informações
e iam saber de tudo pelo homem que marcara uma entrevista à tarde na
Porta do Mar. Mas até as seis horas não chegou. Em lugar dele
chegou o tal que tinha falado ao Queridos de-Deus. Chegou na hora em que o
grupo ia sair.
Explicou que homem não tinha podido vir. Mas que esperava o Querido-de-Deus
à noite, na rua em que morava. Viria por volta de uma da madrugada
O Querido-de-Deus declarou que não podia ir, mas que entregava o assunto
aos Capitães da Areia. O intermediário mirou os meninos, desconfiado.
O Querido-de-Deus perguntou: — Nunca ouviu falar nos Capitães da Areia?
— Já, sim. Mas…
— De qualquer jeito quem ia tratar do negócio era eles. Daí…
O intermediário pareceu se conformar. Combinaram pan um da manha
e se separaram. O Querido-de-Deus foi para seu barco, os Capitães da
Areia para o trapiche, o intermediário desapareceu no cais.
O Sem-Pernas não havia ainda voltado. Não havia ninguém
no trapiche. Deviam estar todos espalhados pelas ruas da cidade, cavando o
jantar. Os três saíram novamente e foram comer num restaurante
barato que havia no mercado. Na saída do trapiche, o Gato, que estava
muito alegre com o resultado do jogo, quis passar uma rasteira em Pedro Bala.
Mas este livrou o corpo e derrubou o Gato: — Tou treinado nisso, bestão.
Entraram no restaurante fazendo barulho. Um velho, que era o garçom,
se aproximou com desconfiança. Sabia que os Capitães da Areia
não gostavam de pagar e que aquele de talho na cara era o mais temível
de todos. Apesar de haver bastante gente no restaurante, o velho disse: —
Acabou tudo. Não tem mais bóia.
Pedro Bala replicou: — Deixa de conversa fiada, meu tio. Nós quer
comer.
João Grande bateu a mão na mesa: — Senão a gente vira
esse frege-mosca de cabeça pra baixo.
O velho ficava indeciso. Então o Gato bateu o dinheiro em cima da
mesa: — Hoje nós vai fazer gasto.
Foi um argumento suficiente. O garçom começou a trazer os
pratos: um prato de sarapatel e depois uma feijoada. Quem pagou foi o Gato.
Depois Pedro Bala propôs que fossem andando até Brotas, pois
já que iam a pé tinham muito que caminhar.
— Não vale a pena tomar a taioba — disse Pedro Bala. — É
melhor que ninguém saiba que a gente foi pra lá.
O Gato então disse que chegaria depois e os encontraria lá.
Tinha uma coisa que fazer antes. Ia avisar a Dalva para que não o esperasse
essa noite.
E agora estavam ali, no Ponto das Pitangueiras, esperando que o guarda se
alistasse. Escondidos no vão de um portal, não falavam. Ouviam
o vôo dos morcegos que atacavam os sapotis maduros nos pés. Finalmente,
o guarda andou, eles ficaram espiando até que a sua figura desapareceu
na curva que a rua fazia. Então atravessaram e entraram na alameda
das chácaras e novamente se esconderam num portal. O homem não
tardou muito. Saltou de um automóvel na esquina, pagou a corrida e
veio subindo a alameda. Tudo o que se ouvia eram os seus passos e o rumor
das folhas que o vento balançava nas árvores. Quando o homem
vinha próximo, Pedro Bala saiu do portal.
Os outros vieram logo depois e como que o guardavam, pareciam dois guardacostas.
O homem se aproximou mais do muro junto ao qual vinha andando. Pedro caminhava
para ele. Quando estava defronte, parou: — Pode me dar o fogo, senhor? —
levava na mão um cigarro apagado.
O homem não disse nada. Sacou a caixa de fósforos, estendeu
ao menino.
Pedro riscou um e, enquanto acendia o cigarro, olhou para o: E homem. Depois,
ao entregar a caixa de fósforos, perguntou: — É o senhor que
se chama Joel? — Porquê? — quis saber o homem.
— Foi o Querido-de-Deus que nos mandou.
João Grande e o Gato se aproximavam. O homem mirou os três
com espanto: — Porém são uns meninos! Isso não é
negócio para — Diga o que é, a gente sabe fazer o trabalho
direito — retrucou Pedro Bala, quando os outros dois tinham se aproximado.
— Mas se um negócio que talvez nem homens… — e o homem pôs
a mão na boca, como quem teme ter dito mais do que convinha.
— Nós sabe guardar um segredo tão bem como um cofre. E Capitães
da Areia sempre faz os serviços bem feito…
— Os Capitães da Areia? Esse grupo de que falam os jornais? meninos
abandonados? São vocês? — É a gente, sim. E dos que manda.
O homem parecia refletir. Enfim se decidiu: — Eu preferia entregar esse
negócio a homens. Mas como tem que ser esta noite mesmo… O jeito…
— Vai ver como a gente sabe trabalhar. Não fique assustado.
— Venham comigo. Mas deixem que eu vá na frente. Vocês irão
uns passos atrás de mim.
Os meninos obedeceram. Num portão o homem parou, abriu, ficou esperando.
Veio de dentro um grande cão que lhe lambia as mãos. O homem
fez os três entrarem, atravessaram uma rua de árvores, o homem
abriu a porta da casa. Entraram para uma saleta, o homem pôs a capa
e o chapéu numa cadeira e sentou-se. Os três estavam de pé.
O homem fez sinal para que sentassem e primeiro eles miraram desconfiados
as largas e cômodas poltronas. Isso Pedro Bala e João Grande,
porque o Gato já estava se sentando muito a gosto, numa atitude displicente.
A outro sinal do homem, Pedro e o Grande se sentaram, sendo que João
Grande ficou sentado apenas na ponta da cadeira, como se temesse sujá-la.
O homem tinha um ar de riso. De repente levantou-se e falou, mirando a Pedro,
em quem reconhecera o chefe: — O que vocês vão fazer é
difícil e ao mesmo tempo é fácil. Agora o que tem é
que é uma coisa que necessita que ninguém saiba.
— Não passa daqui — disse Pedro Bala.
O homem puxou o relógio do bolso: São uma e um quarto. Ele
só volta às duas e meia… –olhava os Capitães da Areia
ainda com indecisão.
— Então não é muito tempo — falou Pedro. — Se quer
que a gente vá, é bom desembuchar logo…
O homem se decidiu: — Duas ruas adiante desta. É a penúltima
chácara à direita. Tem que evitar um cachorro que já
deve estar solto. E bravo.
João Grande interrompeu: — O senhor tem ai um pedaço de carne?
— Pra quê? Pro cachorro. Um pedaço chega.
Verei já — olhava os meninos. Parecia perguntar a si mesmo se devia
confiar neles. — Vocês entram pelos fundos. Junto da cozinha, na parte
de fora da casa, tem um quarto por cima da garagem. É o do empregado,
que agora deve estar dentro de casa esperando o patrão. É no
quarto dele que vocês vão entrar.
Devem procurar um embrulho igual a este, igualzinho…
Foi ao bolso da capa, trouxe um pequeno pacote amarrado com uma fita cor-derosa.
— É igualzinho. Não sei se ainda estará no quarto.Também
pode ser que o empregado o tenha no bolso. Se assim for, nada mais se pode
fazer — e um desespero repentino pareceu tomá-lo. — Se eu tivesse
podido ir esta tarde… Então, com certeza, ainda estaria no quarto.
Mas agora quem sabe? — e cobriu o rosto com as mãos.
— Mesmo que esteja com o empregado se pode trazer… — disse Pedro.
— Não. É essencial que ninguém saiba que houve furto
deste embrulho. O que vocês vão fazer é trocar os embrulhos,
se o outro estiver no quarto.
— E se estiver com o empregado? — Então… — e a fisionomia do
homem novamente se alterou. João Grande pensou ouvir um nome que soava
como Elisa. Mas talvez fosse ilusão de João Grande, que por
vezes ouvia e via coisas que ninguém percebia. O negro era muito mentiroso.
— Então a gente troca os embrulhos do mesmo jeito. Pode ficar descansado.
O senhor não conhece os Capitães da Areia.
Apesar do seu desespero, o homem sorriu da bravata de Pedro Bala: — Então
podem ir. Depois, tem que ser antes de duas horas, voltem aqui. Mas só
quando a rua estiver deserta. Eu os esperarei. Acertaremos nossas contas então.
Mas quero dizer outra coisa lealmente. Se vocês forem percebidos e
presos, não me envolvam no caso Nada farei por vocês, porque
meu nome não pode aparecer nisso tudo. Tratem de dar fim a este embrulho
e não me chamem para nada. É ganhar ou perder…
— Neste caso — replicou Pedro Bala — é preciso marcar o preço.
Quanto o senhor paga à gente? — Dou 100$. Trinta para cada e mais
10$ para você — apontou para Pedro.
O Gato se mexeu na cadeira. Pedro fez sinal para que ele se calasse.
— O senhor dá cinqüenta a cada e parece que ainda vai fazer
negócio. São 150 bicos pros três. Senão, não
tem embrulho.
O homem não vacilou muito. Olhava o relógio, onde os ponteiros
corriam: — Está bem.
Aí o Gato falou: — Não é que a gente desconfie do
senhor. Mas a coisa pode sair pelo avesso e o senhor mesmo disse que não
se importaria com o que acontecesse à gente.
— E daí? — repetiu também o homem. Tirou uma carteira do
ou uma nota de cem mil-réis.
Entregou a Ped — É justo que o senhor nos passe logo algum.
João Grande apoiava o Gato com um gesto de cabeça. Pedro Bala
repetiu as últimas palavras do outro: — É justo, sim. Se depois
a gente não pode lhe recorrer…
— Agora toca a andar. Se faz tarde.
Saíram. Pedro Bala disse: — Pode ficar descansado. Daqui a uma hora
a gente volta com o embrulho.
Em frente da casa (a rua estava completamente deserta, numa janela da casa
havia luz e eles viam a sombra de uma mulher que andava de um lado para outro)
o Grande bateu na testa: — Me esqueci da carne pro cachorro.
Pedro Bala estava olhando a janela com luz, se voltou: Não tem nada.
Isso me cheira a coisa de amigamento. O sujeito aquele derrubava a zinha daqui
e agora o empregado tem as cartas que os dois se escrevia e quer dar o alarme.
Esse pacote tá com perfume. É que o outro há de ter.
Fez sinal para os dois esperarem do outro lado da rua, chegou para perto
do portão da casa. Logo que se encostou, um grande cão se aproximou
latindo.
Pedro Bala amarrou um cordel no ferrolho do portão, enquanto o cão
andava de um lado para outro, latindo baixo.
Depois chamou os outros dois: — Tu — apontou pro Gato — fica aqui na
rua pra dar o alarma se vem alguém. Tu, Grande, entra comigo.
Treparam na gradezinha do muro. Pedro Bala puxou com o cordão o ferrolho
e o portão abriu. O Gato tinha ido para a esquina O cão ao ver
o portão aberto se precipitou para a rua, ficou remexendo uma lata
de lixo. Pedro Bala e João Grande pularam o muro, cerraram o portão
para que o cachorro não pudesse entrar, se adiantaram entre as árvores.
Na janela iluminada da casa o vulto de mulher continuava a andar. João
Grande disse baixinho: — Tenho pena dela.
— Quem manda deitar com outros…
Perto da casa o negro ficou para transmitir o aviso do Gato se viesse alguém.
Tinham assovios especiais para estes casos. Pedro Bala rodeou a casa, chegou
à cozinha.
A porta estava aberta, como também a do quarto sobre a garagem. Porém,
antes de subir a escada que dava para o quarto, Pedro espiou pela porta da
cozinha. Na copa havia luz e um homem jogava paciência.Deve ser o tal
empregado, pensou Pedro e rápido se afastou para a escada da garagem.
Subiu de quatro, entrou no quarto do homem.
Não havia luz. Pedro fechou a porta, acendeu um fósforo. Havia
apenas uma cama, um baú e um cabide na parede. O fósforo se
apagou, mas Pedro já estava em cima da cama, que co toda com as mãos.
Depois viu embaixo do colchão. Tampouco nada. Desceu então da
cama, se aproximou, sem fazer ruído, do baú. Suspendeu a tampa,
acendeu um fósforo que prendeu nos dentes. Remexeu a roupa com cuidado,
não havia nada. Cuspiu o fósforo (depois se lembrou que o homem
podia não fumar e então o recolheu ao bolso) e foi até
o cabide. Nada nos bolsos da roupa ali dependurada Pedro Bala acendeu outro
fósforo, mirou todo o quarto: — Com certeza está com o homem.
Agora é que vão ser elas.
Abriu a porta do quarto, desceu as escadas. Chegou na porta da cozinha,
o homem ainda estava sentado. Então Pedro Bala reparou que ele estava
sentado em cima do embrulho. Aparecia uma ponta sob a perna do homem. Pedro
pensou que tudo estava perdido. Como iria ele tirar o embrulho de baixo da
perna do homem? Saiu da porta da cozinha, foi andando para onde estava o Grande.
Só se ele e o Grande atacassem o homem. Mas aí haveria gritaria,
todo mundo saberia do roubo. E o senhor que os tinha empregado não
queria saber disso. De repente teve uma idéia. Chegou perto de onde
tinha deixado o Grande, assoviou baixinho.
João Grande apareceu logo. Pedro falou em voz muito baixa: — Olha,
Grande, o tal empregado tá sentado em riba do embrulho. Tu vai chegar
na porta da rua, apertar a campainha e sumir depois. É pro homem se
levantar e eu abafar o embrulho. Mas dá o suíte logo pro homem
não te ver, pensar que foi sonho. Deixa passar o tempo de eu chegar
na cozinha.
Voltou rápido para a porta da cozinha. Dai a um minuto a campainha
soou. O empregado levantou-se às pressas, abotoou o paletó e
se dirigiu para a frente da casa pelo corredor, onde acendeu uma luz. Pedro
Bala penetrou na copa, trocou os pacotes e abriu para os lados da chácara.
Saltou o muro, assoviou para o Gato e João Grande. O Gato veio logo.
Mas João Grande não apareceu. Andaram de um lado para outro
e o negro não chegava. Pedro começava a ficar impaciente pensando
que o empregado podia ter surpreendido João Grande e agora estar atracado
com ele. Mas quando ele passara por aqueles lados não havia escutado
nenhum ruído… Disse: — Se ele demorar, a gente entra.
Assoviaram novamente, não tiveram resposta. Pedro Bala resolveu:
— Vamos entrar de novo…
Mas ouviram o assovio de João Grande, que não tardou a estar
ao lado deles.
Pedro perguntou: — Onde tu te meteu? O Gato tinha pegado o cachorro pela
coleira e o punha para dentro do portão. Tiraram o cordel do ferrolho
e desapareceram pelo outro lado da rua. Aí o Grande aplicou: — Na
hora que meti o dedão na campainha entonce a dama lá em cima
ficou muito assustada. Pegou, abriu a janela, parecia que ia se atirar mesmo.
Espiava que fazia medo. Tava mesmo chorando. Entonces eu tava com pena e
trepei pela bica pra dizer a ela que não chorasse mais, que não
tinha mais de quê.
Que a gente tinha abafado os papéis. E como tive que aplicar tudo
a ela, tive que demorar…
O Gato perguntou muito curioso: — Era boa, era? — Era boa, sim. Passou
a mão na minha cabeça, depois me disse que muito obrigado, que
Deus ia me ajudar.
— Deixa de ser burro, negro. Eu tava perguntando se era boa mas pra cama.
Se tu viu o coxame…
O negro não respondeu. Um automóvel entrava pela rua. Pedro
Bala bateu no ombro do negro e João Grande sabia que o chefe estava
aprovando o que ele fizera. Então seu rosto se abriu de satisfação
e murmurou: — Eu só queria ver acara do galego quando o patrão
abrir o pacote não encontrar o que esperavam.
E, já em outra rua, os três soltaram a larga, livre e ruidosa.
gargalhada dos Capitães da Areia, que era como um hino do povo da Bahia.
As luzes do carrossel
O Grande Japonês não era senão um pequeno carrossel
nacional, que vinha de uma triste peregrinação pelas paradas
cidades do interior naqueles meses de inverno, quando as chuvas são
longas e o Natal está muito distante ainda. De tão desbotada
que estava a tinta, tinta que antigamente fora azul e vermelha e agora o azul
era um branco sujo e o vermelho um quase cor-de-rosa, e de tantos pedaços
que faltavam em certos cavalos e em certos bancos, Nhozinho França
resolveu não armá-lo numa das praças centrais da cidade
e sim em Itapagipe. Ali as famílias não são tão
ricas, há muitas ruas só de operários e as crianças
pobres saberiam gostar do velho carrossel desbotado. O pano tinha muitos buracos
também, além de um rasgão enorme que fazia o carrossel
depender da chuva. Já fora belo, fora mesmo o orgulho da meninada de
Maceió noutros tempos. Ficava então ao lado de uma rodagigante
e de uma sombrinha, sempre na mesma praça, e nos domingos e feriados
as crianças ricas, vestidas de marinheiro ou de pequeno lorde inglês,
as meninas de holandesa ou de finos vestidos de seda, vinham se aboletar nos
cavalos preferidos, indo os menores nos bancos com as aias. Os pais iam para
a roda-gigante, outros preferiam a sombrinha onde podiam empurrar as mulheres,
tocando muitas vezes nas coxas e nas nádegas.
O parque de Nhozinho França era naquele tempo a alegria da cidade.
E, mais que tudo, o carrossel dava dinheiro, rodando incansavelmente com as
suas luzes de todas as cores. Nhozinho achava a vida boa, as mulheres belas,
os homens amáveis para com ele, mas achava que a bebida era boa também,
fazia os homens mais amáveis e as mulheres mais belas. E bebeu assim
primeiro a sombrinha, depois a roda-gigante.
Depois, como não queria se separar do carrossel, ao qual tinha um
pegadio especial, o desarmou uma noite com o auxílio de amigos e começou
a peregrinar nas cidades de Alagoas e Sergipe. Enquanto isto, os credores
o xingavam de quanto nome feio conheciam.
Andou muito Nhozinho França com o seu carrossel. Depois de percorrer
todas as cidadezinhas dos dois estados, de se embriagar em todos os seus bares,
penetrou no estado da Bahia e até para o bando de Lampião e
lê deu uma função. Estava numa pobre vila do sertão
e não lhe faltava o dinheiro apenas para o transporte do seu carrossel.
Faltava para o miserável hotel onde se hospedara e que era o único
da vila, e também o trago de pinga, para a cerveja, que não
era gelada ali, assim mesmo ele gostava. O carrossel armado no capim da praça
da Matriz estava parado fazia uma semana.
Nhozinho França esperava a noite de sábado e a tarde de domingo
para ver se fazia algum cobre para arribar para um lugar melhor. Mas na sexta-feira
Lampião entrou na vila com vinte e dois homens e então o carrossel
teve muito que trabalhar.
Como as crianças, os grandes cangaceiros, homens que tinham vinte
e trinta mortes, acharam belo o carrossel, acharam que mirar suas luze rodando,
ouvir a música velhíssima da sua pianola e montar naqueles estropiados
cavalos de pau era a maior felicidade. E o carrossel de Nhozinho França
salvou a pequena vila de ser saqueada, as moças de serem defloradas,
os homens de serem mortos. Só mesmo os dois soldados da polícia
baiana que lustravam as botas na frente do posto policial foram fuzilados
pelos cangaceiros, assim mesmo antes que eles vissem o carrossel armado na
praça da Matriz. Porque talvez ai aos soldados da polícia baiana
Lampião perdoasse nessa noite de suprema felicidade para o bando de
cangaceiros. Então eles foram como crianças, gozaram daquela
felicidade que nunca haviam gozado na sua meninice de filhos de camponeses:
montar e rodar num cavalo de madeira de um carrossel, onde havia música
de uma pianola e onde as luzes eram de todas as cores: azuis, verdes, amarelas,
roxas vermelhas como o sangue que sai do corpo dos assassinados.
Isso mesmo contou Nhozinho a Volta Seca (que ficou excitadíssimo)
e ao Sem- Pernas naquela tarde em que os encontrou na Porta do Mar e os convidou
para que o ajudassem no serviço de carrossel durante os dias que estivesse
armado na Bahia, em Itapagipe. Não podia marcar ordenado, mas talvez
desse para tirar cada um uns cinco mil-réis por noite. E quando Volta
Seca mostrou suas habilidades em imitar animais os mais vários, Nhozinho
França se entusiasmou por completo, mandou baixar mais uma garrafa
de cerveja declarou que Volta Seca ficaria na porta chamando o público,
enquanto o Sem-Pernas o ajudaria com as máquinas e tomaria conta pianola.
Ele mesmo venderia as entradas enquanto o carrossel estivesse parado. Quando
estivesse rodando, Volta Seca o faria. E de quando em vez, disse piscando
o olho, um sai pra tomar uma pinga enquanto o outro faz o serviço de
dois.
Volta Seca e o Sem-Pernas nunca haviam acolhido uma com tanto entusiasmo.
Eles muitas vezes já tinham visto um carrossel mas quase sempre ouviam
de longe, cercado de mistério, cavalgadas seus rápidos ginetes
por meninos ricos e choraminguentos. O Se Pernas já tinha mesmo (certo
dia em que penetrou num Parque de Diversões armado no Passeio Público)
chegado a comprar entrada para um, mas o guarda o expulsou do recinto porque
ele estava vestido de farrapos. Depois o bilheteiro não quis lhe devolver
o bilhete da entrada, o que fez com que o Sem-Pernas metesse as mãos
na gaveta da bilheteria, que estava aberta, abafasse o troco, e tivesse que
desaparecer do Passeio Público de uma maneira muito rápida,
enquanto em todo o Parque se ouviam os gritos de: Ladrão!, ladrão!
Houve uma tremenda confusão, enquanto o Sem-Pernas descia muito calmamente
a Gamboa de Cima, levando nos bolsos pelo menos cinco vezes o que tinha pago
pela entrada. Mas o Sem-Pernas preferiria, sem dúvida, ter rodado no
carrossel, montado naquele fantástico cavalo de cabeça de dragão,
que era sem dúvida a coisa mais estranha e tentadora na maravilha que
era o carrossel para os seus olhos. Criou ainda mais ódio aos guardas
e maior amor aos carrosséis distantes. E agora, de repente, vinha um
homem que pagava cerveja e fazia o milagre de o chamar para viver uns dias
junto a um verdadeiro carrossel, movendo com ele, montando nos seus cavalos,
vendo de perto rodarem as luzes de todas as cores. E para o Sem-Pernas, Nhozinho
França não era o bêbado que estava em sua frente na pobre
mesa da Porta do Mar. Para seus olhos era um ser extraordinário, algo
como Deus, para quem rezava Pirulito, algo como Xangô, que era o santo
de João Grande e do Querido-de-Deus. Porque nem o padre José
Pedro e nem mesmo a mãe-de-santo Don’Aninha seriam capazes de realizar
aquele milagre. Nas noites da Bahia, numa praça de Itapagipe, as luzes
do carrossel girariam loucamente movimentadas pelo Sem-Pernas.
Era como num sonho, sonho muito diverso dos que o Sem-Pernas costumava ter
nas suas noites angustiosas. E pela primeira vez seus olhos sentiram-se úmidos
de lágrimas que não eram causadas pela dor ou pela raiva. E
seus olhos úmidos miravam Nhozinho França como a um ídolo.
Por ele até a garganta de um homem o Sem- Pernas abriria com a navalha
que traz entre a calça e o velho colete preto que lhe serve de paletó.
— É uma beleza — disse Pedro Bala olhando o velho carrossel armado.
E João Grande abria os olhos para ver melhor. Penduradas estavam as
lâmpadas azuis, verdes, amarelas, roxas, vermelhas.
É velho e desbotado o carrossel de Nhozinho França. Mas tem
a sua beleza.
Talvez esteja nas lâmpadas, ou na música da pianola (velhas
valsas de perdido tempo), ou talvez nos ginetes de pau. Entre eles tem um
pato que é para sentar dentro os mais pequenos.. Tem a sua beleza,
sim, porque a opinião unânime dos Capitães da Areia é
que ele é maravilhoso. Que importa que seja velho, roto e de cores
apagadas se agrada às crianças? Foi uma surpresa quase incrível
quando naquela noite o Sem-Pernas chegou ao trapiche dizendo que ele e Volta
Seca iam trabalhar uns dias num carrossel.
Muitos não acreditaram, pensaram que fosse mais uma pilhéria
do Sem-Pernas. Então iam perguntar a Volta Seca que, como sempre, estava
metido no seu canto sem falar, examinando um revólver que furtara numa
casa de armas. Volta Seca fazia que sim com a cabeça e por vezes dizia:
— Lampião já rodou nele, Lampião é meu padrim…
O Sem-Pernas convidou a todos para irem ver o carrossel na outra noite,
quando o acabariam de armar. E saiu para encontrar Nhozinho –França.
Naquele momento todos os pequenos corações que pulsavam no trapiche
invejaram a suprema felicidade do Sem-Pernas, piano mesmo Pirulito, que tinha
quadros de santos na sua parede, Volta mesmo João Grande, que nessa
noite iria com o Querido-de-Deus ao candomblé de Procópio, no
Matatu, até mesmo o Professor, que lia livros, e quem sabe se também
Pedro Bala, que nunca tivera inveja de nenhum porque era o chefe de todos?
Todos o invejaram, sim. Como invejaram Volta Seca, que no seu canto, o cabelo
mestiço e despenteado, os olhos apertados e a boca rasgada naquele
rictus raiva, apontava o revólver ora para um dos meninos, ora para
um todos que passava, ora para as estrelas, que eram muitas no céu.
Na outra noite foram todos com o Sem-Pernas e Volta Seca (e tinham passado
o dia fora, ajudando Nhozinho a armar o carrossel) ver o carrossel armado.
E estavam parados diante dele, extasiados beleza, as bocas abertas de admiração.
O Sem- Pernas mostrava tu Volta Seca levava um por um para mostrar o cavalo
que tinha s cavalgado por seu padrinho Virgulino Ferreira Lampião.
Eram quase cem crianças olhando o velho carrossel de Nhozinho França,
estas horas estava encornado num pifão tremendo na Porta do Mar.
O Sem-Pernas mostrou a máquina (um pequeno motor que falhava muito)
com um orgulho de proprietário. Volta Seca não se desprendia
do cavalo onde rodara Lampião.
O Sem-Pernas estava muito cuidadoso do carrossel e não deixava que
eles o tocassem, que bulissem em nada.
Foi quando o Professor perguntou: — Tu já sabe mover com as máquinas?
— Amanhã é que vou saber… — disse o Sem-Pernas com um certo
desgosto. – Amanhã seu Nhozinho vai me ensinar.
— Então amanhã, quando acabar a função, tu
pode botar ele pra rodar só com a gente. Tu bota as coisas pra andar,
a gente se aboleta.
Pedro Bala apoiou a idéia com entusiasmo. Os outros esperavam a resposta
do Sem-Pernas ansiosos. O Sem-Pernas disse que sim, e então muitos
bateram palmas, outros gritaram. Foi quando Volta Seca deixou o cavalo onde
montara Lampião e veio para eles: — Quer ver uma coisa bonita? Todos
queriam. O sertanejo trepou no carrossel, deu corda na pianola e começou
a música de uma valsa antiga. O rosto sombrio de Volta Seca se abria
num sorriso.
Espiava a pianola, espiava os meninos envoltos em alegria. Escutavam religiosamente
aquela música que saía do bojo do carrossel na magia da noite
da cidade da Bahia só para ai ouvidos aventureiros e pobres dos Capitães
da Areia. Todos estavam silenciosos. Um operário que vinha pela rua,
vendo a aglomeração de meninos na praça, veio para o
lado deles. E ficou também parado, escutando a velha música.
Então a luz da lua se estendeu sobre todos, as estrelas brilharam ainda
mais no céu, o mar ficou de todo manso (talvez que Yemanjá tivesse
vindo também ouvir a música) e a cidade era como que um grande
carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os Capitães da
Areia. Neste momento de música eles sentiram-se donos da cidade. E
amaram-se uns aos outros, se sentiram irmãos porque eram todos eles
sem carinho e sem conforto e agora tinham o carinho e conforto da música.
Volta Seca não pensava com certeza em Lampião neste momento.
Pedro Bala não pensava em ser um dia o chefe de todos os malandros
da cidade. O Sem-Pernas em se jogar no mar, onde os sonhos são todos
belos. Porque a música saía do bojo do velho carrossel só
para eles e para o operário que parara. E era uma unidade valsa velha
e triste, já esquecida por todos os homens da cidade.
Desemboca gente de todas asmas. E noite de sábado, amanhã
os homens não irão para o trabalho. Podem demorar na rua essa
noite. Muitos preferiram ir para os bares,a Porta do Mar está cheia,
mas co que tinham filhos vieram com eles para a praça, que é
mal iluminada. Em compensação aí estão as luzes
do carrossel que rodam.
As criança olham para elas e batem palmas. Em frente à bilheteria
Volta Seca imita vozes de animais e chama o público. Leva uma cartucheira
como se estivesse no sertão.
Nhozinho França achou que isto chamaria a atenção do
povo e Volta Seca parece mesmo um cangaceiro com o chapéu de couro
e a cartucheira atravessada. E imita animais até que se reúnam
homens, mulheres e crianças na sua frente. Então oferece entradas,
que as crianças compram. Vai uma alegria por toda a praça. As
luzes do carrossel alegram a todos. No centro, agachado, o Sem-Pernas ajuda
Nhozinho França a botar o motor para trabalhar. E carrossel gira, carregado
de meninos, a pianola toca suas velhas valsa, Volta Seca vende entradas.
Na praça, casais de namorados passeiam. Mães de família
compram picolés e sorvetes, um poeta sentado perto do mar faz um poema
sobre as luzes do carrossel e a alegria das crianças. O carrossel ilumina
toda a praça e todos os corações. A cada momento desemboca
das ruas e dos becos. Volta Seca imita os animais, vestido de cangaceiro.
Quando o carrossel pára de girar, os meninos o invadem, exibindo o
bilhete de ingresso, e é difícil conte-los. Quando um encontra
mais lugar, fica com um rosto magoado de desilusão e impaciente a sua
vez. E quando o carrossel pára, os que vão nele querem saltar,
é preciso que o Sem-Pernas venha e diga: — Pula fora! Pula fora! Ou
então compra outra entrada.
Só assim deixam os velhos cavalos, que nunca se cansam da corrida.
Outros cavalgam os ginetes e a corrida recomeça, as girando, todas
as cores fazendo uma cor única e estranha, a pi tocando sua antiga
música. Também vão casais de namorados bancos e enquanto
gira o carrossel murmuram palavras de amor. Há mesmo quem troque um
beijo na corrida, quando o motor falha e as luzes se apagam. Então
Nhozinho França e o Sem-Pernas se debruçam sobre o motor e examinam
o defeito até a corrida recomeçar, abafando os protestos dos
meninos. O Sem-Pernas já aprendeu todos os mistérios do motor.
Certa hora Nhozinho França manda que o Sem-Pernas vá substituir
Volta Seca na venda de bilhetes. E manda que Volta Seca vá andar no
carrossel. E o menino toma o cavalo que serviu a Lampião. E enquanto
dura a corrida, vai pulando como se cavalgasse um verdadeiro cavalo. E faz
movimentos com o dedo, como se atirasse nos que vão na sua frente,
e na sua imaginação os vê cair banhados em sangue, sob
os tiros da sua repetição. E o cavalo corre e cada vez com mais,
e ele mata a todos,porque são todos soldados ou fazendeiros ricos.
Depois possui nos bancos a todas as mulheres, saqueia vilas, cidades, tens
de ferro, montado no seu cavalo, armado com seu rifle.
Depois vai o Sem-Pernas. Vai calado, uma estranha comoção
o possui. Vai como um crente para uma missa, um amante para o seio da mulher
amada, um suicida para a morte. Vai pálido e coxenia. Monta um cavalo
azul que tem estrelas pintadas no lombo de madeira. Os lábios estão
apertados, seus ouvidos não ouvem a música da pianola Só
vê as luzes que giram com ele e prende em si a certeza de que está
num carrossel, girando num cavalo como todos aqueles meninos que têm
pai e mãe, e uma casa e quem os beije e quem os ame. Pensa que é
um deles e fecha os olhos para guardar melhor esta certeza. Já Se vê
os soldados que o surraram, o homem de colete que ria. Volta Seca os matou
na sua corrida. O Sem-Pernas vai teso no seu cavalo. É como se corresse
sobre o mar para as estrelas, na mais maravilhosa viagem do mundo.
Uma viagem como o Professor nunca leu nem inventou. Seu coração
bate tanto, tanto, que ele o aperta com a mão.
Nesta noite os Capitães da Areia não vieram. Não só
a função carrossel na praça terminou muito tarde (às
duas horas da manhã os homens ainda rodavam), como muitos deles, inclusive
Pedro Bala Boa-Vida, Barandão e o Professor, estavam ocupados em viria
assuntos. Marcaram para o dia seguinte, das três para as quatro da manhã.
Pedro Bala perguntou ao Sem-Pernas se ele já sabia manobrar bem com
o motor: Não paga a pena dar um prejuízo ao teu patrão
— explicou.
— Já sei aquilo tudo de cor e decorado. É o tipo da coisa
canja.
O Professor, que jogava damas com João Grande, perguntou: — Não
era bom agente de tarde dá um pulo na praça? Quem sabe se não
vale a pena? Eu vou — falou Pedro Bala. — Mas acho que não pode ir
muitos. A turma pode desconfiar de ver tanto junto.
O Gato disse que de tarde não ia. Tinha o que fazer, já que
à noite ia estar ocupado no carrossel. O Sem-Pernas mangou: –Tu não
pode passar um dia sem bater coxas com essa bruaca, não é? Tu
vai acabar tatu…
O Gato não respondeu. João Grande também não
iria à tarde. Tinha que ir encontrar como Querido-de-Deus para irem
comer uma feijoada na casa de Don’Aninha, a mãe-de-santo.
Finalmente ficou resolvido que fosse um grupo pequeno operar à tarde
na praça.
Os outros iriam para onde bem quisessem. Só à noite se reuniriam
para irem todos correr no carrossel.
— É preciso levar gasolina, gente, pro motor.
O Professor (tinha vencido João Grande já em três partidas)
fez uma coleta para comprarem dois litros de gasolina: — eu levo.
Mas na tarde do domingo chegou o padre José Pedro, que era uma das
raríssimas pessoas que sabiam onde ficava a pousada mais permanente
dos Capitães da Areia. O padre José Pedro se fizera amigo deles
há bastante tempo. A amizade veio por intermédio do Boa-Vida.
Este, um dia, penetrara, após uma missa, na sacristia de uma igreja
onde oficiava padre José Pedro. Penetrara mais por curiosidade que
por outra qualquer coisa. Boa-Vida não era dos que mais faziam pela
vida. Gostava de deixar a vida correr, sem se preocupar muito. Era mais um
parasita do grupo. Um dia, quando lhe dava ganas, entrava numa casa de onde
trazia um objeto de valor ou batia o relógio de um homem. Quase nunca
o punha ele mesmo na mão dos intermediários. Trazia e entregava
a Pedro Bala, assim como uma contribuição que dava ao grupo.
Tinha muitos amigos entre os estivadores do cais, em várias casas pobres
da Cidade de Palha, em muitos pontos da Bahia Comia em casa de um, em casa
de outro.
Em geral não aborrecia a nenhum. Se contentava com as mulheres que
sobravam do Gato e mais que nenhum conhecia a cidade, suas ruas, seus lugares
curiosos, uma festa onde podiam ir beber e dançar. Quando já
tinha algum tempo que havia contribuído com algum objeto de valor para
a economia do grupo, fazia um esforço, arranjava algo que rendesse
dinheiro e entregava a Pedro Bala. Mas realmente não gostava de nenhuma
espécie de trabalho, fosse honesto ou desonesto. Gostava era de deitar
na areia do cais, horas e horas espiando os navios, de ficar de cócoras
tardes inteiras nos portões dos armazéns do porto ouvindo histórias
de valentias. Vestiase de farrapos, pois só providenciava arranjar
uma roupa quando seu traje caía aos pedaços. Gostava de andar
ao léu nas ruas da cidade, entrando nos jardins para fumar um cigarro
sentado num banco, entrando nas igrejas para espiar a beleza do ouro velho,
flanando pelas ruas calçadas de grandes pedras negras.
Naquela manhã, quando viu o povo saindo da missa, entrou a igreja
displicentemente e foi furando até a sacristia. Espiava tudo, os altares,
os santos, riu de um São Benedito muito preto. Na sacristia não
tinha ninguém e ele viu um objeto de ouro que devia dar muito dinheiro.
Espiou mais uma vez, não viu ninguém. Foi passando a mão
mas alguém tocou no seu ombro. O padre José Pedro acabara de
entrar: — Por que faz isso, meu filho? — perguntou com um sorris enquanto
tirava da mão do Boa-Vida o relicário de ouro.
— Tava só dando uma espiada, reverendo. É batuta –responde
Boa-Vida com certo receio. — E batuta mesmo. Mas não vá pensando
que ia levar. Ia deixar aí direitinho.
Sou de boa família.
O padre José Pedro espiou as roupas do Boa-Vida e riu. Boa-Vida olhou
também para seus trapos: — É que meu pai morreu, sabe? Mas
até num colégio estive… Tou falando a verdade. Pra que é
que eu ia roubar essa coisa? apontava o relicário. — Demais numa igreja.
Não sou pagão.
O padre José Pedro sorriu de novo. Sabia perfeitamente que Boa-Vida
estava mentindo. Há muito que ele aguardava uma oportunidade para travar
relações com as crianças abandonadas da cidade. Pensava
que aquela era a missão que lhe estava reservada. Já fizera
umas tantas visitas ao reformatório de menores, mas ali lhe punham
todas as dificuldades porque ele não esposava as idéias do diretor
de que é necessário surrar uma criança para a emendar
de um erro. E mesmo o diretor tinha idéias únicas sobre os erros.
Há bastante tempo que o padre José Pedro ouvia falar nos Capitães
da Areia e sonhava entrar em contato com eles, poder trazer todos aqueles
corações a Deus. Tinha uma vontade enorme de trabalhar com aquelas
crianças, de ajudá-las a serem boas. Por isso tratou o melhor
que pôde a Boa- Vida. Quem sabe se por intermédio dele não
chegaria, aos Capitães da Areia? E assim foi.
O padre José Pedro não era considerado uma grande inteligência
entre o clero.
Era mesmo um dos mais humildes entre aquela legião de padres da Bahia.
Em verdade fora cinco anos operário numa fábrica de tecidos,
antes de entrar para o seminário. O diretor da fábrica, num
dia em que o bispo a visitara, resolveu dar mostra de generosidade e disse
que já que o senhor bispo se queixava da falta de vocação
sacerdotal, ele estava disposto a custear os estudos de um seminarista ou
de alguém que quisesse estudar para padre. José Pedro, que estava
no seu tear, ouvindo, se aproximou e disse que ele queria ser padre. Tanto
o patrão como o bispo tiveram uma surpresa. José Pedro já
não era moço e não tinha estudo algum. Mas o patrão,
diante do bispo, não quis voltar atrás. E José Pedro
foi para o seminário.
Os demais seminaristas riam dele. Nunca conseguiu ser um bom aluno. Bem
comportado, isso era. Também dos mais devotos, daqueles que mais se
acercavam da igreja.
Não estava de acordo com muitas das coisas que aconteciam no seminário
e por isso os meninos o perseguiam. Não conseguia penetrar os mistérios
da filosofia, da teologia e do latim. Mas era piedoso e tinha desejos de catequizar
crianças ou índios. Sofreu muito, principalmente depois que,
passados dois anos, o dono da fábrica deixou de pagar seus gastos e
ele teve que trabalhar de bedel no seminário para poder continuar.
Mas conseguiu se ordenar e ficou adido a uma igreja da capital, esperando
uma paróquia. Porém seu grande desejo era catequizar as crianças
abandonadas da cidade, os meninos que, sem pai e sem mãe, viviam do
roubo, em meio a todos os vícios.
O padre José Pedro queria levar aqueles corações todos
a Deus. Assim começou a freqüentar o reformatório de menores,
onde a princípio o diretora recebia com muita cortesia. Mas quando
ele declarou contra os castigos corporais, contra deixar as crianças
co fome dias seguidos, então as coisas mudaram. Um dia teve escrever
uma carta sobre o assunto para a redação de um jornal. Então
sua entrada foi proibida no eformatório e até uma queixa contra
foi dirigida ao arcebispado. Por isso não teve uma freguesia Porém
seu maior desejo era conhecer os Capitães da Areia, problema dos menores
abandonados e delinqüentes, que quase preocupava a ninguém em
toda a cidade, era a maior preocupação padre José Pedro.
Ele queria se aproximar daquelas crianças não para trazê-las
para Deus, como para ver se havia algum meio melhorar sua situação.
Pouca influência tinha o padre José Pedro. Não tinha mesmo
influência nenhuma, nem tampouco sabia como agir para ganhar a confiança
daqueles pequenos ladrões. Mas s que a vida deles era falta de todo
o conforto, de todo carinho, uma vida de fome e de abandono. E se o padre
José Pedro não cama, comida e roupa para levar até eles,
tinha pelo menos pala de carinho e, sem dúvida, muito amor no seu coração.
Numa se enganou, a princípio, o padre José Pedro: em lhes oferecer,
troca do abandono da liberdade que gozavam, soltos na rua, possibilidade de
vida mais confortável. O padre José Pedro sabia que não
podia acenar com o reformatório àquelas crianças. Ele
conhecia demais as leis do reformatório, as escritas e as que cumpriam.
E sabia que não havia possibilidade de nele uma criança tomar
boa e trabalhadora.
Mas o padre José Pedro confiava em amigas que possuía, beatas
velhas e religiosas. Elas podiam se encarregar de vários dos Capitães
da Areia, de educálos e alimentá-los.
Mas isso seria o abandono de tudo de grande que tinha a vida a aventura
da liberdade nas ruas da mais misteriosa e bela das cidades do mundo, nas
ruas da Bahia de Todos os Santos. E logo que, intermédio de Boa-Vida,
o padre José Pedro fez relações com Capitães da
Areia, viu que se lhes fizesse essa proposta perderia a confiança que
já depositavam nele e que se mudariam do trapiche ele nunca mais os
veria.
Além do mais não tinha absoluta co naquelas solteironas velhuscas
que viviam metidas na igreja e aproveitavam os intervalos das missas para
comentarem a vida Lembrava-se que, a princípio, elas tinham ficado
magoadas com ele porque, ao acabar de celebrar pela primeira vez naquela igreja,
um grupo de beatas se acercou dele com o evidente propósito de o ajudar
a mudar os trajes do oficio da missa. E ressoaram em torno a ele exclamações
comovidas: — Reverendozinho… Anjo Gabriel…
Uma velhusca magra juntava as mãos em adoração: —
Meu Jesuscristozinho…
Pareciam adorá-lo e o padre José Pedro se revoltou. Em verdade
ele sabia que a grande maioria dos padres não se revoltava e ganhava
tons presentes de galinhas, perus, lenços bordados e por vezes até
antigos relógios de ouro que passavam através de gerações
na mesma família. Mas o padre José Pedro tinha outra idéia
da sua missão, pensava que os outros estavam errados e foi com um furor
sagrado que disse: — As senhoras não têm o que fazer? Não
têm casa de que cuidar? Eu não sou jesuscristozinho, nem Anjo
Gabriel… Vão para suas casas trabalhar, preparar o almoço,
coser.
As beatas o olhavam assombradas. Era como se ele fosse o próprio
Anticristo. O padre completou: — Em suas casas trabalhando servem melhor
a Deus que aqui cheirando as fraldas dos padres… Vão, vão…
E enquanto elas saíam atemorizadas, ele repetia mais com magoa que
com raiva: — Jesuscristozinho… O nome de Deus em vão.
As beatas foram diretas ao padre Clóvis, que era gordo, calvo e muito
bem-humorado, confessor preferido de todas elas. Narraram-lhe entre exclamações
de assombro o que acabara de se passar. O padre Clóvis mirou as beatas
com um olhar terno e as consolou: — Logo passará… Isto é
começo. Depois ele verá que vocês são mis santas,
umas verdadeiras filhas do Senhor. Isso passará. Não fiquem
tristes. Vão rezar um padre-nosso e não se esqueçam que
há benção hoje.
Ficou rindo quando elas partiram. E murmurava de si para si: — Esses padres
recém-ordenados estragam a vida da gente…
Depois as beatas foram aos poucos se aproximando novamente do padre José
Pedro. A verdade é que nunca chegaram a ter com uma perfeita intimidade.
O seu ar sério, a sua bondade que se reservava para quando se fazia
necessária, e seu horror às intriguinhas sacristia faziam com
que elas o respeitassem mais que o amassem.
Algumas, no entanto, aquelas que em geral eram ou viúvas ou esposas
de maus maridos, se fizeram mais ou menos suas amigas. Outra cais o afastava
das beatas: ele era a negação do pregador. Nunca havia conseguido
descrever o inferno com a força de convicção do padre
Clóvis, por exemplo. Sua retórica era pobre e falha. No entanto,
ele acreditava, ele era um crente. E dificilmente se poderia dizer que padre
Clóvis acreditasse pelo menos no inferno.
A princípio o padre José Pedro pensara em levar os Capitães
da Areia às beatas.
Pensava que assim salvaria não só as crianças de vida
miserável, como salvaria também as beatas de uma inutilidade
perniciosa. Poderia conseguir que elas se dedicassem aos meninos com a mesma
fervorosa devoção com que se dedicavam às igrejas, aos
gordos padres. O padre José Pedro adivinhava (mais do que sabia) se
elas passavam os dias em inúteis conversas nas igrejas, ou aba lenços
para o padre Clóvis, era porque não haviam tido, na malograda
existência de virgens, um filho, um esposo, a quem dedicar seu tempo
e seu carinho. Agora ele levaria filhos para elas.
Muito tempo o padre José Pedro acariciou este projeto. Chegou mesmo
levar para casa de uma um menino do reformatório. Isso muito de conhecer
os Capitães da Areia, quando apenas ouvia falar nela experiência
deu maus resultados: o menino arribou da casa da solteirona levando uns objetos
de prata, preferindo a liberdade da rua mesmo vestido de farrapos e sem muita
certeza de almoço, aos trajes e ao almoço garantido com a obrigação
de rezar o terço em alta, assistir várias missas e bênçãos
todos os dias. Depois o padre José Pedro compreendeu que a experiência
tinha fracassado mais por culpa da solteirona que do menino. Porque evidentemente
— pensa padre José Pedro — é impossível converter uma
criança abandona e ladrona em um sacristão. Mas é muito
possível convertê-la em um homem trabalhador… E esperava quando
conhecesse os Capitães da Areia entrar num acordo com alguns deles
e com as beatas para tá uma nova experiência, agora bem dirigida.
Mas logo depois que<br> Boa-Vida o apresentou ao grupo, que aos poucos
ganhou a confiança da maioria, viu que era totalmente inútil
pensar nesse projeto. Viu que era absurdo, porque a liberdade era o sentimento
mais arraigado nos corações dos Capitães da Areia e que
tinha que tentar outros meios.
Nas primeiras vezes os meninos o olhavam com desconfiança. Ouviam
muitas vezes na rua dizer que padre dava peso, que negócio de padre
era para mulher.
Mas o padre José Pedro tinha sido operário e sabia como tratar
os meninos. Tratava-os como a homens, como a amigos. E assim conquistou a
confiança deles, se fez amigo de todos, mesmo daqueles que, como Pedro
Bala e o Professor, não gostavam de rezar.
Dificuldade grande só teve mesmo com o Sem-Pernas. Enquanto que o
Professor, Pedro Bala, o Gato eram indiferentes às palavras do padre
(o Professor, no entanto, gostava dele, pois lhe trazia livros), Pirulito,
Volta Seca e João Grande, principalmente o primeiro, muito atentos
ao que ele dizia, o Sem-Pernas lhe fazia uma oposição que a
princípio tinha sido muito tenaz. Porém o padre José
Pedro terminara por conquistar a confiança de todos. E pelo menos em
Pirulito descobrira uma vocação sacerdotal.
Mas naquela tarde não foi com muita satisfação que
o viram chegar. Pirulito se aproximou e beijou a mão do padre. Volta
Seca também. Os demais o cumprimentaram.
O padre José Pedro explicou: — Hoje venho fazer um convite a todos
vocês.
