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Joaqim Nabuco
PREFÁCIO
Já existe, felizmente, em nosso país, uma consciência
nacional – em formação, é certo – que vai introduzindo
o elemento da dignidade humana em nossa legislação, e para a
qual a escravidão, apesar de hereditária, é uma verdadeira
mancha de Caim que o Brasil traz na fronte. Essa consciência, que está
temperando a nossa alma, e há de por fim humanizá-la, resulta
da mistura de duas correntes diversas: o arrependimento dos descendentes de
senhores, e a afinidade de sofrimento dos herdeiros de escravos.
Não tenho, portanto, medo de que o presente volume não encontre
o acolhimento que eu espero por parte de um número bastante considerável
de compatriotas meus, a saber: os que sentem a dor do escravo como se fora
própria e, ainda mais, como parte de uma dor maior – a do Brasil, ultrajado
e humilhado; os que têm a altivez de pensar – e a coragem de aceitar
as conseqüências desse pensamento – que a pátria, como a
mãe, quando não existe para os filhos mais infelizes, não
existe para os mais dignos; aqueles para quem a escravidão, degradação
sistemática da natureza humana por interesses mercenários e
egoístas, se não é infamante para o homem educado e feliz
que a inflige, não pode sê-lo para o ente desfigurado e oprimido
que a sofre; por fim, os que conhecem as influências sobre o nosso país
daquela instituição no passado, e, no presente, o seu custo
ruinoso, e prevêem os feitos de sua continuação indefinida.
Possa ser bem aceita por eles esta lembrança de um correligionário
ausente, mandada do exterior, donde se ama mais a pátria do que no
próprio país – pela contingência de não tornar
a vê-la, pelo trabalho constante da imaginação, e pela
saudade que Garret nunca teria pintado ao vivo se não tivesse sentido
a nostalgia – e onde o patriotismo, por isso mesmo que o Brasil é visto
como um todo no qual homens e partidos, amigos e adversários se confundem
na superfície alumiada pelo sol dos trópicos, parece mais largo,
generoso e tolerante.
Quanto a mim, julgar-me-ei mais do que recompensado, se as sementes de liberdade,
direito e justiça, que estas páginas contêm, derem uma
boa colheita no solo ainda virgem da nova geração; e se este
livro concorrer, unindo em uma só legião os abolicionistas brasileiros,
para apressar, ainda que seja de uma hora, o dia em vejamos a independência
completada pela abolição, e o Brasil elevado à dignidade
de país livre, como o foi em 1822 à de nação soberana,
perante a América e o mundo.
Joaquim Nabuco
Londres, 8 de abril de 1863
I . QUE É O ABOLICIONISMO
A obra do presente e a do futuro
"Uma pátria respeitada, não tanto pela grandeza do seu
território como pela união dos seus filhos; não tanto
pelas leis escritas, como pela convicção de honestidade e justiça
do seu governo; não tanto pelas instituições deste ou
daquele molde, como pela prova real de que essas instituições
favorecem, ou, quando menos, não contrariam a liberdade e desenvolvimento
da nação."
Evaristo Ferreira da Veiga
Não há muito que se fala no Brasil em abolicionismo e partido
abolicionista. A idéia de suprimir a escravidão, libertando
os escravos existentes, sucedeu à idéia de suprimir a escravidão,
entregando-lhe o milhão e meio de homens de que ela se achava de posse
em 1871 e deixando-a acabar com eles. Foi na legislatura de 1879-80 que, pela
primeira vez, se viu dentro e fora do Parlamento um grupo de homens fazer
da emancipação dos escravos , não da limitação
do cativeiro às gerações atuais, a sua bandeira política,
a condição preliminar da sua adesão a qualquer dos partidos.
A história das oposições que a escravidão encontrara
até então pode ser resumida em poucas palavras. No período
anterior à Independência e nos primeiros anos subseqüentes,
houve, na geração trabalhada pelas idéias liberais do
começo do século, um certo desassossego de consciência
pela necessidade em que ela se viu de realizar a emancipação
nacional, deixando grande parte da população em cativeiro pessoal.
Os acontecimentos políticos, porém, absorviam a atenção
do povo, e com a revolução de 7 de abril de 1831, começou
um período de excitação que durou até a maioridade.
Foi somente no Segundo Reinado que o progresso dos costumes públicos
tornou possível a primeira resistência séria à
escravidão. Antes de 1840 o Brasil é presa do tráfico
de africanos; o estado do país é fielmente representado pela
pintura do mercado de escravos no Valongo.
A primeira oposição nacional à escravidão foi
promovida tão somente contra o tráfico. Pretendia-se suprimir
a escravidão lentamente, proibindo a importação de novos
escravos. À vista da espantosa mortalidade dessa classe, dizia-se que
a escravatura, um vez extinto o viveiro inesgotável da África,
iria sendo progressivamente diminuída pela morte, apesar dos nascimentos.
Acabada a importação de africanos pela energia e decisão
de Eusébio de Queiroz, e pela vontade tenaz do imperador – o qual chegou
a dizer em despacho que preferia perder a coroa a consentir na continuação
do tráfico -, seguiu-se à deportação dos traficantes
e à lei de 4 de setembro de 1850 uma calmaria profunda. Esse período
de cansaço, ou de satisfação pela obra realizada – em
todo caso de indiferença absoluta pela sorte da população
escrava -, durou até depois da guerra do Paraguai, quando a escravidão
teve que dar e perder outra batalha. Essa segunda oposição que
a escravidão sofreu, como também a primeira, não foi
um ataque ao acampamento do inimigo para tirar-lhe os prisioneiros, mas uma
limitação apenas do território sujeito às suas
correrias e depredações.
Com efeito, no fim de uma crise política permanente que durou de 1866
até 1871, foi promulgada a lei de 28 de setembro, a qual respeitou
o princípio de inviolabilidade do domínio do senhor sobre o
escravo, e não ousou penetrar, como se fora um local sagrado, interdito
ao próprio Estado, nos ergástulos agrários; e de novo,
a esse esforço, de um organismo debilitado para minorar a medo as conseqüências
da gangrena que o invadia, sucedeu outra calmaria de opinião, outra
época de indiferença pela sorte do escravo, durante a qual o
governo pode mesmo esquecer-se de cumprir a lei que havia feito passar.
Foi somente oito anos depois que essa apatia começou a ser modificada
e se levantou uma terceira oposição à escravidão;
desta vez, não contra os seus interesses de expansão, como era
o tráfico, ou as suas esperanças, como a fecundidade da mulher
escrava, mas diretamente contra as suas posses, contra a legalidade e a legitimidade
dos seus direitos , contra o escândalo da sua existência em uma
país civilizado e a sua perspectiva de embrutecer o ingênuo na
mesma senzala onde embrutecera o escravo.
Em 1850, queria-se suprimir a escravidão, acabando com o tráfico;
em 1871, libertando-se desde o berço, mas de fato depois dos vinte
e um anos, os filhos dos escravos ainda por nascer. Hoje quer-se suprimi-la,
emancipando os escravos em massa e resgatando os ingênuos da servidão
da lei de 28 de setembro. É este último movimento que se chama
abolicionismo, e só este resolve o verdadeiro problema dos escravos,
que é a sua própria liberdade. A opinião, em 1845, julgava
legítima e honesta a compra de africanos, transportados traiçoeiramente
da África e introduzidos por contrabando no Brasil. A opinião,
em 1875, condenava as transações dos traficantes, mas julgava
legítimas e honestas a matrícula depois de 30 anos de cativeiro
ilegal das vítimas do tráfico. O abolicionismo é a opinião
que deve substituir, por sua vez, esta última, e para a qual todas
as transações de domínio sobre entes humanos são
crimes que só diferem no grau de crueldade.
O abolicionismo, porém, não é só isso e não
se contenta com ser o advogado Ex officio da porção da raça
negra ainda escravizada; não reduz a sua missão a promover e
conseguir – no mais breve espaço possível – o resgate dos escravos
e dos ingênuos. Essa obra – de reparação, vergonha ou
arrependimento, como a queiram chamar – da emancipação dos atuais
escravos e seus filhos é apenas a tarefa imediata do abolicionismo.
Além dessa, há outra maior, a do futuro: a de apagar todos os
efeitos de um regime que, há três séculos, é uma
escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade
para a casta dos senhores, e que fez do Brasil o Paraguai da escravidão.
Quando mesmo a emancipação total fosse decretada amanhã,
a liquidação desse regime só daria lugar a uma série
infinita de questões, que só poderiam ser resolvidas de acordo
com os interesses vitais do país pelo mesmo espírito de justiça
e humanidade que dá vida ao abolicionismo. Depois que os últimos
escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a
raça negra a maldição da cor, será ainda preciso
desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a
lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é,
de despotismo, superstição e ignorância. O processo natural
pelo qual a escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante vitalidade
do nosso povo durante todo o período de crescimento, e enquanto a nação
não tiver consciência de que lhe é indispensável
adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a
escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo
quando não haja mais escravos.
O abolicionismo é, assim, uma concepção nova em nossa
história política, e dele, muito provavelmente, como adiante
se verá, há de resultar a desagregação dos atuais
partidos. Até bem pouco tempo a escravidão podia esperar que
a sua sorte fosse a mesma no Brasil que no Império Romano, e que a
deixassem desaparecer sem contorções nem mesmo violência.
A política dos nossos homens de Estado foi toda, até hoje, inspirada
pelo desejo de fazer a escravidão dissolver-se insensivelmente no país.
O abolicionismo é um protesto contra essa triste perspectiva, contra
o expediente de entregar à morte a solução de um problema
que não é só de justiça e consciência moral,
mas também de previdência política. Além disso,
o nosso sistema está por demais estragado para poder sofrer impunemente
a ação prolongada da escravidão. Cada ano desse regime
que degrada a nação toda, por causa de alguns indivíduos,
há de ser-lhe fatal, e se hoje basta, talvez, o influxo de uma nova
geração educada em outros princípios, para determinar
a reação e fazer o corpo entrar de novo no processo, retardado
e depois suspenso, do crescimento natural, no futuro, só uma operação
nos poderá salvar – à custa da nossa identidade nacional -,
isto é, a transfusão do sangue puro e oxigenado de uma raça
livre.
O nosso caráter, o nosso temperamento, a nossa organização
toda, física, intelectual e moral, acha-se terrivelmente afetada pelas
influências com que a escravidão passou trezentos anos a permear
a sociedade brasileira. A empresa de anular essas tendências é
superior, por certo, aos esforços de uma só geração,
mas, enquanto essa obra não estiver concluída, o abolicionismo
terá sempre razão de ser.
Assim como a palavra abolicionismo , a palavra escravidão é
tomada neste livro em sentido lato. Esta não significa somente a relação
do escravo para com o senhor; significa muito mais: a soma do poderio, influência,
capital e clientela dos senhores todos; o feudalismo, estabelecido no interior;
a dependência em que o comércio, a religião, a pobreza,
a indústria, o Parlamento, a Coroa, o Estado, enfim, se acham perante
o poder agregado da minoria aristocrática, em cujas senzalas milhares
de entes humanos vivem embrutecidos e moralmente mutilados pelo próprio
regime a que estão sujeitos; e por último, o espírito,
o princípio vital que anima a instituição toda, sobretudo
no momento em que ela entra a recear pela posse imemorial em que se acha investida,
espírito que há sido em toda a história dos países
de escravos a causa do seu atraso e da sua ruína.
A luta entre o abolicionismo e a escravidão é de ontem, mas
há de prolongar-se muito, e o período em que já entramos
há de ser caracterizado por essa luta. Não vale à escravidão
a pobreza dos seus adversários, nem a própria riqueza; não
lhe vale o imenso poderio que os abolicionistas conhecem melhor talvez do
que ela: o desenlace não é duvidoso. Essas contendas não
se decidem nem por dinheiro, nem por prestígio social, nem – por mais
numerosa que esta seja, por uma clientela mercenária. “O Brasil
seria o último dos países do mundo, se, tendo a escravidão,
não tivesse um partido abolicionista: seria a prova de que a consciência
moral ainda não havia despontado nele.” O Brasil seria o mais
desgraçado dos países do mundo, devemos acrescentar, hoje que
essa consciência despontou, se, tendo um partido abolicionista, esse
partido não triunfasse: seria a prova de que a escravidão havia
completado a sua obra e selado o destino nacional com o sangue dos milhões
de vítimas que fez dentro do nosso território. Deveríamos
então perder, para sempre, a esperança de fundar uma dia a pátria
que Evaristo sonhou.
II. O PARTIDO ABOLICIONISTA
"Não há maior honra para um partido do que sofrer
pela sustentação de princípios que ele julga serem justos”
W.E. Gladstone
O sentido em que é geralmente empregada a expressão partido
abolicionista não corresponde ao que, de ordinário, se entende
pela palavra partido . A esse respeito algumas explicações são
necessárias.
Não há dúvida de que já existe um núcleo
de pessoas identificadas com o movimento abolicionista, que sentem dificuldade
em continuar filiadas nos partidos existentes, por causa das suas idéias.
Sob a bandeira da abolição, combatem hoje liberais, conservadores,
republicanos, sem outro compromisso – e este tácito e por assim dizer
de honra política – senão o de subordinarem a rejeição
partidária a outra maior, à consciência humana. Assim
como, na passada legislatura, diversos liberais julgaram dever votar pela
idéia abolicionista de preferência a votar pelo seu partido,
também nas seguintes encontrar-se-ão conservadores prontos a
fazer outro tanto e republicanos que prefiram combater pela causa da liberdade
pessoal dos escravos a combater pela forma de governo da sua aspiração.
A simples subordinação do interesse de qualquer dos atuais
partidos ao interesse da emancipação basta para mostrar que
o partido abolicionista, quando surgir, há de satisfazer um ideal de
pátria mais elevado, compreensivo e humano, do que o de qualquer dos
outros partidos já formados, os quais são todos mais ou menos
sustentados e bafejados pela escravidão. Não se pode todavia,
por enquanto, chamar partido à corrente de opinião, ainda não
encaminhada para seu destino, a cuja expansão assistimos.
Entende-se por partido não uma opinião somente, mas uma opinião
organizada para chegar aos seus fins: o abolicionismo é por hora, uma
agitação, e é cedo ainda para se dizer se será
algum dia um partido. Nós o vemos desagregando fortemente os partidos
existentes, e até certo ponto constituindo uma igreja à parte
composta dos cismáticos de todas as outras. No Partido Liberal a corrente
conseguiu, pelo menos, pôr a descoberto os alicerces mentirosos do liberalismo
entre nós. Quanto ao Partido Conservador, devemos esperar a prova da
passagem pelo poder que desmoralizou os seus adversários, para sabermos
que ação o abolicionismo exercerá sobre ele. Uma nova
dissidência, com a mesma bandeira de 1871, valeria um exército
para a nossa causa. Restam os republicanos.
O abolicionismo afetou esse partido de um modo profundo, e a nenhum fez tanto
bem. Foi a lei de 28 de setembro e a idéia, adrede espalhada entre
os fazendeiros, de que o imperador era o chefe do movimento contra a escravidão,
que de repente engrossou as fileiras republicanas com uma leva de voluntários
saídos de onde menos se imaginava. A República compreendeu a
oportunidade dourada que se lhe oferecia, e não a desprezou; o partido,
não falo da opinião, mas da associação, aproveitou
largamente as simpatias que lhe procurava a corajosa defesa, empreendida notavelmente
pelo sr. Cristiano Ottoni, dos interesses da grande propriedade. Como era
natural, por outro lado, o abolicionismo, depois de muitas hesitações,
impôs-se ao espírito de grande número de republicanos
como uma obrigação maior, mais urgente, mais justa, e a todos
os respeitos mais considerável, do que a de mudar a forma do governo
com o auxílio de proprietários de homens. Foi na forte democracia
escravagista de São Paulo que a contradição desses dois
estados sociais se manifestou de modo mais evidente.
Supondo que a República seja a forma natural da democracia, ainda
assim, o dever de elevar os escravos a homens precede a toda arquitetura democrática.
O abolicionismo num país de escravos é para o republicano de
razão a República oportunista, a que pede o que pode conseguir
e o que mais precisa, e não se esteriliza em querer antecipar uma ordem
de coisas da qual o país só pode tirar benefícios reais
quando nele não houver mais senhores . Por outro lado, a teoria inventada
para contornar a dificuldade sem a resolver, de que pertence à Monarquia
acabar com a escravidão, e que o Partido Republicano nada tem com isso,
lançou, para muitos que se haviam alistado nas fileiras da República,
um clarão sinistro sobre a aliança contraída em 1871.
