A Alma do Lázaro

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José de Alencar

ADVERTÊNCIA

Este alfarrábio, não o devo ao meu velho cronista do Passeio
Público. É, como se disse no prólogo, uma escavação
dos tempos escolásticos.

Tem ele, porém, se me não engano, o mesmo sabor de antigüidade
que os outros, e ao folheá-lo estou que o leitor há de sentir
o bafio de velhice, que respira das coisas por muito tempo guardadas.

Para alguns, esse mofo literário é desagradável. Há,
porém, antiquários que acham particular encanto nestas exsudações
do passado, que ressumam dos velhos monumentos e dos velhos livros.

PRIMEIRA PARTE

A ALMA PENADA

I

Triste irrisão é a glória.

Quantos engenhos sublimes, criados para as arrojadas concepções,
que ficam aí tolhidos pelo estalão do viver banal, senão
sepultos em vida na indiferença, quando não é no desprezo
das turbas?

Também, quanta ralé, feita para patinhar no pó, que
se ala às eminências, insuflada pelos parvos, e se apavona com
as galas da celebridade?

E dizer que homens de são juízo labutam ou porfiam após
esse fogo-fátuo, e deslumbram-se a ponto de esquecerem afetos e bens,
sacrificados em má hora à ilusão falaz!

Lá volvem os anos; e um dia vem à flor da terra o crânio
que foi um poeta, ou um herói. Quem se importa com o sobejo dos vermes?
É um pouco de cal e nada mais. Não tarda que a pata do homem
ou do bruto, passando por aí, triture esse pó, a que animou
outrora o sopro de Deus, mens divinior.

O autor do Diário do Lázaro foi um de tantos engenhos, atados
à grilheta da miséria. Poeta desconhecido, enquanto a sua alma
inspirada se derramava em ânsias e prantos, o bestunto de muito zote
agaloado lá se estava enfunando com os aplausos, furtados à
virtude e saber.

Foi há muito tempo.

Era eu estudante na academia de Olinda. Tinha, então, dezenove anos,
e sentia minhas quedas para a poesia, mas pela poesia plebéia, em prosa
estirada, que isso de verso é coisa com que não se conformava
o meu espírito. Vão lá medir o pensamento, rimar as paixões?

Muitas vezes, sucedia-me nas vigílias do estudo apanhar o eu em flagrante
delito de literatura, a idear romances e fantasiar dramas, enquanto lá
o outro, o estudante de carne e osso, tressuava às voltas com o Corpus
Juris Civilis.

Qual é a alma que nas primeiras expansões da vida, a dilatar-se
pelos largos horizontes desta terra do Brasil; a embeber-se nas ondas de luz,
que imergem dessa porção mimosa da criação; a
coar-se nas harmonias das brisas que passam pelas florestas, não solta
o vôo e se arroja ao céu, embora o calor do sol lhe requeime
as asas, precipitando-a num oceano, que é a dúvida!

Era poeta; posso confessá-lo, agora, que essa veleidade passou de
uma feita e já não voltará mais.

Tinha a febre da imaginação que delira, envolvendo-se como
em uma crisálida, no prisma de suas ilusões.

Olinda, a velha cidade em ruínas, abrigando no seio a mocidade rica
de seiva e de vida, o passado com todas as suas gloriosas recordações,
e o futuro com as suas brilhantes esperanças; essa aliança misteriosa
de dois mundos, de duas gerações, uma apenas em flor, a outra
já cinzas, separadas pelo tempo, e reunidas pelas vicissitudes da existência
humana, me impressionava profundamente.

A descuidosa jovialidade da vida do estudante, o riso franco, o dito chistoso,
a magra ceia que o prazer fazia lauta, o descante livre, tudo isto que em
outra cena seria tão natural, me parecia uma profanação
no meio desses muros aluídos, desses claustros ermos, sobre esse túmulo
de uma população extinta, à face dessa cidade múmia.

Meu gosto era vagar à calada da noite por aquelas ruas solitárias,
quando cessava o arruído, quando a palpitação e o resfolgar
de emprestada existência já não galvanizava o cadáver
da nobre e florescente vila de Duarte Coelho.

De ordinário, ia sentar-me no adro desse convento do Carmo, esqueleto
de pedra, cuja ossada gigante o tempo ainda não tinha de todo arruinado.
De um lado, sobre a quebrada que faz a montanha, descortinava-se o mar límpido
e calmo; de outro, erguia-se a massa informe da cidade, recortando o seu perfil
no azul do céu.

O silêncio que pesava sobre aquela solidão era, apenas, interrompido
pelo esvoaçar dalguma ave noturna no âmbito do claustro, pelo
estalido das fendas que se abriam nos muros, e pelo atrito das escoras soltas
das velhas paredes.

Às vezes, a lua vinha dar a esta cena triste e grave traços
fantásticos, e um toque de sua doce e suave melancolia. Os raios da
luz pálida e alvacenta, esbatendo-se nas pedras do átrio, enfiando
pelas largas frestas, e debuxando nos claros sombras esguias, criavam mil
formas incertas e vacilantes.

Era por momentos como um vasto lençol que amortalhava as ruínas
do antigo edifício; logo depois, afiguravam-se vultos de carmelitas
cobertos da alva estamenha, a percorrer o claustro solitário, e a murmurar
as sagradas litanias; alguma vez, parecia-me ver passar diante de meus olhos
uma dessas lâminas, de que a imaginação popular em outras
eras povoou os templos abandonados.

Aí as recordações históricas, dormidas sobre
este solo, em cada pedra que tombara das antigas construções,
acordavam umas após outras no meu espírito, e me faziam reviver
na memória os dois séculos que tinham volvido sobre as diversas
gerações de homens e de casas, de que apenas restavam alguns
nomes e alguns muros.

O mar a perder-se no horizonte lembrava-me a flotilha de Duarte Coelho, o
donatário de Pernambuco, aportando àquela costa em 1535, e trazendo
a seu bordo a colônia que nesse mesmo ano fundou a vila de Olinda, com
o auxílio dos chefes índios, Miraubí, Itagipe e Itabira,
e das suas tribos selvagens.

Lembrava-me a grande armada holandesa comandada por Lecoq, que surgiu a 14
de Fevereiro de 1631 diante da cidade, e em alguns dias assenhoreou-se dela
com fácil vitória, pelo terror que se apoderou dos habitantes,
apesar dos esforços de Matias de Albuquerque.

Lembrava-me os combates navais das forças espanholas e portuguesas
contra os holandeses, especialmente o de 12 de Setembro de 1631, em que Pater,
depois de sete horas de peleja, batido por Oquendo, abandonado da tripulação
em sua nau presa das chamas, preferiu à salvação, que
tinha por desonra, uma morte gloriosa, e, envolvendo-se na bandeira nacional,
sepultou-se no oceano, único túmulo digno de um almirante batavo.

O istmo, os fortes do Mar e de São Jorge, o antigo colégio
dos Jesuítas e o convento de São Francisco, recordavam a resistência
heróica dos poucos que não abandonaram o seu general na defesa
da colônia, mas que, afinal, foram obrigados a ceder ao número.

Os edifícios em ruína ainda tinham gravados nos seus muros
os vestígios do incêndio que em 1631 os holandeses lançaram
à cidade, quando reconheceram a impossibilidade de conservá-la
e a necessidade de concentrar-se no povoado do Recife. Além, a várzea
que se estendia pela margem direita do Beberibe, semeada de quintas e de jardins,
apresentava ainda o sítio desse Arraial do Bom Jesus, centro da resistência
heróica, com que durante o espaço de cinco anos os pernambucanos
fizeram esquecer por feitos e ações gloriosas, dignas da idade
homérica, um momento de fraqueza e temor na rendição
da colônia.

Enfim, aquela solidão e silêncio testemunhavam a decadência
de Olinda, que a fundação da cidade Maurícia, mais do
que o incêndio, apressara, sobretudo depois que a guerra civil dos Mascates
lhe roubou, para dar à sua rival, a primazia como capital de Pernambuco.