Os ouvidos se fizeram atentos. O Sem-Pernas resmungou: –Vai chamar a gente
pra bênção. Só quero ver quem topa…
Mas se calou porque Pedro Bala o olhava com raiva. O padre sorriu com bondade.
Sentou-se num caixão, João Grande viu que a batina dele era
suja e velha. Tinha remendos feitos com linha preta e era grande para a magreza
do padre. Cutucou Pedro Bala, que espiou também. Então o Bala
disse: — Minha gente,o padre José Pedro, que é amigo de nós,
tem uma bisa pra gente.
Viva o padre José Pedro! João Grande sabia que tudo era por
causa da batina rasgada e grande para a magreza do padre. Os outros responderam
viva, o padre sorriu acenando com a mão, João Grande não
tirava os olhos da batina. Pensou que Pedro Bala era mesmo um chefe, sabia
de tudo, sabia fazer tudo. Por Pedro Bala, João Grande se deixaria
cortar a facão como aquele negro de Ilhéus por Barbosa, o grande
senhor do cangaço. O padre José Pedro meteu a mão no
bolso da batina, tirou o breviário negro. Abriu e de dentro sacou algumas
notas de dez mil-réis:– Isso é pra gente andar no carrossel
hoje… Convido vocês todos para andarem hoje no carrossel da praça
de Itapagipe.
Esperava que os rostos se animassem mais. Que uma extraordinária
alegria reinasse em toda sala. Porque assim ficaria ainda mais convicto de
que estava servindo a Deus quando daqueles quinhentos mil-réis que
dona Guilhermina Silva dera para comprar velas pano altar da Virgem tirara
cinqüenta mil-réis para levar os Capitães da Areia ao carrossel.
E como os rostos não ficaram subitamente alegres, ele ficou desconcertado,
as notas na mão, olhando a multidão de meninos. Pedro Bala coçou
o cabelo (que lhe caía sobre as orelhas), quis falar, não acertou.
Olhou então para o Professor, e foi este quem aplicou: — Padre, o
senhor é um homem bom. — Teve vontade de dir que o padre era bom como
João Grande, mas pensou que talvez o padre se ofendesse se ele o comparasse
ao negro. – Mas o que temi que o Sem-Pernas e Volta Seca tão os dois
trabalhando no carrossel. E a gente tá convidado — aí fez uma
pequena pausa — pelo proprietário, que é amigo deles, pra andar
à noite de graça. Agente não esquece do convite do senhor…
— O Professor falava pausado escolhendo as palavras, pensando que aquele
era um momento delicado, adivinhando muita coisa, e Pedro Bala o apoiava com
a cabeça.
— Fica pra outra vez. Mas o senhor não vai zangar com a gente porque
a gente não aceita? Não vai, não é? — e espiava
o padre, cujo rosto agora estava novamente alegre.
— Não. Fica pra outra vez. — Olhou para os meninos sorrindo —
Foi até melhor assim. Porque o dinheiro que eu tinha… – e se calou
de repente ante o fato que ia contar. E pensou que talvez tive, sido uma lição
de Deus, um aviso, e que tivesse feito uma com malfeita. Seu olhar foi tão
estranho, que os meninos se aproximam um passo.
Olhavam para o padre sem compreender. Pedro Bala franzia testa como quando
tinha um problema a resolver, o Professor tentou falar. Mas ,João Grande
compreendeu tudo, apesar de ser o mais burro de todos: — Era da igreja, padre?-e
bateu na boca com raiva de si mesmo.
Os outros entenderam. Pirulito pensou que tivesse sido um grande pecado,
mas sentiu que a bondade do padre era maior que o pecado. Então o Sem-Pernas
veio coxeando ainda mais que o seu natural, como se viesse lutando consigo
mesmo, chegou peno do padre e quase gritou a princípio, se bem logo
baixasse muito a voz: — A gente pode botar no lugar onde estava… E coisa
canja pra gente. Não fique triste… — e soma.
E o sorriso do Sem-Pernas e a amizade que o padre lia nos olhos de todos
(haveria lágrimas nos olhos do Grande?) lhe restituíram a calma,
a serenidade, a confiança no seu ato e no seu Deus. Disse com sua voz
natural: — Uma velha viúva deu quinhentos mil-réis para vela.
Eu tirei cinqüenta para vocês andarem no carrossel. Deus julgará
se fiz bem. Agora compro mesmo de vela.
Pedro Bala sentia que tinha uma dívida a saldar com o padre. Queria
que o padre soubesse que todos eles compreendiam. E como não achasse
nada mais à mão, se dispôs a perder o trabalho que poderiam
fizer naquela tarde e convidou o padre: — A gente vai pro carrossel ver Volta
Seca e Sem-Pernas agora de tarde. Quer ir com a gente, padre? Padre José
Pedro disse que sim, porque sabia que aquilo era mais um passo na sua intimidade
com os Capitães da Areia. E foi um grupo pm o padre para a praça.
Vários não foram, o Gato inclusive, que foi ver Dalva. Mas
os que iam pareciam um bando de bons meninos que tinham do catecismo. Se estivessem
bem vestidos e limpos, pareceria um colégio de tão em ordem
que eles iam.
Na praça rodaram tudo com o padre. Mostravam com orgulho Volta Seca
imitando animais, vestido de cangaceiro, o Sem-Pernas fazendo sozinho o carrossel
girar, porque Nhozinho França fora tomar uma cerveja num bar. Uma pena
que à tarde as luzes do carrossel não estivessem acesas. Não
era tão belo como à noite, as luzes girando de todas as cores.
Mas eles tinham orgulho de Volta Seca imitando animais, do Sem-Pernas movimentando
o carrossel, fazendo as crianças subirem, as crianças baixarem.
O Professor, com um pedaço de lápis e uma tampa de caixa, desenhou
Volta Seca vestido de cangaceiro. Tinha um jeito especial para desenhar e
por vem ganhava dinheiro fazendo desenho, nas calçadas, de homens que
passavam, de senhoritas que iam com os noivos. Estes paravam um minuto, riam
do desenho ainda indeciso, as noivas diziam: — Está muito parecido…
Ele recolhia os níqueis e então ficava a retocar o desenho
feito a giz, a ampliá-lo, a colocar homens decais e mulheres da vida,
até um guarda o expulsava da calçada.
Por vezes já tinha um grupo espiando e havia quem dissesse: — Este
menino promete. É pena que o governo não olhe e vocações…
— e lembravam casos de meninos da rua que, ajudados famílias, foram
grandes poetas, cantores e pintores.
O Professor acabou o desenho (no qual pôs o carrossel e Nhozinho França
caindo de bêbado) e deu ao padre. Estavam todos num cerrado espiando
o desenho, que o padre elogiava, quando ouviram: — Mas é o padre José
Pedro…
E o lorgnon da velha magra se assestou contra o grupo como arma de guerra.
O padre José Pedro ficou meio sem jeito, os me olhavam com curiosidade
os ossos do pescoço e do peito da velha onde um barret custosíssimo
brilhava à luz do sol. Houve um m to em que todos ficaram calados,
até que o padre José Pedro ânimo e disse: — Boa tarde,
dona Margarida.
Mas a viúva Margarida Santos assestou novamente o lorgnon de ouro.
— O senhor não se envergonha de estar nesse meio, padre? Um sacerdote
do Senhor? Um homem de responsabilidade no meio desta gentalha…
— São crianças, senhora.
A velha olhou superiora e fez um gesto de desprezo com a O padre continuou:
— Cristo disse: Deixai vir a mim as criancinhas…
— Criancinhas… Criancinhas… — cuspiu a velha.
— Ai de quem faça mala uma criança, falou o Senhor — e o
padre José Pedro elevou a voz acima do desprezo da velha.
— Isso não são crianças, são ladrões.
Velhacos, ladrões. Isso não do são crianças. São
capazes até de ser dos Capitães da Areia… Ladrões —
repetiu com nojo.
Os meninos a fitavam com curiosidade. Só o Sem-Pernas, que tinha
vindo do carrossel pois Nhozinho França já voltara, a olhava
com raiva. Pedro Bala se adiantou um passo, quis explicar: — O padre só
quer aju…
Mas a velha deu um repelão e se afastou.
— Não se aproxime de mim, não se aproxime de mim, imundície.
Se não fosse pelo padre eu chamava o guarda.
Pedro Bala aí riu escandalosamente, pensando que se não fosse
pelo padre a velha já não teria o barret nem tampouco o lorgnon.
A velha se afastou com um ar de grande superioridade, não sem dizer
es para o padre José Pedro: — Assim o senhor não vai longe,
padre. Tenha mais cuidado com suas relações.
Pedro Bala ria cada vez mais, e o padre também riu, se bem sentisse
triste pela velha, pela incompreensão da velha. Mas o carrossel girava
com as crianças bem vestidas e aos poucos os olhos dos Capitães
da Areia se voltaram para ele e estavam cheios de desejo de ar nos cavalos,
de girar com as luzes. Eram crianças, sim — pensou padre.
No começo da noite caiu uma carga d’água. Também as
nuvens logo depois desapareceram do céu e as estrelas brilharam, ou
também a lua cheia. Pela madrugada os Capitães da Areia vieram.
O Sem-Pernas botou o motor para trabalhar. E eles esqueceram não eram
iguais às demais crianças, esqueceram que não tinham,
nem pai, nem mãe, que viviam de furto como homens, que temidos na cidade
como ladrões. Esqueceram as palavras da velha de lorgnon. Esqueceram
tudo e foram iguais a todas as crianças, cavalgando os ginetes do carrossel,
girando com as luzes. As estrelas brilhavam, brilhava a lua cheia. Mas, mais
que tudo, brilhavam noite da Bahia as luzes azuis, verdes, amarelas, roxas,
vermelhas Grande Carrossel Japonês.
Docas
Pedro Bala bateu a moeda de quatrocentos réis na parede da Alfândega,
ela caiu adiante da de Boa-Vida. Depois Pirulito bate dele, a moeda ficou
entre a de Boa- Vida e a de Pedro Bala. Boa-Vida estava acocorado, espiando.
Tirou o cigarro da boca: — Eu gosto é assim mesmo. De começar
ruim…
E continuaram o jogo, mas Boa-Vida e Pirulito perderam moedas de quatrocentão,
que Pedro Bala embolsou: — Eu sou é bamba mesmo.
Diante deles estavam os saveiros ancorados. Do Mercado mulheres e homens.
Eles esperavam nesta tarde o saveiro do Querido-de-Deus. O capoeirista estava
numa pescaria, que sua profissão e pescador. Continuaram o jogo do
cruzado até que Pedro Bala limpou os outros dois. A cicatriz do seu
rosto brilhava. Gostava de vai assim num jogo limpo, principalmente quando
os parceiros eram da força do Pirulito (que fora muito tempo o campeão
do grupo) e de Boa-Vida. Quando terminaram, Boa-Vida puxou o bolso para fora:
— Tu vai me emprestar nem que seja um cruzado. Tou ar nem.
Depois mirou o mar, os saveiros ancorados: — Querido-de-Deus vai chegar
de tardinha. Vamos pias a Pirulito disse que ficava esperando o Querido-de-Deus,
mas Pedro Bala foi com Boa-Vida para as docas. Atravessaram as ruas do cais,
afundaram os pés na areia.
Um navio desatracava do armazém 5, haviam movimento de gente que
entrava e saía. Pedro Bala perguntou ao Boa-Vida: — Tu não
tem vontade de ser marítimo? — Tá vendo… Gosto daqui. Não
quero arribar, não.
— Pois eu tenho vontade. É bonito trepar num mastro. E um temporal,
bem? Tu te lembra daquela história que o Professor leu pra gente? Aquela
que tinha um temporal.
Batuta…
— Era porreta, sim.
Pedro Bala ficou se lembrando da história. Boa-Vida achava besteira
sair da Bahia, onde, quando crescesse, seria tão fácil viver
uma boa existência de malandro, navalha na calça, violão
debaixo do braço, uma morena para derrubar no areal.
Era a existência que desejava ter quando se fizesse completamente
homem.
Chegaram ao portão do armazém sete. João de Adão,
um estivador negro e fortíssimo, antigo grevista, temido e amado em
toda a estiva, estava sentado num caixão.
Fumava cachimbo e os músculos saltavam sob sua camisa. Quando viu
os meninos foi saudando: — Olha o amigo Boa-Vida. E o Capitão Pedro.
Só chamava Pedro de Capitão Pedro e gostava de conversar com
eles. Ofereceu um pedaço de caixão a Pedro Bala, Boa-Vida se
acocorou na sua frente. Num canto, uma negra velha vendia laranjas cocadas,
vestida com uma saia de chitão e uma anágua que deixava ver
os seios ainda duros apesar da sua idade. Boa-Vida ficou espiando os peitos
da negra, enquanto descascava uma laranja que apanhara no bueiro.
— Tu ainda tem uma peitama bem boa, hein, tia? A negra sorriu: — Esses
meninos de hoje não respeita os mais velho, compadre João de
Adão.
Onde já se viu um capetinha destes falar em peito pra a velha encongrujada
como eu? Deixa de conversa, tia. Tu ainda topa a coisa…
A negra riu com vontade: — Já fechei a cancela, Boa-Vida. Passei
da idade. Pergunta este… -aponta João de Adão. — Vi quando
ele, quase menino as como tu, fez a primeira greve aqui nas doca. Naquele
tempo ninguém sabia que diabo era greve. Tu te lembra, compadre? João
de Adão balançou a cabeça que sim, fechou os o recordando
os longínquos tempos da primeira greve que chefiara docas. Era um dos
doqueiros mais velhos, embora ninguém lhe d a idade que tinha.
Pedro Bala falou: — Negro quando pinta, três vezes trinta.
A negra mostrou a carapinha toda pintada de branco. Tinha tirado o lenço
que enrolava na cabeça e Boa-Vida chalaceou: — Por isso tu anda com
esse lenço. O negra cheia de proso João de Adão perguntou:
— Tu te lembra de Raimundo, comadre Luisa? — O Loiro, que morreu na greve?
Como não me lembro? Era que toda tarde vinha dar dois dedo de prosa
comigo, gostava de pilhéria…
— Mataram ele bem aqui, naquele dia que a cavalaria ato a gente. –Olhou
para Pedro Bala. — Tu nunca ouviu falar Capitão? — Não.
— Tu tinha uns quatro anos. Depois disso tu andou um ano casa de um pra
casa de outro até que tu fugiu. Depois a gente só saber de tu
quando tu já era chefe dosCapitães da Areia. Mas a gente sabia
que tu havia de te arranjar. Quantos anos tu tem agora? Pedro ficou fazendo
cálculos e o próprio João de Adão interrompeu.
— Tu tá com uns quinze anos. Não é, comadre? A negra
fez que sim. João de Adão continuou: — No dia que tu quiser
tu tem um lugar aqui nas docas. A gente tem um lugar guardado pra tu.
— Por quê? — perguntou Boa-Vida, já que Pedro apenas olhava
espantado.
— Porque o pai dele era Raimundo e morreu foi aqui mesmo lutando pela gente,
pelo direito da gente. Era um homem e tanto. Valia dez destes que a gente
encontra por ai.
— Meu pai?-fez Pedro Bala, que daquelas histórias só conhecia
vagas rumores.
— Teu pai, era. A gente chamava ele de Loiro. Quando foi da greve fazia
discurso pra gente, nem parecia um estivador. Foi pegado por uma bala. Mas
tem um lugar pra tu nas docas.
Pedro Bala riscava o asfalto com um graveto. Olhou João de Adão:
— Por que tu nunca me contou isso? — Tu era pequeno para entender. Agora
tu tá ficando um homem — e riu com satisfação.
Pedro Bala riu também. Estava contente de saber a história
de seu pai, porque ele tinha sido um homem valente. Mas perguntou lentamente:
— E minha mãe tu conheceu? João de Adão pensou um momento:
— Não sei, não. Quando conheci o Loiro, ele não tinha
mulher.
Mas tu vivia com ele.
— Eu conheci — era a negra que estava falando. — Um pedaço mulher.
Corria uma história que teu pai tinha fintado ela de casa, ela era
de uma família rica lá de cima — e apontava a cidade alta.
Morreu quando tu nem tinha seis meses.
Nesse tempo Raimundo trabalhava na fábrica de ciganos de Itapagipe.
Depois foi que veio pras docas.
João de Adão repetiu: — Quando tu quiser…
Pedro Bala fez um aceno com a cabeça. Depois perguntou: — Foi uma
coisa batuta a greve, não foi? E ficaram ouvindo João de Adão
narrar a greve. Quando ele acabou, Pedro Bala disse: — Eu gostava de fazer
uma greve. Deve ser porreta.
Vinha entrando um navio. João de Adão se levantou: — Agora
a gente vai carregar aquele holandês.
O navio apitava nas manobras de atracação. De todos os cantos
surgiam estivadores que se iam dirigindo para o grande armazém Pedro
Bala os olhou com carinho. Seu pai fora um deles, morrera defesa deles. Ali
iam passando homens brancos, mulatos, negros muitos negros. Iam encher os
porões de um navio de sacos de cacau, fardos de fumo, açúcar,
todos os produtos do estado que iam para pátrias longínquas,
onde outros homens como aqueles, talvez altos loiros, descarregariam o navio,
deixariam vazios os seus porões, pai fora um deles. Só agora
o sabia. E por eles fizera discursos trepado em um caixão, brigara,
recebem uma bala no dia em que a cavalaria enfrentou os grevistas. Talvez
ali mesmo, onde ele se sentava, ti caldo o sangue de seu pai. Pedro Bala mirou
o chão agora asfaltado. Por baixo daquele asfalto devia estar o sangue
que correra do corpo seu pai. Por isso, no dia em que quisesse, teria um lugar
nas d entre aqueles homens, o lugar que fora de seu pai. E teria também
carregar fardos… Vida dura aquela, com fardos de sessenta quilos costas.
Mas também poderia fazer uma greve assim como seu pai João de
Adão, brigar com policias, morrer pelo direito deles, vingaria seu
pai, ajudaria aqueles homens a lutar pelo seu (vagamente Pedro Bala sabia
o que era isso). Imaginava-se n greve, lutando.
E sorriam os seus olhos como sorriam os seus Boa-Vida, que chupava a terceira
laranja, interrompeu seu sonho: — Tá pensando na morte da bezerra,
seu mano? A preta velha olhou Pedro Bala com carinho: — É a cara do
pai, Só que tem o cabelo ondeado da mãe. Se fosse esse talho
na cara, não tinha que tirar nem pôr pan Raimundo. Um homem bonito…
Boa-Vida riu entre dentes. Perguntou quanto devia, pagou duzentos réis.
Depois olhou mais uma vez os peitos da ri perguntou: — Tu não tem
uma fia, minha tia? — Pra que tu quer saber, desgraçado? Boa-Vida
riu: — Eu podia me amigar com ela…
A negra atirou o chinelo, Boa-Vida desviou o corpo: — Se eu tivesse uma
filha, não era pra teu bico, malandro.
Depois se lembrou: — Tu não vai hoje ao Gantois? Vai ser uma batida
daquelas. Um fandango de primeira. É festa de Omolu.
— Muita bóia? E aluá? — Se tem… — mirou Pedro Bala. —
Por que tu não vai, branco? Omolu não é s6 santo de negro.
É santo dos pobres todos.
Boa-Vida estendeu a mão numa saudação quando ela falou
em Omolu, o deus da bexiga. A tarde caía. Um homem comprou cocada.
As luzes se acenderam de repente. A negra se levantou, boa-vida ajudou a que
ela botasse o tabuleiro na cabeça. Ao longe, Pirulito apontava com
o Querido-de-Deus. Pedro Bala olhou mais uma vez os homens que nas docas carregavam
fardos para o navio holandês. Nas largas costas negras e mestiças
brilhavam gotas de suor. Os pescoços musculosos iam curvados sob os
fardos.
E os guindastes rodavam ruidosamente. Um dia iria fazer uma greve como seu
pai… Lutar gelo direito… Um dia um homem assim como João de Adão
poderia contar a outros meninos na porta das docas a sua história,
como contavam a de seu pai.
Seus olhos tinham um intenso brilho na noite recém-chegada.
Ajudaram o Querido-de-Deus a desembarcar a pescaria, que fora boa. Yemanjá
o tinha ajudado. Um homem que tinha banca de peixe no mercado comprou toda
a pescaria.
Depois foram comer num restaurante próximo. Pirulito foi ver o padre
José Pedro, que estava lhe ensinando a ler e a escrever. Passou pelo
trapiche antes, para apanhar uma caixa de penas que tinha levantado numa papelaria
pela manhã. Pedro Bala, Boa-Vida e o Querido-de-Deus andaram para o
candomblé do Gantois (o Querido era ogã), onde Omolu apareceu
com suas vestimentas vermelhas e avisou a seus filhinhos pobres, no cântico
mais lindo que pode haver, que em breve a miséria acabaria, que ele
levaria a bexiga para a casa dos ricos e que os pobres seriam alimentados
e felizes. Os atabaques tocavam na noite de Omolu. E ele anunciava que o dia
de vingança dos pobres chegaria. As negras dançavam, os homens
estavam alegres. O dia da vingança chegaria.
Pedro Bala veio sozinho pelas ruas da cidade, pois o Boa-Vida fora com o
Querido-de-Deus dançar num bleforé. Desceu as ladeiras que o
conduziam à cidade baixa. Ia devagar, como se carregasse um peso dentro
de si, ia como que curvado por dentro. Pensava na conversa da tarde com João
de Adão, conversa que o alegrara porque ficara sabendo que seu pai
fora um homem valente do cais, um homem que chegara a deixar uma história.
Mas João de Adão falara também dos direitos dos doqueiros.
Pedro Bala nunca tinha ouvido falar naquilo e, no entanto, fora por estes
direitos que seu pai morrera. E depois, na macumba do Gantois, Omolu, paramentado
de vermelho, dissera que odiada vingança dos pobres não tardaria
a chegar.
E isso oprimia o coração de Pedro Bala, como aqueles fardos
de sessenta quilos oprimem o cangote dos estivadores.
Quando acabou a descida da ladeira se dirigiu para o areal, vontade de ir
para o trapiche ver se dormia. Um cachorro latiu à sua passagem, pensando
que ele ia lhe disputar o osso que estava roendo. No fim da rua Pedro Bala
viu um vulto. Parecia uma mulher andava apressada. Sacudiu seu corpo de menino
como se sacode animal jovem ao ver a fêmea, e com passo rápido
se aproximou mulher que agora entrava no areal. A areia chiava sob os pés
e a mulher notou que era seguida.
Pedro Bala podia vê-la bem quando ela passava sob os postes: era uma
negrinha bem jovem, talvez tivesse apenas anos como ele. Mas os seios saltavam
pontiagudos e as nádegas rolavam no vestido, porque os negros mesmo
quando estão andando naturalmente é como se dançassem.
E o desejo cresceu deu Pedro Bala, era um desejo que nascia da vontade de
afogar a angústia que o oprimia. Pensando nas nádegas rebolantes
da negrinha pensava na morte de seu pai defendendo o direito dos grevistas,
Omolu pedindo vingança na noite de macumba. Pensava em derrubar a negrinha
sobre a areia macia, em acariciar seus seios duros (talvez seios de virgem,
sempre seios de menina), em possuir seu corpo quente de negra.
Apressou seus passos, porque a negrinha se desviara da rua que cortava o
areal e se internara por este, se afastando dos postes de iluminação.
Mas quando ela notou que Pedro Bala estava cada vez mais próximo, se
lançou para a frente quase correndo. Pedro compreendeu que ele ia para
uma daquelas ruas perdidas entre o morro e o mar, e que se atravessava o areal
era para caminho mais curto e com mais facilidade poder fugir dele. Ia um
silêncio por todo o cais, só chiar da areia sob os passos deles
fazia estremecer de medo o coração da negrinha e de impaciência
o coração de Pedro Bala. Mas estava cada vez mais próximo.
Andava muito mais rápido que a negra e a alcançaria com mais
dez passos. E ela tinha ainda muito que andar no areal antes de atingir os
trapiches e as ruas que ficam além dos trapiches.
Pedro sorria, um sorriso de dentes apertados, era igual a um animal feroz
caçando no deserto um outro animal para seu almoço.
Quando já ia levando a mão para tocarem seu ombro e fazer
com que ela voltasse o rosto, a negrinha começou a correr. Pedro Bala
se lançou em sua perseguição e logo a alcançou.
Mas ia a tal velocidade esbarrou nela e ambos rolaram na areia.
Pedro se levantou de um rindo, chegou para o lado dela, que procurava se
pôr em pé: — Não precisa, lindeza. Assim mesmo tá
bom.
O rosto da negrinha era de terror. Mas quando viu que seu seguidor era um
menino de quinze para dezesseis anos se animou is um pouco e perguntou com
raiva: — Que é que tu quer? — Deixa de orgulho, morena. Vamos bater
um papozinho…
E a agarrou pelo braço e novamente a derrubou na areia. O medo voltou
a possuí-la, um terror doido. Vinha da casa da avó e ia para
sua onde mãe e irmãs a esperavam.
Para que tinha vindo de noite, para que se arriscara na areia do cais? Não
sabia que a Meia das docas é a cama de amor de todos os malandros,
de todos os ladrões, de todos marítimos, de todos os Capitães
da Areia, de todos os que não podem pagar mulher e têm sede de
um corpo na cidade santa da Bahia? Ela não sabia disto, mal fizera
quinze anos, havia muito pouco tempo que era mulher. Pedro Bala também
só tinha quinze anos, mas há muito tempo conhecia não
só o areal e os seus segredos, como os segredos do amor das mulheres.
Porque se os homens conhecem esses segredos muito antes que as mulheres,
os Capitães da Areia os conheciam muito antes que qualquer homem. Pedro
Bala a queria porque há muito sentia os desejos de homem e conhecia
as carícias do amor. Ela não o queria porque fazia pouco que
se tornara mulher e pretendia reservar seu corpo para um mulato que a soubesse
apaixonar.
Não o queria entregar assim ao primeiro que a encontrasse no areal.
E está com os olhos entupidos de medo.
Pedro Bala passou a mão na carapinha da negra: — Tu é um
pancadão, morena. Nós vai fazer um filho lindo…
Ela lutou por se afastar dele: — Me deixa. Me deixa, desgraçado!
E olhava em torno de si para ver se enxergava alguém a quem gritar,
a quem pedir socorro, alguém que a ajudasse a conservar a sua virgindade,
que tinham lhe ensinado que era preciosa. Mas à noite no areal do cais
da Bahia não se vêem senão sombras e não se ouvem
mais que gemidos de amor, baques de corpos que rolam confundidos na areia.
Pedro Bala acariciava seus seios e ela, no fundo de seu terror, começava
a sentir um fio de desejo, como um fio de água que corre entre montanhas
e vai engrossando aos poucos até se transformar em caudaloso rio. E
isso fez com que crescesse o seu terror. Se ela não resistisse contra
o desejo e deixasse que ele a possuísse, estaria perdida, iria deixar
uma mancha de sangue no areal, da qual ririam os estivadores na madrugada
seguinte. A certeza da sua fraqueza lhe deu novo alento e novas forças.
Baixou a cabeça, mordeu a mão de Pedro que segurava seu seio.
Pedro deu um grito, retirou a mão, ela se levantou e correu. Mas ele
a pegou e agora seu desejo estava misturado com raiva.
— Vamos deixar de chove-não-molha e tentava derrubá-la.
— Deixa eu ir embora, desgraçado. Tu quer fazer minha desgraça,
filho da mãe? Deixa eu ir embora, que não tenho nada com tu.
Pedro não respondia. Conhecia outras que faziam chiquê. Em
geral porque tinham um amante a esperá-las. Nem por um momento pensou
que a negrinha fosse virgem.
Mas ela resistia e o xingava, e mordia, batia suas frágeis mãos
no peito de Pedro Bala.
— Mas que é que tu viu, cabocla? Tu pensa que eu vou te deixar antes
de tu me dar? Deixa de orgulho. Teu macho não vai saber, ninguém
fica sabendo. E tu vai ver o que é um homem bom…
E agora fazia por acariciá-la, queria dominar sua raiva, fazer com
que ela sentisse desejo. Suas mãos desciam ao longo do seu corpo, deitou-a
com esforço.
Ela agora repetia num refrão: — Me deixa, desgraçado… Me
deixa, desgraçado…
Ele suspendeu as saias pobres de chita, apareceram as duras coxas da negra.
Mas estavam uma sobre a outra e Pedro Bala tentou separá-las. A negrinha
reagiu de novo, mas como o menino a estava acariciando e ela sentiu a chegada
impetuosa do desejo, não o xingou mais, senão que disse num
pedido angustioso: — Me deixa, que eu sou virgem. Tu pode ser bom, não
me querer.
Depois tu encontra outra. Eu sou donzela, tu vai me fazer mal.
Ele olhou, ela estava chorando de medo e também porque sua vontade
estava enfraquecendo, seus peitos estavam intumescidos.
— Tu é donzela mesmo? — Juro por Deus Nosso Senhor, pela Virgem
–beijava os dedos postos em cruz.
Pedro Bala vacilava. Os seios da negrinha intumescidos sob seus dedos. As
coxas duras, a carapinha do sexo.
— Tu tá falando a verdade? — e não deixava de acariciá-la.
— Tou, juro. Deixa eu ir embora, minha mãe tá me esperando.
Chorava, e Pedro Bala tinha pena, mas o desejo estava solto dentro dele.
Então propôs ao ouvido da negra (e fazia cócegas a língua
dele): — Só boto atrás.
— Não. Não.
— Tu fica virgem igual. Não tem nada.
— Não. Não, que dói.
Mas ele a acarinhava, uma cócega subiu pelo corpo dela. Começou
a compreender que se não o satisfizesse como ele queria, sua virgindade
ficaria ali. E quando ele prometeu (novamente sua língua a excitava
no ouvido) se doer eu tiro… ela consentiu.
— Tu jura que não vai na frente? — Juro.
Mas depois que tinha se satisfeito pela primeira vez (e ela gritara e mordera
as mãos), vendo que ela ainda estava possuída pelo desejo, tentou
desvirginá-la.
— Tu não te contenta, desgraçado, com o que me fez? Tu quer
me desgraçar? E soluçava alto, e levantava os braços,
estava como uma louca, toda sua defesa eram seus gritos, suas lágrimas,
suas imprecações contra o chefe dos Capitães da Areia.
Mas para Pedro a maior defesa da negrinha eram os olhos cheios de pavor, olhos
de animal mais fraco que não tem forças para se defender. E
como seu maior desejo fosse satisfizera, e como aquela angústia do
princípio da noite voltava a dominá-lo, ele falou: — Se eu
te deixar, tu volta amanhã? — Volto, sim.
— Sô faço o que fiz hoje. Te deixo donzela…
Ela fez que sim com a cabeça. Seus olhos estavam iguais aos de um
doido e naquele momento só sentia dor e pavor, vontade de fugir. Agora
que as mãos dele, os lábios dele, o sexo de Pedro, não
tocavam mais nas carnes dela, seu desejo desaparecera e pensava unicamente
em defender sua virgindade. Respirou quando ele disse: — Então tu
pode ir. Mas se tu não voltar amanhã.. . Quando eu te pegar
tu vai ver com quantos paus se faz uma cangalha…
Ela começou a andar sem nada responder. Mas o menino a acompanhou:
— Vou te levar para um malandro não lhe pegar.
Foram os dois e ela chorava. Ele quis pegar na mão dela, ela não
deixou e se afastou dele. Ele tentou novamente, novamente ela retirou a mão.
Então ele disse: — Que diabo é isso? E foram de mãos
dadas. Ela chorava e aquele choro foi angustiando Pedro Bala, foi fazendo
com que voltasse sua inquietação do começo da noite,
a visão de seu pai morrendo na luta, a visão de Omolu anunciando
vingança. Começou a maldizer intimamente o encontro da cabrocha
e apressou o passo para chegar quanto antes ao começo da rua. Ela soluçava
e ele falou com raiva: — Que foi que tu teve? Tu não teve nada…
Ela apenas o olhou e seus olhos (apesar de ainda ir com ele e ainda estar
apavorada)estavam cheios de ódio e desprezo. Pedro baixou a cabeça,
não sabia o que dizer, não tinha mais desejo nem raiva, só
tristeza no seu coração. Ouviram a música de um samba
que um homem cantava na rua. Ela soluçou mais alto, ele foi chutando
a areia. Agora se sentia mais fraco que ela, a mão da negrinha pesava
na sua como se fosse chumbo. Largou a mão, ela se afastou dele. Pedro
não protestou. Queria não a ter encontrado, não ter também
João de Adão nem ter ido ao Gantois.
Chegaram na rua, ele disse: — Agora tu pode ir, ninguém te faz mal.
Ela olhou novamente com ódio deitou a correr. Mas na esquina mais
próxima parou, virou para ele (que ainda olhava) e rogou praga com
uma voz que o encheu de medo: — Peste, fome e guerra te acompanha, desgraçado.
Deus te castiga, desgraçado.
Filho de uma mãe, desgraçado, desgraçado – sua voz
solitária atravessa a rua, abalava Pedro Bala.
Ela, antes de desaparecer na esquina, cuspiu no chão num supremo
desprezo e ainda repetiu: — Desgraçado… Desgraçado Primeiro
ele ficou parado, depois deitou a correr no areal ia como se os ventos o açoitassem,
como se fugisse das pragas da negrinha. E tinha vontade de se jogar no mar
para se lavar de toda aquela inquietação,a vontade de se vingar
dos homens que tinham matado seu pai, o ódio que sentia contra a cidade
rica que se estendia do outro lado do mar, na Barra, na Vitória, na
Graça, o desespero da sua vida de criança abandonada e perseguida,
a pena que sentia pela pobre negrinha, uma criança também.
Uma criança também – ouvia na voz do vento, no samba que cantavam,
uma voz dizia dentro dele.
Aventura de Ogum
Outra noite, uma noite de inverno, na qual os saveiros não se aventuraram
no mar, noite da cólera de Yemanjá e Xangô, quando os
relâmpagos eram o único brilho no céu carregado de nuvens
negras e pesadas, Pedro Bala, o Sem-Pernas e João Grande foram levar
a mãe-de-Santo, Don’Aninha, até sua casa distante. Ela viera
ao trapiche pela tarde, precisava de um favor deles, e enquanto explicava,
a noite caiu espantosa e terrível.
— Ogum esta zangado… – explicou a mãe-de-Santo Don’Aninha.
Fora este assunto que trouxera ali. Numa batida num candomblé (que
se bem não fosse o seu, porque nenhum polícia se aventurava
a dar batida no candomblé de Aninha, estava sob a sua proteção)
a polícia tinha carregado com Ogum, que repousava no seu altar. Don’Aninha
tinha usado da sua força junto a um guarda para conseguir a volta do
santo.fora mesmo à casa de um professor da Faculdade de Medicina, seu
amigo, que vinha estudar a religião negra no seu candomblé,
pedir que ele conseguisse a restituição do deus. O professor
realmente pensava em conseguir que a policia lhe entregasse a imagem. Mas
para juntar à sua coleção de ídolos negros e não
para reintegrá-la no seu altar no candomblé distante. Por isso,
por estar Ogum numa sala de detidos na polícia, Xangô descarrega
os raios nessa noite.
Por último Don’Aninha veio aonde estavam os Capitães da Areia,
seus amigos de há muito, porque são amigos da grande mãe-de-santo
todos os negros e todos os pobres da Bahia. Para cada um ela tem uma palavra
amiga e maternaL Cura doenças, junta amantes, seus feitiços
matam homens ruins. Explicou que tinha acontecido a Pedro Bala. O chefe dos
Capitães da Areia ia pouco aos candomblés, como pouco ouvia
as lições do padre José Pedro. Mas era amigo tanto do
padre como da Mãe-de-santo, e entre os Capitães da Areia quando
se é amigo se serve ao amigo.
Agora levavam Aninha para sua casa. A noite em torno era tormentosa e colérica.
A chuva os curvava sob o grande guarda-chuva branco da Mãe-de-santo.
Os candomblés batiam em desagravo a Ogum e talvez num deles ou em
muitos deles Omolu anunciasse a vingança do povo pobre. Don’Aninha
disse aos meninos com uma voz amarga: — Não deixam os pobres viver…
Não deixam nem o deus dos pobres em paz.
Pobre não pode dançar, não pode cantar pra seu deus,
não pode pedir uma graça a seu deus sua voz era amarga, uma
voz que não parecia da mãe-de-santo Don’Aninha. — Não
se contentam de matar os pobres a fome… Agora tiram os santos dos pobres…
— alçava os punhos.
Pedro Bala sentiu uma onda dentro de si. Os pobres não tinham nada.
O padre José Pedro dizia que os pobres um dia iriam para o reino dos
céus, onde Deus seria igual para todos. Mas a razão jovem de
Pedro Bala não achava justiça naquilo. No reino do céu
seriam iguais.
Mas já tinham sido desiguais na terra, a balança pendia sempre
para um lado.
As imprecações da mãe-de-santo enchiam a noite mais
que o ruído dos agogôs e atabaques que desagravavam Ogum. Don’Aninha
era magra e alta, um tipo aristocrático de negra, e sabia levar como
nenhuma das negras da cidade suas roupas de baiana. Tinha o rosto alegre,
se bem bastasse um olhar seu para inspirar absoluto respeito. Nisso se parecia
com o padre José Pedro. Mas agora estava com um ar terrível
e suas imprecações contra os ricos e a polícia enchiam
a noite da Bahia e o coração de Pedro Bala.
Quando a deixaram, rodeada das suas filhas-de-santo, que beijavam sua mão,
Pedro Bala prometeu: — Deixa estar, mãe Aninha, que amanhã
te trago Ogum.
Ela bateu a mão na cabeça loira dele, sorriu. João
Grande e o Sem-Pernas beijaram a mão da negra. Desceram a ladeira.
Os agogôs e atabaques ressoavam desagravando Ogum.
O Sem-Pernas não acreditava em nada, mas devia favores a Don’Aninha.
Perguntou: — O que é que a gente vai fazer? O troço está
na polícia..
João Grande cuspiu, estava com certo receio.
— Não chame Ogum de troço, Sem-Pernas. Ele castiga…
— Tá preso, não pode fazer nada — riu o Sem-Pernas.
João Grande calou a boca, porque sabia que Ogum era grande demais,
mesmo na cadeia podia castigar o Sem-Pernas. Pedro Bala coçou o queixo,
pediu um cigarro: — Deixa eu matutar. A gente tem que dar conta. A gente
garantiu a Aninha. Agora tem que fazer.
Desceram para o trapiche. A chuva entrava pelos buracos do teto, a maior
parte dos meninos se amontoavam nos cantos onde ainda havia telhado. O Professor
tentara acender sua vela, mas o vento parecia brincar com ele, apagava-a de
minuto a minuto. Afinal ele desistiu de ler essa noite e ficou peruando um
jogo de sete-e-meio que o Gato bancava, ajudado por Boa-Vida, num canto. Moedas
no chão, mas nenhum rumor desviava Pirulito das suas orações
diante da Virgem e de Santo Antônio.
Nestas noites de chuva eles não podiam dormir. De quando em vez a
luz de um relâmpago iluminava o trapiche e então se viam as caras
magras e sujas dos Capitães da Areia. Muitos deles eram tão
crianças que temiam ainda dragões e monstros lendários:
Se chegavam para junto dos mais velhos, que apenas sentiam frio e sono. Outros,
os negros, ouviram no trovão a voz de Xangô. Para todos estas
noites de chuva eram terríveis. Mesmo para o Gato, que tinha uma mulher
em cujo seio escondia a jovem cabeça, as noites de temporal eram noites
más. Porque nestas noites homens que na cidade não têm
onde reclinar a sua cabeça amedrontada, que não têm senão
uma cama de solteiro e querem esconder num seio de mulher o seu temor, pagavam
para dormir com Dalva e pagavam bem.
Assim o Gato ficava no trapiche, bancando jogos com seu baralho marcado,
ajudado na roubalheira pelo Boa-Vida. Ficavam todos juntos, inquietos, mas
sós todavia, sentindo que lhes faltava algo, não apenas uma
cama quente num quarto coberto, mas também doces palavras de mãe
ou de irmã que fizessem o temor desaparecer. Ficavam todos amontoados
e alguns tiritavam de frio, sob as camisas e calças esmolambadas. Outros
tinham paletós furtados ou apanhados em lata de lixo, paletós
que utilizavam como sobretudo. O Professor tinha mesmo um sobretudo, de tão
grande arrastava no chão.
Uma vez, e era no verão, um homem parara vestido com um grosso sobretudo
para tomar um refresco numa das cantinas da cidade. Parecia um estrangeiro.
Era pelo meio da tarde e o calor doía nas carnes. Mas o homem parecia
não senti-lo, vestido com seu sobretudo novo. O Professor achou o homem
engraçado e com cara de sujeito de dinheiro e começou a fazer
um desenho dele (com o sobretudo enorme, maior que o homem, era o próprio
homem o sobretudo) a giz no passeio. E ria de satisfação, porque
provavelmente o homem lhe daria uma prata de dois mil-réis. O homem
voltou-se na sua cadeira e olhou o desenho quase concluído. O Professor
ria, achava o desenho bom, o sobretudo dominando o homem, era mais que o homem.
Mas o homem não gostou da coisa, se deixou possuir por uma grande raiva,
levantou-se da cadeira e deu dois pontapés no Professor. Um atingiu
o menino nos rins e ele rolou pela calçada gemendo. O homem ainda meteu
o pé no seu rosto, dizendo congestionado ao se afastar: — Toma, corneta,
para aprender a não fazer burla de um homem.
E saiu batendo moedas na mão, após meio apagar com o pé
o desenho. A garçonete veio e ajudou o Professor a se levantar. Olhou
com piedade o menino, que apalpava o lugar dos rins doloridos, olhou o desenho,
disse: — Que bruto! Até que o retrato estava parecido. .. Um estúpido!
Meteu a mão no bolso onde guardava as gorjetas, tirou uma prata de
um mil-réis, quis dar ao Professor. Mas ele recusou com a mão,
sabia que ia fazer falta a ela.
Olhou o desenho semi-apagado, seguiu seu caminho ainda com as mãos
nos rins.
Ia quase sem pensar, com um nó na garganta. Ele quisera agradar o
homem, merecer uma prata dele. Tivera dois pontapés e palavras brutais.
Não compreendia.
Por que eram odiados assim na cidade? Eram pobres crianças sem pai,
sem mãe. Por que aqueles homens bem vestidos tanto os odiavam? Foi
com sua dor.
Mas aconteceu que no caminho para o trapiche, no deserto do areal sob o
sol, encontrou novamente, minutos depois, o homem de sobretudo. Parecia que
ia para um dos navios atracados no porto e levava agora o sobretudo no braço
porque o sol estava abrasador. Professor tirou a navalha (poucas vezes a usava)
e se aproximou do homem. O calor tinha alijado do areal todos os homens e
o do sobretudo cortava pela areia para fazer o caminho mais curto para o cais.
O Professor foi silenciosamente por detrás do homem quando chegou perto
tomou a frente com a navalha na mão. A vista do homem tinha transformado
a confusão de seus sentimentos num único sentimento: vingança.
O homem o olhou aterrorizado. 0 Professor crescia em sua frente com a navalha
aberta.
Murmurou entre dentes: — Sai, moleque.
O Professor avançou com a navalha, o homem ficou branco.
— Que é isso? Que é isso?– e mirava todos os lados na esperança
de ver alguém. Mas só ao longe, nas docas, apareciam perfis
de homens. Então o do sobretudo largou a correr quando o Professor
saltou em cima dele e lhe cortou a mão com a navalha. O sobretudo ficou
abandonado no chão e o sangue caía da mão do homem na
areia. O Professor tomou pelo outro lado, ficou um instante sem saber que
fazer. Não tardaria a vir um guarda, logo muitos, acompanhando o homem
em sua perseguição. Se o navio do homem saísse logo,
tudo estava bem, a perseguição pouco demoraria. Mas se tardasse
a sair, com certeza o homem o perseguiria até dar com ele e pô-lo
no xadrez. Então o Professor lembrou-se da garçonete. Caminhou
para a cantina, do jardim que ficava em frente fez sinal para a garçonete.
Ela veio e logo compreendeu quando o viu com o sobretudo. O Professor avisou:
— Ele tá com um talho na mão.
Ela riu: — Tu te vingou, hein? Levou o sobretudo para a cantina, guardou.
O Professor sumiu até que o navio saiu barra afora. Mas de onde estava
viu a batida dos guardas pelo areal e pelas ruas adjacentes. Foi assim que
o Professor tinha conseguido aquele sobretudo, que nunca quis vender. Adquirira
um sobretudo e muito ódio. E tempos depois, quando as suas pinturas
murais admiraram todo o país (eram motivos de vidas de crianças
abandonadas, de velhos mendigos, de operários e doqueiros que rebentavam
cadeias), notaram que nelas os gordos burgueses apareciam sempre vestidos
com enormes sobretudos que tinham mais personalidade que eles próprios.
Pedro Bala, João Grande e o Sem-Pernas entraram no trapiche. Foram
para o grupo que jogava em torno ao Gato. Quando eles chegaram, o jogo parou
um momento, o Gato ficou espiando os três: — Quer topar um sete-e-meio?
— Tou com cara de besta? respondeu o Sem-Pernas.
João Grande sentou para espiar, Pedro Bala se afastou com o Professor
para um canto. Queria combinar uma maneira de roubar a imagem de Ogum da polícia.
Discutiram parte da noite e já eram onze horas quando Pedro Bala,
antes de sair, falou para todos os Capitães da Areia: — Minha gente,
eu vou fazer um troço difícil. Se eu não aparecer até
de manhã, vocês fica sabendo que eu tou na polícia e não
demoro a tá no reformatório, até fugir. Ou até
vocês me tirar de lá…
E saiu. João Grande o acompanhou até a porta. O Professor
veio para junto do Gato novamente. Os menores olhavam a partida do chefe com
certo receio.
Tinham uma grande confiança em Pedro Bala e sem ele muitos não
saberiam como se arranjar.
Pirulito veio do seu canto, deixara uma oração pelo meio:
— O que foi? — Pedro foi fazer um troço difícil. Se não
voltar de manhã, é que tá na chave…
— A gente tira ele respondeu Pirulito naturalmente, e nem parecia que minutos
antes estava ante um quadro da Virgem rezando pela salvação
da sua pequena alma de ladrão. E voltou aos seus santos a rezar por
Pedro Bala.
O jogo recomeçou. Chuva e raios, trovões e nuvens no céu.
O frio intenso no trapiche. Gotas de água caíam sobre os meninos
que jogavam. Mas o jogo agora era sem atenção, o próprio
Gato se esquecia de ganhar, havia como que uma confusão em todo o trapiche.
Durou até que Professor disse: — Eu vou ver as coisas…
João Grande e o Gato foram com ele. Nesta noite foi Pirulito que
se deitou na porta do trapiche com o punhal sob a cabeça. E perto dele
Volta Seca espiava a noite com sua cara sombria. E pensava em que lugar estaria
nesta noite de temporal o grupo de Lampião na imensidade das caatingas.
Talvez que nessa noite de temporal lutassem com a polícia como ia fazer
agora Pedro Bala. E Volta Seca pensou que quando Pedro Bala fosse grande como
um homem seria tão corajoso como Lampião.
Lampião era o dono do sertão, das caatingas sem fim. Pedro
Bala seria dono da cidade, do casario, das ruas, do cais. E Volta Seca, que
era do sertão, poderia andar nas caatingas e nas cidades.
Porque Lampião era seu padrinho e Pedro Bala seu amigo. Imitou o
cocorocó de um galo e isso era sinal de que Volta Seca estava alegre.
Pedro Bala, enquanto subia a ladeira da Montanha, revia mentalmente seu
plano.
Fora arquitetado com a ajuda do Professor e era a coisa mais arriscada em
que se metera até hoje. Mas Don’Aninha bem que merecia que um corresse
risco por ela.
Quando tinha um doente ela trazia remédios feitos com folhas, tratava
dele, muitas vezes curava. E quando aparecia um Capitão da Areia no
seu terreiro ela o tratava como a um homem, como a um ogã, dava-lhe
do melhor para comer, do melhor para beber. O plano era arriscado, possivelmente
não daria certo, Pedro Bala comeria cadeia uns dias e terminaria remetido
para o reformatório, onde a vida era pior que vida de cão.