É, com efeito, difícil hoje a um liberal ou conservador, convencido
dos princípios cardeais do desenvolvimento social moderno e do direito
inato – no estado de civilização – de cada homem à sua
liberdade pessoal, e deve sê-lo muito mais para um republicano, fazer
parte homogênea de organizações em cujo credo a mesma
natureza humana pode servir para base da democracia e da escravidão,
conferir a um indivíduo, ao mesmo tempo, o direito de tomar parte no
governo do país e o de manter outros indivíduos – porque os
comprou ou os herdou – em abjeta subserviência forçada, durante
toda a vida. Conservadores constitucionais; liberais que se indignam contra
o governo pessoal, republicanos, que consideram degradante o governo monárquico
da Inglaterra e da Bélgica, exercitando dentro das porteiras das suas
fazendas, sobre centena de entes rebaixados da dignidade de pessoa , poder
maior que o de um chefe africano nos seus domínios, sem nenhuma lei
escrita que o regule, nenhuma opinião que o fiscalize, discricionário,
suspeitoso, irresponsável: que mais é preciso para qualificar,
segundo uma frase conhecida, essa audácia com que os nossos partidos
assumem os grandes nomes que usam – de estelionato político?
É por isso que o abolicionismo desagrega dessas organizações
os que as procuram por causa daqueles nomes históricos, segundo as
suas convicções individuais. Todos os três partidos baseiam
as sua aspirações políticas sobre um estado social cujo
nivelamento não os afeta; o abolicionismo, pelo contrário, começa
pelo princípio, e, antes de discutir qual o melhor modo para um povo
ser livre de governar-se a si mesmo – é essa a questão que divide
os outros -, trata de tornar livre a esse povo, aterrando o imenso abismo
que separa as duas castas sociais em que ele se extrema.
Nesse sentido, o abolicionismo deveria ser a escola primária de todos
os partidos, o alfabeto da nossa política, e não o é;
por um curioso anacronismo, houve um partido republicano muito anos antes
de existir uma opinião abolicionista, e daí a principal razão
porque essa política é uma Babel na qual ninguém se entende.
Qual será, porem, o resultado da desagregação inevitável?
Irão os abolicionistas, separados, pela sinceridade das suas idéias
de partidos, que têm apenas interesses e ambições pessoais
como razão de ser, e os princípios somente por pretexto, agrupando-se
lentamente num partido comum, a princípio unidos pela proscrição
social que estão sofrendo, e depois pela esperança de vitória?
Haverá um partido abolicionista organizado, com a intuição
completa da sua missão no presente e no futuro, para presidir à
transformação do Brasil escravo no Brasil livre, e liquidar
a herança da escravidão?
Assim aconteceu nos Estados Unidos. onde o atual Partido Republicano, ao
surgir na cena política, teve que dominar a rebelião, emancipar
quatro milhões de escravos, estabelecer definitivamente o novo regime
de liberdade e da igualdade em Estados que queriam formar, nas praias do golfo
do México, a maior pot&ececirc;ncia escravocrata do mundo. É natural
que isso aconteça no Brasil; mas é possível também
que – em vez de fundir-se num só partido por causa das grandes divergências
internas entre liberais, conservadores e republicanos – o abolicionismo venha
trabalhar os três partidos de forma a cindi-los sempre que seja preciso
– como o foi em 1871 para a passagem da lei Rio Branco – reunir os elementos
progressistas de cada um numa cooperação desinteressada e transitória,
numa aliança política limitada a certo fim; ou que venha mesmo
a decompor, e reconstituir diversamente os partidos existentes, sem, todavia,
formar um partido único e homogêneo.
O advento do abolicionismo coincidiu com a eleição direta,
e sobretudo com a aparição de uma força, a qual se está
solidificando em torno da imprensa- cuja barateza e distribuição
por todas as classes é um fator importante na história da democratização
do país -, força que é a opinião pública.
Todos esses elementos devem ser tomados em consideração quando
se quer saber como o abolicionismo há de, por fim, constituir-se.
Neste livro, entretanto, a expressão partido abolicionista significará
tão somente, o movimento abolicionista, a corrente de opinião
que se está desenvolvendo do Norte ao Sul. É claro que há
no grupo de pessoas que têm manifestado vontade de aderir àquele
movimento mais do que o embrião de um partido. Caso amanhã,
por qualquer circunstância, se organizasse um gabinete abolicionista,
se o que constitui um partido são pretendentes a posições
ou honras políticas, aspirantes a lugares remunerados, clientes de
ministros, caudatários do governo – aquele núcleo sólido
teria uma cauda adventícia tão grande pelo menos como a dos
partidos oficiais.
Basta considerar que, quanto mais se fracionam esses partidos no governo,
mais lhes cresce o séquito. O poder é infelizmente entre nós
– e esse é um dos efeitos mais incontestáveis do servilismo
que a escravidão deixa após si – a região gerações
espontâneas. Qualquer ramo, por mais murcho e seco, deixado numa noite
ao alento desta atmosfera privilegiada, aparece na manhã seguinte coberto
de folhas. Não há como negar o influxo desse fiat : é
toda a nossa história. “O Poder é o Poder” foi uma
frase que resumiu a sabedoria da experiência de todos os nossos homens
públicos, e sobre a qual assentam todos os seus cálculos. Nenhuma
opinião remotamente distante do governo pode ostentar o pessoal numeroso
dos dois partidos que se alternam no exercício do patronado e na guarda
do cofre das graças, distribuem empresas e favores, e por isso têm
em torno de si, ou às suas ordens e sob seu mando – num país
que a escravidão empobreceu e carcomeu -, todos os elementos dependentes
e necessitados da população. Isso mesmo caracteriza a diferença
entre o abolicionismo e os dois partidos constitucionais: o poder destes é,
praticamente, o poder da escravidão toda, como instituição
privada e como instituição política; o daquele é
o poder tão somente das forças que começam a rebelar-se
contra semelhante monopólio – da terra, do capital e do trabalho –
que faz da escravidão um estado no Estado, cem vezes mais forte do
que a própria nação.
III. O MANDATO DA RAÇA NEGRA
Se a inteligência nativa e a independência dos bretões
não conseguem sobreviver no clima insalubre e adverso da escravidão
pessoal, como se poderia esperar que os pobres africanos, sem o apoio de nenhum
sentimento de dignidade pessoal ou de direitos civis, não cedessem
às influências malignas a que há tanto tempo estão
sujeitos e não ficassem deprimidos mesmo abaixo do nível da
espécie humana?
William Wilbeforce
O mandato abolicionista é uma dupla delegação, inconsciente
da parte dos que a fazem, mas, em ambos os casos, interpretada pelos que a
aceitam como um mandato a que não se pode renunciar. Nesse sentido,
deve-se dizer que o abolicionista é o advogado gratuito de duas classes
sociais que, de outra forma, não teriam meios de reivindicar os seus
direitos, nem consciência deles. Essas classes são: os escravos
e os ingênuos. Os motivos pelos quais essa procuração
tácita impõem-nos uma obrigação irrenunciável
não são puramente – para muitos não são mesmo
principalmente – motivos de humanidade, compaixão e defesa generosa
do fraco e do oprimido.
Em outros países, a propaganda da emancipação foi um
movimento religioso, pregado do púlpito, sustentando com fervor pelas
diferentes igrejas e comunhões religiosas. Entre nós, o movimento
abolicionista nada deve, infelizmente, à Igreja do Estado; pelo contrário,
a posse de homens e mulheres pelos conventos e por todo o clero secular desmoralizou
inteiramente o sentimento religiosos de senhores e escravos. No sacerdote,
estes não viam senão um homem que os podia comprar, e aqueles
a última pessoa que se lembraria de acusá-los. A deserção,
pelo nosso clero, do posto que o Evangelho lhe marcou, foi a mais vergonhosa
possível: ninguém o viu tomar a parte dos escravos, fazer uso
da religião para suavizar-lhes o cativeiro, e para dizer a verdade
moral aos senhores. Nenhum padre tentou, nunca, impedir um leilão de
escravos, nem condenou o regime religiosos das senzalas. A Igreja Católica,
apesar do seu imenso poderio em um país ainda em grande parte fanatizado
por ela, nunca elevou no Brasil a voz em favor da emancipação.
Se o que dá força ao abolicionismo não é principalmente
o sentimento religioso, o qual não é a alavanca de progresso
que poderia ser, por ter sido desnaturado pelo próprio clero, também
não é o espírito de caridade ou filantropia. A guerra
contra a escravidão foi, na Inglaterra, um movimento religioso e filantrópico,
determinado por sentimentos que nada tinham de político, senão
no sentido em que se pode chamar política à moral social do
Evangelho. No Brasil, porém, o abolicionismo é antes de tudo
um movimento político, para o qual, sem dúvida, poderosamente
concorre o interesse pelos escravos e a compaixão pela sua sorte, mas
que nasce de um pensamento diverso: o de reconstruir o Brasil sobre o trabalho
livre e a união das raças na liberdade.
Nos outros países o abolicionismo não tinha esse caráter
de reforma política primordial, porque não se queria a raça
negra para elemento permanente de população, nem como parte
homogênea da sociedade. O negro, libertado, ficaria nas colônias,
não seria nunca um fator eleitoral na própria Inglaterra, ou
França. Nos Estados Unidos os acontecimentos marcharam com tanta rapidez
e desenharam-se por tal forma, que o Congresso se viu forçado a fazer
dos antigos escravos do Sul, de um dia para o outro, cidadãos americanos,
com os mesmos direitos que os demais; mas esse foi um dos resultados imprevistos
da guerra. A abolição não tinha, até o momento
da Emenda constitucional, tão amplo sentido, e ninguém sonhara
para o negro ao mesmo tempo a alforria e o voto.
No Brasil, a questão não é, como nas colônias
européias, um movimento de generosidade em favor de uma classe de homens
vítimas de uma opressão injusta a grande distância das
nossas praias. A raça negra não é, tampouco, para nós,
uma raça inferior, alheia à comunhão, ou isolada desta,
e cujo bem estar nos afete como o de qualquer tribo indígena maltratada
pelos invasores europeus. Para nós, a raça negra é um
elemento de considerável importância nacional, estreitamente
ligada por infinitas relações orgânicas à nossa
constituição, parte integrante do povo brasileiro. Por outro
lado, a emancipação não significa tão somente
a termo da injustiça de que o escravo é mártir, mas também
a eliminação simultânea dos dois tipos contrários,
e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor.
É esse ponto de vista, da importância fundamental da emancipação,
que nos faz sub-rogar-nos nos direitos de que os escravos e os seus filhos
– chamados ingênuos por uma aplicação restrita da palavra,
a qual mostra bem o valor das ficções que contrastam com a realidade
– não podem ter consciência, ou, tendo-a, não podem reclamar,
pela morte civil a que estão sujeitos. Aceitamos esse mandato como
homens políticos, por motivos políticos, e assim representamos
os escravos e os ingênuos na qualidade de brasileiros que julgam o seu
título de cidadão diminuído enquanto houver brasileiros
escravos, isto é, no interesse de todo o país e no nosso próprio
interesse.
Quem pode dizer que a raça negra não tem direito e protestar
perante o mundo e perante a história contra o procedimento do Brasil?
A esse direito de acusação, entretanto, ela própria renunciou;
ela não apela para o mundo, mas tão somente para a generosidade
do país que a escravidão lhe deu por pátria. Não
é já tempo que os brasileiros prestem ouvidos a esse apelo?
Em primeiro lugar, a parte da população nacional que descende
de escravos é, pelo menos, tão numerosa como a parte que descende
exclusivamente de senhores; a raça negra nos deu um povo. Em segundo
lugar, o que existe até hoje sobre o vasto território que se
chama Brasil foi levantado ou cultivado por aquela raça; ela construiu
o nosso país. Há trezentos anos que o africano tem sido o principal
instrumento da ocupação e da manutenção do nosso
território pelo europeu, e que os seus descendentes se misturam com
o nosso povo. Onde ele não chegou ainda, o país apresenta o
aspecto com que surpreendeu os seus primeiros descobridores. Tudo o que significa
luta do homem com a natureza, conquista do solo para a habitação
e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor
e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios,
telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente
tudo que existe no pais, como resultado trabalho manual, como emprego de capital,
como acumulação de riqueza, não passa de uma doação
gratuita da raça que trabalha à que faz trabalhar.
Por esse sacrifícios sem número, por esses sofrimentos, cuja
terrível concatenação com o progresso lento do país
faz da história do Brasil um dos mais tristes episódios do povoamento
da América, a raça negra fundou, para outros, uma pátria
que ela pode, com muito mais direito, chamar sua. Suprima-se mentalmente essa
raça e o seu trabalho, e o Brasil não será, na sua maior
parte, senão um território deserto, quando muito um segundo
Paraguai, guarani e jesuítico.
Nessas condições é tempo de renunciarmos ao usufruto
dos últimos representantes dessa raça infeliz. Vasconcelos,
ao dizer que nossa civilização viera da costa d’África,
pôs patente, sem querer, o crime do nosso país escravizando os
próprios que o civilizaram. Já vimos com que importante contingente
essa raça concorreu pão moderna repousa sobre uma base diversa
da escravidão antiga: a cor preta. Ninguém pensa em reduzir
homens brancos ao cativeiro: para este ficaram reservados povo exclusivamente
branco, e não devemos portanto admitir essa maldição
pela cor; pelo contrário, devemos tudo fazer por esquecê-la.
A escravidão, por felicidade nossa, não azedou nunca a alma
do escravo contra o senhor – falando coletivamente – nem criou entre as duas
raças o ódio recíproco que existe naturalmente entre
opressores e oprimidos. Por esse motivo, o contato entre elas sempre foi isento
de asperezas, fora da escravidão, e o homem de cor achou todas as avenidas
abertas diante de si. Os debates da última legislatura, e o modo liberal
pelo qual o Senado assentiu à elegibilidade dos libertos, isto é,
ao apagamento do último vestígio de desigualdade da condição
anterior, mostram que a cor no Brasil não é, como nos Estados
Unidos, um preconceito social contra cuja obstinação pouco pode,
o talento e o mérito de quem incorre nele. Essa boa inteligência
em que vivem os elementos, de origem diferente, da nossa nacionalidade é
um interesse público de primeira ordem para nós.
Ouvi contar que, estando Antônio Carlos a ponto de expirar, um indivíduo
se apresentava na casa onde finava o grande orador, instando por vê-lo.
Havia ordem de não admitir pessoas estranhas no quarto do moribundo,
e o amigo encarregado de executá-las teve que recusar ao visitante
esse favor – que ele implorava com água nos olhos – de contemplar antes
da morte o último dos Andradas. Por fim, notando a insistência
desesperada do desconhecido, perguntou-lhe o amigo que estava de guarda: “Mas
por que o senhor quer tanto ver o sr. Antônio Carlos?” “Por
que quero vê-lo?”, respondeu ele numa explosão de dor,
“Não vê a minha cor! Pois se não fosse os Andradas,
que éramos nós no Brasil? Foram eles que nos deram esta pátria!”
Sim, foram eles que deram uma pátria aos homens de cor livres, mas
essa pátria, é preciso que nós a estendamos, por nossa
vez, aos que não o são. Só assim poder-se-á dizer
que o Brasil é uma nação demasiado altiva para consentir
que sejam escravos brasileiros de nascimento, e generosa bastante para não
consentir que o sejam africanos, só por pertencerem uns e outros à
raça que fez do Brasil o que ele é.
IV. CARÁTER DO MOVIMENTO ABOLICIONISTA
Não é por ação direta e pessoal sobre o espírito
do escravo que lhe podemos fazer algum bem. É com os livres que devemos
pleitear a causa daquele. A lei eterna obriga-nos a tomar a parte do oprimido,
e essa lei torna-se muito mais obrigatória desde que nós lhe
proibimos levantar o braço em defesa própria.
W. Channing
Estas palavras de Channing mostram, ao mesmo tempo, a natureza e as dificuldades
de uma campanha abolicionista, onde quer que seja travada. É uma luta
que tem, como teve sempre em toda a parte, dois grandes embaraços:
o primeiro, o estarem as pessoas que queremos salvar nas mãos dos adversários,
como reféns; o segundo, o se acharem os senhores, praticamente, à
mercê dos escravos. Por isso também os abolicionistas, que querem
conciliar todas as classes, e não indispor umas contra as outras; que
não pedem a emancipação no interesse tão somente
do escravo, mas do próprio senhor, e da sociedade toda; não
podem querer instilar no coração do oprimido um ódio
que ele não sente, e muito menos fazer apelo a paixões que não
servem para fermento de uma causa, que não se resume na reabilitação
da raça negra, mas que é equivalente, como vimos à reconstituição
completa do país.
A propaganda abolicionista, com efeito, não se dirige aos escravos.