E quando todas essas recordações tinham voado e revoado por
meu espírito, interrogava os muros do convento e os cômoros de
pedras, como para arrancar-lhes o segredo de algum fato interessante de que
se perdera a tradição, ou a palavra de algum drama desconhecido,
que o coração naturalmente representara a par com acontecimentos
políticos.

A guerra, o incêndio, a luta das raças, as revoluções
não passaram por aí sem o cortejo infalível das paixões
humanas. Os feitos de armas, as ações de heroísmo, o
morticínio, o crime e a virtude em suas enérgicas manifestações,
deviam prender-se necessariamente por um fio misterioso a alguma história
de amor, ou a algum episódio de vingança.

Era justamente essa crônica do coração, esquecida pelos
analistas do tempo, que eu pedia àquelas ruínas.

Quantas vezes, não sondei esses destroços de alvenaria, essas
paredes nuas, procurando, nem sei o que, uma memória, um nome, uma
inscrição, uma frase que me revelasse algum mistério,
que me dissesse o epílogo de alguma lenda que a imaginação
completaria!

Mas, o velho convento ficava mudo e impassível: os muros, lavados
pela chuva e pelo vento, estavam descarnados; as pedras já não
conservavam os vestígios da mão do homem; e a eloqüência
do silêncio, que plainava sobre o templo, dizia apenas a ruína.

Cansado, extenuado de corpo e espírito, partia-me depois de duas ou
três horas de meditação e de investigações
inúteis, trazendo ainda para a insônia as impressões várias,
as reflexões profundas que despertara essa evocação do
passado.

No dia seguinte, voltava; não me podia resignar à idéia
de que esse claustro não guardasse para mim alguma revelação
poética; tinha um pressentimento, que mais tarde devia realizar-se,
de um modo inesperado.

Eis como.

II

Uma noite, seriam onze horas passadas, estava eu sentado no adro do convento.
Fazia luar; porém, o céu nublava-se; o ar era pesado, o mar
sem ondulações arquejava como opresso; a chama fosforescente
do relâmpago iluminava a fímbria das nuvens escuras. Uma grande
tempestade estava iminente.

Enquanto a natureza preparava e dispunha a cena em que os elementos iam representar,
estive embebido a contemplar os progressos da borrasca; mas, quando a primeira
gota, umedecendo as lajes, anunciou-me a chuva, imediatamente e como por encanto
acalmou-se a sede ardente de poesia e mistério que me devorava.

Ergui-me, com ânimo de ganhar a casa sem demora.

Mas, os joelhos dobraram-se, e um frio de gelo correu-me pelo corpo, arrufando
a pele e erriçando-me os cabelos; foi-me preciso grande esforço
para dominar-me, e vencer o susto pueril que me tomara de surpresa.

Tinha ouvido uma voz trêmula que rezava cantando à surdina uma
ladainha de igreja; e pareceu-me que, afinal, chegara a ocasião de
ver surgir diante de mim um desses fantasmas que nas minhas extravagantes
elucubrações, eu tantas vezes evocara.

Revesti-me de coragem; voltei-me para o interior do convento, e adiantei-me
alguns passos na direção da voz, que murmurava sempre as suas
rezas de cantochão.

De repente, numa paveia de luz que enfiava por larga brecha do teto prestes
a desmoronar-se, destacou-se um vulto de alta estatura, envolto numa túnica
preta e roçagante, sobre a qual a longa barba branca brilhava com os
reflexos da lua. Avançava lentamente, apoiando-se sobre um báculo
que trazia na mão esquerda.

Julguei… Nem sei o que julguei, de tantas e tão encontradas que
foram as idéias que me assaltaram, então. Entre outras, pareceu-me
ver o fantasma de um dos antigos priores do Carmo, acabando de oficiar em
pontifical e tornando à sua cela.

Recuei instintivamente; e com esse movimento, projetando-me no claro de uma
janela, fui percebido do vulto, que por sua vez também estacou, soltando
uma exclamação de espanto ou de surpresa.

Decorreu um instante em que ambos, com os olhos fitos, nos examinamos reciprocamente;
o que se passava no seu espírito não o podia adivinhar; o que
se passou no meu, qualquer, ainda o mais destemido, pode bem supor. Afinal,
o vulto endireitou para mim, e veio se aproximando; cosi-me com a parede,
e esperei-o.

Quando ele chegou a dois passos, conheci o meu engano, e estive para soltar
uma gargalhada, escarnecendo de mim mesmo. O meu fantasma era apenas um velho
pescador; a túnica preta e roçagante uma rede de malhas; e o
báculo de prior não passava de um remo de canoa.

— Bendito e louvado seja o Senhor! foi a saudação que
me dirigiu.

— Deus lhe dê boa-noite, respondi eu já de ânimo
sereno.

— Para o servir, e a vossa senhoria no que mandar deste seu servo.

— Obrigado, meu velho.

Essa cortesia antiga, inspirada na religião, e a voz grave e arrastada
do velho, junto à expressão doce de seu rosto, me excitaram
viva simpatia.

— Vai hoje muito tarde para a pesca? disse-lhe eu reatando o fio do
diálogo.

— Quem sabe quando irei? A tempestade não tarda conosco. Cuidei
que adiantava saindo mais cedo, e afinal de contas atrasei.

— Mora longe daqui?

— Lá embaixo! respondeu, apontando para a praia que se prolonga
ao norte.

Os relâmpagos fuzilavam amiúde; e a chuva começava a
bater no telhado.

— Então, tenha vossa senhoria boa-noite; vou ver se me arranjo
para passar o aguaceiro, que promete durar.

— Ah! veio abrigar-se aqui? E não tem medo deste teto esburacado
e destas paredes rachadas?

— Será o que Deus for servido. Não é a primeira
vez que me tem sucedido ficar aqui boa parte da noite, e até hoje nenhum
mal disto me veio.

— Ora, diga-me uma coisa?…

— O que é, meu senhor?

— Por que cantava baixinho uma… ladainha, se não me engano?

O velho sorriu com brandura.

— Era o terço. Minha mãe me recomendou que cantasse sempre
que houvesse tempestade; e isto me ficou desde menino.

Estava tudo explicado. A minha visão fantástica tinha-se desvanecido,
deixando a realidade do encontro simples e natural com um pescador que fora
ao convento abrigar-se da chuva.

Pensei em recolher-me.

— Sabe por que lhe fiz esta pergunta?

— Vossa senhoria me dirá, respondeu o velho.

— Pois confesso-lhe que me causou um grande susto. Quando ouvi a sua
cantiga, e o vi de longe no meio destas ruínas, tão fora de
horas, cuidei que era… Acredite! Uma alma do outro mundo.

— Ainda sou deste, graças a Deus, disse o pescador sorrindo:
bem que por pouco tempo.

— Há de sê-lo por muitos anos.

O velho abanou a cabeça.

— Os oitenta já lá vão. Mas deixe dizer-lhe…
Também a mim, quando o enxerguei, no que a vista me ajuda, sucedeu-me
quase a mesma coisa.

— Também causei-lhe susto?

— Susto, não; nesta idade a gente já não se teme,
senão daquele que está no céu para nos julgar a todos:
porém, assim um espanto, como se visse uma pessoa que não se
espera mais ver, aqui embaixo.

— Já falecida?

— Senhor, sim.

— Quem?

— Oh! o senhor ainda não era nascido, quando isto foi.

— Há muitos anos então?

— Se eu já lhes perdi a conta!

— Conte-me isso.

— São coisas velhas que já não lembram a ninguém.
Levariam muito tempo.

— Não faz mal.

— Melhor é que vossa senhoria se guarde da chuva que aí
está de pancada; eu vou fazer outro tanto.

Se eu mesmo perdia uma história do século passado, uma anedota
de cabelos brancos, uma antigualha qualquer, depois de tê-la procurado
inutilmente durante mais de cinco meses!

— Por mim, não tenha cuidado, respondi: trate de acomodar-se,
e se não tiver sono, conversaremos.

— Sono de velho é o descanso do corpo. Venha vossa senhoria
já que assim o quer.

Chegamo-nos a um dos ângulos do velho convento, onde algumas paredes
interiores formavam outrora uma sacristia: o pavimento do primeiro andar não
tinha ainda desabado nesse lugar.

