Joaquim Manuel Macedo
INTRODUÇÃO
I
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Chamo-me Simplício e tenho condições naturais ainda mais tristes do que o meu nome.
Nasci sob a influência de uma estrela malígna, nasci marcado com o selo do infortúnio.
Sou míope; pior do que isso, duplamente míope míope física e moralmente.
Miopia física:- a duas polegadas de distância dos olhos não distingo um girassol de uma violeta.
E por isso ando na cidade e não vejo as casas.
Miopia moral:- sou sempre escravo das idéias dos outros; porque nunca pude ajustar duas idéias minhas.
E por isso quando vou às galerias da câmara temporária ou do senado, sou consecutiva e decididamente do parecer de todos os oradores que falam pró e contra a matéria em discussão.
Se ao menos eu não tivesse consciência dessa minha miopia moral!… mas a convicção profunda de infortúnio tão grande é a única luz que brilha sem nuvens no meu espírito
Disse-me um negociante meu amigo que por essa luz da consciência represento eu a antítese de não poucos varões assinalados que não tem dez por cento de capital da inteligência que ostentam, e com que negociam na praça das coisas publicas.
— Mas esses varões não quebram, negociando assim?… perguntei-lhe.
— Qual! são as coisas públicas que andam ou se mostram quebradas.
— E eles?…
— Continuam sempre a negociar com o crédito dos tolos, e sempre se apresentam como boas firmas.
Na cândida inocência da minha miopia moral não pude entender se havia simplicidade ou malícia nas palavras do meu amigo.
II
Aos doze anos de idade achei-me no mundo órfão de pai e de mãe.
Eu estava acostumado a ver pelos olhos de minha mãe, a pensar pela inteligência de meu pai; fiquei, pois, nas trevas dos olhos e da razão.
Meus pais eram ricos, e deviam deixar-me, deixaram-me por certo, avultada fortuna; quanto, não sei: meu irmão mais velho que tomou conta dos meus bens, minha tia Domingas que tomou conta da minha pessoa, e minha prima Anica que se criou comigo e que é um talento raro, pois até aprendeu latim, hão de saber disso melhor do que eu.
Dizem eles que a minha fortuna vai a vapor, ignoro se para trás se para diante, porque os barcos e carros a vapor avançam e recuam à custa do gás impulsor; mas o meu amigo negociante declarou-me que por certas razões que não compreendo, nas quais, também não sei porque, entra a pessoa da prima Anica, devo confiar muito no zelo da tia Domingas.
E eu confio nela o mais possível; porque é uma senhora que anda sempre de rosário e em orações e que tendo alguma coisa de seu, apesar de tão religiosa, nua deu nem dá um vintém de esmola ao pobre que lhe bate à porta, pretextando sempre que tem muita vontade de fazer esmolas evangélicas; porem que ainda não achou meio de esconder da mão esquerda o óbulo da caridade pago pela mão direita.
Estou tão profundamente convencido da pureza dos sentimentos religiosos da tia Domingas, que desde que ela tomou conta de mim, vivo em sustos de que algum dia a piedosa senhora mande amputar a mão esquerda para conseguir dar esmolas com a mão direita, conforme o preceito evangélico de que em sua santa severidade não quer prescindir.
III
Aos dezoito anos de idade comecei a compreender todas as proporções da minha desgraça dupla: chorei, lastimei-me, pedi médicos para os meus olhos, e mestres para minha inteligência.
A força de muito rogar e bradar consegui que me dessem uns e outros.
Os mestres ganharam o seu dinheiro e eu quase que perdi todo o meu tempo com eles; porque bem pouco lucrei no empenho de combater a minha miopia moral.
O mais hábil dos meus professores declarou-me no fim de quatro anos que um mancebo tão rico de cabedais como eu era, podia bem reputar-se literato de avantajado merecimento, sabendo ler, escrever e as quatro espécies da aritmética.
Convencido sempre que só me diziam a verdade, e tendo conseguido saber, aos vinte e dois anos de idade, ler mal, escrever pior, e fazer com a maior dificuldade as quatro espécies da aritmética, mandei embora o hábil professor, e fiquei literato.
Os médicos falaram-me em córnea transparente, em cristalino, em raios luminosos muito convergentes, em retina, e não sei em que mais, e acabaram por dizer-me que aos sessenta, ou setenta anos de idade, eu havia de ver muito melhor.
Dos médicos alopatas recebi esta consolação de melhor visão aos setenta anos, se estivesse vivo; dos homeopatas sei se me deram o cristalino em glóbulos, ou os raios convergentes em tintura; mas o fato é que em resultado de dez conferências e de vinte tratamentos diversos não vi uma linha adiante do que via, e apenas posso gabar-me de não ter ficado cego com a luz de tanta ciência.
O meu desgosto foi aumentando com os anos.
Meu irmão, que é um santo homem, me dizia:
— Consola-te, mano; tudo tem compensação: a tua miopia é uma desgraça; mas porque és míope não vês como são bonitos os bordados da farda de um ministro de estado, e portanto não te exasperas por não poder ostentá-los.
Convém saber que meu irmão saiu eleito deputado na última designação constitucional, e mandou fazer a sua libré parlamentar ainda antes de ser reconhecido representante legítimo do povo soberano que anda de paletó e de jaqueta.
Deste fato e da sua observação concluí eu em minha simplicidade que o mano Américo vive doido por ser ministro para fazer o bem da pátria.
E não é só ele; a prima Anica já sonhou três vezes com mudança de gabinete, e com correios e ordenanças à porta de nossa casa.
Inocente menina! é um anjo: os seus sonhos são piedosos como as vigílias da tia Domingas, sua mãe, e patrióticos, como os cálculos o mano deputado; ela diz com virginal franqueza que tem meia dúzia de parentes pobres a arranjar, quando o mano Américo for ministro.
Meia dúzia só!… que abnegação e que desinteresse da prima Anica!
Ela está se tornando tão profundamente religiosa como a tia Domingas.
Já fez um ponto de fé deste suavíssimo princípio: "a caridade deve começar por casa".
IV
O mano Américo tem sempre aberta para mim uma fonte perene de consolações; persegue-me, porém, a infelicidade de não saber apreciar bastante a sabedoria, que fala pelos lábios de meu irmão.
Já disse como ele me consolava da minha miopia física; pois bem: a sua bondade ia além; quando me ouvia tristes queixas da minha miopia moral, me apertava as mãos, e falava assim:
— Agradece a Deus esse infortúnio; estás livre de desgostos sem conta, de responsabilidades sem número, e de tormentos sem tréguas; tu não sabes pensar; mas eu penso por ti e por mim; tu mal dirigirias os teus negócios; mas eu dirijo os teus e os meus negócios; tu sofres muito menos do que eu sofro; porque eu sofro por ti e por mim.
Que alma santa a de meu irmão!
E todavia quando isso ouço, lembra-me que o mano Américo foi o testamenteiro e inventariante nomeado por meus pais, e que até hoje está de posse das minhas heranças, que ele emprega e zela, certamente só em meu proveito, mas sem me dizer como, nem jamais dando-me contas; e portanto pensando, negociando e sofrendo por mim o meu pobre irmão!
Dói-me tamanho sacrifício! ah! se eu conseguisse tomar para mim metade dos trabalhos e sofrimentos do mano Américo… a minha metade só… para ele não sofrer por mim!
Porém se por acaso manifesto de leve esse desejo, alvoroça-se o amor fraternal, meu irmão se enternece, me abraça e diz:
— Inocente Simplício! não serei tão egoísta que te abandone às ciladas dos homens sem consciência, que devorariam a tua fortuna. A minha dedicação é na verdade pesada; mas é um dever e Deus a abençoa.
Vejo-me, pois, obrigado a ficar devendo ao mano Américo o favor de tomar conta da minha fortuna, e de empregá-la por mim. E como é ingrata a humanidade! já cheguei a suspeitar que a dedicação do mano é mais suave do que ele diz.
A primeira vez que me confessar hei de perguntar ao padre, se Deus abençoa tais dedicações fraternais; é este um ponto que deve ser esclarecido para que seja mais doce a submissão dos irmãos míopes.
V
Minha tia também me faz ouvir consolações, e sempre conforme as suas idéias religiosas.
Para ela a minha miopia física é um imenso beneficio da providência, que assim menos exposto me deixou às tentações do diabo, que ataca o pecador pelos olhos; e a minha miopia moral ainda mais precioso dom, porque dos pobres de espírito é o reino do céu.
A lógica piedosa da tia Domingas seria capaz de levá-la a rezar para que eu me tornasse surdo, mudo e paralítico a fim de ser completa a minha bem-aventurança na terra.
Em conseqüência deste receio nunca disse amém às consolações místicas de minha tia.
Ainda tenho uma terceira fonte de consolações; essa, porem, ao menos é mais poética.
A prima Anica é perdida pelos apólogos; quando pode explicar-se por meio deles, não se explica de outro modo: o apólogo é o seu capricho de moça.
Além disso ninguém como ela se empenha tanto e mais habilmente em agradar-me; sabendo que quase não vivo pelos olhos, procura recomendar-se, açucarando a voz, e usando de perfumes suavíssimos.
As vezes e quando tem ocasião faz-me também ouvir apólogos.
Um dia em que como de costume lastimava a minha desdita, que então nem me deixava distinguir as flores do jardim, onde ambos passeávamos, colheu ela duas flores, uma rosa d’Alexandria, e uma angélica, e deu-mas para que eu as reconhecesse.
Aproximei muito dos olhos as duas flores para apreciar suas cores e um espinho da rosa feriu-me a ponta do nariz, e aí ficou preso.
— Repara no que te ensina a rosa, disse Anica; repara e compreende quanto te pode aproveitar a miopia: as flores que mais almejas distinguir e admirar não são as do nosso jardim, são as que enfeitam e enchem de magia os salões das sociedades, que não freqüentas, são as jovens formosas com que sonhas em sonhos doidos de amor ainda mais doido; essas, porém, assemelham-se à rosa d’Alexandria, tem espinhos que te despedaçariam o coração.
Anica interrompeu-se por breves instantes para suspirar; eu ouvi o suspiro, e ia perguntar-lhe, na minha simplicidade, se estava incomodada, quando ela continuou, dizendo:
— Contenta-te, pois, com a angélica que é suave ao tacto e que te pode embalsamar a vida do retiro com o perfume do amor e da virtude.
Fiquei mudo: tinha compreendido o apólogo apesar da minha miopia moral.
Anica faz talvez um esforço para vencer o pudor e perguntou-me:
— Sabes quem é a angélica?…
Instintivamente me fingi mais pobre de espírito do que sou, e respondi perguntando:
— A angélica? pois não é aquela flor que me deste?…
Deixamos o jardim: eu saia dele com um espinho de roseira na ponta do nariz, e Anica provavelmente com o espinho da minha indiferença no seio.
Senti que chegara a ser cruel; mas eu nem sabia se Anica era bonita ou feia; porque nunca pudera ver-lhe distintamente o rosto: se fosse bonita não seria o seu amor a mais doce consolação para mim?
Tive uma idéia inspirada metade pela gratidão, metade pela curiosidade maliciosa, a idéia de ver se Anica era bonita ou feia, se me seria possível amá-la. Chegando a sala, sentei-me e pedi à prima que me tirasse o espinho da ponta do nariz.
A inocente moça prestou-se a fazer a fácil operação: armou-se da tesoura mais delicada que achou, com os macios dedos da mão esquerda segurou-me o nariz, com a mão direita dirigiu a ponta da tesoura, e cuidadosamente ocupada em extrair-me o espinho, chegou seu rosto tão perto dos meus olhos que mais não era possível.
Durante três ou quatro minutos vi, distingui, apreciei suficientemente o rosto de Anica… não era o rosto com que eu sonhava, não era o das descrições das heroinas dos romances que me tinham lido… não era.
O rosto da prima Anica e muito respeitável; mas em consciência esta muito longe de ser angélico.
A prova de que é muito respeitável esta em que não tive necessidade de expelir de minha alma o menor desejo desrespeitoso, achando-se esse rosto por alguns minutos ainda mais peito dos meus lábios, do que dos meus olhos.
A prova concludentíssima de que Anica não é angélica, está em que a operação me pareceu tão dolorosa como demorada.
Anica tivera a bondade de fazer-me ouvir a significação moral do seu apólogo da rosa d’Alexandria e da angélica. O apólogo não lhe aproveitou; mas a culpa disso não esta em mim.
Ofereço agora, não a Anica, porque me pesaria molestá-la, porém às senhoras a quem o caso possa interessar, a moralidade da história da extração do espinho da ponta do meu nariz.
É uma pequenina história que também pode correr, como apólogo.
A moralidade é esta:
Moça que não for bonita não se preste a extrair espinho da ponta do nariz de homem míope.
VI
No princípio do ano corrente de 186… o excelente sistema de governo que nos rege, deu-me o sinal da minha regeneração civil; e política.
Sem que o mano Américo, a tia Domingas e a prima Anica disso previamente soubessem, fui incluído na lista dos jurados da minha freguesia; quando chegou-nos a notícia do fato consumado houve em nossa casa uma espécie de consternação.
Até que ponto chega o amor dos parentes, a influência do sangue da família! meu irmão, minha tia, e minha prima sobressaltaram-se ante o perigo que eu corria por me haverem reconhecido dotado de senso comum!
Era certamente porque o mano Américo via que não lhe era possível ser também jurado por si e por mim. Eu ia começar a ficar exposto as ciladas do mundo e dos homens sem consciência.
O juiz de direito que presidira a revisão da lista dos jurados, resolvera um problema até então intrincadíssimo, declarando que eu podia ser jurado, e que por conseqüência eu tinha senso comum, condição exigida pela lei.
Eu fui alheio a tudo isso: estava mesmo convencido pelo mano Américo e pela tia Domingas que ate o senso comum me faltava; confesso, porém, que mudei de opinião com íntima e mal disfarçada alegria.
Um juiz de direito não pode julgar de modo torto: ao menos tem a seu favor a presunção de direito, que em falta de todos os outros fundamentos é fundamento que supre todos os outros; para mim que não sei aprofundar as coisas, um juiz de direito é sempre tão infalível na ciência do direito, como um padre na ciência do latim.
Por conseqüência fiquei convencido de que tinha senso comum.
Ninguém faz idéia do profundo contentamento que me deu esta convicção.
E não era para menos.
O nosso código é necessariamente muito sábio e muito previdente: exige que para ser jurado o cidadão brasileiro tenha apenas senso comum, se exigisse bom senso haveria desordem geral, porque segundo tenho ouvido dizer, muitos dos que têm feito e dos que fazem leis, muitos dos que as deviam mandar e mandam executar, e muitos dos que têm por dever aplicar as leis, não poderiam ser jurados por falta do bom senso!
Dizem-me isso, e asseguram-me que o bom senso é senso raro.
Eu não entendo estas coisas; mas atendendo ao que me dizem, chego a crer que foi por essa razão que a lei não impôs a condição do bom senso nem para que o cidadão fosse jurado, nem para que fosse magistrado, deputado, senador, ministro, e conselheiro de estado.
Asseveram-me ainda que se assim não fosse, que, se se exigisse a condição do bom senso para o exercício daquelas altas delegações e cargos do Estado, haveria quatro quintas partes do mundo oficial inteiramente fora da lei.