Seria uma covardia, inepta e criminosa, e, além disso um suicídio
político para o partido abolicionista, incitar à insurreição,
ou ao crime, homens sem defesa, e que a lei de Lynch, ou a justiça
pública, imediatamente haveria de esmagar. Covardia, porque seria expor
outros a perigos que o provocador não correria com eles; inépcia,
porque todos os fatos dessa natureza dariam como único resultado para
o escravo a agravação do seu cativeiro; crime, porque seria
fazer os inocentes sofrerem pelos culpados. além da cumplicidade que
cabe ao que induz outrem a cometer um crime; suicídio político,
porque a nação inteira – vendo uma classe, e essa a mais influente
e poderosa do Estado, exposta à vindita bárbara e selvagem de
uma população mantida até hoje ao nível dos animais
e cujas paixões, quebrado o freio do medo, não conheceriam limites
no modo de satisfazer-se – pensaria que a necessidade urgente era salvar a
sociedade a todo o custo por um exemplo tremendo, e este seria o sinal de
morte do abolicionismo de Wilbeforce, Lamartine, e Garrison, que é
o nosso, e do começo do abolicionismo de Catilina ou de Espártaco,
ou de John Brown.
A escravidão não há de ser suprimida no Brasil por uma
guerra servil, muito menos por insurreições ou atentados locais.
Não deve sê-lo, tampouco, por uma guerra civil, como o foi nos
Estados Unidos. Ela poderia desaparecer, talvez, depois de uma revolução,
como aconteceu na França, sendo essa revolução obra exclusiva
da população livre; mas tal possibilidade não entra nos
cálculos de nenhum abolicionista. Não é, igualmente,
provável que semelhante reforma seja feita por um decreto majestático
da Coroa, como o foi na Rússia, nem por um ato de inteira iniciativa
do governo central, como foi, nos Estados Unidos, a proclamação
de Lincoln.
A emancipação há de ser feita, entre nós, por
uma lei que tenha os requisitos, externos e internos, de todas as outras.
É assim, no Parlamento e não em fazendas ou quilombos do interior,
nem nas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar, ou perder,
a causa da liberdade. Em semelhante luta, a violência, o crime, o desencadeamento
de ódios acalentados, só pode ser prejudicial ao lado que tem
por si o direito, a justiça, a procuração dos oprimidos
e os votos da humanidade toda.
A escravidão é um estado violento de compressão da natureza
humana no qual não pode deixar e haver, de vez em quando, uma forte
explosão. Não temos estatísticas dos crimes agrários,
mas pode-se dizer que a escravidão continuamente expõe o senhor
ou os seus agentes, e tenta o escravo, à prática de crimes de
maior ou menor gravidade. Entretanto, o número de escravos que saem
do cativeiro pelo suicídio deve aproximar-se do número dos que
se vingam do destino da sua raça na pessoa que mais os atormenta, de
ordinário, o feitor. A vida, do berço ao túmulo, literalmente,
debaixo do chicote é uma constante provocação dirigida
ao animal humano, e à qual cada um de nós preferiria, mil vezes,
a morte. Quem pode, assim, condenar o suicídio do escravo como covardia
ou deserção? O abolicionismo, exatamente porque a criminalidade
entre os escravos resulta da perpetuidade da sua condição, concorre
para diminuí-la, dando uma esperança à vítima.
Um membro do nosso Parlamento, o sr. Ferreira Viana, lavrou na sessão
passada a sua presença condenatória da propaganda abolicionista,
dizendo que era perverso quem fazia nascer no coração do infeliz
uma esperança que não podia ser realizada.
Essa frase condena por perverso todos os que têm levantado no coração
dos oprimidos, durante a vida da humanidade esperanças irrealizáveis.
Reveja bem o ilustre orador a lista dos que assim proscreve e nela há
de achar os fundadores de todas as religiões – e, se essa classe não
lhe parece respeitável, os vultos do catolicismo -, os mártires
de todas as idéias, todas as minorias esmagadas, os vencidos das grandes
causas. Para ele, pregador leigo da religião católica, perverso
não é quem oprime, viola o direito, prostitui o Evangelho, ultraja
a pátria, diminui a humanidade: mas sim o que diz ao oprimido, nesse
caso o escravo:
Não desanimes, o teu cativeiro não há de ser perpétuo,
o direito há de vencer a força, a natureza humana há
de reagir em teu favor, nos próprios que a mutilam em ti; a pátria
há de alargar as suas fronteiras morais até de abranger
Este, sim, é perverso, chamasse ele, em vez de André Rebouças,
Joaquim Serra, Ferreira de Meneses, Luís Gama, ou outro qualquer nome
de abolicionista brasileiro, Granville Sharpe, Buxton, Whittier, ou Longfellow.
Quando mesmo essa esperança nos parecesse irrealizável, não
seria perversidade fazer penetrar no cárcere do escravo, onde reina
noite perpétua, um raio de luz que o ajudasse a ser bom e a viver.
Mas a esperança não nos parece irrealizável, graças
a Deus, e nós não a afagamos só pelo escravo, afagamo-la
por nós mesmos também, porque o mesmo dia que der a liberdade
àquele – e esse somente – há de dar-nos uma dignidade, que hoje
não o é – a de cidadão brasileiro.
Como se pode, de boa fé, alegar que é socialmente perigoso
esse sentimentos que nos faz reclamar da adoção das famílias
mais do que plebéias, para quais a lei achou que bastava o contubernium
; expatriar-nos moralmente, quer estejamos fora, quer dentro do país,
porque traçamos as fronteiras da nacionalidade além da lei escrita,
de forma a compreender esse povo que não é nem estrangeiro nem
nacional e, perante o Direito das gentes, não tem pátria? Que
crime seria perante um tribunal do qual Jesus Cristo e São Francisco
de Assis fossem os juizes, esse de confundirmos as nossas aspirações
com as de quantos, tendo nascido brasileiros, não fazem parte da comunhão,
mas pertencem a ela, como qualquer outra propriedade, e estão inscritos,
não nos alistamentos eleitorais, mas na matrícula das coisas
sobre as quais o Estado cobra impostos?
Os escravos, em geral, não sabem ler, não precisam, porém,
soletrar a palavra liberdade para sentir a dureza da sua condição.
A consciência neles pode estar adormecida, o coração resignado,
a esperança morta: eles podem beijar com reconhecimento os ferros que
lhes apertam os pulsos; exaltar-se, na sua triste e tocante degradação,
com a posição, a fortuna, o luxo do seu senhor; recusar a alforria
que este lhes ofereça, para não terem que se separar da casa
onde foram crias; chamar-se, quando libertos, pelo nome de seus patronos;
esquecer-se de si mesmos como o asceta, para viverem na adoração
do deus que criaram, prontos a sacrificar-lhe tudo. Que prova isso senão
que a escravidão, em certos casos isolados e domésticos, consegue
criar um tipo heróico de abnegação e desinteresse, e
esse não o senhor, mas o escravo?
Pois bem, como pode o abolicionismo que, em toda a sua vasta parte inconsciente,
não é uma renovação social, mas uma explosão
de simpatia e de interesse pela sorte do escravo, azedar a alma deste, quando
trezentos anos de escravidão não o conseguiram? Por que há
de a esperança provocar tragédias como o desespero não
teve que registrar? Por que hoje, que a sua causa está afeta ao tribunal
da consciência pública, por advogados que se identificaram com
ela e, para a defenderem como ela o exige, praticamente trocaram as roupas
do cidadão pelas do hilota, hão de compreender essa defesa,
fazendo o que nunca fizeram quando não achavam em todo o país
senão espectadores indiferentes ao seu suplício?
Isso, por certo, não é natural, e, se tal porventura acontecesse,
a explicação verdadeira seria: não que esses fatos foram
o resultado da disseminação das idéias abolicionistas
pelo país; mas sim que, fechados nos latifúndios, os escravos
nem tinham consciência de que a sua sorte estava preocupando a nação
toda, de que o seu cativeiro tocara por fim o coração do povo,
e havia para eles uma esperança ainda que remota, de liberdade. Quanto
mais crescer a obra do abolicionismo, mas se dissiparão os receios
de uma guerra servil, de insurreições e atentados.
A propaganda abolicionista é dirigida contra uma instituição
e não contra pessoas. Não atacamos os proprietários como
indivíduos, atacamos o domínio que exercem e o estado de atraso
em que a instituição que representam mantém o país
todo. As seguintes palavras do Manifesto da sociedade brasileira contra a
escravidão expressam todo o pensamento abolicionista:
O futuro dos escravos depende, em grande parte, dos seus senhores; a nossa
propaganda não pode, por conseqüência, tender a criar entre
senhores e escravos senão sentimentos de benevolência e solidariedade.
Os que, por motivo dela, sujeitarem os seus escravos a tratos piore, são
homens que têm em si mesmos a possibilidade de serem bárbaros
e não têm a de serem justos
Nesse caso, devo eu acrescentar, não se teria provado a perversidade
da propaganda, mas só a impotência da lei para proteger os escravos,
e os extremos desconhecidos de crueldade a que a escravidão pode chegar.
como todo o poder que não é limitado por nenhum outro e não
sabe conter a si próprio. Em outras palavras, ter-se-ia justificado
o abolicionismo no modo mais completo possível.
A não ser essa contingência, cuja responsabilidade não
poderia em caso algum caber-nos, a campanha abolicionista só há
de concorrer, pelos benefícios que espalhar entre os escravos, para
impedir e diminuir os crimes de que a escravidão sempre foi causa,
e que tanto avultaram – quando não existia ainda partido abolicionista
e as portas do Brasil estavam abertas ao tráfico de africanos – que
motivaram a lei de segurança de 10 de junho de 1835. Não é
aos escravos que falamos, é aos livres: em relação àqueles
fizemos nossa divisa das palavras de sir Walter Scott: “Não acordeis
o escravo que dorme, ele sonha talvez que é livre.”
V. “A CAUSA JÁ ESTÁ VENCIDA”
Trinta anos de escravidão com as suas degradações,
os seus castigos corporais, as suas vendas de homens, mulheres e crianças,
como animais domésticos e coisas, impostos a um milhão e meio
de criaturas humanas, é um prazo demasiado longo para que os amigos
da humanidade o aceitem resignados.
Victor Schoelcher
“A causa que vós, abolicionistas, advogais”, dizem-nos
todos os dias, não só os que nos insultam, mas também
os que simpatizam conosco, “é uma causa vencida, há muito
tempo, na consciência pública.” Tanto quanto esta proposição
tem alcance prático, significa isto: “O país já
decidiu, podeis estar descansados, os escravos serão todos postos em
liberdade; não há, portanto, necessidade alguma de um partido
abolicionista para promover os interesses daqueles enjeitados que a nação
toda perfilhou”. Mas, quem diz isso tem um único fim – desarmar
os defensores dos escravos para que o preço desses não diminua
pela incerteza da longa posse que a lei atual promete ao senhor, e conseguir
que a escravidão desapareça naturalmente, graças à
mortalidade progressiva numa população que não pode aumentar.
É claro que, para quem fala assim, os ingênuos são homens
livres, não enchem anualmente os claros da escravatura, pelo que não
é preciso que alguém tome a si a proteção dessas
centenas de milhares de pessoas que são escravos somente até
os vinte e um anos de idade, isto é, apenas escravos provisórios.
O repugnante espetáculo de uma massa de futuros cidadãos crescendo
nas senzalas, sujeitos ao mesmo sistema de trabalho, à mesma educação
moral, ao mesmo tratamento que os escravos, não preocupa os nossos
adversários. Eles não acrescentam à massa dos escravos
a massa dos ingênuos, quando inventariam os créditos a longo
prazo da escravidão, nem quando lhe arrolam os bens existentes: mas
para nós a sorte dos ingênuos é um dos dados, como a dos
escravos, de um só problema.
Será, entretanto, exato que esteja vencida no espírito público
a idéia abolicionista? Neste momento não indagamos os fundamentos
que há para se afirmar, como nós afirmamos, que a maioria do
país está conosco sem o poder manifestar. Queremos tão
somente saber se a causa do escravo está ganha, ou pelo menos tão
segura quanto à decisão final, que possa correr à revelia;
se podemos cruzar os braços, coma certeza de ver esse milhão
e meio de entes humanos emergir pouco a pouco do cativeiro e tomar lugar ao
nosso lado.
Qual é a esperança de liberdade fundada sobre fatos – não
se trata da que provém da fé na Providência – que o escravo
pode alimentar neste momento da nossa história? Cada homem livre que
se imagine naquela posição e responda a esta pergunta.
Se fosse escravo de um bom senhor, e fosse um bom escravo – ideal que nenhum
homem livre poderia inteiramente realizar e que exige uma educação
à parte -, teria sempre esperança de alforria. Mas os bons senhores
muitas vezes são pobres e vêem-se obrigados a vender o escravo
ao mau senhor. Além disso eles têm filhos, de quem não
querem diminuir a legítima. Por outro lado, se há proprietários
que forram grandes números de escravos, outros há que nunca
assinam uma carta de liberdade. Admitindo-se que o número de alforrias
vá aumentando progressivamente – o que já é um resultado
incontestável do abolicionismo, que tem formado em pouco tempo uma
opinião pública interessada, vigilante, pronta a galardoar e
levar em contas tais atos de consciência – ainda assim quantos escravos,
proporcionalmente à massa total, são libertados e quantos morrem
à cada ano? A alforria como doação é uma esperança
que todo escravo pode ter, mas que relativamente é a sorte de muito
poucos. Nessa loteria quase todos os bilhetes saem brancos; a probabilidade
é vaga demais para servir de base sólida a qualquer cálculo
de vida e de futuro. A generalidade dos nossos escravos morrem no cativeiro;
os libertos sempre foram exceções.
Ponha-se de lado essa esperança de que o senhor lhe dê a liberdade,
esperança que não constitui um direito; que porta há
na lei para o escravo sair do cativeiro? A lei de 28 de setembro de 1871 abriu-lhe,
mas não lhe facilitou, dois caminhos: o do resgate forçado pelo
pecúlio, e o do sorteio anual. O primeiro, infelizmente, pelo aparelho
imperfeito e desfigurado por atenções particulares que exercita
essa importante função na lei Rio Branco, está em uso
nas cidades, não nas fazendas: serve para os escravos urbanos, não
para os rurais. Assim mesmo essa aberta daria saída a grande proporção
de escravos, se a escravidão não houvesse atrofiado entre nós
o espírito de iniciativa, e a confiança em contratos de trabalho.
Basta esta prova: que um escravo não acha um capital suficiente para
libertar-se mediante a locação de seus serviços, para
mostrar o que é a escravidão como sistema social e econômico.(1)
Quanto ao fundo de emancipação do Estado, sujeito, como ponderou
no Senado o barão de Cotejipe, a manipulações dos senhores
interessados, ver-se-á mais longe a insignificante porcentagem que
o sorteio abate todos os anos no rol dos escravos. Fora dessas esperanças,
fugitivas todas, mas que o abolicionismo há de converter na maior parte
dos casos em realidade, que resta aos escravos? Absolutamente nada.
Desapareça o abolicionismo, que é a vigilância, a simpatia,
o interesse da opinião pela sorte desses infelizes; fiquem eles entregues
ao destino que a lei lhes traçou, e ao poder do senhor tal qual é,
e a morte continuará a ser, como é hoje, a maior das probabilidades,
e a única certeza, que eles tem de sair um dia do cativeiro.
Isso quanto à duração deste: quanto à sua natureza,
é hoje o que foi sempre. Nas mãos de um bom senhor, o escravo
pode ter uma vida feliz, como a do animal bem tratado e predileto; nas mãos
de um mau senhor, ou de uma má senhora (a crueldade das mulheres é
muitas vezes mais requintada e persistente do que a dos homens) não
há como escrever a vida de um desses infelizes. Se houvesse um inquérito
no qual todos os escravos pudessem depor livremente, à parte os indiferentes
à desgraça alheia, os cínicos e os traficantes, todos
os brasileiros haviam de horrorizar-se ao ver o fundo de barbárie que
existe no nosso país debaixo da camada superficial de civilização,
onde quer que essa camada esteja sobreposta à propriedade do homem
pelo homem.
Na escravidão não só quod non prohibitum licitum est
, como também praticamente nada é proibido. Se cada escravo
narrasse a sua vida desde a infância – as suas relações
e família, a sua educação de espírito e coração,
as cenas que presenciou, os castigos que sofreu, o tratamento que teve, a
retribuição que deram ao seu trabalho de tantos anos para aumentar
a fortuna e o bem estar de estranhos -, que seria A cabana do pai Tomás,
de Mrs. Beecher Stowe, ou a Vida , de Frederick Douglas, ao lado de algumas
narrações que nós teríamos de escutar? Dir-se-á
que a escravidão dá lugar a abusos , como todas as outras instituições,
e com abusos não se argumenta. Mas esses abusos fazem parte das defesas
e exigências da instituição e o fato de serem necessários
à sua existência basta para condenar o regime. O senhor que tem
pelos seus escravos sentimentos de família é uma exceção,
como é o senhor que lhes tem ódio e os tortura. O geral dos
senhores trata de tirar do escravo todo o usufruto possível, explora
a escravidão sem atender particularmente a natureza moral da propriedade
servil. Mas, exceção ou regra, basta ser uma realidade, bastaria
ser uma hipótese, o mau senhor , para que a lei que permite a qualquer
indivíduo – nacional ou estrangeiro, ingênuo ou liberto e mesmo
escravo , inocente ou criminoso, caritativo ou brutal – exercer sobre outros,
melhores talvez do que ele, um poder que ela nunca definiu nem limitou, seja
a negação absoluta de todo o senso moral.