O velho enrolou a rede de que fez uma espécie de almofada; tirou fogo
do fuzil e acendeu o cachimbo, enquanto eu, sentado sobre um troço
de parede, e devorado pela curiosidade, preparava o meu cigarro.

III

Começou o velho:

— Fazem, se quer que lhe diga, não sei quantos anos. Era eu
tamanino como esta minha pá de remo.

“O pai vivia da pesca, como o avô; porque isto de pescador parece
que é ofício de família, que vai passando de filho a
neto. Quase todas as noites ele me levava consigo quando ia ao mar; e pequeno
como era sabia arrumar a canoa e botá-la ao largo.

“Já então costumava o pai na volta da pescaria descansar
aqui. Punha a canoa em seco; deixava passar o resto da noite, e lá
pela madrugada íamos vender o peixe ao Recife, porque em Olinda, afora
a clerezia, tudo o mais era miuçalha.

“Havia ali assim no fundo do convento, bem na praia, uma casa velha,
tão velha que estava cai, não cai. Também os donos, ninguém
mais sabia deles. Nem viva alma ali morava.

“Uma noite, lá do largo, a gente viu uma luz acesa na janela
da banda do mar. Eram que horas! Não tardava um instantinho que amanhecesse.

“— Estás vendo, Tonico?”

A voz do pescador tornou-se trêmula; e à tênue claridade
da lua encoberta vi-o que enxugava com a mão rude e calosa uma lágrima
de saudade.

— Meu nome de batismo é Antônio. Porém o pai e
a mãe chamavam a gente de Tonico.

Essa emoção de um velho de oitenta anos, recordando-se do apelido
familiar da meninice, essa memória poderosa do coração
que através de uma longa existência cheia de vicissitudes e trabalhos
refletia com todo o colorido os quadros singelos da infância, tocou-me.

Achei sublime isto, que outros acharão ridículo talvez.

O velho continuou, passada aquela primeira emoção:

“Eu nem respondi ao pai. Estava tremendo.

“— Quem andará ali?… A que tempos a casa velha está
abandonada!… Não seja…

“O pai fez o pelo-sinal. Eu rezava baixinho uma Ave-Maria.

“— Nossa Senhora de Nazaré nos defenda. Rema, rapaz, que
o vento escasseou, e a vela está bamba!

“A luz de vez em quando apagava-se como farol que naquele tempo inda
nem sonhava…

“Quando a gente chegou em terra, conheceu que a luz saía mesmo
da janela da casa, e que o motivo de sumir-se e aparecer era uma figura preta
que passava e tornava a passar por diante, como um homem que ia e vinha.

“Mas, havia um poder de anos, a casa não tinha morador, nem
criatura de Deus ali entrava.

“Na outra noite, na outra e na outra, sempre a mesma coisa, tanto que
o pai não se pôde mais ter, e foi ao sr. Bispo e lhe contou tudo.
O santo homem sossegou a gente: disse que era um pobre moço doente
que veio morar na casa velha, porque todos fugiam dele, com medo da doença.

“— Que doença? perguntei eu.

“— O moço era como o que foi ressuscitado pelo Cristo!

“— Lázaro?…

“— Senhor, sim. Agora, quantos andam por aí como ele?
Mas, naquele tempo não era assim: a gente pensava que aquilo era uma
praga.

“Meu pai também cuidava, mas tinha bom coração;
e ficou mais descansado, sabendo quem era o morador da casa velha, do que
antes quando pensava que ali andava coisa de bruxa.

“Uma vez… já se tinham passado quantos dias depois da luz
aparecida! Era pela madrugada; nós estávamos a tirar a canoa
para terra. Eis senão quando vimos o moço em pé no adro
do convento, como inda agora vi o senhor. E isto me fez alembrar!…

“Esteve um pedaço bom; depois veio caminhando mansinho para
cá.

“O pai quis fugir. Ele que deu pela coisa parou, mais que depressa,
e foi dizendo:

“— Não tenha medo… Não fuja que eu volto.

“Disse estas falas, assim com uma voz tão doce e tão
penada que o pai teve dó dele e ficou com vergonha:

“— Não fujo, não. Precisa de alguma coisa? Diga!…

“— Não preciso de nada!… Saí porque este vento
me faz bem!… Estou queimando! Não o tinha visto, senão…
Sei que não devo chegar-me para os outros.

“— A moléstia é para a gente ter medo; mas, também
falar só de longe não faz mal, disse o pai.

“— Oh! Há quanto tempo que não troco uma palavra
com um ser humano!

“— E está-lhe doendo muito?

“— Horrivelmente!… Porém, o que dói no corpo
é o menos!

“Ele se assentou e nós continuamos a enxugar a canoa, sempre
de olho nele.

“— É para vender o seu peixe?…

“— É, senhor, sim.

“Foi ele, e disse então como um pobre que pede esmola:

“— Se eu quisesse comprar um?…

“O pai ficou arrepiado.

“— Não sei!… dizem que a gente não deve tocar.

“— Escute!… Deite o peixe aí, na pedra, e fuja com o
pequeno. Eu vou buscá-lo e deixo o dinheiro. Deste modo…

“— Não precisa! Aí tem o peixe. Quanto ao dinheiro
há de carecer.

“Meu dito, meu feito. O moço foi, e deixou na pedra uma moeda
de tostão. O pai, quem viu! Nem lhe quis tocar. Mas o menino nem se
importa com doença! Tirante das almas do outro mundo, não tinha
medo de nada.

“Alembrou-me que a mãe precisava de uma vela de cera benta.
A dela, de tanto acender quando nós andávamos no mar e ventava
rijo, já estava num toco. Mal que o pai começou de passar pelo
sono, fui eu devagarinho, e zás! apanhei o dinheiro; lavei bem lavado,
e escondi no seio para que ninguém visse.

“No outro dia, comprei a vela para a mãe. Foi preciso pregar
uma mentira. Primeira e derradeira. Era para não assustar a gente em
casa. Deus me deve ter perdoado pelo motivo que foi.”

O velho fez uma pausa.

— Chove a valer!… Mau tempo de garoupas!…

— Talvez estie ao amanhecer.

— Se o vento rondar… Mas, naquela noite, que eu dizia, quando o moço
saiu, já o pai estava dormindo. Vou eu, dou-lhe o peixe como da véspera,
e ele deixou o dinheiro na pedra. A gente naquela idade gosta de saber tudo.
Eu quis ver o que ele estava fazendo acordado até tão tarde,
e pus-me a espiar pela fresta da porta. Jesus! o corpo me tremia que nem linha
de anzol quando o peixe fisga!

“Ele… o moço, estava assando o peixe. Depois comeu sem farinha,
sem nada. Bebeu água, só. Vai por fim, lava as mãos e
começa de escrever num livro que estava na caixinha…”

— Que caixinha?… perguntei, interrompendo o velho.

— A caixinha de folha! retrucou, surpreso da pergunta.

— Já sei…

— Ora! onde estava eu com a cabeça. Cuidava que já tinha
dito… Mas não! Era uma caixa, assim por este tamanho. Também
ele não tinha mais trastes senão aquele.

“Tive tanto dó… Apanhei o dinheiro, lavei como na outra noite,
mas foi para comprar farinha. Trouxe às escondidas do pai, que ralhava-me
se soubesse.

“Não sei como foi; mas no cabo duma semana eu estava tão
amigo dele, que levávamos a conversar toda a noite de enfiada, e assim,
perto um do outro. Tudo que precisava, era eu que comprava. A ele não
vendiam: tinham medo do dinheiro. E o coitado, antes queria vela para estar
escrevendo, que o bocado para comer.

“Como são as coisas… Já entrava pela casa dentro, sem
pinga de medo. Queria-lhe bem a ele; também ele me queria. Um dia perguntei
como se chamava.

“Sabe que respondeu?

“— Não tenho nome!… Todos me chamam leproso.

“— Mas seu nome de batismo?

“— Era Francisco.

“Outra vez, por meus pecados, disse:

“— Por que passa todo o santo dia e mais a noite a escrever?
Isto faz mal.

“Que olhos que me deitou! Ainda me alembro.