Mas havia uma possibilidade de dar certo, e Pedro Bala jogaria tudo nesta
possibilidade. Chegou ao largo do Teatro. A chuva caía e os guardas
se abrigavam sob as capas. Começou a subir a ladeira de São
Bento vagarosamente. Tomou por São Pedro, atravessou o largo da Piedade,
subiu o Rosário, agora estava nas Mercês, diante da Central de
Policia, olhando as janelas, o movimento de guardas e secretas que entravam
e safam. De minuto em minuto um bonde passava fazendo ruídos nos trilhos,
iluminando ainda mais a rua já bastante iluminada. O guarda amigo de
Don’Aninha tinha dito que Ogum estava na sala de detidos, jogado sobre um
armário, em meio a diversos outros objetos apreendidos em batidas várias
em casas de ladrões.
Naquela sala colocavam os que eram presos durante a noite antes de serem
ouvidos ou pelo delegado ou pelos comissários de turno e que depois
ou eram remetidos para as prisões ou para a rua. Ali, num canto, a
princípio dentro de um armário que logo se encheu, depois junto
ou sobre ele, colocavam objetos sem valor apreendidos nas batidas policiais.
O plano de Pedro Bala era passar a noite ou parte dela na sala de detidos
e levar ao sair (se conseguisse sair) a imagem de Ogum consigo. Tinha uma
grande vantagem: não era conhecido entre a polícia. Mesmo só
raros guardas o conheciam como moleque das ruas, se bem todos os guardas e
mesmo alguns investigadores desejassem ardentemente capturar o chefe dos Capitães
da Areia. Sabiam dele apenas que tinha aquele talho no rosto e Pedro Bala
passou a mão no talho. Mas o pensavam maior do que era em verdade e
também faziam a idéia de que Pedro Bala devia ser mulato e de
mais idade. Se chegassem a descobrir que ele era o chefe dos Capitães
da Areia talvez nem para o reformatório o mandassem. Muito provavelmente
iria diretamente para a penitenciária.
Porque do reformatório se consegue fugir, mas da penitenciária
não é fáciL Enfim… –e Pedro Bala andou até
o Campo Grande. Mas já não ia com aquele seu passo despreocupado
de moleque das ruas da cidade. Ia agora gingando como um filho de marítimo,
o boné puxado por causa da chuva, a gola do paletó (devia ter
sido anteriormente de um homem muito grande) levantada.
O guarda estava debaixo de uma árvore por causa da chuva. Pedro veio
chegando assim como quem tem medo. E quando falou ao guarda, sua voz era a
de uma criança que estava temerosa da noite tempestuosa da cidade.
— Seu guarda…
O guarda olhou: — O que é, moleque? — Eu não sou daqui.
Eu sou de Mar Grande, vim com meu pai hoje.
O guarda não deixou que ele continuasse: — E o que tem isso? —
Eu não tenho onde dormir. Queria que o senhor deixasse eu dormir na
polícia…
— A policia não é hotel, malandro. Desaperta, desaperta…
– e fez sinal para que Pedro se afastasse.
Pedro tentou novamente puxar conversa, mas o guarda o ameaçou com
o cassetete: — Vai dormir num jardim… Vai embora…
Pedro saiu com cara de choro. O guarda ficou espiando o menino. Pedro parou
no ponto de bonde, esperou. Do primeiro carro não desceu ninguém,
mas do segundo saltou um casal. Pedro se atirou em cima da mulher, o homem
viu que ele queria abafar a carteira dela, segurou Pedro por um braço.
A coisa fora tão mal feita que se um dos Capitães da Areia passasse
ali sem dúvida não reconheceria o seu chefe. O guarda, que via
a cena, já estava junto a eles: — Então era assim que você
não era daqui? Um moleque ladrão.
Se afastou levando Pedro pelo braço. O menino ia com uma cara entre
amedrontada e risonha: — Só fiz isso pro senhor me pegar mesmo…
— Hein? — Tudo que eu disse é verdade. Meu pai é marítimo,
tem um saveiro em Mar Grande. Hoje me deixou aqui, não voltou com o
temporal. Eu não sei onde dormir, pedi pra dormir na polícia.
O senhor não deixou, eu fiz que ia roubar a mulher só pro senhor
me pegar… Agora tenho onde dormir.
— E por muito tempo foi a única resposta do guarda.
Entraram na Central. O guarda atravessou um corredor, largou Pedro Bala
na sala dos detidos. Havia uns cinco ou seis homens. O guarda disse troçando:
— Agora você pode dormir, filho da mãe. E depois que o comissário
chegar vamos ver quanto tempo você vai dormir aqui…
Pedro ficou calado. Os outros presos nem ligavam para ele, estavam muito
interessados em fazer troça com um pederasta que tinha sido preso e
se dizia chamar Mariazinha.
A um canto Pedro Bala viu o armário. A imagem de Ogum estava ao lado,
junto de uma cesta para papéis inúteis. Pedro se adiantou para
ali, tirou o paletó, pôs sobre a imagem. E enquanto os outros
conversavam, enrolou Ogum (não era grande, havia outras imagens muito
maiores) no seu paletó e deitou-se no chão. Pôs a cabeça
sobre o embrulho e fez que dormia.
Os presos daquela noite continuavam a rir com o pederasta, exceto um velho
que tremia num canto, Pedro não sabia se de frio ou de medo. Mas ouvia
a voz de um negro jovem que dizia a Mariazinha: — Quem tirou teu cabaço?
— Ora, me deixe… respondeu o pederasta rindo.
— Não. Conta. Conta! disseram os outros.
— Ah! Foi Leopoldo… Ah! O velho continuava a tremer. Um malandro de cara
chupada pela tísica percebeu o velho no canto: — Tu por que não
vai te enrabar com aquele velhote? — perguntou a Mariazinha, que fez bico.
— Não tá vendo logo que não me passo pra velho. Olhe,
não quero mais conversa, não…
Agora um guarda gozava na porta e o de cara chupada se virou para o velho,
que se encolheu todo: — Mas tu bem que gostava se ele lhe desse hoje, hein,
tio? — Eu sou um velho… Eu não fiz nada… murmurou o velho, mais
que falou. — Não fiz nada, minha filha está me esperando…
Pedro, que estava de olhos fechados, adivinhou que o velho chorava. Mas
continuou fingindo que estava dormindo. Ogum doía nos ossos da sua
cabeça. Os presos continuavam a pilheriar com o pederasta e o velho,
até que chegou outro guarda e falou para o velho: — Você, velhote.
Vamos…
— Eu não fiz nada… falou mais uma vez o velho. – Minha filha está
me esperando… se dirigia a todos, guardas e presos. E tremia tanto, que
todos tiveram pena e até o malandro de cara chupada baixou a cabeça.
Só o pederasta sorria.
O velho não voltou. Depois foi o pederasta. Demorou muito. O de cara
chupada explicava que Mariazinha era de boa família.
Naturalmente estavam telefonando para casa dele, pedindo que o viessem buscar
para não terem que o prender de novo naquela noite. De quando em vez,
quando tomava cocaína demais, dava escândalos na rua e era trazido
por um guarda. Quando Mariazinha voltou, foi só para pegar o chapéu.
Então viu Pedro Bala deitado e disse: — Tão novinho este. Mas
é um amorzinho…
Pedro cuspiu de olhos fechados: — Sai, xibungo, antes que eu te pranche
a cara…
Os outros riram, e só então atentaram em Pedro: — Que é
que tu tá fazendo aqui, rato de igreja? — O que não é
da tua conta, macaqueio… — respondeu Pedro Bala ao de cara chupada.
Até o guarda riu e explicou para os outros a história de Pedro.
Mas o negro jovem foi chamado e eles ficaram silenciosos. Sabiam que o negro
tinha esfaqueado um homem num bleforé nesta noite. Quando o preto voltou
trazia as mãos inchadas dos bolos. Explicou: — Disse que vou ser processado
por ferimentos leves. E me dero duas dúzia…
Não conversou mais, procurou um canto, se arriou. Os outros também
ficaram calados. E foram indo um por um para o despacho do comissário.
Uns eram postos em liberdade, outros iam para o calabouço, outros voltavam
apanhados. O temporal cessara e a madrugada chegava. Pedro foi o último
a ser chamado. Deixou o paletó onde enrolara Ogum.
O comissário era um jovem advogado que reluzia um rubi no dedo e
um charuto no queixo. Quando Pedro entrou com o guarda, pedia café
em voz alta. Pedro ficou diante da escrivaninha, parado. O guarda disse: —
Esse é o menino do roubo no Campo Grande.
O comissário fez um sinal com a mão: — Veja se esse café
sai ou não sai…
O guarda retirou-se. O comissário leu a parte do guarda que prendera
Pedro Bala, olhou o menino: — O que é que você tem a dizer?
E não venha me mentir, não.
Pedro contou com uma voz amedrontada uma história comprida.
Que seu pai era saveirista em Mar Grande e naquele dia pela manhã
viera com o saveiro e o trouxera. Mas voltara em seguida para buscar outra
carga e o deixara na cidade passeando, porque o saveiro tornaria à
Bahia ainda à tardinha e então ele poderia voltar com seu pai.
Mas com o temporal seu pai não tinha podido voltar e ele, que não
conhecia ninguém, ficou na chuva sem ter onde dormir. Perguntou a um
homem na rua onde poderia dormir, o homem respondera que na polícia.
Então ele pedira ao guarda que o levasse a dormir na policia, o guarda
não deixara, ele fizera então que ia furtar a mulher só
para ser levado, para poder dormir sob um teto.
— Tanto que não roubei e nem fugi… — concluiu.
O delegado, que sorvia o café em golinhos, disse de si para si: —
Não é possível que uma criança desta idade inventasse
essa história…
Depois, como tinha veleidades literárias, murmurou: — Eis aí
um conto formidável… e sorriu com bom humor.
— Como é o nome de teu pai? — perguntou a Pedro.
— Augusto Santos — respondeu o menino, dando o nome de um saveirista de
Mar Grande.
— Se o que você contou for verdade, eu vou lhe soltar. Mas se você
quis me tapear com essa história, vai ver…
Tocou a campainha chamando o guarda. Pedro estava com os nervos todos em
tensão. O guarda chegou, o comissário perguntou se na polícia
havia um livro de registro de saveiristas de Mar Grande que ancoravam no cais
do Mercado.
— Tem, sim senhor.
— Vá ver se tem um tal Augusto Santos e volte para me dizer. E ande
depressa, que minha hora está acabando.
Pedro Bala olhou para o relógio: marcava cinco e meia da manhã.
O guarda demorou uns minutos, o comissário não se ocupou mais
de Pedro, que estava de pé ante sua secretária. Só quando
o guarda voltou e disse: Tem, sim senhor… Hoje mesmo teve no cais, mas voltou
logo… — o comissário fez um gesto com a mão e falou para
o guarda: — Ponha esse moleque em liberdade Pedro pediu para ir buscar seu
paletó. Acomodou debaixo do braço, nem parecia trazer a imagem
envolvida nele. Atravessaram o corredor novamente, o guarda o deixou na porta.
Pedro tomou para o largo dos Aflitos, rodeou o velho quartel, desabou pela
Gamboa de Cima. Agora ia correndo, mas ouviu passos atrás de si. Parecia
que o perseguiam. Olhou. Professor, João Grande e o Gato vinham atrás
dele.
Esperou que eles chegassem e perguntou curioso: — Que é que vocês
tava fazendo por estas bandas? O Professor coçou a cabeça: —
Não vê que a gente saiu agora cedo. E velo vindo por aqui, andando
sem que fazer, foi quando topou com tu, que vinha desabalado..
Pedro abriu o paletó, mostrou a imagem de Ogum. João Grande
riu com satisfação: — Como foi que tu tapeou eles? Foram descendo
a ladeira escorregadia da chuva. E Pedro Bala ia narrando as aventuras da
noite. O Gato perguntou: — Tu não teve nem um pingo de medo? Primeiro
Pedro Bala pensou em dizer que não, depois confessou: — Pra falar
verdade, tive um cagaço da desgraça…
E riu da cara gozada que João Grande fazia. O céu agora estava
azul, sem nuvens, o sol brilhava e da ladeira eles viam os saveiros que partiam
do cais do Mercado.
Deus sorri como um negrinho O menino era tentação por demais
grande.
Nem parecia um meio-dia de inverno. O sol deixava cair sobre ruas uma claridade
macia, que não queimava, mas cujo calor acariciava como a mão
de uma mulher. No jardim próximo as flores desabrochavam em cores.
Margaridas e onze-horas, rosas e cravos, dália e violetas. Parecia
haver na rua um perfume bom, muito sutil, mas que Pirulito sentia entrar nas
suas narinas e como que embriagá-lo. Tinha comido na porta de uma casa
de portugueses ricos as sobras de almoço que fora quase um banquete.
A criada, que lhe trouxera o prato cheio, dissera, mirando as ruas, o sol
de inverno, os homens que passavam sem capa: — Tá fazendo um dia lindo.
Essas palavras foram com Pirulito pela rua. Um dia lindo, e o menino ia
despreocupado, assoviando um samba que lhe ensinara o Querido-de-Deus, recordando
que o padre José Pedro prometera tudo fazer para 1he conseguir um lugar
n o seminário. Padre José Pedro lhe dissera que toda aquela
beleza que caía envolvendo a terra e homens era um presente de Deus
e que era preciso agradecer a Deus. Pirulito mirou o céu azul onde
Deus devia estar e agradeceu num sorriso e pensou que Deus era realmente bom.
E pensando em Deus pensou também nos Capitães da Areia.
Eles furtavam, brigavam nas ruas, xingavam nomes, derrubavam negrinhas no
areal, por vezes feriam com navalhas ou punhal homens e polícias. Mas,
no entanto, eram bons, uns eram amigos dos outros. Se faziam tudo aquilo é
que não tinham casa, nem pai, nem mãe, a vida deles era uma
vida sem ter comida certa e dormindo num casarão quase sem teto. Se
não fizessem tudo aquilo morreriam de fome, porque eram raras as casas
que davam de comer a um, de vestir a outro. E nem toda a cidade poderia dar
a todos. Pirulito pensou que todos estavam condenados ao inferno.
Pedro Bala não acreditava no inferno, Professor tampouco, riam dele.
João Grande acreditava era em Xangô, em Omolu, nos deuses dos
negros que vieram da África. O Querido-de-Deus, que era um pescador
valente e um capoeirista sem igual, também acreditava neles, misturava-os
com os santos dos brancos que tinham vindo da Europa. O padre José
Pedro dizia que aquilo era superstição, que era coisa errada,
mas que a culpa não era deles. Pirulito se entristeceu na beleza do
dia.
Estariam todos condenados ao inferno? O inferno era um lugar de fogo eterno,
era um lugar onde os condenados ardiam uma vida que nunca acabava. E no inferno
havia martírios desconhecidos mesmo na polícia, mesmo no reformatório
de menores. Pirulito vira há poucos dias um frade alemão que
descrevia o inferno num sermão na Igreja da Piedade. Nos bancos, homens
e mulheres recebiam as palavras de fogo do frade como chicotadas no lombo.
O frade era vermelho e de seu rosto pingava o suor.
Sua língua era atrapalhada e dela o inferno saía mais terrível
ainda, as labaredas lambendo os corpos que foram lindos na terra e se entregaram
ao amor, as mãos que foram ágeis e se entregaram ao furto, ao
manejo do punhal e da navalha.
Deus no sermão do frade era justiceiro e castigador, não era
o Deus dos dias lindos do padre José Pedro. Depois explicaram a Pirulito
que Deus era a suprema bondade, a suprema justiça. E Pirulito envolveu
seu amor a Deus numa capa de temor a Deus e agora vivia entre os dois sentimentos.
Sua vida era uma vida desgraçada de menino abandonado e por isso
tinha que ser uma vida de pecado, de furtos quase diários, de mentiras
nas portas das casas ricas.
Por isso na beleza do dia Pirulito mira o céu com os olhos crescidos
de medo e pede perdão a Deus tão bom (mas não tão
justo também… ) pelos seus pecados e os dos Capitães da Areia.
Mesmo porque eles não tinham culpa. A culpa era da vida…
O padre José Pedro dizia que a culpa era da vida e tudo fazia para
remediar a vida deles, pois sabia que era a única maneira de fazer
com que eles tivessem uma existência limpa. Porém uma tarde em
que estava o padre e estava o João de Adão, o doqueiro disse
que a culpa era da sociedade mal organizada, era dos ricos…
Que enquanto tudo não mudasse, os meninos não poderiam ser
homens de bem.
E disse que o padre José Pedro nunca poderia fazer nada por eles
porque ricos não deixariam.
O padre José Pedro naquele dia tinha ficado muito triste, e quando
Pirulito o foi consolar, explicando que ele não ligasse ao que João
de Adão dizia, o padre respondeu balançando a cabeça
magra.
— Tem vezes que eu chego a pensar que ele tem razão, que isso tudo
está errado. Mas Deus é bom e saberá dar o remédio…
Padre José Pedro achava que Deus perdoaria e queria ajudá-los.
E como não encontrava meios, e sim uma barreira na sua frente(todos
queriam tratar os Capitães da Areia ou como a criminosos ou como crianças
iguais àquelas que foram criadas com um lar e uma família) ficava
como que desesperado, por vezes ficava atarantado.
Mas esperava que Deus o inspirasse um dia e até lá ia acompanhando
meninos, conseguindo por vezes evitar atos de malvadeza das crianças.
Fora mesmo ele um dos que mais concorreram para extermina pederastia no grupo.
E isto foi uma das suas grandes experiências sentido de como agir para
tratar com os Capitães da Areia. Enquanto ele lhes disse que era necessário
acabar pecado, uma coisa imoral e feia, os meninos riram nas suas costa e
continuaram a dormir com os mais novos e bonitos. Mas no dia e que o padre,
desta vez ajudado pelo querido-de-deus, afirmou que aquilo era coisa indigna
num homem, fazia um homem igual a uma mulher, pior que uma mulher, Pedro Bala
tomou medidas violentas, expulsou os passivos do grupo. E por mais que o padre
fizesse não quis mais ali.
— Se eles voltar, a safadeza volta, padre.
Por assim dizer, Pedro Bala arrancou a pederastia entre os Capitães
da Areia como um médico arranca um apêndice doente do corpo de
um homem. O difícil para o padre José Pedro era conciliar as
coisas. Mas ia tenteando e por vezes sorna satisfeito dos resultados.
A não ser quando João de Adão ria dele e dizia que
só a revolução acertaria tudo aquilo. Lá em cima,
na cidade alta, os homens ricos e as mulheres queriam que os Capitães
da Areia fossem para as prisões para o reformatório, que era
pior que as prisões. Lá embaixo, nas docas, João de Adão
queria acabar com os ricos, fazer tudo igual, dar escola aos meninos. O padre
queria dar casa, escola, carinho e conforto aos meninos sem a revolução,
sem acabar com os ricos. Mas de todos os lados era uma barreira. Ficava como
perdido e pedia a Deus que o inspirasse.
E com certo pavor via que, quando pensava no problema, dava, sem sequer
o sentir, razão ao doqueiro João de Adão. Então
era possuído de temor, porque não fora assim que lhe haviam
ensinado, e rezava horas seguidas para que Deus o iluminasse.
Pirulito fora a grande conquista do padre José Pedro entre os Capitães
da Areia.
Tinha fama de ser um dos mais malvados do grupo, contavam dele que uma vez
pusera o punhal na garganta de um menino que não queria lhe emprestar
dinheiro e o fora enfiando devagarinho, sem tremer, até que o sangue
começou a correr e o outro lhe deu tudo que queria. Mas contavam também
que outra vez cortou de navalha a Chico Banha quando o mulato torturava um
gato que se aventurara no trapiche atrás dos ratos. No dia que o padre
José Pedro começou a falar de Deus, do céu, de Cristo, da bondade e da piedade,
Pirulito começou a mudar. Deus o chamava e ele sentia sua voz poderosa no
trapiche. Via Deus nos seus sonhos e ouvia o chamado de Deus de que falava
o padre José Pedro. E se voltou de todo para Deus, ouvia a voz de Deus, rezava
ante os quadros que o padre lhe dera. No primeiro dia começaram a mofar dele
no trapiche. Ele espancou um dos menores, os outros se calaram. No outro dia
o padre disse que ele fizera mal, que era preciso sofrer por Deus, e Pirulito
então dera a sua navalha quase nova ao menino a que espancara. E não espancara
mais nenhum, evitava as brigas e se não evitava os furtos era que aquilo era
o meio de vida que eles tinham, não tinham mesmo outro. Pirulito sentia o
chamado de Deus, que era intenso, e queria sofrer por Deus. Ajoelhava horas
e horas no trapiche, dormia no chão nu, rezava mesmo quando o sono o queria
derrubar, fugia das negrinhas que ofereciam o amor na areia quente do cais.
Mas então amava Deus-pura-bondade e sofria para pagar o sofrimento que Deus
passara na terra. Depois veio aquela revelação de Deus justiça (para Pirulito
ficou Deus-vingança) e o temor de Deus invadiu o seu coração e se misturou
ao amor de Deus. Suas orações foram mais longas, o terror do inferno se misturava
à beleza de Deus.
Jejuava dias inteiros e sua face ficou macilenta como a de um anacoreta.
Tinha olhos de místico e pensava ver Deus nas noites de sonho. Por isso conservava
seus olhos afastados das nádegas e seios das negrinhas que andavam como que
dançando ante os olhos de todos nas ruas pobres da cidade. Sua esperança era
um dia ser sacerdote do seu Deus, viver só para a sua contemplação, viver
só para Ele. A bondade de Deus fazia com que ele esperasse conseguí-lo. O
temor de Deus vingando-se dos pecados de Pirulito fazia com que ele desesperasse.
E é esse amor e esse temor que fazem Pirulito indeciso ante a vitrina nesta
hora de meio-dia, cheia de beleza. O sol é brando e claro, as flores desabrocham
no jardim, vem uma calma e uma paz de todos os lados. Mas, mais belo que tudo
é a imagem da Conceição com o Menino, que está na prateleira daquela loja
de uma só porta. Na vitrina, quadros de santos, livros de orações em encadernações
luxuosas, terços de ouro, relicários de prata. Mas dentro, bem na ponta da
prateleira que chega até a porta, a imagem da Virgem da Conceição estende
o Menino para Pirulito. Pirulito pensa que a Virgem está a lhe entregar Deus,
Deus criança e nu, pobre como Pirulito. O escultor fez o Menino magro e a
Virgem triste da magreza do seu Menino, mostrá-lo aos homens gordos e ricos.
Por isso a imagem está ali e não se vende. O Menino nas imagens é sempre gordo,
um ar de menino rico, um Deus Rico. Ali é um Deus Pobre, um menino pobre,
mesmo igual a Pirulito, ainda mais igual àqueles mais novos do grupo exatamente
igual a um de colo, de poucos meses de idade, que fico abandonado na rua no
dia que sua mãe morreu de um ataque, quando levava nos braços, e que João
Grande trouxe para o trapiche, onde ficou até o fim da tarde (os meninos vinham
e espiavam e riam do Professor e do Grande, afobados para arranjar leite e
água para o bebê quando a mãe-de-santo Don’Aninha viera e o levara consigo,
recostado ao seu seio. Só que aquele era um menino negro e o Menino branco.
No mais a parecença é absoluta. Até uma cara de choro tem o Menino, magro
e pobre, nos braços da Virgem. E esta o oferece Pirulito, aos carinhos de
Pirulito, ao amor de Pirulito. Lá fora o dia é lindo, o sol é brando, as flores
desabrocham. Só o Menino tem for e frio neste dia. Pirulito o levará consigo
para o trapiche dos Capitães da Areia. Rezará para ele, cuidará dele, o alimentará
com seu amor. Não vêem que, ao contrário de todas as imagens, ele não está
preso nos braços da Virgem, está solto nas suas mãos, ela o está oferecendo
carinho de Pirulito?
Ele dá um passo. Dentro da loja só uma senhorita espera os fregueses, pintando
os lábios com uma nova marca de batom. É facílimo levar o Menino. Pirulito
estende o pé noutro passo, mas o temor de Deus o assalta, E fica parado, pensando.
Ele tinha jurado a Deus, no seu temor, que só furtaria para comer ou quando
fosse uma coisa ordenada pelas leis do grupo, um assalto para o qual fosse
indicado por Pedro Bala. Porque ele pensava que trair as leis (nunca tinham
sido escritas, mas existiam na consciência de cada um deles) dos Capitães
da Areia era um pecado também. E agora ia furtar só para ter o Menino consigo,
alimentá-lo com seu carinho. Era um pecado, não era para comer, para matar
o frio, nem para cumprir as leis do grupo.
Deus era justo e o castigaria,lhe daria o fogo do inferno. Suas carnes arderiam,
suas mãos que levassem o Menino queimariam durante uma vida que nunca acabava.
O Menino era do dono da loja. Mas o dono da loja rinha tantos Meninos, e todos
gordos, e rosados, não iria sentir falta de um só, e de um magro e friorento!
Os outros estavam com o ventre envolto em panos caros, sempre panos azuis,
mas de rica fazenda. Este estava totalmente nu, tinha frio no ventre, era
magro, nem do escultor tivera carinho.
E a Virgem o oferecia a Pirulito, o Menino estava solto nos braços dela…
O dono da loja tinha tantos Meninos, tantos. . . Que falta lhe faria este?
Talvez nem se importasse, talvez até se risse quando soubesse que haviam furtado
aquele Menino que nunca tinha conseguido vender, que estava solto nos braços
da Virgem, diante do qual as beatas que vinham comprar diziam horrorizadas:
— Este não… Ele é tão feio, Deus me perdoe… E ainda por cima solto dos
braços de Nossa Senhora. Cai no chão e pronto. Esse não… E o Menino ia ficando.
A Virgem o oferecia ao carinho dos que passavam, mas ninguém o queria. As
beatas não queriam levá-lo para seus oratórios, onde havia Meninos calçados
de sandálias de ouro, com coroa de ouro na cabeça. Só Pirulito viu que o Menino
tinha fome e sede, tinha frio também e quis levá-lo. Mas Pirulito não tinha
dinheiro e tampouco tinha o costume de comprar as coisas. Pirulito podia levá-lo
consigo, podia dar ao Menino que comer, que beber, que vestir, tudo tirado
do seu amor a Deus. Mas se o fizesse, Deus o castigaria, o fogo do inferno
comeria, durante uma vida que nunca acabava, suas mãos que levassem o Menino,
sua cabeça que pensava em levar o Menino. Então Pirulito lembrou-se que só
o pensar já era pecado. Que se pecava só de pensar em cometer o pecado. O
frade alemão dissera que muitas vezes um estava pecando e nem o sabia porque
estava pecando com o pensamento.
Pirulito estava pecando, sentiu que estava pecando, teve medo de Deus e deitou
a correr para não continuar a pecar. Mas não correu muito, ficou na esquina,
pôde se afastar para longe da imagem. Olhou outras vitrines, assim não pecava.
Meteu as mãos no bolso (prendia as mãos…), desviou pensamento. Mas agora
os homens que volviam ao trabalha após o almoço passavam na sua frente e um
pensamento o assaltou: dentro em pouco os outros empregados da loja voltariam
e então seria impossível levar o Menino. Seria impossível… E Pirulito voltou
a frente da loja de objetos religiosos. Lá estava o Menino, e a Virgem o oferecia
a Pirulito. Um relógio deu a primeira hora da tarde. Não tardariam a voltar
os outros empregados. Quantos seriam? Mesmo que fosse somente um, a loja era
tão pequena que ficaria impossível levar o Menino. Parece que é a Virgem que
está lhe dizendo isso. Que é a Virgem a lhe dizer que se ele não levar o Menino
agora não o poderá levar mais, parece que está mesmo dizendo isso. E com certeza
foi ela, sim, foi ela quem com que a senhorita entrasse pela cortina que tem
no fundo da loja e a deixasse sozinha. Sim, foi a Virgem, que agora estende
o Menino para Pirulito o quanto podem seus braços e o chama com sua doce voz:
— Leve e cuide dele… Cuide bem… Pirulito avança. Vê o inferno, o castigo
de Deus, suas mãos e cabeça a arder uma vida que nunca acaba. Mas sacode o
corpo como que jogando longe a visão, recebe o Menino que a Virgem lhe entrega,
o encosta ao peito e desaparece na rua. Não olha o Menino. Mas sente que agora,
encostado ao seu peito, o Menino sorri, não tem mais fome nem sede nem frio.
Sorri o Menino como sorria o negrinho de poucos meses quando se encontrou
no trapiche e viu que João Grande lhe dava leite às colheradas com suas mãos
enormes, enquanto o Professor o sustinha encostado ao calor do seu peito.
Assim sorri o Menino.
Família
Foi Boa-Vida que contou a Pedro Bala que naquela casa da Graça tinha coisa
de ouro de fazer medo. O dono da casa, pelo jeito, parecia colecionador, o
Boa-Vida tinha ouvido um malandro dizer que na casa havia uma sala entupida
de objetos de ouro e prata que no emprego haviam de dar uma fortuna. À tarde
Pedro Bala foi com o Boa-Vida ver a casa. Era um prédio moderno e elegante,
jardim na frente, garagem ao fundo, espaçosa residência de gente rica. O Boa-Vida
cuspiu por entre os dentes, desenhando uma flor no passeio com o cuspe, e
disse: — E dizer que nesse mundo só mora dois velhos, hein? — Toca batuta…
— comentou Pedro Bala. Uma empregada abriu a porta da frente, saiu para o
jardim. No hall, que ficou à vista, eles perceberam quadros pela parede, estatuetas
sobre as mesas. Pedro Bala riu: — Se o Professor visse isso ficava doidinho…
Nunca vi tanto pegadio com livro e pintura. — Ele vai fazer uma pintura como
eu, deste tamanho… e Boa-Vida mostrava o tamanho separando as mãos uma da
outra. Pedro Bala olhou mais uma vez a casa, se acercou um pouco do jardim,
assoviando. A empregada colhia flores e os seios alvos apareciam sob o decote,
pois ela estava curvada. Pedro Bala espiou. Eram seios alvos terminando em
bicos vermelhos. Boa-Vida suspirou ao seu lado. — Que montanha, Bala.
— Cala a boca.
Mas a empregada já os vira e os olhava como a perguntar o que desejavam.
Pedro Bala sacou o boné e pediu: — Podia dar uma caneca de água
à gente, por favor? O sol encalistrando… — e sorria, limpando com
o boné a testa, onde o suor corria. Estava muito vermelho sob o sol,
seus cabelos loiros crescidos desabando sobre as orelhas em ondas maltratadas,
e a empregada mirou com simpatia. Ao lado Boa-Vida fumava uma ponta de charuto,
com um pé em cima da gradezinha do jardim. A criada primeiro falou
para Boa-Vida com desprezo: — Tira esta pata daí de cima…
Depois sorriu para Pedro Bala: — Trago a água já…
Voltou com dois copos d’água e eram copos como eles nunca tinham
visto de tão bonitos. Beberam a água, Pedro Bala agradeceu —
Muito obrigado… e baixinho lindeza.
A empregada falou também baixinho: — Frangote atrevido…
— Que hora tu sai daqui? — Te repara. Tenho meu homem. Ele me espera às
nove horas da noite naquela esquina…
— Pois hoje tou na outra…
Saíram pela rua, Boa-Vida fumando sua ponta de charuto, abanando
o rosto com o chapéu-coco que usava. Pedro Bala com, comentou: — Eu
sou é mesmo simpático… Aquela tá no papo…
Boa-Vida cuspiu novamente entre os dentes: — Também com essa cabeleira
de mulher, toda cheia de cachos…
Pedro Bala nu, mostrou o punho fechado ao Boa-Vida: — Deixa de inveja,
mulato pachola…
Boa-Vida desviou a conversa: souber onde fica os troço melhor a gente
vem, uns cinco ou seis, tira O ourame…
— E tu perde a comida? — A criada? Como hoje mesmo… Nove horas tou firme
aí…
Voltou-se. Olhou a casa. A criada se debruçava na grade, Pedro Bala
deu adeus.
Ela respondeu, Boa-Vida cuspiu: — Ó peste de sorte, nunca vi…
No outro dia, por volta de onze e meia da manhã, o Sem-Pernas apareceu
em frente à casa. Quando ele tocou a campainha a empregada com certeza
ainda pensava na noite que passara com Pedro Bala no seu quarto no Garcia,
porque não ouviu o tilintar. O menino tocou de novo e na janela de
um quarto do primeiro andar assomou a cabeça grisalha de uma senhora,
que mirou com os olhos apertados ao Sem- Pernas: — Que é, meu filho?
— Dona, eu sou um pobre órfão…
A senhora fez com a mão sinal que ele esperasse e dentro de poucos
minutos estava no portão sem ouvir sequer as desculpas da empregada
por não ter atendido à porta: — Pode dizer, meu filho olhava
os farrapos do Sem-Pernas.
— Dona, eu não tenho pai, faz só poucos dias que minha mãe
foi chamada pro céu — mostrava um laço preto no braço,
laço que tinha sido feito com a fita do chapéu novo do Gato,
que se danara. — Não tenho ninguém no mundo, sou aleijado,
não posso trabalhar muito, faz dois dias que não vejo de comer
e não tenho onde dormir.
Parecia que ia chorar. A senhora olhava muito impressionada: — Você
é aleijado, meu filho? O Sem-Pernas mostrou a perna capenga, andou
na frente da senhora forçando o defeito. Ela o fitava com compaixão:
— De que morreu sua mãe?
— Antes, sim. Faz dois dias que ele não come, pobrezinho…
O Sem-Pernas nada dizia, apenas secava com as costas da mão lagrimas
fingidas.
— Não chore… — falou a senhora, e acariciou o rosto da criança.
— A senhora é tão boa. Deus lhe paga…
Depois perguntou como ele se chamava, e o Sem-Pernas deu o primeiro nome
que lhe passou pela cabeça: — Augusto… — e como repetia o nome
para si mesmo, para não se esquecer que se chamava Augusto, não
viu no primeiro momento a emoção da senhora, que murmurava:
— Augusto, o mesmo nome…
Disse em voz alta, porque agora o Sem-Pernas olhava seu rosto emocionado:
— Meu filho também se chamava Augusto… Morreu quando tinha assim
o seu tamanho… Mas entre, meu filho, vá se lavar para comer.
Dona Ester o acompanhou comovida. Viu que a empregada mostrava o banheiro
ao Sem-Pernas, dava-lhe um roupão e se dirigia pata o quarto em cima
da garagem para arrumá-lo (o chofer tinha se despedido, o quarto estava
vazio). Dona Ester se aproximou, disse ao Sem-Pernas que parara na porta do
banheiro: — Pode jogar essas roupas fora. Maria José depois vai lhe
trazer roupa…
O Sem-Pernas agora olhava a senhora que desaparecia, e tinha raiva, mas
não sabia se era dela ou de si mesmo.
Dona Ester sentou-se em frente ao seu penteador, ficou com os olhos parados,
quem a visse pensaria que ela olhava o céu através da janela.
Porém, em verdade, ela nada olhava, nada via. Olhava, sim, para dentro
de si, para as suas recordações de muitos anos, e via um menino
da idade do Sem-Pernas, vestido com uma roupa de marinheiro, correndo no jardim
da outra casa, da qual se mudaram depois que ele morreu. Era um menino cheio
de vida e de alegria, gostava de rir e de saltar.
Quando se cansava de correr com o gato, de montar na gangorra do jardim,
de jogar a bola de borracha no quintal para o cão lobo a apanhar, vinha
e passava os braços em tomo ao colo de dona Ester, a beijava no rosto
e ficava com ela, vendo livros de figuras, aprendendo a ler e a desenhar as
letras. Para tê-lo junto a si o maior tempo possível dona Ester
e o marido resolveram ensinar ao filho as primeiras letras mesmo em casa.
Um dia (e os olhos de dona Ester se enchem de lágrimas) veio a febre.
Depois o pequeno caixão saiu pela porta e ela o olhava de olhos espantados,
não podia compreender seu filho houvesse morrido.
O retrato dele ampliado num quadro no seu quarto, mas uma cortina o cobre
sempre, porque ela não gosta de rever a face do filho para não
renovar sua angústia. Também roupas que ele usou estão
todas trancadas na sua pequena mala jamais buliram nela. Mas agora dona Ester
tira as chaves da sua caixa de jóias.
E, lentamente, muito lentamente, se dirige para onde está a mala.
Puxa uma cadeira na qual senta. Abre com mãos trêmulas a maleta.
Mira as calças e blusas, a roupa de marinheiro, os pequenos pijamas
e camisolas com que ele dormia. Aperta a roupa de marinheiro ao peito como
se abraçasse seu filho. As lágrimas rebentam.
Agora um menino pobre e órfão viera bater à sua porta.
Depois da morte de seu filho ela não quisera ter outro, não
gostava mesmo de ver e brincar com crianças para não avivar
a dor das suas recordações. Mas um, pobre e órfão,
aleijado e triste, que se dissera chamar Augusto como seu filho, batera em
sua porta pedindo pão, pousada e carinho. Por isso ela tem coragem
de abrir a mala onde guarda roupas que seu filho usou. Por isso tira esta
roupa azul de marinheiro, a roupa da qual ele mais gostava. Porque para dona
Ester seu filho voltou hoje na figura desta criança andrajosa e aleijada,
sem pai, sem mãe. Seu filho voltou e suas lágrimas não
são apenas de dor. Voltou seu filho macilento e esfomeado, com uma
perna aleijada e vestido de farrapos. Mas em breve será novamente o
Augusto alegre e feliz daqueles anos passados, e novamente virá e passará
os braços em torno ao seu pescoço e lerá as grandes letras
da cartilha.
Dona Ester se levanta. Leva consigo a roupa azul de marinheiro. E é
vestido com ela que o Sem-Pernas come o melhor almoço da sua vida.
Se a roupa de marinheiro tivesse sido feita de propósito para ele
não estaria tão bem. Estava perfeita no Sem-Pernas e quando
ele se olhou no espelho da sala quase não se reconheceu. Estava lavado,
a empregada tinha posto brilhantina no seu cabelo e perfume no seu rosto.
A roupa de marinheiro era um a beleza. O Sem- Pernas se mirava no espelho.
Passou a mão na cabeça, depois no peito alisando a roupa, sorriu
pensando no Gato. Daria muito para que o Gato o visse tão elegante.
Tinha também sapatos novos, mas a verdade é que os sapatos
o desgostavam um pouco porque tinham um laço de fita, pareciam um pouco
sapatos de mulher. O Sem-Pernas achava esquisito estar vestido de marinheiro
com sapatos de mulher. Andou para o jardim, pois queria fumar, nunca tinha
deixado de tragar o seu cigarro após o almoço. Por vezes não
havia almoço, mas havia sempre uma ponta de cigarro ou de charuto.
Ali era preciso cuidado, não podia fumar abertamente. Se o houvessem
deixado na cozinha de mistura com a criadagem, como o deixavam nas outras
casas onde penetrara para depois roubar, poderia fumar, conversar na língua
de poucos termos dos Capitães da Areia. Mas desta vez o tinham lavado,
vestido de novo, posto brilhantina no seu cabelo e perfume no rosto.
Depois tinham lhe dado comida na sala de jantar. E durante o almoço
a senhora conversara com ele como se ele fosse um menino bem criado. Agora
mandara que ele brincasse no jardim, onde o gato amarelo que se chamava Berloque
esquentava ao sol. O Sem-Pernas chega para um banco, tira do bolso o maço
de cigarros baratos.
Quando mudara a roupa não se esquecera dos cigarros. Acende um e
começa a saborear as tragadas, pensando na sua nova vida. Muitas vezes
já fizera aquilo: penetrar em casa de uma família como um menino
pobre, órfão e aleijado e neste título passar os dias
necessários para fazer um reconhecimento completo da casa, dos lugares
onde guardavam os objetos de valor, das saídas fáceis para uma
fuga. Depois os Capitães da Areia invadiam a casa numa noite, levavam
os objetos valiosos, e no trapiche o Sem- Pernas gozava invadido por uma grande
alegria, alegria da vingança. Porque naquelas casas, se o acolhiam,
se lhe davam comida e dormida, era como cumprindo uma obrigação
fastidiosa. Os donos da casa evitavam se aproximar dele, e o deixavam na sua
sujeira, nunca tinham uma palavra boa para ele. Olhavam-no sempre como a perguntar
quando ele iria. E muitas vezes a senhora que se comovera com a sua história,
contada na porta em voz soluçante, e o acolhera, mostrava evidentes
sinais de arrependimento.
Para o Sem-Pernas elas o acolhiam de remorso. Porque o Sem-Pernas achava
que eles eram todos culpados da situação de todas as crianças
pobres. E odiava a todos, com um ódio profundo. Sua grande e quase
única alegria era calcular o desespero das famílias após
o roubo, ao pensar que aquele garoto esfomeado a quem tinham dado comida quem
fizera o reconhecimento da casa e indicara a outras criar esfomeadas onde
estavam os objetos de valor.
Mas desta vez estava sendo diferente. Desta vez não o deixa na cozinha
com seus molambos, não o puseram a dormir no quintal. Deram-lhe roupa,
um quarto, comida na sala de jantar. Era como hóspede, era como um
hóspede querido. E fumando o seu cigarro escondido(o Sem-Pernas pergunta
a si mesmo por que está se escondendo para fumar), o Sem-Pernas pensa
sem compreender. Não compreende nada do que se passa. Sua cata está
franzida. Lembra os dias da cadeia, a surra que lhe deram, os sonhos que nunca
deixaram de persegui-lo. E, de súbito, tem medo de que nesta casa sejam
bons para ele. Sim, um grande medo de que sejam bons para ele. Não
sabe mesmo por que, mas tem medo. E levanta-se, sai do seu esconderijo e vai
fumar bem por baixo da janela da senhora. Assim verão que é
um menino perdido, que não merece um quarto, roupa nova, comida na
sala de jantar. Assim o mandarão para a cozinha, ele poderá
1evar para diante sua obra de vingança, conservar o ódio no
seu coração.
Porque se esse ódio desaparecer, ele morrerá, não terá
nenhum motivo para viver. E diante dos seus olhos passa a visão do
homem de colete que vê os soldados a espancar o Sem-Pernas e ri numa
gargalhada brutal. Isso há de impedir sempre o Sem- Pernas de ver o
rosto bondoso de dona Ester, o gesto protetor das mãos do padre José
Pedro, a solidariedade dos músculos grevistas do estivador João
de Adão. Será sozinho e seu ódio alcança a todos,
brancos e negros, homens e mulheres, ricos e pobres.
Por isso teme que sejam bons para cons Pela tarde o dono da casa, Raul,
chegou do seu escritório. Era advogado de muito nome, enriquecera na
profissão, era catedrático na Faculdade de Direito, mas antes
de tudo era um colecionador. Tinha uma boa galeria de quadros e tinha moedas
antigas, obras raras de arte. O Sem-Pernas viu quando ele entrou. Neste momento
o Sem-Pernas via as gravuras de um livro para crianças e ria sozinho
do elefante tolo a quem o macaco enganava. Raul não o viu, subiu as
escadas. Mas depois a empregada veio chamar o Sem-Pernas e o levou ao quarto
de dona Ester. Raul ali estava de manga a de camisa, fumando um cigarro e
olhou o menino com um sorriso divertido, já que o Sem-Pernas mostrava
uma cara muito atrapalhada na entrada do quarto: — Passe…
O Sem-Pernas entrou capengando, não tinha onde botar as mãos.
Dona Ester falou com bondade: — Sente, meu filho, não tenha medo,
não…
O Sem-Pernas sentou-se na ponta de uma cadeira e ficou esperando. O advogado
o estudava, mirando seu rosto, mas era com simpatia, e o Sem-Pernas preparava
as respostas para as inevitáveis perguntas. Contou novamente a história
inventada pela manhã, mas quando começou a chorar abundantes
lágrimas o advogado mandou que ele parasse e se levantou, dirigindo-se
à janela. O Sem-Pernas compreendeu que ele estava comovido, e este
resultado da sua arte o fez ficar orgulhoso. Sorriu só para si. Mas
agora o advogado se aproximava de dona Ester e a beijava na testa e depois
nos lábios. O Sem-Pernas baixou os olhos. Raul andou até ele,
botou a mão no seu ombro e falou: — Deixe estar, que agora você
não passa mais fome. Vá… Vá brincar, vá ver
os livros. À noite nós vamos ao cinema. Você gosta de
cinema? — Gosto, sim senhor.
O advogado o despedia com um gesto. O Sem-Pernas saiu, mas ainda viu Raul
se aproximar de dona Ester e dizer: — És uma santa. Vamos fazer dele
um homem…
Era a hora do crepúsculo, as luzes se acendiam e o Sem-Pernas pensou
que nesta hora os Capitães da Areia percorriam a cidade procurando
o que comer.
Pena que no cinema não pudesse gritar quando o mocinho surrava o
vilão, como fazia nas vezes que conseguira penetrar no galinheiro do
Olímpia ou do cinema de Itapagipe. Ali, no Guarani, luxuoso e de cômodas
cadeiras, tinha que ouvir o filme em silêncio e num momento que não
se conteve e soltou um assovio, Raul o olhou. É verdade que sorria,
mas também é certo que fez um gesto para que Sem-Pernas não
assoviasse mais.
Depois o levaram a tomar sorvete no bar que havia em frente ao cinema. O
Sem- Pernas, enquanto tomava seu gelado, pensava em que ia cometendo uma irremediável
tolice quando o advogado perguntara o que ele queria. Estivera para pedir
uma cerveja bem geladinha. Mas se contivera em tempo e pedira o sorvete.
No automóvel o advogado foi na frente guiando e o Sem-Pernas foi
atrás com dona Ester, que conversava com ele. A conversa era difícil
para o Sem-Pernas, que tinha que controlar sua terminologia que era escassa
e repleta de palavrões. Dona Ester perguntava coisas de sua mãe,
o Sem-Pernas respondia como podia, fazendo grande esforço para reter
os detalhes que inventava para posteriormente cair em contradição.
Por fim chegaram na casa da Graça e dona Ester conduziu o Sem-Pernas
para o quarto em cima da garagem: — Não tem medo de dormir aí
sozinho? — Não, senhora…
— Isso é por poucos dias. Depois lhe porei lá em cima, no
quarto que foi de Augusto…
— Não precisa, dona Ester, aqui tá muito bom.
Ela se acercou dele e o beijou na face: — Boa noite, meu filho.
Saiu, cerrando a porta. O Sem-Pernas ficou parado, sem um gesto, sem responder
sequer o boa noite, a mão no rosto, no lugar em que dona Ester o beijara.
Não pensava, não via nada. Só a suave carícia
do beijo, uma carícia como nunca tivera, uma carícia de mãe.
Só a suave carícia no seu rosto. Era como se o mundo houvesse
parado naquele momento do beijo e tudo houvesse mudado. Só havia no
universo inteiro a sensação suave daquele beijo maternal na
face do Sem-Pernas.
Depois foi o horror dos sonhos da cadeia, o homem de colete que ria brutalmente,
os soldados que surravam o Sem-Pernas, que corria com a perna aleijada em
volta da saleta. Mas de repente chegou dona Ester e o homem de colete e os
soldados morreram entre infinitas torturas, porque agora o Sem-Pernas estava
vestido com uma roupa de marinheiro e tinha um chicote na mão como
o mocinho do cinema.
Oito dias se passaram. Pedro Bala por várias vezes já andara
em frente da casa para saber notícias do Sem-Pernas, que tardava a
voltar ao trapiche. Já havia tempo mais que suficiente para que o Sem-Pernas
soubesse onde se quedavam todos os objetos facilmente transportáveis
da casa e as saídas que podiam auxiliar a fuga. Mas em vez de ver o
Sem-Pernas, Pedro Bala via era a empregada, que pensava que ele vinha por
ela. Certo dia em que conversava com a empregada, Pedro Bala tocou com muito
jeito no assunto do Sem-Pernas: — A moça daí tem um filho,
não tem? — É um menino que ela tá criando. Muito bonzinho.
Pedro Bala sorriu, porque sabia que o Sem-Pernas, quando queria, se fazia
passar pelo melhor menino do mundo. A empregada continuou: — É um
pouco mais moço que você, mas é mesmo um menino.
Não é assim um perdido como você, que até já
dorme com mulher… –e ria para Pedro Bala.
— Foi tu que tirou meu cabaço…
— Não diga coisa feia. Demais é mesmo mentira.
— Juro.
Ela gostaria que fosse, e se bem desconfiasse muito que não, gostava
que ele lhe dissesse aquilo. Se sentia não só como amante do
menino, mas um pouco como mãe também.
— Vem hoje, que eu te ensino um modo gostoso…
— De noite, na esquina… Mas diz um troço: tu não trepa
com esse menino daqui? — Esse nem sabe que é isso… É um tolinho.