Já confessei que não entendo destes graves assuntos; como, porém, acredito piamente em tudo quanto me dizem, sinto-me cheio de orgulho pela convicção legalmente autorizada de que tenho senso comum, e apoderado de irresistível vaidade com a presunção de que sou igual a muitos magistrados, deputados, senadores, ministros e conselheiros de estado, pela falta de bom senso ou senso raro.
VII
Na primeira convocação do júri o meu nome foi o primeiro que saiu da urna. Este sucesso deu que pensar e que falar em casa.
A tia Domingas levou um dia inteiro a repetir: "o primeiro na primeira… "; passou assim o dia sem rezar, nem sei se rezou de noite; mas na manhã seguinte propôs-me comprar de sociedade comigo um bilhete de loteria.
Eu não cabia em mim de contente; o mano Américo hesitava, porém enfim conveio em que eu entrasse no exercício do meu direito de cidadão jurado.
Creio que meu irmão procedeu assim pelo respeito que consagra às leis, como me assegurou, embora a prima Anica me dissesse em particular que o segredo da sua condescendência esteve no receio de pagar multas… por mim.
As senhoras são de ordinário muito maliciosas; acham graça em sê-lo: Anica tem esse defeito; mas, diga ela o que quiser, eu penso que o mano Américo é simples e puro, como Adão antes de comer do fruto proibido.
Compareci oportunamente ao tribunal de que a sorte me fizera membro: a sorte estava declarada por mim: logo no primeiro processo o meu nome foi ainda o primeiro que saiu da urna, e não pareci suspeito nem ao advogado do réu, nem ao da justiça pública.
Prestei a maior atenção à leitura do processo, às testemunhas e aos debates, e quando entrei para a sala secreta achava-me plenamente convencido pelo promotor de que o réu merecia a forca; pelo advogado do réu de que este era credor de uma coroa cívica, e pelo juiz de direito que resumira a acusação e a defesa, de que o réu tinha jus à forca e a coroa.
Na consulta secreta sentei-me junto de um bom velho que, vendo-me completamente as escuras em uma questão de atenuantes e agravantes, quis iluminar o meu espírito, fazendo-me ler uns artigos do seu Manual dos Jurados.
Não tive remédio, senão confessar-lhe as enormes proporções da minha miopia física Ler era para mim um martírio: pedi-lhe que me lesse os artigos do seu Manual.
— Pobre moço, disse-me ele; já procurou o Reis?…
— O Reis? quem e o Reis?
— Quem é o Reis?… pois um míope ignora quem seja o Reis?… c Reis é o homem-luz, o homem-fonte de visão para os míopes se ele não o fizer ver, é porque o senhor é cego.
— Mas eu sou quase cego.
— O Reis anula-lhe o quase, e dá-lhe o dom da vista perfeita; o Reis é o graduador de vidros miraculosos. O senhor tem sido deixado em abandono por sua família
— Pelo que me diz, começo a ter desconfianças disso.
— Escute: eu vou contar-lhe maravilhas em relação ao Reis
— Mas o processo?
— Que nos importa semelhante massada?… deixá-los falar, e discutir; nós já sabemos como havemos de votar.
— O senhor como vota?
— Votarei de modo que o réu seja necessariamente absolvido.
— Então tem certeza de que ele é inocente?
— Deve sê-lo sem a menor dúvida.
— Por quê?…
— Porque não menos de dois compadres e de três amigos meus se empenharam para que eu o absolvesse.
— E tem razão: não posso acreditar que dois compadres e três amigos de um juiz fizessem a este a injúria de pedir-lhe uma sentença injusta, julgando-o capaz de um prejuízo e de um sacrifício de consciência.
— Deveras?…
— O que me parecia, era que semelhantes pedidos e empenhos deviam ser exclusivamente reservados para servirem de luz aos jurados pobres de espírito como eu; porque os inteligentes, como o senhor, não precisam de quem lhes dirija as consciências.
O velho pôs-se a rir, não sei de que; provavelmente eu tinha dito alguma necedade, e começava a sentir-me tomado de vexame e de confusão, quando o presidente chamou-nos a votar em resposta aos quesitos do juiz de direito.
O bom velho, meu novo amigo, exerceu naquele conselho de jurados os direitos do mano Américo; porque votou por si e por mim.
O réu foi absolvido pela maioria de dois votos, e por conseqüência o empenho de dois compadres e de três amigos e a minha miopia moral decidiram da sentença.
Sai do júri com a convicção de que ou não tenho senso comum, ou é preciso mais alguma coisa além do senso comum para que o cidadão seja bom jurado.
VIII
Quando cheguei a porta da rua, senti que alguém me tomava o braço: era o bom velho.
— Quero levá-lo já à casa do Reis, disse-me ele.
Apertei-lhe a mão com o. mais vivo reconhecimento e deixei-me conduzir, hesitando entre a esperança e a dúvida.
Enquanto caminhávamos, o meu condutor falava e eu o ouvia curioso:
— O estabelecimento do Reis é um representante do espírito do século: começou plebeu e já está nobre pela constância no trabalho e pelo encanto do progresso; não sei se o Reis tem sido agraciado; pouco importa o homem; mas a casa, a indústria já tem quatro condecorações nobiliárias.
— E o que faz o Reis?
— Dá, reproduz os meios conhecidos, aperfeiçoa-os e inventa novos para se fazer a paz e a guerra, a guerra, dando precisão, segurança às pontarias das peças de artilharia, a paz, oferecendo balanças e níveis de todas as qualidades, alguns dos quais devem poder marcar o peso e o nível dos interesses de quaisquer beligerantes, e além desses os mais perfeitos instrumentos para demarcação dos limites dos Estados; governa nos mares com as melhores bússolas; é senhor do sol e da lua, e de todos os planetas pelos mais fortes telescópios; conhece e domina os animais invisíveis pela força engrandecedora dos microscópios, vê o fundo tenebroso das minas, tem o cetro da física o império da química a soberania da eletricidade pela magia dos seus instrumentos, marca o tempo, prediz o calor e a chuva, e chama-se Reis porque não é um rei; mas tem o poder de muitos reis.
Eu escutava boquiaberto a concisa explicação de tão extraordinária potestade humana, e quando o bom velho se interrompeu para respirar, perguntei-lhe:
— E um homem, como este, certamente já tem sido muito aproveitado pelo nosso governo?!…
— Não; o nosso governo encomendou-lhe um dia o mais perfeito pince-nez político: 0 Reis fez obra de mestre, um pince-nez, que por um dos vidros deixava ler as lições do passado e pelo outro os perigos do futuro; mas o pince-nez não achou nariz de ministro, em que se ajeitasse, e foi desprezado.
— Mas então o Reis que é? é mágico?…
— Não sei; suponha que seja o diabo; o certo é que ele tem, e isso é o que mais lhe importa, o segredo de dar vista de águia aos míopes mais infelizes, aos míopes quase cegos.
— Por que meio, meu amigo?
— Por meio de vidros, e de cristais, cuja concavidade encerra sobrenatural magia; por meio de lunetas de forca excepcional.
— E o governo esquece homem semelhante?… há ministro que não se apresse a comprar uma luneta dessas?…
O velho desatou a rir: perguntei-lhe qual era o motivo da sua hilaridade, e ele me respondeu assim:
— O senhor é sem o pensar, sem o querer, cruelmente epigramático: falei-lhe em luneta para os míopes e o senhor procurou logo saber, se os nossos ministros de estado não usavam dessas lunetas!!!
A simplicidade de um pobre de espírito está sempre exposta às falsas interpretações dos maliciosos.
Eu não era capaz de pôr em dúvida a vidência, a ciência e a sapiência de um homem que chega a ser ministro de estado.
O fato é a presunção do direito, e para mim a infalível resolução do problema.
Não pode haver cidadão que seja chamado a tomar, e que tome sobre seus ombros a imensa responsabilidade do governo do Estado sem que seja reconhecido e se reconheça na altura de tão grandiosa missão.
Em minha inocência não posso pensar de outro modo.
Para mim quem e ministro de estado é sábio, ou pelo menos estadista.
É por isso que até hoje, quando me diziam, que no carro que passava, ia um ministro de estado, eu tirava o meu chapéu e me conservava descoberto em sinal de respeito até que me asseguravam que o próprio ordenança do ministro já estava longe.
Porque no próprio ordenança eu ainda admiro e venero os reflexos da sabedoria do ministro.
IX
Chegamos, disse-me o velho.
Um tremor nervoso agitou-me o corpo todo; mas ajudado pelo meu amigo subi dois degraus de pedra e achei-me no armazém do Reis.
Não pude distinguir nem a casa, nem o dono dela; não precisei porém de olhos para sentir imediatamente a amabilidade do Reis.
O bom velho expôs as proporções da minha miopia física e pediu remédio para ela; ouvi logo abrir gavetas, e em breve começou o ensaio das mais fortes lunetas de vidro côncavo.
Reis desprezou os vidros dos números mais altos das vinte e duas forças: principiou por fazer-me experimentar um do grau quatro e perdeu completamente o seu tempo: deixou de lado os vidros côncavos do grau três e deu-me uma luneta da forca número dois, e ainda assim não pude ler o titulo de um livro que me apresentou, senão depois que cheguei o livro a duas polegadas de distancia dos olhos.
— É muito míope disse ele.
E desceu enfim ou antes subiu ao vidro do grau número um, o último, o non plus ultra dos vidros côncavos, e recuou espantado, ouvindo-me dizer que não via mais nem menos.
— É incrível! exclamou.
— É portanto?… perguntei tão abatido que nem pude acabar a frase.
— Não tenho recurso que lhe aproveite, respondeu-me com tristeza profunda.
Deixei cair a cabeça sobre o peito: a extrema esperança que eu concebera poucas horas antes, acabava de apagar-se completamente; tive vontade de chorar e murmurei em tom queixoso:
— E todavia eu vinha tão cheio de confiança! esperava tanto!
— Que quer?… o poder humano que é o poder da ciência, ainda não foi além dos instrumentos que inutilmente experimentou.
— Ah! é que o meu amigo chegou a fazer-me acreditar que o senhor era mais do que um simples homem, era uma espécie de ente sobrenatural, um mago, um realizador de impossíveis principalmente em matéria de instrumentos óticos.
— O seu amigo que é também meu, exagerou muito as minhas pobres condições; eu não creio na magia; mas se lhe apraz consultar um pretendido mágico, é coisa fácil.
— Como?…
— Mandei contratar na Europa um artista de merecimento superior para os trabalhos das minhas oficinas, e chegou-me no ultimo paquete um armênio de habilidade extraordinária; mas que me desagrada por ter pretensões a muito sabido em magia.
— Ainda uma esperança! exclamei; eu me abraço com a mais tênue, com a mais dúbia, e até mesmo com a mais louca. Onde está o armênio?…
— Em um pequeno gabinete no fundo da casa, e ai dorme de dia e trabalha de noite e sempre só: é um maníaco.
— Poderia eu falar-lhe?
— Vou mandá-lo chamar.
— Entender-me-á ele?…
— Fala perfeitamente todas as línguas em que lhe falam.
X
Entramos para a casa das oficinas; porque o armênio não gostava de mostrar-se no armazém.
Vou dizer com inteira verdade o que ouvi e o que o bom velho meu amigo viu e me referiu miudamente tanto nesta ocasião, como à hora da meia-noite no gabinete misterioso,
Passados apenas alguns minutos o armênio apareceu.
Era um homem alto, magro e com os ossos muito salientes: trazia os cabelos crescidos, o rosto contraído, a face macilenta enegrecida pela fumaça; suas mãos enormes estavam empoeiradas, e seus dedos coroados por grandes unhas pareciam garras; vestia calças e blusa de pano vermelho.
— Que pretendem de mim? perguntou ele em português.
Não me animei a falar; o bom velho, meu amigo, também não ousou fazê-lo: foi o Reis quem falou por mim, expondo a minha Infelicidade, e a desesperada esperança que eu concebera.
O armênio se aproximou de mim, considerou-me durante alguns instantes, examinou-me os olhos, apalpou-me os ossos do crânio, e mostrando-se compadecido, disse:
— Não te quero mal, e o dia é mau; hoje é sábado, e os gênios
sinistros predominam: escolhe outro dia, e eu te darei a vista.
O Reis fez um movimento denunciador da sua incredulidade.
O armênio encarou-o fixamente, e depois perguntou-lhe:
— Duvida sempre?
— Não duvido, tenho a certeza de que a sua magia não é impostura somente porque é lamentável mania.
O armênio desatou a rir; devia ser um rir medonho, porque foi longa e estridente gargalhada, e porque, segundo me disse o velho, ele não tinha um único dente.
— De que ri assim?… inquiriu o Reis.
— Do triunfo e do mal: duvidam do meu poder, e vou prová-lo: eis o triunfo; infiltrarei o ceticismo na alma de um inocente mancebo eis o mal.
Tive um ímpeto de coragem, avancei um passo e perguntei-lhe:
— Dar-me-ás a vista?…
— Sim, e mais penetrante do que a desejas.
— Como?
— A experiência te responderá.
— E tu por que não?…
— Que te importa?… já o disse: terás vista mais penetrante do que desejas e pensas; queres?
— Por que modo a terei?
— Dando-te eu uma luneta mágica.
— Quando?
— Hoje mesmo e amanhã, na hora em que acabará o dia de hoje para começar o dia de amanhã, à meia-noite;
— E o teu prêmio?
— Será a tua próxima convicção de que é melhor ser cego, do que ver demais.
— Aceito.
— É o mal.
— Aceito.
— É o gelo no coração!
— Aceito.
— E o ceticismo na vida!
— Aceito.
— Por que, criança?…
— Porque eu quero ver.
— Veras demais!
— Aceito.
— Volta à meia-noite.
XI
Quando, de volta da casa do Reis, me achei a sós na solidão do meu quarto, comecei a sentir espinhos na consciência, temores de incorrer em grande pecado por ir procurar na magia remédio contra a minha miopia física.
Mas na luta do desejo ardente de ver bem i distintamente, e dos meus escrúpulos religiosos que acabavam de despertar, eu me reconheci tão fraco e tão pecador como Eva, porque pela ambição da vista deixava-me sempre escravo das promessas do armênio, como Eva se deixou escrava dos conselhos infernais da serpente pela ambição da ciência do bem e do mal.
Hesitei: meditei, e desconfiado da minha miopia moral, resolvi-me a consultar a opinião das três consciências mais sãs que eu conhecia no mundo.
A consciência do mano Américo, o homem que vivia por si e por mim, o tipo do desinteresse e da abnegação.
A consciência da prima Anica, a jovem símbolo do amor mais dedicado, e sem sombras do egoísmo.
A consciência da tia Domingas, a velha religiosa e santa, que vivia a rezar, e que era toda misticismo.
Dirigi-me ao mano Américo e perguntei-lhe:
— Se encontrasses um mágico que te oferecesse um talismã com a virtude de te assegurar a vitória em todas as eleições de deputados, e de te fazer subir ao ministério, que farias?
Meu irmão respondeu-me logo:
— Para servir a minha pátria, e dedicar-me todo a ela, eu aceitaria o talismã, e o traria sempre comigo.
Achei-me a sós com Anica, e apressei-me a consultá-la:
— Se houvesse um feiticeiro, que por artes diabólicas possuísse e te quisesse dar o segredo da formosura e da vida em constante primavera até cem anos de idade, que farias?