Diariamente lemos anúncios de escravos fugidos denunciados à
sede de dinheiro dos capitães-do-mato com detalhes que não ofendem
o pudor humano da sociedade que os lê; nas nossas cidades há
casas de comissões abertas, mercados e verdadeiros lupanares, sem que
a polícia tenha olhos para essa mácula asquerosa; ainda está
recente na memória pública a oposição corajosa
de um delegado de polícia da cidade do Rio ao tráfico de escravas
para a prostituição; os africanos transportados de Angola e
Moçambique depois da lei de 7 de novembro de 1831 estão sempre
no cativeiro; as praças judiciais de escravos continuam a substituir
os antigos leilões públicos; em suma, a carne humana ainda tem
preço. À vista desses fatos, quem ousa dizer que os escravos
não precisam de defensores, como se o cativeiro em que eles vivem fosse
condicional e não perpétuo, e a escravidão uma coisa
obsoleta ou, pelo menos, cujas piores feições pertencessem já
à história?
Quem sabe ao certo quantos milhares mais de escravos morrerão no cativeiro?
Quando será proibida a compra e venda de homens, mulheres e crianças?
Quando não terá mais o Estado que levantar impostos sobre essa
espécie de propriedade? Ninguém. O que todos sabem é
que o senhor julga ainda perpétuo o seu direito sobre o escravo e,
como o colocava à sombra do paládio constitucional – o artigo
179 – coloca-se hoje sob a proteção da lei de 28 de setembro.
O escravo ainda é uma propriedade como qualquer outra, da qual o senhor
dispõe como de um cavalo ou de um móvel. Nas cidades, em contato
com as diversas influências civilizadoras, ele escapa de alguma forma
àquela condição; mas no campo, isolado do mundo, longe
da proteção do Estado, sem ser conhecido de nenhum dos agentes
deste, tendo apenas o seu nome de batismo matriculado, quando o tem, no livro
da coletoria local, podendo ser fechado num calabouço durante meses
– nenhum autoridade visita esses cárceres privados – ou ser açoitado
todos os dias pela menor falta, ou sem falta alguma; à mercê
do temperamento e do caráter do senhor, que lhe dá de esmola
a roupa e alimentação que quer, sujeito a ser dado em penhor,
a ser hipotecado, a ser vendido, o escravo brasileiro literalmente falando
só tem de seu uma coisa – a morte.
Nem a esperança, nem a dor, nem as lágrimas o são. Por
isso não há paralelo algum para esse ente infeliz, que não
é uma abstração nem uma criação da fantasia
dos que se compadecem dele, mas que existe em milhares e centenas de milhares
de casos, cujas histórias podiam ser contadas cada uma com piores detalhes.
Ninguém compete em sofrimento com esse órfão do destino,
esse enjeitado da humanidade, que antes de nascer estremece sob o chicote
vibrado nas costas da mãe, que não tem senão os restos
do leite que esta, ocupada em amamentar outras crianças, pode salvar
para o seu próprio filho, que cresce no meio da abjeção
da sua classe, corrompido, desmoralizado, embrutecido pela vida da senzala,
que aprende a não levantar os olhos para o senhor, a não reclamar
a mínima parte do seu próprio trabalho, impedido de ter uma
afeição, uma preferência, um sentimento que possa manifestar
sem receio, condenado a não possuir a si mesmo inteiramente uma hora
só na vida e que por fim morre sem um agradecimento daqueles para quem
trabalhou tanto, deixando no mesmo cativeiro, na mesma condição,
cuja eterna agonia ele conhece, a mulher, os filhos, os amigos, se os teve!
Comparado à história de tantos milhares de famílias
escravas, o infortúnio imerecido dos outros homens torna-se uma incógnita
secundária do grande problema dos destinos humanos. Só eles
com efeito sentem uma dor ao lado da qual a de tantos proletários –
de não ter nada e ninguém no mundo que se possa chamar de seu
– é até suave: a dor de ser de outrem. “Somente o escravo
é infeliz” é uma frase que poderia ser escrita com verdade
no livro das consolações humanas. Ao lado da tragédia
da esperança e do desespero que são fluxo e o refluxo diário
da sua alma – e essa esperança e esse desespero o ser livre -, todas
as outras vidas que correm pelo leito da liberdade, quaisquer que sejam os
embaraços e as quedas que encontrem, são relativamente privilegiadas.
Somente o escravo, de todos os homens – ele, pela falta de consciência
livre, o extremo oposto na escala humana do Prometeu de Shelley – tem como
esse o destino de “sofrer desgraças que a esperança julga
serem infinitas e de perdoar ofensas mais negras que a morte ou a noite”.
Entretanto, não é menos certo que de alguma forma se pode dizer:
“A vossa causa, isto é a dos escravos, que fizestes vossa, está
moralmente ganha”. Sim, está ganha, mas perante a opinião
pública, dispersa, apática, intangível, e não
perante o parlamento e o governo, órgãos concretos da opinião;
perante a religião, não perante a Igreja, nem no sentido de
comunhão dos fiéis, nem no de sacerdócio constituído;
perante a ciência, não perante os corpos científicos,
os professores, os homens que representam a ciência; perante a justiça
e o direito, não perante a lei que é a sua expressão,
nem perante os magistrados, administradores da lei; perante a mocidade irresponsável,
protegida por “benefício macedoniano” político,
que não reconhece as dívidas de opinião que ela contrai,
não para a mocidade do outro lado da emancipação civil;
perante os partidos, não perante os ministros, os deputados, os senadores,
os presidentes de província, os candidatos todos à direção
desses partidos, nem perante os eleitores que formam a plebe daquela aristocracia;
perante a Europa, mas não perante os europeus estabelecidos no país,
que, em grande proporção, ou possuem escravos ou não
crêem num Brasil sem escravos e temem pelos seus interesses; perante
a popularidade, não perante o povo; perante o imperador como particular,
não perante o chefe do Estado; perante os brasileiros em geral, não
perante os brasileiros individualmente; isto é, resumindo-me, perante
jurisdições virtuais, abstrações políticas,
forças que ainda não estão no seio do possível,
simpatias generosas e impotentes, não perante o único tribunal
que pode executar a sentença da liberdade da raça negra, isto
é, a nação brasileira constituída.
A vitória abolicionista será fato consumado no coração
e na simpatia da grande maioria do país; mas enquanto essa vitória
não se traduzir pela liberdade, não afiançada por palavras,
mas lavrada em lei, não provada por sofistas mercenários, mas
sentida pelo próprio escravo, semelhante triunfo sem resultados práticos,
sem a reparação esperada pelas vítimas da escravidão,
não passará de um choque na consciência humana em um organismos
paralisado – que já consegue agitar-se, mas ainda não caminhar.
Notas:
1- Esse fato mostra também como a escravidão é a usura
da pior espécie, a usura de Shylock exigindo cada onça de carne
hipotecada no seu título de dívida. Com efeito, desde que o
escravo pode, em qualquer tempo que tenha o seu preço em dinheiro,
depositá-lo e requerer a sua liberdade, cada escravo representa uma
dívida para com o senhor, que ele não pode pagar e à
qual serve de penhor. É assim um escravo a dívida. Aqui entra
a usura do modo mais extraordinário e que reclamaria o ferro em brasa
de um Shakespeare para ser punida como merece.
O escravo de um ano, quando passou a lei (1871), podia ser resgatado pela
mãe por um preço insignificante; como ela, porém, não
tinha esse dinheiro, a cria, não foi libertada e é hoje um moleque
(o triste vocabulário da escravidão usado em nossa época,
e que é a vergonha da nossa língua, há de reduzir de
muito no futuro as pretensões liberais da atual sociedade brasileira),
de treze anos, valendo muito mais; em pouco tempo será um preto de
dobrado valor. Quer isso dizer que a dívida do escravo para com o senhor
quadruplicou e mais ainda, porque ele não teve meios de pagá-la
quanto era menino. Tomemos um escravo moço, forte, e prendado (na escravidão
quanto mais vale física, intelectual e moralmente o homem, mais difícil
é resgatar-se, por ser maior o seu preço. O interesse do escravo
é assim ser estúpido, estropiado, indolente e incapaz). Esse
escravo tinha vinte e um anos em 1871 e valia 1500$. Não representava
capital algum empregado porque era filho de uma escrava, também cria
da casa. Suponhamos, porém, que representasse esse mesmo capital e
que fora comprado naquele ano. Ele era assim uma letra de 1500$ resgatável
pelo devedor à vista, porquanto lhe bastava depositar essa quantia
para ser forro judicialmente. Em 1871, porém, esse homem não
tinha pecúlio algum, nem achou quem lhe emprestasse. Durante os doze
anos seguintes viu-se na mesma situação pecuniária. O
aluguel, no caso de estar alugado, o serviço não remunerado
no caso de servir em casa, não lhe deixavam sobra alguma para o começo
de um pecúlio. Nesses doze anos o salário desse homem nunca
foi menor de 30$00 por mês (servindo em casa, poupava igual despesa
ao senhor) o que dá um total de 4:320$000, desprezando-se os juros.
Deduzida desta quantia o preço original do escravo, restam 2:820$000
que ele pagou ao senhor por não ter podido pagar-lhe a dívida
de 1:500$000 em 1871, além de amortizar toda a dívida sem nenhum
proveito para si. Se em 1871 alguém lhe houvesse emprestado aquela
soma a juros de doze por cento ao ano para a sua liberdade, ele a teria pago
integralmente, dando uma larga margem para doenças e vestuário,
em 1880, e estaria hoje desembaraçado. Como não achou, porém,
esse banqueiro, continua a pagar sempre juros de mais e vinte por cento sobre
um capital que não diminui nunca. Feito o cálculo sobre o capital
todo empregado em escravos e o juro desse capital representado pelos salários
pagos ou devidos ter-se-á idéia do que é a usura da escravidão.
É preciso não esquecer também que grande parte dos escravos
é propriedade gratuita, isto é, doação das mães
escravas ao seus senhores. A lei de 28 de setembro reduziu a escravidão
a uma dívida pignoratícia: os altos juros cobrados sobre essa
caução, que é o próprio devedor, fazem dessa especulação
o mais vantajoso de todos os empregos de capital. Esse mesmo estado que não
se importa com essa onzena levantada sobre a carne humana e extorquida à
ponta de açoite, esteve muito tempo preocupado em conseguir sobre a
sua fiança para os proprietários territoriais, dinheiro a sete
por cento ao ano garantido pela hipoteca desses mesmos escravos. Voltar
VI. ILUSÕES ATÉ A INDEPENDÊNCIA
Generosos cidadãos do Brasil, que amais a vossa pátria, sabei
que sem a abolição total do infame tráfico da escravatura
africana, e sem a emancipação sucessiva dos atuais cativos,
nunca o Brasil firmará sua independência nacional e segurará
e defenderá a sua liberal Constituição.
José Bonifácio (1825)
Os abolicionistas, animando os escravos a confiarem no progresso da moralidade
social, não lhes incutem uma esperança positiva, definida, a
prazo certo, de cujo naufrágio possa resultar o desespero que se receia;
mas quando o governo, ou quem os escravos supõem ser o governo, afiança
ao mundo e ao país que emancipação é questão
de forma e oportunidade , essa perspectiva de liberdade, que lhes passa diante
dos olhos, tem para eles outra realidade e certeza, e nesse caso a desilusão
pode ter conseqüências temerosas.
A animação dos abolicionistas é para o escravo como
o desejo, o sonho dourado da sua pobre mãe, recordação
indelével de infância dos que foram criados no cativeiro; é
como as palavras que lhe murmuram ao ouvido os seus companheiros mais resignados,
para dar-lhe coragem. A promessa dos poderes públicos, porém,
é coisa muito diversa: entre as suas crenças está a de
que palavra de rei não volta atrás , a confiança na honra
dos “brancos” e na seriedade dos que tudo podem, e por isso semelhante
promessa vinda de tão alto é para ele como a promessa de alforria
que lhe faça o senhor e desde a qual, por mais longo que seja o prazo,
ele se considera um homem livre.
O que as vítimas da escravidão ignoram é que semelhantes
compromissos tomados por esses personagens são formulados de modo a
nunca serem exigíveis, e que não são tomados senão
porque é preciso, ao mesmo tempo, manter o escravo em cativeiro para
não alienar o senhor, e representá-lo como a ponto de ficar
livre para encobrir a vergonha do país. A palavra de rei podia valer
no regime absoluto – não valia sempre como adiante se verá -,
mas no constitucional é a máscara antiga em que os atores se
substituíam no proscênio. A “honra dos brancos” é
a superstição de uma raça atrasada no seu desenvolvimento
mental, que adora a cor pela força que esta ostenta e lhe empresta
virtudes que ela por si só não tem.
Que importa que essas promessas, letras sacadas sobre outra geração,
sejam protestadas, perante o Deus em que acreditam, por tantas escravos no
momento de morrer? Quem lhes ouve esse protesto? Os que ficam continuam a
esperar indefinidamente, e o mundo a acreditar que a escravidão está
acabando no Brasil, sem refletir que isso se dá porque os escravos
estão morrendo. É difícil reproduzir todas as declarações
feitas por agentes dos poderes públicos que a emancipação
dos escravos no Brasil estava próxima, resolvida em princípio,
só dependente para ser realizada de uma ocasião favorável.
Algumas dessas declarações, entretanto, ainda estão vivas
na memória de todos e bastam para documentar a queixa que fazemos.
A primeira promessa solene de que a escravidão, a qual se tornou e
é ainda um estado perpétuo, seria um estado provisório,
encontra-se na legislação portuguesa do século passado.
Por honra de Portugal, o mais eminente dos seus jurisconsultos não
admitiu que o direito romano na sua parte mais bárbara e atrasada,
dominica potestas, pudesse ser ressuscitado por um comércio torpe,
como parte integrante do direito pátrio, depois de um tão grande
intervalo de tempo como o que separa a escravidão antiga da escravidão
dos negros. A sua frase: “ servi nigri in Brasilia, et quaesitis aliis
dominationibus tolerantur: sed quo jure et titulo me penitus ignorare fateor
(Escravos negros são tolerados no Brasil e outros domínios,
mas por que direito e com que título, confesso ignorá-lo completamente.)
, é a repulsa do traficante pelo jurisconsulto e a demolição
legal do edifício inteiro levantado pela pirataria dos antigos assentos
. É o vexame da confissão de Melo Freire que dá um vislumbre
da dignidade do alvará de 6 de junho de 1755 em que se contém
a primeira das promessas solenes feitas à raça negra.
Aquele alvará, estatuindo sobre a liberdade dos índios do Brasil,
fez esta exceção significativa: “Desta geral disposição
excetuo somente os oriundos de pretas escravas, os quais serão conservados
nos domínios dos seus atuais senhores, enquanto eu não der outra
providência sobre esta matéria. A providência assim expressamente
prometida nunca foi dada. Não podia, porém, deixar de repercutir
no ultramar português outro alvará com força de lei relativo
aos escravos de raça negra do reino. Esse documento é um libelo
formidável e que se justifica por si só, mas também reverte
com toda a força sobre o rei que denuncia por essa forma a escravidão
e a tolera nos seus domínios da América e da África.
Essa distinção na sorte dos escravos nas colônias e no
Reino e ilhas vizinhas é a mesma que entre a sorte e a importância
das colônias e a do Reino. Para o Brasil, a escravidão era ainda
muito boa, para Portugal, porém, era a desonra. A área desse
imenso Império posta em relação com o pudor e a vergonha
nacional era muito limitada, de fato não se estendia além do
Reino e não o abrangia todo. Mas apesar disso o efeito daquela impugnação
enérgica à imoralidade e aos abusos da escravidão não
podia ser recebido pelos senhores e pelos escravos no Brasil senão
como o prenúncio da mesma providência para o ultramar.
Depois veio o período da agitação pela Independência.
Nessa fermentação geral dos espíritos, os escravos enxergavam
uma perspectiva mais favorável de liberdade. Todos eles desejavam instintivamente
a Independência. A sua própria cor os fazia aderir com todas
as forças ao Brasil como pátria. Havia nele para a raça
negra um futuro; nenhum em Portugal. A sociedade colonial era por sua natureza
uma casa aberta para todos os lados onde tudo era entrada; a sociedade da
mãe pátria era aristocrática, exclusiva, e de todo fechada
à cor preta. Daí a conspiração perpétua
dos descendentes de escravos pela formação de uma pátria
que fosse também sua. Esse elemento poderoso de desagregação
foi o fator anônimo da Independência. As relações
ente os cativos, ou libertos, e os homens de cor, entre estes e os representantes
conhecidos do movimento, formam a cadeia de esperanças e simpatias
pela qual o pensamento político dos últimos infiltrou-se até
as camadas sociais constituídas primeiros. Aliados de coração
dos brasileiros , os escravos esperaram e saudaram a Independência como
o primeiro passo para a sua alforria, como uma promessa tácita de liberdade
que não tardaria a ser cumprida.