Menino mimado.
Tu tá feito bobo. Não vê que eu não me passo…
De outra vez Pedro Bala conseguiu ver o Sem-Pernas. Este estava estirado
no jardim (o gato roncava ao seu lado), espiando um livro de figuras, e Pedro
Bala ficou espantadíssimo quando o viu vestido com uma calça
de casimira cinza e uma blusa de seda. Até o cabelo do Sem-Pernas estava
penteado, e Pedro Bala quedou um momento boquiaberto, sem sequer assoviar
para o Sem-Pernas. Afinal voltou a si e assoviou. O Sem-Pernas se pôs
logo de pé, viu o Bala do outro lado da rua. Fez um sinal para que
ele o esperasse, saiu pelo portão, após ver que ninguém
da casa estava próximo.
Pedro Bala andava para a esquina, e Sem-Pernas o acompanhou. Quando chegou
perto, ainda mais se espantou Pedro Bala: — Peste! Tu tá até
cheirando, Sem-Pernas.
O Sem-Pernas fez uma cara de aborrecimento, mas Bala continuou: — Tu tá
dez vez mais elegante que o Gato. Puxa! Se tu aparecer assim na toca assim
tratavam o trapiche os outros vai dar em cima de tu. Tu tá mesmo uma
tetéia… — Não chateia… Tou vendo as coisas. Não
demora dou o fora, tu pode vim com os outros.
— Desta vez tu tá demorando…
— É que os troço melhor tão trancado mentiu o Sem-Pernas
— Vê se tu te arranja.
Depois lembrou-se: — O Gringo andou ruim. Quase bate o trinta e sete. Andou
por pouco. Se não fosse Don’Aninha, que deu beberagem a ele que botou
ele em pé, tu não via mais ele.
Tá mais magro que um espeto…
E com essa notícia se despediu, dando mais uma vez pressa ao Sem-Pernas.
O Sem-Pernas voltou a se estender no jardim. Mas agora não via as
figuras do livro. Via era o Gringo. O Gringo fora um dos mais perseguidos
pelo Sem-Pernas no grupo. Filho de árabes, falava com uma pronúncia
esquisita, e isso dava lugar a piadas consecutivas do Sem-Pernas. O Gringo
não era forte e nunca conseguira ser importante entre os Capitães
da Areia, se bem Pedro Bala e Professor procurassem dar lugar a isso.
Gostavam de ter entre eles um estrangeiro ou quase estrangeiro. Mas o Gringo
se contentava com pequenos furtos, evitava os assaltos arriscados e ideava
um baú cheio de bugigangas para vender nas ruas às criadas das
casas ricas. O Sem Pernas o maltratava sem piedade, burlando dele, do seu
falar arrevesado, da sua falta de coragem. Mas agora, deitado sobre a grama
macia do jardim rico, vestido com boa roupa, penteado e com perfume, um livro
de figuras ao lado, o Sem-Pernas pensava no Gringo quase morrendo, enquanto
ele comia bem e vestia bem. Não só o Gringo estivera quase morrendo.
Durante aqueles oito dias os Capitães da Areia continuaram mal vestidos,
mal alimentados, dormindo sob a chuva no trapiche ou embaixo das pontes.
Enquanto isso, o Sem-Pernas dormia em boa cama, comia boa comida, tinha
até uma senhora que o beijava e o chamava de filho. Se sentiu como
um traidor do grupo. Era igual àquele doqueiro do qual fala João
de Adão cuspindo no chão e passando o pé em cima com
desprezo. Aquele doqueiro que na greve grande se passara para o outro lado,
para o lado dos ricos, furara a greve, fora contratar homens de fora para
trabalhar nas docas. Nunca mais um homem do cais apertou sua mão, nunca
mais um o tratou como amigo. E se para alguém o Sem-Pernas abria exceção
no seu ódio, que abrangia o mundo todo, era para as crianças
que formavam os Capitães da Areia. Estes eram seus companheiros, eram
iguais a ele, eram as vítimas de todos os demais, pensava o Sem-Pernas.
E agora sentia que os estava abandonando, que estava passando para o outro
lado. Com este pensamento se sobressaltou, sentou-se. Não, ele não
os trairia.
Antes de tudo estava a lei do grupo, a lei dos Capitães da Areia.
Os que a traíam eram expulsos e nada de bom os esperava no mundo. E
nunca nenhum a havia traído do modo como o Sem-Pernas a ia trair. Para
virar menino mimado, para virar uma daquelas crianças que eram eterno
motivo de galhofa para eles. Não, não os trairia. Teriam bastado
três dias para ele localizar os objetos de valor da casa. Mas a comida,
a roupa, o quarto, e mais que a comida, a roupa e o quarto, o carinho de dona
Ester tinham feito que ele passasse já oito dias. Tinha sido comprado
por este carinho como o estivador fora comprado por dinheiro. Não,
não trairia. Mas aí pensou se não ia trair dona Ester.
Ela confiara nele. Ela também na sua casa tinha uma lei como os Capitães
da Areia: só castigava quando havia erro, pagava o bem com o bem. O
Sem-Pernas ia trair essa lei, ia pagar o bem com o mal. Lembrou-se que das
outras vezes, quando dava o fora de uma casa para ela ser assaltada, era uma
grande alegria que o invadia. Desta vez não tinha alegria nenhuma.
Seu ódio para todos não desaparecera, é verdade. Mas
abrira uma exceção para a gente daquela casa, porque dona Ester
o chamava de filho e o beijava na face. O Sem-Pernas luta consigo mesmo. Gostaria
de continuar naquela vida. Mas que adiantaria isso para os Capitães
da Areia? E ele era um deles, nunca poderia deixar de ser um deles porque
uma vez os soldados o prenderam e o surraram enquanto um homem de colete ria
brutalmente. E o Sem-Pernas se decidiu. Mas olhou com carinho as janelas do
quarto de dona Ester e ela, que o espiava, notou que ele chorava: — Está
chorando, meu filho? — e desapareceu da janela para vir para junto dele.
Só então o Sem-Pernas viu que estava mesmo chorando, limpou
as lágrimas, mordeu a mão. Dona Ester chegava para junto dele:
— Está chorando, Augusto? Aconteceu alguma coisa? — Não, senhora.
Não estou chorando, não…
— Não minta, meu filho. Bem que eu vejo… O que passou? Está
se lembrando da sua mãe? E o trouxe para junto de si, sentou-se no
banco, encostou a cabeça do Sem- Pernas no seu seio maternal.
— Não chore por sua mãe. Agora você tem outra mãezinha
que lhe quer bem e fará tudo para substituir a que você perdeu…(…
e ele faria tudo para substituir o filho que ela perdera, ouviu o Sem-Pernas
dentro de si).
Dona Ester o beijou na face onde as lágrimas corriam: — Não
chore, que sua mãezinha fica triste.
Então os lábios do Sem-Pernas se descerraram e ele soluçou,
chorou muito encostado ao peito de sua mãe. E enquanto a abraçava
e se deixava beijar, soluçava porque a ia abandonar e, mais que isso,
a ia roubar. E ela talvez nunca soubesse que o Sem-Pernas sentia que ia roubar
a si próprio também. Como não sabia que o choro dele,
que os soluços dele eram um pedido de perdão.
Os acontecimentos se precipitaram, porque Raul teve que fazer uma viagem
ao Rio de Janeiro, a negócios importantes de advocacia. E o Sem-Pernas
achou que não havia melhor ocasião para o assalto. Na tarde
em que se foi, mirou a casa toda, acariciou o gato Berloque, conversou com
a criada, olhou os livros de gravura. Depois foi ao quarto de dona Ester,
disse que ia até o Campo Grande passear.
Ela então lhe contou que Raul traria uma bicicleta do Rio para ele
e então todas as tardes ele andaria nela pelo Campo Grande, em vez
de passear a pé. O Sem- Pernas baixou os olhos, mas antes de sair veio
até dona Ester e a beijou. Era a primeira vez que a beijava, e ela
ficou muito alegre. Ele disse baixinho, arrancando as palavras de dentro de
si: — A senhora é muito boa. Eu nunca vou esquecer…
Saiu e não voltou. Essa noite dormiu no seu canto no trapiche. Pedro
Bala tinha ido com um grupo para a casa. Os outros tinham rodeado o Sem-Pernas,
admirando suas roupas, seu cabelo assentado, o perfume que evolava do seu
corpo. Mas o Sem-Pernas meteu o braço em um, foi resmungando para seu
canto. E ali ficou mordendo as unhas, sem dormir, angustiado, até que
Pedro Bala voltou com os outros, trazendo os resultados do assalto. Comunicou
ao Sem-Pernas que fora a coisa mais canja do mundo, que ninguém dera
fé na casa, que todos tinham continuado dormindo. Talvez que nem no
dia seguinte descobrissem o roubo. E mostrava os objetos de ouro e de prata:
— Amanhã Gonzales dá uma dinheirama por isso…
O Sem-Pernas fechava os olhos para não ver. Depois que todos foram
dormir, ele se aproximou do Gato: — Tu quer fazer um negócio comigo?
— Que é? — Eu dou essa roupa, tu me dá a sua…
O Gato olhou cheio de espanto. A sua roupa era a melhor do grupo, sem dúvida.
Mas era roupa velha, estava muito longe de valer a boa roupa de casimira
que o Sem-Pernas vestia. Tá doido, pensou o Gato enquanto respondia:
— Se topo? Nem se pergunta.
Trocaram a roupa. O Sem-Pernas voltou ao seu canto, procurou dormir.
Na rua vinha doutor Raul com dois guardas. Eram os mesmos soldados que o
haviam espancado na cadeia. O Sem-Pernas corria, mas doutor Raul o apontava
e os soldados o levavam para a mesma sala. A cena era a mesma de sempre: os
soldados que se divertiam a fazê-lo correr com sua perna capengando
e o espancavam e o homem de colete que ria. Só que na sala estava também
dona Ester, que o olhava com os olhos tristes e dizia que ele não era
mais seu filho, era um ladrão. E os olhos de dona Ester o faziam sofrer
mais que as pancadas dos soldados, mais que o riso brutal do homem.
Acordou molhado de suor, fugiu da noite do trapiche, a madrugada o encontrou
vagando no areaL No outro dia, à noite, Pedro Bala viera trazer o dinheiro
da sua parte no furto.
Mas o Sem-Pernas o recusou sem dar explicações.
Depois Volta Seca chegou com um jornal que trazia notícias de Lampião.
Professor leu a notícia para Volta Seca e ficou vendo as outras coisas
que o jornal trazia.
Então chamou: — Sem-Pernas! Sem-Pernas! O Sem-Pernas veio. Outros
vieram com ele e formaram um círculo. Professor disse: — Isso aqui
é com tu, Sem-Pernas…
E leu uma notícia no jornal: Ontem desapareceu da casa número…
da rua …, Graça, um filho dos donos da casa, chamado Augusto. Deve
ter se perdido na cidade que pouco conhecia. É coxo de uma perma, tem
treze anos de idade, é muito tímido, veste roupa de casimira
cinza. A polícia o procura para o entregar aos seus pais aflitos, mas
até agora não o encontrou.
A família gratificará bem quem der noticias do pequeno Augusto
e o conduz a sua casa.
O Sem-Pernas ficou calado. Mordia o lábio. Professor disse: — Ainda
não descobriram o furto…
Sem-Pernas fez que sim com a cabeça. Quando descobrissem o furto
não o procurariam mais como a um filho desaparecido. Barandão
fez uma cara de riso e gritou: — Tua família tá te procurando,
Sem-Pernas. Tua mamãe tá te procurando pra dar de mamar a tu…
Mas não disse mais nada, porque o Sem-Pernas já estava em
cima dele e levantava o punhal. E esfaquearia sem dúvida o negrinho
se João Grande e Volta Seca não o tirassem de cima dele. Barandão
saiu amedrontado. O Sem-Pernas foi indo para o seu canto, um olhar de ódio
para todos. Pedro B ala foi atrás dele, botou a mão em seu ombro:
— São capazes de não descobrir nunca o roubo, Sem-Pernas. Nunca
saber de você… Não se importe, não.
— Quando doutor Raul chegar vão saber…
E rebentou em soluços, que deixaram os Capitães da Areia estupefatos.
Só Pedro Bala e o Professor compreendiam, e este abanava as mãos
porque não podia fazer nada.
Pedro Bala puxava uma conversa comprida sobre um assunto muito diferente.
Lá fora o vento corria sobre a areia e seu ruído era como uma
queixa.
Manhã como um quadro Pedro Bala, enquanto sobe a ladeira da montanha,
vai pensando que não existe nada melhor no mundo que andar assim, ao
azar, nas ruas da Bahia.
Algumas destas ruas são asfaltadas, mas a grande, a imensa maioria
é calçada de pedras negras. Moças se debruçam
nas janelas dos casarões antigos e ninguém pode saber se é
uma costureira que romanticamente espera casar com noivo rico ou se é
uma prostituta que o mira de um balcão velhíssimo, enfeitado
apenas de flores.
Entram mulheres de negros véus nas igrejas. O sol bate nas pedras
ou no asfalto do calçamento, ilumina os telhados das casas. Na sacada
de um sobradão, flores medram em pobres latas. São de diversas
cores e o sol lhes dá seu diário alimento de luz. Os sinos da
igreja da Conceição da Praia chamam as mulheres de véu
que passam apressadas.
No meio da ladeira um preto e um mulato estão curvados sobre uns
dados que o preto acabou de jogar. Pedro Bala, ao passar, cumprimenta o negro:
— Como vai, Coruja Branca? — E tu, Bala? Como vai essa prosopopéia?
Mas o mulato já atirou os dados e o negro se volta todo para o jogo.
Pedro Bala continua seu caminho. O Professor vai com ele. Sua figura magra
se atira para frente como se lhe fosse difícil vencer a ladeira.
Mas sorri da festa do dia. Pedro Bala vira-se para ele e surpreende seu
sorriso. A cidade está alegre, cheia de sol. Os dias da Bahia parecem
dias de festa, pensa Pedro Bala, que se sente invadido também pela
alegria.
Assovia com força, bate risonhamente no ombro de Professor. E os
dois riem, e logo a risada se transforma em gargalhada. No entanto, não
têm mais que uns poucos níqueis no bolso, vão vestidos
de farrapos, não sabem o que comerão. Mas estão cheios
da beleza do dia e da liberdade de andar pelas ruas da cidade. E vão
rindo sem ter do que, Pedro Bala com o braço passado no ombro de Professor.
De onde estão podem ver o Mercado e o cais dos saveiros e mesmo o velho
trapiche onde dormem.
Pedro Bala se recosta no muro da ladeira e diz a Professor: — Tu devia
fazer uma pintura disto… É porreta.
A fisionomia do Professor se fecha: — Eu sei que nunca há de ser…
— Que? — Tem vez que me topo pensando… e Professor mira o cais lá
embaixo, os saveiros parecendo brinquedos, os homens miúdos carregando
sacos nas costas.
Continua com a voz áspera como se alguém o tivesse batido:
— Eu penso fazer um dia um bocado de pintura daqui…
— Tu tem jeito. Se tu tivesse andado pela escola…
–… mas nunca pode ser um troço alegre, não… (Professor
parece não ter ouvido a interrupção de Pedro Bala. Agora
está com os olhos longe e parece ainda mais fraco.) — Por quê?
– Pedro Bala está espantado.
— Tu não vê que tudo é mesmo uma beleza? Tudo alegre…
Pedro Bala apontou os telhados da cidade baixa: — Tem mais cores que o
arco-íris…
— É mesmo… Mas tu espia os homem, tá tudo triste. Não
tou falando dos rico. Tu sabe. Falo dos outros, dos das docas, do mercado.
Tu sabe… Tudo com cara de fome, eu nem sei dizer. É um troço
que sinto…
Pedro Bala não estava mais espantado: — Por isso João de
Adão já fez um bocado de greve nas docas. Ele diz que um dia
as coisas vira, tudo vai ser de vice-versa…
— Também já li um livro… Um livro de João de Adão.
Se eu tivesse tado numa escola como tu diz, tinha sido bom. Eu um dia ia fazer
muito quadro bonito. Um dia bonito, gente alegre andando, rindo, namorando
assim como aquela gente de Nazaré, sabe? Mas cadê escola? Eu
quero fazer um desenho alegre, sai o dia bonito, tudo bonito, mas os homens
sai triste, não sei não… Eu queria fazer uma coisa alegre.
— Quem sabe se não é melhor mesmo fazer uma coisa como tu
faz? Pode até dá mais bonito, mais vistoso.
— Que é que tu sabe? Que é que eu sei? A gente nunca andou
em escola… Eu tenho vontade de fazer a cara dos homens, a figura das ruas,
mas nunca tive na escola, tem um bocado de coisa que eu não sei…
Fez uma pausa, olhou Pedro Bala que o escutava, continuou: — Tu já
deu uma espiada na Escola de Belas-Artes? É um belezame, rapaz. Um
dia andei de penetra, me meti numa sala. Tava tudo vestido de camisão,
nem me viram.
E tavam pintando uma mulher nua… Se um dia eu pudesse…
Pedro Bala ficou pensativo. Olhava Professor como que pensando. Logo falou
com um ar muito sério: — Tu sabe o preço? — Que preço?
— De pagar na escola? O professor? — Que história é essa?
— A gente se reunia, pagava pra tu…
Professor riu: — Tu nem sabe… Tem tanta complicação…
Não pode não, deixa de tolice.
— João de Adão disse que um dia a gente pode ter escola…
Saíram andando. Professor parecia ter perdido a alegria do dia. Como
que ela se afastara para longe dele. Então Pedro Bala deu-lhe um soco
de leve: — Um dia tu ainda bota um bocado de pintura numa sala da rua Chile,
mano.
Sem escola sem nada. Nenhum destes bananas da escola faz uma rara como tu…
Tu tem é jeito…
Professor riu. Pedro Bala riu também: — E tu faz meu retrato, hein.
Bota o nome embaixo, não bota? Capitão Pedro Bala, macho valente.
Tomou uma atitude de lutador, um braço estirado. Professor riu, Bala
também riu, logo o riso se transformou em gargalhada. E só pararam
de gargalhar para aderir a um grupo de desocupados que se reunira em torno
a um tocador de violão. O homem tocava e cantava uma moda da cidade
da Bahia: Quando ela disse adeus…
meu peito em cruz transformou…
Eles aderiram. Pouco depois cantavam junto ao homem. E com eles cantavam
todos e eram saveiristas, malandros, doqueiros, até uma prostituta
cantava. O homem do violão estava todo entregue a sua música,
não via mesmo ninguém.
Se o homem não se levantasse para ir embora, ainda tocando seu violão
e cantando, eles teriam se esquecido de continuar a caminhada para a cidade
alta.
Mas o homem foi embora levando a alegria da sua música. O grupo se
dispersou, um vendedor de jornais passou apregoando os diários da manhã.
Professor e Pedro Bala continuaram a subir a ladeira. Do largo do Teatro subiram
para a rua Chile.
Professor tirou o giz do bolso, sentou-se no passeio. Pedro Bala ficou a
seu lado. Quando viram vir o casal, Professor começou a desenhar. Fez
um desenho o mais rápido que pôde. O casal estava muito perto
já, Professor agora fazia as caras. A moça sorria, sem dúvida
seriam noivos. Mas iam tão entretidos na sua conversa que nem notaram
o desenho. Foi preciso que Pedro Bala se adiantasse até eles: — Não
pise na cara da moça, senhor…
O homem olhou para Pedro Bala e já ia dizer um desaforo quando a
moça viu o desenho do Professor e chamou sua atenção:
— Que bom… e batia as mãos como uma menina a quem tivessem dado
uma boneca de presente.
O rapaz espiou e sorriu. Voltou-se para Pedro Bala: — Foi você quem
desenhou, garoto? — Foi aqui o meu companheiro, o pintor Professor…
Professor dava os últimos retoques no bigode elegantíssimo
do homem. Depois passou a aperfeiçoar a figura da moça. Ela
então ficou no jeito de quem estava posando.
Riam os dois, ela se dependurava no braço do amado. O homem puxou
a carteira de níqueis, atirou uma prata de dois mil-réis, que
Pedro Bala apanhou no ar. Seguiram. O desenho ficou no meio do passeio.
Umas senhoritas que vinham das compras o viram de longe e uma disse: —
Vamos depressa, que aquilo parece que é um anúncio do novo filme
de Barrymore… Dizem que é um amor… E ele é tão forte…
Pedro Bala e Professor ouviram e abriram na gargalhada. E abraçados
seguiram juntos na liberdade das ruas.
Quase junto do palácio do governo pararam novamente. Professor ficou
de giz na mão esperando que saísse do ponto do bonde um pato.
Pedro Bala assoviava ao seu lado. Breve teriam o dinheiro para um bom almoço
e ainda para levar um presente para Clara, a amante do Querido-de-Deus, que
fazia anos naquele dia.
Uma velhota deu dez tostões por seu desenho. A velhota era feia e
Professor tinha conservado sua feiúra no desenho. Pedro Bala notou:
— Se tu tivesse feito ela mais bonita e mocinha, ela te dava mais.
Professor riu. Assim passaram a manhã, Professor fazendo a cara dos
que vinham pela rua, Pedro Bala recolhendo as pratas ou os níqueis
que jogavam.
Quase meio-dia veio um homem que fumava numa piteira que parecia cara. Pedro
Bala correu para avisar ao Professor: — Faz deste que parece que é
um pato cheio da nota…
Professor começou a desenhar a figura magra do homem. A piteira longa,
os cabelos encaracolados que apareciam sob o chapéu. O homem trazia
também um livro na mão e Professor teve um desejo irresistível
de fazer o desenho do homem lendo o livro.
O homem ia passando, Pedro Bala chamou sua atenção: — Olhe
seu retrato, senhor.
O homem tirou a longa piteira da boca, perguntou a Bala: — O que, meu filho?
Pedro Bala apontou o desenho em que o Professor trabalhava. O homem aparecia
sentado (se bem não houvesse cadeira nem nada estava sentado no ar),
fumando sua piteira e lendo seu livro. O cabelo encaracolado voava sob o chapéu.
O homem examinou o desenho atentamente, foi espiá-lo em diversos ângulos,
nada dizia. Quando o Professor deu o trabalho por concluído, ele perguntou:
— Onde você aprendeu desenho, meu caro? — Em lugar nenhum…
— Em lugar nenhum? Como? — É, sim senhor…
— E como desenha? — Me dá vontade, pego, desenho.
O homem estava um pouco incrédulo, mas sem dúvida recordou
outros exemplos no fundo da sua memória: — Quer dizer que você
nunca estudou desenho?
— Nunca, não senhor.
— Posso garantir falou Pedro Bala. — Nós mora junto, eu sei.
— Então é uma verdadeira vocação… — murmurou
o homem.
Voltou ao examinar o desenho. Tirou uma longa fumaçada da sua piteira.
Os dois meninos olhavam para a piteira encantados. O homem perguntou ao Professor:
— Por que você me retratou sentado e lendo o livro? Professor coçou
a cabeça como se fosse uma coisa difícil de responder. Pedro
Bala quis falar, mas nada disse, estava atarantado. Por fim Professor explicou:
— Pensei que sentava melhor pro senhor… — coçou de novo a cabeça.
– Não sei mesmo…
— É uma verdadeira vocação… — murmurou o homem
em voz mais baixa, assim com o jeito de quem havia feito uma descoberta.
Pedro Bala esperava o níquel, mesmo porque o guarda já os
olhava desconfiado da esquina. Professor espiava a piteira do homem longa,
desenhada a fogo, uma maravilha.
Mas o homem continuou: — Onde você mora? Pedro Bala não deu
tempo a que Professor respondesse. Foi ele quem falou: — A gente mora na
Cidade de Palha…
O homem meteu a mão no bolso e tirou um cartão: — Você
sabe ler? — A gente sabe, sim senhor respondeu Professor.
— Aí está meu endereço. Eu quero que você me
procure. Talvez possa fazer alguma coisa por você.
Professor tomou o cartão. O guarda se encaminhava para ele Pedro
Bala se despediu: — Até logo, doutor.
O homem ia puxando a carteira de níqueis, mas viu o olhar do Professor
na sua piteira. Jogou o cigarro fora, entregou a piteira ao menino.
— Isso é pelo meu retrato. Vá a minha casa…
Mas os dois desabaram pela rua Chile, porque o guarda já estava quase
junto a eles. O homem olhava meio sem compreender quando ouviu a voz do guarda:
— Lhe roubaram alguma coisa, senhor? — Não. Por quê? — Porque
como aqueles malandrins estavam aqui junto ao senhor…
— Eram duas crianças… Por sinal que uma com maravilhosa inclinação
para a pintura.
— São ladrões — retrucou o guarda. — São dos Capitães
da Areia.
— Capitães da Areia? — fez o homem se recordando. –Já li
algo… Não são crianças abandonadas? — Ladronas, isso
são… Tenha cuidado, senhor, quando eles se aproximarem do senhor.
Veja se não lhe falta nada…
O homem fez que não com a cabeça e olhou a rua. Mas não
havia nem rastro dos dois meninos. O homem agradeceu ao guarda, afirmando
mais uma vez que não tinha sido furtado, e desceu a rua, murmurando:
— Assim que se perdem os grandes artistas. Que pintor não seria! O
guarda o espiava. Depois comentou para os botões da farda: — Bem dizem
que estes poetas são doidos…
Professor exibia a piteira. Estava agora nos fundos de um arranha-céu,
onde existia um restaurante chique. Pedro Bala sabia como conseguir do cozinheiro
os restos do menu. Esperavam o almoço na rua deserta. Depois que comeram,
Pedro Bala ofereceu cigarros e o Professor se dispôs a fumar na piteira
que o homem lhe dera. Procurou limpá-la: — O bicho era magro como
um espeto. É capaz de ser tutu…
Como não achou coisa melhor com que limpar, fez do cartão
do homem um palito e o enfiou na piteira. Quando terminou, jogou o cartão
na rua. Pedro Bala perguntou: — Por que tu não guarda? — Pra que
quero? e o Professor riu, Pedro Bala riu também e por um momento as
suas gargalhadas encheram a rua. Riam assim sem motivo, pelo prazer de rir.
Mas Pedro Bala se fez sério: — O homem parece que era bem capaz
de ajudar a tu ser um pintor… — apanhou o cartão e leu o nome do
homem. — Tu devia guardar. Quem sabe? Professor baixou a cabeça: —
Deixa de ser besta, Bala. Tu bem sabe que do meio da gente só pode
sair ladrão… Quem é que quer saber da gente? Quem? Só
ladrão, só ladrão… — e sua voz se elevava, agora gritava
com ódio.
Pedro Bala fez que sim com a cabeça, sua mão soltou o cartão,
que caiu na sarjeta. Agora não riam mais e estavam tristes na alegria
da manhã cheia de sol, da manhã igual a um quadro de um pintor
das Belas-Artes.
Operários passavam para o trabalho, após o almoço pobre,
e era tudo que eles viam, que eles conseguiam ver na manhã.
Alastrim
Omolu mandou a bexiga negra para a cidade. Mas lá em cima os homens
ricos se vacinaram, e Omolu era um deus das florestas da África, não
sabia destas coisas de vacina. E a varíola desceu para a cidade dos
pobres e botou gente doente, botou negro cheio de chaga em cima da cama. Então
vinham os homens da Saúde Pública, metiam os doentes num saco,
leva para o lazareto distante. As mulheres ficavam chorando, porque sabiam
que eles nunca mais voltariam.
Omolu tinha mandado a bexiga negra para a cidade alta, para a cidade dos
ricos.
Omolu não sabia da vacina, Omolu era um deus das florestas da África,
que podia saber de vacinas e coisas científicas? Mas como a bexiga
já estava solta (e era a terrível bexiga negra), Omolu teve
que deixar que ela descesse para a cidade dos pobres. Já que a soltara,
tinha que deixar que ela realizasse sua obra. Mas como Omolu tinha pena dos
seus filhinhos pobres, tirou a força da bexiga negra, virou em alastrim,
que é uma bexiga branca e tola, quase um sarampo. Apesar disto, os
homens da Saúde Pública vinham e levavam os doentes para o lazareto.
Ali as famílias não podiam ir visitá-los, eles não
tinham ninguém, só a visita do médico. Morriam sem ninguém
saber e quando um conseguia voltar era mirado como um cadáver que houvesse
ressuscitado. Os jornais falavam da epidemia de varíola e da necessidade
da vacina. Os candomblés batiam noite e dia, em honra a Omolu, para
aplacar a fúria de Omolu. O pai-de-santo Paim, do Alto do Abacaxi,
preferido de Omolu, bordou uma toalha branca de seda, com lantejoulas, para
oferecer a Omolu e aplacar sua raiva. Mas Omolu não quis, Omolu lutava
contra a vacina.
Nas casas pobres as mulheres choravam. De medo do alastrim, de medo do lazareto.
Almiro foi o primeiro dos Capitães da Areia que caiu com alastrim.
Uma noite, quando o negrinho Barandão o procurou no seu canto para
fazer o amor (aquele amor que Pedro Bala proibira no trapiche), Almiro lhe
disse: — Tou com uma coceira danada.
Mostrou os braços já cheios de bolhas a Barandão: —
Parece que também tou queimando de febre.
Barandão era um negrinho corajoso, todo o grupo sabia disto. Mas
da bexiga, da moléstia de Omolu, Barandão tinha um medo doido,
um medo que muitas raças africanas tinham acumulado dentro dele. E
sem se preocupar que descobrissem suas relações sexuais com
Almiro saiu gritando entre os grupos: — Almiro tá com bexiga… Gentes,
Almiro tá com bexiga.
Os meninos foram se levantando aos poucos e se afastando receosos do lugar
onde estava Almiro. Este começou a soluçar. Pedro Bala não
tinha chegado ainda.
Professor, o Gato e João Grande também andavam por fora. Daí
ter sido o Sem-Pernas quem domino a situação. O Sem-Pernas nestes
últimos tempos andava cada vez mais arredio, quase não falava
com ninguém. Fazia espantosas burlas de todo mundo, por tudo puxava
uma briga, só respeitava mesmo Pedro Bala. Pirulito rezava por ele
mais que por nenhum, e por vezes pensava que Satanás tinha se metido
no corpo do Sem- Pernas. O padre José Pedro era paciente com ele, mas
também do padre o Sem- Pernas se afastara. Não queria saber
de ninguém, conversa em que ele se metia era conversa que terminava
em briga.
Quando o Sem-Pernas passou entre os grupos, todos se afastaram. Quase o
temiam tanto quanto à bexiga. O Sem-Pernas tinha arranjado por aqueles
dias um cachorro ao qual se dedicava inteiramente. A princípio, quando
o cão aparecera no trapiche, esfomeado, Sem-Pernas o maltratou quanto
pôde. Mas terminou por acarinhá-lo e tomar para si. Agora como
que vivia inteiramente para o cachorro. E por isso voltou só para levar
o cão, que o acompanhara, para longe de Almiro. Depois andou novamente
para onde estavam os menino. Estes cercavam Almiro de longe. Apontavam as
bolhas que apareciam no peito do menino. Antes de tudo, Sem-Pernas falou com
sua voz fanhosa para Barandão: — Agora tu vai ter bexiga na piroca,
negro burro.
Barandão o olhou assustado. Depois, Sem-Pernas falou para todos,
apontando Almiro com o dedo: — Ninguém aqui vai ficar bexiguento só
por causa deste freso.
Todos o olhavam, esperando o que ele diria. Almiro soluçava, as mãos
no rosto, encolhido na parede. Sem-Pernas falava: — Ele vai sair daqui agorinha
mesmo. Vai se meter em qualquer canto da rua até que os mata-cachorro
da saúde pegue ele e leve pro lazareto.
— Não. Não rugiu Almiro.
— Vai, sim fez Sem-Pernas. – A gente não vai chamar os mata-cachorro
aqui pra toda policia saber onde a gente se acoita. Tu vai por bem ou por
mal e leva teus trapos. Vai pro inferno, que a gente não vai ficar
com bexiga por você. Por amor de você, xibungo…
Almiro fazia que não, que não, e seus soluços enchiam
o trapiche. 0 negrinho Barandão tremia, Pirulito clamava que era castigo
de Deus por causa dos pecados deles, os outros não sabiam que fazer.
Sem-Pernas se preparava para forçar sua idéia.
Pirulito se abraçou com um quadro de Nossa Senhora e disse: — Vamos
rezar todo mundo, que isto é um castigo de Deus pros pecados da gente.
A gente peca muito, Deus tá castigando. Vamos pedir perdão…
e sua voz era como um clamor, soava anunciando vinganças.
Alguns juntaram as mãos e Pirulito chegou a iniciar um padre-nosso.
Mas Sem- Pernas o afastou com uma das mãos: — Sai, sacrista…
Pirulito ficou rezando em voz baixa ainda atracado com o santo. Parecia
um quadro estranho. Ao fundo, Almiro soluçava e dizia que não.
Pirulito rezava, os outros estavam indecisos, não sabiam o que fazer.
Barandão tremia de medo, pensando que estava contagiado. Sem-Pernas
voltou a falar: — Gente, se ele não quiser sair, a gente bota ele
pra fora debaixo de porrada.
Senão, tudo vai morrer de bexiga, tudo… Vocês não
vê, desgraçados? A gente bota ele pra fora até uma rua
onde levem ele pro lazareto.
— Não. Não fazia Almiro. — Pelo amor de Deus.
— Isso é castigo… — fez Pirulito.
— Cala a boca, filho de padre o Sem-Pernas continuava. — Vamos levar ele,
gente, já que ele não quer ir por bem.
Como via que os outros ainda estavam irresolutos, marchou para o lado de
Almiro e estendeu o pé para lhe dar uma pancada: — Assim tu vai embora,
bexiguento.
Almiro se encolheu mais: — Não. Tu não pode fazer isso. Eu
sou um do grupo. Espera Bala chegar.
— É castigo… É castigo… — a voz de Pirulito ainda irritou
mais o Sem-Pernas, que descarregou um pontapé em Almiro.
— Dá o fora, bexiguento. Dá o fora, fresco.
Mas neste instante uma mão o pegou e o sacudiu longe. Volta Seca
se plantou entre Almiro e o Sem-Pernas. O mulato levava um revólver
na mão e os seus olhos fuzilavam: — Juro que tem bala e que como um
que toque em Almiro — olhou para todos com sua cara sombria.
— Que é que tu tem que fazer aqui, cangaceiro? — Sem-Pernas queria
recuperar o domínio da situação.
— Ele não é um soldado de policia pra gente tratar ele assim.
É um do grupo, ele falou direito. Vamos esperar Pedro Bala chegar.
Ele resolve. E se alguém tocar nele eu queimo igual que fosse um macaco
da polícia — e segurava o revólver.
Os outros se afastaram aos poucos. Sem-Pernas cuspiu: — Tudo é uns
covarde… — e seguiu para onde o cachorro o esperava. Se deitou ao seu lado
e os que ficaram mais perto dele a ouviam murmurar: covardes, covardes.
Volta Seca ficou diante de Almiro com o revólver na mão. Almiro
soluçava, e mais alto gritava quando olhava as bolhas que se estendiam
pelo seu corpo.
Pirulito rezava, pedia a Deus que voltasse a ser suprema bondade, não
fosse suprema justiça.
Depois Pirulito se lembrou de chamar o padre José Pedro. Escapuliu
pela porta do trapiche, se dirigiu à casa do padre. Mas pelo caminho
ainda ia rezando, os olhos dilatados cheios do temor de Deus.
Pedro Bala chegou acompanhado do Professor e de João Grande. Voltavam
de um negócio que tinham resolvido bem e comentavam o sucesso entre
gargalhadas. O Gato tinha ido com eles, mas não voltara. Ficara em
casa de Dalva. Os três entraram no trapiche e a primeira coisa que enxergaram
foi Volta Seca com o revólver na mão.
— Que é isso? — perguntou Pedro Bala.
Sem-Pernas se levantou do seu canto, o cachorro o acompanhou: — Este besta
metido a cangaceiro não quer deixar que a gente faça o que resolveu
e apontava Almiro. – Aquele fresco tá com a bexiga…
João Grande se encolheu. Pedro Bala olhou Almiro, o Professor andou
para onde esta Volta Seca. O mulato não largava o revólver.
Pedro perguntou então: — Como foi, Volta Seca? — Este tá com
a maldita… — mostrou o menino que soluçava. — E aquele macaco mesmo
que um soldado quis botar ele no meio da rua pra assistência levar ele
pro lazareto. Eu não tava me metendo. Mas ele não quis ir. Aí
eles todos juntoscuspiu- quis dar nele pra obrigar ele ir. Foi quando ele
falou que era do grupo, que eles esperasse que tu chegasse. Eu achei que ele
falou direito, fiquei do lado dele…
Ele não é um soldado de polícia pra tratar ele assim…
— Tu fez direito, Volta Seca — Pedro Bala bateu no ombro do mulato. Depois
olhou Almiro: – Tu tá mesmo com ela? O menino inclinou a cabeça
e rebentou em soluços. Sem-Pernas gritou: — Só tem mesmo que
fazer o que eu disse. Não pode chamar a assistência aqui que
todo mundo fica sabendo onde a gente se acoita. Só tem mesmo que deixar
ele numa rua onde passe gente. Vamos fazer, tu queira ou não…
Pedro Bala gritou: — Quem é o chefe daqui, é tu ou eu? Tu
quer que eu te rebente? Sem-Pernas saiu murmurando. O cachorro veio lamber
seus pés, mas ele deulhe um pontapé. Logo depois se arrependeu,
porém, e começou a acarinhar o cão, enquanto espiava
os outros.
Pedro Bala andou até Almiro. João Grande queria vencer o medo
e ir para junto de Almiro também. Mas o medo da bexiga era uma coisa
enorme nele, era quase maior que sua bondade. Só Professor estava junto
de Pedro Bala. Este disse a Almiro: Almiro mostrou os braços cheios
de bolhas. Professor disse:
— Deixa eu ver…
Almiro mostrou os braços cheios de bolhas. Professor disse: — É
alastrim. Bexiga negra fica logo preta…
Pedro Bala ficou pensando. Ia um silêncio pelo trapiche. João
Grande conseguiu vencer o medo e se aproximou. Mas ia com passo arrastados.
Parecia violentar sua própria vontade para chegar até junto
de Almiro. Foi quando entrou Pirulito acompanhado do padre José Pedro.
O padre deu boas noites e perguntou quem era o doente Pirulito apontou Almiro,
o padre se dirigiu para ele, chegou perto, pegou no braço, examinou.
Depois disse a Pedro Bala: — É preciso levar para a assistência…
— Pro lazareto? — Sim.
— Não, não vai, não fez Pedro Bala.
O Sem-Pernas se levantou outra vez, veio para junto de1es: — Tou dizendo
isso há muito tempo. Tem que ir pro lazareto — Não vai repetiu
Pedro Bala.
— Por que, meu filho? perguntou o padre José Pedro.
— Tu sabe, padre, que ninguém volta do lazareto. Ninguém
volta. E ele é um da gente. um do grupo. A gente não pode fazer
isso…
— Mas é a lei, filho.
— Morrer? O padre mirou Pedro Bala com os olhos abertos. Aquele meninos
viviam a lhe dar surpresas, sempre mais adiantados em inteligência do
que ele pensava. E, no fundo, o padre sabia que eles tinham razão.
— Não vai, não, padre… — afirmou Pedro Bala.
— Então que é que você vai fazer, meu filho? — Tratar
dele aqui…
— Mas como? — Chamo Don’Aninha…
— Mas ela não sabe tratar de ninguém.
Pedro Bala ficou confuso. Passado um momento, disse:
— É melhor que morra aqui que no lazareto.
Sem-Pernas se meteu de novo: — Vai pegar bexiga em todo mundo… — se
dirigia aos outros.
— Vai pegar em todo mundo. A gente não pode deixar.
— Cala a boca, desgraçado, senão eu te arrombo disse Pedro.
Mas o padre interveio: — Ele tem razão, Bala.
— Não vai pro lazareto, padre. O senhor é bom, bem sabe que
ele não pode ir. Lá é uma miséria, tudo morre.
O padre bem sabia que era verdade, calou. Foi quando João Grande
falou: — Mas ele não tem casa? — Quem? — Almiro. Tem sim.
— Não quero ir para lá… — soluçou Almiro. — Eu
tinha fugido.
Pedro Bala se aproximou dele e falou com voz muito mansa: — Deixa estar,
Almiro. Primeiro eu vou lá, falo com tua mãe. Depois a gente
leva você. Tu lá fica bem, não tem que ir pro lazareto.
E o padre arranja um médico pra cuidar de tu, não arranja, padre?
— Levo, sim prometeu o padre José Pedro.
Havia uma lei que obrigava os cidadãos a denunciarem à Saúde
Pública os casos de varíola que conhecessem, para o imediato
recolhimento dos variolosos aos lazaretos.
O padre José Pedro conhecia a lei, mas, mais uma vez, ficou com os
Capitães da Areia contra a lei.
Pedro Bala foi à casa de Almiro, a mãe do menino ficou feito
louca, era uma lavadeira amigada com um pequeno lavrador além da Cidade
de Palha. Foram buscar Almiro e o padre o visitou e depois levou um médico.
Mas acontece que o médico estava cavando um lugar na Saúde Pública
e denunciou o caso de varíola. Almiro foi mesmo levado para o lazareto
e o padre ficou em maus lençóis, pois o médico (que se
dizia livre-pensador, mas em verdade era espírita) denunciou o padre
também como encobridor do caso. As autoridades não agiram contra
o padre, mas se queixaram ao arcebispado. E o padre José Pedro foi
chamado à presença do Cônego Secretário do Arcebispado.
Ficou amedrontado.
Pesadas cortinas, cadeiras de alto espaldar, um retrato de Santo Inácio
numa parede. Na outra, um crucifixo. Uma grande mesa, custosos tapetes. O
padre José Pedro entrou na sala com o coração batendo
muito. Não tinha absoluta certeza do motivo por que recebera aquela
comunicação do Cônego Secretário do Arcebispado
para comparecer ao Palácio Episcopal. No primeiro momento lembrou-se
da paróquia que esperava inutilmente havia dois anos. Seria sua paróquia?
Sorriu com alegria. Então, sim, iria ser um verdadeiro sacerdote, iria
ter almas entregues a si, à sua guia. Serviria a Deus. Mas certa tristeza
o invadiu: e suas crianças, as crianças abandonadas das ruas
da Bahia, principalmente os Capitães da Areia, como ficariam? Ele era
um dos seus poucos amigos. Nunca um outro padre se voltara para aqueles meninos.
Se contentavam em ir celebrar de quando em vez uma missa no reformatório,
o que os tornava mais antipáticos ao meninos porque atrasava o magro
café. O padre José Pedro, enquanto esperava sua paróquia,
se dedicara aos meninos abandonados.
Não podia dizer que os resultados tivessem sido grandes. Mas era
preciso compreender que ele estava fazendo uma experiência, que muita
vezes tinha que voltar atrás.
Fazia pouco tempo que o padre captar de todo a confiança dos meninos.
Estes já o tratavam como amigo, mesmo quando não o levavam a
sério como sacerdote. O padre tiver de passar por cima de muita coisa
para conseguir a confiança de Capitães da Areia. Mas José
Pedro pensava que só Pirulito e a sua vocação pagavam
a pena.
O padre tivera que fazer muita coisa contra o que lhe haviam ensinado. Pactuara
mesmo com coisa que a Igreja condenaria. Mas era o único jeito… Aí
o padre lembrou-se que bem podia ser por causa daquilo que o haviam chamado.
Devia ter sido por aquilo. Muitas beatas já murmuravam por causa das
suas relações com as crianças que viviam do furto. E
havia aquele caso de Almiro. Devia ser por aquilo. O primeiro sentimento do
padre José Pedro quando descobriu o motivo da comunicação
foi um grande temor. EIa ser castigado com certeza, perderia toda esperança
de uma paróquia. E o padre José Pedro necessitava de uma paróquia.
Sustentava uma mãe velha, uma irmã na Escola Normal. Logo depois
pensou que muito possivelmente tudo o que fizera fora errado, seus superiores
não aprovariam. E, no Seminário, lhe tinham ensinado a obedecer.
Mas pensou nos meninos. Na sua memória passaram as figuras de Pirulito,
Pedro Bala, Professor, Sem-Pernas, Boa-Vida, o Gato. Era preciso salvar aqueles
pequeninos… As crianças eram a maior ambição de Cristo.
Devia se fazer tudo para salvar aquelas crianças. Não era culpa
deles se estavam perdidos…
O Cônego entrou. Nos seus pensamentos o padre nem vira que muitos
minutos de espera tinham se passado. Não viu tampouco quando o Cônego
entrou com um passo manso.
Era alto e muito magro, anguloso, com a batina muito limpa, os raros cabelos
que lhe restavam muito bem penteados. Os lábios tinham uma linha dura.
Um rosário descia-lhe em torno ao pescoço. Se bem sua figura
desse uma impressão de pureza, essa impressão não fazia
seus traços mais doces. Não havia nenhuma simpatia humana na
sua 6gura, nos seus traços duros. Como que a pureza era uma couraça
que o afastava do mundo. Diziam que era inteligentíssimo, grande orador
sacro, célebre pela rigidez dos seus costumes. Ali estava parado diante
do padre José Pedro, olhando com olhos observadores a figura baixa
do padre, a sua batina suja e remendada em dois lugares, o seu ar de medo,
a falta de inteligência que de mistura com a bondade se refletia na
cara do padre. Estudou o padre uns poucos minutos. O bastante para penetrar
a fundo na alma sem complicações de José Pedro. Tossiu.
O padre o viu, levantou-se, beijou humildemente sua mão: — Cônego…
— Sente-se, padre. Temos que conversar.
Olhava com os olhos sem expressão o padre. Sentou-se, cruzou as mãos
com grande cuidado, afastou sua reluzente batina da batina suja do padre José
Pedro.
Sua voz contrastava com sua pessoa.
Podia-se dizer que era uma voz doce, quase feminina, se não fosse
um acento de decisão que a cada passo surgia nela. O padre José
Pedro baixou a cabeça e esperou que o Cônego falasse. Este começou:
— Este arcebispado tem graves queixas contra o senhor, padre.
Padre José Pedro quis figurar uma cara de quem não entendia.
Mas a malícia era superior à sua inteligência e naquele
momento ele pensava nos Capitães da Areia.
O Cônego sorriu ligeiramente.
— Creio que o senhor já sabe do que se trata…
O padre olhou com uns olhos abertos, mas logo baixou cabeça: — Só
se é as crianças…
— O pecador não pode esconder seu pecado, ele está visível
na sua consciência… — e a voz do Cônego tinha perdido aquela
nota de doçura.
O padre José Pedro ouviu com pavor. Era o que ele temia. Os seus
superiores, aqueles que tinham inteligência para compreender os desejos
de Deus, não estavam de acordo com os métodos que ele empregara
junto aos Capitães da Areia. Vinha um temor de dentro dele, não
propriamente um temor do Cônego, do arcebispo mas um temor de ter ofendido
a Deus. E até suas mãos tremiam ligeiramente.
A voz do Cônego retomou sua doçura. Era como uma voz de mulher,
doce e suave, mas que negava a um homem suas carícias: — Têm-nos
chegado bastantes queixas, padre José Pedro. O arcebispado tem fechado
os olhos na esperança de que o senhor conhecesse seu erro e se emendasse…
Olhou o padre com olhos duros. José Pedro baixou a cabeça.
— Não faz muito tempo a viúva Santos queixou-se. O senhor
ajudou uma corja de moleques, numa praça, avaiá-la. Melhor,
incitou os moleques a que a vaiassem…
Que tem a dizer, padre? — Não é verdade, Cônego.
— O senhor quer dizer que a viúva mentiu? Fuzilou o padre com os
olhos. Mas desta vez José Pedro não baixou a cabeça,
apenas repetiu: — O que ela disse não é verdade…
— O senhor sabe que a viúva Santos é uma das melhores protetoras
da religião na Bahia? Não sabe dos donativos…
— Eu posso lhe narrar o fato…
— Não me interrompa. .. No Seminário não lhe ensinaram
a ser humilde e respeitoso com seus superiores? Se bem o senhor não
tivesse sido um aluno dos mais brilhantes…
O padre José Pedro sabia daquilo. Não era preciso que lhe
repetissem que fora um dos piores alunos do Seminário em matéria
de estudos. Por isso mesmo tinha tanto medo de ter errado, de ter ofendido
a Deus. O Cônego devia ter razão, era muito mais inteligente,
estava muito mais próximo de Deus, que é a suprema inteligência.