— Abraçava o feiticeiro, tomava-lhe o segredo e pedia-lhe que te desse, mesmo por artes diabólicas, melhores olhos para que visses a minha formosura encantada.
Fui ter com a tia Domingas e fiz-lhe a seguinte pergunta:
— Se lhe aparecesse um homem suspeito de se ter vendido ao demônio, e lhe apresentasse o bilhete de loteria em que uma hora antes houvesse saído a sorte grande, que faria?
— Somente pelo gosto de enganar o demônio, comprava o bilhete, e recebendo o prêmio, gastava metade em obras de misericórdia.
Estas respostas sossegaram o meu espírito meu irmão que é a virtude cívica, a prima Anica que é a pureza original, a tia Domingas que é a piedade zelosa, não acham que seja pecado aproveitar-se alguém, com intenções inocentes, dos favores da magia, da feitiçaria, e até do inimigo do homem.
A educação, os exemplos, as lições da família formam o caráter do menino e preparam o seu futuro.
Eu já estou na lista dos jurados, e já fiz parte de um conselho julgador; mas ainda sou menino pela minha miopia moral: consultei toda a família sobre o meu caso de consciência e todos os meus parentes votaram pela transação com a magia em proveito do interesse pessoal.
Serenaram pois os meus escrúpulos, e fiquei resolvido definitivamente a ir ao gabinete do armênio à meia-noite em ponto.
O bom velho, meu amigo, ficara de esperar-me perto da nossa rasa para levar-me à do Reis.
Não me despi, nem me deitei e quando ouvi o sinal de onze e meia horas dado pelo sino de S. Francisco de Paula, sai do meu quarto, fui de manso até a porta da rua que um escravo fiel me abriu, e logo depois tomei o braço do bom velho que me esperava e seguimos para o nosso destino.
XII
Encontramos o Reis a porta do seu armazém. Entramos.
Faltavam dez minutos para a meia-noite.
— Vamos ter com o armênio, disse o Reis.
E passou adiante para dirigir-nos.
Nunca maldisse tanto da minha miopia física porque achava-me possuído da mais viva curiosidade, desejava e não me era dado ver o que se ia passar, e apenas posso hoje relatar o que o bom velho meu amigo, e o Reis também desde esse dia muito meu amigo, me contaram muitas vezes com todos os pormenores.
Avançamos por um longo corredor; o velho levava-me pela mão e a mão do velho estava enregelada e trêmula.
O Reis repetiu duas vezes:
— Isto não passa de uma comédia, que nos fará rir amanhã: a verdadeira magia está nas maravilhosas realidades das ciências físicas
Mas a voz do Reis estava um pouco alterada e como se o seu coração palpitasse forte, e apressadamente por nervosa agitação.
Chegamos ao fim do corredor, e o Reis levantava a mão para bater a uma porta que nos ficava ao lado esquerdo, quando esta imediatamente se abriu.
Os meus dois companheiros recuaram um passo; eu não recuei porque não vi coisa alguma.
— Como é bom não ver! disse uma voz Cavernosa.
XIII
O gabinete do armênio estava todo pintado de negro, tendo em branco os caracteres especiais de todos os dias da lua marcados pelas vinte duas chaves do Tarot e pelos sinais dos sete planetas; no meio do teto também negro via-se a figura do pentagrama em vermelho vivíssimo.
No fundo do gabinete uma mesa servia de altar da magia; junto a ela uma pele de leão tapizava o chão, imenso pano vermelho cobria completamente a mesa, e nesse pano eram mais de cem as figuras cabalísticas pintadas em negro
Sobre o altar maldito descansavam os instrumentos da magia e entre outros a vara mágica, a espada, a taça e a lâmpada; a um lado, no chão, estava a trípode. Globos, triângulos, a figura do diabo, a estrela de seis raios, o abracadabra, as combinações do triângulo, e uma infinidade de símbolos enchiam a mesa e o gabinete.
O armênio mágico vestia a roupa própria do sábado, simples túnica cinzenta com caracteres bordados em seda cor de laranja, tendo ao pescoço uma medalha de chumbo com o sinal cabalístico da Saturno e as palavras ou nomes- Amalec, Aphiel, Zarabiel, e trazia na cabeça um barrete triangular de cor branca com o pentagrama em cor negra.
— Entrai, disse o armênio, tudo está pronto.
Entramos no gabinete, que estava cheio de luz; o armênio sentou-se na tripeça e nós ficamos de pé; ele se concentrava; nós tremíamos.
De súbito o armênio levantou-se, como cedendo a impulso irresistível, e quando ele se levantou os sinos deram o sinal de meia-noite.
— É a hora, disse ele, e tomando a espada, brandiu-a no ar, e as luzes se apagaram.
Ficamos em completa escuridão; mas sentimos e compreendemos que o armênio se movia e laborava, como se estivesse vendo tudo à luz do sol ao meio-dia.
No fim de alguns minutos a lâmpada mágica lançou e manteve uma tênue flama que começou pálida e fraca, pouco e pouco foi se tornando intensa e rubra, e da qual o armênio retirou a ponta da espada, que pareceu tê-la acendido.
Logo depois ele tomou a lâmpada entre suas mãos e deu alguns passos para os quatro lados do gabinete, parando breves instantes em cada um dos lados, e estendendo os braços de cada vez na direção de um dos quatro pontos cardeais, feito o que tornou a pôr a lâmpada no seu lugar, e sobre ela colocou uma peça de ferro composta de três hastes que se firmaram na mesa e que na sua parte superior se aproximavam e eram ligadas por um anel de três correntes de ouro retorcidas, em cima do qual ele depositou um simples vidro côncavo do grau mais fraco.
Em seguida ouvimo-lo exorcizar em latim os espíritos elementares, e falar e evocar as ondinas, as salamandras, os silfos e os gnomos; empregou assim meia hora pelo menos a entender-se com invisíveis e duvidosos ou quiméricos seres.
Apenas acabou de falar, lançou sobre o fogo pequenas porções de diagrídio, escamônea, pedra-ume, enxofre e assa-fétida.
Resistimos às ondas do ativo perfume que inundou o gabinete.
A flama da lâmpada tornara-se viva, brilhantíssima, derramando tanta luz como se mil bicos de gás iluminassem a pequena sala.
A operação mágica adiantava-se, o armênio começou a exaltar-se e bradou com força: Cashiel! Schaltiel! Aphiel! Zarabiel!…
E a flama da lâmpada redobrou de intensidade, como se obedecesse à voz do mágico.
O gabinete parecia já arder em ondas de luz tão deslumbrante e vivíssima que se diria o fulgor dos relâmpagos demorado, continuado, sem intermitência.
De repente uma faisca se desprendeu da flama da lâmpada e foi, como pequena seta de fogo vivo, cravar-se e estremecer no fundo da concavidade do vidro que estava sobre o anel de ouro; uma tênue bolha de vidro fervente agitou-se em torno da faisca que sem apagar-se tomou a forma microscópica de uma salamandra, o gênio elementar do fogo que banhava-se no fogo, brincava no fogo, aspirava e respirava fogo.
Mas o armênio tocou com a ponta da espada na faisca que fazia ferver a bolha de vidro no fundo da concavidade, e disse com acento dominador:
— Fica aí!
A salamandra microscópica dobrou-se, como fugindo à ponta da espada, e o fogo da lâmpada de rubro que era se tornou pálido.
— Fica ai! tornou ele com voz mais forte ainda.
E a salamandra foi se mergulhando na bolha de vidro fervente, e a flama da lâmpada principiou a vacilar.
— Fica aí! bradou o armênio pela terceira vez.
E a salamandra desapareceu de todo na bolha do vidro que se abateu e sumiu-se
sem deixar vestígios, nem depressão nem ruga na concavidade
polida, e a espada que firme conservara a sua ponta, onde brilhara a faisca
mágica, obedecendo à mão do armênio se retirou.
Imediatamente a flama da lâmpada se extinguiu, como ao sopro de um
gênio invisível; reinou outra vez no gabinete profunda escuridão,
e logo ao começarem as trevas, pareceu que um suspiro quase imperceptível
movera o ar, mas tão de leve, tão sutilmente, como c vôo
de uma borboleta.
Era talvez a queixa extrema da salamandra presa; porque ainda se ouviu a
voz do armênio, que disse com império de senhor:
— Fica aí, escrava!
Pouco depois iluminou-se de novo o gabinete do armênio, que lançando
algumas gotas de um liquido perfumado sobre o vidro que expusera à
operação cabalística, retirou este completamente frio
do anel de ouro, onde o havia colocado.
Sem dizer-nos uma só palavra, sem parecer ocupar-se da nossa presença,
o armênio armou o vidro em um aro de ouro, e no ponto em que o aro circular
se liga ao anel destinado ao cordão pendurador, imprimiu sinistro selo,
uma letra cabalística, com um sinete de forma triangular, e enlaçou
no anel da luneta um cordão finíssimo, em que se entrançavam
cabelos de todas as cores, e de diversos animais.
Estava terminada a mágica operação. O armênio
me entregou a luneta, e disse-me então:
— Triunfo, e faço mal; mas posso prevenir o mal: criança!
tu és inocente e bom, eu me compadeço de ti; escuta.
Recebi tremendo, a luneta, que ainda apenas sentia pelo tacto e não
tinha visto pelos olhos, e escutei o armênio, que continuou a falar-me:
— Dou-te uma luneta mágica; veras por ela, quanto desejares ver,
verás muito: mas poderás ver demais. Criança! dou-te
um presente que te pode ser funesto: ouve-me bem! não fixas esta luneta
em objeto algum, e sobretudo em homem algum, em mulher alguma por mais de
três minutos; três é o número simbólico,
e para ti será o número simples, o da visão da superfície
e das aparências; não a fixes por mais de três minutos
sobre o mesmo objeto, ou aborrecerás o mundo e a vida.
Eu estava todo trêmulo, e não sabia que dizer.
O armênio disse ainda:
— Esta luneta é a maravilha da magia: por ela verás demais
no presente, e poderias ler no futuro; mas o teu coração é
bom, e a tua alma é pura, criança; além do número
de três minutos está a visão do mal, que o meu poder de
mágico não te pode impedir; porque a visão do mal é
a vingança da salamandra escrava; mas a fixidade dessa luneta além
do número de treze minutos é a vidência do futuro, e essa
eu ta impeço, Cashiel! Schaltiell Aphiel! Zarabiel! eu ta impeço,
criança louca: essa luneta fixada além de treze minutos se quebrará
em tuas mãos!
E tendo assim falado, empurrou-nos rudemente para fora do gabinete, e trancou-nos
a porta.
Voltamos espantados e mudos pelo extenso corredor; o que se tinha passado
era tão maravilhoso que nos estava impondo a eloqüência
sublime do silêncio.
Chegados ao armazém os meus dois amigos, o bom velho e o Reis, convidaram-me
a experimentar logo, ali mesmo, e à luz do gás a minha luneta
mágica.
— Não, disse-lhes eu; esta luneta é a minha extraordinária
esperança de luz, a luz da noite, se a dá a lua, é emprestada,
se a dá a arte dos homens, é artificial; quero, devo esperar
o dia, a luz da natureza, quero esperar a aurora, e o sol.
Um homem que espera pela luz, espera pela vida. Eu ainda duvidava do poder
mágico do armênio; não quis apagar minha dúbia
esperança na mesma hora, na mesma noite em que ela nascera.
Despedi-me do Reis e sai com o bom velho, que ainda se prestou a acompanhar-me.
Quando entrei em minha casa, davam os sinos o sinal de três horas da
madrugada.
Pouco falta para romper a aurora e brilhar o sol.
Em breve experimentarei se vejo, como e quanto vejo.
Agora vou fazer por dormir, se puder dormir.
FIM DA INTRODUÇÃO À PRIMEIRA PARTE
VISÃO DO MAL
I
Não me foi possível dormir. Fiquei velando ansioso a esperar
pelo dia, como o preso que espera ouvir soar a hora, em que lhe assegurarão
a liberdade.
Procurei abreviar o tempo, ocupando o meu espírito naturalmente lembraram-me
os conselhos que me dera o armênio.
Refleti.
O mágico me recomendara que me abstivesse de fixar a minha luneta
sobre o mesmo objeto por mais de três minutos; porque além de
três minutos ela me daria a visão do mal, em que a salamandra
cevaria a vingança da sua escravidão encantada.
Deverei eu obedecer neste ponto o conselho do armênio?… compreendo
que pobre de espírito como sou, arrisco-me a errar gravemente, querendo
deliberar por meu próprio entendimento, e por isso até hoje
o mano Américo, que é sábio e justo, sempre tem pensado
por mim.
Todavia está me parecendo que ver o mal que se contém em um
homem, em uma mulher ou em qualquer objeto pode antes ser útil do que
nocivo, porque em todo o caso me servirá para fugir do mal.
Eu não entendo bem o que o armênio chama visão do mal;
se porém é simplesmente o que significam as duas palavras, chego
a presumir, que a visão do bem há de por força ser mais
suave; mas a visão do mal necessariamente mais proveitosa ao homem
que faz na terra a viagem difícil e perigosa da vida.
Ora, o que o armênio me proibiu, foi a fixidade da minha luneta por
mais de treze minutos, foi a visão do futuro, sob pena de quebrar-se
a luneta em minhas mãos, e a semelhante calamidade nunca por certo
me hei de expor; ele porém não me proibiu, apenas me aconselhou
que me abstivesse da visão do mal.
Assim, pois, o que mais acertado e prudente devo supor, é, se a luneta
mágica não for malvada zombaria ou presente da loucura, experimentar
uma vez a visão do mal; porque em todo caso conservo c direito e arbítrio
de limitar-me daí em diante à simples visão da superfície
e das aparências, como diz o mágico.
Foi isto o que refleti, e o que pela primeira vez resolvi por mim sem consultar
o mano Américo.
E de novo nesta noite maravilhosa veio-me a lembrança de Eva e reconheci
a minha procedência legitima da primeira pecadora; mas em vez de achar
na procedência e no primeiro pecado lição contra a desobediência,
achei somente desculpa da minha curiosidade talvez temerária.
II
A frescura das auras matinais anunciou-me que se aproximava a aurora.
A janela do meu quarto se abre para o jardim e olha para o oriente; lancei-me
para a janela abençoada e com a minha luneta na mão deixei-me
ficar em pé, imóvel, contando nalma os instantes que iam passando
vagarosos.
Eu respirava as exalações deleitosas das flores do jardim,
e sentia nos meus cabelos e no meu rosto a doce impressão dos sopros
da madrugada.
De súbito perguntei a mim mesmo em quem ou em que faria o ensaio,
a experiência do encanto da minha luneta.
Embora eu tivesse acabado de recorrer à magia, o meu coração
estava sempre e todo voltado para o céu.
Lembrou-me logo ver uma flor, que e símbolo de pureza; mas rejeitei
esta idéia; porque a flor é apenas ornamento da terra.
Preferi ver a aurora que também é flor; mas é rosa do
céu.
A aurora! eu nunca tinha visto a aurora! ouvira ler vinte, cem descrições
da formosa precursora do sol, e chorara vinte, cem vezes por não poder
admirar a diva matutina que recebe diário culto dos turíbulos
das flores e da música dos passarinhos.
f: a aurora, é a rosa do céu que, antes de tudo mais, quero
ver… se puder ver; e a aurora que é pura, que é o sorrir do
sol mandado de longe à terra, é a aurora que eu contemplarei
por mais de três, por dez minutos sem temer a visão do mal: porque
no seio e através da aurora só poderei ver o sol, que é
majestade pela luz, vida pelo calor, providencia pela regulação
do movimento dos planetas.