Uma prova que no espírito não só desses infelizes como
também no dos senhores, no dos inimigos da Independência, a idéia
estava associada com a de emancipação, é o documento
dirigido ao povo de Pernambuco, depois da Revolução e 1817,
pelo governo provisório. Esta proclamação, notável
por mais de um título, não é tão conhecida quanto
o patriotismo brasileiro tem interesse em que o seja, e por isso a transcrevo
em seguida. Ela é hoje um monumento político elevado em 1817
a uma província que representa na história do Brasil o primeiro
papel, pela sua iniciativa, seu heroísmo, seu amor à liberdade
e seu espírito cavalheiroso, mas em cuja face a escravidão imprimiu
a mesma nódoa que em todas as outras:
Patriotas pernambucanos! A suspeita tem se insinuado nos proprietários
rurais: eles crêem que a benéfica tendência da presente
liberal revolução tem por fim a emancipação indistinta
dos homens de cor e escravos. O governo lhes perdoa uma suspeita que o honra.
Nutrido em sentimentos generosos não pode jamais acreditar que os homens,
por mais ou menos tostados degenerassem do original tipo de igualdade; mas
está igualmente convencido de que a base de toda sociedade regular
é a inviolabilidade de qualquer espécie de propriedade. Impelido
destas duas forças opostas, deseja uma emancipação que
não permita mais lavrar entre eles o cancro da escravidão; mas
a deseja lenta, regular e legal. O governo não engana ninguém;
o coração se lhe sangra ao ver tão longínqua uma
época tão interessante, mas não a quer prepóstera.
Patriotas: vossas propriedades, ainda as mais opugnantes ao ideal da justiça
serão sagradas; o governo porá meios de diminuir o mal, não
o fará cessar pela força. Crede na palavra do governo, ela é
inviolável, ela é santa.
Essas palavras são as mais nobres que até hoje foram ditas
por um governo brasileiro em todo o decurso da nossa história. Nem
a transação que nelas parece haver com o direito de propriedade
do senhor sobre o escravo desfigura-lhe a nobreza. Está-se vendo que
essa “propriedade” não tem legitimidade alguma perante
os autores da proclamação, que esse fato os envergonha e humilha.
Os revolucionários de Pernambuco compreenderam e sentiram a incoerência
de um movimento nacional republicano que se estreava reconhecendo a propriedade
do homem sobre o homem, e não há dúvida que essa contradição
deslustrou para eles a independência que proclamaram. Essa revolução
que no dizer dos seus adeptos “mais pareceu festejo de paz que tumulto
de guerra”, essa alvorada do patriotismo brasileiro que tem a data de
6 de março de 1817, foi o único de todos os nossos movimentos
nacionais em que os homens que representavam o país coraram de pejo,
ou melhor, choraram de dor, ao ver que a escravidão dividia a nação
em duas castas, das quais uma, apesar de partilhar a alegria e o entusiasmo
de outra, não teria a mínima parte nos despojos da vitória.
Que significa, porém, aquele documento em que a necessidade de aliciar
proprietários rurais não impediu o governo de dizer que desejava
a emancipação, lenta, regular e legal , que o coração
se lhes sangrava , que a propriedade escrava era a mais opugnante ao ideal
de justiça e que ele poria meios de diminuir o mal ? Significa que
os mártires da Independência se viram colocados entre a escravidão
e o cadafalso; temendo que a união dos “proprietários
rurais” com as forças portuguesas afogasse em sangue esse primeiro
sonho realizado de um Brasil independente, se o fim da colônia se lhes
afigurasse como o fim da escravidão.
Isso dava-se no Norte. Que no Sul a causa da Independência esteve intimamente
associada com a da emancipação, prova-a a atitude da Constituinte
e de José Bonifácio. Aquela em um dos artigos do seu projeto
de Constituição inscreveu o dever da assembléia de criar
estabelecimentos para a “emancipação lenta dos negros
e sua educação religiosa e industrial”. A Constituição
do Império não contém semelhante artigo. Os autores desta
última entenderam não dever nodoar o foral da emancipação
política do país, aludindo à existência da escravidão,
no presente. A palavra libertos do artigo pelo qual esse são declarados
cidadãos brasileiros e do artigo 94, felizmente revogado, que os declarava
inelegíveis para deputados, podia referir-se a uma ordem anterior à
Constituição e destruída por esta. No mais os estatutos
da nossa nacionalidade não fazem referência à escravidão.
Essa única pedra, posta em qualquer dos recantos daquele edifício,
teria a virtude de convertê-lo com sua fachada monumental do artigo
179 num todo monstruoso. Por isso os organizadores da Constituição
não quiseram deturpar a sua obra descobrindo-lhes os alicerces. José
Bonifácio, porém, o chefe desses Andradas – Antônio Carlos
tinha estado muito perto do cadafalso no movimento de Pernambuco – em quem
os homens de cor, os libertos, os escravos mesmos, todos os humildes da população
que sonhavam a Independência tinham posto a sua confiança, redigira
para ser votado pela Constituinte um projeto de lei sobre os escravos.
Esse projeto para o abolicionismo atual é insuficiente, apesar de
que muitas das suas providências seriam ainda hoje um progresso humanitário
em nossa lei; mas se houvesse sido adotado naquela época, e sobretudo
se o “patriarca da Independência” houvesse podido insuflar
nos nossos estadistas desde então o espírito largo e generoso
de liberdade e justiça que o animava, a escravidão teria por
certo desaparecido do Brasil há mais de meio século.
Artigos como estes, por exemplo – os quais seriam repelidos pela atual legislatura
com indignação -, expressam sentimentos que, se houvesse impulsado
e dirigido séria e continuamente os poderes públicos, teriam
feito mais do que nenhuma lei para moralizar a sociedade brasileira.
Artigo 5 . Todo escravo, ou alguém por ele , que oferecer ao senhor
o valor por que foi vendido , ou por que for avaliado, será imediatamente
forro. — Artigo 6. Mas se o escravo ou alguém por ele, não
puder pagar todo o peço por inteiro, logo que apresentar a sexta parte
dele, será o senhor obrigado a recebê-la, e lhe dará um
dia livre na semana, e assim à proporção mais dias quando
for recebendo as outras sextas partes até o valor total. — Artigo
10 . Todos os homens de cor forros, que não tiverem ofício ou
modo certo de vida, receberão do Estado uma pequena sesmaria de terra
para cultivarem, e receberão, outrossim, dele os socorros necessários
para se estabelecerem, cujo valor irão pagando com o andar do tempo.
— Artigo 16. Antes da idade de doze anos não deverão os
escravos ser empregados em trabalhos insalubres e demasiados; e o Conselho
[o Conselho Superior Conservador dos Escravos, proposto no mesmo projeto]
vigiará sobre a execução deste artigo para o bem do Estado
e dos mesmos senhores. — Artigo 17. Igualmente os conselhos conservadores
determinarão em cada província, segundo a natureza dos trabalhos,
as horas de trabalho, e o sustento e o vestuário dos escravos. —
Artigo 31. Para vigiar na estrita execução da lei e para se
promover por todos os modos possíveis o bom tratamento. morigeração
e emancipação sucessiva dos escravos, haverá na capital
de cada província um Conselho Superior Conservador dos Escravos.
E assim diversos outros artigos sobre penas corporais, serviços das
escravas no tempo, e logo depois da gravidez, casamentos e instrução
moral dos escravos, mercês públicas aos senhores que dessem alforria
a famílias, posse de escravos por eclesiásticos.
Não há na lei de 28 de setembro nada nesse sentido que revele
cuidados e desvelos pela natureza humana no escravo: o legislador neste caso
cumpriu apenas um dever, sem amor, quase sem simpatia; naquele, em falta da
liberdade imediata que lhe pesava não poder decretar, ele mostrou pelas
vítimas da injustiça social o mais entranhado interesse, carinho
mesmo, que não podia deixar de ir-lhes direto ao coração.
É entretanto no magnífico, e – lido hoje à luz da experiência
dos últimos sessenta anos – melancólico apelo dirigido aos brasileiros
por José Bonifácio do seu exílio na França (3)
que se pode achar a concepção do estadista de que o Brasil com
a escravidão não era uma pátria digna de homens livres:
Sem a emancipação dos atuais cativos nunca o Brasil firmará
sua independência nacional e segurará e defenderá a sua
liberal constituição. Sem liberdade individual não pode
haver civilização, nem sólida riqueza; não pode
haver moralidade e justiça, e sem estas filhas do céu, não
há nem pode haver brio, força e poder entre as nações.
Essa defesa ardente, essa promoção espontânea e apaixonada
dos direitos dos escravos pelo mais ilustre de todos os brasileiros, teve
origem nos extremos do seu patriotismo, no desejo de completar a sua grande
obra, porém não foi de certo estranha a convicção
de que a Independência, com o cativeiro indefinido, isto é, perpétuo,
dos escravos, era um golpe cruel na esperança de que estavam possuídos
todos eles, nos anos que precederam e nos que seguiram aquele acontecimento,
instintivamente, só por serem testemunhas do entusiasmo da época,
e por terem respirado o mesmo ar que dilatava todos os corações.
A independência não foi uma promessa formal, escrita, obrigatória,
feita pelos brasileiros aos escravos; não podia porém deixar
de ser, e foi, e assim o entenderam os mártires pernambucanos e os
Andradas, uma promessa resultante da afinidade nacional, da cumplicidade revolucionária,
e da aliança tácita que reunia em torno da mesma bandeira todos
os que sonhavam e queriam o Brasil independente por pátria.
Notas:
1 . “Escravos negros são tolerados no Brasil e outros domínios;
mas por que direito e com que título, confesso ignorá-lo completamente.
2. Estes são os termos do alvará: “Eu el-rei faço
saber aos que este alvará com força de lei virem, que depois
de ter obviado pelo outro alvará de 19 de novembro de 1761 [o qual
declarou livres os escravos introduzidos em Portugal depois de certa época]
aos grandes inconvenientes que a estes reinos se seguiam de perpetuar neles
a escravidão dos homens pretos, tive certas informações
de que em todo o reino do Algarve, e em algumas províncias de Portugal,
existem ainda pessoas tão faltas dos sentimentos de humanidade e religião,
que guardando nas suas casas escravas, umas mais brancas do que eles, com
nomes de – pretas e negras – para, pela repreensível propagação
delas, perpetuarem os cativeiros por um abominável comércio
de pecados e de usurpações das liberdades dos miseráveis
nascidos daqueles sucessivos e lucrosos concubinatos; debaixo do pretexto
de que os ventres das mães escravas não podem produzir filhos
livres conforme o direito civil. E não permitindo nem ainda o mesmo
direito civil, de que se tem feito um tão grande abuso, que aos descendentes
de escravos em que não há mais culpa que a da sua infeliz condição
de cativos, se atenda à infâmia do cativeiro, além do
termo que as leis determinam contra os que descendem dos mais abomináveis
réus dos atrocíssimos crimes de lesa-majestade divina e humana.
E considerando as grandes indecências que as ditas escravidões
inferem aos meus vassalos, as confusões e os ódios que entre
eles causam, e os prejuízos que resultam ao Estado de ter tantos vassalos
lesos, baldados e inúteis quanto são aqueles miseráveis
que a sua infeliz condição faz incapazes para os ofícios
públicos, para o comércio, para a agricultura e para os tratos
e contratos de todas espécies. Sou servido obviar a todos os sobreditos
absurdos, ordenando, como por este ordeno: Quanto ao pretérito, que
todos aqueles escravos ou escravas, ou sejam nascidos dos sobreditos concubinatos,
ou ainda de legítimos matrimônios, cujas mães e avós
são ou houverem sido escravas, fiquem no cativeiro em que se acham
durante a sua vida somente; que porém aqueles cujo cativeiro vier das
bisavós fiquem livres e desembargados, posto que as mães e as
avós tenham vivido em cativeiro: que, quanto ao futuro, todos os que
nascerem, do dia da publicação dessa lei em diante, nasçam
por benefício dela inteiramente livres, posto que as mães e
as avós hajam sido escravas; e que todos os sobreditos, por efeito
desta minha paternal e pia providência libertados, fiquem hábeis
para todos os ofícios, honras e dignidades sem a nota distintiva de
– libertos – que a superstição dos romanos estabeleceu nos seus
costumes, e que a união cristã e a sociedade civil faz hoje
intolerável no meu reino, como o tem sido em todos os outros da Europa”
A data do alvará é de 16 de janeiro de 1773.
Nenhum brasileiro pode ler esse notável documento publicado há
mais de um século, sobretudo as frases impressas em itálico,
sem reconhecer com pesar e humilhação:
I – Que se esse alvará fosse estendido ao Brasil a escravidão
teria acabado no começo do século, antes da sua Independência.
II – Que apesar de ser lei no século passado, e anterior à
Revolução Francesa, semelhante alvará é mais generoso,
compreensivo e liberal do que a nossa lei de 28 de setembro: (a) porque liberta
inteiramente desde a sua data os nascituros, e esta os liberta depois de vinte
e um anos de idade; (b) porque declara livres e desembargados os bisnetos
de escravas, e a lei de 28 de setembro não levou em conta aos escravos
sequer as gerações do cativeiro; (c) porque isentou os escravos
que declarou livre da nota distintiva de libertos – “ superstição
dos romanos que a união cristão e a sociedade civil” fazia
já nesse tempo ( “faz hoje”) “intolerável
no reino”, ao passo que a nossa lei de 1871 não se lembrou de
apagar tal nódoa, e sujeitou os libertos de qualquer dos seus parágrafos
por cinco anos à inspeção do governo e à obrigação
de exibir contrato de serviço sob pena de trabalhar nos estabelecimentos
públicos. O visconde do Rio Branco disse mesmo no Conselho de Estado,
antes de ler esse alvará, cujas palavras qualificou de memoráveis
, que a lei portuguesa “estendeu esse favor (o de declará-los
livres e ingênuos ) aos infantes que fossem libertados no ato de batismo,
e aos libertos que se achassem em certa classe”, e acrescentou – “o
que não se poderia fazer entre nós sem ferir a Constituição
do Império”. A ser assim, isso mostra somente a diferença
entre a compreensão das exigências da união cristã
(a Constituição foi feita em nome da Santíssima Trindade)
e da sociedade civil que tinha o imperador constitucional em 1824 e que tinha
o rei absoluto em 1773.
III – Que apesar de ser a escravidão no Brasil resultado exclusivo,
além do tráfico, das mesmas causas apontadas no alvará,
“das usurpações das liberdades de miseráveis nascidos
de sucessivos e lucrosos concubinatos” da repreensível propagação
das escravas, de pretextos tirados do direito civil, “de que se tem
feito um tão grande abuso”; e apesar de ser infinitamente maior
o número de vassalos (os escravos nem mesmo são hoje assim chamados,
isto os faria subir na escala social) ou, seguindo a evolução
daquela palavra, de súditos do chefe do Estado “ lesos, baldados
e inúteis” , tornados pela “ sua infeliz condição
incapazes para os tratos e contratos de todas as espécies” ;
ainda assim essas duras verdades não são mais ditas à
escravidão do alto do trono. “ A infâmia do cativeiro”
continua a recair não sobre o que o inflige podendo não o infligir,
mas sobre o que o sofre, sem poder evitá-lo. Esse alvará antiquado
e que deverá ser obsoleto parece representar um período de moralidade
pública, religiosa, social e política, muito mais adiantado
do que o período, que é o atual, representado pela matrícula
geral dos escravos.
3. Até que ponto as idéias conhecidas de José Bonifácio
sobre a escravidão concorreram para fechar ao estadista que planejou
e realizou a Independência a carreira política em seu próprio
país, é um ponto que merece ser estudado. Talvez quem empreender
esse estudo, venha a descobrir que a escravidão não teve pequena
parte nesse ostracismo, como também provavelmente foi ela que entregou
os nacionalistas pernambucanos ao cadafalso. Em todo o caso nas seguintes
palavras escritas por Antônio Carlos ver-se-á mais um efeito
político do regime que, assentando sobre ela, só pode ser o
do servilismo e da ingratidão. “Tal foi José Bonifácio,
viveu e morreu pobre; não recebeu da sua Nação distinção
alguma; no Senado que a lei criara para o mérito e a virtude, e onde
tem achado assento até o vício, a crápula, a inépcia,
a intriga e a traição (não esquecendo o tráfico)
não houve nunca um lugar para o criador do Império”. “Talvez
por isso”, acrescenta Antônio Carlos, “mais sobressairá
seu nome, como os de Bruto e Cássio mais lembrado eram por não
aparecerem suas estátuas nas pombas fúnebres das famílias
a que pertenciam”. Esboço biográfico e necrológico
do conselheiro José Bonifácio de Andrada e Silva. p. 16 Voltar
VII – ANTES DA LEI DE 1871
Por cinco anos choveu sobre as almas dos míseros cativos, como o
maná sobre os israelitas no deserto, a esperança da liberdade
bafejada do trono.