“— Estes livros são a minh’alma. O que tu vês
em mim, Tonico, são os ossos que a lepra vai roendo.

“Cruzes! Tive um medo… das falas e dos olhos com que me olhou.

“E foi guardando os livros e desatou num pranto, num pranto… que
parecia um menino a chorar.

“Por esse tempo, a gente de Olinda já andava alvoroçada
com a estada do moço na casa velha. Diziam, que falso testemunho! que
ele andava empestando a cidade. O rebuliço foi crescendo e um bando
saiu a gritar pelas ruas, e foi e requereu ao juiz do povo que pusesse o leproso
para fora, senão haviam de mandar procurador a El-Rei.

“Dois dias, com tanto mar e vento que fez, o pai não saiu.

“Fiquei banzando com a idéia que o pobre moço não
tinha quem lhe comprasse a comida. De noite me veio um sonho, e acordei soluçando.

“— Que tens, Tonico?… De que choras?… perguntou minha mãe.

“— Ele não tem o que comer!…

“Isto me saiu sem querer, quando ainda estava tonto do sono.

“— Ele quem?…

“Vi que era sonho e calei a boca; porém, não preguei
mais olho.

“Logo na outra noite, enquanto o pai descansava, corri ao quarto do
moço; a porta estava cerrada; mas havia luz dentro.

“Ele estava sentado junto da mesa com a testa encostada na caixa onde
guardava os livros. A vela ia-se acabando. Pensei que estava chorando como
às vezes costumava, e levantei a cabeça dele com pena.

“Santo nome de Jesus! Soltei um grito! Estava morto! E tinha morrido
de fome.

“Quando foram à casa velha para deitá-lo fora, só
acharam o corpo que enterraram na praia. A gente da cidade ficou descansada.

“Mas eu, quem via que podia dormir! Era um sonho atrás do outro.
Aqui então! mesmo acordado, estava vendo a cada passo aquele vulto
de preto com seu rosto triste. Ele que me aparecia tão amiúde,
tinha coisa que me pedir.

“O que era?… Pus-me a parafusar!… Vai senão quando me alembrou
aquele dito dos livros:

“São a minh’alma.”

“E não era outra coisa! O corpo que saía da terra, é
que a alma andava penando por este mundo! Queria que enterrasse a caixa para
seu repouso e descanso dele.

“Porém, eu entrar mais na casa? Quem viu!

“Só de me alembrar, os cabelos espetavam, e corria-me pelas
costas um suor tão frio.

“Foi Deus, que as paredes de fora caíram; e então um
domingo, depois da missa, com os outros rapazes que andavam brincando na praia,
fomos e puxámos a caixa; com uma vara, cavou-se um buraco e enterrou-se.”

— Onde? perguntei eu com ansiedade.

— Por fora dessa parede em que o senhor está encostado. Meu
pai tinha-se deitado mais longe: e eu depois daquela noite não me animava
a sair de perto dele.

“Quando acabei de enterrar a caixa, pareceu que me tiravam um peso
do coração. Ele ainda me apareceu uma vez. Foi para agradecer…
Depois não voltou.

“Deus tenha sua alma.”

IV

O velho tinha acabado a sua história, que eu ouvia com uma atenção
religiosa:

— Por isso, é que tanto me alembrei dele!… Foi ali mesmo,
assim todo vestido de preto, que me apareceu pela primeira vez.

Não escutava mais o pescador; estava cheio da idéia de possuir
os manuscritos que me faziam palpitar, como se fossem um tesouro. E eram realmente
um tesouro para mim.

— Diga-me!… É capaz de acertar com o lugar em que enterrou
a caixa?

— Com os olhos fechados!… Os anos que foram já apagaram muita
coisa, mas aqueles tempos de menino, parece que estão voltando!

— Pois venha mostrar-me.

O velho ergueu-se. Saímos do convento e beiramos a parede que olha
o mar. Depois de alguns passos, ele parou.

— Porque é que o senhor quer saber?

Hesitei; adivinhava o escrúpulo do velho.

— Por simples curiosidade.

— É aqui! disse ele abaixando a mão.

— Está certo?…

— Estou vendo!

E o pescador ajoelhou-se e fez uma oração. Compreendi que ele
respeitava aquela cova como se fosse realmente uma sepultura.

Não perturbei o seu recolhimento, e esperei que terminasse.

— Empresta-me o seu remo?

— Para quê? perguntou-me estremecendo.

— Para desenterrar a caixa.

— Isso nunca!

— Por quê?… Pensa que esses livros são realmente a sua
alma?

— Ele disse.

— Mas Deus não quer que a alma fique na terra como o corpo;
ela deve voltar ao céu. É o que desejo fazer.

O velho abanou a cabeça.

— Ouça!….. Se a alma desse moço está nos livros,
para que ela volte ao céu é preciso que entre em outras almas
vivas. Aquilo que ele escreveu deve ser lido…

Foi-me preciso aceitar a crença do velho que era muito profunda, para
ser abalada.

Procurei tirar dela argumentos que o convencessem de que não entrava
nas minhas intenções cometer um sacrilégio.

O pescador refletiu.

— Mas, se isto é verdade, por que razão ele me pediu
que enterrasse a caixa?…

Tive uma inspiração.

— Quando ele morreu — respondi — ninguém se animaria
a tocar no que lhe pertencia, com receio da moléstia. Os livros ficariam
perdidos… Por isso, pediu-lhe que os enterrasse. Mais tarde devia alguém
achar…

— Há de ser isto!

Cavamos três palmos; creio que se abrisse o túmulo de um ente
que me fosse caro, não sentiria as emoções por que passei
naquele momento. O pescador, na ingenuidade de sua crença, tinha razão:
era alma de um homem, talvez de um poeta, que estava ali sepultada.

A chuva, que caíra a cântaros, amolecera o terreno, e facilitara
o trabalho; depois de um quarto de hora de escavação, o pescador
tirou do chão uma caixa de folha, que teria dois palmos de comprimento
sobre um e meio de largo, e já inteiramente oxidada.

Despedi-me do velho, a quem fiz aceitar a muito custo a pequena espórtula
que comportavam as magras economias do estudante, e carregando com o meu tesouro,
recolhi-me.

Ao despedir-me, o meu companheiro pediu-me um favor.

— Quando o senhor abrir a caixa, se pudesse ser….

— Fale! Não tenha receio.

— Eu queria saber o que ele escreveu… Talvez não entenda!

— Fique descansado.

Ensinei-lhe a minha casa, onde ele foi muitas vezes, e onde passou horas
e horas, a escutar a leitura que eu lhe fazia de alguns trechos dos livros.

Chegando à casa, não dormi; eram quatro horas da madrugada,
e não tinha sono. Abri, ou antes arrombei a caixa, e achei dentro três
volumes in-fólio, cobertos de pergaminho, uma pequena mecha de cabelos
grisalhos, uma flor seca que se desfez em pó quando a toquei, e uma
bolsa com algumas moedas de cobre.

Dos volumes in-fólio, dois escritos de principio a fim com uma letra
grossa e trêmula, continham alguns episódios da guerra holandesa
e da crônica dos tempos coloniais; o seu autor lhes dera o título
singelo de — Histórias que me contou minha mãe.

O terceiro volume era um diário, escrito com pequenas interrupções;
não tinha título, nem fora concluído.

Estavam todos em tal estado que me foi preciso copiá-los à
pressa; e assim mesmo em muitos lugares as letras com a umidade tinham-se
apagado de modo que só pelo sentido pude adivinhar as palavras.

São estes livros que hoje começo a dar à estampa.

Talvez a alguém cause reparo porque vinte e tantos anos decorreram
e só agora me resolvi a publicá-los?

A razão é simples.

Quando, pela primeira vez, li o diário do lázaro, convenci-me
que o estilo, embora simples e terso, carecia de ser retocado ao gosto da
época; e dei-me a esse trabalho. Apenas, vesti de novo a primeira parte,
me arrependi; quis-me parecer que era uma profanação tirar ao
pensamento do escritor a sua frase rude às vezes, mas sempre expressiva:
rasguei o que tinha escrito para escrever de novo.