III
E estremeci, ouvindo o canto dos passarinhos no jardim, e o ruído
e a festa da natureza, saudando o despontar da aurora.
Era tempo; mas demorei-me ainda, aspirando mais luz, mais brilhante alvorecer
no horizonte; o meu coração palpitava com força, a minha
alma estava nadando em mar de esperanças e de temores: enfim minha
mão se ergueu convulsa… fixei a luneta…
Oh! felicidade!… oh, supremo gozo!… eu vi!… eu adorei a aurora!
Ah! contemplei esse quadro ao mesmo tempo gracioso e magnífico de
rosas de fogo suave, esse rubor da virgem do oriente acendido pelo beijo de
fogo brando que o sol na face lhe imprime!
Como é bela, esplêndida, fresca, sublime a aurora! não
se descreve: é como o primeiro despertar de noiva formosa no leito
nupcial, mistura de glória e pejo, de pudicícia e de flamas
que fazem corar… é o indizível… o céu abrindo-se
à terra.
Eu estava embevecido a olhar a aurora pela minha luneta mágica, admirava,
apreciava uma a uma todas as pétalas daquela rosa do oriente que resume
mil rosas, todas as nuanças daquelas tintas de fogo saídas dos
pincéis dos ralos do sol…
Esqueci o tempo a olhá-la… sem dúvida eu ia já além
de três minutos…
E de repente as rosas fulgurantes foram se apagando… vi uma nuvem negra,
feia, horroroso, preparando em seu seio tempestade violenta, senti a trovoada
e o raio, as trevas perto da luz, o estridor abafando o trinar das aves…
Vi o sol, mas não senti nem a luz da majestade, nem o calor que fecunda,
vi os raios de ardor desastroso que crestam as plantas e preparam a miséria
e a fome; vi raios que pela insolação tinham de produzir a loucura,
vi raios que forjados para vibrar sobre os tanques de águas estagnadas,
e sobre os pauis, iam levantar, espalhar miasmas e com eles derramar a peste
e a morte sobre os homens, vi o sol- não formoso- mas cheio de manchas;
vi o sol- não fonte de vida- mas senti a sua força atrativa
forjando só os terremotos, os cataclismos, o horror…
Recuei assombrado… a luneta mágica abandonada pela mão que
a sustinha, caiu-me no peito… nada mais vi, exclamei porém com dor
profunda:
— Meu Deus!… como a aurora e enganadora e falsa!… e como o sol é
feio, terrível e mau!!!
IV
O armênio tem razão: a visão do mal é um tormento;
ver muito é um erro; ver demais e um castigo; a temperança é
virtude que deve presidir e moderar os gozos de todos os sentidos do homem.
Por que, para que me expus a desestimar a aurora que é tão
formosa, e a descobrir na natureza e na influência do sol que dizem
ser fonte de vida, tantos germens de destruição e de morte?
Por que e para que ficar-me na alma esta desconfiança das ilusões
da aurora, esta certeza de que o sol é também assassino da criação
e assolador da terra?…
E por que esta luneta mágica além de três minutos de
fixidade só me deixou ver os males e os horrores que 0 sol pode produzir
e negou-me a contemplação dos seus benefícios?
Oh! foi dolorosa; mas será profícua a lição;
doravante saberei defender-me da vingança terrível da salamandra
escravizada: aborreço. Não experimentarei mais a visão
ao mal; basta-me a visão da superfície e das aparências.
Se o mundo é de enganos, se a vida é de ilusões, se na
terra a felicidade do homem está nas ilusões dos sentidos, e
nos enganos da alma, eu quero iludir-me e enganar-me para ser feliz.
Oh! vem, minha luneta magica, vem! mas para que eu te fixe somente dois minutos
sobre cada objeto.
E eu fixei a luneta nas flores, cujo matiz, e cujas cores variadas e belas
enfeitiçaram meus olhos, fixei-a nos passarinhos, nas borboletas, nas
folhas das arvores que ainda lagrimejavam gotas de orvalho e festejei todos
estes tesouros da natureza, que eu via, e distinguia perfeitamente pela primeira
vez.
Gozei uma hora de inexplicável encantamento, gozei muito, muito; mas,
preciso é confessar, os meus gozas, suavíssimos embora, foram
sempre perturbados por dois sentimentos que de certo modo os deixavam incompletos.
Fixando a minha luneta eu sentia logo e quase ao mesmo tempo medo e curiosidade;
medo de esquecer o tempo e de chegar &agragrave; visão do mal, e curiosidade
teimosa, insistente, insidiosa e cada vez mais forte dessa mesma visão
do mal.
Pouco e pouco venci o medo, medindo instintivamente os minutos; não
pude porém vencer, domar a curiosidade, que em luta aberta com a minha
razão, martirizava-me, aguçando um desejo fatal.
Essa curiosidade era como a tentação do demônio que nos
arrasta ao pecado; meus lábios haviam já tocado uma vez na taça
oferecida pela tentação, e o veneno que eu bebera, abrasava
o meu seio, e eu tinha sede devoradora da visão do mal.
A salamandra, o gênio, o demônio tentador estava incessantemente
a dizer-me ao ouvido que eu era senhor de um poder, de que nenhum outro homem,
nem sábio, nem rei, podia usar e aproveitar-se, e que só a fraqueza
de animo ou os hábitos rudes da mais triste ignorância explicariam
o abandono, o sacrifício desse poder encantado que me fazia penetrar
e ler no intimo dos seres.
E foi no instante em que mais violento era o combate da curiosidade com a
razão que divagando, passeando com a minha luneta, vi a prima Anica
entrar no jardim.
V
Fitei-a.
A prima Anica estava vestida de branco e com os cabelos solto. Eu já
tinha idéia do seu rosto, mas ainda não apreciava bem o seu
porte; agora não tenho dúvidas sobre o juízo que fazia
do seu merecimento físico.
Anica não é feia, nem bonita; abre muito os olhos, porque os
tem pequenos e sem o fogo do sentimento; seu rir é triste, sua cintura
delicada, os braços são tão finos que movem dó,
e os pés tão grandes, que fazem pena; tem cabelos pretos, finos
e bastos; o seu parecer porem, a sua figura, o seu andar são de um
desenxabimento, que desconsola. O melhor dom que a natureza lhe deu foi a
voz, que é doce e maviosa como a queixa de uma santa.
Retirei a luneta antes de passar o terceiro minuto; mas imediatamente senti
o impulso da curiosidade que se tornava irresistível.
Esqueci o protesto feito, esqueci a dor da primeira experiência da
visão do mal, esqueci, sufoquei a razão que ainda me falava,
condenando o desejo imprudente, e dizendo a mim mesmo:
— Preciso saber com quem vivo.
De novo fitei a minha luneta sobre a prima Anica, que estava dando os bons
dias às suas flores
A principio vi somente o que já tinha visto, que ela não era
nem bonita nem feia, mas notavelmente desenxabida. Passados três minutos,
não lhe vi mais o rosto nem a figura, vi-lhe o coração
e a alma; o coração era uma pedra de gelo, a alma era o espírito
reduzido a cálculo, a alma era como o seu olhar sem o fogo do sentimento;
no seu coração li a indiferença e a tristeza, na sua
alma a ambição de um marido rico que lhe desse mais o gozo da
mesa, do que o esplendor do luxo e das festas; era, é a mulher fria,
egoísta positiva, material, incapaz de amizade, e ainda menos suscetível
de amor, mulher que sendo esposa nunca desejaria um filho, nem teria zelos
do marido, mulher sem caridade, porque só vivia ocupada de dormir bem,
comer bem, e passar bem.
Encontrei a minha imagem na alma de Anica, mas a minha imagem estava ali,
como se fora um X em um problema de álgebra: eu era em sua alma uma
hipótese de marido, e como letreiro, como nome da minha imagem, li
em caracteres aritméticos a soma das legitimas, das heranças
que me haviam deixado meu pai e minha mãe! …
E mais viva do que a minha imagem vi a do mano Américo que é
muito mais rico do que eu (sem dúvida porque ele pensando por dois,
pensava mais e melhor em si, do que por mim é em mim), vi a imagem
do mano Américo, outra hipótese de marido, mais desejada, mais
afagada do que a minha hipótese, mas só com afagos de cálculo,
e sem um ligeiro afago de amor.
E, à exceção do gelo e do cálculo, coração
morto na vida, alma estéril, seca, inóspita.
Anica e a mulher do egoísmo sublime: contanto que lhe dessem boa casa,
boa mesa, bom jardim e melhor pomar, amas se tivesse filhos, criados que a
deixassem não trabalhar, silêncio e isolamento à noite
para dormir à vontade, poderia enviuvar vinte vezes, dando à
memória de seus finados, não a consolação das
lágrimas do amor e da saudade, mas a da certeza de não ter sido
infiel, nem falsa a nenhum deles menos por virtude, do que pela acerbidade
e aridez de sua alma enregelada. Que mulher! olhos sem lágrimas, terra
sem vegetação, mar sem ondas nem tempestades, céu sem
estrelas e horizonte sem nuvens, natureza, rochedo.
Desviei a minha luneta dessa mulher, campo árido, deserto infindo
de áreas estéreis sem um só oásis consolador.
Mulher-cálculo, mulher-aritmética, mulher sem sentimento, mulher
sem amor, mulher-egoísmo é um triunfo da matéria sobre
o espírito mais terra do que céu, mais pó do que alma,
mais lodo do que pureza da eternidade; é a mulher-monstro que calunia
a mulher criada por Deus; é um assombro que se faz admirar pela hediondez.
A prima Anica tornara-se para mim repulsiva, mais do que repulsiva, repugnante.
Jurei que nunca mais fixaria nela a minha luneta mágica.
VI
Amarga desilusão acabava de obumbrar-me o animo: a prima Anica que
tanto procurava agradar-me e que pudibunda recorria aos apólogos para
manifestar-me a ternura dos seus sentimentos, a prima Anica que eu reputava
o símbolo do amor mais puro e desinteressado, não era mais do
que uma mulher insensível, egoísta, e somente preocupada dos
gozos da vida animal!…
Eu nunca sentira amor pela prima Anica; mas votava-lhe amizade fraternal,
e experimento verdadeira mágoa, reconhecendo que não mais posso
estimá-la como dantes. Doce amizade! é uma flor de menos no
jardim do meu coração.
Entretanto não me arrependo de haver-lhe devassado a alma, e descoberto
a verdade dos seus sentimentos mesquinhos e vis: esta senhora, pelo menos
não há de mais enganar-me.
As vozes do mano Américo e da tia Domingas que, entrando juntos no
Jardim, dirigiam gracejos a Anica, chamaram a minha atenção.
Eu já não combatia mais a curiosidade da visão do mal:
o conhecimento a que eu chegara, da falsidade da prima Anica, me excitava
o desejo de esmerilhar os segredos de outros corações.
Lancei a luneta sobre o mano Américo e observei-o: mancebo de agradável
parecer, é pena que seus olhos, aliás bonitos, não tenham
firmeza no olhar, que não se demora em objeto algum e parece ou temeroso
ou movido por preocupações do espírito a divagar estonteado,
ou a fugir à observação dos homens; além desse
defeito, notei que sua boca escapara de ficar sem lábios, tão
finos são estes, e que o seu sorrir mostrava ser antes uma concessão
artificial de aparente alegria, do que sinal espontâneo de íntima
ledice’.
E passaram três minutos: oh! minha cega e imensa credulidade! o político
patriota era apenas um ambicioso vulgar! o nome da pátria era uma alavanca,
a dedicação ao povo um meio de construir escada: Américo
queria subir, queria ter influência; mas nem ao menos por vaidade, ou
também um pouco por vaidade; somente porém por cálculos
de fortuna, somente para explorar as posições oficiais em seu
proveito material; desprezava as graças, os títulos nobiliários,
o brilhantismo da corte, as fardas de ricos bordados de ouro; mas desejava
tudo isso como sinais de importância pessoal para negociar ainda mesmo
com as exterioridades; talentoso, instruído, hábil, vende-se
ou vender-se-á, aluga-se ou alagar-se-á sem parecer que o faz,
ostenta e ostentará independência e abnegação,
não pedindo jamais ao governo favor algum para si; mas fará
questão de um contrato, cuja celebração irá dar
contos de réis à sua mesa de advogado; fará questão
de um privilegio para a empresa de que não é, nem será
acionista; mas cuja gratidão já foi em segredo ajustada. Sua
eloqüência será ameaça viva a todos os ministérios
novos; o leão parlamentar porém se deixará levar por
um fio de seda, que ele transformará oportunamente em corrente de favores,
não para si, só para amigos, cujo reconhecimento nada tem com
as suas relações com os ministros; e servirá ao Estado,
e será patriota assim, e subirá, e há de ser grande na
sua terra.
Dá o nome de amigos a três mil conhecidos, sabe angariar simpatias,
colhe os frutos de mil préstimos, e não é amigo de homem
algum, sabendo todavia servir com empenho àqueles que têm de
servi-lo em dobro depois; mas serve só e sempre como intermediário,
do seu apenas serve, dando o tempo que emprega para pedir e obter.
Em relação à família, Américo negocia
com a legítima paterna da prima Anica, com a fortuna da tia Domingas
e com a minha; convenceu-nos a todos de que perdêramos a quarta parte
do que possuíamos na quebra das casas bancárias em 1864; ele
porém ganhou nessa crise setenta e cinco por cento da suma das nossas
três fortunas prejudicadas, isto é, aumentou a sua riqueza na
proporção exata de nossas perdas; não toma compromisso
sério; deixa que a tia Domingas lhe fale muitas vezes do seu casamento
com a prima Anica; mas projeta abdicar em mim esta glória, e fareja
entre os dotes ricos o dote mais rico para se casar com ele, aceitando, como
meio indispensável da transação, uma pobre noiva condenada
aos tormentos da sua indiferença.
Não esquecendo que sou seu irmão, Américo não
me ama, mas olha-me com piedade; creio que não me deixará morrer
de fome creio; porque tenho horror à incredulidade em tal hipótese;
creio, revoltando-me contra a visão do mal; mas vejo bem que se ele
puder, absorverá tudo quanto possuo.
Américo não é avarento, porque despende bastante para
viver com decência e algum luxo; é porém o homem sedento
de ouro, e para quem família, pátria e Deus se resumem no- ouro.
Enriquecer é a sua idéia: se chegar a possuir cem mil contos
terá ambição cem mil vezes maior, e não fará
bem algum à humanidade.
Entristeci-me profundamente, pensando no que acabava de ler no livro aberto
da alma de meu irmão; logo porém, e como ansioso a procurar,
a pedir uma consolação, fitei e observei por dez minutos a tia
Domingas.
É uma senhora de sessenta anos, gorda, simpática, e perseguida
de ataques erisipelatosos que a têm avelhantado mais que os anos; traz
ao pescoço três ou quatro breves da marca, e na mão o
rosário em que aponta as suas orações; sua fisionomia
é plácida, tranqüila como a face de um pequeno lago, é
um espelho da virtude da paciência, e nos seus olhos que a miado se
voltam para o céu parecem brilhar os raios da esperança e da
fé.