Cristiano Ottoni
As promessas de liberdade do segundo e extenso período desde a Independência
do Brasil até a lei Rio Branco datam de poucos anos, relativamente
a certa parte da população escrava, e no fim do Primeiro Reinado,
relativamente à outra.
Os direitos desta última – que vem a ser os africanos importados depois
de 1831 e os seus descendentes – são discutidos mais longe. Por ora
basta-nos dizer que esses direitos não se fundam sobre promessas mais
ou menos contestáveis, mas sobre um tratado internacional e em lei
positiva e expressa. O simples fato de achar-se pelo menos metade da população
escrava do Brasil escravizada com postergação manifesta da lei
e desprezo das penas que ela fulminou, dispensar-nos-ia de levar por diante
este argumento sobre os compromissos públicos tomados para com os escravos.
Quando a própria lei, como se verá exposto com toda a minudência,
não basta para garantir, à metade, pelo menos, dos indivíduos
escravizados, a liberdade que decretou para eles; quando um artigo tão
claro como este: “Todos os escravos que entraram no território
ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres”(1) nunca foi executado,
e a referenda de Diogo Antônio Feijó nunca foi honrada nem pelos
ministros da Regência nem pelos do Segundo Reinado: que valor obrigatório
podem ter movimentos nacionais de caráter diverso, atos na aparência
alheios à sorte dos escravos, declarações oficiais limitadas
ao efeito que deviam produzir? Em outras palavras, de que servem tais apelos
à consciência, à lealdade, ao sentimento de justiça
da nação, quando metade dos escravos estão ilegalmente
em cativeiro? Para que apresentar ao Estado a pagamento uma dívida
de honra, da qual ele nunca teve consciência ou de todo se esqueceu,
quando ele próprio ousadamente repudiou, alegando coação
do estrangeiro, essa escritura pública solene lavrada pela assembléia
geral, e rubricada pela Regência Trina?
Útil ou inútil, o protesto dos escravos deve entretanto ser
feito em cada uma das suas partes conforme a natureza das obrigações
contraídas para com eles. Numa proporção enorme essa
obrigação do Estado é para eles uma lei, e uma lei feita
em desempenho de um tratado internacional. Por isso mais tarde veremos de
que modo e em que termos esse direito dos escravos foi reivindicado perante
o governo brasileiro pela diplomacia inglesa. Há infinitamente mais
humilhação para nós nesse evidente denegação
de justiça por parte daquele. do que no apresamento de navios negreiros
em nossos portos por ordem desta. O nosso argumento, feita essa ressalva importante
– que é toda a questão, por assim dizer – refere-se por enquanto
aos escravos que nem por si nem por suas mães têm direito à
liberdade fundados numa lei expressa. É escusado dizer-se que estes
são todos – exceto raros africanos ainda em cativeiro importados no
Primeiro Reinado – brasileiros de nascimento.
Os fatos em que estes podem haver fundado uma esperança, e que certamente
obrigam a honra do país, datam de pouco antes da lei de 28 de setembro.
Esses compromissos nacionais com relação aos escravos existentes
são principalmente os seguintes: a alforria de escravos para a guerra
do Paraguai; a Fala do Trono de 1867, e a correspondência entre os abolicionistas
europeus e o governo imperial; a ação pessoal do conde D’Eu
no Paraguai comonsecutivamente à oontra o governo e o.
Sem entrar nos detalhes de cada um desses pontos históricos, é
possível apontar de modo que não admita nenhuma dúvida
de boa fé a relação entre todos eles e a sorte dos escravos.
O efeito do decreto de 6 de novembro de 1866 que concedeu gratuitamente liberdade
aos escravos da nação que pudessem servir ao Exército,
e estendeu o mesmo benefício sendo eles casados às suas mulheres,
foi um desses efeitos que se não podem limitar ao pequeno círculo
onde diretamente se exercem. Além disso, nas condições
difíceis em que o Brasil se achava então, quando a onda dos
voluntários espontâneos estava sendo a custo suprida pelo recrutamento,
odioso à população, porque era sorrateiro, vexatório,
político, e sujeito a empenhos, é certo que o governo pensou
em armar, resgatando-os, grande número de escravos.(2) Os títulos
de nobreza concedidos aos senhores que forneciam escravos para o Exército
mostram o interesse que tinha o Estado em achar soldados entre os escravos.
Essa cooperação dos escravos com o Exército era o enobrecimento
legal e social daquela classe. Nenhum povo, a menos que haja perdido o sentimento
da própria dignidade, pode intencionalmente rebaixar os que estão
encarregados de defendê-lo, os que fazem profissão de manter
a integridade, a independência e a honra nacional. Por isso não
era o Exército que o governo humilhava indo buscar soldados nas fileiras
ínfimas dos escravos; eram os escravos todos que ele elevava. Entre
o senhor que ele fazia titular , e o escravo que fazia soldado, a maior honra
era para este. A significação de tais fatos não podia
ser outra para a massa dos escravos brasileiros senão que o Estado,
por sua própria dignidade, procuraria no futuro fazer cidadãos
os companheiros daqueles que tinham ido morrer pela pátria no mesmo
dia em que tiveram uma. A influência, na imaginação dessa
classe, de semelhantes atos dos poderes públicos, aos quais ela atribui,
na sua ignorância supersticiosa, mais coerência, memória,
respeito próprio e sentimento de justiça de que eles com efeito
têm, devia ter sido muito grande. Desde esse dia pelo menos o governo
deu aos escravos uma classe social por aliada: o Exército.(3)
A Fala do Trono de 22 de maio de 1867 foi para a emancipação
como um raio, caindo de um céu sem nuvens. (4) Esse oráculo
sibilino em que o engenhoso eufemismo elemento servil amortecia o efeito da
referência do chefe de Estado à escravidão e aos escravos
– a instituição podia existir no país, mas o nome não
devia ser pronunciado do alto do trono em pleno Parlamento – foi como a explosão
de uma cratera. Aquele documento prende-se intimamente a dois outros que representam
importante papel em nossa história: a mensagem da junta de emancipação
em França ao imperador e a resposta do ministro da Justiça em
nome deste e do governo brasileiro. A segunda dessas peças humanitárias
foi assinada pelo conselheiro Martim Francisco e a primeira pelos seguintes
abolicionistas franceses: o duque de Broglie, Guizot, A. Cochin, Andaluz,
Borsier, príncipe de Broglie, Gaumont, Léon Lavedan, Henri Martin,
conde de Montalemberg, Henri Moreaum Edouard de Pressensém Wallon,
Eugène Yung.
Nessa mensagem diziam esses homens, a maior parte deles conhecido do mundo
inteiro: “Vossa Majestade é poderoso no seu Império; uma
vontade de Vossa Majestade pode produzir a liberdade de dois milhões
de homens” . Não era assim a emancipação das gerações
futuras que eles reclamavam em nome da humanidade e da justiça ; era
a emancipação dos próprios escravos existentes, esses
e não outros. Na resposta do ministro não há uma só
reserva quanto ao modo de entender a abolição da escravatura;
o imperador agradece o alto apreço em que é tido por homens
tão notáveis, e não insinua a mínima divergência
de vistas com eles. A resposta deve ser explicada de acordo coma pergunta;
o que se promete com o que foi pedido. É só assim que as palavras
finais do ministro da Justiça terão o seu verdadeiro relevo:
A emancipação dos escravos, conseqüência necessária
da abolição do tráfico, é somente uma questão
de forma e oportunidade. Quando as penosas circunstâncias em que se
acha o país o consentirem, o governo brasileiro considerará
como objeto de primeira importância a realização do que
o espírito do cristianismo desde há muito reclama do mundo civilizado.(5)
Aí está um compromisso claro e terminante, tomado solenemente
perante a Europa em 1867 a favor de dois milhões de homens, os quais
estão ainda – os que existem dentre eles – esperando que o Estado descubra
a forma e encontre a oportunidade de realizar o que o espírito do cristianismo
desde há muito reclama do mundo civilizado, e que este já realizou
com exceção apenas do Brasil.
A iniciativa tomada contra a escravidão no Paraguai pelo conde d’Eu,
marido da princesa imperial, como general em chefe do nosso a abolição
da escravatura, não envolvia para o vencedor a obrigaa a impor ao inimigo
o seu desejo humanitário, como uma ordem que foi logo obedecida, era
composto em parte de homens que tinham passado pelo cativeiro. Talvez o conde
d’Eu não tenha se lembrado disso ao reclamar a emancipação
dos escravos na República, nem que os havia em número incomparavelmente
maior no Império; mas o mundo não podia r conhecimento daquela
nobre exigência e do modo como foi satisfeita.
“Se vós lhe concederdes (aos escravos) a liberdade que eles
pedem”, escrevia o príncipe ao governo provisório do Paraguai
em Assunção, “tereis rompido solenemente com uma instituição
que foi infelizmente legada a muitos povos da livre América por séculos
de despotismo e de deplorável ignorância”. A resposta a
esse apelo foi um decreto em 2 de outubro de 1869, cujo artigo 1º dizia:
“Fica desde hoje abolida totalmente a escravidão no território
da República”. O compromisso nacional de fazer tudo o que estivesse
ao alcance do Império para imitar o procedimento do Paraguai foi tão
claramente tomado por aquele episódio final da campanha, como se houvesse
sido exarado no próprio Tratado de Paz. Essa dívida de honra
só pode ser negada, admitindo-se o princípio de que é
legítimo e honesto para uma nação derribar no território
inimigo, por ela ocupado e à sua completa mercê, com o pretexto
de humanidade do cristianismo, uma instituição da qual está
firmemente resolvida a tirar dentro das suas fronteiras todo o lucro possível
até a extinção das últimas vítimas. Semelhante
noção, porém, reduziria a guerra à pirataria,
o comandante de um exército a um chefe de salteadores, e é de
todo inaceitável para os que julgam, na frase de John Brigth. “
a lei moral tão obrigatória para as nações como
o é para os indivíduos”.
Quanto à esperança proveniente da agitação antes
e depois da campanha parlamentar que deu em resultado a lei de 1871, e às
promessas depois de feitas, baste-nos dizer em geral, por ora, que a oposição
levantada contra aquele ato devia ter espelhado entre os escravos a crença
de que o fim do seu cativeiro estava próximo. Os acessos de furor de
muitos proprietários; a linguagem de descrédito usada contra
a monarquia nas fazendas, cujas paredes também têm ouvidos; a
representação do imperador, cujo nome é para os escravos
sinônimo de força social e até de providência, como
sendo o protetor de sua causa; e por fim o naufrágio total da campanha
contra o governo; cada uma das diferentes emoções daquela época
agitada parecia calculada para infundir no barro do escravo o espírito
do homem e insuflar-lhe a liberdade.
Desde o dia em que a Fala do trono do gabinete Zacarias inesperadamente,
sem que nada o anunciasse, suscitou a formidável questão do
elemento servil , até o dia em que passou no Senado, no meio de aclamações
populares e ficando o recinto coberto de flores, a lei Rio Branco, houve um
período de ansiedade, incômoda para a lavoura; e para os escravos,
pela razão contrária, cheia de esperança. A subida do
visconde de Itaboraí em 1868, depois dos compromissos tomados naquela
Fala e na célebre carta aos abolicionistas europeus, significava: ou
que o imperador ligava então, por causa da guerra, maior importância
ao estado do Tesouro que é a reforma servil, ou que em política,
na experiência de Dom Pedro II, a linha reta não era o caminho
mais curto de um ponto a outro. Como se sabe também, aquele ministro
caiu sobretudo pela atitude assumida nesta mesma questão pelos seus
adversários, e pelos amigos que o queriam ver por terra. A chamada
do visconde de São Vicente para substituí-lo foi sinal que a
reforma da emancipação, que ficará para sempre associada
entre outros com o nome daquele estadista, ia de fato ser tentada; infelizmente
o presidente do Conselho organizou um ministério dividido entre si,
e que por isso teve que ceder o seu lugar a uma combinação mais
homogênea para o fim que a nação e a Coroa tinham em vista.
Foi esse o ministério Rio Branco.
Durante todo esse tempo de retrocesso e hesitação, o Partido
Liberal, que inscrevera no seu programa em 1869 “a emancipação
dos escravos”, agitou por todos os modos o país, no Senado, na
imprensa, em conferências públicas. “Adiar indefinidamente
a questão”, dizia no Senado aos conservadores naquele ano o senador
Nabuco, presidente do Centro liberal, “não é possível
que nisto consente o Partido Liberal, que desenganado de que nada fareis há
de agitar a questão”. E em 1870, com mais força, insistia
aquele estadista:
Senhores, este negócio é muito grave; é a questão
mais importante da sociedade brasileira, e é imprudência abandoná-la
ao azar. Quereis saber as conseqüências? Hei de dizê-lo com
toda a sinceridade, com toda a força das minhas convicções:
o pouco serve hoje, e o mundo amanhã não basta. As coisas políticas
têm por principal condição a oportunidade. As reformas
por poucas que sejam valem muito na ocasião, não satisfazem
depois, ainda que sejam amplas. Não quereis os meios graduais; pois
bem, haveis de ter os meios simultâneos; não quereis as conseqüências
de uma medida regulada por vós, pausadamente, haveis de ter a incerteza
da imprevidência; não quereis ter os inconvenientes econômicos
por que passaram as Antilhas inglesas e francesas, correis o risco de ter
os horrores de São Domingos.
Como podia a agitação de um dos grandes partidos nacionais,
havia pouco ainda no poder, em favor dos escravos, deixar de inspirar-lhes
a confiança de que a sua liberdade, talvez próxima, talvez distante,
era em todo caso certa? O grito de combate que repercutia no país não
era “a emancipação dos nascituros”, nem há
senão figuradamente emancipação de indivíduos
não existentes; mas sim “a emancipação dos escravos”.
Os direitos alegados, os argumentos produzidos, eram todos aplicáveis
às gerações atuais. Semelhante terremoto não podia
restringir o seu tremendo abalo à área marcada, desmoronava
o solo não edificado sem fender a parte contígua. O impulso
não era dado aos interesses de partido, mas à consciência
humana, e quando de uma revolução se quer fazer uma reforma,
é preciso pelo menos que esta tenha o leito bastante largo para deixar
passar a torrente. Tudo o que se disse durante o período da incerteza,
quando a oposição tratava de arrancar ao Partido Conservador
a reforma que este lhe sonegava(6) constitui outras tantas promessas feitas
solenemente aos escravos. Na agitação não se teve o cuidado
de dizer a estes que a medida não era a seu favor, mas somente em favor
de seus filhos; pelo contrário, falava-se das gerações
atuais e das gerações futuras conjuntamente, e na bandeira levantada
do Norte ao Sul não havia artigos de leis inscritos, havia apenas o
sinal do combate em uma palavra, emancipação.
Agora vejamos as promessas que se podiam legitimamente deduzir dessa mesma
lei de 28 de setembro de 1871, que foi, e não podia deixar de ser,
uma tremenda decepção para os escravos, os quais ouviam antes
dizer que o imperador queria a emancipação e que a emancipação
ia ser feita. Considerado a princípio como uma espoliação
pela aristocracia territorial, aquele ato legislativo que não lhe restringiu
de modo algum os direitos adquiridos, tornou-se com o tempo o seu melhor baluarte.
Mas não é o que se diz hoje, que tem valor para nós;
é o que se dizia antes da lei. Para medir-lhe o alcance é preciso
atendermos ao que pensavam então, não os que a fizeram, mas
os que a combateram. Nesse caso, a previdência, curioso resultado, da
cegueira moral, esteve do lado destes; foram eles que mediram verdadeiramente
as conseqüências reais da lei, que lhe apontaram as incoerências
e os absurdos, e que vaticinaram que essa não podia ser, e não
havia de ser, a solução de tão grande problema.
Notas
1. Art. 1º da lei de 7 de novembro de 1831. Voltar
2. Sobre a questão se o governo devia forrar escravos de particulares
para servirem no Paraguai como soldados, foi este no Conselho de Estado em
novembro de 1866 o parecer do senador Nabuco: “Este meio seria odioso
se os escravos fossem tais depois de soldados, se eles continuassem escravos
como os oito mil escravos que Roma depois da batalha de Canas comprou e armou.