Demais, achava a primeira parte do livro tão triste a cortar-me o
coração, que receava publicá-la. Ao mesmo tempo que não
me sofria a consciência deixar ignorada a memória do escritor,
cujas obras queria dar à estampa: pois essa parte de que falo é
o diário.

Foi então que a ambição me veio tomar no melhor dos
sonhos da mocidade e conduziu-me ao través de uma vida sempre agitada
à quadra dos desenganos, na qual me deixou isolado, mas tranqüilo.

Voltei, então, para os meus estudos literários, reli com imenso
prazer os meus esboços de obras mal alinhavadas, os meus versos truncados,
e revi a minha juventude naquelas relíquias das primeiras inspirações.

Entre esses papéis velhos deparei com a cópia ou versão
do antigo manuscrito. Lembrei-me do que prometera ao velho, e senti como um
remorso de haver por tanto tempo conservado no esquecimento a alma desse ignoto
poeta do século passado.

Este livro é pois um voto.

Segunda Parte

O DIÁRIO 1752

7 de março

Estou só no mundo.

Minha mãe morreu… Pobre mãe… Antes assim! Devias sofrer
muito a ver teu filho asco e horror da gente… Mas, por que me deixaste neste
vale de lágrimas?

Minha alma morreu contigo. Vivem as úlceras que devoram estes restos
de corpo, sobejo da enfermidade terrível! Sem ti, que me consolavas,
que sofrias comigo da minha angústia, que vai ser de mim neste exílio?…

Resta-me uma irmã.

Foi… Agora, tem outra família. Ela me quer, bem sei, e com amor.
Mas, sou um estranho para os seus. Meto-lhe medo. Não por ela… Por
seus filhos. E tem razão.

Tu só, mãe, não tinhas nojo de meu hálito de
peste! Tu só não te arreceavas do fogo que me abrasa o sangue!
Tu só não me abandonaste, enquanto o Senhor não te chamou!

Devia chamar-nos a ambos.

A quem direi agora a minha dor, se tu não estás aqui para ouvi-la?
Ao vento, para levá-la à gente que me escarnece?… Sim, ao
vento! Fossem peçonha minhas palavras, que eu as cuspiria sobre eles
sem dó, como dó não tiveram do mísero, de mim.

Perdoai-me, Senhor!… Menti! Eles não me fizeram nenhum mal. Que
culpa têm do castigo que pesa sobre o infeliz?…

Quando estavas ao meu lado, mãe, eras alívio ao meu padecimento.
Meu gemido ia ao teu coração; e por não te ver sofrer,
eu sofria menos.

8 de março

Vi-te pela última vez.

A terra abriu-se para roubar-te aos meus braços. Se não me
tivessem arrancado!… Eu dormiria em teu seio o último sono, como
dormi o primeiro, feliz e tranqüilo.

Este anel de cabelos é tudo que me resta de ti. Mas tu vives em minha
alma.

Eu te sinto em mim. Falo-te; me respondes.

9 de março

Que profunda é a solidão desta casa, depois que tu não
a habitas comigo!

Parece-me um túmulo.

Na sepultura em que descansas na igreja de São Pedro Gonçalves,
não sentes nem o peso da terra, nem o prurido dos vermes. Tua alma,
branca e pura, goza no seio do Criador.

Na minha sepultura, eu me sinto asfixiar pelo silêncio, que me é
mortalha. Quando alguma vez o burburinho do mundo penetra aqui, é para
despertar a modorra da agonia.

A noite desce, como a lousa fria e negra. Ah! se ela me trouxesse o repouso!…
Mas, é só morte ao coração, à fé,
à crença. A dor vive em meu cadáver.

Quando tu aqui estavas, vinham ainda ver-te algumas velhas amigas de infância.
Tão santa coisa é a afeição!… Vencia o receio
e a repugnância que eu lhes inspirava.

Agora, ninguém virá. Luísa não pode, nem deve.
É minha irmã; mas é mãe. Não o fora, que
eu lhe pediria para não vir. Sofreria mais da compaixão dela,
que não sofro do meu suplício.

Amigos, nunca os tive. Parentes já não os tenho. Depois que
morri, não me conhecem… Sim! conhecem-me, quando me fogem.

Maria, a nossa escrava, é o único ser humano, com quem falo.
Ao menos, tem a forma… Deve existir uma alma ali dentro.

10 de março

Depois que me deixaste, mãe, sinto um consolo imenso em escrever.
É como se te falasse.

Comecei hoje a tirar sobre o papel, do coração onde as tenho
intactas, aquelas bonitas histórias, que aprendestes de meu avô.
Foram-me bálsamo, ouvidas de teus lábios nas horas da vigília;
porque o espírito ia-se nelas, e o fogo queimava só uma carne
insensível. São-me conforto agora contra o desânimo que
me invade. Escrevendo-as estou contigo. A ternura que derramaste nela é
um santo óleo. Vaza-me do seio, onde o verteste, e unge-me. Tuas palavras,
escuto-as ainda. Deu-lhes tua alma uma voz, para que murmurem assim ao meu
ouvido?

A recordar o que me contaste, vivo nesse tempo bom de fé e heroísmo.
Não me admiram feitos grandes que houve então. O espírito
respirava na estima do povo, como se respira o ar na atmosfera, um ressaibo
de nobreza. Era mãe a pátria, que defendiam filhos dedicados.
Foi depois que a fizeram senhora, mal servida por fâmulos interesseiros.

Mal de mim que não nasci naquele tempo!… Não me negariam
o direito de morrer, combatendo pela independência da minha terra. O
soldado, que a todo instante via a morte, não se temeria do contacto
de um pobre enfermo… A bala do arcabuz, ou o golpe da lança, é
mais terrível do que a lepra.

Nesta era, o soldado fez-se aventureiro. Joga a vida pelo lucro. Se me oferecesse
por companheiro seu, me haviam de repelir. O mais bravo fugiria de mim! Que
horrível anátema trago impresso na fronte!…

11 de março

Luísa veio ver-me. Tarde, bem tarde da noite, para evitar suspeitas.

Parece que o mundo reputa crime consolar uma irmã a seu irmão
aflito! Mas o irmão é um leproso!… Seu marido lhe perdoaria
talvez se ela voltasse com o lábio manchado pelo beijo adúltero.
Nunca, se esse lábio tivesse bafejado a face ardente do mísero
enfermo.

Deliro!…

Esta visita fez-me mal. Sou injusto. Luísa me ama; não teme
o contágio, ou se o teme, seu amor por mim é mais forte. Quis
abraçar-me!… Fui eu que a repeli!… a ela, o único ente que
não me foge!

Amo-a eu mais do que a ti, mãe, para ter essa coragem?…

Não! É que tu me pertencias, como eu a ti. É que nos
tínhamos dado um ao outro, naturalmente, sem esforço, sem sacrifício.
É que eu vivia nos teus braços, como tinha vivido nas tuas entranhas,
ligado pelo mesmo elo, o teu amor.

Luísa veio para comunicar-me a sua resolução, dela e
de seu marido. Não quer a parte que lhe cabe da nossa pequena herança;
deixa-me tudo, porque necessito mais, e não posso trabalhar.

Recusei e não lhe agradeci.

Como rala essa compaixão! Tem-me por um homem inútil, incapaz
de ganhar o sustento para o corpo. Por fim, ela pensa bem. Quem aceitará
a obra tocada por minhas mãos, e impregnada do meu suor?

12 de março

Passei toda a manhã a ensinar a Maria as orações que
aprendi em teu colo.

Não as compreende, nem sabe repeti-las comigo! Que sono profundo dorme
essa alma! Nada a perturba. O corpo ali move-se pelo instinto, ou talvez pelo
hábito…

Contudo, é uma criatura humana. Ouve… E eu sinto um prazer inconcebível
em falar a alguém!..

16 de março

Esses dias tenho levado a escrever o meu livro.

Dei-lhe um título bem mesquinho para os outros, que não lhe
sabem a significação; mas bem gentil e, sobretudo, bem verdadeiro
para mim.

Chamei-o: Livro das histórias que me contou minha mãe.