O Cônego fez um gesto com a mão, como quem relegava para longe
aquele incidente da viúva, e a sua voz se fez doce novamente: — Porém
agora há coisa muito mais grave. Por sua causa, padre, este arcebispado
foi procurado pelas autoridades. O senhor sabe o que fez? Sabe? O padre não
tentou negar: — Foi o caso do menino com alastrim? — Um menino com varíola,
sim senhor. E o senhor escondeu o caso das autoridades sanitárias…
O padre José Pedro tinha confiança na bondade de Deus. Muitas
vezes pensara que Deus aprovava o que ele estava fazendo. Agora pensava isto
também. Aquele pensamento tinha enchido seu coração de
repente. Levantou o busto, fixou a vista no Cônego: — O senhor sabe
o que é o leprosário? O Cônego não respondeu.
— Pois é raro o homem que volta de lá. Quanto mais uma criança…
Mandar uma criança para lá é cometer um assassinato…
— Isso não é conosco — respondeu o Cônego com voz
inexpressiva mas cheia de decisão. – Isto é com a Saúde
Pública. Mas o nosso papel é respeitar as leis.
— Mesmo quando atentam contra a lei da bondade de Deus? — Que sabe o senhor
da bondade de Deus? Que grande inteligência tem para saber dos desígnios
de Deus? O demônio da vaidade o dominou? O padre José Pedro tentou
explicar: — Eu sei que sou um padre ignorante e indigno de servir ao Senhor.
Mas estas crianças nunca tinham tido ninguém que olhasse por
elas. Eu tive a intenção…
— A boa intenção não desculpa os maus atos… –cortou
o Cônego com voz muito doce ao enunciar a sentença.
O padre José Pedro se sentiu novamente em dúvida. Mas elevou
o pensamento a Deus, voltou parte da sua confiança: — Teriam sido
maus? Eram uns meninos que nunca tinham ouvido falar seriamente de Deus. Misturam
Deus com os santos dos negros, não têm nenhuma idéia de
religião.
Eu quis ver se salvava aquelas almas…
— Já lhe disse que suas intenções foram boas, mas
suas ações não corresponderam às intenções…
— É que o senhor não conhece estes meninos… — o Cônego
lhe deitou um olhar duro. — São meninos iguais a homens. Vivem como
homens, conhecem a vida toda, -tudo…
E preciso tratar com jeito, fazer concessões.
— Por isso o senhor faz o que eles querem…
— Às vezes tenho que fazer para conseguir um bom resultado…
— Compactua com os roubos, com os crimes destes perversos…
— Que culpa eles têm? — o padre se lembrava de João de Adão.
— Quem cuida deles? Quem os ensina? Quem os ajuda? Que carinho eles têm?
— estava exaltado e o Cônego se afastou mais dele, enquanto o fitava
com os olhinhos duros. — Roubam para comer porque todos estes ricos que têm
para botar fora, para dar para as igrejas, não se lembram que existem
crianças com fome… Que culpa…
— Cale-se — a voz do Cônego era cheia de autoridade. — Que, o visse
falar diria que é um comunista que está falando. E não
é difícil. No meio dessa gentalha o senhor deve ter aprendido
as teorias deles…
O senhor é um comunista, um inimigo da Igreja…
O padre o olhou horrorizado. O Cônego levantou-se, estendeu a mão
para o padre: — Que Deus seja suficientemente bom para perdoar seus atos
e suas palavras. O senhor tem ofendido a Deus e à Igreja. Tem desonrado
as vestes sacerdotais que leva.
Violou as leis da Igreja e do Estado. Tem agido como um comunista. Por isso
nos vemos obrigados a não lhe dar tão cedo a paróquia
que o senhor pediu.
Vá (agora sua voz voltava a ser doce, mas de uma doçura cheia
de resolução, uma doçura que não admitia réplicas),
penitencie-se dos seus pecados, dedique-se aos fiéis da igreja em que
trabalha e esqueça essas idéias comunistas, senão, teremos
que tomar medidas mais sérias. O senhor pensa que Deus aprova o que
está fazendo? Lembre-se que a sua inteligência é muito
pequena, o senhor não pode penetrar nos desígnios de Deus…
Virou as costas ao padre e foi saindo. O padre José Pedro deu dois
passos até ele, falou com voz estrangulada: — Se tem um até
que quer ser padre…
O Cônego voltou-se: — A entrevista está terminada, padre José
Pedro. Pode se retirar e que Deus o ajude a pensar melhor…
Mas o padre ainda ficou parado uns minutos, querendo dizer alguma coisa.
Mas não dizia nada, estava como que apatetado, olhando a porta por
onde o Cônego tinha saído. Naquele momento não podia pensar
em nada. Estava cômico com a mão ainda estendida, o corpo meio
caído para um lado, a batina suja e remendada, os olhos abertos, apavorados,
os lábios tremendo como que querendo falar. As pesadas cortinas impediam
que a luz entrasse na sala. O padre ainda se demorou na obscuridade.
Um comunista… Uma orquestra vagabunda, porém afinada, tocava uma
velha valsa na rua: Fiquei sem alegria, senhor meu Deus…
O padre José Pedro ia encostado à parede. O Cônego dissera
que ele não podia compreender os desígnios de Deus. Não
tinha inteligência, estava falando igual a um comunista. Era aquela
palavra que mais perseguia o padre. De todos os púlpitos todos os padres
tinham falado contra aquela palavra. E agora ele… O Cônego era muito
inteligente, estava próximo de Deus pela inteligência, era-lhe
fácil ouvir a voz de Deus. Ele estava errado, perdera aqueles dois
anos de tanto trabalho.
Pensara levar tantas crianças a Deus… Crianças extraviadas…
Será que elas tinham culpa? Deixai vir a mim as criancinhas… Cristo…
Era uma figura radiosa e moça. Os sacerdotes também disseram
que ele era um revolucionário. Ele queria as crianças… Ai
de quem faça mal a uma criança… A viúva Santos era
uma protetora da Igreja… Será que ela também ouvia a voz de
Deus? Dois anos perdidos…
Fazia concessões, sim, fazia. Senão, como tratar com os Capitães
da Areia? Não eram crianças iguais às outras… Sabiam
tudo, até os segredos do sexo. Eram como homens, se bem fossem crianças…
Não era possível tratá-los como aos meninos que vão
ao colégio dos jesuítas fazer a primeira comunhão. Aqueles
têm mãe, pai, irmãs, padres confessores e roupas e comida,
têm tudo .. Mas não seria ele quem podia dar lições
ao Cônego… O Cônego sabia de tudo, era muito inteligente. Podia
ouvir a voz de Deus… Estava próximo de Deus… Não foi dos
alunos mais brilhantes…
Tinha sido dos piores… Deus não ia falar a um padre ignorante…
Ouvia João de Adão. Um comunista como João de Adão…
Mas os comunistas são maus, querem acabar tudo… João de Adão
era um homem bom… Um comunista… E Cristo? Não, não podia
pensar que Cristo fosse um comunista… O Cônego devia entender melhor
que um pobre padre de batina suja… O Cônego era inteligente e Deus
é a suprema inteligência…
Pirulito queria ser padre. Queria ser padre, sim, a sua vocação
era verdadeira.
Mas pecava todos os dias, roubava, assaltava. Não era culpa deles…
Está falando como um comunista… Por que este vai num automóvel,
fuma um charuto? Falando como um comunista… O Cônego disse, será
que Deus o perdoa? O padre José Pedro vai encostado à parede.
As últimas notas da orquestra distante chegam aos seus ouvidos. Os
olhos do padre estão esbugalhados.
Sim, padre José Pedro, Deus às vezes fala aos mais ignorantes…
Aos mais ignorantes… Ele era ignorante… Mas, Deus, ouvi… São
uns pobres meninos…
Que sabem eles do bem e do mal? Se ninguém nunca lhes ensinou nada?
Nunca u’a mão de mãe nas suas cabeças. Uma palavra boa
de um pai. Senhor, eles não sabem o que fazem…
Por isso estive com eles, fiz como eles queriam muitas vezes…
O padre aperta as mãos, as eleva para o céu.
Será que um comunista age assim? Dar um pouco de conforto àquelas
pequenas almas. Salvá-las, melhorar seus destinos… Antes dali só
saíam ladrões, batedores de carteira, vigaristas, os melhores
eram os malandros… A profissão mais digna…
Queria que agora saíssem homens para o trabalho, honestos, dignos…
Tinha que ir aos poucos… Do reformatório saíam piores… Não
é com castigo brutal, Deus, ouvi… Lá o castigo é brutal…
Só com paciência, com bondade… Cristo também pensava
assim… Por que como um comunista?… Deus pode falar a um ignorante…
Abandonar as crianças? A paróquia está perdida… Mãe
velha que soluçará… E a carreira da irmã na Escola
Normal? Também ela quer ensinar a crianças… Mas serão
outras crianças, crianças com livros, com pai, com mãe…
Não serão iguais a estas abandonadas na rua, dormindo sob a
lua, nas pontes, nos trapiches… Não pode abandoná-las.
Com quem estará Deus? Com o Cônego ou com o pobre padre? A
viúva… Não, Deus está com o padre… Está com
o padre. . . Sou muito ignorante para ouvir a voz de Deus… (Se esconde na
porta de uma igreja.) Mas por vezes Deus fala aos ignorantes…
(Sai da porta da igreja, continua a caminhada encostado na parede.) Continuará,
sim. Se estiver errado, Deus o perdoará… As boas intenções
não desculpam os maus atos. Mas Deus é a suprema bondade…
Continuará… Os Capitães da Areia talvez não dêem
só ladrões… E não seria uma grande alegria para Cristo?.
. . Sim, Cristo sorri. É uma figura radiosa. Sorri o padre José
Pedro. Obrigado, meu Deus, obrigado.
O padre ajoelha na rua, levanta as mãos para o céu. Mas olha
a gente que sorri.
Se põe de pé espantado, salta num bonde cheio de vergonha.
Um homem comenta: — Olha um padre bêbado. Que descarado…
Todos riem no ponto de bondes.
Boa-Vida meteu a unha negra, rasgou a bolha. Depois espiou o braço:
estava cheio. Por isso sentia tanto calor, um amolecimento no corpo. Era a
febre da bexiga.
A cidade pobre estava assolada de bexiga.
Os médicos diziam que a epidemia já estava declinando, mas
ainda assim eram muitos os casos, todos os dias ia gente para o lazareto.
Gente que não voltava, pensou Boa-Vida. Até Almiro, por cuja
causa se armara tão grande barulho no trapiche, fora para o lazareto.
E não voltara… Era um menino bonito. Havia quem dissesse que ele
e Barandão… Mas não era ruim, não aborrecia ninguém.
Sem-Perna armara um escândalo. Depois que soubera que ele morrera ficara
ainda mais retraído, parecia o culpado da morte de Almiro. Não
conversava com ninguém. Só com o cachorro que arranjara.
— Acaba doido… — pensou Boa-Vida.
Acendeu um cigarro. Andou para o trapiche. Só o Professor estava.
Àquelas horas da tarde era difícil que estivesse alguém
no trapiche. Professor viu quando ele entrou: — Passa um cigarro, Boa-Vida.
Boa-Vida jogou um. Chegou no seu canto, fez uma trouxa com seus trapos.
Professor ficou espiando aquele movimento: — Tu vai embora? Boa-Vida andou
até ele com a trouxa debaixo do braço: — Tu não diz
a ninguém… Só a Bala…
— Pra onde tu vai? O mulato riu: — Pro lazareto…
Professor olhou os braços cheios de bolhas, o peito.
— Tu não vai, Boa-Vida…
— Por que, mano? — Tu sabe… É buraco na certa…
— Tu pensa que eu vou ficar aqui pra pegar nos outros? — A gente trata
de tu…
— Morria tudo. Almiro tinha casa, tá certo. Eu não tenho
ninguém.
Professor calou-se. Queria dizer muita coisa. O mulato estava na sua frente,
a trouxa debaixo do braço cheio de bolha de bexiga. Boa Vida falou:
— Tu diz a Pedro Bala. Os outros não precisa.
Professor só soube dizer: — Tu vai mesmo? Boa-Vida fez que sim,
saíram do trapiche. Boa-Vida olhou a cidade, fez um gesto com a mão.
Era como um adeus. Boa-Vida era malandro e ninguém ama sua cidade como
os malandros. Olhou o Professor: — Quando tu fizer meu retrato… Tu ainda
vai fazer? — Vou, Boa-Vida… (Vontade de dizer palavras carinhosas como
a um irmão.) — Não me faz cheio de bexiga, não…
Seu vulto desapareceu no areal. Professor ficou com as palavras presas,
um nó na garganta. Mas também achava bonito Boa-Vida andar assim
para a morte para não contaminar os outros. Os homens assim são
os que têm uma estrela no lugar do coração. E quando morrem
o coração fica no céu, diz o Querido-de-Deus. Boa- Vida
era um menino, não era um homem. Mas já tinha uma estrela no
lugar do coração. Já desapareceu o seu vulto. E então
a certeza de que não mais verá seu amigo encheu o coração
do Professor. A certeza de que o outro ia para a morte.
Nas macumbas em honra de Omolu, o povo negro, castigado com a bexiga, cantava:
Cabono, aziela engoma! Quero vê couro zoa! Omolu vai pro sertão
Bexiga vai espalha.
Omolu espalhara a bexiga na cidade. Era uma vingança contra a cidade
dos ricos. Mas os ricos tinham a vacina, que sabia Omolu de vacinas? Era um
pobre deus das florestas d’África. Um deus dos negros pobres. Que podia
saber de vacinas? Então a bexiga desceu e assolou o povo de Omolu.
Tudo que Omolu pôde fazer foi transformar a bexiga de negra em alastrim,
bexiga branca e tola. Assim mesmo morrera negro, morrera pobre. Mas Omolu
dizia que não fora o alastrim que matara. Fora o lazareto. Omolu só
queria com o alastrim marcar seus filhinhos negros.
O lazareto é que os matava. Mas as macumbas pediam que ele levasse
a bexiga da cidade, levasse para os ricos latifundiários do sertão.
Eles tinham dinheiro, léguas e léguas de terra, mas não
sabiam tampouco da vacina. O Omolu diz que vai pro sertão. E os negros,
os ogãs, as filhas e pais-de-santo cantam: Ele é mesmo nosso
pai e é quem pode nos ajudar…
Omolu promete ir. Mas para que seus filhos negros não esqueçam
avisa no seu cântico de despedida: Ora, adeus, ó meus filhinhos,
Qu’éu vou e torno a vortá…
E numa noite que os atabaques batiam nas macumbas, numa noite de mistério
da Bahia, Omolu pulou na máquina da Leste Brasileira e foi para o sertão
de Juazeiro.
A bexiga foi com ele.
Boa-Vida voltou magro, a roupa dançando no seu corpo. A cara agora
estava toda picada. Os outros o olharam ainda com receio quando naquela noite
ele entrou no trapiche. Mas Professor andou logo para ele: — Ficou bom, mulato?
Boa-Vida sorriu. Vinham apertar a mão dele, Pedro Bala lhe deu um abraço:
— Mulato bom. Mulato batuta.
Até Sem-Pernas veio, João Grande ficou junto de Boa-Vida.
0 mulato olhou os amigos. Pediu um cigarro. Sua mão estava descarnada,
o rosto ossudo. Ficou calado, olhando com amor o velho trapiche, os meninos,
o cachorro que estava deitado no colo do Sem-Pernas.
Então João Grande perguntou: — Como era o lazareto? Boa-Vida
se voltou rápido. Seu rosto tomou uma expressão amarga de desgosto.
Demorou um pouco a responder. Depois as palavras saíram com dificuldade:
— Ninguém sabe dizer, não. É uma coisa por demais…
Uma nojeira. A gente quando entra é igual um que entra no caixão…
Olhou os outros, que estavam suspensos das suas palavras. Sua voz era amarga
— Igual que entrasse pro caixão pra ir pro cemitério… Igual…
Não achou mais que dizer. Sem-Pernas perguntou entre dentes: — Que
mais? — Nada. Nada. Não sei, não… Por Deus, não pergunte…
— baixou a cabeça, que balançava para todos os lados. Sua voz
saiu muito baixa, como que ainda amedrontada: — É mesmo que ir pro
cemitério. Tudo já está morto.
Olhou como se pedisse que não lhe perguntassem mais nada. João
Grande disse para os outros: — A gente não devia perguntar nada…
Boa-Vida apoiou com um gesto da mão. Disse baixinho: — Nada… É
ruim demais…
Professor olhou o peito de Boa-Vida. Estava todo picado da varíola.
Mas no lugar do coração Professor viu uma estrela.
Uma estrela no lugar do coração.
Destino Ocuparam a mesa do canto. O gato puxou o barulho. Mas nem Pedro
Bala, nem João Grande, nem Professor, tampouco Boa-Vida se interessaram.
Esperavam o Querido-de-Deus na Porta do Mar. As mesas estavam cheias. Muito
tempo a Porta do Mar andara sem fregueses. A varíola não deixava.
Agora que ela tinha ido embora, os homens comentavam as mortes. Alguém
falou no lazareto. É uma desgraça ser pobre, disse um marítimo.
Numa mesa pediram cachaça. Houve um movimento de copo no balcão.
Um velho então disse: — Ninguém pode mudar o destino. É
coisa feita lá em cima — apontava o céu.
Mas João de Adão falou de outra mesa: — Um dia a gente muda
o destino dos pobres…
Pedro Bala levantou a cabeça, Professor ouviu sorridente. Mas João
Grande e Boa-Vida pareciam apoiar as palavras do velho, que repetiu: — Ninguém
pode mudar, não. Está escrito lá em cima.
— Um dia a gente muda… — disse Pedro Bala, e todos olharam para o menino.
— Que é que tu sabe, frangote? — perguntou o velho.
— É filho do Loiro, fala a voz do pai respondeu João Adão
olhando com respeito. — O pai morreu pra mudar o destino da gente.
Olhou para todos. O velho calou e também olhava com respeito.
A confiança foi de novo chegando para todos. Lá fora um violão
começou a tocar.
Noite da grande paz, da grande paz dos teus olhos
Filha de Bexiguento
A música já recomeçara no morro. Os malandros voltavam
a tocar violão, a cantar modinhas, a inventar sambas que depois vendiam
aos sambistas célebres da cidade.
Na venda de Deoclécio novamente ficava um grupo todas as tardes.
Durante algum tempo tudo cessara no morro para dar lugar ao choro e lamentações
das mulheres e crianças.
Os homens passavam de cabeça baixa para as suas casas ou para o trabalho.
E os caixões negros de adultos, os caixões brancos de virgens,
os pequenos caixões de crianças desciam as ásperas ladeiras
do morro para o cemitério distante. Isso quando não eram sacos
que desciam com os variolosos ainda vivos que eram levados para o lazareto.
A família chorava como choraria a um morto, pela certeza de que eles
não voltariam jamais. Nem a música de um violão. Nem
a voz cheia de um negro cortava então a tristeza do morro. Só
a reza das sentinelas, o choro convulsivo das mulheres.
Assim estava o morro quando Estêvão foi levado para o lazareto.
Não voltou, certa tarde Margarida soube que ele morrera por lá.
Nesta tarde ela já estava com febre.
Mas o alastrim parecia ser dos mais mansos no corpo da lavadeira e ela escondeu
de todos a notícia, conseguiu não ser metida num saco. Aos poucos
foi melhorando. Os dois filhos andavam pela casa, fazendo o que ela mandava.
Zé Fuinha era um bocado inútil, ainda não sabia fazer
nada, com seus seis anos.
Mas Dora tinha treze para quatorze anos, os seios já haviam começado
a surgir sob o vestido, parecia uma mulherzinha, muito séria, a buscar
os remédios para a mãe, a tratar dela. Margarida melhorou quando
já os violões recomeçavam a tocar no morro, porque a
epidemia de varíola tinha se acabado. A música voltou a dominar
as noites do morro e Margarida, se bem ainda não estivesse completamente
boa, foi ã casa de algumas de suas freguesas em busca de roupa.
Voltou com a trouxa nas costas, se atirou para a fonte. Trabalhou o dia
todo, sob o sol e a chuva que caiu pela tarde. No outro dia não voltou
ao trabalho porque recaiu do alastrim e a recaída é sempre terrível.
Dois dias depois descia do morro o último caixão feito pela
varíola. Dora não soluçava. Corriam as lágrimas
pelo seu rosto, mas enquanto o caixão descia ela pensava era em Zé
Fuinha, que pedia o que comer. O irmãozinho chorava de dor e de fome.
Era muito menino para compreender que tinha ficado sem ninguém na imensidão
da cidade.
Os vizinhos deram jantar aos órfãos nesta tarde. No outro
dia pela manhã o árabe que era dono dos barracões do
morro mandou derramar álcool no de Margarida para desinfetar. E logo
o alugou, pois era um barracão bem situado, bem no alto da ladeira.
E enquanto os vizinhos discutiam o problema dos órfãos, Dora
tomou o irmão pela mão e desceu para a cidade. Não se
despediu de ninguém, era como uma fuga. Zé Fuinha ia sem saber
para onde, arrastado pela irmã. Dora marchava tranqüila. Na cidade
havia de encontrar quem lhes desse de comer, quem pelo menos tomasse conta
de seu irmão. Ela arranjaria um emprego de copeira numa casa. Ainda
era uma menina, mas havia muitas casas que preferiam mesmo uma menina porque
o ordenado era menor. Sua mãe certa vez falara em a empregar de copeira
na casa de uma freguesa. Dora sabia onde era e se dirigiu para lá.
O morro, a música dos violões, o samba que um negro cantava
ficaram para trás. Os pés descalços de Dora se queimam
no asfalto ardente. Zé Fuinha vai alegre, vendo a cidade para ele desconhecida,
os bondes que passam repleto, as marinetes que buzinam, a multidão
que corta as ruas.
Dora fora com Margarida certa vez à casa desta freguesa. É
na Barra, elas tinham ido num bonde bagageiro, levando a trouxa de roupa lavada.
A dona da casa fizera festa a Dora, perguntara se ela queria vir trabalhar
ali. Margarida ficara de trazê-la quando ela estivesse mais crescida.
Era para lá que Dora pensava ir. E perguntando a um e a outro tomou
o caminho da Barra. A caminhada era grande, o sol no asfalto queimava seus
pés sem sapato. Zé Fuinha começou a pedir de comer e
a se queixar do cansaço. Dora o acalentou com promessas e seguiram.
Mas no Campo Grande Zé Fuinha não pôde mais. A caminhada
era demasiada para ele, para os seus seis anos. Então Dora entrou numa
padaria, trocou os únicos quinhentos réis que possuía,
comprou dois pães dormidos, deixou Zé Fuinha sentado num banco
com os pães: — Tu come e me espera, tá ouvindo? Eu vou ali,
volto já. Mas não vá sair daqui, senão você
se perde…
Zé Fuinha prometeu com uma cara muito séria, dando dentadas
nos pães duros.
Ela o beijou e seguiu.
O guarda que a informou olhou para os seus seios que nasciam. 0 cabelo loiro
dela, maltratado, voava com o vento. Sentia queimaduras nas solas dos pés
e um cansaço no corpo todo. Mas seguiu. O número era 611. Quando
chegou ao 53 parou um pouco para descansar e pensar o que diria à dona
da casa. Depois retomou a caminhada. Agora a fome ajudava a magoar seu corpo,
a fome terrível das crianças de 13 anos, uma fome que exige
comida imediatamente. Dora tinha vontade de chorar, de se deixar cair na rua,
sob o sol, e não fazer movimentos. Uma saudade dos pais mortos a invadiu.
Mas reagiu contra tudo e continuou.
O 611 era uma casa grande, quase um palacete, com árvores na frente.
Numa mangueira, um balanço onde uma menina da idade de Dora se divertia.
Um rapazote dos seus 17 anos a balançava e riam os dois. Eram os filhos
do dono da casa. Dora ficou a olhá-los com inveja uns minutos. Depois
tocou a campainha. O rapaz olhou, mas continuou a balançar a irmã.
Dora tocou novamente, a empregada veio. Ela explicou que queria falar com
dona Laura, a patroa. A empregada a olhou com desconfiança.
Mas o rapazola deixou de balançar a irmã e andou até
o portão. Espiava os seios mal nascidos de Dora, os pedaços
de coxas que apareciam sob o vestido. Perguntou: — O que é que você
quer? — Eu queria falar com dona Laura. Sou filha de Margarida, que foi lavadeira
dela… Não vê que ela morreu…
O rapaz não despregava os olhos dos seios de Dora. Era bonita a menina,
de olhos grandes, cabelo muito loiro, neta de italiano com uma mulata.
Margarida dizia que ela puxara ao avô, que também tinha cabelos
muito loiros e um bigodão bem tratado. Dora baixou os olhos porque
o rapaz não tirava os dele dos seus peitos.
Ele também se desconcertou, falou para a empregada: — Vá
chamar mamãe…
— Sim, senhor.
O rapaz puxou um cigarro, acendeu. Jogou a fumaça para cima estendendo
o beiço, deu mais uma espiada para os peitos de Dora: — Você
está procurando emprego? — Tou, sim senhor.
O vento levantou um pouco o vestido dela. Ele teve pensamento canalhas ao
ver o pedaço de coxa. Já se sonhava na cama, Dora trazendo o
café pela manhã, a safadeza que se seguiria.
— Vou ver se mamãe arranja um lugar pra você…
Ela agradeceu. Mas estava um pouco assustada, se bem lhe escapasse muito
da malícia dos olhares dele. Dona Laura chegou, os cabelos grisalhos,
a filha atrás dela, espiando Dora com olhos compridos. Era sardenta,
mas tinha certa graça.
Dora contou que a mãe tinha morrido: — A senhora tinha me prometido
um emprego…
— De que foi que Margarida morreu? — De bexiga, sim senhora.
Dora não sabia que dizendo aquilo tinha perdido a possibilidade do
emprego.
— De varíola? A mocinha se afastou receosa. Até o rapaz se
desviou um pouco, pensou nos seios pequenos de Dora marcados de varíola.
Cuspiu com nojo. Dona Laura tomou um tom triste: — É que já
tomei outra empregada. Agora não tenho necessidade…
Dora pensou em Zé Fuinha: — A senhora não tem precisão
de um menino pequeno pra faz compra, recados, estas coisas? É meu irmão…
— Não, minha filha, não tenho. — Não sabe de ninguém?
— Não. Se soubesse recomendaria você…
Queria acabar a conversa. Voltou-se para o filho: — Você tem dois
mil-réis aí, Emanuel? — Pra que, mamãe? — Me dê.
O rapaz deu, ela pôs em cima da grade. Tinha medo de tocar em Dora,
queria que fosse dali, antes de contagiar a casa.
— Leve isso para você. Que Deus lhe ajude…
Dora voltou a descer a rua. O rapaz ainda espiou as nádegas que apareciam
redondas sob o vestido apertado. Mas a voz de dona Laura o interrompeu. Ela
falava para a empregada: — Dos Reis, passe um pano com álcool no portão,
onde esta menina pegou. Não é bom brincar com varíola…
O rapaz voltou a balançar a irmã sob as mangueiras. Mas de
vez em quando suspirava para si mesmo: tinha uns peitos muito bons…
Zé Fuinha não estava no banco. Dora levou um susto. Era capaz
que o irmão tivesse saído andando pela cidade e se perdesse.
E como ela o iria encontrar, ela que tão pouco conhecia a cidade? Demais
um grande cansaço a invadia, um desânimo, saudade da mãe
morta, vontade de chorar. Os pés doíam e ela tinha fome. Pensou
em comprar pão (agora possuía dois mil e quatrocentos), mas
em vez disto saiu em busca do irmão. Foi encontrá-lo embaixo
das árvores do jardim comendo ameixas verdes. Dora deu-lhe uma pancada
na mão: — Tu não sabe que isso faz dor de barriga? — Tou com
fome…
Ela comprou pão, comeram. A tarde toda foi uma caminhada de um lado
para outro à procura de emprego. Em todas as casas diziam que não,
o medo da varíola era maior que qualquer bondade. No começo
da noite Zé Fuinha não se agüentava mais de cansado. Dora
estava triste e pensava em voltar ao morro. Ia ser uma carga para os vizinhos
pobres. Não queria voltar. Do morro sua mãe tinha saído
num caixão, seu pai metido num saco. Mais uma vez deixou Zé
Fuinha sozinho num jardim para ir comprar o que comer numa padaria, antes
que fechasse. Gastou os últimos níqueis. As luzes se acenderam
e ela achou a princípio muito bonito. Mas logo depois sentiu que a
cidade era sua inimiga, que apenas queimara os seus pés e a cansara.
Aquelas casas bonitas não a quiseram. Voltou curvada, afastando com
as costas das mãos as lágrimas. E novamente não encontrou
Zé Fuinha. Depois de andar em volta do jardim foi dar com o irmão,
que espiava um jogo de gude entre dois garotos: um negro forte e um magrelo
branco. Dora sentou num banco, chamou o irmão.
Os garotos que jogavam se levantaram também. Ela desembrulhou os
pães, deu um a Zé Fuinha. Os garotos a olhavam. O preto estava
com fome, ela bem viu.
Ofereceu do pão a eles. Ficaram os quatro comendo o pão dormido
(era mais barato) em silêncio. Quando terminaram, o preto bateu as mãos
uma na outra, falou: — Teu irmão disse que a mãe de você
morreu de bexiga…
— Papai também…
— Lá também morreu um…
— Teu pai? — Não. Foi Almiro, um do grupo.
O branco magrelo, que tinha estado calado, perguntou: — Você arranjou
onde trabalhar? — Ninguém quer filha de bexiguento…
Agora chorava. Zé Fuinha brincava no chão com as bolas que
os outros tinham deixado perto das árvores. O preto coçava a
cabeça. 0 magrelo olhou para ele, depois para Dora: — Tu tem onde
dormir? — Não.
O magrelo falou para o negro: — A gente leva ela pro trapiche…
— Uma menina… O que é que Bala vai dizer? — Tá chorando
disse o magrelo em voz muito baixa.
O negro olhou. Evidentemente estava atarantado. O branco coçou o
pescoço, espantando uma mosca. Botou a mão no ombro de Dora
muito devagarinho, como se tivesse medo de a tocar: — Vem com a gente. A
gente dorme num trapiche…
O preto fez esforço para sorrir:
— Não é um palacete, mas é melhor que a rua…
Andaram. João Grande e Professor iam na frente. Ambos tinham vontade
de conversar com Dora, mas nenhum sabia o que dizer, não tinham se
visto ainda num apuro assim.
A luz das lâmpadas batia nos cabelos loiros dela. O preto disse: —
É uma lindeza.
— Batuta fez Professor.
Mas não olhavam nem os seios, nem as coxas. Olhavam o cabelo loiro
batido pela luz das lâmpadas elétricas.
No areal Zé Fuinha não pôde mais ir andando. O negro
João Grande pegou a criança (apesar de ser também criança…)
e a botou nas costas. Professor ia junto de Dora, mas estavam calados na noite.
Entraram no trapiche meio desconfiados. João Grande arriou Zé
Fuinha no chão, ficou parado, esperando que o Professor e Dora entrassem.
Foram todos para o canto do Professor, que acendeu a vela. Os outros espiavam
para o canto com surpresa. O cachorro do Sem-Pernas latiu.
— Gente nova… — murmurou o Gato, que ia sair.
Gato andou até onde eles estavam: — Quem é, Professor? —
A mãe e o pai morreu de bexiga. Tavam na rua, sem ter onde dormir.
Gato olhou para Dora ensaiando seu melhor sorriso. Fez uma espécie
de saudação (tinha visto num cinema um galã fazendo)
com o corpo, ensaiou uma frase que tinha ouvido certa vez: — Boas-vindas,
madame…
Não se lembrou do resto, ficou meio encabulado, foi embora ver Dalva.
Mas os demais já se aproximavam. Sem-Pernas e Boa-Vida vinham na frente.
Dora olhava assustada.
Zé Fuinha dormia de cansaço. João Grande se pôs
na frente de Dora. A luz da vela iluminava o cabelo loiro da menina, de quando
em vez pousava nos seios.
Professor se levantou, encostou-se na parede. Agora a lua aparecia pelos
buracos do teto.
Boa-Vida estava diante deles. Sem-Pernas vinha coxeando, e os outros logo
atrás, os olhos estirados para Dora. Boa-Vida falou: — Quem é
essa lasca? Professor se adiantou: — Tava com fome. Ela e o irmão.
A bexiga matou o pai e a mãe.
Boa-Vida riu um riso largo. Empinou o corpo: — É um peixão…
Sem-Pernas riu seu riso burlão, apontou os outros: — Tá tudo
como urubu em cima da carniça…
Dora se chegou para junto de Zé Fuinha, que acordara e tremia de
medo. Uma voz disse entre os meninos: — Professor, tu tá pensando
que a comida é só pra tu e pra João Grande? Deixa pra
nós também…
Outro gritou: — Já tou com o ferro em brasa…
Muitos riram. Um se adiantou, mostrou o sexo a João Grande — Vê
como a bichinha está, Grande. Doidinha…
João Grande e se pôs na frente de Dora. Não dizia nada,
mas puxou o punhal. O Sem-Pernas gritou: — Tu assim não arranja nada.
Ela tem que ser pra todos.
Professor replicou: — Não tão vendo que é uma menina…
— Já tem peito! — gritou uma voz.
Volta Seca saiu de entre o grupo. Trazia os olhos muito excitado um riso
no rosto sombrio: — Lampião também não respeita cara.
Dá ela pra gente Grande…
Sabiam que Professor era fraco, não agüentava pancada. Estava
doidamente excitados, mas ainda temiam João Grande, que segurava o
punhal. Volta Seca se via como no meio do grupo de Lampião, pronto
para deflorar junto com todos uma filha de fazendeiro. A vela iluminava os
cabelos loiros de Dora. Ia um pavor pelo rosto dela.
João Grande não dizia nada, mas segurava o punhal na mão.
Professor abriu a navalha, ficou junto dele. Então Volta Seca também
puxou do punhal, começou a avançar.
Os outros vinham por detrás dele, o cachorro latia. Boa-Vida falou
mais uma vez: — Desaparta, Grande. É melhor…
Professor pensava que se o Gato estivesse ali, estaria do lado deles, porque
o Gato já, tinha mulher. Mas o Gato já tinha saído.
Dora via o grupo avançar. O medo foi vencendo o desânimo e
o cansaço em que estava. Zé Fuinha chorava. Dora não
tirava os olhos de Volta Seca. A cara sombria do mulato estava aberta em desejo,
um riso nervoso a sacudia. Viu também os sinais da varíola no
rosto de Boa-Vida quando este passou em frente da vela, e então se
lembrou da mãe morta. Um soluço a sacudiu e deteve um momento
os meninos. Professor disse: — Não vê que ela tá chorando.
Eles pararam um momento. Mas Volta Seca falou: — E nós com isso?
A babaca é a mesma…
Continuaram avançando. Iam vagarosamente, os olhos fixos ora em Dora,
ora no punhal que João Grande tinha na mão. De repente se apressaram,
chegaram muito mais perto. João Grande falou pela primeira vez: —
Furo o primeiro…
Boa-Vida riu, Volta Seca manejou o punhal. Zé Fuinha chorava, Dora
o olhou com os olhos apavorados. Se abraçou nele, viu João Grande
derrubar Boa-Vida. A voz de Pedro Bala, que entrava, fez com que parassem:
— Que diabo é isso? Professor levantou-se. Volta Seca o soltou, já
o havia cortado no braço. Boa-Vida ficou deitado como estava, um talho
no rosto. João Grande continuou em guarda na frente de Dora. Pedro
Bala se adiantou: — Que é isso? Boa-Vida falou do chão mesmo:
— Estes frescos arranjaram uma comida e quer que seja para ele só.
A gente também tem direito…
— Também. Eu pelo menos quero trepar hoje… –esganiçou
Sem-Pernas.
Pedro Bala olhou para Dora. V’m os peitos, o cabelo loiro.
— Tão com o direito… — falou. — Arreda, João Grande.
O negro olhou Pedro Bala espantado. O grupo avançava novamente, agora
chefiado por Pedro Bala. João Grande estendeu os braços, gritou:
— Bala, eu como o primeiro que chegar aqui.
Pedro Bala adiantou mais um passo: — Sai, Grande.
— Tu não tá vendo que é uma menina? Tu não
tá vendo? Pedro Bala parou, o grupo parou atrás dele. Agora
Pedro Bala olhava Dora com outros olhos. Via o terror no rosto dela, as lágrimas
que caíam dos olhos. Ouviu o choro de Zé Fuinha. João
Grande falava: — Eu sempre tive contigo, Bala. Sou teu amigo, mas ela é
uma menina, fui eu e Professor que trouxe ela. Eu sou teu amigo, mas se tu
vier eu te mato. É uma menina, ninguém faz mal a ela…
— A gente te derruba e depois… — disse Volta Seca.
— Cala a boca gritou Pedro Bala.
João Grande continuou: — O pai dela, a mãe dela morreu de
bexiga. A gente encontrou ela, não tinha onde dormir, a gente trouxe
ela. Não é uma puta, é uma menina, não vê
que é uma menina? Ninguém toca nela, Bala.
Pedro Bala disse baixinho: — É uma menina…
Pulou para o lado de João Grande e de Professor.
— Tu é um negro bom. Tu tá com o direito… — voltou-se
para os outros. — Quem quiser vir, venha…
— Tu não pode fazer isso, Bala… — e Boa-Vida passava a mão
no talho. — Tu agora quer comer ela só com o Grande e Professor…
— Juro que não quem comer ela, nem eles quer. É uma menina.
Mas ninguém toca nela. Quem quiser que venha…
Os menores e mais medrosos foram se afastando. Boa-Vida se levantou, foi
para seu canto, limpando o sangue. Volta Seca falou para Pedro Bala devagar:
— Eu não vou não é de medo. É que tu disse que
é uma menina.
Pedro Bala se aproximou de Dora: — Tem medo, não. Ninguém
toca em você.
Ela saiu do seu canto, arrancou um pedaço da fralda, começou
a ver a ferida do Professor. Depois marchou para onde estava Boa-Vida (que
se encolheu todo), molhou a ferida do malandro, botou um pano em cima. Todo
o temor, todo o cansaço tinham desaparecido. Porque confiava em Pedro
Bala. Depois perguntou a Volta- Seca: — Também tá ferido? —
Não… — fez o mulato sem compreender. E fugiu para seu canto. Parecia
ter medo de Dora.
Sem-Pernas espiava. O cachorro saiu do colo dele, veio lamber os pés
de Dora.
Ela o acarinhou, perguntou ao Sem-Pernas: — É teu? — É,
sim. Mas pode 6car com ele.
Ela sorriu. Pedro Bala andou ao léu no trapiche. Depois disse para
todos: — Amanhã ela vai embora. Não quero menina aqui.
— Não — disse Dora. -Eu fico, ajudo vocês. Eu sei cozinhar,
coser, lavar roupa.
— Por mim pode ficar falou Volta Seca.
Dora olhou Pedro Bala: — Tu disse que ninguém me fazia mal?…
Pedro Bala olhou os cabelos loiros. A lua entrava pelo trapiche.
Dora, Mãe
O gato veio gingando o corpo naquele seu caminhar característico.
Andara procurando enfiar a linha na agulha uma imensidade de tempo. Dora fizera
Zé Fuinha dormir, agora se preparava para ouvir Professor ler aquela
história tão bonita que estava no livro de capa azul. O Gato
veio gingando o corpo, se aproximou devagar: — Dora…
— Que é, Gato? — Tu quer fazer uma coisa? Mirava a agulha e a linha
que tinha na mão. Parecia estar diante de um problema grave. Não
sabia como se arranjar. Professor parou a leitura, Gato mudou de conversa:
— Tu ainda fica cego de tanto lê, Professor… Se ainda fosse luz elétrica…
— olhou Dora sem se resolver.
— Que é, Gato? — Esse diabo desta linha… Nunca vi coisa mais
difícil. Meter isso no rabo desta agulha…
— Dê cá…
Enfiou a linha, deu um nó numa das pontas. Gato disse para Professor:
— Só mulher é que sabe fazer esse troço…
Estendeu a mão para receber a agulha, mas Dora não entregou.
Perguntou o que é que Gato tinha que coser. Gato mostrou o paletó
roto no bolso. Era aquela roupa de casimira que fora do Sem-Pernas quando
ele andara feito menino rico numa casa da Graça: — É uma roupa
porreta! — fez o Gato.
— Boa mesmo apoiou Dora. — Tira o casaco.
Professor e Gato ficaram vendo ela coser. Em verdade não era uma
maravilha de costura, mas eles nunca tinham tido ninguém que remendasse
suas roupas. E somente Gato e Pirulito tinham costume de remendar eles mesmos
as suas. Gato porque era metido a elegante e tinha uma amante, Pirulito porque
gostava de andar limpo.
Os outros deixavam que os farrapos que arranjavam se esfarrapassem ainda
mais, até se tornarem trapos inúteis. Então mendigavam
ou furtavam outra calça e outro paletó.
Dora acabou o serviço: — Tem mais? Gato alisou o cabelo cheio de
brilhantina: — As costas da camisa…
Virou-se. A camisa estava rasgada de cima a baixo. Dora mandou que ele sentasse,
começou a coser no corpo dele mesmo. Quando os dedos dela tocaram pela
primeira vez nas costas de Gato, ele sentiu um arrepio. Como quando Dalva
passava as unhas crescidas e tratadas, arranhando suas costas e dizendo: —
A gatinha arranha o gatinho…
Mas Dalva não cosia suas roupas, talvez nem soubesse enfiar uma linha
no fundo de uma agulha. Gostava era de se bater com ele na cama, arranhar
suas costas, mas de propósito, pra o arrepiar e o excitar, para que
o amor se fizesse ainda melhor.
E Dora, não. Não era de propósito. A mão dela
(unhas maltratadas e sujas, roídas a dente) não queria excitar,
nem arrepiar. Passava como a mão de uma mãe que remendava camisas
do filho. A mãe do Gato morrera cedo. Era uma mulher frágil
e bonita.
Também tinha as mãos maltratadas, que esposa de operário
não tem manicura. E era dela também aquele gesto de remendar
as camisas de Gato, mesmo nas costas de Gato.
A mão de Dora o toca de novo. Agora a sensação é
diferente. Não é mais um arrepio de desejo. É aquela
sensação de carinho bom, de segurança que lhe davam as
mãos de sua mãe. Dora está por detrás dele, ele
não vê. Imagina então que é sua mãe que
voltou. Gato está pequenino de novo, vestido com um camisolão
de bulgariana e nas brincadeiras pelas ladeiras do morro o rompe todo. E sua
mãe vem, faz com que ele se sente na sua frente e suas mãos
ágeis manejam a agulha, de quando em vez o tocam e lhe dão aquela
sensação de felicidade absoluta. Nenhum desejo. Somente felicidade.
Ela voltou, remenda as camisa do Gato. Uma vontade de deitar no colo de Dora
e deixar que ela cante para ele dormir, como quando era pequenino. Se recorda
que ainda uma criança. Mas só na idade, porque no mais é
igual a um homem furtando para viver, dormindo todas as noites com uma mulher
da vida, tomando dinheiro dela. Mas nesta noite é totalmente criança
esquece Dalva, suas mãos que o arranham,lábios que prendem os
seu em beijos longos, sexo que o absorve.
Esquece sua vida de pequeno batedor de carteiras, de dono de um baralho
marcado, jogado desonesto. Esquece tudo, é apenas um menino de quatorze
anos com uma mãezinha que remenda suas camisas. Vontade de que ela
cante para ele dormir…
Uma daquelas cantigas de ninar que falam em bicho-papão. Dora morde
a linha, se inclina para ele. Os cabelos loiro dela tocam no ombro do Gato.
Mas ele não tem outro desejo senão que ela continue a ser sua
mãezinha. Sua felicidade naquele momento é quase absurda. É
como se não houvesse existido toda a sua vida depois da morte da sua
mãe.
É como se tivesse se conservado um criança igual a todas.
Porque nesta noite sua mãe voltou. Por isso a inconsciente carícia
dos cabelos loiros de Dora não excita seu desejo.
Mas aumenta sua felicidade. E a voz dela que diz: tá pronto, Gato,
soa aos seus ouvidos direitinho a voz doce e musical de sua mãe que
cantava, a cabeça do Gato recostada no seu colo, cantigas de ninar.
Levanta, olha Dora com olhos agradecidos: — Você é a mãezinha
da gente, agora… — mas fica encabulada do que diz, pensa que Dora não
compreenderá mesmo porque ela esta rindo com seu rosto sério
de quase mulherzinha. Mas Professor compreende, e Gato, na frente de Dora,
falando numa voz feliz, mas sem desejo, chamando-a de mãe, e ela sorrindo
com seu ar maternal de quase mulherzinha, fica gravado na cabeça de
Professor como um quadro.
Gato joga o paletó nas costas e sai com seu passo gingado. Sente
que há qualquer coisa de novo no trapiche: eles encontraram mãe,
carinho e cuidados de mãe. Dalva o estranha nesta noite: — Que foi
que Gatinho teve? Que foi?
Mas ele guarda seu segredo. É uma coisa tão grande demais encontrar
na terra uma mãe que já morreu. Dalva não o entenderia.
Quando Professor estava começando a história, João
Grande chegou e sentouse ao lado deles. A noite era chuvosa. Na história
que Professor lia, a noite era chuvosa também e o navio estava em grande
perigo. Os marinheiros apanhavam de chicote, o capitão era um malvado.
O barco a vela parecia soçobrar a cada momento, o chicote dos oficiais
caía sobre as costas nuas dos marinheiros. João Grande tinha
uma expressão de dor no rosto. Volta Seca chegou com um jornal, mas
não interrompeu a história, ficou ouvindo. Agora o marinheiro
John apanhava chibatadas porque escorregara e caíra no meio do temporal.
Volta Seca interrompeu: — Se Lampião tivesse aí, já
tinha comido esse capitão no fuzil…
Foi o que fez o marinheiro James, um homenzarrão. Se atirou em cima
do capitão, a revolta estalou no buque. Lá fora chovia. Chovia
na história também, era a história de um temporal e de
uma revolta. Um dos oficiais ficou do lado dos marinheiros.
— É do balacobaco… — disse João Grande.
Amavam o heroísmo. Volta Seca espiou Dora. Os olhos dela brilhavam,
ela amava o heroísmo também. Isso agradou ao sertanejo. Depois
o marinheiro James sustentou uma luta feroz. Volta Seca assoviou como um passarinho
de tanto contentamento.
Dora riu também, satisfeita. Riram os dois juntos, logo foi uma gargalhada
dos quatro, como era costume dos Capitães da Areia. Gargalharam alguns
minutos, outros se aproximaram, a tempo de ouvir o resto da história.
Olhavam o rosto sério de Dora, rosto de uma quase mulherzinha que
os fitava com carinho de mãe. Sorriam e, quando o marinheiro James
jogou o capitão do navio num barco salva-vidas e o chamou de cobra
sem veneno, eles todos gargalharam junto com Dora, e a olharam com amor. Como
crianças olham a mãe muito amada.
Quando a história acabou, eles voltaram para os seus cantos entre
comentários: — Porreta…
— Macho bamba…
— Também era um prensa…
— O capitão fez uma cara, hein? Volta Seca espichou o jornal para
Professor Dora olhou o mulato, ele sorriu meio confuso.
— É que traz notícias de Lampião… — seu rosto sombrio
clareava. — Tu sabe que Lampião é meu padrim? — Padrinho?
— Pois é… Foi minha mãe que tomou, porque Lampião
é um macho de verdade, não respeita cara… Minha mãe
era uma mulher valente, uma mulher capaz de agüentar um fuzil. Um dia
fez correr dois soldados que se fizeram de besta. Era um mulherão…
Valia um homem.
Dora ouvia encantada. Seu rosto sério fitava com a maior simpatia
o rosto sombrio do mulato. Volta Seca ficou calado, mas num jeito de quem
queria dizer alguma coisa. Por fim falou.
— Tu também é valente… Sabe? Minha mãe era um mulherão
destas grandes.
Era mulata, não tinha cabelo loiro, tinha uma carapinha danada…
Não era mais menina também, podia ser tua avó… Mas
tu parece com ela…
Olhou Dora, mas baixou a cabeça: — Parece mentira, mas tu me lembra
ela. Parece mentira, mas tu parece com ela…
Professor olhou com seus olhos de míope. Volta Seca quase gritava,
seu rosto sombrio tinha a alegria de uma descoberta. Também e1e descobriu
sua mãe, pensou Professor.