Mas não é assim, os escravos comprados são libertos e
por conseqüência cidadãos antes de serem soldados; são
cidadãos-soldados. É a Constituição do Império
que faz o liberto cidadão, e se não há desonra em que
ele concorde com o seu voto para constituir os poderes políticos, porque
haverá em ser ele soldado, em defender a pátria que o libertou
e à qual ele pertence? Assim ao mesmo tempo e pelo mesmo ato se faz
um grande serviço à emancipação, que é
a causa da humanidade e outro grande serviço à guerra, que é
a causa nacional… Se empregamos os escravos na causa da nossa Independência,
por que não os empregaremos nesta guerra?” Voltar
3. “As medidas a que o governo recorreu ultimamente, impelido pelas
necessidades da guerra, libertando escravos da nação e da Coroa,
e premiando os cidadãos que ofereciam libertos para o exército,
não só deve ter estimulado os espíritos mais sôfregos
por essa reforma, como também derramado essa esperança entre
os escravos. Todos nós podemos dar testemunho de que estes efeitos
se vão sentindo” . Palavras do conselheiro Paranhos no Conselho
de Estado, Sessão de 2 de abril de 1867. – Trabalhos sobre a extinção
da escravatura no Brasil , p. 50 Voltar
4. “O elemento servil no Império não pode deixar de merecer
oportunamente a vossa consideração, provendo-se de modo que,
respeitada a propriedade atual, e sem abalo profundo em nossa primeira indústria
– a agricultura – sejam atendidos os altos interesses que se ligam à
emancipação.” Voltar
5. Vide integra dos dois documentos. O Abolicionista, Rio de Janeiro, 1880,
número de novembro Voltar
6. Deu-se em 1870 um fato muito curioso. A comissão especial de que
era relator o sr. Teixeira Júnior requereu, e a Câmara votou
que se solicitasse com urgência do governo cópia dos projetos
submetidos ao Conselho de Estado em 1867 e 1868 e dos pareceres dos membros
do Conselho: a esse pedido responderam os ministros da Justiça. (J.O.
Nebias) e do Império (Paulino de Souza) que não havia papéis
alguns nas suas respectivas secretarias. No parecer disse a comissão:
“Sob caráter confidencial e com recomendação reiterada
da maior reserva foi mostrada à comissão por um dos dignos membros
do gabinete uma cópia de quatro atas das sessões do Conselho
de Estado e do último projeto ali examinado. Nestas condições,
pois, a comissão não pode revelar nenhuma das opiniões
exaradas nesses documentos.” Art. 7º da lei de 15 de outubro de
1827: “Os conselheiros de estado são responsáveis pelos
conselhos que derem, etc.” Os grifos são do parecer. Voltar
VIII – AS PROMESSAS DA ‘LEI DE EMANCIPAÇÃO’
"A grande injustiça da lei é não ter cuidado das
gerações atuais.”
J. A. Saraiva
Não pretendo neste capítulo estudar a lei Rio Branco senão
de um ponto de vista: o das esperanças razoáveis que pode deduzir
do seu conjunto, e das condições em que foi votada, que atribua
ao nosso Poder Legislativo firmeza de propósito, seriedade de motivos,
pundonor nacional e espírito de eqüidade. Não se o julgando
resoluto, refletido, patriótico e justo, não se pode derivar
da lei esperança alguma, e deve-se mesmo temer que ela não seja
pontualmente executada, como não foi a de 7 de novembro de 1831, feita
quando a nação estava ainda à mercê dos agentes
do tráfico.
A lei de 28 de setembro de 1871, (1) seja dito incidentemente, foi um passo
de gigante dado pelo país. Imperfeita, incompleta, impolítica,
injusta, e até absurda, como nos parece hoje, essa lei foi nada menos
que o bloqueio moral da escravidão. A sua única parte definitiva
e final foi este princípio: “Ninguém mais nasce escravo
”. Tudo o mais, ou foi necessariamente transitório, como a entrega
desses mesmos ingênuos ao cativeiro até aos vinte e um anos;
ou incompleto, como o sistema de resgate forçado; ou insignificante,
como as classes de escravos libertados: ou absurdo, como o direito do senhor
da escrava à indenização de uma apólice de 600$000
pela criança de oito anos que não deixou morrer; ou injusto,
como a separação do menor e da mãe, em caso de alienação
desta. Isso quanto ao que se acha disposto na lei; quanto ao que foi esquecido
o índice de omissões não teria fim. Apesar de tudo, porém,
o simples princípio fundamental em que ela se assenta basta para fazer
dessa lei o primeiro ato de legislação humanitária da
nossa história.
Reduzida à expressão mais simples, a lei quer dizer a extinção
da escravatura dentro de um prazo de meio século; mas essa extinção
não podia ser decretada para o futuro sem dar lugar à aspiração
geral de vê-la decretada para o presente. Não são os escravos
somente que não se contentam com a liberdade dos seus filhos e querem
também ser livres; somo nós todos que queremos ver o Brasil
desembaraçado e purificado da escravidão, e não nos contentamos
com a certeza de que as gerações futuras hão de ter esse
privilégio. A lei de 28 de setembro, ao dizer aos escravos: “Os
vossos filhos dora em diante nascerão livres, e chegando à idade
da emancipação civil serão cidadãos”, esqueçamos
por enquanto os serviços , disse implicitamente a todos os brasileiros:
“Os vossos filhos, ou os vossos netos, hão de pertencer a um
país regenerador.”
Essa promessa dupla poderia parecer final aos escravos, não porém
aos livres. O efeito dessa perspectiva de uma pátria respeitada e honesta
para os que vierem depois de nós, não podia ser outro senão
o de despertar em nós mesmos a ambição de pertencer-lhe.
Quando um Estado qualquer aumenta para o futuro a honra e a dignidade dos
seus nacionais, nada mais natural do que reclamarem contra esse adiamento
os que se vêem na posse do título diminuído. Não
é provável que os escravos tenham inveja da sorte dos seus filhos;
mas que outro sentimento nos pode causar, a nós cidadãos de
um país de escravos, a certeza de que a geração futura
há de possuir essa mesma pátria moralmente engrandecida – por
ter a escravidão de menos?
É nesse sentimento de orgulho, ou melhor de pundonor nacional, inseparável
do verdadeiro patriotismo, que se funda a primeira esperança de que
a lei de 28 de setembro não seja a solução do problema
individual de cada escravo e de cada brasileiro.
As acusações levantadas contra o projeto, se não deviam
prevalecer para fazê-lo cair – porque as imperfeições,
deficiências, absurdos, tudo o que se queira, da lei são infinitamente
preferíveis à lógica da escravidão -, mostravam
os pontos em que, pela opinião mesma dos seus adversários, a
reforma, uma vez promulgada, precisaria ser moralizada, alargada e desenvolvida.
A lei de 28 de setembro não deve ser tomada como uma transação
entre o Estado e os proprietários de escravos; mas como um ato de soberania
nacional. Os proprietários tinham tanto direito de impor a sua vontade
ao país quanto qualquer outra minoria dentro dele. A lei não
é um tratado com a cláusula subentendida que não poderá
ser alterado sem o acordo das partes contratantes. Pelo contrário,
foi feita com a inteligência dos dois lados, seguramente com a previsão
da parte dos proprietários, de que seria somente um passo. Os que a
repeliram, dizia que ela eqüivalia à abolição imediata;
(2) dos que a votaram, muitos qualificaram-na de deficiente e expressaram
o desejo de vê-la completada por outras medidas, notavelmente pelo prazo.
Quando, porém, o Poder Legislativo fosse unânime em dar à
lei Rio Branco o alcance e a significação de uma solução
definitiva da questão, aquela legislatura não tinha delegação
especial para ligar as futuras Câmaras, nem o direito de fazer leis
que não pudessem ser ampliadas ou revogadas por estas. Mais tarde veremos
que profecias terríveis foram feitas então, que medidas excepcionais
foram julgadas precisas.
Outra pretensão singular é a de que esse ato legalizou todos
os abusos que não proscreveu, anistiou todos os crimes que não
puniu, revogou todas as leis que não mencionou. Pretende-se mesmo,
que essa lei, que aboliu expressamente as antigas revogações
de alforria, foi até revogar por sua vez a carta de liberdade que a
lei de 7 de novembro de 1831 dera a todos os africanos importados depois dela.
Não admira que essa hermenêutica em matéria de escravidão
– matéria em que na dúvida, aí não há dúvida
alguma, é o princípio da liberdade que prevalece – quando lemos
ainda hoje editais para a venda judicial de ingênuos.(3)
Essa interpretação, todavia – séria como é, por
ser a nossa magistratura na sua generalidade cúmplice da escravidão,
como o foi, por tanto tempo, do tráfico – aparta-se demasiado da opinião
pública para por verdadeiramente em perigo o caráter da lei
de 28 de setembro. Vejamos, deixando de parte a construção escravagista
da lei, em que pontos, pelos próprios argumentos dos que a combateram,
estava indicada desde o princípio a necessidade de reformá-la,
e, pelos argumentos dos que a promoveram, a necessidade de alargá-la
e de aumentar-lhe o alcance. Comecemos pelos últimos.
Em geral pode-se dizer que a lei foi deficiente em omitir medidas propostas
muito antes no Parlamento, como, por exemplo, o projeto Wanderlei (de 1854)
que proibia o tráfico interprovincial de escravos. A lei que libertou
os nascituros podia bem ter localizado a escravidão nas províncias.
Igualmente pontos capitais sustentados com toda a força no Conselho
de Estado, como, por exemplo, a fixação do preço máximo
para a alforria, a revogação da pena bárbara de açoites
e da lei de 10 de junho de 1835, a proibição de dividir a família
escrava, incompletamente formulada na lei de 15 de setembro de 1869, foram
deixados de parte na proposta do governo e por isso o Código negro
brasileiro , civil e penal, continua, depois da lei chamada de emancipação,
a ser em geral tão bárbaro quanto antes.
A direção principal entretanto, em que se propôs o alargamento
da lei, foi a do prazo. Nessa matéria, Souza Franco teve a maior parte,
e o prazo por mim proposto na Câmara dos Deputados em 1880 não
foi senão a execução do plano delineado por aquele estadista
na seguinte proposta que apresentou no Conselho de Estado em 1867:
Que a declaração do dia em que cessa a escravidão no
Império deve ficar para o décimo ano da execução
da lei supra sendo o artigo seguinte: — Art. 23. No décimo ano
da execução desta lei, o governo, tendo colhido todas as informações
as apresentará à Assembléia Geral Legislativa, , e do
número dos escravos então existentes no Império para
que, sob proposta também sua, se fixe o prazo em que a escravidão
cessará completamente.
A disposição (acrescentava ele em 1868) cuja falta é
mais sensível (no projeto em discussão no Conselho de Estado)
é a do prazo em que a escravidão cesse em todo o Império.
O projeto, calando-se sobre esse ponto muito importante, parece ter tido por
fim evitar reclamações de prazo muito breve, que assuste os
proprietários de escravos, e também a melindrosa questão
da indenização. Não satisfaria porém a opinião
que exige compromisso expresso da extinção da escravidão.
O prazo, por outro lado, era combatido no grupo liberal mesmo, por demasiado
extenso. Pimenta Bueno, depois marquês de São Vicente, propusera
o dia 31 de dezembro de 1899 para a abolição completa no Império
com indenização. Foi esse o prazo discutido no Conselho de Estado,
(5) onde foi julgado por uns muito longo para os escravos, e por outros afastado
demais para ser marcado em 1867. A extensão do prazo era com efeito
absurda.
Não concordoa com o artigo do projeto (São Vicente) – foi o
voto do Conselheiro Nabuco – que marca como termo da escravidão o último
dia do ano de 1899. Se não podemos marcar um prazo mais breve, é
melhor nada dizer: cada um calcule pela probabilidade dos fatos naturais dos
nascimentos e óbitos, e pelas medidas do projeto, quando acabará
a escravidão: a declaração de um quarto de século
não é lisonjeira ao Brasil.
No Senado, porém, na discussão da lei, foi apresentado um prazo
mais curto – o de vinte anos – pelo senador Silveira da Mota. Esse prazo levava
a escravidão até o ano de 1891 do qual ela vai se aproximando
sem limitação alguma . Ainda esse prazo pareceu longo demais
ao senador Nabuco, o qual disse no Senado: Eu não sou contrário
à idéia do prazo, não como substitutiva da idéia
do projeto, mas como complementar dela.
O prazo dado à escravidão pela lei proposta era de cinqüenta
ou sessenta anos, mas havia, além da liberdade pelo nascimento, as
medidas da lei e esperança de que, uma vez votada essa, “a porfia
dos partidos seria para que a emancipação gradual fosse a mais
ampla e a mais breve possível” . (6) Por isso o prazo era um
meio apenas de proteger os interesses das gerações existentes
de escravos, de preencher de alguma forma a lacuna que faz a grande injustiça
na lei, na frase do sr. Saraiva, que serve de epígrafe a este capítulo.
A lei não cuidou das gerações atuais ; mas foi feita
em nome dessas, arrancada pela compaixão e pelo interesse que a sua
sorte inspirava dentro e fora do país, espalhando-se pelo mundo a notícia
de que o Brasil havia emancipado seus escravos; e por isso durante toda a
discussão o sentimento predominante era de pesar, por se fazer tanto
pelos que ainda não tinham nascido e tão pouco pelos que haviam
passado a vida no cativeiro.
Aqui entram os argumentos dos inimigos do projeto. A injustiça de
libertar os nascituros, deixando entregues à sua sorte os escravos
existentes, não podia escapar, nem escapou, aos amigos da lei, e foi-lhes
lançada em rosto pelos contrários. O interesse destes pelos
velhos escravos vergados ao peso dos anos não podia ser expresso de
modo mais patético do que, por exemplo, pela lavoura de Piraí
nas palavras que vou grifar:
Fundada na mais manifesta injustiça relativa entre os escravos – diziam
os agricultores daquele município -, a proposta concede o favor da
liberdade aos que, pelo cego acaso, nasceram depois de tal dia, conservando
entretanto na escravidão os indivíduos que por longos, proveitosos
e relevantes serviços mais jus têm à liberdade.
Esse era o grande, o formidável grito dos inimigos da proposta: “Libertais,
diziam eles, as gerações futuras, e nada fazeis pelos que estão,
há trinta, quarenta, cinqüenta anos, e mais, mergulhados na degradação
do cativeiro”. A isso respondiam os partidários da reforma: “Não
nos esquecemos das gerações atuais; para elas há a liberdade
gradual”, ou na frase do senador Nabuco: “Confiem os escravos
na emancipação gradual”. O compromisso do país
para com estes não podia ser mais solene. Dizia-se-lhes:
Por ora decretamos a liberdade dos vossos filhos ainda não nascidos,
mas a vossa não há de tardar: a lei estabeleceu meios, criou
um fundo de emancipação que vos libertará a todos, providenciou
para encontrardes nas sociedades de emancipação o capital preciso
para a vossa alforria.
Por outro lado, a lei foi antes denunciada como devendo ser o fim da escravidão.
Já vimos o que se disse na Câmara. Em toda a parte se repetia
que viria a abolição logo após ela. Os receios do marquês
de Olinda de que o Estado fosse “posto em convulsão”, (7)
não se verificaram; mas esses receios provinham do conhecimento da
lógica das coisas humanas que esta frase do visconde de Itaboraí
revela:
Nem é preciso terem os escravos muito atilamento para compreender
que os mesmos direitos dos filhos devem ter os seus progenitores, nem se pode
supor que vejam com indiferença esvaecerem-se-lhes as esperanças
de liberdade, que têm afagado em seus corações
Está aí claramente um ponto da lei de 28 de setembro no qual
os seus adversários tinham razão em querer harmonizá-la
com a justiça. O grito: “Deveis fazer pelas gerações
atuais pelo menos tanto quanto baste ou seja preciso para que não se
torne para elas uma decepção o que fizestes pelas gerações
futuras”, partiu dos inimigos da proposta; se esse grito nenhum valor
moral tinha para impedir as Câmaras de votá-la, hoje que essa
proposta é lei do Estado, os próprios que o levantaram estão
obrigados a moralizar a lei.
O sr. Cristiano Ottoni disse há dois anos da tribuna do Senado ao
que combateram a reforma de 1871: “O que o patriotismo aconselha é
que nos coloquemos dentro da lei de 28 de setembro; mas para estudar seus
defeitos e lacunas, para corrigi-los e suprimi-los.” Ora esses defeitos
e lacunas denunciados pela oposição eram principalmente o abandono
da geração presente e a condição servil dos ingênuos
até os vinte e um anos. O mais estrênuo dos adversários
da lei reconheceu então que “a nação brasileira
tinha assumido sérios compromissos perante as nações”,
e que a promessa de libertação dos escravos por um fundo de
amortização era uma dívida de honra. “Por cinco
anos, disse ele, choveu sobre as almas dos míseros cativos, como o
maná sobre os israelitas no deserto, a esperança da liberdade,
bafejada do trono.” (8)
Quanto aos ingênuos, por exemplo, com que aparência de lógica
e de sentimento da dignidade cívica não denunciavam os adversários
da lei a criação dessa classe de futuros cidadãos educados
na escravidão e com todos os vícios dela. Ainda o mesmo sr.