Tenho delas acabado a primeira. É a história de D. Maria de
Sousa. Também ela foi mãe e sofreu por seus filhos; também
ela foi grande pelo heroísmo, e forte pela constância.

Mas, como tu, que vinte anos acompanhaste a tortura incessante daquele que
geraste para tua pena, sem nunca soltar uma queixa; como tu, não quero
que tenha existido ou possa existir outra mãe.

Pesa-me que não estejas aqui, ouvindo-me para ler-te o meu livro!
Acho-o melhor do que nunca esperei de mim. Acho-o bonito. Tem alguma coisa
daquela singeleza dos teus contos.

Mas, que estou eu dizendo?… Tu me ouves! Tu leste no meu espírito,
muito antes que as palavras se formassem, e que a pena as lançasse
no papel!

17 de março

Estive a refletir num projeto. É talvez uma loucura. E o que são
todos os projetos do homem, miserável criatura, de quem zomba o tempo
e a fortuna?

Lembrei-me de dar à estampa o meu livro.

Talvez, naqueles que o lessem, excitasse eu alguma simpatia. Não me
conhecendo, nem sabendo o meu nome, a repugnância que inspiro não
mataria o interesse pelo autor obscuro e ignorado.

Tenho tanta sede de afeição, depois que a tua me deixou vazio
o coração!… Sentir-me querido, ainda, mesmo de longe, e envolto
no mistério, seria uma suprema ventura!

Demais, quem sabe?… Salvaria deste martírio estéril e desta
vida inútil alguma coisa.

Um nome, que fosse!

O nome é segunda vida. É a vida do futuro.

Não lhe chamam glória?…

18 de março

Maria voltou da feira sem as compras do dia.

Perguntei-lhe a causa.

Achou palavras para me dizer. Os regatÕes recusam receber o dinheiro
que passou por minhas mãos!

Meu Deus!… Dai-me força para sofrer com resignação!
Preciso dela! Sinto a razão vacilar. Por vezes, já mordi nos
lábios a blasfêmia que ia escapar-me.

Têm nojo do meu dinheiro! Se o tivesse roubado, o aceitariam: mas toquei-o,
e o rei, que o manda correr, não protege um lázaro.

Felizmente, Maria teve fome.

O instinto serviu-lhe de inteligência. Engenhou meio de comprar o necessário.
Deu ao andador da irmandade do Sacramento uma moeda de esmola.

O troco, os regatões não duvidaram recebê-lo.

19 de março

Saí hoje pela primeira vez.

A notícia de minha enfermidade divulgou-se de um modo espantoso. Quando
passava, apontavam-me de longe. Murmuravam meu nome. Paravam para olhar-me.
Admiravam-se talvez de ver-me ainda feições humanas.

Realmente, um lázaro não é mais um homem. Foi concebido
pela mulher, mas a praga o abortou. No terror que infunde é fera; no
asco que excita é verme.

Oh! não… Há um fio que ainda me prende à humanidade.
É a compaixão brutal e escarninha do mundo. Mata-se a fera;
esmaga-se o verme. Mas não me tiram a mim esse tênue sopro que
anima um resquício de vida.

Seria um assassínio! Seria um crime! E há nada mais infame
do que um crime inútil?…

Quando me lembro que tantos homens gastam sua existência numa luta
incessante para haver uma sombra, que chamam fama, rio-me deles e de mim.

Os feitos do guerreiro, os livros do sábio, serviços à
república e linhagens de fidalgos, andam ignorados ou esquecidos pela
turba, vária nas suas paixões. Ninguém sabe, ninguém
lembra porque aquela cabeça encaneceu, porque aquela face rugou.

E eu tenho, sem buscar, o que tanto eles buscam sem achar! Toda a cidade
repete meu nome. Que importa que esse nome seja o de lázaro? Toda gente
me conhece. Que importa que me evite?

Viver na voz dos povos, não é isso que tantos ambicionam?…

20 de março

Era noite; sentia-me abrasar no leito.

Precisava de ar, de espaço, de movimento. Ergui-me, e vaguei durante
uma hora pelas rua já desertas. A noite, ao menos, traz o mistério.
Perco a minha triste celebridade. Passo como uma sombra entre as outras sombras
que dormem na terra.

A sede que tinha de ar, no sangue e na cabeça, levou-me à borda
do mar. Fui sentar-me perto das Cinco Pontas, sobre algumas pedras que a maré
deixara em seco.

A brisa fresca e cortante que vinha do largo impregnada das úmidas
exalações das ondas batia-me em cheio no rosto. Banhava-me,
como a veia de um rio. Aspirei as emanações salitrosas do oceano.
A volúpia que eu sentia nesse respirar do ar livre, não sei
se a gozarão outros colhendo beijos na boca virgem de sua noiva.

O vento!… Oh! ninguém sabe que delícias me trazem os seus
acres perfumes! Que sedas e cambraias são as refegas dele para o corpo
devorado da febre, quando o sangue escalda nas veias!

O vento!… É o túmulo que eu terei um dia. Quando morrer,
ninguém se animará a tocar no meu corpo para dá-lo à
terra. Hão de queimá-lo, por que não infeccione o ar.
E as minhas cinzas, então, soltas ao vento, voarão com ele sobre
esse vasto e imenso oceano.

A maré começava a encher. As ondinhas, debruçando-se
umas pelas outras, todas frocadas de espumas, brincavam como um bando de cordeirinhos
que retouça sobre a relva ao pôr do sol. Algumas espreguiçando-se
pelas areias vinham lamber-me os pés e quase os tocavam.

Não sei que ilusão me alheara o espírito. De as contemplar,
de as admirar, a essas ondinhas travessas, foi-me parecendo que tinham alma,
para sentir. E, de repente, ao ver que se chegavam para mim e me festejavam,
enterneci-me e chorei.

Chorei, sim!… Tão órfão estou eu de afeições,
que as procuro até na matéria inerte!… Tão acostumado
ando a me fugirem, que já me surpreende ver um objeto ainda inanimado
aproximar-se de mim, obedecendo à sua lei física.

Rompeu-me esse enleio d’alma uma voz doce e melodiosa. Soltava ela
aos sopros da viração as frases singelas de uma canção.

Ergui a cabeça. A alguns passos se elevava uma pequena casa. Dela
entrava pelo mar um terrado coberto de arvoredo. O vulto de uma menina, vestida
de branco, se destacava na borda do jardim, onde quebravam as ondas.

Era dela a voz.

Pude distinguir ao luzir das estrelas os seus movimentos. Tinha as duas mãozinhas
cruzadas sobre o peito; os olhos no céu. Rezava: eram cantos as suas
rezas.

Não retive da letra mais do que esta invocação —
Ave-Maria! Mas achei o verso tão simples e o ritmo tão suave,
que me parece o tenho ainda no coração. Foram-se as palavras
e os tons, só ficou o sentimento.

Assim, de uma flor que se desfolha, ficam no espaço ondas de perfume.

Mal que terminou a sua melodiosa oração a menina voltou à
casa, correndo e saltando por entre as moitas do jardim.

Também eu voltei. As ondas me expulsaram de seu leito.

22 de março

Decorei finalmente as endeixas que tamanha impressão me fizeram, da
primeira vez que as ouvi, pela sua singeleza.

A menina canta-as todas as noites, ao nascer da estrela d’alva. É
uma Ave-Maria graciosa e pura; inspirou-a o amor filial santificado pela religião.

Tornei a ouvi-la ontem, e hoje ainda ouço o eco a murmurejar-me dentro
d’alma.

Quero escrevê-la.

Os homens ricos de prazeres e afeições desfloram apenas as
suas alegrias; quando o quisessem, não teriam tempo de estancar-lhes
a última gota de essência.

Fazem como as crianças que babujam e provam de todos os frutos, e
de nenhum se fartam.

Esses pródigos de sua alma não compreendem decerto a usura
dos pobres e deserdados, como eu, qunndo Deus lhes depara no deserto da vida
com um óbolo de prazer.

Avaro de sua migalha, que lhe é tesouro, não se cansa de a
gozar; vive nela, sonha dela. Quer senti-la por todos os modos e a todos os
instantes.