Dora estava séria, mas sei olhar era carinhoso. Volta Seca riu, ela
riu, virou logo gargalhada. Mas Professor não os acompanhou na gargalhada.
Começou a ler muito rápido o relato do jornal.
Lampião fora pegado de surpresa ao entrar numa vila. O chofer de
um caminhão que o vira na estrada com o grupo tocara para a vila e
avisara. Dera tempo de pedirem reforços de vilas próximas e
a coluna volante também veio. Quando Lampião entrou na vila
encontrou foi bala muita pela frente, bala que ele não esperava. O
tiroteio foi grande, Lampião só pôde mesmo abrir para
a caatinga, que é sua casa. Um dos homens do grupo ficou estirado com
um balaço no peito. Cortaram a cabeça dele, que foi enviada
para a Bahia em triunfo. Vinha a fotografia no jornal. A boca aberta, os olhos
furados, um homem segurando pela carapinha rala.
Tinham cortado o pescoço a facão.
Dora comentou: — Coitado dele… Que judiaria! Volta Seca olhou agradecido.
Seus olhos estavam injetados, seu rosto todavia mais sombrio. Dolorosamente
sombrio.
— Filho de uma égua… — disse baixo. — Filho de uma égua
de chofer… Se um dia eu te pegar…
A notícia adiantava que Lampião devia ter outros homens feridos,
pois a retirada do grupo fora por demais rápida. Volta Seca falou em
surdina. Era como se falasse para si mesmo…
— Já tá em tempo d’eu ir…
— Pra onde? — perguntou Dora.
— Pra junto de meu padrim. Ele tá precisando de mim…
Ela o olhou com tristeza: — Tu vai mesmo, Volta Seca? — Vou, sim.
— E se a polícia te matar, cortar tua cabeça? — Juro que
eu eles não topa vivo. Vou com um, mas eu eles não topa vivo…
Não tem medo, não…
Afirmava à sua mãe, forte e valente mulata sertaneja, capaz
de brigar com soldados, comadre de Lampião, amásia de cangaceiro,
que podia confiar nele, que não o pegariam vivo, que lutaria até
morrer… Dora ouvia com orgulho.
Professor apertou os olhos e viu também, em lugar de Dora, uma sertaneja
forte, defendendo seu pedaço de terra contra os coronéis, com
a ajuda amiga dos cangaceiros.
Viu a mãe de Volta Seca. E era o que o mulato via. Os cabelos loiros
eram carapinha rala, os olhos doces eram os olhos achinesados da sertaneja,
o rosto grave era o rosto sombrio da camponesa explorada. E o sorriso era
o mesmo sorriso de orgulho de mãe para filho.
Pirulito a viu chegar com desconfiança. Para ele Dora era o pecado.
Havia bastante tempo que ele desistira das negrinhas do areal e da quentura
dos corpos se embolando no areal. Se despia aos poucos dos seus pecados para
aparecer puro aos olhos de Deus e poder merecer a graça de se vestir
com as vestes dos sacerdotes. Pensava mesmo em arranjar um lugar de vendedor
de jornais para fugir do pecado diário do furto.
Olhava Dora com receio: a mulher era o pecado. Em verdade ela era apenas
uma criança, uma criança abandonada como eles. Não ria
como as negrinhas do areal um riso insolente de convite, um riso de dentes
apertados pelo desejo. Seu rosto era sério, parecia o rosto de uma
mulherzinha muito digna. Mas os pequenos seios que nasciam se empinavam no
vestido, o pedaço de coxa que aparecia era branco e redondo.
Pirulito tinha medo. Não tanto da tentação de Dora.
Ela não parecia das que tentavam, era uma criança, era muito
cedo para isto. Mas tinha medo da tentação que vinha dentro
dele, que o demônio punha dentro dele. E procurava rezar em voz baixa
enquanto ela se aproximava.
Dora ficou olhando os quadros de santo. Professor parou atrás dela,
olhava também. Havia flores sob a imagem do Menino Deus que Pirulito
furtara um dia.
Dora chegou mais perto: — É uma beleza…
O medo começou a desaparecer do coração do Pirulito.
Ela se interessava pelos seus santos, santos para os quais ninguém
ligava no trapiche. Dora perguntou: — É tudo teu? Pirulito fez que
sim com a cabeça e sorriu. Se adiantou, mostrou tudo que possuía.
Os quadros, o catecismo, o terço, tudo. Ela olhava com satisfação.
Sorria também enquanto Professor a espiava com os olhos míopes.
Pirulito contava a história de Santo Antônio, que tinha estado
em dois lugares ao mesmo tempo. Isso para salvar seu pai da forca, para a
qual fora condenado injustamente. Contava do mesmo modo como Professor lia
histórias heróicas de marinheiros corajoso e revoltosos.
Dora escutava com a mesma atenção e a mesma simpatia. Conversavam
os dois, Professor calado, ouvindo. Pirulito contou coisas da sua religião,
milagres de santos, a bondade do padre José Pedro: — Quando tu conhecer
ele, vai gostar…
Ela disse que com certeza. Ele já havia esquecido que ela podia trazer
a tentação nos seios de menina, nas coxas gordas, na cabeleira
loira, agora falava como a uma mulher mais velha que o ouvia com carinho.
Como a uma mãe. Só então compreendeu. Porque naquele
momento lhe veio uma vontade de contar a ela que queria ser sacerdote, que
queria seguir aquela vocação, que sentia o chamado de Deus.
Só à sua mãe teria coragem de contar isso. E ela está
na sua frente. Ele fala: — Tu sabe que eu quero ser padre? — Que bom…
— fez ela.
O rosto de Pirulito se iluminou. Olhou para Dora, falou com a voz exaltada:
— Tu pensa que eu mereço? Deus é bom, mas também sabe
castigar…
— Por quê? – havia espanto na pergunta de Dora.
— Tu não vê que a vida da gente é cheia de pecado?…
Todo dia…
— A culpa não é da gente… — esclareceu Dora. — A gente
não tem ninguém.
Mas agora Pirulito tinha a ela. A sua mãe. Riu satisfeito: — Padre
José Pedro também já disse isso. É capaz…
Riu mais, ela sorriu também animando.
— … é capaz de que um dia eu seja padre.
— Tu vai ser, sim.
— Tu quer esse Deus Menino pra tu? — perguntou ele de repente.
Era como um filho que levasse parte da sua guloseima para sua mãe,
que lhe dera o níquel para que comprasse.
E Dora aceitou, como uma mãe aceita parte da guloseima do filho querido
para que este fique satisfeito.
Professor via a mãe de Pirulito, que não sabia como era, como
fora. Mas a via ali no lugar de Dora. Sentiu inveja da felicidade de Pirulito.
Encontraram Pedro Bala estendido na areia. O chefe dos Capitães da
Areia não entrara para o trapiche nesta noite. Ficara espiando a lua,
deitado na quentura boa da areia. A chuva tinha cessado e vento que corna
agora era morno. Professor deitou também, Dora sentou entre os dois.
Pedro Bala a espiou pelo canto dos olhos, puxou o boné mais para a
cara. Dora disse voltada para ele: — Tu ontem foi bom comigo e meu irmão…
— Tu devia ir embora… — respondeu Bala.
Ela não disse nada, mas ficou triste. Professor então falou.
— Não, Bala. É como uma mãe… Como uma mãe,
sim. Pra todos…
Repetia: — É como uma mãe… Como uma mãe…
Pedro Bala olhou os dois. Suspendeu o boné, sentou na areia. Mas
Dora o olhava com carinho. Para ele… Para ele era tudo: esposa, irmã
e mãe. Sorriu confuso para Dora: — Pensei que fosse ser uma tentação
pra todos…
Ela fez que não, ele continuou: — Depois podiam aproveitar uma hora
que a gente não estava…
Riram. Professor repetiu mais uma vez: — Não. É como uma
mãezinha…
— Tu pode ficar-disse Pedro Bala, e Dora sorriu para ele, era o seu herói,
uma figura que ela nunca tinha imaginado, mas que um dia haveria de imaginar.
Amava-o como a um filho sem carinho, um irmão corajoso, um amado
tão belo como não havia outro.
Mas Professor viu os sorrisos dos dois. E disse ainda uma vez com voz sombria:
— É como mãe!
Dora, Irmã e Noiva
Como o vestido dificultava seus movimentos e como ela queria ser totalmente
um dos Capitães da Areia, o trocou por umas calças que deram
a Brandão numa casa da cidade alta. As calças tinham ficado
enormes para o negrinho, ele então as ofereceu a Dora. Também
estavam grandes para ela, teve que as cortar nas pernas para que dessem. Amarrou
com cordão, seguindo o exemplo de todos, o vestido servia de blusa.
Se não fosse a cabeleira loira e os seios nascentes, todos a poderiam
tomar como um menino, um dos Capitães da Areia.
No dia em que, vestida como um garoto, ela apareceu na frente de Pedro Bala,
o menino começou a rir. Chegou a se enrolar no chão de tanto
rir. Por fim conseguiu dizer: — Tu tá gozada…
Ela ficou triste, Pedro Bala parou de rir.
— Não tá direito que vocês me dê de comer todo
dia. Agora eu tomo parte no que vocês fizer.
O assombro dele não teve limites: — Tu quer dizer…
Ela o olhava calma, esperando que ele concluísse a frase.
— … que vai andar com a gente pela rua, batendo coisas…
— Isso mesmo — sua voz estava cheia de resolução.
— Tu endoidou…
Dizia com voz soturna, porque, para ele, ela também não era
mãe. Também para o Professor ela era a Amada.
— Não sei por quê.
— Tu não tá vendo que tu não pode? Que isso não
é coisa pra menina. Isso é coisa pra homem.
— Como se vocês fosse tudo uns homão. É tudo uns menino.
Pedro Bala procurou o que responder: — Mas a gente veste calça,
não é saia.
— Eu também e mostrava as calças.
De momento ele não encontrou nada que dizer. Olhou para ela e pensativo,
já não tinha vontade de rir. Depois de algum tempo falou: —
Se a polícia pegar a gente não tem nada. Mas se pegar tu? —
É igual.
— Te metem no orfanato. Tu nem sabe o que é…
— Tem nada, não. Eu agora vou com vocês.
Ele encolheu os ombros num gesto de quem não tinha nada com aquilo.
Havia avisado. Mas ela bem sabia que ele estava preocupado.
Por isso ainda disse: — Tu vai ver como eu vou ser igual a qualquer um…
— Tu já viu uma mulher fazer o que um homem faz? Tu não agüenta
um empurrão…
— Posso fazer outras coisa.
Pedro Bala se conformou. No fundo gostava da atitude dela, se bem tivesse
medo dos resultados.
Andava com eles pelas ruas, igual a um dos Capitães da Areia. Já
não achava a cidade inimiga. Agora a amava também, aprendi a
andar nos becos, nas ladeiras, a pongar nos bondes, nos automóveis
em disparada. Era ágil como o mais ágil.
Andava sempre com Pedro Bala, João Grande e Professor. João
Grande não a largava, era como uma sombra de Dora, e se babava de satisfação
quando ela o chamava com sua voz amiga de meu irmão. O negro a seguia
como um cachorro e se dedicara totalmente a ela. Vivia num assombro das qualidades
de Dora. Quase a achava tão valente como Pedro Bala. Dizia o Professor
num espanto: — É valente como um homem…
Professor preferia que não fosse assim. Sonhava com um olhar de carinho
dos olhos da Dora. Mas não daquele carinho maternal que ela tinha para
os menores e para os mais tristes, Volta Seca, Pirulito. Tampouco um olhar
fraternal, como os que ela lançava a João Grande, a Sem-Pernas,
a Gato, a ele mesmo. Queria um daqueles olhares plenos de amor que ela lançava
a Pedro Bala quando o via na carreira, fugindo da polícia ou de um
homem que dizia na porta de uma loja: — Ladrão! Ladrão! Me
furtaram…
Daqueles olhares ela só tinha para Pedro Bala, e este nem reparava.
Professor ouve os elogios de João Grande mas não sorri. Pedro
Bala naquela noite chegou no trapiche com um olho inchado e o lábio
roxo, sangrando. Topara com Ezequiel, chefe de outro grupo de meninos mendigos
e ladrões, grupo muito menor que o dos Capitães da Areia e muito
mais sem ordem. Ezequiel vinha com uns três do grupo, inclusive um que
fora expulso dos Capitães da Areia por ter sido pegado furtando um
companheiro. Pedro Bala tinha ido deixar Dora e Zé Fuinha no pé
da ladeira do Taboão para que eles fossem para o trapiche. João
Grande tinha um serviço a fazer e não pudera ir com Dora. Pedro
Bala pensou em ir com ela, em não deixá-la sozinha no areal.
Mas como ainda não caíra a noite, não havia perigo de
um negro dar em cima dela. Demais ele tinha que ir receber uns cobres da mão
de Gonzales do 14, dinheiro que era devido a uma batida que o grupo fizera
nuns objetos de ouro de um árabe rico.
E nquanto andava para o 14, Pedro Bala pensava em Dora. No cabelo loiro
que caía no pescoço, nos olhares dela. Era bonita, era igual
a uma noiva. Noiva… Nem podia pensar nisso. Não queria que os outros
do grupo se sentissem com direito de pensar em safadezas com ela. E se ele
dissesse a Dora que ela era como uma noiva para ele, outro poderia se julgar
no direito de também dizer. E então não haveria mais
lei nem direito entre os Capitães da Areia. Pedro Bala se recorda de
que é o chefe…
Vai tão distraído que quase esbarra com Ezequiel. Estão
os quatro parados diante dele. Ezequiel é um mulato alto, fuma uma
ponta de charuto. Pedro Bala fica parado também, esperando.
Ezequiel cospe: — Não vê onde pisa?… Agora anda cego? —
O que é que tu quer? O menino que fora dos Capitães da Areia
pergunta: — Como vão aqueles frescos? — Tu ainda se lembra da surra
que apanhou lá? Tu ainda deve guardar a marca.
O menino range os dentes, quer avançar. Mas Ezequiel faz um gesto
com a mão e avisa a Pedro Bala: — Um dia destes vou fazer uma visita
a vocês.
— Uma visita? — pergunta Bala desconfiado.
— Diz-que agora vocês tem uma putinha lá pra todo mundo…
— Dobre a língua, filho da mãe.
Com o soco Ezequiel rolou. Mas os outros três já estavam em
cima de Pedro Bala. Ezequiel meteu o pé na cara de Bala. O que for,
dos Capitães da Areia gritou: — Segura ele bem e meteu um soco na
boca de Pedro.
Ezequiel deu dois pontapés na cara de Bala: — Fique sabendo que
sou teu patrão.
— Quatro… — começou a xingar Pedro Bala, mas um soco o calou.
O guarda vinha marchando para eles, debandaram. Pedro Bala apanhou o boné,
as lágrimas de raiva desciam junto com sangue. Estendeu a mão
fechada para o lado por onde Ezequiel e os seus haviam desaparecido. O guarda
falou: — Desaperta, corneta. Dá o fora antes que lhe leve pro xilindró.
Pedro Bala cuspiu puro sangue. Desceu a ladeira devagar, nem pensou em ir
buscar o dinheiro de Gonzales. Descia resmungando consigo mesmo: Só
são homem quatro contra um. E pensava vinganças.
Entrou no trapiche, Dora estava sozinha com o irmão, que dormia.
Os últimos raios do sol entravam pelo teto, dando uma estranha claridade
ao casarão. Dora o viu entrar e andou para ele: — Segurou os cobres?…
Mas enxergou o olho inchado de Pedro, o beiço partido: — Que foi,
meu irmão? — Ezequiel mais três. Só são homem
de quatro pra cima…
— Fez isso em tu? — Foi quatro. Assim mesmo porque me pegaram desprevenido.
Eu caí na besteira de pensar que Ezequiel vinha só. Era quatro.
Ela o sentou, foi ao canto de Pirulito, trouxe água. Com um pedaço
de pano limpou as feridas dele. Pedro arquitetava plano de vingança.
Ela apoiou: — A gente acaba com eles desta vez.
Pedro riu: — Tu vai também? — Se vou…
Agora limpava os lábios dele, estava curvada na sua frente, seu rosto
bem próximo do de Bala, os cabelos loiros misturados com os dele.
— Por que foi a briga? — Por nada.
— Diga…
— Ele disse umas coisas…
— Foi por causa de mim, não foi? Ele abanou a cabeça afirmando.
Então ela chegou os lábios para junto dos de Pedro Bala, os
beijou e depois fugiu. Ele saiu correndo atrás dela, mas ela se escondia,
não se deixava pegar. Aos poucos foram chegando os outros. Ela de longe
sorna para Pedro Bala. Não havia nenhuma malícia no seu sorriso.
Mas seu olhar era diferente do olhar de irmã que lançava aos
outros. Era um doce olhar de noiva, de noiva ingênua e tímida.
Talvez mesmo não soubessem que era amor. Apesar de não ser noite
de lua, havia um romântico romance no casarão colonial. Ela sorria
e baixava os olhos, por vezes piscava com um olhe porque pensava que isto
era namorar. E seu coração batia rápido quando olhava.
Não sabia que isso era amor. Por fim a lua veio estendeu sua luz amarela
no trapiche. Pedro Bala se deitou na areia e mesmo de olhos fechados via Dora.
Sentiu quando ela chegou e deitou a seu lado. Disse: — Tu agora é
minha noiva. Um dia a gente se casa.
Continuou de olhos fechados. Ela disse baixinho: — Tu é meu noivo.
Mesmo não sabendo que era amor, sentiam que era bom.
Quando Sem-Pernas e João Grande chegaram, Pedro Bala se levantou
da areia e reuniu os chefes. Foram para junto da vela do Professor. Dora veio
também e sentou entre João Grande e Boa-Vida.
O malandro acendeu um cigarro, falou para Dora: — Tou aprendendo tocar
uma samba porreta. E tou cavando um violão, irmã.
— Tu tá tocando batuta mesmo, mano.
— É um tal de sucesso nas festa…
Pedro Bala interrompeu a conversa. Olhavam para o lábio dele, o olho
inchado.
Ele narrou o caso: — Quatro contra um…
— Precisa duma lição — falou Sem-Pernas rindo. — Eu não
vou com aquele cara.
Formaram um plano de batalha. E pelo meio da noite saíram uns trinta.
O grupo de Ezequiel dormia para as bandas do Porto da Lenha, nuns barcos virados
e na ponte.
Dora foi junto a Pedro Bala e levava uma navalha também. Sem-Pernas
disse: — Até parece Rosa Palmeirão.
Nunca houvera mulher tão valente como Rosa Palmeirão. Dera
em seis soldados de uma vez. Todo marítimo sabe o seu ABC no cais da
Bahia. Por isso Dora gosta da comparação e sorri: — Obrigado,
mano.
Irmão… É uma palavra boa e amiga. Se acostumaram a chamá-la
de irmã. Ela também os trata de mano, de irmão. Para
os menores é como uma mãezinha, igual a uma mãezinha.
Cuida deles. Para os mais velhos é como uma irmã que diz palavras
boas e brinca inocentemente com eles e com eles passa os perigos da vida aventurosa
que levam. Mas nenhum sabe que para Pedro Bala ela é a noiva. Nem mesmo
o Professor sabe. E dentro do seu coração Professor também
a chama de noiva.
O cachorro que o Sem-Pernas arranjou vai latindo. Volta Seca imita o latir
de um cachorro, todos riem. João Grande assovia um samba. Boa-Vida
começa a cantálo em voz alta: A mulata me abandonou…
Vão alegres. Levam navalhas e punhais nas calças. Mas só
o sacarão se os outros puxarem. Porque os meninos abandonado também
têm uma lei e uma moral, um sentido de dignidade humana.
De repente João Grande grita: — É ali.
Com a algazarra que fazem, Ezequiel sai de sob um barco: — Quem vem lá?
— Os Capitães da Areia, que não engole desaforo… respondeu
Pedro Bala.
E arrancaram para cima dos outros.
A volta foi um triunfo. Apesar do Sem-Pernas ter um talho e Barandão
vir quase nos braços de tanta pancada (um grandão do grupo de
Ezequiel o surrara até que Volta Seca o rebentou), voltavam todo alegres,
comentando a vitória. Os que tinham ficado no trapiche deram vivas.
Ainda demoraram muito conversando, comentando. Falavam na coragem de Dora,
que brigara igual a um menino. Igual a um homem, dizia João Grande.
Era como uma irmã, exatamente igual a uma irmã…
Igual a uma noiva, exatamente igual a uma noiva, pensava Pedro Bala, estendido
na areia. A lua amarelava o areal, as estrelas se refletiam no mar azul da
Bahia.
Ela veio, deitou ao lado dele. E começaram a falar de coisas tolas.
Igual a uma noiva. Não se beijaram, não se abraçaram,
o sexo não os chamava naquele momento.
Só de leve o loiro cabelo dela tocava em Pedro Bala.
— Tu tem um cabelo bonito… — disse ele.
Ela riu, olhou o cabelo dele: — O teu também.
Riram os dois e logo foi uma gargalhada. Era um hábito dos Capitães
da Areia.
Ela começou a contar coisas do morro, histórias dos vizinhos,
ele relembrava fatos da vida agitada do grupo: — Vim pra rua com cinco anos.
Menor que teu irmão…
Riam inocentemente, felizes de estarem um ao lado do outro. Depois o sono
veio. Estavam separados, Pedro tomou a mão dela, segurou. Dormiram
como dois irmãos.
O jornal da tarde trouxe a notícia em grandes títulos.
Uma manchete ia de lado a lado na primeira página: preso O CHEFE
DOS “Capitães da Areia” Depois vinham os títulos que
estavam em cima de um clichê, onde se viam Pedro Bala, Dora, João
Grande, Sem-Pernas e Gato cercados de guardas e investigadores: Uma menina
no grupo — a sua história — recolhida a um orfanato — o chefe dos
“capitães da areia” é filho de um grevista – os outros
conseguem fugir — “o reformatório o endireitará”,
nos afirma o diretor.
Sob o clichê vinha esta legenda: Após ser batida esta chapa
o chefe dos peraltas armou uma discussão e um barulho que deu lugar
a que os demais moleques presos pudessem fugir. O chefe é o que está
marcado contra cruz e ao seu lado vê-se Dora, a nova gigolete dos moleques
baianos.
Vinha a notícia: Ontem a polícia baiana.lavrou um tento.
Conseguiu prender o chefe do grupo de menores delinqüentes conhecidos
pelo nome de “Capitães da Areia”. Por mais de uma vez este
jornal tratou do problema doa menores que viviam nas ruas e da cidade dedicados
ao furto.
Por várias vezes também noticiamos os assaltos levados a efeito
por este mesmo grupo. Realmente a cidade vivia sob o temor constante destes
meninos, que ninguém sabia onde moravam, cujo chefe ninguém
conhecia. Há alguns meses tivemos ocasião de publicar cartas
do dr. Chefe de Polícia, do dr. Juiz de Menores e do Diretor do Reformatório
Baiano sobre este problema. Todos eles prometiam incentivar a campanha contra
os menores delinqüentes e em particular contra os “Capitães
da Areia”.
Esta campanha tão meritória deu os seus primeiros frutos ontem
com a prisão do chefe desta malta e de vários do grupo, inclusive
uma menina. Infelizmente, devido a uma sagaz burla de Pedro Bala, o chefe,
os demais conseguiram escapar de entre as mãos dos guardas. Em todo
caso, a polícia já conseguiu muito prendendo o chefe e a romântica
inspiradora dos roubos: Dora, uma figura interessantíssima de menor
delinqüente. Feitos estes comentários, narremos os fatos:
A tentativa de furto
Ontem, às últimas horas da tarde, cinco meninos e uma menina
penetraram no palacete do dr. Alcebíades Menezes, na ladeira de São
Bento. Foram porém pressentidos pelo filho do dono da casa, estudante
de medicina, que deixou que eles penetrassem num quarto, onde os trancou.
Chamou então os guardas e investigadores, a quem os entregou.
A reportagem do “Jornal da Tarde”, informada do fato, partiu para
a casa do dr.
Alcebíades. Lá chegando, encontrou os menores que eram levados
à Chefia de Polícia.
Pedimos então para tirar um retrato do grupo· A polícia
muito gentilmente consentiu. Pois no momento em que o fotógrafo acabava
de fazer funcionar o magnésio e bater a chapa, Pedro Bala, o temível
chefe dos “Capitães da Areia”, facilitou a evasão.
Pondo em prática uma agilidade incomum Pedro Bala se livrou dos braços
do investigador que o segurava e com um golpe de capoeira o derrubou. No entanto
não fugiu.
É claro que os demais guardas e investigadores se precipitaram em
cima dele para impedir a sua fuga. Só então foi possível
compreender o plano do chefe dos “Capitães da Areia” pois
este gritou para os companheiros presos.
— Arriba, pessoal.
Um único guarda ficara a tomar conta dos outros, e um deles, muito
ágil, o derrubou também com um golpe de capoeira. E desabaram
para a ladeira da Montanha.
Na polícia
Na Chefia de Polícia quisemos ouvir Pedro Bala. Mas ele nada nos disse,
como tampouco quis declarar às autoridades o lugar onde dormiam e guardavam
seus furtos os “Capitães da Areia”. Só declarou seu
nome, disse que era filho de um antigo grevista que foi morto num “meeting”
na célebre greve das docas de 191…, que não tinha ninguém
no mundo. Quanto a Dora, é filha de uma lavadeira que morreu de varíola
quando da epidemia que alastrou a cidade. Não faz senão quatro
meses que está entre os “Capitães da Areia”, mas já
tomou parte em muitos assaltos. E parece ter uma grande honra nisso.
Noivos
Dora declarou à nossa reportagem que era noiva de Pedro Bala e que
iam se casar. É uma menina ainda ingênua, mais digna de piedade
que de castigo. Fala no seu noivado com maior das ingenuidades. Não
tem mais de quatorze anos, enquanto Pedro Bala anda pelos seus dezesseis.
Dora foi leva da ao Orfanato Nossa Senhora da Piedade.
Neste santo ambiente não tardará a esquecer Pedro Bala, o
romântico noivobandido, e a sua vida criminosa entre os “Capitães
da Areia”.
Quanto a Pedro Bala, será recolhido ao Reformatório de Menores
logo que a polícia consiga que ele declare qual o local onde se esconde
o grupo. A polícia tem grandes esperanças de consegui-lo ainda
hoje.
Ouvindo o Diretor no Reformatório
O diretor do Reformatório Baiano de Menores Abandonados e Delinqüentes
é um velho amigo do “Jornal da Tarde”. Certa vez uma reportagem
nossa desfez um círculo de calúnias jogada contra aquele estabelecimento
de educação e seu diretor.
Hoje ele se achava na polícia esperando poder levar consigo o menor
Pedro Bala.
A uma pergunta nossa, respondeu.
— Ele se regenerará. Veja o título da casa que dirijo: “Reformatório”.
Ele se reformará.
E a outra pergunta nossa, sorriu: — Fugir? Não é fácil
fugir do Reformatório. Posso lhe garantir que não o fará.
Professor, à noite, leu a notícia para todos. Sem-Pernas disse.
— Ele já tá no reformatório. Eu vi quando saiu da
polícia.
— E ela no orfanato… — completou João Grande.
— A gente livra eles — afirmou Professor. Depois virou-se para o Sem-Pernas.
– Até Pedro Bala chegar tu fica como chefe, Sem-Pernas.
João Grande estendeu os braços para os outros, falou: — Gentes,
até Bala voltar Sem-Pernas é o chefe…
Sem-Pernas disse: — Ele ficou pra livrar a gente. É preciso que
a gente livre ele. Não direito? Todos estavam decididos.
Quando o levaram para aquela sala Pedro Bala calculava o que o esperava.
Não veio nenhum guarda. Vieram dois soldados de polícia, um
investigador, o diretor do reformatório. Fecharam a sala. O investigador
disse numa voz risonha:
— Agora os jornalistas já foram, moleque. Tu agora vai dizer que
sabe queira ou não queira.
O diretor do reformatório riu: — Ora, se diz…
O investigador perguntou: — Onde é que voc8s dormem? Pedro Bala
o olhou com ódio: — Se tá pensando que eu vou dizer…
— Se vai…
— Pode esperar deitado.
Virou as costas. O investigador fez um sinal para os soldados. Pedro Bala
sentiu duas chicotadas de uma vez. E o pé do investigador na sua cara.
Rolou no chão, xingando.
— Ainda não vai dizer? — perguntou o diretor do reformatório.
— Isso é só o começo.
— Não foi tudo o que Pedro Bala disse.
Agora davam-lhe de todos os lados. Chibatadas, socos pontapés. O
diretor do reformatório levantou-se, sentou-lhe o pé Pedro Bala
caiu do outro lado da sala.
Nem se levantou. Os soldados vibraram os chicotes. Ele via João Grande,
Professor, Volta Seca, Sem-Pernas, o Gato. Todos dependiam dele. A segurança
de todos dependia da coragem dele. Ele era o chefe, não podia trair.
Lembrou-se da cena da tarde.
Conseguira dar fuga aos outros, apesar de estar preso também. O orgulho
encheu seu peito. Não falaria, fugiria do reformatório, libertaria
Dora. E se vingaria… Se vingaria…
Grita de dor. Mas não sai uma palavra dos seus lábios. Vai
te fazendo noite para ele. Agora já não sente dores,já
não sente nada. No entanto, os soldados ainda o surram, o investigador
o soqueia. Mas e não sente mais nada.
— Desmaiou — diz o investigador.
— Deixe ele por minha conta — explica o diretor do reformatório.
— Eu levo ele pro reformatório, lá ele abre a boca. Garanto.
E eu dou o aviso a vocês.
O investigador assentiu. Com a promessa de no dia seguinte mandar buscar
Pedro Bala, o diretor retirou-se.
Na madrugada, quando Pedro acordou, os presos cantavam. Era uma moda triste.
Falava do sol que havia nas ruas, em quanto é grande e bela a liberdade.
O bedel Ranulfo, que o tinha ido buscar na polícia, o levou à
presença do diretor.
Pedro Bala sentia o corpo todo doer das pancadas do dia anterior. Mas ia
satisfeito, porque nada tinha dito, porque não revelara o lugar onde
os Capitães da Areia viviam. Lembram-se da canção que
os presos cantavam na madrugada que nascia. Dizia que a liberdade é
o bem maior do mundo. Que nas ruas havia sol e luz e nas células havia
uma eterna escuridão porque ali a liberdade era desconhecida.
Liberdade.
João de Adão, que estava nas ruas, sob o sol, falava nela
também. Dizia que não era só por salários que
fizera aquelas greves nas docas e faria outras. Era pela liberdade que os
doqueiros tinham pouca. Pela liberdade o pai de Pedro Bala morrera.n Pela
liberdade — pensava Pedro — dos seus amigos, ele apanhara uma surra na polícia.
Agora seu corpo estava mole e dolorido, seus ouvidos cheios da moda que os
presos cantavam. Lá fora, dizia a velha canção, é
o sol, a liberdade e a vida.
Pela janela Pedro Bala vt o sol. A estrada passa adiante dó grande
portão do reformatório. Aqui dentro é como se fosse uma
eterna escuridão. Lá fora é a liberdade e a vida. E a
vingança, pensa Pedro Bala.
O diretor entra. O bedel Ranulfo o cumprimenta e mostra Bala. O diretor
sorri, esfrega as mãos uma na outra, senta ante uma alta secretária.
Olha Pedro Bala uns minutos: — Afinal… Faz bastante tempo que espero este
pássaro, Ranulfo.
O bedel sorri aprovando as palavras do diretor.
— É o chefe dos tais de Capitães da Areia. Veja… O tipo
do criminoso nato. É verdade que você não leu Lombroso…
Mas se lesse, conheceria. Traz todos os estigmas do crime na face. Com esta
idade já tem uma cicatriz. Espie os olhos… Não pode ser tratado
como um qualquer. Vamos lhe dar honras especiais…
Pedro Bala o espia com os olhos injetados. Sente cansaço, uma vontade
doida de dormir. Bedel Ranulfo aventura uma pergunta: — Levo pra junto dos
outros? — O quê? Não. Para começar, meta-o na cafua.
Vamos ver se ele sai um pouco mais regenerado de lá…
O bedel cumprimenta e vai saindo com Pedro Bala. O diretor ainda recomenda:
— Regime número 3.
— Água e feijão… — murmura Ranulfo. Dá uma espiada
em Pedro Bala, balança a cabeça. — Vai sair bem mais magro.
Lá fora é a liberdade e o sol. A cadeia, os presos na cadeia,
a surra ensinaram a Pedro Bala que a liberdade é o bem maior do mundo.
Agora sabe que não foi apenas para que sua história fosse
contada no cais, no Mercado, na Porta do Mar, que seu pai morrera pela liberdade.
A liberdade é como o sol. É o bem maior do mundo.
Ouviu o bedel Ranulfo fechar o cadeado por fora. Fora atirado dentro da
cafua.
Era um pequeno quarto, por baixo da escada, onde não se podia estar
em pé, porque não havia altura, nem tampouco estar deitado ao
comprido, porque não havia comprimento. Ou ficava sentado, ou deitado
com as pernas voltadas para o corpo numa posição mais que incômoda.
Assim mesmo Pedro Bala se deitou. Seu corpo dava uma volta e seu primeiro
pensamento era que a cafua só servia para o homem-cobra que vira, certa
vez, no circo. Era totalmente cerrado o quarto, a escuridão era completa.
O ar entrava pelas frestas finas e raras dos degraus da escada. Pedro Bala,
deitado como estava, não podia fazer o menor movimento. Por todos os
lados as paredes o impediam. Seus membros doíam, ele tinha uma vontade
doida de esticar as pernas. Seu rosto estava cheio de equimoses das pancadas
na polícia, e desta vez Dora não estava ali para trazer um pano
frio e cuidar do seu rosto ferido. A liberdade era Dora também.
Não era só o sol, andar livre nas ruas, rir no cais a grande
gargalhada dos Capitães da Areia. Era também sentir junto a
si o cabelo loiro de Dora, ouvir ela contar coisas do morro, sentir os lábios
dela sobre os seus lábios feridos. Noiva.
Também ela estava sem liberdade. Os membros de Pedro Bala doem e
agora dói sua cabeça também. Dora está como ele,
sem sol, sem liberdade. Foi levada para um orfanato. Noiva. Antes que ela
aparecesse ele nunca pensara nesta palavra: noiva. Gostava de derrubar negrinhas
no areal. De encostar peito com peito, cabeça com cabeça, pernas
com pernas, sexo com sexo. Mas nunca pensara em deitar na areia ao lado de
uma menina, menina como ele, e conversar de coisas tolas e correr picula como
os outros meninos, sem a derrubar para fazer o amor. Era outra maneira do
amor, pensava numa confusão. Ele nunca tivera uma idéia perfeita
do amor. Que era ele, senão uma criança abandonada nas ruas,
que pela força e agilidade e coragem conseguira chefiar o grupo mais
valente de meninos abandonados, os Capitães da Areia? Que podia saber
de amor? Sempre pensara que o amor fosse o momento gostoso em que uma negrinha
ou uma mulata gemia sob seu corpo no areal do cais. Isto cedo aprendeu, quando
não tinha ainda 13 anos. Isto sabiam todos os Capitães da Areia,
mesmo os mais pequenos, aqueles que ainda não tinham forças
para derrubar uma cabrocha. Mas já o sabiam, e pensavam com alegria
no dia em que o fariam. Os membros e a cabeça de Pedro Bala doem. Tem
sede, ainda não bebeu nem comeu neste dia. Com Dora foi diferente.
Logo que ela chegou, tanto ele como todos os que estavam no trapiche pensaram
em a derrubar, em a possuir, em praticar com ela, que era bonita, o único
amor de que tinham notícia. Mas como era apenas uma menina, eles a
tinham respeitado. Depois ela foi como uma mãe para todos. E como uma
irmã também, João Grande dizia certo. Mas para ele desde
o primeiro momento fora diferente. Fora também uma companheira de brinquedos
como para os demais, irmã querida. Mas fora também uma alegria
diversa da que dá uma irmã. Noiva. Gostaria, sim. Mesmo quando
quer negar a si próprio não pode. É verdade que nada
faz para isso, que se contenta de conversar com ela, de ouvir a sua voz, pegar
timidamente na sua mão. Mas gostaria de possuí-la também,
de vê-la gemer de amor. Não, porém, por uma noite. Por
todas as noites de toda uma vida.
Como outros têm esposa, esposa que é mãe, irmã
e amiga. Ela era mãe, irmã e amiga dos Capitães da Areia.
Para Pedro Bala é noiva, um dia será esposa. Não a podem
ter num orfanato como uma menina sem ninguém. Ela tem um noivo, uma
legião de irmãos e de filhos de quem cuidar. O cansaço
desaparece dos membros de Pedro Bala. Ele precisa de movimento, de andar,
de correr, para poder conceber um plano para livrar Dora. Ali naquela escuridão
é que não pode. Fica inútil pensando que ela está
talvez numa cafua também. Senta-se como pode. Ratos correm na cafua.
Mas ele está por demais acostumado com os ratos, não liga. Mas
Dora terá medo deste ruído contínuo. É de enlouquecer
um que não seja o chefe dos Capitães Areia.
Quanto mais uma menina… É verdade que Dora é a menina valente
de quantas mulheres já nasceram na Bahia, que é a terra das
mulheres valentes. Mais valente mesmo que Rosa Palmeirão, que deu em
seis soldados, que Maria Cabaçu, que não respeitava cara, que
a companheira de Lampião, que maneja um fuzil igual a um cangaceiro.
Mais valente porque é apenas uma menina, apenas está começando
a viver.
Pedro Bala sorri com orgulho, apesar das dores, do cansaço, sede
que aos poucos o aperta.
Como seria bom um copo d’água! Diante do areal do trapiche é
o mar, um nunca acabar de água. Mar que o Querido-de-Deus, o grande
capoeirista, corta com seu saveiro para as pescarias nos mares do Sul. O Querido-de-Deus
é um bom sujeito. Se Pedro Bala não houvesse aprendido com ele
o jogo capoeira de Angola, a luta mais bonita do mundo, porque é também
uma dança, não teria podido dar fuga a João Grande, Gato
e Sem-Pernas. Agora ali, na cafua, sem poder se mexer, a capoeira não
vai lhe servir de nada. Gostaria era de beber água. Será que
Dora também tem sede a estas horas? Deve estar também numa cafua,
Pedro Bala imagina o orfanato igualzinho ao reformatório. A sede é
pior que uma cobra cascavel. Faz mais medo que a bexiga.
Porque vai apertando a garganta de um, vai fazendo os pensamentos confusos.
Um pouco de água. Um pouco de luz também. Porque se houver um
pouco de luz talvez ele veja o rosto de Dora risonho. Assim na escuridão
ele o vê cheio de sofrimento, cheio de dor. Uma raiva surda, impotente,
cresce dentro dele. Levanta-se um pouco, a cabeça encosta nos degraus
escada que lhe serve de teto. Esmurra a porta da cafua. Mas parece que lá
fora não tem ninguém que o ouça. Vê a cara malvada
do diretor. Enterrará seu punhal até o mais fundo do coração
do diretor. Sem que sua mão trema, sem remorsos, gozando. Seu punhal
ficou na polícia. Mas Volta Seca lhe dará o seu, ele tem uma
pistola.
Volta Seca quer ir para o bando de Lampião, que é seu padrinho.
Lampião mata soldado, mata homem ruim. Pedro Bala neste momento ama
Lampião como a um seu herói, a um seu vingador. É o braço
armado dos pobres no sertão. Um dia ele poderá ser do grupo
de Lampião também. E quem sabe se não poderiam invadir
a cidade da Bahia, abrir a cabeça do diretor do reformatório?
Que cara ele não faria quando visse Pedro Bala entrar no reformatório
na frente de uns cangaceiros… Soltaria a garrafa de pinga, presente de um
amigo de Santo Amaro, e Pedro Bala lhe abriria a cabeça. Não.
Antes o deixaria naquela mesma cafua, sem ter o que comer, sem ter o que beber.
Sede… A sede o maltrata. Faz com que ele veja na escuridão da parede
o rosto triste e doloroso de Dora. Aquela certeza de que ela está sofrendo…
Fecha os olhos. Procura pensar em Professor, Volta Seca, João Grande,
Gato, Sem-Pernas, Boa-Vida, todos os do trapiche salvando Dora. Mas não
pode. Mesmo de olhos fechados vê o rosto dela, amargurado pela sede.
Esmurra a porta novamente.
Grita, xinga nomes. Ninguém o atende, ninguém o vê,
ninguém o ouve. Assim deve ser o inferno. Pirulito tem razão
de ter medo do inferno. É por demais terrível.
Sofrer sede e escuridão. A canção dos presos dizia
que lá fora é a liberdade e o sol. E também a água,
os rios correndo muito alvos sobre pedras, as cascatas caindo, o grande mar
misterioso. Professor, que sabe muitas coisas, porque à noite lê
livros furtados, à luz de uma vela (está comendo os olhos…),
lhe disse certa vez que tem mais água no mundo que terra. Tinha lido
num livro. Mas nem um pingo de água na sua cafua. Na de Dora não
deve ter também. Para que esmurrar a porta como o faz neste momento?
Ninguém o atende, suas mãos já doem. Na véspera
o surraram na polícia. Suas costas estão negras, seu peito ferido,
o rosto inchado.
Por isso o diretor disse que ele tinha cara de criminoso. Não tem,
não. Ele quer é liberdade.
Um dia um velho disse que não se mudava o destino de ninguém.
João de Adão disse que se mudava, sim, ele acreditara em João
de Adão. Seu pai morrera para mudar o destino dos doqueiros. Quando
ele sair, irá ser doqueiro também, lutar pela liberdade, pelo
sol, por água e de comer para todos. Cospe um cuspe grosso. A sede
aperta sua garganta. Pirulito quer ser padre para fugir daquele inferno. Padre
José Pedro sabia que o reformatório era assim, falava contra
meterem os meninos lá. Mas que podia um pobre padre sem paróquia
contra todos? Porque todos odeiam os meninos pobres, pensa Pedro Bala. Quando
sair, pedirá à mãe-de-santo Don’Aninha que faça
um feitiço forte para matar o diretor. Ela tem força com Ogum,
e ele uma vez tirara Ogum da polícia. Fizera muita coisa para a sua
idade.
Dora também fizera muita coisa naqueles meses entre eles. Agora passavam
sede, Pedro Bala esmurra inutilmente uma porta. A sede o rói por dentro
como uma legião de ratos.
Cai enrodilhado no chão e o cansaço o vence. Apesar da sede,
dorme. Mas tem sonhos terríveis, ratos roem o rosto belo de Dora.
Acorda porque alguém bate pancadas leves num dos degraus da escada.
Levanta-se curvado, não pode ficar de pé direito, que a escada
não consente.
Pergunta em voz baixa: — Tem alguém aí? Uma alegria doida
o invade quando respondem: — Quem é que tá aí? — Pedro
Bala.
— Tu é o chefe dos Capitães da Areia? — Sou.
Ouve um assovio. A voz continua, agora rápida: — Tenho um recado
pra você, um trouxe hoje..
— Solta logo…
— Agora vem gente. Depois volto.
Pedro Bala ouve os passos que se afastam. Mas está mais alegre.
Pensa em seguida que o recado é de Dora, mas vê que é
uma tolice pensar isso.
Como Dora havia de lhe enviar um recado? Deve ser um do grupo. Devem estar
tratando de tirá-lo dali. Mas primeiro é preciso que ele saia
da cafua. Enquanto ele estiver ali, os Capitães da Areia não
poderão fazer nada. Depois que ele estiver andando no reformatório
todo, aí a fuga será fácil. Pedro Bala senta-se para
pensar. Que hora serão, que dia será? Ali é sempre noite,
nunca brilha a luz do so1. Espera impaciente que o seu informante volte. Porém
este demora ele se agita. Que estarão fazendo os outros sem ele? Professor
conceberá algum plano para o tirarem dali.
Mas enquanto ele estive ((99p. 197) na cafua é inútil. E enquanto
não o tirarem, ele não poderá tirar Dora do orfanato.
Abrem a porta. Pedro Bala se atira para a frente, pensando que o vão
soltar. Uma mão o empurra: — Ei, calma…
Vê o bedel Ranulfo na porta. Traz um caneco com água, que Pedro
Bala arranca das suas mãos e bebe em grandes goles. Mas é tão
pouca… Não chega para matar a sede.
O bedel lhe entrega um prato de barro com uma água onde bóiam
alguns caroços de feijão. Pedro Bala pede: — Pode me dar um
pouco mais de água? — Amanhã… — ri o bedel.
— Só um pouco mais.
— Amanhã tem mais. E se você continuar a bater na porta e
gritar em vez de 8 passa 15 dias — empurra a porta na cara de Pedro Bala.
Ouve a chave que o tranca. Tateia na escuridão até encontrar
o prato. Bebe a água escura do feijão. Nem repara que é
salgadíssima. Depois come os grãos duros.
Mas a sede o ataca novamente. O feijão muito salgado ativa a sede.
O que é um caneco de água para aquela sede que exigia uma moringa?
Deita. Já não pensa em nada.
Passam-se horas. Ele apenas vê na escuridão o rosto triste
de Dora. E sente dores no corpo todo.
Muito mais tarde ouve novamente baterem na escada. Pergunta: — Tá
aí? — Um capenga mandou dizer que vão te tirar daqui. Logo
que tu saia da cafua…
— Já é de noite? — pergunta Pedro.
— Tá começando…
— Tou morto de sede.
A voz não responde. Pedro pensa com desespero que é capaz
do menino ter ido embora. No entanto, ele não ouviu passos na escada…
Mas volta a voz: — Água não posso. Não tem como passar.
Mas quer um cigarro? — Quero, sim.
— Então espera.
Minutos depois as pancadas soam muito de leve na porta. A vi por debaixo
da porta: — Vou passar o cigarro por aqui. Ponha as mãos embaixo,
bem no meio da greta da porta.
Pedro Bala faz o que lhe mandam. Um cigarro amassado chega às suas
mãos.
Ele acaba de o retirar de sob a porta. Logo depois é um fósforo
que vem sobre um pedaço de caixa, o pedaço onde se risca.
— Obrigado diz Pedro Bala.
Mas neste momento ouve um barulho lá fora. O som de uma bofetada,
um corpo que rola. E uma voz que ele não conhece fala: — Se tentar
se comunicar com os de fora, seu castigo será aumentado.
Pedro se encolhe. Agora um vai sofrer castigo por causa dele. Quando fugir,
levará aquele para os Capitães da Areia. Para o sol e liberdade.
Acende o cigarro.
Com muito cuidado para não perder fósforo que é o único.
Esconde a brasa do cigarro sob a mão para que ninguém o possa
ver pelas frestas da escada. O silêncio o envolve de novo, e com o silêncio
os pensamentos, as visões.
Quando termina de fumar, se enrodilha no chão. Se pudesse dormir…
Pelo menos não veria o rosto cheio de sofrimento de Dora.
Quantas horas? Quantos dias? A escuridão é sempre a mesma,
a sede é sempre igual. Já lhe trouxeram água e feijão
três vezes. Aprendeu a não beber caldo de feijão, que
aumenta a sede. Agora está muito mais fraco, um desânimo no corpo
todo. O barril onde defeca exala um cheiro horrível. Não o retiraram
ainda. E sua barriga dói, sofre horrores para defecar. É como
se as tripas fossem sair. As pernas não o ajudam. O que o mantém
em pé é o ódio que enche seu coração.
— Filhos da mãe… Desgraçados…
É tudo quanto consegue dizer. Assim mesmo, em voz baixa. Já
não tem forças para gritar, para esmurrar a porta. Agora está
certo de que morrerá ali.
Cada vez sofre maiores dores para defecar. Vê Dora estendida no chão,
morrendo de sede, chamando por ele. João Grande está do lado
dela, mas separado por grades. Professor e Pirulito choram.
Trouxeram-lhe água e feijão pela quarta vez. Ele bebe a água,
mas demora a comer o feijão. Só sabe dizer em voz baixa: —
Filhos da mãe… Filhos da mãe…
Antes que a comida (se poderia chamar aquilo de comida?) chegasse naquele
dia (para Pedro era sempre noite), a voz voltou a chamá-lo na escada.
Ele perguntou, sem se levantar sequer: — Quantos dias já tem que tou
aqui? — Cinco.
— Me dá outro cigarro.
O cigarro o reanima um pouco. Pode pensar que com mais cinco dias morrerá.
Aquilo é castigo para um homem, não para um menino. O ódio
não cresce mais em seu coração.