Mas a visão do mal mostrou-me em seguida a hipocrisia de sua face:
a tia Domingas é invejosa e má; detesta as moças porque
é velha; maldiz das traições e dos enganos do mundo porque
não espera mais ser traída, nem enganada; benze-se, levantando
aleives às vizinhas, ou propalando suas fraquezas; faz incríveis
economias no governo da casa, esconde dentro do colchão e das almofadas
de sua cama o dinheiro que poupa, e no principio de cada mês se lamenta
da insuficiência da verba concedida por Américo para n manutenção
da família: não dá um vintém de esmola aos pobres;
arranca à rudeza e à calunia odienta dos escravos os segredos
verdadeiros e falsos da vida intima de seus senhores, e faz das confidencias
capítulos de acusação maledicente, acompanhados sempre
de um- Deus me perdoe! na terra o acho, na terra o deixo! e pecadora que peca
mil vezes por dia, pensa que engana a Deus, rezando, quando não peca.
Tem no mundo um amor, é sua filha; aborrece Américo; mas finge
que o estima para ver se consegue casar Anica ou com ele ou em último
recurso comigo; aborrece-o porque lhe inveja a riqueza que ele acumula, adorá-lo-ia,
se Anica se tornasse senhora de metade da sua fortuna; não me ama,
mas tolera-me, sou a seus olhos um genro obrigado na falta de Américo.
Pela força do hábito os lábios da tia Domingas estão
em movimento incessante, porque sua boca repete maquinalmente as orações
de seu rosário; interrompe, porém, as orações
a cada instante no governo da casa para proferir pragas contra os escravos,
chamando mil vezes pelo nome do diabo; mas não tem idéia deste
pecado; porque reza, como peca, e peca como reza, sem intenção,
nem consciência.
A tia Domingas é santa pela cara, e condenada pelo coração.
Retirei a minha luneta, sai da janela, e murmurei tristemente:
— Com que gente eu tenho vivido!… que desilusões, meu Deus! . que
desgraça é perder como perdi a confiança nos parentes,
e o amor que eu sentia por eles!!!
VII
A visão do mal, o conhecimento das paixões ruins, dos vícios,
dos intentos pérfidos ocultos nas dobras negras dos primeiros corações
humanos que eu devassara com a minha luneta mágica, dos três
corações, em que eu mais confiava, e que mais amava, começavam
a produzir no meu espírito os seus naturais efeitos.
Se meu irmão, minha tia e minha prima, os únicos parentes que
me restavam no mundo, os dois primeiros que me haviam criado desde bem tenros
anos, Anica que fora minha camarada da infância, quase minha irmã,
assim tão cruelmente me enganavam, que podia eu esperar dos estranhos
e dos indiferentes?…
E o armênio aconselhar-me que me abstivesse da visão do mal!
que erro! devo eu preferir viver iludido e vitima cega, estúpida, entregue
de corpo e alma àqueles que abusam da minha inocência e simplicidade
para sacrificar-me ao seu egoísmo e à sua ambição
criminosa?
— Oh! mil vezes. não! a visão do mal me envenenará
talvez a vida; mas há de ser o meu escudo contra os pérfidos,
e me acenderá luz para livrar-me dos laços da traição.
Eu sinto já que a minha miopia moral vai se desvanecendo sob o influxo
de uma ciência amarga, desconsoladora, triste, comprimente; a ciência
do mal; em todo caso porém ciência.
Eu já compreendo e reflito; já sei meditar, e resolver por
mim; não sou mais o pupilo perpétuo do mano Américo.
A visão do mal emancipou-me.
Dói-me ter perdido a suave, a deleitosa crença da lealdade
do amor dos parentes; dói-me, porém acabo de perdê-la.
VIII
A miopia moral, a ignorância completa do mal, a inocência conservaram-me
até esta manhã franco, simples, sem uma nuvem de suspeita na
alma, sem desconfiança dos outros, e com o coração aberto,
transparente aos olhos de todos.
O conhecimento do mal vai operando em mim forçosa modificação
de idéias e de sentimentos.
Já sei que é preciso fingir: já o sei; porque estou
determinado a esconder de Américo, da tia Domingas, de Anica e de todos
a principal virtude da minha luneta: direi que por meio dela distingo melhor,
mas ainda imperfeitamente os objetos.
Vou portanto dissimular e enganar; primeira lição da ciência
do mal que a visão do mal me está dando; primeiro passo no caminho
tortuoso da desmoralização; mas inevitável; porque é
preciso dissimular e enganar para defender-me de parentes desamorosos e pérfidos
e para, cauteloso e seguro, realizar projetos que desde alguns minutos fervem
no meu espírito exaltado pelos ressentimentos do coração.
Nas latas do mundo devo bater-me com armas iguais às daqueles que
me hostilizam: dissimulação contra dissimulação,
engano contra engano.
Em uma hora experimentei três desilusões que me envelheceram
trinta anos! os gelos de três desenganos apagaram no meu seio é
fogo santo de três afeições profundas, inocentes e puras.
IX
Tenho na mente uma providência que me é necessário tomar
em breves dias; tenho no coração um vácuo que ardentemente
desejo preencher sem precipitação, mas quanto antes.
Quando retirar do mano Américo a gerência da minha fortuna:
eis a providência que vou tomar; acharei um procurador zeloso, prudente
e honrado que se incumba deste negócio, e o efetue sem escândalo,
e sem descrédito de meu irmão, a quem não me dirigirei
sobre este assunto; porque me repugna expor-me ao extremo de confundi-lo em
face.
Não preciso de informações nem de recomendações
para a escolha do meu procurador: a minha luneta mágica me ensinará
qual dentre muitos merecerá ser preferido.
Hoje mesmo darei principio a este estudo, aos trabalhos desta descoberta
ou preferência.
O preenchimento do vácuo do coração é mais difícil,
e há de ser mais moroso.
Estou; mas não é admissível que eu possa viver sem família.
Estou sem família, a visão do mal rompeu os laços que
me ligavam aos meus três e únicos parentes.
Essas três afeições, essas três únicas flores
do jardim do meu coração marcharam para sempre, e o meu seio
ficou deserto e noite.
Nasci para amar, tenho sede de amor; não posso viver assim.
A família, é na terra a beatificação da vida
do homem; a família, é o mundo em festa no lar doméstico;
a família, é a imensa vida de amor, em que se identificam algumas
vidas que se amam, que se abraçam, que se completam; a família,
é a consolação no infortúnio, o suave descanso
no fim do trabalho e das lidas, é o rir de muitos pela felicidade de
cada um de seus membros, é na extrema hora o colo em que se encosta
a cabeça para dormir o último sono, é o pranto de amor
que orvalha a sequidão da morte, a mão de amor que, religiosa,
fecha os olhos do morto.
Eu quero ter família, não posso viver sem ela.
Estou como enjeitado que sai do hospício estou só, sem um parente,
estou deserto e noite, e aspiro sociedade e luz.
O enjeitado não tem; mas pode criar e cria uma família, para
si, procura uma mulher, e abre-lhe o coração; a mulher o faz
esquecer o deserto e a noite do passado, dando-lhe a sociedade, e acendendo-lhe
a luz do presente e do futuro.
A mulher é a placenta da família, é a criação
privilegiada, a última e a mais mimosa criação de Deus,
que em um sorrir divino nela derramou a graça que encerra o encanto
da vida do homem.
Eu quero procurar uma mulher jovem, bela e pura, que me dê família,
eu estou deserto e noite; quero receber a companhia do coração
e a luz dos olhos de uma mulher formosa e santa; quero um anjo, a cujas asas
brancas me prenda, para sair do deserto e da noite.
Avalio bem as proporções imensas da minha aspiração;
mas a luneta mágica me deixa ler os segredos de todas as almas, e,
mercê desse encantado privilégio, hei de achar o botão
de inocência que almejo, a noiva- anjo da terra que adorarei perpetuamente.
A mesa do almoço apareci com a minha luneta, e causei surpresa; disse
que auxiliado pelo poderoso vidro, podia ver melhor do que dantes, embora
menos do que desejava; mas acabando de almoçar e usando da luneta,
servi-me de um palito sem pedir que mo dessem.
Diante dessa prova evidente de que já me era fácil distinguir
um palito, o mano Américo abriu a boca espantado, a tia Domingas benzeu-se,
e a prima Anica consertou com faceirice as dobras e o laço do seu fichu
que aliás não tinham desconserto algum.
Enfim meu irmão e minha prima deram-me uns parabéns que me
pareceram muito dessaboridos; minha tia disse: "Deus te abençoe
para que não peques pelos olhos!" e eu despedi-me e fui para o
júri.
X
Nas ruas vi tudo de passagem e frui mil gozos novos para mim com a simples
visão das aparências; mas chegando à sala do júri
e tomando a minha cadeira, dispus-me a não poupar o meu privilégio
da visão do mal.
Nesse dia não sai sorteado, embora se formassem dois conselhos que
consecutivamente julgaram o primeiro um, o segundo dois réus.
Em qualquer dos três réus encontrei um coração
negro, um homem-fera; do primeiro julgado, porém, não lhe descobri
na consciência indicio algum do crime de que o acusavam, e foi exatamente
contra esse que mais vigorosa se desencadeou a palavra do acusador.
Fitei minha luneta no advogado que assim falava por parte do autor, e no
fim de breves minutos reconheci que ele estava convencido da inocência
do réu que acusava.
Examinei no segundo processo a consciência do eloqüente defensor
dos dois réus justamente processados por crime de homicídio,
e vi que ele fazia prodígios de habilidade sofista para iludir os jurados.
e levá-los a obrigar injusta sentença de absolvição.
Arredei de meus olhos a luneta que acabava de fazer-me descrer do sacerdócio
da advocacia.
— Como é, perguntei a mim mesmo; como é que um advogado ostenta
a mentira e o dolo, rebaixando uma das mais nobres e esplêndidas profissões,
sustentando, demonstrando o contrário do que pensa e do que sente,
para ganhar a soma, porque contratou a acusação ou a defesa?…
— Como é que se abate assim o talento, e se aniquilam as grandes
noções do dever?
Um advogado era para mim a luz do direito, o escudo da inocência, o
campeão da lei; era a Sabedoria a pleitear pela justiça; como
pois um advogado se anima a mentir diante de Deus e dos homens, a malfazer
a sociedade, esforçando-se com todo o poder das suas faculdades para
que se julgue inocente e puro um assassino conhecido e provado, um malvado
que ele sabe que é assassino?… e, mil vezes ainda pior, como é
que outro advogado profundamente convencido de que o réu não
cometeu o crime que lhe imputam, ousa ir acusá-lo, ousa ir pedir que
o encarcerem, que o condenem a trabalhos forçados?…
E além da mentira o dolo!… o dolo; porque tais advogados se empenham
em enganar os juizes de fato, tecem ardis, desfiguram os atos praticados,
enredam e perturbam as testemunhas, tornam o processo caos com o fim de arrastar
o júri a decisões contrárias à verdade e à
justiça e só em proveito dos clientes que os têm contratado
para acusar ou defender?…
E do mesmo modo que praticam em questões criminais, que afetam a moralidade
e a segurança da sociedade, e a liberdade e aos direitos individuais,
hão de também praticar nas questões que se referem à
propriedade!… haverá pois advogado que convicto da infame velhacaria
do seu cliente, ainda assim lhe alague a sua banca, que devia ser altar nobilíssimo
e ponha em tributo os recursos da sua ciência para ajudar o cliente
a roubar o alheio?!!!
Ah! visão do mal que me estás levando a descrer da humanidade!
tu me serás talvez fatal; mas eu te quero, e não te dispenso
mais, porque tu és luz, embora sejas luz do inferno.
XI
Entre o primeiro e o segundo processo tivemos uma hora de folga, que tanto
durou o conselho secreto.
O meu velho amigo, cujo nome quero agora declinar, o Sr. Nunes, veio sentar-se
junto de mim: apertei-lhe a mão com força, prazer e confiança;
pois era a ele que eu devia o ter ido à casa do Reis, onde encontrei
o maravilhoso armênio.
— Então? perguntou-me o velho; que tal achou a luneta?… estou ansioso
por sabê-lo; não dormi um instante toda a noite; que me diz da
luneta?
— É admirável, meu amigo.
— É, na verdade mágica?
— Estupendamente mágica.
— Conte-me alguma coisa…
Contei-lhe tudo.
Cometi um erro, sendo completamente franco na exposição de
todas as minhas experiências, e outro, ainda maior, na confidência
dos meus dois projetos, o de encarregar a um procurador hábil o arranjo
dos meus negócios com o mano Américo, e o de criar para mim
uma família, casando com uma jovem formosa e pura.
O velho Nunes sorriu-se agradavelmente, com expansão de amizade, apertando-me
as mãos, e desfazendo-se em felicitações: a alegria radiava-lhe
nos olhos e no rosto. Que excelente e nobre homem!… que diferença
entre ele e os meus três parentes!…
No fim de alguns minutos em que me pareceu refletir, disse me:
— Eu creio que nasci predestinado para lhe ser útil.
— Já lhe devo muito.
— E vai dever-me mais; o seu primeiro projeto e justo; mas arriscado…
— Por quê?
— Mal pode calcular como são alicantineiros, palros e vorazes quase
todos os procuradores e solicitadores que por aí andam, e receio muito
vê-lo cair nas garras de algum desses trapaceiros.
— Pensa?…
— Mas ainda bem que eu sou também solicitador no foro da corte, e
tenho orgulho da reputação de probidade e de dedicação,
que ninguém ousa disputar-me; o trabalho me sobra, e o tempo me falta;
mas para servi-lo, ofereço-me de corpo e alma para concluir em poucos
dias todos os negócios que tem com seu irmão e sem escândalo
nem desgosto.
— Oh! meu bom amigo!
— Pode chamar-me assim; tenho queda para o senhor; amanhã há
de jantar comigo: quero apresentar-lhe minha mulher que é uma santa
e minha filha que é uma flor do paraíso
Senti-me cativo do honrado e generoso velho e para melhor apreciá-lo,
fixei a luneta, ele porém voltou o rosto imediatamente; três,
cinco, dez vezes repeti a manobra, e o Sr. Nunes outras tantas fugiu com o
semblante, e por fim ao sair o conselho da sala secreta, mudou o velho de
cadeira e sentou-se exatamente diante de mim, dando-me portanto as costas.
Admirei tanta modéstia, e ensaiando uma nova experiência, pus
a luneta em ação e olhei o velho Nunes pelas costas durante
sete minutos.
Oh! luneta sublime! não há recurso que possa anular a tua força!
Eu vi perfeitamente o homem.
Misericórdia! que enormíssimo tratante é o Sr. velho
Nunes!- afável, obsequiador, loquaz, insinuante, sabe um por um todos
os segredos das traficâncias que desmoralizam o povo: tem falsificado
documentos, rasgado e sumido folhas de autos, já furtou a firma de
um juiz, já solicitou pró e contra em mais de vinte causas,
tem comprometido interesses, demolido fortunas, e ainda não entrou
na casa de correção!… aluga-se, quando não lhe convém
vender-se, e vende-se apenas lhe chegam ao preço; tem de seu mais de
cem contos de réis torpemente adquiridos, e é usurário
de profissão; surrava os escravos sem piedade, vendeu-os todos há
poucos meses, arremata outros em praça para vendê-los em breve
prazo, e é entusiasta da emancipação; é cabalista
admirável de eleições, tem sido eleitor por todos os
partidos, e votado como eleitor nos candidatos que lhe compraram os votos
por dinheiro, e por transações que valem dinheiro. Exalta os
gozos suaves e a santidade do lar doméstico, e no lar doméstico
dá pancadas na mulher, que o teme e que o detesta, e vive em guerra
aberta com a filha porque ela em doces e costuras que faz ganha somente bastante
para se vestir.