Cristiano Ottoni, num discurso no Clube da Lavoura e do Comércio, expressava-se
assim a respeito dessa classe:
E que cidadãos são esses? Como vêm eles depois para a
sociedade, tendo sido cativos de fato, não sabendo ler nem escrever,
não tendo a mínima noção dos direitos e deveres
do cidadão, inçados de todos o vícios da senzala? ( Apoiados.
) Vícios da inteligência e vícios do coração?
( Apoiados. )
Esses apoiados dos próprios diretamente responsáveis pelos
vícios da senzala são pelos menos inconscientes.
O argumento é por sua natureza abolicionista: formulado pelos mesmos
que queriam manter esses ingênuos na condição de escravos,
é uma compaixão mal colocada e a condenação apenas
da capacidade política dos libertos.
Apesar disso, porém, quando o sr. Paulino de Sousa exprobava ao visconde
do Rio Branco “essa classe predileta dos novos ingênuos (que o
visconde de Itaboraí chamara escravos-livres ), educados na escravidão
até aos vinte e um anos, isto é, durante o tempo em que se formam
o caráter moral, a inclinação e os hábitos dos
indivíduos”, aquele chefe conservador, sem o querer por certo,
mostrava um dos defeitos capitais da lei, que precisava ser emendado de acordo
com o sentimento da dignidade cívica. Não há razão,
e a nossa lei constitucional não permite dúvida, para que o
liberto, o que foi escravo, não seja cidadão; mas há
sérios motivos para que os ingênuos, cidadãos como quaisquer
outros, não sejam educados no cativeiro. Já que esses ingênuos
existem, não será dever estrito dos que viram tão claramente
esse erro da lei concorrer para que o “o caráter moral, a inclinação
e os hábitos” de centenas de milhares de cidadãos brasileiros
sejam formados longe da atmosfera empestada da senzala que, segundo a confissão
dos que melhor a conhecem, é uma verdadeira Gruta do Cão para
todas as qualidades nobres?
É assim que tudo quanto foi dito contra a lei do ponto de vista da
civilização torna obrigatório para os que a combateram
o modificá-la e desenvolvê-la. Nesse sentido o sr. Cristiano
Ottoni deu um belo exemplo. Por outro lado as esperanças, as animações,
as expectativas de que os partidários e entusiastas da reforma, encheram
a alma e a imaginação dos escravos, constituem outras tantas
promessas de que estes têm o direito de exigir o cumprimento. A lei
não foi o repúdio vergonhoso do compromisso tomado com o mundo
em 1866 pelo ministro de Estrangeiros do Brasil. Pelo contrário foi
os eu reconhecimento, a sua ratificação solene.
Que se tem feito até hoje para saldar essa dívida de honra?
No correr destas páginas ver-se-ão quais foram e quais prometem
ser os efeitos da lei comparativamente aos da morte; a bondade e afeição
dos senhores pelos escravos, assim como a iniciativa particular tem feito
muito mais que o Estado, mas dez vezes menos que a morte. “A morte liberta
300.000”, disse no Senado a autoridade insuspeita que tenho tanto citado,
o sr. Cristiano Ottoni, “os particulares 35.000, o Estado que se obrigou
à emancipação 5.000 no mesmo período.” O
mercado de escravos continua, as famílias são divididas, as
portas delineadas na lei não foram ainda rasgadas, a escravidão
é a mesma sempre, os seus crimes e as suas atrocidades repetem-se freqüentemente,
e os escravos vêem-se nas mesmas condições individuais,
com o mesmo horizonte e o mesmo futuro de sempre, desde que os primeiros africanos
foram internados no sertão do Brasil. A não se ir além
da lei, esta ficaria sendo uma mentira nacional, um artifício fraudulento
pra enganar o mundo, os brasileiros, e, o que é mais triste ainda,
os próprios escravos. A causa destes, porém, assenta sobre outra
base, que todavia não deverá ser considerada mais forte do que
esses compromissos nacionais: a ilegalidade da escravidão. Para se
verificar até que ponto a escravidão entre nós é
ilegal, é preciso conhecer-lhe as origens, e a pirataria da qual ela
deriva os seus direitos por uma série de endossos tão válidos
como a transação primitiva.
Notas
1 . Não sou suspeito falando dessa lei. Além de ter pessoalmente
particular interesse no renome histórico do visconde do Rio Branco,
ninguém contribuiu mais para preparar aquele ato legislativo e mover
a opinião em seu favor do que meu pai, que de 1866 a 1871 fez dele
a sua principal questão política. “No Conselho de Estado”
disse no Senado, em 1871, sr. F. Otaviano, falando do senador Nabuco, “na
correspondência com os fazendeiros, e na tribuna por meio de eloqüentes
discursos, foi ele que fez a idéia amadurecer e tomar proporções
de vontade nacional.” Em todo esse período em que a resolução
conhecida do imperador serviu de núcleo à formação
de uma força constitucional capaz de vencer o poder da escravidão,
isto é, de 66 a 71, aquele estadista, como Sousa Franco, Otaviano,
Tavares Bastos, preparou o Partido Liberal, ao passo que São Vicente
e Tales Torres-Homem prepararam o partido Conservador para a reforma, à
qual coube ao visconde do Rio Branco a honra de ligar merecidamente o seu
nome com o aplauso de todos eles. Voltar
2. “Há de acontecer o que prevejo: se passar a proposta do governo,
a emancipação estará feita no país dentro de um
ou dois anos ( Apoiados ) O SR. ANDRADE FIGUEIRA: E eles sabem disso. O SR.
C. MACHADO: É a véspera do dia da emancipação
total. O SR. ANDRADE FIGUEIRA: O sr. presidente do Conselho declarou no seu
parecer no Conselho de Estado que esta seria a conseqüência”
– Discurso do Sr. Almeida Pereira na Câmara dos Deputados em agosto
de 1971. Voltar
3 . A respeito de um desses editais, tive a honra de dirigir um protesto
ao visconde de Paranaguá, presidente do Conselho, no qual dizia: “A
lei de 7 de novembro de 1831 está de fato revogada; chegou o momento
de o governo mostrar que essa não pode ser a sorte da lei de 28 de
setembro de 1871. É preciso impedir esse tráfico de ingênuos
que desponta. Não é abafando escândalos dessa ordem que
se o pode conseguir. Esse edital de Valença abre uma página
tristíssima na história do Brasil, e cabe a V. Exa. rasgá-la
quanto antes. A começar a venda, por editais ou sem eles, dos serviços
dos ingênuos, a lei de 28 de setembro de 1871 será em breve reputada
pelo mundo como a mais monstruosa mentira a que uma nação jamais
recorreu para esconder um crime. A questão é a seguinte: Podem
ou não os ingênuos ser vendidos? Pertence ao governo salvar a
dignidade de toda essa imensa classe criada pela lei de 28 de setembro”.
Voltar
4. O ilustre chefe liberal acreditava assim que, na sessão legislativa
de 1879, se poderia “decretar a extinção total da escravidão”
para o 1º ou o 2º qüinqüênio de 1880-90.
5. “Num projeto apresentado a 17 de maio de 1865 o visconde de Jequitinhonha
propôs, entre outras medidas, o prazo de quinze anos para a abolição
da escravidão civil no Brasil. Esse prazo, caso fosse adotado teria
acabado a escravidão em 1880. Dois anos depois, porém, no Conselho
de Estado, pronunciando-se sobre o prazo-Pimenta Bueno (ia até o fim
do século) aquele estadista condenou-o, tendo-se decidido a adotar
o sistema da liberdade dos que nascessem depois da lei promulgada. Jequitinhonha,
de quem disse o visconde de Jaguari, “foi ele o primeiro homem de Estado
que se empenhou pela emancipação dos escravos entre nós”
– a homenagem seria mais justa dizendo-se: no Segundo reinado, – era um abolicionista
convicto, franco e declarado. Na questão extravagante todavia, que
mais ocupou o Conselho de Estado: – se os filhos livres de mãe escrava
seriam ingênuos ou libertos? – e na qual o princípio: o parto
segue o ventre, representou tão importante papel, aquele estadista
deixou-se enlear por uma teia de aranha do romanismo, e uniu-se aos que queriam
declarar liberto a quem nunca havia sido escravo. Esses e outros erros, porém,
em nada diminuem o renome do abolicionista de Montezuma, cuja atitude frente
à escravidão sempre foi a de um adversário convencido
de que ela era literalmente, na sua frase, o “cancro” do Brasil.Voltar
6. Nabuco, discurso na discussão do projeto de lei sobre o elemento
servil.Voltar
7. “A não se seguir o plano que acabo de indicar (o de não
se fazer absolutamente nada) não vejo providências que não
ponha o Estado em convulsão… Uma só palavra que deixe perceber
a idéia de emancipação por mais adornada que ela seja”,
– isto é, disfarçada – “abre a porta a milhares de desgraças”.
Trabalho sobre a extinção da escravatura no Brasil , p. 38 e
41. Voltar
8. José de Alencar, ministro do gabinete Itaboraí, denunciou
aquele período de gestação em termos que hoje, em vez
de serem uma censura, fazem honra a Dom Pedro II: “Não se trata”,
disse o notável escritor cearense, o qual nessa questão se deixou
guiar, não pelos seus melhores sentimentos, mas por prevenções
pessoais, “de uma lei, trata-se de uma conjuração do poder.
Desde 1867 que o Poder conspira, fatigando a relutância dos estadistas
chamados ao governo, embotando a resistência dos partidos; desde 1867
que se prepara nas sombras este golpe de Estado, que há de firmar no
país o absolutismo ou antes desmascará-lo.” Que a ação
individual do imperador foi empregada, sobretudo depois de 1845 até
1850, em favor da supressão do tráfico, resultando naquele ano
nas medidas de Eusébio de Queiroz, e de 1866 a 1871 em favor da emancipação
dos nascituros, resultando neste último ano na lei Rio Branco, é
um fato que o imperador, se quisesse escrever memórias e contar o que
se passou com os diversos gabinetes dos dois períodos , poderia firmar
historicamente com um sem número de provas. A sua parte no que se tem
feito é muito grande, e quase a essencial, porquanto ele poderia ter
feito o mesmo com outros homens e por outros meios, sem receio de revolução.
O que eu digo porém é que se Dom Pedro II, desde que subiu ao
trono, tivesse como Norte invariável do seu reinado o realizar a abolição
como seu pai realizou a Independência, sem exercer mais poder pessoal
do que exerceu, por exemplo, para levar a guerra do Paraguai até a
destruição total do governo de Lopez, a escravidão já
teria a esta hora desaparecido do Brasil. É verdade que se não
fosse o imperador, os piores traficantes de escravos teriam sido feitos condes
e marqueses do Império, e que Sua Majestade sempre mostrou repugnância
pelo tráfico, e interesse pelo trabalho livre; mas comparado à
soma de poder que ele exerce ou possui, o que se tem feito em favor dos escravos
no seu reinado já de quarenta e três anos, é muito pouco.
Basta dizer que ainda hoje a capital do Império é um mercado
de escravos! Veja-se por outro lado o que fez o Czar Alexandre II, dentro
de seis anos de reinado. Não temos que nos incomodar com os que nos
chamam de contraditórios, porque fazemos apelo ao imperador sendo opostos,
pelo menos na maior parte, ao governo pessoal. O uso do prestígio e
da força acumulada que o imperador representa no Brasil, em favor da
emancipação dos escravos, seria no mais lato sentido da palavra
expressão da vontade nacional. Com a escravidão não há
governo livre, nem democracia verdadeira; há somente governo de casta
e regime de monopólio. As senzalas não podem ter representantes,
e a população avassalada e empobrecida não ousa tê-los.
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IX. O TRÁFICO DE AFRICANOS
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!
Castro Alves
A escravidão entre nós não teve outra fonte neste século
senão o comércio de africanos. Têm-se denunciado diversos
crimes no Norte contra as raças indígenas, mas semelhantes fatos
são raros. Entre os escravos há, por certo, descendentes de
caboclos remotamente escravizados, mas tais exceções não
tiram à escravidão brasileira o caráter de puramente
africana. Os escravos são os próprios africanos importados,
ou os seus descendentes.
O que foi, e infelizmente ainda é, o tráfico de escravos no
continente africano, os exploradores nos contam em páginas que horrorizam;
o que era nos navios negreiros, nós o sabemos pela tradição
oral das vítimas; o que por fim se tornava depois do desembarque em
nossas praias, desde que se acendiam as fogueiras anunciativas, quando se
internava a caravana e os negros boçais tomavam os seus lugares ao
lado dos ladinos nos quadros das fazendas, vê-lo-emos mais tarde. Basta-me
dizer que a história não oferece no seu longo decurso um crime
geral que, pela perversidade, horror e infinidade dos crimes particulares
que o compõem, pela sua duração, pelos seus motivos sórdidos,
pela desumanidade do seu sistema complexo de medidas, pelos proventos dele
tirados, pelo número das suas vítimas, e por todas as suas conseqüências,
possa de longe ser comparado à colonização africana na
América.
Ao procurar descrever o tráfico de escravos na África Oriental,
foi-me necessário manter-me bem dentro da verdade para não se
me argüir de exagerado; mas o assunto não consentia que eu o fosse.
Pintar com cores por demais carregadas os seus efeitos, é simplesmente
impossível. O espetáculo que presenciei, apesar de serem incidentes
comuns ao tráfico, são tão repulsivos que sempre procuro
afastá-los da memória. No caso das mais desagradáveis
recordações, eu consigo por fim adormecê-las no esquecimento;
mas as cenas do tráfico voltam-me ao pensamento sem serem chamadas,
e fazem-me estremecer no silêncio da noite, horrorizado com a fidelidade
com que se reproduzem.
Estas palavras são do dr. Livingstone e dispensam quaisquer outras
sobre a perseguição de que a África é vítima
há séculos, pela cor dos seus habitantes.
Castro Alves na sua Tragédia no mar não pintou senão
a realidade do suplício dantesco, ou antes romano, a que o tombadilho
dos navios negreiros(1) servia de arena, e o porão de subterrâneo.
Quem ouviu descrever os horrores do tráfico tem sempre diante dos olhos
um quadro que lembra a pintura de Géricault, O Naufrágio da
Medusa . A balada de Southey, do marinheiro que tomara parte nesta navegação
maldita, e a quem o remorso não deixará mais repouso e a consciência
perseguia de dentro implacável e vingadora, expressa a agonia mental
de quantos, tendo um vislumbre de consciência, se empregaram nesse contrabando
de sangue.
Uma vez desembarcados, os esqueletos vivos eram conduzidos para o eito das
fazendas, para o meio dos cafezais. O tráfico tinha completado a sua
obra, começava a da escravidão. Não entro neste volume
na história do tráfico e, portanto, só incidentemente
me refiro às humilhações que impôs ao Brasil a
avidez insaciável e sanguinária daquele comércio. De
1831 até 1850 o governo brasileiro achou-se, com efeito, empenhado
com o inglês numa luta diplomática do mais triste caráter
para nós, por não poder executarmos os nossos tratados e as
nossas leis. Em vez de patrioticamente entender-se com a Inglaterra, como
nesse tempo haviam feito quase todas as potências da Europa e da América
para a completa destruição da pirataria que infestava os seus
portos e costas; em vez de aceitar, agradecido, o concurso do estrangeiro
para resgatar a sua própria bandeira do poder dos piratas, o governo
deixou-se aterrar e reduzir à impotência por estes. A Inglaterra
esperou até 1845 que o Brasil entrasse em acordo com ela; foi somente
em 1845, quando em falta de um tratado conosco ela ia perder o fruto de vinte
e oito anos de sacrifícios, que lorde Aberdeen apresentou o seu bill.
O bill Aberdeen, pode-se dizer, foi uma afronta ao encontro da qual a escravidão
forçou o governo brasileiro a ir. A luta estava travada entre a Inglaterra
e o tráfico, e não podia, nem devia acabar por honra da humanidade
recuando ela. Foi isso que os nossos estadistas não pensaram. A cerração
que os cercava não lhes permitia ver que em 1845 o sol do nosso século
já estava alto demais para alumiar ainda tal pirataria neste hemisfério.
Só por um motivo, essa lei Aberdeen, não foi um título
de honra para a Inglaterra. Como se disse, por diversas vezes, no Parlamento
inglês, a Inglaterra fez com uma nação fraca o que não
faria contra uma nação forte. Uma das últimas carregações
de escravos para o Brasil, a dos africanos chamados do Bracuhy, internados
em 1852 no Bananal de São Paulo, foi levada à sombra a bandeira
dos Estados Unidos. Quando os cruzadores ingleses encontravam um navio negreiro
que içava o pavilhão das estrelas deixavam-no passar. A atitude
do Parlamento inglês votando a lei que deu jurisdição
aos seus tribunais sobre navios e súditos brasileiros, empregados no
tráfico, apreendidos ainda mesmo em águas territoriais do Brasil,
teria sido altamente gloriosa para ela se essa lei fizesse parte de um sistema
de medidas iguais contra todas as bandeiras usurpadas pelos agentes daquela
pirataria.
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