Já atingiu o máximo.
É sempre noite. Dora morre lentamente ante suas vistas. João
Grande ao seu lado, as grades separando. Professor e Pirulito choram. Ele
dorme ou está acordado? A barriga dói violentamente.
Quanto tempo durará ainda a escuridão? E a agonia de Dora?
O cheiro do barril é insuportável. Dora agoniza ante seus olhos.
Será que ele agoniza também? A cara do diretor aparece ao lado
do rosto de Dora. Vem torturar sua agonia ainda mais? Quanto tempo ela leva
para morrer… Pedro Bala pede que ela morra logo, logo… Será melhor.
Agora o direto veio, veio para aumentar a tortura. Ouve a voz dele: — Levanta…
— e um pé o toca.
Abre mais os olhos. Agora não vê mais Dora. Só a cara
do diretor que sorri: — Vamos ver se agora fica mais manso.
Não pode fitar a claridade que entra pelas janelas. Mal se agüenta
nas pernas.
Cai no meio do corredor. Dora teria morrido ou não? — pensa ao cair.
Está novamente na sala do diretor. Este o olha sorridente: — Gostou
do apartamento? Continua com muita vontade de roubar? Eu sei ensinar, quebrar
moleque aqui.
Pedro Bala está irreconhecível de tão magro. Os ossos
aparecem junto à pele. O rosto, verdoso da complicação
intestinal. O bedel Fausto, dono daquela voz que ele ouvira certa vez na porta
da cafua, está ao seu lado. E um tipo forte, tem fama de ser tão
malvado quanto o diretor. Pergunta: — Na oficina de ferreiro? — Acho que
é melhor na plantação de cana. Lavrar terra… – ri.
Fausto diz que está bem, o diretor recomenda: — Olho nele. Este é
um pássaro ruim. Mas eu te ensino…
Pedro Bala sustenta seu olhar. O bedel o empurra.
Agora vê detidamente o casarão. No meio do pátio o cabeleireiro
raspa a sua cabeça a zero. Vê a cabeleira loira rolar no chão.
Dão-lhe umas calças e paletó de mescla azul. Veste-se
ali mesmo. O bedel leva o a uma oficina de ferreiro: — Tem um facão?
E uma foice? Entrega os objetos a Pedro Bala. Marcham para o canavial, onde
outros meninos trabalham. Neste dia, de tão fraco, Pedro Bala mal sustém
o facão. Por isso os bedéis o soqueiam. Ele nada diz.
À noite, na fila, olha para todos, querendo descobrir aquele que
lhe falava e dava cigarros. Sobem as escadas, andam para o dormitório,
que fica no terceiro andar para impedir qualquer idéia de fuga. A porta
é fechada. O bedel Fausto diz: — Graça, puxe a reza.
Um menino avermelhado faz o pelo-sinal. Todos repetem as palavras e os gestos.
Depois é um padre-nosso e uma ave-maria, ditas com voz forte apesar
do cansaço.
Pedro se joga na cama. Uma coberta suja o espera. Mudam a roupa de cama
de 15 em 15 dias. E a roupa de cama é apenas uma coberta e uma fronha
para um travesseiro de pedra.
Já está dormindo quando alguém toca no seu ombro.
— Tu que é Pedro Bala, não é? — Sim.
— Fui eu que trouxe o recado.
Pedro olha o mulato que está a seu lado. Pode ter dez anos: — Eles
têm voltado? — Todo santo dia. Só quer saber quando tu sai da
cafua.
— Diz que eu tou no canavial…
— Tu não quer comer um sacana hoje? Tem uns aqui, a gente de noite…
Tou morto de sono… Quanto tempo levei? — Oito dias. Já morreu
um ali.
O menino vai embora. Pedro nem perguntou seu nome. Tudo o que quer é
dormir. Mas os que andam para as camas dos pederastas fazem ruído.
O bedel Fausto sai do seu quarto de tabiques: — Que barulho é esse?
Silêncio. Ele bate as mãos: — Todos de pé.
Fita a todos: — Ninguém sabe? Silêncio. O bedel esfrega os
olhos, anda entre as camas. Um enorme relógio dá dez horas na
parede.
— Ninguém diz? Silêncio. O bedel range os dentes: — Então
ficarão todos uma hora de pé… Até as onze. E o primeiro
que tentar deitar vai pra cafua. Agora está desocupada…
Uma voz de menino corta o silêncio: — Seu bedel…
É um pequeno, meio amarelento.
— Fale, Henrique.
— Eu sei…
Os olhos todos estão fitos nele. Fausto anima a delação:
— Diga o que sabe.
— Foi Jeremias, que ia pra cama de Berto fazer coisa feia.
— Seu Jeremias, seu Berto! Os dois saem das suas camas.
— De pé na porta. Até meia-noite. Os outros podem deitar
— olha mais uma vez a todos. Os castigados estão de pé na porta.
Quando o bedel se recolhe, Jeremias ameaça Henrique. Os outros comentam.
Pedro Bala dorme.
No refeitório, enquanto bebiam o café aguado e mastigavam
o bolachão duro, seu vizinho de mesa fala: — Tu é o chefe dos
Capitães da Areia? — sua voz é baixíssima.
— Sou, sim.
— Vi teu retrato no jornal… Tu é um macho! Mas te acabaram —
olha o rosto magro de Bala.
Mastiga o bolachão. Continua: — Tu vai ficar aqui? — Vou arribar…
— Eu também. Tenho um plano… Quando eu bater asa, posso ir pra
teu grupo? — Pode.
— Onde fica o buraco? Pedro Bala olha com desconfiança: — Tu encontra
a gente no Campo Grande toda tarde — Pensa que vou dizer? O bedel Campos
bate as mãos Todos se levantam. Dirigem-se para as diversas oficinas
ou para os terrenos cultivados.
Pelo meio da tarde Pedro Bala vê o Sem-Pernas que passa na estrada.
Vê também um bedel que o tange.
Castigos… Castigos… É a palavra que Pedro Bala mais ouve no reformatório.
Por qualquer coisa são espancados, por um nada são castigados.
O ódio se acumula dentro de todos eles.
No extremo do canavial passa um bilhete a Sem-Pernas. No outro dia encontra
a corda entre as moitas de cana. Com certeza a puseram durante a noite. É
um rolo de corda fina e resistente. Está novinha. No meio dela o punhal
que Pedro mete nas calças. A dificuldade é levar o rolo para
o dormitório. Fugir durante o dia é impossível, com a
vigilância dos bedéis. Não pode levar o rolo entre a roupa,
que notariam.
De repente surge uma briga. Jeremias se joga sobre o bedel Fausto com o
facão na mão. Outros meninos se atiram também, mas vem
um grupo de bedéis armados de chicotes.
Estão sujeitando Jeremias.
Pedro mete o rolo de corda debaixo do paletó, abre para o dormitório.
Um bedel vem descendo a escada com um revólver na mão. Pedro
se esconde atrás de uma porta.
O bedel vem rápido, passa.
Empurra a corda para baixo do colchão, volta para o canavial. Jeremias
foi levado para a cafua. Os bedéis agora juntam os meninos. Ranulfo
e Campos foram em perseguição de Agostinho, que pulou a cerca
na confusão da briga. O bedel Fausto, com um talho no ombro, foi para
a enfermaria. O diretor está entre eles, os olhos fuzilando de raiva.
Um bedel conta os meninos. Pergunta a Pedro Bala: — Onde estava metido? —
Saí pra não me meter no barulho.
O bedel o olha desconfiado, mas passa.
Voltam Ranulfo e Campos com Agostinho. O fujão é surrado na
vista de todos.
Depois o diretor diz: — Metam-no na cafua.
— Já está Jeremias — fala Ranulfo.
— Ficam os dois. Assim podem conversar…
Pedro Bala se arrepia. Como irão ficar dois na pequenez da cafua?
Nesta noite a vigilância é grande, ele não tenta nada.
Os meninos rangem os dentes de raiva.
Duas noites depois, quando o bedel Fausto já tinha se recolhido há
muito ao seu quarto de tabiques e quando todos dormiam, Pedro Bala se levantou,
tirou a corda de sob o colchão. Sua cama ficava junto a uma janela.
Abriu. Amarrou a corda num dos armadores de rede que existiam na parede. Deixou
que a corda caísse pela janela.
Era curta. Faltava ainda muito. Recolheu. Procurava fazer o menor barulho
possível, mas assim mesmo um dos seus vizinhos de cama acordou: —
Tu vai bater asa? A quele não tinha boa fama. Costumava delatar. Por
isso mesmo fora colocado ao lado de Pedro Bala. Bala puxou o punhal, mostrou
a ele.
— Olha, xereta, trata de dormir. Se tu piar, eu te abro a garganta, palavra
de Pedro Bala. E se tu disser alguma coisa depois que eu sair… Tu já
viu falar nos Capitães da Areia? — Já.
— Pois eles me vinga.
Põe o punhal ao alcance da mão. Recolhe completamente a corda,
amarra o lençol na ponta com um daqueles nós que o Querido-de-Deus
lhe ensinou.
Ameaça mais uma vez o menino, joga a corda, passa o corpo pela janela,
começa a descida. Ainda no meio ouve os gritos denunciadores do delator.
Se deixa escorregar pela corda, salta ao chão. O pulo é grande,
mas ele já salta correndo. Pula a cerca, após evitar os cachorros
policiais que estão soltos. Desaba pela estrada. Tem alguns minutos
de vantagem. O tempo dos bedéis se vestirem e saírem em sua
perseguição e soltarem os cachorros também. Pedro Bala
prende o punhal nos dentes, tira a roupa. Assim os cachorros não o
conhecerão pelo faro. E nu, na madrugada fria, inicia a carreira para
o sol, para a liberdade.
Professor lê a manchete do Jornal da Tarde: “O chefe dos ‘Capitães
da Areia’ consegue fugir do reformatório” Trazia uma longa entrevista
com o diretor furioso. Todo o trapiche ri. Até o padre José
Pedro, que está com eles, ri em gargalhadas, como se fosse um dos Capitães
da Areia.
Orfanato
Um mês de orfanato bastou para matar a alegria e a saúde de
Dora. Nascera no morro, infância em correrias no morro. Depois a liberdade
das ruas da cidade, a vida aventurosa dos Capitães da Areia. Não
era uma flor de estufa. Amava o sol, a rua, a liberdade.
Fizeram duas tranças do seu cabelo, amarraram com fitas. Fitas cor-de-rosa.
Deram-lhe um vestido de pano azul, um avental de um azul mais escuro. Faziam
com que ela ouvisse aulas junto com meninas de cinco e seis anos. A comida
era má, havia castigo também.
Ficar em jejum, perder os recreios. Veio uma febre, ela esteve na enfermaria.
Quando voltou estava macilenta. Tinha sempre febre, mas não dizia
nada, porque odiava o silêncio da enfermaria, onde o sol não
entrava e das as horas pareciam a hora agonizante do crepúsculo. Quando
podia, chegava perto das grades, porque por vezes divisava Professor ou João
Grande que rondavam por ali. Um dia lhe passaram um bilhete. Pedro Bala fugira
do reformatório. Viria tirá-la dali. Nem sentiu a febre em que
estava.
A visaram por intermédio de outro bilhete, que Professor escreveu
e lhe jogou, que ela arranjasse um meio de ir para a enfermaria. Mas nem foi
preciso, porque uma irmã notou o avermelhado das suas faces. Pôs
a mão no seu rosto: — Estás queimando de febre.
Era sempre crepúsculo na enfermaria. Era como uma ante-sala do túmulo,
com as pesadas cortinas que impediam a luz de entrar. O médico que
a vira balançara a cabeça com tristeza.
Mas a luz entrou com eles. Como Pedro Bala estava magro, pensou Dora ao
se pôr ao seu lado. João Grande, Gato, Professor, estavam com
ele. Professor mostrou a navalha à Irmã, que abafou um grito.
A menina que estava com catapora na outra cama tremia sob os lençóis.
Dora queimava de febre, mal podia estar de pé. A Irmã murmurou:
— Ela está muito doente…
Dora respondeu: — Eu vou, Pedro.
Saíram pela porta. Volta Seca tinha o grande cachorro preso pela
coleira. Tinham trazido um pedaço de carne. Gato abriu o portão.
Na rua disse: — Foi canja…
Professor avisou: — Vamos embora antes que alarmem.
Se atiraram por uma ladeira. Dora nem sentia a febre porque ia junto com
Pedro Bala, ele pegando na sua mão.
Volta Seca fechava a marcha, a mão no punhal, um sorriso no rosto
sombrio.
Noite de Grande Paz
Os Capitães da Areia olham mãezinha Dora, a irmãzinha
Dora, Dora noiva, Professor vê Dora, sua amada. Os Capitães da
Areia olham em silêncio. A mãede- santo Don’Aninha reza oração
forte para a febre que consome Dora desaparecer. Com um galho de sabugueiro
manda que a febre se vá. Os olhos febris de Dora sorriem.
Parece que a grande paz da noite da Bahia está também nos
seus olhos.
Os Capitães da Areia olham em silêncio sua mãe, irmã
e noiva.
Mal a recuperaram, a febre a derrubou. Onde está a alegria dela,
por que ela não corre picula com seus filhinhos menores, não
vai para a aventura das ruas com seus irmãos negros, brancos e mulatos?
Onde está a alegria dos olhos dela? Só uma grande paz, a grande
paz da noite. Porque Pedro Bala aperta sua mão com calor.
A paz da noite da Bahia não está no coração
dos Capitães da Areia. Tremem com receio de perder Dora. Mas a grande
paz da noite está nos olhos dela. Olhos que se fecham docemente, enquanto
a mãe-de-santo Aninha enxota a febre que a devora.
A paz da noite envolve o trapiche.
Dora, Esposa
O cachorro late a lua na areia. Sem-Pernas sai do trapiche, acompanha Don’Aninha
através do areal. Ela disse que a febre não tardaria a ir embora.
Pirulito sai também, vai chamar o padre José Pedro. Tem confiança
no padre, ele pode saber um remédio.
Dentro do trapiche os Capitães da Areia estão silenciosos.
Dora pediu que eles fossem dormir. Se deitaram pelo chão, mas são
raros os que dormem. Na paz imensa da noite pensam na febre que consome Dora.
Ela beijou Zé Fuinha, mandou que ele fosse dormir. Ele não compreende
bem. Sabe que ela está doente, mas não pensa um momento que
ela o poderá abandonar.
Mas os Capitães da Areia temem que isso aconteça. Então
ficarão novamente sem mãe, sem irmã, sem noiva.
Agora só João Grande e Pedro Bala estão a seu lado.
O negro sorri, mas Dora sabe que o sorriso dele é forçado, é
um sorriso para a animar, um sorriso arrancado à força da tristeza
que o negro sente.
Pedro Bala segura sua mão. Mais retirado, Professor está dobrado
sobre si mesmo, a cabeça enterrada nas mãos.
Dora diz: — Pedro? — Que é? — Chegue aqui.
Ele se aproxima. A voz dela é um fio de voz. Pedro fala com carinho:
— Tu quer alguma coisa? — Tu gosta de mim? — Tu bem sabe…
— Deita aqui.
Pedro deita ao seu lado. João Grande se afasta, chega para perto
de Professor.
Mas não conversam, ficam entregues à sua tristeza. No entanto
é uma noite de paz que envolve o trapiche. E a paz da noite está
também nos olhos doentes de Dora.
— Mais perto…
Ele se chega mais, os corpos estão juntos. Ela toma a mão
dele, leva ao seu peito. Arde de febre. A mão de Pedro está
sobre seu seio de menina. Ela faz com que ele a acaricie, diz: — Tu sabe
que já sou moça? A mão dele pousada nos seus seios, os
corpos juntos. Uma grande paz nos olhos dela: — Foi no orfanato… Agora
posso ser tua mulher.
Ele a olha espantado: — Não, que tu tá doente…
— Antes de eu morrer. Vem…
— Tu não vai morrer.
— Se tu vier, não.
Se abraçam. O desejo é abrupto e terrível. Pedro não
a quer magoar, mas ela não mostra sinais de dor. Uma grande paz em
todo seu ser.
— Tu é minha agora fala ele com voz agitada.
Ela parecia não sentir a dor da posse. Seu rosto acendido pela febre
se enche de alegria. Agora a paz é só da noite, com Dora está
a alegria. Os corpos se desunem.
Dora murmura: — É bom… Sou tua mulher.
Ele a beija. A paz voltou ao rosto dela. Fita Pedro Bala com amor.
— Agora vou dormir — diz.
Deita ao lado dela, segura sua mão ardente. Esposa.
A paz da noite envolve os esposos. O amor é sempre doce e bom, mesmo
quando a morte está próxima. Os corpos não se balançam
mais no ritmo do amor.
Mas nos corações dos dois meninos não há mais
nenhum medo. Somente paz, a paz da noite da Bahia.
Na madrugada, Pedro põe a mão na testa de Dora. Fria. Não
tem mais pulso, o coração não bate mais. O seu grito
atravessa o trapiche, desperta os meninos.
João Grande a olha de olhos abertos. Diz a Pedro Bala: — Tu não
devia ter feito…
— Foi ela que quis — explica e sai para não rebentar em soluços.
Professor se chega, fica olhando. Não tem coragem de tocar no corpo
dela. Mas sente que para ele a vida do trapiche acabou, não lhe resta
mais nada que fazer ali.
Pirulito entra com o padre José Pedro. O padre pega no pulso de Dora,
bota a mão na testa: — Está morta.
Inicia uma oração. E quase todos rezam em voz alta.
— Padre nosso que estais no céu…
Pedro Bala se lembra das rezas à noite no reformatório. Seus
ombros se encolhem, tapa os ouvidos. Volta-se, vê o corpo de Dora. Pirulito
pôs uma flor roxa entre seus dedos. Pedro Bala rompe em soluços.
Veio a mãe-de-santo Don’Aninha, veio também o Querido-de-Deus.
Pedro Bala não toma parte da conversa. Aninha diz: — Foi como uma
sombra nesta vida. Vira santa na outra Zumbi dos Palmares é santo dos
candomblés de caboclo, Rosa Palmeirão também. Os homens
e as mulheres valentes viram santo dos negros…
— Foi como uma sombra… — repete João Grande.
Foi como uma sombra para todos, um acontecimento sem explicação.
Menos para Pedro Bala, que a teve. Menos para Professor que a amou.
Padre José Pedro fala — Vai pro céu, não tinha pecado.
Não sabia o que era pecado…
Pirulito reza. Querido-de-Deus sabe o que esperam dele. Que leve o cadáver
no seu saveiro e o jogue no mar, adiante do forte velho. Como poderá
sair um enterro do trapiche? É difícil explicar tudo isso ao
padre José Pedro. O Sem-Pernas o faz numa voz apressada. O padre a
princípio se horroriza. É um pecado, ele não pode consentir
num pecado. Mas consente, que não vai denunciar onde moram os Capitães
da Areia. Pedro Bala não fala.
Em torno é a paz da noite. Nos olhos mortos de Dora, olhos de mãe,
de irmã, de noiva e de esposa, há uma grande paz. Alguns meninos
choram. Volta Seca e João Grande vão levar o corpo. Mas, parado
ante ele, está Pedro Bala, imóvel. Volta Seca não pode
estende as mãos. João Grande chora como uma mulher. Don’Aninha
toma do braço de Pedro, tira-o dali e envolve o corpo de Dora numa
toalha branca de rendas: — Vai para Yemanjá — diz. — Ela também
vira santo…
Mas ninguém pode levar o cadáver. Porque Pedro Bala está
abraçado com ele, não o larga. Professor o chama: — Deixa.
Eu também gostava dela. Agora…
Levam-na para a paz da noite, para o mistério do mar. O padre reza,
é uma estranha procissão que se dirige na noite para o saveiro
do Querido-de-Deus. Do areal, Pedro Bala vê o saveiro que se afasta.
Morde as mãos, estende os braços.
Voltam para o trapiche. A vela branca do saveiro se perde no mar. A lua
ilumina o areal, as estrelas tanto estão no céu como no mar.
Há uma paz na noite. Paz que veio dos olhos de Dora.
Como uma estrela de loira cabeleira
Contam no cais da Bahia que quando morre um homem valente vira estrela no
céu. Assim foi com Zumbi, com Lucas da Feira, com Besouro, todos os
negros valentes.
Mas nunca se viu um caso de uma mulher, por mais valente que fosse, virar
estrela depois de morta.
Algumas, como Rosa Palmeirão, como Maria Cabaçu, viraram santas
nos candomblés de caboclo. Nunca nenhuma virou estrela.
Pedro Bala se joga n’água. Não pode ficar no trapiche, entre
os soluços e as lamentações. Quer acompanhar Dora, quer
ir com ela, se reunir a ela nas Terras do Sem Fim de Yemanjá. Nada
para diante sempre. Segue a rota do saveiro do Querido-de-Deus. Nada, nada
sempre. Vê Dora em sua frente, Dora, sua esposa, os braços estendidos
para ele. Nada até já não ter forças. Bóia
então, os olhos voltados para as estrelas e a grande lua amarela do
céu. Que importa morrer quando se vai em busca da amada, quando o amor
nos espera? Que importa tampouco que os astrônomos afirmem que foi um
cometa que passou sobre a Bahia naquela noite? O que Pedro Bala viu foi Dora
feita estrela, indo para o céu. Fora mais valente que todas mulheres,
mais valente que Rosa Palmeirão, que Maria Cabaçu. Tão
valente que antes de morrer, mesmo sendo uma menina, se dera ao seu amor.
Por isso virou uma estrela no céu. Uma estrela de longa cabeleira loira,
uma estrela como nunca tivera nenhuma na noite de paz da Bahia.
A felicidade ilumina o rosto de Pedro Bala. Para ele veio também
a paz da noite.
Porque agora sabe que ela brilhará para ele entre mil estrelas no
céu sem igual da cidade negra.
O saveiro do Querido-de-Deus o recolhe.
Canção da Bahia, canção da liberdade
Vocações
Não havia passado muito tempo sobre a morte de Dora, a imagem da sua
presença tão rápida e no entanto tão marcante,
da sua morte também, ainda enchia de visões as noites do trapiche.
Alguns, quando entravam, todavia, olhavam para o canto onde ela costumava
sentar ao lado do Professor e de João Grande. Ainda com a esperança
de encontrá-la. Fora um acontecimento sem explicação.
Fora o totalmente inesperado na vida deles, o aparecimento de u’a mãe,
de uma irmã. Motivo por que eles ainda a procuravam, apesar de terem
visto o Querido-de-Deus a levar no seu saveiro para o fundo do mar. Só
Pedro Bala não a procurava no trapiche. Procurava ver, no céu
de tanta estrela, uma que tivesse longa e loira cabeleira.
Um dia Professor entrou no trapiche e não acendeu sua vela, não
abriu um livro de histórias, não conversou. Para ele toda aquela
vida tinha acabado desde que Dora fora levada pela febre. Quando ela viera,
enchera o trapiche com sua presença.
Para Professor tudo tinha uma nova significação. O trapiche
ficara como a moldura de um quadro: ora os cabelos loiros caindo sobre Gato,
que via sua mãe, ora os lábios que beijavam Zé Fuinha
para ele dormir. Ou a boca que cantava cantigas de ninar.
Também sorrisos de orgulho para a coragem de Volta Seca, como se
fosse uma destemida mulata sertaneja. Ou a entrada no trapiche, os cabelos
voando, o rosto todo rindo, de volta da aventura do dia nas ruas da cidade.
Ou os olhos cheios de amor, a febre queimando seu rosto, as mãos chamando
o amado para a posse primeira e última. Agora Professor olhava o trapiche
como para uma moldura sem quadro.
Inútil. Para ele deixara de ter significação, ou tinha
uma significação terrível demais. Mudara muito naqueles
meses após a morte de Dora, andava calado, o rosto sério, e
entrara em relações com aquele senhor que certa vez, num passeio
da rua Chile, conversara com ele, lhe dera uma piteira e seu endereço.
Nesta noite Professor não acendeu vela, não abriu livro de
história. Ficou calado quando João Grande veio para seu lado.
Arrumava suas coisas numa trouxa.
Quase tudo era livro. João Grande olhava sem dizer nada, mas compreendia
muito, se bem todos dissessem que não havia negro mais burro que o
negrinho João Grande. Mas quando Pedro Bala chegou e sentou também
a seu lado e lhe ofereceu um cigarro, Professor falou: — Vou embora, Bala…
— Pra onde, mano? Professor olhou o trapiche, os meninos que andavam, que
riam, que se moviam como sombras entre os ratos: — Que adianta a vida da
gente? Só pancada na polícia quando pegam a gente.
Todo mundo diz que um dia pode mudar… Padre José Pedro, João
de Adão, tu mesmo. Agora vou mudar a minha…
Pedro Bala não disse nada, mas a pergunta estava nos seus olhos.
João Grande não perguntava nada, compreendia tudo.
— Vou estudar com um pintor do Rio. Dr. Dantas, aquele da piteira, escreveu
a ele, mandou uns desenhos meus. Ele mandou dizer que me mandasse… Um dia
vou mostrar como é a vida da gente… Faço o retrato de todo
mundo… Tu falou uma vez, lembra? Pois faço…
A voz de Pedro Bala o animou: — Tu também vai ajudar a mudar a vida
da gente…
— Como? — fez João Grande.
Professor também não entendeu. Tampouco Pedro Bala sabia explicar.
Mas tinha confiança no Professor, nos quadros que ele faria na marca
do ódio que ele levava no coração, na marca de amor à
justiça e à liberdade que ele levava dentro de si.
Não se vive inutilmente uma infância entre os Capitães
da Areia. Mesmo quando depois se vai se um artista e não um ladrão,
assassino ou malandro. Mas Pedro Bala não sabia explicar tudo isso.
Apenas disse:
— A gente nunca te esquece, mano… Tu lia história para gente, era
o mais batuta da gente… O mais batuta…
Professor baixou a cabeça. João Grande se levantou, sua voz
era um chamado, era um grito de despedida também: — Gentes! Gentes!
Vieram todos, ficaram em torno. João Grande estendeu os braços:
— Gentes, Professor vai embora. Vai ser um pintor no Rio de Janeiro. Gentes,
viva Professor! O viva apertou o coração do menino. Olhou para
o trapiche. Não era como um quadro sem moldura. Era como a moldura
de inúmeros quadros. Como quadros de uma fita de cinema. Vidas de luta
e de coragem. De miséria também. Uma vontade de ficar. Mas que
adiantava ficar? Se fosse, poderia ser de melhor ajuda. Mostraria aquelas
vidas… Apertam sua mão, o abraçam. Volta Seca está
triste, tão triste como se tivesse morrido um cangaceiro do grupo de
Lampião.
Na noite do cais o homem da piteira, que era um poeta, entrega uma carta
e dinheiro a Professor: — Ele o esperará no cais. Telegrafei. Espero
que você não traia a confiança que depositei no seu talento.
Nunca um passageiro de terceira teve tanta gente na sua despedida. Volta
Seca lhe dá um punhal de presente. Pedro Bala faz tudo para rir, para
dizer coisas gozadas.
Mas João Grande não esconde a tristeza que vai dentro dele.
Professor ainda de longe vê o boné de Pedro, que se sacode
no cais. E no meio daqueles homens desconhecidos, oficiais fardados, comerciantes
e senhoritas, fica tímido, não sabe que fazer, sente que toda
a sua coragem ficou com os Capitães da Areia. Mas dentro do seu peito
vem uma marca de amor à liberdade. Marca que o faria abandonar o velho
pintor que lhe ensina coisas acadêmicas para ir pintar por sua conta
quadros que, antes de admirar, espantam todo o país.
Passou o inverno, passou o verão, veio outro inverno, e este cheio
de longas chuvas, o vento não deixou de correr uma só noite
areal. Agora Pirulito vendia jornais, fazia trabalhos de engraxate, carregava
bagagens dos viajantes. Conseguira deixar de furtar para viver. Pedro Bata
consentira que ele continuasse no trapiche, apesar que ele não levava
a mesma vida que os outros. Pedro Bala não entende o que vai dentro
de Pirulito. Sabe que ele quer ser padre, que quer fugir daquela vida.
Mas acha que aquilo não resolverá nada, não endireitará
nada na vida de todos eles. O padre José Pedro fazia tudo para mudar
a vida deles. Mas era um só, os outros não achavam que ele fizesse
bem. Que tinha adiantado? Só todos unidos, como dizia João de
Adão.
Mas Deus chamava Pirulito. Nas noites do trapiche o menino ouvia o chamado
de Deus. Era uma voz poderosa dentro dele. Uma voz poderosa como a voz do
mar, como a voz do vento que corre em torno ao casarão. Uma voz que
não fala aos seus ouvidos, que fala seu coração. Uma
voz que o chama, que o alegra e o amedronta mesmo tempo. Uma voz que exige
tudo dele para lhe dar a felicidade a servir. Deus o chama. E o chamado de
Deus dentro de Pirulito é poderoso como a voz do vento, como a voz
potente do mar. Pirulito quer viver para Deus, inteiramente para Deus, uma
vida de recolhimento e de penitência, uma vida que o limpe dos pecados,
que o torne digno da contemplação de Deus. Deus o chama e Pirulito
pensa na sua salvação.
Será um penitente, não olhará mais o espetáculo
do mundo. Não quer ver nada do que se passa no mundo para ter os olhos
suficientemente limpos para poderem ver a face de Deus. Porque para aqueles
que não têm os olhos completamente limpos de todo pecado, a face
de Deus é terrível como o mar enfurecido. Mas para que têm
os olhos e o coração limpos de todo o pecado, a face de Deus
é mansa como as ondas do mar numa manhã de sol e de bonança.
Pirulito está marcado por Deus. Mas está marcado também
pela vida dos Capitães da Areia. Desiste da sua liberdade, de ver e
ouvir o espetáculo do mundo, da marca de aventura dos Capitães
da Areia, para ouvir o chamado de Deus. Porque a voz de Deus que fala no seu
coração é tão poderosa que não tem comparação.
Rezará pelos Capitães da Areia na sua cela de penitente. Porque
tem que ouvir e seguir a voz que o chama. É uma voz que transfigura
seu rosto na noite invernosa do trapiche.
Como se lá fora fosse a primavera.
Padre José Pedro foi chamado novamente ao arcebispado. Desta vez
o Cônego está acompanhado do superior dos Capuchinhos. Padre
José Pedro treme, pensando que novamente vão lhe ralhar, vão
falar dos seus pecados. Fez uma coisa contra as leis para ajudar os Capitães
da Areia. Teme ter fracassado, porque em quase nada conseguira melhorar a
vida deles. Mas em certos momentos cruéis levara um pouco de conforto
àqueles pequenos corações. E tinha Pirulito… Era uma
conquista para Deus. Se não fizera tudo, se não transformara
como queria aquelas vidas, não tinha perdido tudo também. Algo
havia conseguido para Deus. Se alegrava, apesar da tristeza do pouco que havia
conseguido para os Capitães da Areia. Assim mesmo, em certos momentos
fora como a família que lhes faltava. Certas horas tinha sido pai e
mãe. Agora os chefes estavam já rapazes, quase homens. Professor
já tinha ido embora, outros não tardariam a ir. Mesmo que fossem
ser ladrões, levar uma vida de pecado, em certos momentos o padre conseguira
minorar o espetáculo de miséria das suas vidas com um pouco
de conforto e de carinho. E de solidariedade.
Mas desta vez o Cônego não ralha. Anuncia que o arcebispado
resolveu lhe dar uma paróquia. Conclui: — O senhor nos deu muito que
fazer, padre, com suas idéias erradas acerca de educação.
Espero que a bondade do Sr. Arcebispo lhe dando esta paróquia fará
com que o senhor pense nas suas obrigações e desista dessas
inovações soviéticas.
A paróquia nunca tivera cura porque o arcebispo nunca encontrara
um padre que se dispusesse a ir para o meio dos cangaceiros, numa perdida
vila do alto sertão.
Mas o nome do lugarejo alegrou o coração do padre José
Pedro. Ia para o meio dos cangaceiros. E os cangaceiros são como crianças
grandes. Agradeceu, ia falar, mas o superior dos Capuchinhos o interrompeu:
— O Sr. Cônego me disse que entre estes meninos há um que tem
vocação sacerdotal.
— Ia falar disso mesmo disse o padre. — Nunca vi uma vocação
tão decidida.
O missionário sorriu: — Porque nós estamos em falta de um
irmão. Não é o mesmo que ser padre, bem sei. Mas está
muito próximo. E se a sua vocação verdadeira a ordem
pode fazê-lo estudar e mesmo se ordenar.
— Ele vai ficar louco de alegria.
— O senhor responde por ele? Pirulito irá ser frade. Um dia talvez
se ordene. O padre sai agradecendo a Deus.
Levam o padre à estação. O apito do trem é como
um lamento. Estão ali vários dos Capitães da Areia. Padre
José Pedro os fita com amor. Pedro Bala diz: — O senhor foi bom pra
gente, padre. Um homem bom. A gente não vai esquecer o senhor…
Não reconhecem Pirulito quando ele chega vestido com uma batina de
frade, um longo cordão pendendo ao lado. Padre José Pedro diz:
— Conhecem o irmão Francisco da Sagrada Família? Eles olham
Pirulito com certa vergonha. Mas Pirulito sorri. Está mais magro, um
ar de asceta. Com o hábito de capuchinho fica muito alto.
— Ele rezará por vocês… — diz o padre José Pedro.
Se despede. Entra para o vagão. O trem apita, é como uma despedida.
Da janela, o padre vê os meninos que agitam mãos e bonés,
velhos chapéus, trapos que servem de lenço. Uma velha que vai
defronte dele, doidinha para puxar conversa, se espanta do padre chorando.
Boa-Vida pouco aparece no trapiche. Tem um violão, faz sambas, está
enorme, mais um malandro nas ruas da Bahia. Ninguém tem uma vida igual
à dos malandros. Passa o dia conversando nas docas, no mercado, vai
às festas dos morros e da Cidade de Palha à noite, ou às
macumbas. Toca seu violão, come e bebe do melhor, apaixona as cabrochas
bonitas com sua voz e sua música. Arma fuzuê nas festas e quando
a polícia o persegue vem se esconder no trapiche entre os Capitães
da Areia.
Então toca para eles, ri com eles em gargalhadas como se ainda fosse
um deles.
Boa-Vida vai se afastando aos poucos, à proporção que
vai crescendo. Quando tiver dezenove anos já não voltará.
Será um malandro completo, um daqueles mulatos que amam a Bahia acima
de tudo, que fazem uma vida perfeita nas ruas da cidade. Inimigo da riqueza
e do trabalho, amigo das festas, da música, do corpo das cabrochas.
Malandro. Armador de fuzuês. Jogador de capoeira navalhista, ladrão
quando se fizer preciso. De bom coração, como canta um ABC que
Boa-Vida faz acerca de outro malandro. Prometendo às cabrochas se regenerar
e ir para o trabalho, sendo malandro sempre.
Um dos valentões da cidade. Figura que os futuros Capitães
da Areia amarão e admirarão, como Boa-Vida amou e admirou o
Querido-de-Deus.
Um dia, passado muito tempo, Pedro Bala ia com o Sem-Pernas pelas ruas.
Entraram numa igreja da Piedade, gostavam de ver as coisas de ouro, mesmo
era fácil bater uma bolsa de uma senhora que rezasse. Mas não
havia nenhuma senhora na igreja àquela hora. Somente um grupo de meninos
pobres e um capuchinho que lhes ensinava catecismo.
— É Pirulito… — disse Sem-Pernas.
Pedro Bala ficou olhando. Encolheu os ombros: — Que adianta? Sem-Pernas
olhou: — Não dá de comer…
— Um dia um vai ser padre também. Tem que ser é tudo junto.
Sem-Pernas disse: — A bondade não basta.
Completou:
— Só o ódio…
Pirulito não os via. Com uma paciência e uma bondade extremas
ensinava às crianças buliçosas as lições
de catecismo. Os dois Capitães da Areia saíram balançando
a cabeça. Pedro Bala botou a mão no ombro do Sem-Pernas.
— Nem o ódio, nem a bondade. Só a luta.
A voz bondosa de Pirulito atravessa a igreja. A voz de ódio do Sem-Pernas
estava junto de Pedro Bala. Mas ele não ouvia nenhuma. Ouvia era a
voz de João de Adão, o doqueiro, a voz de seu pai morrendo na
luta.
Canção de amor da vitalina
Gato contou que a solteirona era cheia do dinheiro. Era a última de
uma família rica, andava pelos quarenta e cinco anos, feia e nervosa.
Corna a notícia de que tinha uma sala cheia de coisas de ouro, de brilhantes
e jóias acumuladas pela família através de gerações.
Pedro Bala pensou que era uma coisa capaz de dar um bocado de dinheiro. Gonzales,
o dono da casa de penhor O 14, dava dinheiro por aqueles objetos. Perguntou
ao Sem-Pernas: — Tu é capaz de penetrar? — Se sou…
— Depois a gente invade.
Riram no trapiche. Gato saiu para ver Dalva. Sem-Pernas avisou: — Amanhã
de manhã vou lá.
A solteirona abriu a porta. Só tinha uma criada, uma negra velha,
que parecia fazer parte da herança, pois acompanhava a família
há cinqüenta anos. A solteirona olhou muito digna para o Sem-Pernas:
— Quer alguma coisa? — Eu sou um pobre ódio e aleijado mostrava a
perna coxa. — Não quero viver furtando, nem pedindo esmola. A senhora
tem um trabalho para mim? Posso fazer compras.
A solteirona não tirava os olhos dele. Um menino… Não era
a bondade que falava dentro dela. Era a voz do sexo que dava seus últimos
latidos. Dentro em pouco seu sexo ficaria inútil, os médicos
diziam que então o seu nervoso cessaria. Muito antes, quando ainda
era mocinha, houvera um menino na casa para fazer compras.
Fora bom… Mas seu irmão descobrira, expulsara o menino. Agora o
irmão estava morto, outro menino vinha pedir para fazer compras: —
Tá bem.
Mandou que ele tomasse banho. Pela tarde deu-lhe dinheiro para as compras
e mais para uma roupa para ele. Sem-Pernas conseguiu bater mil e duzentos
nas contas.
Pensou: — Aqui vou é fazer dinheiro…
Na cozinha a negra contava histórias antigas com sua língua
embolada. Sem- Pernas ouvia demonstrando excessivo interesse para ganhar confiança
da negra.
Mas quando perguntou pelas coisas de ouro a negra não respondeu.
Sem-Pernas não insistiu.
Sabia ser paciente, estava acostumado àquele trabalho. Na sala a
solteirona fazia ponto de cruz numa toalha, mirava Sem-Pernas com interesse,
pela porta. Era feia de cara, mas o corpo velhusco ainda tinha certo atrativo.
Chamou Sem-Pernas para ver o trabalho que ela estava fazendo, quando Sem-
Pernas olhou ela se curvou, ele viu os seios grandes. Mas não pensou
que ela estivesse lhe mostrando. Achou o trabalho muito bonito, disse: —
A senhora é muito inteligente…
Parecia até um menino bem-educado. Apesar da perna coxa e da cara
feia, a solteirona o achou lindo. Seria melhor que fosse um pouco menos crescido.
Mas assim mesmo… Novamente se curvou, mostrou os seios ao Sem-Pernas. Sem-
Pernas desviou o olhar, não pensava que fosse de propósito.
Quando ele elogiou novamente o trabalho, ela passou a mão no seu rosto:
— Obrigada, meu filho sua voz era lânguida.
A negra botou um colchão na sala de jantar para o Sem- Pernas dormir.
Cobriu com um lençol, arranjou um travesseiro. A solteirona conversava
na casa de uma amiga, na mesma rua, e quando voltou Sem-Pernas já estava
deitado. Ouviu que ela se despedia de alguém: — Desculpe este trabalho
de trazer uma vitalina pra casa.
— Dona Joana, não diga isso…
Entrou, trancou a porta da rua, tirou a chave. A negra já tinha ido
dormir no quarto junto da cozinha. A solteirona veio até a sala de
jantar, deu uma espiada em Sem-Pernas, que fez que estava dormindo. Suspirou.
Marchou para seu quarto.
As luzes estavam todas apagadas na casa. Apesar de ser muito cedo em relação
à hora em que dormiam no trapiche, Sem-Pernas se entregou ao sono.
Por isso não sabe a que horas a vitalina veio. Sentiu foi uma mão
que passava em seus cabelos. Pensou que fosse um sonho bom. A mão deslizava,
passava no seu peito, na sua barriga, agora segurava de manso no seu sexo.
Sem-Pernas despertou completamente, mas ficou de olhos fechados. A solteirona
machucava seu sexo, se encostava contra ele. Estava de camisa de dormir, suspendeu
a camisa, botou a mão de Sem-Pernas no seu corpo, Sem-Pernas se encostou
nela. Quis falar, ela pôs a mão na sua boca, apontou para a cozinha:
— Pode ouvir…
Disse ainda mais baixo: — Tu vai ser bom para mim, não vai? Se apertava
contra ele. Puxou as calças do Sem-Pernas. Depois se cobriram com o
lençol. Mas quando Sem-Pernas quis tudo, ela disse: — Não.
Só em cima.
Era uma coisa incompleta que enraivecia Sem-Pernas.
A solteirona gemia baixinho de amor. Apertava a cabeça do Sem-Pernas
contra seus seios enormes, o sexo dele contra suas coxas, a mão do
menino no seu sexo.
Sem-Pernas levanta estremunhado. Um grande cansaço nos seus membros.
Aquelas noites são como batalhas. Nunca é um gozo completo,
uma satisfação total. A solteirona quer uma migalha de amor.
Teme o amor completo, o escândalo de um filho. Mas tem sede e fome de
amor, quer nem que sejam as migalhas. Mas Sem-Pernas quer fazer o amor completo,
aquilo o irrita, faz crescer seu ódio. Ao mesmo tempo se sente preso
ao corpo da solteirona, às carícias a meio, trocadas na noite.
Uma coisa o retém naquela casa. Se bem ao acordar tenha ódio
de Joana, uma raiva impotente, uma vontade de a estrangular já que
não a pode possuir totalmente, se a acha feia e velha, quando a noite
se acerca fica nervoso pelos carinhos da vitalina, pela mão que movimenta
seu sexo de menino, pelos seus seios onde repousa a cabeça, pelas suas
coxas grossas. Imagina planos para a possuir, mas a solteirona os frustra,
fugindo no último momento, e ralha com ele em voz baixa. Uma raiva
surda possui Sem- Pernas.
Mas a mão dela vem de novo para seu sexo e ele não pode lutar
contra o desejo.
E volta àquela luta tremenda da qual sai nervoso e esgotado. Durante
o dia responde mal a Joana, diz brutalidades, a solteirona chora. Ele a chama
de vitalina, diz que vai embora. Ela lhe dá dinheiro, pede que ele
fique. Mas não é pelo dinheiro que ele fica. Fica porque o desejo
o retém. Já sabe qual a chave que abre a sala onde Joana guarda
seus objetos de ouro. Sabe como tirar a chave para levá-la aos Capitães
da Areia. Mas o desejo o retém ali, junto dos seios e das coxas da
vitalina. Junto da mão da vitalina.
Fora sempre infeliz para o lado de mulher. Quando conseguia uma negrinha
no areal era com a ajuda dos outros, era à força. Nenhuma olhava
para ele, convidando com os olhos. Outros eram feios, mas ele era repulsivo
com a perna coxa, andando feito caranguejo. Demais terminara por se fazer
antipático e a se acostumar a possuir negrinhas a pulso. Agora vinha
uma mulher branca e com dinheiro, velha e feiúsca era verdade, mas
bem comível ainda, e se deitava com ele. Acariciava seu sexo com a
mão, juntava coxa com coxa, deitava sua cabeça nos seus seios
grandes. Sem-Pernas não podia sair dali, se bem cada dia estivesse
mais bruto e mais inquieto.
Seu desejo reclamava uma posse completa. Mas a vitalina se contentava em
colher migalhas do amor.
Sem-Pernas durante o dia a odeia, se odeia, odeia o mundo todo.
Pedro Bala reclamou a demora. Já era tempo do Sem-Pernas saber os
segredos da casa. Sem-Pernas diz que sim, que não demora mais. E naquela
noite a batalha de amor é mais forte ainda. A solteirona geme de amor,
recolhendo as migalhas do amor.
Mas não cede a sua honra. Isso dá coragem ao Sem-Pernas para
no outro dia arribar com a chave.
A vitalina o espera para o amor. Está como uma esposa a quem o marido
abandonasse. Chora e se lastima. Seu amor não vem, ela também
precisa de amor, como todas essas moças que passam de vestidos bonitos
na rua.
Mas o roubo a enfurece. Porque pensa que Sem-Pernas só amou nas noites
longas de vícios para a furtar. Sua sede de amor humilhada. É
como se houvessem cuspido na sua cara, dizendo que era por causa da sua feiúra.
Chora, não geme mais uma canção de amor. Se sente com
coragem para estrangular o Sem-Pernas se encontrasse.
Porque burlaram do seu amor, da sede de amor que está no seu sangue.
A sua desgraça é mais completa porque durante uma semana foi
plenamente feliz com as migalhas de amor. Rola no chão com um ataque.
No trapiche, Sem-Pernas ri, relatando sua aventura. Mas no fundo sabe que
a solteirona o fez ainda pior, aumentou com seus vícios o ódio
que vivia latente no seu coração. Agora um desejo insatisfeito
enche suas noites. Um desejo que impede seu sono, que lhe dá raiva.
Na rabada de um trem
Os navios chegam a Ilhéus carregados de mulheres. Mulheres que vêm
da Bahia, de Aracaju, o mulherio todo de Recife, mesmo do Rio de Janeiro.
Os gordos coronéis olham das pontes a chegada das mulheres. Morenas,
loiras e mulatas, vêm em busca deles. Porque a notícia da alta
do cacau correu pelo país todo. A notícia de que numa cidade
relativamente pequena como Ilhéus estavam abertos quatro cabarés.
Que os coronéis queimavam nas noites de jogo e de champanha notas
de quinhentos mil-réis.
Que pela madrugada saíam nus pelas ruas da cidade, formando o chamado
terno do Y. A notícia corria pelas ruas de mulheres perdidas. Os caixeiros-viajantes
levavam a notícia. O cabaré da Brama, em Aracaju, ficou despovoado
de mulheres. Foram para o El-Dorado, cabaré de Ilhéus. O mulherio
de Recife desceu todo em alguns navios do Lloyd Brasileiro. Os pernambucanos
ficaram sem mulheres, vieram todas para o cabaré Bataclan, apelidado
pelos estudantes em férias de Escola. Vieram algumas do Rio de Janeiro
e estas foram para o Trianon, ex-Vesúvio, o mais luxuoso dos quatro
cabarés da cidade do cacau. Até Rita Tanajura, célebre
pelas grandes nádegas reboleantes, deixou a paz da sua cidade de Estância,
onde era a rainha do pequeno mulherio de vida fácil e onde se dava
com todo mundo, e veio ser a rainha do Far-West, o cabaré da rua do
Sapo, onde os beijos e o estalo das garrafas de champanha se misturavam com
os tiros, com o barulho das brigas. Porque o Far-West era o cabaré
dos capatazes, dos pequenos fazendeiros de repente enriquecidos.
Na rua de Dalva, na zona das mulheres perdidas da Bahia, a casas se despovoaram.
Vieram mulheres para o Bataclan, mulheres para o El-Dorado, mulheres para
o Far-West.
Umas poucas vieram para o Trianon, onde dançavam com os coronéis.
No Bataclan mulheres pernambucanas e sergipanas davam parte do dinheiro que
ganhavam dos coronéis, e que era muito, aos estudantes que em compensação
lhes davam o amor. Os viajantes enchiam o El-Dorado Até no Far-West
as mulheres ganhavam jóias. Por vezes ganhavam um tiro também,
como uma estranha jóia vermelha no peito. Rita Tanajura dançava
o charleston em cima de uma mesa, entre champanha e tiros.
Tudo isso foi naquela alta do cacau de há muitos anos.
Quando Dalva soube que Isabel tinha colares e anel de brilhante e, no entanto,
não estava no Trianon, que era o mais luxuoso dos cabarés, estava
era no Bataclan, não resistiu. Arrumou as malas. O que não faria
ela no Trianon, ela que era a melhor das mulheres da sua rua Enfardou Gato
com uma elegantíssima roupa de casimira feita sol medida, de repente
Gato não era mais um menino, era o mais jovem dos vigaristas da Bahia.