E, o que é mais, eu me vi, eu me encontrei e me reconheci nos cálculos
da mente do velho Nunes!… elo sabe melhor do que eu a quanto chega a minha
fortuna, planeja explorá-la em seu proveito, desacreditar, infamar
meu irmão, ou negociar com ele em meu prejuízo, e finalmente
concebeu a idéia de casar-me com sua filha!!!
Tive horror do execrável Nunes, a quem mais nunca darei o nome de
velho amigo; senti-me, porém, desconsolado e triste, descobrindo tanta
malvadeza, em quem supunha tanta bondade e virtude.
É ainda uma desilusão! é ainda um turvo desengano a
arrastar-me à desconfiança e talvez em breve ao aborrecimento
dos homens.
Sai do júri mais sombrio e abatido do que os réus que por ele
acabavam de ser condenados.
XII
É claro que não procurei mais encontrar-me com o velho Nunes,
e aproveitando a lição desse novo desengano, compreendi que
me cumpria ser ainda muito mais cauteloso na escolha do meu procurador, e
principalmente na eleição da minha noiva.
Empreguei quatro dias no empenho da descoberta de um procurador, como desejava,
e perdi o meu tempo: estudei com a minha luneta magica nada menos que trinta
e tantos procuradores e achei-me sempre de mal a pior! pareceram-me todos
eles verdadeiros procuradores do epigrama de Bocage, os que se diziam melhores
e passavam por mais hábeis e dedicados, eram os piores pela mais refinada
arteirice, e profunda malícia.
No fim dos quatro dias senti-me tonto, aborrecido, desesperado, e com a convicção
tristíssima, de que não encontraria procurador, que pudesse merecer
a minha confiança.
— Que homens! disse comigo mesmo; que gente desmoralizada, ardilosa e má!
isto será talvez devido à influência do oficio: eles têm
tantas vezes de procurar, de trabalhar em proveito de causas injustas, têm
tantas vezes de contrariar a verdade, a justiça, a inocência,
e o direito, que acabam por habituar-se ao dolo, à mentira, e ao sacrifício
de todas as noções do dever. Há de ser assim, e nem pode
ser de outro modo; porque a minha luneta mágica, que me faz ver no
intimo dos corações, não me deixa cair em falsas apreciações.
— Mas todos eles maus e nem um único bom ao menos sofrível…
é demais! não quero tão cedo continuar na descoberta
de procurador; estou cansado de ver homens ruins; tratarei de consolar-me
contemplando as graças do sexo encantador.
O último dos quatro mal afortunados dias fora de abrasadora calma;
ao declinar da tarde dirigi-me ao Passeio Público.
Era a primeira vez que eu visitava, com a certeza de poder apreciar pela
visão, esse pequeno, mas preciosíssimo jardim, onde a população
da cidade pode ir gozar das árvores sombra e imperceptível respiração
purificadora do ar, das flores encanto e perfumes, do mar o aspecto sublime,
da terra limitada amostra da opulência majestosa da natureza do nosso
Brasil, e das magias da tarde a suave frescura da viração.
Entrei no Passeio Público, e com apressada curiosidade fui vendo e
gozando os deleitosos quadros da relva verdejante, dos grupos de arbustos
graciosos, das árvores gigantes, das correntes d’água, das pontes,
do outeiro dos jacarés, do terraço que se torna admirável
pela vista das montanhas, dos rochedos e do mar, das fortalezas e das ilhas,
das praias e da cidade formosa, mas recreio da cidade ofuscadora, a que demora
fronteira.
Tudo isso era novo para mim, tudo, todas essas maravilhas da criação,
todos esses belos testemunhos, todas essas obras do trabalho e da arte dos
homens.
Eu devia esquecer-me de mim mesmo, embevecendo-me na contemplação
de tantos prodígios; senti porém perto de mim, em torno de mim,
passando junto de mim, indo e vindo, outra maravilha, que os homens vêem
em toda parte, a todas as horas, e que nunca se satisfazem de admirar, e de
amar; ouvi o ruído do arrastar de vestido, senti doces e sutis aromas
deixados em leve rasto, tocaram-me os ouvidos os sons murmurantes de vozes
argentinas, em uma palavra, senti a mulher e não vi mais nem serras,
nem ondas, nem natureza grandiosa, nem arte nascente, nem florestas, nem cidades;
senti perto de mim a mulher, e, olvidando tudo mais, voltei-me para contemplar
a mulher.
XIII
Não era uma, eram cem as senhoras que passavam e que estavam no terraço.
Sentei-me em um dos bancos de mármore e deixei fixada a minha luneta.
Mais de vinte jovens senhoras me pareceram bonitas; defronte de mim porém
estava sentada junto de um venerando ancião a mais formosa donzela.
Vestira-se de branco! tinha os cabelos negros, os olhos pretos, grandes e
suavíssimos, eram olhos que não abrasavam, mas que inundavam
de doçura, de luz branda, de enfeitiçadas delicias o coração
do homem que lhe merecia um olhar; tinha no rosto a palidez enlevadora, que
não indica sofrimento e atesta fina sensibilidade: o seu corpo era
esbelto, e sua cintura de proporções delicadíssimas;
trazia na mão pequenina e branca um leque de madrepérola com
que se abanava distraída, absorta na contemplação do
mar, ou divagando pelos mundos da imaginação; levantou-se a
convite do ancião, sem dúvida seu pai, e com ele passeou ao
longo do terraço; no fim de alguns minutos tornou a sentar-se no mesmo
lugar em que estivera.
Era indizível a graça do seu andar tão suave, como o
deslizar da nuvem pela face do horizonte.
A donzela pálida afigurou-se-me revelação de todas as
perfeições humanas completando um portento de formosura. O rosto
é o espelho da alma, a graça, dom do céu: a donzela pálida
era necessariamente 0 símbolo do amor e da pureza dos anjos.
O meu coração palpitava transportado de admiração,
e já dominado pelo poder miraculoso de tanta beleza.
— Como está hoje arrebatadora Dona Rosinha! disse um mancebo, falando
a outro perto de mim.
Ela chamava-se Rosa; tinha o nome da rainha das flores.
— Está hoje como sempre; mas em que cismará ela?… provavelmente
em coisa nenhuma: quer que se acredite que tem horas de embevecimento poético.
— Não; ela fez vinte anos ontem, e está sem dúvida
cismando nos motivos por que ainda não se casou…
Revoltei-me contra os dois sacrílegos, apartei-me deles com sentimento
de aversão.
Eu tinha observado a formosa jovem, lançando-lhe vistas repetidas,
mas passageiras, receoso de sobressaltar o seu virginal pudor; não
pude porém resistir por mais tempo ao ardente empenho da adoração
da sua alma, e fitei nela a minha luneta por mais de três. minutos.
A donzela apercebeu-se da minha contemplação e por acaso ou
de propósito deu a seu corpo flexível uma atitude de gracioso
abandono, que me deixava apreciar todos os encantos da sua figura, inclinando
langorosa a cabeça para o ombro de seu pai, e esquecendo os olhos no
céu.
Ah! foi para mim um abismo de magias, um arrebatamento do espírito
irresistível perdição de toda a minha liberdade durante
três minutos…
E no fim de três minutos o coração da donzela se patenteou
a meus olhos, e os segredos de sua alma se revelaram à visão
do mal.
O demônio das contradições absurdas reunira naquela alma
de mulher formosa a vaidade mais descomedida, e a inveja mais violenta e cruel:
Rosa julgava-se a mais encantadora e bela das mulheres e invejava de uma os
cabelos loiros, de outra os olhos azuis, de sua mãe o vestido mais
rico, de sua prima a voz de contralto, da amiga da infância uma prenda
que lhe faltava, da noiva desconhecida a fortuna do casamento; invejosa, aborrecia
todas as senhoras, vaidosa, queria ser amada, requestada por todos os homens;
pela inveja era mordaz, maldizente, intrigante e aleivosa; pela vaidade era
imprudente e louca, coração corrompido; não poupava sorrisos,
nem olhar animador, nem palavras comprometedoras para prender um namorado:
o que era em solteira prometia ser quando casada, namoradeira sempre; e pela
combinação da vaidade e da inveja com a sua organização
e suscetibilidade nervosas, havia de impor-se absoluta dominadora do marido,
a quem não amaria como marido, e só olharia como escravo; frenética,
doida em ímpetos de brutais ciúmes não derivados de amor,
rancorosa, raivosa, dissipadora, sem consciência do dever, sacrificando
por uma noite de baile um ano de pão para a família não
hesitando em reduzir à miséria pai, e esposo, para alimentar
o seu luxo, só pensando nos gozos da ostentação e de
apaixonados cultos na terra, sem fé, sem religião, em moça
era tentação infernal, velha havia de ser o desgosto de si própria
degenerado em malvada ira contra todos, em vaidade condenada, em inveja corroída,
em aborrecimento do mundo, e em ódio a todos elevado a expansões
delirantes, capazes de transformar o lar doméstico em geena desesperadora.
Eu vi tudo isto, e ainda mais podia ver; porque longe ainda deviam estar
os treze minutos que limitavam a visão do mal: podia e tinha mais que
ver naquele coração desgraçado; mas não quis…
tive horror de um ponto negro, que se ia esclarecer; tive horror… deixei
cair a luneta, e amaldiçoando a inveja, e maldizendo da vaidade, fugi,
correndo, precipitado para fora do terraço.
XIV
Na escada por onde me retirava para o seio do jardim quase que em impulso
desastrado levei diante de mim um homem que também descia.
— Ah! senhor! exclamou ele voltando-se; não tem olhos ou vem doido?
— Perdão! respondi; exatamente não tenho olhos, porque sou
míope e venho doido, porque encontrei no terraço um demônio
com aparências de querubim.
— Pois quem é míope deve trazer óculos, e quem anda
às voltas com o diabo deve procurar antes o inferno do que o Passeio
Público!
— Mano! disse uma voz dulcíssima; o senhor se desculpou tão
cortesmente, que o favor da sua amabilidade exige antes agradecimento, do
que insistência na lembrança de um acaso que não teve
más conseqüências.
— Obrigado, minha senhora, tornei logo, fixando a luneta; eu já nem
me arrependo da minha imprudente precipitação; pois que a ela
devo o encanto do perdão dado por voz tão melodiosa.
Vi voltar-se para mim o lindo rosto de uma mulher que ostentava todo o esplendor
da beleza na primavera dos anos; ela porém afrontou com tanta firmeza
a fixidade da minha luneta, sorriu-se tão facilmente para mim, olhou-me
com tão clara garridice, que antes de cinco minutos causava-me já
tal desgosto que por castigo nem lhe descreverei as graças da figura.
Coitadinha! era uma menina, que talvez tivesse nascido com excelentes disposições,
branda, condescendente, alegre, assim o devo supor, pois não creio
que alguém nasça mau e pervertido; mas os pais entusiasmados
pela beleza da filha, quiseram fazer dela singular maravilha, e a esqueceram
cinco anos em um famoso colégio, cuja diretora, antiga florista de
Paris, mudara de vocação com os enjôos da viagem transatlântica,
e chegada ao Rio de Janeiro, anunciou prodígios de instrução
e educação de meninas.
Nesse internato, onde as educandas de todas as idades se confundem e se acham
em contato de dia e de noite com seus diversos costumes, com seus bons e maus
instintos, com suas imaginações travessas, com suas malacias
enfim, a pobre menina aprendeu demais o que devia ignorar, e quase nada o
que precisava saber, e saiu do colégio, corando não por pudor
virginal, mas por artifício de namoradeira, não conhecendo o
valor de um beijo de seus lábios, nem o preço e a glória
das virtudes, sem as quais a mulher se faz objeto de desprezo.
A leviandade do seu procedimento, a palavra desenvolta com que aturdia as
amigas, a audácia com que se arriscava na sociedade, sacrificando todos
os preceitos da prudência na liberdade exagerada que permitia a quantos
lhe faziam a corte, que não era mais suficientemente respeitosa, autorizavam
a maledicência que a feria com venenosas calúnias.
O aleive, a mentira a ultrajavam injustamente com suspeitas cruéis;
não era calúnia porém, a fama da sordícia do seu
coração.
Quantos perigos, meu Deus, há nos colégios, e nos internatos
de meninas!… quantas pobres inocências atiradas a prevaricações
possíveis e fáceis! ah! se eu tiver uma filha, hei de fazê-la
instruir-se ao lado e aos olhos de sua mãe; e se então me achar
em pobreza, e não puder pagar mestres, minha mulher e eu ensinaremos
como pudermos, e o que pudermos à nossa filha, e em último caso
ficará ela embora ignorante, mas não será exposta a ser
desmoralizada.
Oh! minha luneta mágica! eu te agradeço esta lição,
que me deste.
XV
E ainda com a proveitosa lição senti-me triste, profundamente
triste.
Que dia infeliz! começou de manhã pelos procuradores que vi
e que me causaram repugnância e tédio, e acaba à tarde
com a contemplação de duas jovens formosas, que a princípio
me pareceram dois anjos, e logo depois reconheci que eram duas criaturas condenadas,
dois corações infeccionados, duas mulheres formosas, porém
más, dois medonhos abismos cobertos de lindas flores.
Esta luneta é implacável e cruel: além da visão
das aparências ainda não me concedeu uma contemplação
suave.
Já aborreço os homens, e hoje principiei a desconfiar das mulheres.
Quero, preciso ter uma consolação, uma impressão felicitadora,
que compense as tristes desilusões, por que tenho passado. Longe da
minha luneta os homens e as mulheres! prefiro olhar, apreciar algum ser impecável,
obra de Deus, não contaminada pelas malícias, e pelos vícios
da humanidade.
Aí estão as duas pirâmides, e defronte o outeiro dos
jacarés… são trabalhos do homem, desprezo-os; lá se
mostram as flores… algumas são venenosas, e os perfumes das mais
inocentes em certas condições podem matar; também não
quero as flores; a água deste lago pode conter miasmas… não
me convém…
Oh! eis ali um beija-flor!… a mais delicada e gentil criatura! eu o estou
vendo com suas penas de esmeraldas e rubins, de ouro e topázio, de
púrpura e de fogo… eu o estou vendo com a sua mobilidade faceira,
com os seus vôos rápidos e graciosos, com o seu trêmulo
adejar equilibrante no gozo puro do seu amor das flores…
Mas… que vejo ainda? que vejo agora?… ah! essa avezinha tão mimosa
e tão linda é um monstro que me inspira aversão por seus
instintos ferozes e qualidades perniciosas.
Egoísta, falso, incapaz de afeição durável, o
perverso abusa dos seus encantos, e beija, profana e atraiçoa todas
as flores, licenci e infame, poluindo seus nectáreos e ostentando após
a mais bárbara indiferença, a mais ostentosa e ilimitada inconstância.