Assim fui eu com aqueles versos, que muitos acharão mesquinhos; mas,
ou fosse pela voz harmoniosa que os dissera, ou pelo desvelo e saudade que
respiravam, ou pela cadência suave do ritmo, me infundiram não
sei que doce melancolia.

É outra coisa que os felizes não compreendem. Como a melancolia,
é supremo júbilo para as almas imersas num continuado descrer
e numa acerba tristeza.

Mas a canção… Não me saciei de a escutar, de a recordar,
de a repetir às vagas que rumorejavam na praia. Quero senti-la pelos
olhos. Já a ouvi tantas vezes, ainda não a vi.

Esquecer-me-ia?…

Não! — Lembro-me…

Ave, Maria! Ave, estrela,
Formosa estrela do mar!
Dá-me novas de meu pai,
Que se foi a navegar.

Por esses mares dalém
Vai seu brigue a bolinar.
— Leme à orça! Molha a vela!
E deixa o vento soprar.

A borrasca o não assusta:
Não se teme de afrontar;
Mas eu, que temo por ela,
Vivo somente a rezar.

Fio de ti, minha estrela,
Que o protejas sem cessar,
Faz que bem cedo ele possa
À minha mãe abraçar.

Dá-lhe tempo de bonança,
Mares de leite a sulcar;
Vento à feição, quanto baste
Para depressa chegar.

Ave, Maria! Ave, estrela,
Formosa estrela do mar!
Cheia de graça tu brilhas
A quem te sabe adorar.

Onde aprendeu aquela menina esta oração?… Quem lha ensinou?
Porque a diz ela todas as noites?

23 de março

Cuidava que não podia haver maior isolamento do que o meu. Iludi-me.
Agora é que o isolamento começa.

Luísa parte; seu marido deixa Pernambuco: vai-se a Lisboa.

E a causa sou dessa mudança. O que ainda me restava de família
abandona a pátria, para quebrar os laços de sangue que nos prendem.
É justo; é generoso também. Deixem-me, a mim só,
o desprezo que inspiro. Não o quero partilhar. Basto eu para sofrê-lo.

Oh! Ainda me resta o orgulho da miséria. É uma dignidade como
tantas outras, e um egoísmo; como os há poucos.

Minha irmã negou tudo. Deu-se a tratos para convencer-me que os interesses
de seu marido eram a causa única dessa partida.

Pobre Luísa! Mentia.

Que desgraçado ente que sou eu!… Não faço sofrer só
aos que me amam; obrigo-os ainda a se rebaixarem.

26 de março

Voltava de ver sumir-se no horizonte o navio que levou Luísa.

Cheguei à casa. Pela janela aberta, olhei o vulto da cidade a colear
pela margem do rio, e disse de mim para mim pensando na gente que a habita:

— Estou só!

E me enganava ainda. Mal tinha murmurado aquelas palavras, veio Maria. Falou,
o que raro sucedia. Pela primeira vez, cuido eu, disse uma coisa que se entendesse.
A repulsão, que eu inspiro, foi-lhe raio de luz, na treva espessa de
sua alma.

Pediu-me que a vendesse. Não mais quer servir-me… Tem medo do contágio…

Senhor!… Senhor!… A vossa misericórdia é infinita, como
a vossa bondade inexaurível! E não chega para o aflito de mim,
nem um óbolo sequer! Vergai-me sob o peso da vossa cólera, mas
dai-me fé e resignação: e eu vos louvarei, meu Deus,
na plenitude da minha dor.

Tenho eu culpa, se me criaste ente de razão? Por que me destes a inteligência?
Não a tivera, que esta carne se iria consumindo no roer das úlceras,
sem que soltasse uma queixa! Amparai-me, Senhor, amparai-me contra mim mesmo!
Tenho medo de descrer!

29 de março

Do profundo da minha angústia, clamei ao Senhor, ele me ouviu, e enviou
à terra um anjo para ungir-me da sua fé.

Santa coisa é a inocência!… Será que a alma pura e
ignorante deste mundo está mais impressa do seio do criador, e mais
próxima de seu berço? Quem pode saber, e quem dizer, se o que
chamam razão, não é enfermidade do espírito preso
à terra?

Naquela tarde aziaga, que me separou de Luísa, tomou-me o desespero
e levou-me sem tino por essas ruas além. Vaguei, como animal, perdido
do dono, e que todos enxotam. A mim, enxotavam-me de mim mesmo ânsias
de acabar com tanto penar. Tinha horror à vida.

Ouço alarido: e logo vejo, a correr espavorida pelo caminho, a gente
que passava. Ser de mim que fugiam, foi o que primeiro cuidei; mas vinham
de meu lado, e nem me viam. Voltando-me conheci qual a causa do alvoroço.
Um cão espritado que ia duma para outra banda, mordendo quem encontrava.

Bem claro percebi, quanto já não era deste mundo, pois daquilo
fugia ele, que eu andava a procurar. Fui-me direito ao animal. Mas até
o sabujo me tem asco. Parou bem junto de mim; roçou por mim e foi perto
morder um pobre velho, a quem tardo levavam as pernas trôpegas dos anos.

Cheguei-me a ele, de quem já todos com medo se arredavam; e carregando-o
nos braços, levei-o para a tenda do ferreiro mais próximo, onde
lhe queimei a ferida com ferro em brasa. Mal se aplacou a dor, e soube o velho
quem eu era, repeliu-me de si como uma coisa vil, e foi-se, sem voltar o rosto.

Quanto horror lhe causei!

1 de abril

Tornei às Cinco Pontas para ver a casa da menina da Ave-Maria, e ouvi-la
cantar a sua oração de todas as noites.

Era lusco-fusco; e não me animei a aproximar da praia com receio de
que, vendo-me, reconhecesse o miserável que sou e de quem todos fogem.

Os outros, já não estranho. Tão habituado estou à
crueldade do mundo; mas ela?… não quero ser-lhe um objeto de repulsão.
Ignore para sempre que existo, e possa eu de longe, em silêncio, contemplá-la,
como a estrela do céu a que dirige sua prece.

Quando ela acabou de cantar, sentou-se no terrado, junto de uma roseira de
Alexandria que estava coberta de flores, e ficou olhando o mar, onde com a
ardentia se esfacelevam as vagas em chuva de pedrarias cintilantes.

Tinha de todo caído a noite; e já fazia bastante escuro, para
que me pudesse aproximar sem receio. Avistou ela meu vulto, pois senti que
seus olhos se fitavam nele; e não sei o que foi de mim, que não
me lembrei mais onde estava, nem se vivia ainda neste vale de lágrimas.

Do que só me recordo é de encontrar-me, em tornando a mim,
posto de joelhos, a soluçar um pranto em que parecia ir-se toda a minha
alma. Quanto tempo estive assim, não o poderia dizer, nem o como isso
sucedeu, tão alheio fiquei deste mundo e de suas misérias.

Deitei a medo os olhos para o terrado. Uma sombra alva perpassava entre as
moitas do terrado. Era ela que recolhia vagarosamente.

Será possível, mãe, que eu ame neste mundo outra criatura
com as abundâncias do coração e a santidade com que sempre
te estremeci?…

2 de abril

Meu Deus!… Meu Deus! calcastes sobre mim, pobre verme da terra, a vossa
mão onipotente, e eu não murmurei.

A peste soprou em minhas veias seu hálito de chamas, que me requeima
o sangue e devora as carnes. Meu corpo, o que é senão um crivo
de dores, e um inferno onde me abraso em vida?

Tudo sofrerei, resignado. Mas, Senhor, poupai-me a esse cruel martírio!
Sentir-se a gente vil para aquela a quem vota seu amor!… Parece-me que ainda
não tinha sofrido toda a degradação de minha pessoa.
Contra a repulsão do mundo, revoltava-se minha alma que o despreza
como a um ventre de misérias. Contra o nojo que, às vezes, tenho
de mim mesmo, consola-me o pensamento de que meu ser purifica-se nessa chama
em que me abraso.

Mas, contra ela, que posso eu senão abater-me no pó, e sumir-me
como uma coisa hedionda em que não devem pousar jamais os seus meigos
olhos?