Na noite que, envergando seu traje novo, sapatos negros de verniz, gravata
borboleta, chapéu de palhinha, apareceu no trapiche João Grande
soltou uma exclamação de assombro: — Pois não é
o Gato? Gato não fizera ainda dezoito anos. Fazia quatro que amava
Dalva. Virou para João Grande: — Agora vou começar a vida…
Ofereceu cigarros tirados de uma cigarreira cara, alisou o cabelo bem assentado.
Botou a mão no ombro de Pedro Bala: — Mano, vou para Ilhéus.
A patroa vai cavar a vida. Eu vou com ela. Sou capaz de enricar. Quando tiver
fazendeiro a gente vai faze uma farra daquelas.
Pedro sorriu. Era outro que ia. Não seriam meninos toda vida… Bem
sabia que eles nunca tinham parecido crianças. Desde pequenos na arriscada
vida da rua, os Capitães da Areia eram como homens eram iguais a homens.
Toda a diferença estava no tamanho. No mais eram iguais: amavam e derrubavam
negras no areal desde cedo furtavam para viver como os ladrões da cidade.
Quando eram preso apanhavam surras como os homens.
Por vezes assaltavam de armas na mão como os mais temidos bandidos
da Bahia. Não tinham também conversas de meninos, conversavam
como homens.
Sentiam mesmo como homens. Quando outras crianças só se preocupavam
com brincar, estudar livros para aprender a ler, eles se viam envolvidos em
acontecimentos que só os homens sabiam resolver. Sempre tinham sido
como homens, na sua vida de miséria e de aventura, nunca tinham sido
perfeitamente crianças. Porque o que faz a criança é
o ambiente de casa, pai, mãe, nenhuma responsabilidade. Nunca eles
tiveram pai e mãe na vida da rua. E tiveram sempre que cuidar de si
mesmos, foram sempre os responsáveis por si. Tinham sido sempre iguais
a homens. Agora os mais velhos, os que eram desde há anos os chefes
do grupo, estavam rapazolas, começavam a ir para seus destinos.
Professor já fora, fazia quadros no Rio de Janeiro. Boa-Vida se desligara
aos poucos do trapiche, toca violão nas festas, vai aos candomblés,
arma fuzuê nas quermesses.
É mais um malandro na cidade. Seu nome já é conhecido
até nos jornais. Como os outros vagabundos, é conhecido pelos
investigadores de polícia, que sempre estão de olho nos malandros.
Pirulito é frade num convento, Deus o chamou, nunca mais saberão
dele. Agora é o Gato que parte, vai arrancar dinheiro dos coronéis
de Ilhéus.
O Querido-de-Deus certa vez disse que Gato enricaria. Porque a vida na rua,
no abandono, fez de Gato um jogador desonesto, um vigarista, um gigolô
de mulheres.
Não demorará que os outros partam. Só Pedro Bala não
sabe o que fazer.
Dentro em pouco será mais que um rapazola, será um homem e
terá que deixar para outro a chefia dos Capitães da Areia. Para
onde irá? Não poderá ser um intelectual como Professor,
cujas mãos só viviam para pintar, não nasceu para malandro,
como Boa-Vida, que não sente o espetáculo da luta diária
dos homens, que só ama andar vagabundando pelas ruas, conversar acocorado
nas docas, beber nas festas de morro. Pedro sente o espetáculo dos
homens, acha que aquela liberdade não é suficiente para a sede
de liberdade que tem dentro de si. Tampouco sente o chamado de Deus, como
Pirulito o sentiu. Para ele as pregações do padre José
Pedro nunca disseram nada.
Gostava do padre como de um homem bom. Só as palavras de João
de Adão encontravam acolhida no seu coração. Mas João
de Adão mesmo sabe muito pouco. O que tem é músculos
potentes e voz autoritária, e no entanto amiga, para chefiar uma greve.
Tampouco Pedro Bala quer ir como Gato enganar os coronéis de Ilhéus,
arranca o dinheiro deles. Quer qualquer coisa que não sabe ainda o
que é, e por isso se demora entre os Capitães da Areia.
O trapiche grita se despedindo do Gato. Este sorri, elegantíssimo,
alisando o cabelo, no dedo aquele anelão cor de vinho que furtar certa
vez.
Do cais Pedro Bala dá adeus ao Gato. Vestido com suas roupas esfarrapadas,
agitando o boné, se sente muito longe do Gato, que ao lado de Dalva
parece um homem feito com sua roupa bem talhada Pedro sente uma aflição,
uma vontade de fugir, de ir para qualquer parte num navio ou na rabada de
um trem.
Mas quem vai na rabada de um trem é Volta Seca. Uma tarde a polícia
o pegou quando o mulato despojava um negociante da sua carteira. Volta Seca
tinha então dezesseis anos. Foi levado para a polícia, o surraram
porque ele xingava todos, soldados e delegados com aquele imenso desprezo
que o sertanejo tem pela polícia. Ele não soltou um grito enquanto
apanhou. Oito dias depois o puseram na rua, e ele saiu quase alegre, porque
agora tinha uma missão na vida matar soldados de polícia.
Passou uns dias no trapiche, o rosto sombrio, afogado em pensamentos. O
sertão o chamava, a luta do cangaço o chamava. Um dia disse
a Pedro Bala: — Vou passar uns tempos com os Maloqueiros em Aracaju.
Os Índios Maloqueiros eram os Capitães da Areia em Aracaju.
Viviam sob as pontes, roubavam e brigavam nas ruas. O juiz de menores Olimpio
Mendonça era um homem bom, procurava resolver os conflitos como melhor
podia, se abismava com a inteligência das crianças iguais a homens,
compreendia que era impossível resolver o problema.
Contava aos romancistas coisas dos meninos, no fundo amava os meninos. Mas
se sentia aflito porque não podia resolver o problema deles. Quando
entre os Índios Maloqueiros aparecia algum novo, ele já sabia
que era um baiano que tinha chegado na rabada de um trem. E quando um sumia,
sabia que tinha ido para entre os Capitães da Areia na Bahia.
Uma madrugada o trem de Sergipe apitou na estação da Calçada.
Ninguém tinha vindo trazer Volta Seca à estação
porque ele ia para voltar, ia passar uns tempos entre os Índios Maloqueiros,
esquecer a polícia baiana, que o tinha marcado. Volta Seca se meteu
no vagão de carga que estava aberto, se escondeu entre uns fardos.
Aos poucos o trem abandona a estação. Depois é a estrada
do sertão, Índia Nordestina. Nas casas de barro aparecem mulheres
e meninas. Os homens seminus lavram a terra.
Na estrada de animais que corre paralela à estrada de ferro passam
boiadas.
Vaqueiros gritam tangendo os animais. Nas estações vendem
doces de milho, mingau, mungunzá, pamonha e canjica. O sertão
vai entrando pelo nariz e pelos olhos de Volta Seca.
Queijos e rapaduras passam em tabuleiros nas pequenas estações,
as paisagens agrestes jamais esquecidas enchem novamente os olhos do sertanejo.
Estes muitos anos na cidade não tinham arrancado seu amor ao sertão
miserável e belo. Nunca fora um menino da cidade igual a Pedro Bala,
a Boa-Vida, ao Gato. Fora sempre um deslocado na cidade, com uma fala diferente,
falando em Lampião, dizendo meu padrim, imitando as vozes dos animais
sertanejos.
Antigamente ele e sua mãe tinham um pedaço de terra. Ela era
comadre de Lampião, os coronéis respeitavam sua terra. Mas quando
Lampião se internou pelo sertão de Pernambuco os coronéis
ficaram com a terra da mãe de Volta Seca. Ela desceu para a cidade
para pedir justiça. Morreu no caminho, Volta Seca continuou a caminhada
com seu rosto sombrio. Muita coisa aprendeu na cidade, entre os Capitães
da Areia. Aprendeu que não era só no sertão que os homens
ricos eram ruins para com os pobres.
Na cidade, também. Aprendeu que as crianças pobres são
desgraçadas em toda parte, que os ricos perseguem e mandam em toda
parte. Sorriu por vezes, mas nunca deixou de odiar. Na figura de José
Pedro descobriu o motivo por que Lampião respeitava os padres. Se já
pensava que Lampião era um herói, a sua experiência na
cidade, o ódio adquirido na cidade, fez com que amasse a figura de
seu padrinho acima de tudo. Acima mesmo da de Pedro Bala.
Agora é o sertão. Perfume das flores do sertão. Campos
amigos, aves amigas, magros cachorros nas portas das casas. Velhos que parecem
missionários indianos, negros de longos rosários no pescoço.
Cheiro bom de comidas de milho e mandioca. Homens magros que lavram a terra
para ganhar mil e quinhentos dos donos da terra. Só caatinga é
que é de todos, porque Lampião libertou a caatinga expulsou
os homens ricos da caatinga, fez da caatinga a terra dos cangaceiros que lutam
contra os fazendeiros. O herói Lampião, herói de todo
o sertão de cinco estados. Dizem que ele é um criminoso, um
cangaceiro sem coração, assassino, desonrador, ladrão.
Mas para Volta Seca, para os homens, as mulheres e as crianças do sertão
é um novo Zumbi dos Palmares, ele é um libertador, um capitão
de um novo exército. Porque a liberdade é como o sol, o bem
maior do mundo. E Lampião luta, mata, deflora e furta pela liberdade.
Pela liberdade e pela justiça para os homens explorados do sertão
imenso de cinco estados: Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Bahia.
O sertão comove os olhos de Volta Seca. O trem não corre,
este vai devagar, cortando as terras do sertão. Aqui tudo é
lírico, pobre e belo. Só a miséria dos homens é
terrível. Mas estes homens são tão fortes que conseguem
criar beleza dentro desta miséria. Que não farão quando
Lampião libertar toda a caatinga, implantar a justiça e a liberdade?
Passam violeiros, improvisadores de poesia. Passam vaqueiros que tangem o
gado, homens plantam mandioca e milho. Nas estações os coronéis
descem para estirar as pernas. Levam grandes revólveres. Os violeiros
cegos cantam pedindo uma esmola. Um negro de camisu e rosário atravessa
essa a estação dizendo estranhas coisas em língua desconhecida.
Foi escravo, hoje é um doido na estação. Todos temem,
temem suas pragas. Porque ele sofreu muito, o chicote de feitor rasgou suas
costas. Também o chicote da polícia, feitor dos ricos, rasgou
as costas de Volta Seca. Todos o temerão um dia também.
Caatingas do sertão, olor das flores sertanejas, o manso andar do
trem sertanejo.
Homens de alpercatas e chapéu de couro. Criança que estudam
para cangaceiro na escola da miséria e da exploração
do homem.
O trem pára no meio da caatinga. Volta Seca pula fora do vagão.
Os cangaceiros apontam os fuzis, o caminhão que os trouxe está
parado no outro lado da estrada, os fios do telégrafo cortados. Na
caatinga agreste não se vê ninguém. Uma moça desmaia
num dos carros, um caixeiro-viajante esconde a carteira com dinheiro.
Um coronel gordo sai do vagão, fala: — Capitão Virgulino…
O cangaceiro de óculos aponta o fuzil: — Para dentro.
Volta Seca pensa que seu coração vai estalar de alegria. Encontrou
seu padrinho, Virgulino Ferreira Lampião, herói das crianças
sertanejas. Chega para junto dele, um outro cangaceiro o quer afastar, mas
ele diz: — Meu padrim…
— Quem é tu? — Sou Volta Seca, filho de tua comadre…
Lampião o reconhece, sorri. Os cangaceiros estão entrando
nos vagões de primeira, não são muitos, uns doze. Volta
Seca pede: — Meu padrim, deixe eu ficar com você… Me dê um
fuzil.
— Tu ainda é um menino… — Lampião olha com seus óculos
escuros.
— Não sou mais não, já briguei com soldado…
Lampião grita: — Zé Baiano, dá um fuzil a Volta Seca…
Olha o afilhado: — Tu guarda esta saída. Se um quiser arribar, mete
fogo.
Entra para a coleta. Desmaios e gritos lá dentro, o soar de um disparo.
Depois o grupo volta para a estrada. Traz dois soldados de polícia
que viajavam no trem.
Lampião divide dinheiro com os cangaceiros. Volta Seca também
recebe. De um vagão sai um fio de sangue. O cheiro bom do sertão
penetra as narinas de volta Seca.
Os soldados são encostados numas árvores. Zé Baiano
prepara o fuzil, mas a voz de Volta Seca faz um pedido: — Deixe pra mim,
padrim. Eles me bateram na polícia, bateram em muito menino.
Levanta o fuzil, qual é o sertanejo que não tem boa pontaria?
Seu rosto sombrio tem um riso que o enche todo. Cai o primeiro, o segundo
tenta fugir, mas a bala o alcança nas costas Depois Volta Seca corre
para cima dele com o punhal, sacia sua vingança. Zé Baiano diz:
— Este menino é dos bons…
— A mãe dele era um bicho, minha comadre… — lembra Lampião
orgulhoso.
— Uma verdadeira fera… — pensa o viajante enquanto o trem se move lentamente
após os empregados afastarem os toros de madeira de sobre os trilhos.
O grupo de cangaceiros se perde na caatinga. O ar do sertão enche o
peito de Volta Seca, que pára e com o punhal faz dois traços
na madeira do fuzil. Os dois primeiros…
Ao longe o trem apita angustiosamente.
Como um trapezista de circo
Fora demasiada audácia atacar aquela casa da rua rui Barbosa. Perto
dali, na praça do Palácio, andavam muitos guardas, investigadores,
soldados. Mas eles tinham sede de aventura, estavam cada vez maiores, cada
vez mais atrevidos. Porém havia muita gente na casa, deram o alarme,
os guardas chegaram. Pedro Bala e João Grande abalaram pela ladeira
da Praça. Barandão abriu no mundo também. Mas o Sem-
Pernas ficou encurralado na rua. Jogava picula com os guardas. Estes tinham
se despreocupado dos outros, pensavam que já era alguma coisa pegar
aquele coxo. Sem-Pernas corria de um lado para outro da rua, os guardas avançavam.
Ele fez que ia escapuli por outro lado, driblou um dos guardas, saiu pela
ladeira. Mas em vez de descer e tomar pela Baixa dos Sapateiros, se dirigiu
para a praça d Palácio. Porque Sem- Pernas sabia que se corresse
na rua o pegariam com certeza. Eram homens, de pernas maiores que as suas,
e além do mais ele era coxo, pouco podia correr. E acima de tudo não
queria que o pegassem. Lembrava-se da vez que fora à polícia.
Dos sonhos das suas noites más. Não o pegariam e enquanto corre
este é o único pensamento que vai com ele. Os guardas vêm
nos seus calcanhares. Sem-Pernas sabe que eles gostarão de o pegar,
que a captura de um dos Capitães da Areia é uma bela façanha
para um guarda. Essa será a sua vingança. Não deixará
que o peguem, não tocarão a mão no seu corpo. Sem-Pernas
os odeia como odeia a todo mundo, porque nunca pôde ter um carinho.
E no dia que o teve foi obrigado ao abandonar porque a vida já o tinha
marcado demais. Nunca tivera uma alegria de criança.
Se fizera homem antes dos dez anos para lutar pela mais miserável
das vidas: a vida de criança abandonada. Nunca conseguira amar ninguém,
a não ser a este cachorro que o segue. Quando os corações
das demais crianças ainda estão puros de sentimentos, o do Sem-Pernas
já estava cheio de ódio. Odiava a cidade, a vida, os homens.
Amava unicamente o seu ódio, sentimento que o fazia forte e corajoso
apesar do defeito físico. Uma vez uma mulher foi boa para ele. Mas
em verdade não o fora para ele e sim para o filho que perdera e que
pensara que tinha voltado. De outra feita outra mulher se deitara com ele
numa cama, acariciara seu sexo, se aproveitara dele para colher migalhas do
amor que nunca tivera. Nunca, porém, o tinham amado pelo que ele era,
menino abandonado, aleijado e triste. Muita gente tinha odiado.
E ele odiara a todos. Apanhara na polícia, um homem ria quando o
surravam.
Para ele é este homem que corre em sua perseguição
na figura dos guardas. Se o levarem, o homem rirá novo. Não
o levarão. Vêm em seus calcanhares, mas não o levarão.
Pensam que elevai parar junto ao grande elevador. Mas Sem-Pernas não
pára.
Sobe para o pequeno muro, volve o rosto para os guardas que ainda correm,
ri com toda a força do seu ódio, cospe na cara de um que se
aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço
como se fosse um trapezista de circo.
A praça toda fica em suspenso por um momento. Se jogou, diz uma mulher,
e desmaia. Sem-Pernas se rebenta na montanha como um trapezista de circo que
não tivesse alcançado o outro trapézio. O cachorro late
entre as grades do muro.
Notícias de jornal O jornal da tarde publica um telegrama do rio
dando conta do sucesso da exposição de um jovem pintor até
então desconhecido. Dias depois transcreve uma crítica de arte
publicada também num jornal do Rio de Janeiro. Porque o pintor é
baiano, e o Jornal da Tarde é muito cioso das glórias baianas.
Um trecho da crítica de arte, após falar das qualidades e defeitos
do novo pintor social, de usar e abusar de expressões como clima, luz,
cor, ângulos, força e outras mais, diz: … um detalhe notaram
todos que foram estranha exposição de cenas e retratos de meninos
pobres. É que todos os sentimentos bons estão sempre representados
na figura de uma menina magra de cabelos loiros e faces febris. E que todos
os sentimentos maus estão representados por um homem de sobretudo negro
e um ar de viajante. Que representará para um psicanalista a repetição
quase inconsciente destas figuras em todos os quadros? Sabe-se que o pintor
João José tem uma história…
E continuava o abuso das palavras cor, força, clima, luz, ângulos
e outras mais complicadas.
Meses depois uma notícia informava aos leitores do Jornal da Tarde,
sob o título de Presente de grego a Polícia de Belmonte devolve
o vigarista gato que a polícia de Belmonte, havia recebido da policia
de Ilhéus um verdadeiro presente de grego. Um conhecido e jovem vigarista
que atuava em Ilhéus com o nome de °Gato”, após ter
abiscoitado bons cobres de muitos fazendeiros e comerciantes, fora remetido
para Belmonte. Lá continuava a passar contos do vigário, em
que era mestre.
Conseguira vender uma imensidade de terras, ótimas para o cultivo
do cacau, a muitos fazendeiros. Quando estes foram ver as terras, não
eram mais que o leito sobre o qual corna o rio Cachoeira. A polícia
de Belmonte tinha conseguido deitar mão no temível vigarista
e o remetia de volta para Ilhéus.
Os ilheenses são mais ricos que nós, terminava com certa ironia
o correspondente que assinava a notícia, podem sustentar com mais conforto
o elegante Gato que os filhos da bela Belmonte, a Princesa do Sul. Porque
se Belmonte é a Princesa, Ilhéus é muito justamente chamada
a Rainha do Sul.
Entre fatos policiais sem importância o Jornal da Tarde noticiou um
dia que um malandro conhecido pelo nome de Boa-Vida armara um fuzuê
tremendo numa festa na Cidade de Palha, abrira a cabeça do dono da
casa com uma garrafa de cerveja e estava sendo procurado pela polícia.
Perto de um Natal o Jornal da Tarde apareceu com manchetes em tipos enormes.
Uma notícia de tanta sensação como aquela que fizera
conhecida a história da mulher que acompanhava o bando de Lampião,
a amante do cangaceiro. Porque a população dos cinco estados,
de Bahia, Sergipe, Alagoas, Paraíba e Pernambuco, vive com os olhos
fitos em Lampião. Com ódio ou com amor, nunca com indiferença.
A manchete dizia em letras garrafais: Uma criança de 16 anos no grupo
de Lampião Os tipos das letras dos títulos que encabeçavam
a reportagem eram também enormes: É um dos mais temíveis
cangaceiros – trinta e cinco traços no seu fuzil – pertenceu aos “Capitães
da Areia” – a morte de machadão devida a volta seca A reportagem
era extensa. Contava como as vilas saqueadas há algum tempo vinham
notando entre o bando de Lampião uma criança de uns dezesseis
anos, que levava o nome de Volta Seca. Apesar da sua idade, o jovem cangaceiro
se fizera temido em todo o sertão como um dos mais cruéis do
grupo. Constava que seu fuzil tinha trinta e cinco marcas. E cada marca num
fuzil de cangaceiro representa um homem morto. Depois vinha a história
da morte de Machadão, um dos mais antigos do grupo de Lampião.
Aconteceu que o grupo tinha pegado na estrada um velho sargento de polícia.
E Lampião o entregara a Volta Seca para que o despachasse. Volta Seca
o despachara devagarinho, à ponta de punhal, cortando os pedacinhos
com visível satisfação.
Fora tanta a crueldade, que Machadão, horrorizado, levantou o fuzil
para acabar com Volta Seca. Mas antes que disparasse, Lampião, que
tinha um grande orgulho de Volta Seca, atirou em Machadão. Volta Seca
continuara sua tarefa.
A notícia se estendia, narrando diversos outros crimes do cangaceiro
de 16 anos.
Depois lembrava que entre os Capitães da Areia vivera um menino com
o nome de Volta Seca e que era possível que fosse o mesmo. Vinham então
várias considerações de ordem moral.
A edição se esgotou.
Meses depois a edição se esgotou novamente porque trazia a
notícia da prisão de Volta Seca, enquanto dormia, executada
pela coluna volante que percorria o sertão dando caça a Lampião.
Anunciava que o cangaceiro chegaria no outro dia à Bahia. Vinham vários
clichês onde Volta Seca aparecia com seu rosto sombrio. O Jornal da
Tarde dizia que era rosto de criminoso nato.
O que não era verdade, como o próprio jornal da Tarde noticiou
tempos depois, ao relatar em edições extraordinárias
e sucessivas o júri que condenou Volta Seca a 30 anos de prisão
por 15 mortes conhecidas e provadas. No entanto, seu fuzil tinha 60 marcas.
E o jornal lembrava esse fato, repetindo que cada marca era um homem morto.
Mas publicava também parte do relatório do médico-legista,
cavalheiro de honestidade e cultura reconhecidas, já então um
dos grandes sociólogos e etnógrafos do país, relatório
que provava que Volta Seca era um tipo absolutamente normal e que se virara
cangaceiro e matara tantos homens e com tamanha crueldade não fora
por vocação de nascença. Fora o ambiente… e vinham
as devidas considerações científicas.
O que aliás não despertou tanta curiosidade entre o público
como a descrição de belíssimo, vibrantíssimo e
apaixonadíssimo discurso de dr. Promotor Público, que fizera
os jurados chorar, e até o próprio juiz tinha limpado as lágrimas,
ao descrever o dr. Promotor, com sublime força oratória, o sofrimento
das vítimas do feroz cangaceiro-menino.
O público ficou indignado porque Volta Seca não chorou durante
o júri. Seu rosto sombrio estava cheio de estranha calma.
Companheiros
Há um movimento novo na cidade. Pedro Bala sai do trapiche com João
Grande e Barandão. O cais está deserto, parece que todos o abandonaram.
Somente soldados de policia guardam os grandes armazéns. Não
há descarga de navios neste dia.
Porque os estivadores, com João de Adão à frente, foram
prestar solidariedade aos condutores de bonde que estão em greve. Parece
que há uma festa na cidade, mas uma festa diferente de todas. Passam
grupos de homens que conversam, os automóveis cortam as ruas conduzindo
gente para o trabalho, empregados no comércio riem, a ladeira da Montanha
está cheia de gente que sobe e desce, pois os elevadores também
estão parados.
As marinetes vão entupidas, gente sobrando pelas portas. Os grupos
de grevistas passam silenciosos para a sede do sindicato, onde vão
ouvir a leitura do manifesto dos estivadores, que João de Adão
conduz nas suas mãos grandes. Na porta do sindicato grupos conversam,
soldados montam guarda.
Pedro Bala anda com João Grande e Barandão pelas ruas. Diz:
— Tá bonito…
João Grande também sorri, o negrinho Barandão fala:
— Hoje vai ter fuzuê.
— Eu é que não queria ser condutor de bonde, nem motorneiro.
Ganha uma porcaria. Eles faz bem… — fala João Grande.
— Vamos espiar? — propõe Pedro Bala.
Vão para a porta do sindicato. Entram homens negros, mulatos, espanhóis
e portugueses. Vêem quando João de Adão e os outros estivadores
saem entre vivas dos operários das linhas de bonde. Eles vivam também.
João Grande e Barandão porque gostam do doqueiro João
de Adão. Pedro Bala não só por isso como porque acha
bonito o espetáculo da greve, é como uma das mais belas aventuras
dos Capitães da Areia.
Um grupo de homens bem vestidos entra no sindicato. Da porta eles ouvem
uma voz que discursa, uma que interrompe: Vendido, amarelo.
— Tá bonito… — repete Pedro Bala.
Tem vontade de entrar, de se misturar com os grevistas, de gritar e lutar
ao lado deles.
A cidade dormiu cedo. A lua ilumina o céu, vem a voz de um negro
do mar em frente. Canta a amargura da sua vida desde que a amada se foi. No
trapiche as crianças já dormem. Até o negro João
Grande ronca estirado na porta, o punhal ao alcance da mão. Somente
Pedro Bala vela, estirado na areia, olhando a lua, ouvindo o negro que canta
as saudades da sua mulata que partiu. O vento traz trechos soltos da canção
e ela faz com que Pedro Bala procure Dora no meio das estrelas do céu.
Ela também virou uma estrela, uma estranha estrela de longa cabeleira
loira. Os homens valentes têm uma estrela em lugar do coração.
Mas nunca se ouviu falar de uma mulher que tivesse no peito, como uma flor,
uma estrela. As mulheres mais valentes da terra e do mar da Bahia, quando
morriam, viravam santas para os negros, como os malandros que foram também
muito valentes. Rosa Palmeirão virou santa num candomblé de
caboclo, rezam para ela orações em nagô, Maria Cabaçu
é santa nos candomblés de Itabuna, pois foi naquela cidade que
ela mostrou sua coragem primeiro. Eram duas mulheres grandes e fortes. De
braços musculosos como homens, como grevistas.
Rosa Palmeirão era bonita, tinha o andar gingado de marítima,
era uma mulher do mar, certa vez teve um saveiro, cortou as ondas da entrada
da barra. Os homens do cais a amavam não só pela sua coragem,
como pelo seu corpo também. Maria Cabaçu era feia, mulata escura,
filha de negro e índia, grossa e zangada. Dava nos homens que a achavam
feia. Mas se entregou toda a um cearense amarelo e fraco que a amou como se
ela fosse uma mulher bonita, de corpo belo e olhos sensuais. Tinham sido valentes,
viraram santas nos candomblés de caboclo, que são candomblés
que de quando em vez inventam novos santos, não têm aquela pureza
de rito dos candomblés nagôs dos negros. São candomblés
dos mulatos. Mas Dora fora mais valente que elas. Era apenas uma menina, vivera
igual a um dos Capitães da Areia, e todos sabem que um capitão
da areia é igual a um homem valente. Dora vivera com eles, fora mãe
para todos eles. Mas fora irmã também, correra com eles pelas
ruas, invadira casas, batera carteiras, brigara com o grupo de Ezequiel.
Depois, para Pedro Bala, fora noiva e esposa, esposa quando a febre a devorava,
quando a morte já a rondava naquela noite de tanta paz. Paz que ia
dos olhos dela para a noite em torno. Estivera no orfanato, fugira dele, igual
a Pedro Bala fugindo do reformatório. Tivera coragem para morrer, consolando
seus filhos, irmãos, noivos e esposo que eram os Capitães da
Areia. A mãe-de-santo Don’Aninha a enrolara numa toalha branca, bordada
como se fora para um santo. O querido-dedeus a levara no seu saveiro para
junto de Yemanjá. Padre José Pedro rezava. Todos a queriam.
Mas só Pedro Bala quis ir com ela. Professor fugiu do trapiche porque
não pôde mais suportar o casarão depois que ela partiu.
Mas só Pedro Bala se jogou n’água para seguir o destino de Dora,
ir fazer com ela aquela maravilhosa viagem que os valentes fazem com Yemanjá
no fundo verde do mar. Por isso só ele viu quando ela virou estrela
e cruzou os céus. Ela veio só para ele, com sua longa cabeleira
loira.
Brilhou sobre sua cabeça de quase afogado e suicida. Deu-lhe novas
forças, o saveiro do querido-de-deus que voltava o pôde recolher.
Agora olha o céu procurando a estrela de Dora. É uma estrela
de longa cabeleira loira, uma estrela como não existe nenhuma outra.
Porque nunca existiu nenhuma mulher como Dora, que era uma menina. A noite
está cheia de estrelas que se refletem no mar calmo. A voz do negro
parece se dirigir às estrelas, como que há pranto na sua voz
cheia. Ele também procura a amada que fugiu na noite da Bahia. Pedro
Bala pensa que a estrela que é Dora talvez ande agora correndo sobre
as ruas, becos e ladeiras da cidade a procurálo.
Talvez o pense numa aventura nas ladeiras. Mas hoje não são
os Capitães da Areia que estão metidos numa bela aventura. São
os condutores de bonde, negros fortes, mulatos risonhos, espanhóis
e portugueses, que vieram de terras distantes. São eles, que levantam
os braços e gritam iguais aos Capitães da Areia. A greve se
soltou na cidade. É uma coisa bonita a greve, é a mais bela
das aventuras.
Pedro Bala tem vontade de entrar na greve, de gritar com toda a força
do seu peito, de apartear os discursos. Seu pai fazia discursos numa greve,
uma bala o derrubou. Ele tem sangue de grevista. Demais a vida da rua o ensinou
a amar a liberdade.
A canção daqueles presos dizia que a liberdade é como
o sol: o bem maior do mundo. Sabe que os grevistas lutam pela liberdade, por
um pouco mais de pão, por um pouco mais de liberdade. É como
uma festa aquela luta.
Os vultos que se aproximam o fazem levantar desconfiado. Mas logo reconhece
a figura enorme do estivador João de Adão. Junto a ele vem um
rapaz bem vestido, mas com os cabelos despenteados. Pedro Bala tira o boné,
fala para João de Adão: — Tu hoje ganhou viva, hein? João
de Adão ri. Distende seus músculos, seu rosto está aberto
num sorriso para o chefe dos Capitães da Areia: — Capitão Pedro,
eu quero apresentar a tu o companheiro Alberto.
O rapaz estende a mão para Pedro Bala. O chefe dos Capitães
da Areia limpa primeiro sua mão no paletó rasgado, depois aperta
a do estudante. João de Adão está explicando: — É
um estudante da Faculdade, mas é um companheiro da gente.
Pedro Bala olha sem desconfiança. O estudante sorri: — Já
ouvi falar muito em você e em seu grupo. Você é um batuta…
— A gente é macho, sim responde Pedro Bala.
João de Adão se aproxima mais: — Capitão, a gente
tem que conversar com tu. Tem um assunto com tu. Um troço sério.
Aqui o companheiro Alberto…
— Vamos para dentro? — fala Pedro Bala.
Acordam João Grande ao passar. O negro olha com desconfiança
o estudante, pensa que é um polícia, levanta um pouco o punhal
por detrás do braço. Só Pedro Bala vê e fala: —
É um amigo de João de Adão. Vem com a gente, Grande.
Vão os quatro. Sentam num canto. Alguns dos Capitães da Areia
acordam e espiam o grupo. O estudante olha o trapiche, as crianças
que dormem. Treme como se um vento frio tivesse passado pelo seu corpo: —
Que horror! Mas Pedro Bala está dizendo a João de Adão:
— Que coisa porreta a greve! Nunca vi coisa tão bonita. É como
uma festa…
— A greve é a festa dos pobres… — diz o estudante.
A voz de Alberto é mansa e boa. Pedro Bala o escuta enlevado, como
se fosse a voz de um negro cantando uma canção no mar.
— Meu pai morreu numa greve, tu sabe? Pergunte a João de Adão,
se está duvidando…
— Foi uma morte bonita fala o estudante. — Ele foi um campeão da
sua classe.
Não foi o Loiro? O estudante sabe o nome de seu pai. Seu pai foi
um campeão… Todos o conhecem. Teve uma morte bonita, morreu numa
greve, a greve é a festa dos pobres… Escuta a voz do estudante: —
Você acha a greve bonita, Pedro? — Companheiro, esse é um porreta
diz João de Adão. –Tu não conhece os Capitães
da Areia nem Capitão Pedro… É um companheiro…
Companheiro… Companheiro… Pedro Bala acha a palavra mais bonita do mundo.
O estudante diz como Dora dizia a palavra irmão.
— Pois companheiro Pedro, a gente precisa de você e do seu grupo.
— Pra quê? — pergunta João Grande curioso.
Pedro Bala apresenta: — Este negro é João Grande, um negro
bom. Quem for bom é igual a João Grande, melhor não é…
Alberto estende a mão ao negro. João Grande fica um momento
indeciso, não está acostumado a apertos de mão. Mas logo
aperta aquela mão, meio encabulado. O estudante novamente diz:
— Vocês são uns batutas…
De repente, interessado, pergunta: — É verdade que Volta Seca foi
um de vocês? — Um dia a gente tira ele da cadeia… — é a resposta
de Bala. O estudante olha meio espantado. Dá uma espiada pelo trapiche,
João de Adão faz um sinal como que lembrando: Eu não
lhe dizia? Pedro Bala quer conversar sobre a greve, saber o que querem dele:
— É pra greve que precisa da gente? — Se for? — perguntou o estudante.
— Se for pra ajudar os grevistas, tou decidido. Pode contar com a gente…
— levanta-se, está um rapazola, o rosto disposto para a luta.
— Tu não vê… — começa a explicar João de
Adão.
Mas cala, porque o estudante está falando: — A greve está
indo muito em ordem. Nós queremos fazer coisas com muita ordem, porque
assim venceremos e os operários conseguirão o aumento. Nós
não queremos armar barulho, queremos mostrar que os operários
são capazes de disciplina.
(Uma pena, pensa Pedro Bala, que ama os barulhos.) Mas acontece que os diretores
da Companhia andam contratando fura-greves para trabalhar amanhã. Se
os operários dissolverem os grupos de furadores de greve, darão
margem a que a polícia intervenha e está todo o trabalho perdido.
Então o companheiro João de Adão lembrou de vocês…
— Pra debandar os fura-greve? Tá certo — diz Bala alegríssimo
O estudante pensa na discussão daquela noite na organização.
Quando João de Adão fizera a proposta de chamar os Capitães
da Areia, muitos companheiros tinham se declarado contra. Sorriam da idéia.
João de Adão só dizia: — Vocês não conhece
os Capitães da Areia.
Aquilo, aquela confiança, impressionara Alberto e alguns outros.
Por fim a idéia venceu, não perderiam nada em tentar. Agora
está satisfeito de ter vindo. E na sua cabeça já fazia
planos para aproveitar na luta os Capitães da Areia. Para quanta coisa
não serviriam aqueles meninos esfomeados e mal vestidos? Lembrava-se
de outros exemplos, da luta antifascista na Itália, os meninos de Lusso.
Sorria para Pedro Bala. Explicou o plano: os furadores de greve viriam pela
madrugada para os três grandes depósitos de bondes para tomar
conta dos carros. Os Capitães da Areia deviam se dividir em três
grupos, guardar as entradas dos três depósitos.
E impedir, fosse como fosse, que os furadores de greve conseguissem botar
os bondes em marcha. Pedro Bala assentia com a cabeça. Virou para João
de Adão: — Se Sem-Pernas tivesse vivo e Gato tivesse aqui…
Depois se lembra de Professor: — Professor inventava um plano bom num minuto…
Depois fazia um desenho da briga. Agora tá no Rio.
— Quem é? — pergunta o estudante.
— Um chamado João José, que a gente tratava de Professor.
Agora t&aacuaacute; pintando quadro no Rio.
— É o pintor João José? Esse mesmo — fez Bala.
— Eu sempre pensei que fosse lenda essa história. Sabe que ele é
um companheiro bom? — Sempre foi um companheiro bom disse Pedro Bala com
força.
O estudante fazia planos sobre os Capitães da Areia. Agora Pedro
Bala acordava todos e explicava o que tinham que fazer. O estudante estava
entusiasmado com as palavras do moleque. Quando terminou de explicar, Bala
resumiu tudo nestas palavras: — A greve é a festa dos pobres. Os pobres
é tudo companheiro, companheiro da gente.
— Você é um batuta disse o estudante.
— Vai ver como a gente acaba com os traidor.
Explicava a Alberto: — Eu vou com um grupo pro depósito maior. João
Grande vai com outro.
Barandão com o terceiro para o menor. Não entra ninguém.
A gente sabe fazer.
Tu vai ver…
— Eu estarei lá para ver fez o estudante. — Então, às
quatro horas da madrugada? — Tá certo.
O estudante faz um gesto.
— Até logo, companheiros…
Companheiros… Palavra bonita, pensa Pedro Bala. Ninguém dorme mais
no trapiche nesta noite. Preparam as mais diversas armas.
Na madrugada que nasce, as estrelas começam a desaparecer do céu.
Mas Pedro Bala parece ver numa estrela que corre a estrela de Dora que o alegra.
Companheira…
Também ela tinha sido uma companheira boa. A palavra brinca na sua
boca, é a palavra mais bonita que ele já viu. Pedirá
a Boa-Vida que faça um samba dela, um samba para um negro cantar à
noite no mar. Vão como se fossem para uma festa.
Armados com as mais diversas armas: navalhas, punhais pedaços de
pau. Vão para uma festa, porque a greve é a festa dos pobres,
repete Pedro Bala para si mesmo.
No pé da ladeira da Montanha se dividem em três grupos. João
Grande chefia um, Barandão vai com outro, o maior vai com Pedro Bala.
Vão para uma festa. A primeira festa verdadeira que têm aquelas
crianças. Ainda assim é uma festa de homens.
Mas é uma festa dos pobres, dos pobres como eles.
A madrugada é fria. Na esquina do depósito, quando Pedro Bala
está colocando os meninos, Alberto se aproxima dele. Pedro se volta
o rosto sorridente. O estudante fala: — Eles já vêm, companheiro.
— Espera pra ver.
Agora é o estudante quem sorri. Evidentemente está entusiasma
do com os meninos. Pedirá à organização para trabalhar
com eles. Irão fazer muitas coisas juntos.
Os fura-greves vêm num grupo cerrado. Um americano o chefia com a
cara fechada. Se dirigem todos para a entrada. Da sombra, dos becos, ninguém
sabe de onde, como demônios fugidos do inferno, surgem meninos esfarrapados
e de armas na mão. Punhais, navalhas, paus. Tomam a porta, o grupo
dos furagreves pára. Logo os demônios se atiram, é um
bolo só. São em número maior que o grupo de fura-greves.
Estes rolam com os golpes de capoeira, recebem pauladas, alguns já
fogem. Pedro Bala derruba o americano, com a ajuda de outro o soqueia.
Os fura-greves pensam que são demônios fugidos do inferno.
A gargalhada livre e grande dos Capitães da Areia ressoa na madrugada.
A greve não é furada.
Também João Grande e Barandão são vitoriosos.
O estudante ri com eles a gargalhada dos Capitães da Areia.
No trapiche diz para alegria dos meninos: — Vocês são os mais
batutas que eu já vi…
— Companheiros, companheiros diz João de Adão.
Diz o vento que passa, diz a voz do coração de Pedro Bala.
É como a música de uma canção cantada por um negro:
— Companheiros.
Os atabaques ressoam como clarins de guerra Depois de terminada a greve
o estudante continua a vir ao trapiche.Mantém longas conversas com
Pedro Bala, transforma os Capitães da Areia numa brigada de choque.
Uma tarde Pedro Bala vai pela rua Chile, o boné desabado sobre os
olhos, assoviando, enquanto arrasta os pés no chão. Uma voz
exclama: — Bala! Se volta. O Gato está elegantíssimo na sua
frente. Uma pérola na gravata, um anel no dedo mínimo, roupa
azul, chapéu de feltro quebrado num jeito malandro: — É tu,
Gato? — Vamos sair daqui.
Entram numa rua sem movimento. Gato explica que chegou de lá. Ilhéus
há poucos dias. Que arrancou um bocado de dinheiro de lá. Está
um homem e todo perfumado e elegante: — Quase não te conheço…
— diz Pedro Bala. — E Dalva? — Ficou amigada com um coronel. Mas eu já
tinha deixado ela. Agora tenho uma moreninha do balacobaco…
— E aquele anelão que Sem-Pernas fazia troça?…
Gato ri: — Empurrei por quinhentão num coronel cheio da nota…
O bicho engoliu sem gritar…
Conversam e riem. Gato pergunta notícia dos outros. Diz que no dia
seguinte embarcará para Aracaju com a morena, pois açúcar
está dando dinheiro. Pedro Bala o vê ir embora todo elegante.
Pensa que se ele tivesse demorado mais algum tempo no trapiche, talvez não
fosse um ladrão. Aprenderia com Alberto, estudante, o que ninguém
soubera lhe ensinar. Aquilo que Professor como que adivinhara.
A revolução chama Pedro Bala como Deus chamava Pirulito nas
noites do trapiche. É uma voz poderosa dentro dele, poderosa como a
voz do mar, como a voz do vento, tão poderosa como uma voz sem comparação.
Como a voz de um negro que canta num saveiro o samba que Boa-Vida fez: Companheiros,
chegou a hora…
A voz o chama. Uma voz que o alegra, que faz bater seu coração.
Ajudar a mudar o destino de todos os pobres. Uma voz que atravessa a cidade,
que parece vir dos atabaques que ressoam nas macumbas da religião ilegal
dos negros. Uma voz que vem com o ruído dos bondes onde vão
os condutores e motorneiros grevistas.
Uma voz que vem do cais, do peito dos estivadores, de João de Adão,
de seu pai morrendo num comício, dos marinheiros dos navios, dos saveiristas
e dos canoeiros. Uma voz que vem do grupo que joga a luta da capoeira, que
vem dos golpes que o Querido-de-Deus aplica. Uma voz que vem mesmo do padre
José Pedro, padre pobre de olhos espantados diante do destino terrível
dos Capitães da Areia. Uma voz que vem das filhas-desanto do candomblé
de Don’Aninha, na noite que a polícia levou Ogum. Voz que vem do trapiche
dos Capitães da Areia. Que vem do reformatório e do orfanato.
Que vem do ódio do Sem-Pernas se atirando do elevador para não
se entregar. Que vem no trem da Leste Brasileira, através do sertão,
do grupo de Lampião pedindo justiça para os sertanejos. Que
vem de Alberto, o estudante pedindo escolas e liberdade para a cultura. Que
vem dos quadros de Professor, onde meninos esfarrapados lutam naquela exposição
da rua Chile. Que vem de Boa-Vida e dos malandros da cidade, do bojo dos seus
violões, dos sambas tristes que eles cantam. Uma voz que vem de todos
os pobres, do peito de todos os pobres. Uma voz que diz uma palavra bonita
de solidariedade, de amizade: companheiros. Uma voz que convida para a festa
da luta. Que é como um samba alegre de negro, como ressoar dos atabaques
nas macumbas.
Voz que vem da lembrança de Dora, valente lutadora. Voz que chama
Pedro Bala. Como a voz de Deus chamava Pirulito, a voz do ódio o Sem-Pernas,
como a voz dos sertanejos chamava Volta Seca para o grupo de Lampião.
Voz poderosa como nenhuma outra. Porque é uma voz que chama para lutar
por todos, pelo destino de todos, sem exceção.
Voz poderosa como nenhuma outra. Voz que atravessa a cidade e vem de todos
os lados. Voz que traz com ela uma festa, que faz o inverno acabar lá
fora e ser a primavera. A primavera da luta. Voz que chama Pedro Bala, que
o leva para a luta. Voz que vem de todos os peitos esfomeados da cidade, de
todos os peitos explorados da cidade. Voz que traz o bem maior do mundo, bem
que é igual ao sol, mesmo maior que o sol: a liberdade. A cidade no
dia de primavera é deslumbradoramente bela. Uma voz de mulher canta
a canção da Bahia. Canção da beleza da Bahia.
Cidade negra e velha, sinos de igreja, ruas calçadas de pedra. Canção
da Bahia que uma mulher canta. Dentro de Pedro Bala uma voz o chama: voz que
traz para a canção da Bahia, a canção da liberdade.
Voz poderosa que o chama. Voz de toda a cidade pobre da Bahia, voz da liberdade.
A revolução chama Pedro Bala.
Pedro Bata foi aceito na organização no mesmo dia em que João
Grande embarcou como marinheiro num navio cargueiro do Lóide. No cais
dá adeus ao negro, que parte para a sua primeira viagem. Mas não
é um adeus como aqueles que dera aos outros que partiram antes.
Não é mais um gesto de despedida. É um gesto de saudação
ao companheiro que parte: — Adeus, companheiro.
Agora comanda uma brigada de choque formada pelos Capitães da Areia.
O destino deles mudou, tudo agora é diverso. Intervêm em comícios,
em greves, em lutas obreiras.
O destino deles é outro. A luta mudou seus destinos.
Ordens vieram para a organização dos mais altos dirigentes.
Que Alberto ficasse com os Capitães da Areia e Pedro Bala fosse organizar
os índios Maloqueiros de Aracaju em brigada de choque também.
E que depois continuasse a mudar o destino das outras crianças abandonadas
do país.
Pedro Bala entra no trapiche. A noite cobriu a cidade. A voz do negro canta
no mar. A estrela de Dora brilha quase tanto quanto a lua no céu mais
lindo do mundo.
Pedro Bala entra, olha as crianças. Barandão vem para junto
dele, agora tem 15 anos o negrinho.
Pedro Bala olha. Estão deitados, alguns já dormem, outros
conversam, fumam cigarros, riem a grande gargalhada dos Capitães da
Areia. Bala reúne a todos, bota Barandão junto de si: — Gentes,
agora eu vou embora, vou deixar vocês. Vou embora, Barandão agora
fica o chefe. Alberto vem sempre ver vocês, vocês devem fazer
o que ele diz. E todo mundo ouça: Barandão agora é o
chefe.
O negrinho Barandão fala: — Gentes, Pedro Bala vai embora. Viva
Pedro Bala!…
Os punhos dos Capitães da Areia se levantam fechados.
— Bala! Bala! — gritam numa despedida.
Os gritos enchem a noite, calam a voz do negro que canta no mar, estremecem
o céu de estrelas e o coração de Pedro. Punhos fechados
de crianças que se levantam.
Bocas que gritam se despedindo do chefe: Ba1a! Bala! Barandão está
na frente de todos. Ele agora é o chefe. Pedro Bala parece ver Volta
Seca, Sem-Pernas, Gato, Professor, Pirulito, Boa-Vida, João Grande
e Dora, todos ao mesmo tempo entre eles. Agora o destino deles mudou. A voz
do negro no mar canta o samba de Boa-Vida: Companheiros, vamos pra luta…
De punhos levantados, as crianças saúdam Pedro Bala, que parte
para mudar o destino de outras crianças. Barandão grita na frente
de todos, ele agora é o novo chefe.
De longe, Pedro Bala ainda vê os Capitães da Areia. Sob a lua,
num velho trapiche abandonado, eles levantam os braços. Estão
em pé, o destino mudou.
Na noite misteriosa das macumbas os atabaques ressoam como clarins de guerra.
… Uma Pátria e uma família Anos depois os jornais de classe,
pequenos jornais, dos quais vários não tinham existência
legal e se imprimiam em tipografias clandestinas, jornais que circulavam nas
fábricas, passados de mão em mão, e que eram lidos à
luz de fifós, publicavam sempre notícias sobre um militante
proletário, o camarada Pedro Bala, que estava perseguido pela policia
de cinco estados como organizador de greves, como dirigente de partidos ilegais,
como perigoso inimigo da ordem estabelecida.
No ano em que todas as bocas foram impedidas de falar, no ano que foi todo
ele uma noite de terror, esses jornais (únicas bocas que ainda falavam)
clamavam pela liberdade de Pedro Bala, líder da sua classe, que se
encontrava preso numa colônia.
E, no dia em que ele fugiu, em inúmeros lares, na hora pobre do jantar,
rostos se iluminaram ao saber da notícia. E, apesar de que fora era
o terror, qualquer daqueles lares era um lar que se abriria para Pedro Bala,
fugitivo da polícia.
Porque a revolução é uma pátria e uma família.
FIM
Na casa mal-assombrada de Doninha Quaresma (existiam botijas enterradas
e a alma de Doninha), hoje do Capitão, na paz de Estância. Sergipe,
março de 937.
A bordo do Rakuyo Maru, subindo a costa da América do pelo Pacífico,
em caminho do México, junho de 937.
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