O beija-flor é como a serpente pela extensibilidade da língua,
e esta ainda nele se duplica, estendendo dois filetes, que lhe servem como
as garras às aves de rapina.
Finalmente assassino e destruidor, ele mata e devora em cada dia dezenas
e dezenas de insetos inocentes, fracos e incapazes de defender-se, ousando
sem continência, nem respeito ir arrancá-los do mais doce asilo,
do seio mimoso das flores!…
Hoje criei ódio aos beija-flores, passarinhos devassos, desmoralizados,
traiçoeiros e malvados.
Flores da terra! acreditai na minha luneta mágica: tende medo dos
beija-flores!
XVI
Esta última experiência afligiu-me profundamente.
Quê! até nos seres irracionais, e entre eles na própria
avezinha, mimo da criação, sorriso de anjo e raio de sol nascente
tornados pelo criador em passarinho, no próprio beija-flor só
me é dado encontrar maldades e perversão!!!
Sempre turvos e sinistros desenganos! sempre o mal neste mundo de peste e
de misérias!… este mundo será pois o inferno, ou pode o inferno
ser pior que este mundo?…
Deixei o Passeio Público, maldizendo da vida, detestando o homem,
a mulher, toda criação, pedindo a Deus a morte, como o indigente
faminto pede pão, como a escrava que é mãe, e a quem
a maldição do cativeiro ainda não deturpou e anulou a
sensibilidade, deseja e pede a liberdade do filho.
Que noite de horror e desespero passei! mas enfim a fadiga, o sofrimento
do corpo que respondia às torturas morais da alma, venceram a contenção
do espírito que procurava debalde imaginar consolações
e lenitivo: ao romper da aurora adormeci.
Lembra-me que meu último sentimento na tormentosa vigília foi
de desgosto da vida e de repugnância a toda a humanidade.
XVII
E como esses cinco últimos dias ainda mais trinta, um mês inteiro
de desenganos e desilusões! em casa o quadro constante de tríplice
traição na companhia obrigada de meus três e únicos
parentes; fora de casa a pronta descoberta da maldade e da perfídia
de todos os homens e de todas as mulheres.
Vi, encontrei somente o mal em tudo, e em toda a parte, nos seres orgânicos
e nos inorgânicos, nas obras das ciências, e das artes, nos livros
e nos monumentos.
Para escrever tudo quanto me mostrou a visão do mal me fora preciso
encher com a pena molhada em fel muitos e volumosos livros, e atormentar a
minha alma com o registro vivo das mais aflitivas observações.
Resumirei muito em breves palavras.
Eu tinha por amigos dois jovens da minha idade que moravam perto de nossa
casa; a intimidade em que eu vivera com ambos nos tempos da minha miopia física
e moral me fora sempre de grande consolação; mas a luneta mágica
fez-me em breve conhecer o erro perigosíssimo dessas relações
de tantos anos: um desses mancebos, o mais alegre, espirituoso e folgazão,
era um homem imoral, desprezador das leis humanas, afrontador das leis de
Deus, sem consciência, sem crenças, sem fé, tipo da sensualidade
sem freio, besta que só cuidava em fartar-se nos pastos do mundo.
O outro que me agradava ainda mais, porque se mostrava sempre grave, pensador
e comedido, era um calculista frio, sem escrúpulos na escolha dos meios
para atingir ao fim que tinha em mira; o seu princípio moral consistia
em salvar as aparências; furtaria a bolsa do amigo, se tivesse a certeza.
de o não verem furtar; venderia sentenças, se fosse juiz; estava
cansado de esperar pela morte de um tio, de quem contava ser herdeiro; filho
único, porém não legitimo, do pai houvera abastada fortuna,
e esquecia a mãe ainda viva e abandonada na miséria e no desprezo.
Separei-me de homens tão indignos da minha amizade; mas por isso mesmo
mais profundos se tornaram o deserto e a noite da minha vida, e a medonha
solidão no meio da mais ruidosa e brilhante sociedade.
O que faz sofrer este estado lúgubre, terrível do espírito
ninguém sabe, ninguém faz idéia, só eu que o estou
sofrendo.
XVIII
Um dia vi uma elegante e nobre senhora, que passava, deixar cair com angélico
disfarce duas moedas de ouro na mão de um mísero leproso, que
deitado no primeiro degrau da escada do átrio de uma igreja, esmolava
tristemente; vi-a levar o lenço aos olhos para enxugar duas grossas
lágrimas, que lhe sublimizavam as faces; segui a nobre senhora com
a minha luneta fixada sobre ela: ah! o disfarce fora mentira, a caridade era
ostentação; as duas lágrimas duas pérolas falsas
preparadas e expostas pelo artifício da hipocrisia; essa mulher casara
rica, dominava o marido, gastava anualmente vinte contos de réis em
vestidos e enfeites, economizando exageradamente em casa, negando ceia aos
escravos, dando-lhes almoço e jantar muitas vezes insuficientes, e
compensando a penúria da alimentação com freqüência
de castigos ferozes e de torturas repugnantes.
Em outro dia vi um padre de aspecto venerando; não arredava do chão
os olhos, trajava com severa decência própria do seu ministério,
levava na fronte o selo da austeridade de seus costumes, e na expressão
suave de seus olhos, e de sua boca meio risonha a manifestação
da sua piedade: eram olhos de conforto espiritual, e boca de perdão.
Observei-o com a minha luneta por mais de três minutos: os olhos de
conforto espiritual eram vulcões de concupiscência, a boca do
perdão era a fonte de palavras santas no altar e no púlpito,
mas de seduções vergonhosas fora do templo; esse padre tinha
corrompido uma donzela, abandonando-a depois aos frenesis da prostituição;
esse padre discutia previamente a espórtula das missas, fazia sacrilegamente
do altar balcão de traficantes, brigava por uma vela de libra ou meia
libra de cera, guerreava os outros padres na sacristia, não se lembrava
mais da conta das missas que devia, e desonrava enfim o sacerdócio,
ultrajando o Cristo com exemplos de desmoralização e de ganância
pervertedores do rebanho católico.
Uma vez quis ler um artigo de uma gazeta diária que me haviam recomendado
por muito importante e bem escrito. Com efeito logo no primeiro período
achei idéias sãs e luminosas enunciadas com elegância
e pureza; bem depressa porem, revoltei-me, descobrindo oculta na metafísica
de um principio a materialidade da ambição mais desenfreada,
disfarçado em máximas de moral sublime o manejo intrigante do
órgão de uma facção, nos protestos do amor da
pátria a mentira do mais refalsado egoísmo e na ostentação
de franqueza e independência dissimulado o preço por que se alugara
o escritor. Irritado, fiz em pedaços a gazeta maldita.
XIX
Em outra ocasião, passando pela Rua dos Barbonos, parei diante de
uma casa consagrada ao mais piedoso e santo mister, e vi armado em sua parede
aquele aparelho movediço que se chama- roda dos enjeitados.
Ora pois! disse a mim mesmo; aqui é impossível que eu descubra
o mal; porque neste caso o mal está somente na mãe, ou na família
cruel, que enjeita o recém-nascido; mas no seio que se abre para recebê-lo,
salvá-lo, adotá-lo não pode estar senão o bem,
a caridade, a santidade.
E fitei a minha luneta na roda por mais de três minutos: quem o diria?…
a roda da piedade bem depressa pareceu-me antes protetora do vicio e da desmoralização,
do que providência salvadora de inocentes criancinhas condenadas; essa
roda afigurou-se-me leito ruim de falsa caridade, porta do abandono, da perdição,
talvez algumas vezes do cativeiro dos míseros enjeitados; li no berço
dessa roda cem lúgubres histórias, e recuando espantado, preferi
a miopia à visão do mal, e cheguei a pensar que para muitos
dos enjeitados e para a sociedade fora melhor a sepultura, do que a roda.
E retirei-me, meditando, refletindo sobre o que acabava de ver.
Fique de parte a questão moral, social da conveniência de tais
estabelecimentos de caridade,
Que faz a roda ao enjeitado? Se pode, livra-o da morte; mas depois condena-lhe
a vida: era talvez preferível deixá-lo morrer.
Ser ou não ser: se a instituição é de caridade,
seja-o plenamente, não se desnature, recorrendo a meios que em regra
geral são fatais aos enjeitados; se não pode sê-lo plenamente,
não cumpre o seu fim.
Que faz a roda? Recebe o enjeitado, e depois enjeitado por sua vez. A verdadeira
caridade não enjeitada.
A roda que faz? Dá os enjeitados a criar, a quem os vem pedir e os
leva a dez, a vinte, a cinqüenta e mais léguas de distancia, e
fica muito contente de si, porque paga a criação do enjeitado
por dois terços menos, do que de ordinário custa o aluguel de
uma ama.
E por esse preço insuficientíssimo criar enjeitados é
negócio que se explora!
Que fortuna espera ao enjeitado que a roda assim por sua vez enjeita? Faz
tremer pensá-lo.
O mísero inocente é feliz, se acha seios de mulher em que se
aleite, e fica apenas analfabeto e sem educação; a sociedade
é que não pode esperar ser felicitada por semelhante enjeitado
de roda.
E o que não é feliz desse modo tão infeliz?…
E o enjeitado que fica reduzido a escravo da família que o foi pedir?…
e o enjeitado que morre à mingua longe da roda que o enjeitou, e que
paga sua criação muitos meses além da afortunada morte
do mísero condenado?
E o enjeitado de cor preta, ou de cor menos branca, que tão facilmente
substitui o escravo que morre, e que toma dele o nome para ser vendido pela
perversidade de algum infame dentre os negociantes de criação
de enjeitados?
Esta ultima idéia, a suspeita da possibilidade… talvez da realidade
de tão grande crime penetraram no meu espírito, como punhais
ervados que me rasgassem o coração.
Tudo pois que eu via no mundo era maléfico, pavoroso, medonho!
XX
A minha vida se tornava mais pesada, insuportável fardo. Não
havia para mim na terra nem consolação, nem luz de esperança;
se me tivesse faltado a profunda fé em Deus, e a educação
católica, o meu recurso teria sido o suicídio porque a visão
do mal me levara ao desespero.
Compreendi bem o horrível suplício da minha vida.
Em três parentes que eu possuía no mundo descobri três
ignóbeis exploradores da minha fortuna e do meu infortúnio.
Em dois amigos quase da infância achei dois miseráveis sem moral,
nem consciência.
Fiquei sem as santas prisões da família e sem a doce confiança
da amizade.
Quis tomar conta dos meus bens e criar para mim uma família e empenhei-me
em acertar com um bom procurador, e com uma donzela digna de ser minha noiva,
e todos os procuradores que estudei, eram homens repulsivos e alicantineiros
e todas as donzelas que observei me inspiravam repugnância, pelas suas
ruins qualidades morais, e gravíssimos defeitos.
Para qualquer lado que me voltei, fitando a minha luneta, vi somente sob
falsas aparências corações corrompidos pelos vícios,
ou enegrecidos pelo crime.
Não houve uma exceção!… todos os homens hediondos,
todas as mulheres ainda piores que os homens! 0 mundo pareceu-me povoado por
demônios de ambos os sexos; porque fora absurdo acreditar, que somente
na cidade do Rio de Janeiro toda a população nacional c estrangeira
fosse má e estivesse pervertida.
Descobri no sol fontes de terríveis calamidades, no beija-flor uma
criatura malvada; na imprensa uma instituição condenável,
em estabelecimentos de caridade lições e praticas de desumanidade.
Descri do advogado, do padre, do sábio, do artista, de todos e de
tudo!
Achei-me na terra sem um parente amado, sem um parente possível, sem
uma noiva possível sem sociedade possível.
Em todos vi o mal; porque em breve desconfiei mesmo daqueles, que não
estudara por mais de três minutos com a luneta mágica.
A visão do mal me causava já certa espécie de terror;
um dia lembrou-me fitar a luneta no prato que acabavam de servir-me ao jantar;
mas estremeci, e não a fitei, receoso de encontrar veneno; que me importava
ser envenenado?… era melhor não ver.
Foi assim que passei mais outro mês que se arrastou como um século
Que viver de torturas!
Tende piedade de mim, meu Deus! tirai-me deste mundo, onde eu vivo só,
absolutamente só em solidão infernal, ou com um único,
inseparável, amaldiçoado, mas implacável e sinistro companheiro,
com o mal que eu vejo em tudo, em todos, em toda a parte.
XXI
O armênio tinha razão: a visão do mal é um poder
fatalíssimo, uma faculdade que aniquila a paz, o sossego, as afeições,
a vida do desgraçado que tem esse poder; mas agora é tarde!
é muito tarde; precipitei-me em escarpado precipício, e é
inevitável que eu vá morrer no fundo do abismo.
Pode-se viver sem crenças, sem a mais tênue esperança,
sem o mais dúbio raiozinho de confiança em algum homem, em alguma
mulher… pode-se; porque é assim que estou vivendo.
XXII
Recebi hoje uma carta do Reis, a quem não tornarei a chamar meu amigo;
pois não me é possível ser amigo de homem algum.
Eu não tinha voltado à casa do Reis nem para cumprir o dever
de cortesia, indo render-lhe agradecimentos, e também ao armênio
pelo favor da luneta mágica.
Não voltei e não volto lá: detesto o armênio e
desconfio do Reis; o melhor sinal de imerecida gratidão que a ambos
posso e devo dar, é esquecê-los, é não ir lá
fitar por mais de três minutos sobre eles a luneta que me deram: o armênio
é concentrado e rude; o Reis é expansivo e obsequiador; quem
sabe o que a minha luneta me mostraria no intimo de qualquer deles?…
Devem ficar-me muito agradecidos por não ir vê-los: detesto
o armênio, desconfio do Reis; não quero relações
com eles.
Mas a carta do Reis deu-me que pensar; ei-la aqui ipsis verbis.
"Rio de Janeiro, 1.° de abril de 1868: Ilmo. Sr.: Não mereci
a graça de uma visita de V. S a depois da noite da operação
cabalística do armênio, e apenas desde anteontem comecei a ter
singulares noticias da sua luneta mágica; mas de modo que sou obrigado
a pedir a V. S B o favor de explicações que me são indispensáveis.
"Há dois dias que o meu armazém é procurado por
numerosos fregueses e desconhecidos que se empenham por obter esclarecimentos
relativos à luneta mágica. Muitos zombam do caso, atribuem maravilhas
inconvenientes que se contam à exaltação perigosa da
imaginação de V. S.ª; exigem porém informações
sobre o armênio e sobre a operação cabalística,
de que têm notícia não sei por quem.
"Outros, e infelizmente não são poucos, pretendem que
com a luneta mágica tem V. S.ª a faculdade de ver os corações
e as consciências de quantos observa por mais de três minutos,
descortinando assim segredos, vícios que se escondem, erros que se
ocultam e más qualidades que se dissimulam, protestando todos contra
o perigo social que pode resultar de tão fatal e assombroso poder de
encantamento.
"Alguns enfim incômodos e teimosos querem por força que
eu lhes venda lunetas iguais à sua, e perseguem-me com instâncias
que me perturbam o sossego.
"O maldito armênio diz que está pronto a encantar lunetas,
sem dúvida com intenção maléfica; eu porem não
consinto que ele apareça no armazém.
"V. S.ª compreende que tenho urgente necessidade de saber tudo
quanto há e se tem passado em relação à sua luneta
mágica.
"Devo aos meus fregueses e ao público em geral explicações
sem reservas, transparência sem a mais leve sombra em tudo quanto se
prepara e se faz, se imita, se aperfeiçoa, se inventa e se realiza
nas minhas oficinas, e de quanto se vende no meu armazém ou dele sai,
no cumprimento deste dever há para mim escrúpulo e honra; peço
pois a V. S a que me habilite para dar esclarecimentos e informações
às pessoas que incessantemente me estão procurando, e inquirindo
sobre esse importante assunto Sou etc. Reis."
XXIII
A carta não me foi agradável; refleti por algum tempo e resolvi
não responder ao Reis; a falta de resposta era inqualificável
grosseria; eu porém já tinha em tão profundo desprezo
e aborrecimento os homens, que pouco ou nada me preocupava a idéia
de ofender o Reis. Decidi-me a fazer de conta que não recebera a carta.
Mas quem poderia ter atraiçoado o meu segredo? Tornado patente a minha
facilidade da visão do mal?… Só três homens:
O armênio, de cuja ciência mágica se duvidava, e cujo
testemunho era portanto suspeito, e para quase todos seria ridículo.
O Reis que me escrevia, interrogando-me, e que por conseqüência.
nada sabia, visto que perguntava.
O velho Nunes que assistira a cena dos trabalhos mágicos do armênio
e a quem no dia seguinte eu confiara imprudente, louca e desastradamente o
segredo do poder miraculoso da minha luneta magica.
Portanto, o traidor, o propalador do segredo fora o velho Nunes, o procurador
imoral e refalsado, de quem eu fugira, e a cujo convite para jantar no seio
de sua família faltara sem escusas ulteriores nem satisfações.
O velho trapaceiro e ignóbil procurava pois vingar-se do meu desprezo,
denunciando a todos, publicando a força prodigiosa da luneta que eu
possuía.
Vingança estéril, vã, estúpida! Que me importa
o juízo dos homens? Que me importa o mundo?
Mundo, homens, velho Nunes e minha própria vida eu embrulho todos
e tudo isso nos trapos ascosos do meu mais profundo desprezo,
Não dei a menor importância à revelação
traidora, mal intencionada do velho Nunes: pensei que ainda quando ela pudesse
trazer-me desgosto e porventura colocar-me em circunstâncias embaraçosas
e desagradáveis, nem por isso chegaria a tornar-me mais desgraçado
do que eu já era.
Atirei com a carta do Reis sobre a mesa, tomei o chapéu e sai a passear
para desforrar-me de três dias de misantropa reclusão, a que
me condenara.
Eu levava comigo o suplício da visão do mal, e não pudera
imaginar que ainda outro suplício e igualmente horrível por
ela me estivesse esperando no mundo em que vivia.
Saí, como disse, e avançara apenas alguns passos, quando reparei
que muitas pessoas fugiam de encontrar-me, que outras voltavam-me as costas,
que as senhoras se retiravam apressadas das janelas.
A princípio não pude explicar o fenômeno; logo depois,
porém, lembrou-me a insidiosa revelação do velho Nunes,
e compreendi que me fugiam por medo da minha luneta magica.
— Fogem, disse rindo-me; fogem, porque lhes doem as consciências e
se reconhecem todos hipócritas e maus.
Era a primeira vez que me ria desde dois meses; o meu riso, porém,
era cheio de fel, era o rir de maldição irônica lançando
em face à humanidade-demônio.
Era quase noite; cheguei à Praça da Constituição,
e entrei no jardim que estava cheio de povo.
De súbito ouvi surdo e longo ruído de centenas de vozes, semelhante
ao trovejar longínquo da tempestade afastada; que me importava isso?…
Continuei o meu passeio pelas ruas do jardim, mas antes de três minutos
a Praça achou-se deserta, e no jardim apenas a estátua eqüestre
e eu!…
— Que gente! exclamei sem poder conter-me: não há um homem,
não há uma mulher que ouse afrontar a luneta mágica.
Veio-me o desejo de olhar e estudar a estátua eqüestre; imediatamente
porém senti tanta repugnância ao desengano provável das
idéias e sentimentos que eu acreditava ou antes acreditara presidindo
e dirigindo o acontecimento majestoso e patriótico que esse belo monumento
comemora, e atesta com sublime ufania que cedendo a generoso impulso, não
quis contemplá-lo, e deixando o jardim, dirigi-me ao café vizinho,
à muito conhecida casa do Braga.
Entrei, sentei-me a uma das primeiras mesas, e pedi uma xícara de
café.
A sala estava atopetada de fregueses; mas apenas entrei, e tomei um lugar,
despovoou-se de improviso, e um servente rude e mal-educado veio de mau modo
dizer-me que não havia mais café, e que a casa dispensava a
minha freguesia, e muito me agradeceria, se eu não tornasse a aparecer
ali.
Desta despedida formal a uma expulsão à viva força a
distância era pequena e quase nula, era a intimação antes
da violência; eu tinha por mim o meu direito incontestável de
ser servido, pagando o que se garantia ao gozo publico; a lata, a contenda
porém não me podia convir: traguei o insulto, e saí sem
responder uma única palavra ao caixeiro selvagem.
Andei às tontas, sem destino e sem norte pelas ruas; às oito
horas da noite dirigi-me a um dos nossos teatros, pouco importa saber qual,
comprei um bilhete, e fui tomar a minha cadeira.
Mal acabava de sentar-me, ouvi dizer perto de mim: "é ele!"
A essa voz que soara em tom baixo, seguiram-se outras que repetiram com ecos
surdos: "é ele! "
Dentro em pouco o sussurro transformou-se em ruído, o ruído
em desordem: as senhoras que estavam nos camarotes, recuaram os seus bancos
até não poderem ser vistas, espectadores das cadeiras e da platéia
levantaram-se ao mesmo tempo como um só homem, e geral gritaria de
"fora! fora! fora!" ribombou estrepitosa, insistente, ameaçadora
no teatro.
Um porteiro veio humildemente pedir-me que me retirasse, oferecendo-me com
estúpida e revoltante aparência de benignidade a vil quantia,
por que eu pagara o meu bilhete; resisti e furioso disse uma injúria
ao mísero porteiro.
Mas a gritaria tempestuosa continuava; insultos desabridos, ameaças
ferozes chegaram a meus ouvidos; a polícia interveio debalde em meu
favor; a pateada violenta ameaçava degenerar em motim. No maior fervor
da borrasca recebi da autoridade policial não uma ordem, porém
um pedido para retirar-me do teatro, do qual então imediatamente sai
vexadíssimo, ardendo em cólera, ferido pela reprovação
de todos, e ao som dos aplausos escarnecedores, com que era festejada a minha
vergonhosa retirada.
XXIV
Nos dois seguintes dias teimei em aparecer ao público e experimentei
iguais testemunhas de geral condenação.
Nas ruas e praças fui cem vezes apupado.
Na tarde de um desses dias tentei ir passear a Niterói; mas a minha
entrada na ponte da companhia Ferry, produziu um movimento ameaçador
entre os passageiros, e eu tive logo de sair da ponte ao ouvir algumas vozes
sinistras que repetiram: "deitá-lo-emos ao mar!"
Em um hotel negaram-se a dar-me o jantar que pedi.
O cocheiro de um carro da praça não quis acudir ao meu chamado.
E ninguém mais fugia de mim, porque todos me espantavam com ameaças.
No terceiro dia fiquei encerrado em casa; mas à noite fui a um aparatoso
baile, para o qual estava desde algumas semanas convidado.
Era uma brilhante festa dada em aplauso e honra de um casamento com ardor
desejado, e com júbilo abençoado pelas famílias dos noivos.
Apenas apareci foi extraordinária a agitação que se
sentiu na sala cheia de convidados, as senhoras encheram-se de terror, e cobriram
os rostos com os leques e os lenços, a noiva esteve a ponto de desmaiar;
os homens deixaram-me perceber pragas que a cortesia, e o respeito à
sociedade onde estavam, abafavam; o dono da casa três vezes encaminhou-se
para mim e outras tantas recuou confuso e com evidentes sinais de contrariedade;
eu o compreendi, e poupando-lhe o amargor de uma despedida formal, fiz o que
me cumpria: fugi desesperado, chorando de raiva, e cada vez mais convencido
da malvadeza de toda a humanidade.
XXV
Que noite de cruel vigília ainda mais cruel do que tantas outras,
cujos horrores já havia provado!
Eis-me pois ainda mil vezes mais desgraçado do que dantes!
Não creio em homem algum, em mulher alguma: sou a descrença
viva, ceticismo animado.
Desconfio de todos.
Aborreço a vida, mas sendo obrigado a Viver, como vai correr a minha
vida?
Um por um todos se arreceiam de mim, e todos me detestam.
Em toda parte sou por todos enxotado, de toda parte repelido.
Ninguém me quer ver; quando apareço, ninguém me tolera.
Tocou-me a lepra moral.
Eu sou como a peste, pois todos fogem de mim; sou pior que a peste, sou como
um cão hidrófobo que se persegue, e cuja morte se deseja!
Oh, meu Deus! meu Deus! Eu sou católico e é somente por isso
que não me mato; mas se alguma vez o suicídio pudesse merecer
o perdão, a vez do perdão do suicídio era esta.
Meu Deus! eu pequei, confiando na magia, entregando-me a um pérfido
mágico, aceitando para meus olhos o socorro do demônio!
Perdão, meu Deus!
Oh!… como é bom não ver!!!
XXVI
Não sei, não posso dizer quantas vezes nessa noite furioso
lancei mão da luneta mágica para quebrá-la; mas, com
vergonha o confesso, nunca tive animo bastante para realizar o meu pensamento.
Não dormi um instante, chorei quase toda a noite, e quando não
chorei, revolvi-me, debati-me no leito em agitação violenta,
e devorado por abrasadora sede.
XXVII
Na manhã seguinte eu tinha os olhos inchados, a cabeça atordoada,
e o rosto inflamado; senti-me doente; mas não quis anunciar o meu estado.
Às dez horas introduziram no meu quarto o Sr. A…, o dono da casa,
donde eu fora expelido na noite antecedente.
Recebi-o sem ressentimento.
— Está doente ? perguntou-me.
— Um pouco; sofri muito esta noite.
— Eu o previ, meu amigo, e por isso me apressei a vir dar-lhe explicações,
que reputo indispensáveis até para o bem do seu futuro.
— Agradeço a sua bondade; eu porém sei tudo e sei demais.
— Que sabe, pois?
— Que um miserável, o muito conhecido velho Nunes, fez espalhar a
notícia de que eu possuo uma luneta magica, pela qual chego à
visão do mal, e descubro todos os segredos e todas as maldades e vícios
que se escondem e se dissimulam; e que o medo que causa n minha luneta faz
com que se levantem contra mim todos os homens, porque com efeito todos são
perversos e temem que sejam conhecidas suas perversidades.
— E então…
— Então desde que se espalhou tal noticia eu tenho sido apupado,
insultado, repelido por toda parte, onde apareço. Não é
isto?
— Não é tudo, como lhe parece.
— Explique-se.
— Não se ofenderá se eu lhe disser toda a verdade?
— Não: diga tudo.
— Meu amigo; a população da nossa capital 6 muito civilizada,
e não acredita no poder da sua luneta mágica.
— Neste caso por que me fogem?… Por que me apupam?… Por que me temem?
— Aqueles que o têm perseguido com apupadas e os que fogem tremendo
da sua luneta dividem-se em duas classes, uma a que pertencem todos os crédulos
e pobres de espírito que ainda prestam fé a feiticeiros e artes
mágicas: há dessa gente em todas as capitais; a outra é
a dos garotos que ousam rir e zombar de infortúnios e males a que todos
estamos sujeitos.
— Que quer dizer?
— Quanto aos mais eu vou dizer-lhe o que há, e arme-se de coragem
para ouvir-me.
— Nada mais me pode admirar, e menos assustar neste mundo.
— O velho Nunes, que se proclama seu amigo e intimo confidente, foi com
efeito o propalador das notícias que correm; e sabe o que se pensa?
O que todos acreditam?
— Diga.
— Que o senhor, tendo imaginação ardentíssima e fraquíssima
razão, foi arrastado por um pérfido e malvado armênio
até deixar-se dominar pela mais inacreditável mania; que por
isso o senhor imagina ver o que não vê, o que não é
real; supõe, julga infalível a visão extraordinária
da sua luneta, e nas confidências de alguns amigos, que aliás
abusam da sua credulidade enferma, descreve os corpos, e expõe íntimos
das consciências de quantas senhoras, e de quantos homens fita com a
sua luneta.
— Mentira e verdade! corpos não, é falso; minha luneta 6 honestíssima;
almas sim, minha luneta as patenteia plenamente, e eu tenho visto em todos
hediondas maldades.
— Não discutamos agora esse pretendido poder da sua luneta. O que
é certo é que o simples receio de que o senhor, acreditando
que vê realmente o que apenas molestamente imagina, e que descreve em
confidências de amigos quadros físicos, defeitos e virtudes,
em que ninguém crê; mas que em todo caso ridiculizam não
pouca as vítimas da sua luneta, faz com que todos o evitem, todos o
queiram longe, todos temam somente o ridículo que provém do
que chamam sua manta.
— Mania!!! que o seja embora; mas eu juro que não tenho um só
amigo, que não tenho confidentes: isso é calunia.
— Cumpria-me dar-lhe estas explicações, meu amigo. Fique certo
de que não há homem, nem senhora de juízo que dê
importância e que tema a sua luneta mágica; mas das suas falsas
apreciações, e dos sonhos extravagantes mas não recatados,
não ocultos da sua imaginação resultam o ridículo
de que todos querem escapar.
— Entendo-o perfeitamente.
O Sr. A… disse-me ainda algumas palavras consoladoras; convidou-me a tratar
da minha saúde alterada pelo excesso de imaginação, e
fraqueza do espírito e deixou-me enfim.
XXVIII
E esta!
Por conseqüência estou definitivamente declarado doido pela opinião
pública que e a rainha do mundo, e cujos decretos não tem apelação.
A humanidade perversa e infame engenhou o mais seguro dos meios para livrar-se
de mim: não há recurso contra ela.
Todos os homens, todas as mulheres cientes do meu poder, todos e com eles
e elas todos os médicos, autoridades declaradas e decretadas na matéria
dizem- que estou doido!
Não há, não pode haver uma só voz que proteste
contra a sentença; porque a todos eles e a todas elas convém
que eu seja reconhecido- doido.
Há só uma voz que pode e há de protestar, é a
minha, a voz suspeita, a voz do doido.
Por conseqüência estou doido!!!
E amanhã, ou hoje mesmo, talvez daqui a uma hora, quatro ou seis policiais
quatro ou seis urbanos virão agarrar-me, e hão de conduzir-me
ao hospício da Prata Vermelha!…
E meu irmão se mostrará compungido, e a prima Anica fingirá
chorar, e a tia Domingas rezara por mim nos seus rosários!!!
E rir-se-ão todos de mim!… e me chamarão o doido!
Meu Deus! estarei eu realmente doido?…
Ninguém compreende os tormentos que sofri com esta nova perseguição
da perversidade dos homens, com esta idéia da- loucura- que começou
a agitar-me.
O atordoamento da minha cabeça aumentou, a febre devorou-me com milhões
de línguas de fogo e eu bradei em alta voz:
— Água! água! quem me dá água?…
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