Que tremendo suplício, mãe! Ter n’alma um afeto grande
e imenso; porém, nesse afeto, uma abjeção maior que ele,
uma vergonha que o remorde e o acabrunha!

Para que enviou-me o céu este afeto? Pensava eu, mãe, depois
que te partiste, que de mim, deste ente votado ao sofrimento e à desgraça,
já não podia sair uma doce efusão, mas somente a paixão
cruel e implacável como a lepra que me corrói.

6 de abril

Sei-lhe o nome!

Foi esta noite. Lá estava ela, no terrado, olhando o mar, onde se
escondera a vela branca do navio de seu pai.

Uma voz, era a de sua mãe, soltou o nome de Úrsula. Ergueu-se
ela, e caminhou para a casa, dizendo com um modo brando e sossegado:

— Aí vou, mãe.

Úrsula!… Que suave encanto acho eu neste nome, que dantes nunca
em mim despertou a menor atenção. Ouvia-o como um som qualquer;
não passava de uma palavra indiferente. Agora, canta em minha alma
como celeste harmonia, que me inunda todo o ser de júbilo.

Os sussurros da brisa, os murmúrios das ondas, as vozes do céu
e da terra repetem para mim o mavioso nome, que me envolve em uma bem-aventurança.

Nos momentos em que a alma exubera e subleva-se com o esto do contentamento
ou da mágoa, manam as abundâncias da paixão, em poemas
e hinos.

Não careço eu de poesias, nem descantes, para transbordar as
santas alegrias que me enchem o coração. Basta dizer baixinho,
entre Deus e mim, o nome dela.

10 de abril

Ainda não tornei do abalo!

Não quisestes ouvir a minha prece! Como a vossa cólera é
implacável, Senhor, que um só instante não se retira
deste punhado de limo!

Era-me consolo, em meio das tribulaçÕes, aquela inocente devoção
de adorar de longe entre as sombras da noite, o formoso vulto de Úrsula;
e tanto vos supliquei arredásseis de mim os olhos dela, para não
perceber-me no suave enlevo de a contemplar.

E esse consolo me negastes!

Ela reparou na minha insistência, e desde aí não voltou
ao terrado, nem lhe vi mais que a sombra, quando canta da janela a sua Ave-Maria.

12 de abril

Apareceu esta noite.

Como costumava, rezou a sua oração da tarde, e ficou no terrado
com os olhos engolfados no horizonte.

Eu que me havia escondido atrás de um coqueiro, para não assustá-la
outra vez, como a visse distraída, criei ânimo para chegar-me
e vê-la de mais perto.

De repente, voltou-se ela e pondo em mim seus olhos, que me deixaram transido
e quedo, sem acordo para fugir, quando tudo eu dera para sepultar-me ali na
terra, e subtrair-me à sua vista.

Ela, em vez de esquivar-se, como antes fizera, reclinou-se ao balaústre
e começou a desfolhar os botões da roseira, soltando à
fresca brisa do mar as pétalas que vinham farfalhar-me no rosto.

Por instantes, fiquei sem outro sentido, que não fosse uma delícia
como nunca tive, nem cuidei que se pudesse gozar na terra, pois me parecia
estar no céu, afagado pelas asas dos serafins do Senhor, a brincarem-me
entre os cabelos e a borrifarem-me as faces de angélicos sorrisos.

Eis que no meio desse êxtase de ventura, caí em mim, arrojado
ao abismo da minha miséria, como Satanás submergido nas trevas
pela mão do Sempiterno!

Lembrou-me quem eu era, e o horror de mim mesmo espancou-me daqueles lugares.

Ainda o trago comigo! Ah mãe, por que não estás aqui
a meu lado para reerguer-me desta abjeção em que me sinto! Tua
palavra me daria força para exaltar esta alma abatida. Ao calor de
teu seio, creio que se havia de regenerar esta natureza pusilânime.

15 de abril

Vejo-a todas as noites.

Sempre recostada ao balaústre, esfolhando ao vento as rosas fragrantes,
entretém-se nesse brinco inocente até a hora de recolher.

Sabe ela que eu a devoro com os olhos, cá do meu refúgio?

Às vezes, receio que se tenha apercebido da minha presença
constante naquele sítio; e é quando reclina-se mais no balaústre,
e estende o colo, como se procurasse afirmar-se do que entrevira.

Nessas ocasiões, coso-me ao tronco do coqueiro, e deixo-me ficar sem
movimento pelo resto da noite, até que recolhida ela, me posso esgueirar
para casa.

16 de abril

Meu Deus! Meu Deus! Dai-me força para resistir-me, pois ma deste para
sofrer este suplício atroz.

Ela, Úrsula, me conhece!

Esta noite, quando me esquecia a contemplá-la, seguro de mim, vi-a
acenar com a mão, como se me chamasse! Duvidei que me pudesse ter descoberto
ou sequer pressentido. Mas ela insistiu, e como não lhe obedecesse,
enfadou-se.

O que se passou em mim, e qual poder oculto dominou meu ser, que sem vontade
nem consciência, atirou-me de joelhos em face do terrado, com as mãos
súplices e a fonte abatida, implorando compaixão para a minha
infinda angústia?

Esteve Úrsula algum tempo a olhar-me, entre surpresa e aflita. Mas,
por fim, ajoelhou também, erguendo as mãos ao céu, e
eu ouvi o sussurro da sua prece.

Era por mim que rezava?

Não ouso crer. Depois que te partiste, mãe, lá na mansão
em que habitas, acaso viste subir a Deus uma súplica, uma só,
por este desgraçado?…

20 de abril

Infame sou eu, que de minha hediondez ousei erguer os olhos à mais
bela das criaturas de Deus.

Como foi isto?… Como foi que me não aconteceu o horror que ainda
me transe neste momento? Por que me fulminaste, Deus de Misericórdia,
quando sem tento de mim, transpus a distância que me separava dela?

Mas não fui eu, que morreria ao primeiro passo. A insânia, que
me arrancava a mim mesmo, apoderou-se deste esqueleto vil, e arrastou-o miseravelmente
ao sopé do terrado.

Ao ver-me ali perto de si, Úrsula debruçada à balaustrada
começou a defolhar as rosas sobre minha cabeça, rindo faceiramente
de sua travessura.

Disto não tenho mais que uma vaga e tênue reminiscência,
pois meus espíritos ainda estavam nesse momento alheios de mim com
a grande torvação.

Colhia ela as rosas que me atirava e eu recolhia em meu seio. Correram assim
as horas da noite, sem que as sentisse.

24 de abril

Todas as noites, as tenho passado naquele doce enlevo!

Ali, próximo a ela, sinto-me como outrora quando me recolhias em teu
regaço, mãe, e à força de carinho me acalentavas
a dor horrivel.

Como teus braços, outrora, cinge-me o olhar de Úrsula, e me
envolve. As folhas das rosas, que ela esparge sobre mim, são carícias
tão doces como eram teus beijos, mãe, quando derramavas em meu
seio o bálsamo santo da tua alma.

Horas e horas ficamos ali, mudos a olhar-nos, eu repassando-me de sua imagem,
ela talvez admirada, em sua ingênua isenção, do meu estranho
pasmo.

Ontem, sem o sentir, rompeu-me do seio o seu nome, que meus lábios
repetiam submissos, uma e muitas vezes, como as palavras de uma oração.
Interrompeu-me a voz de Úrsula.

— Acha bonito meu nome?

Naquele instante, não atinei o sentido das palavras, tão absorto
fiquei a ouvir a voz melodiosa que falava. Mas, quando entendesse, podia eu
exprimir em linguagem o que se passava em meu ser, e pronunciar seu nome?

Movi a cabeça maquinalmente como se dissera: sim.

— E o seu? Qual é? perguntou-me ainda.

Meu nome?… Há no mundo para os desgraçados como eu outro
nome que não seja o de miserável?… Tive outrora um; nem já
me lembro qual fosse, pois há tanto tempo que ninguém o chama!
Para ti, mãe, eu era o filho; para o mundo, o lázaro!

Não se abriram meus lábios; porém com o gesto supliquei-lhe
silêncio.

Teve ela sombra do horrível mistério, que reclinou a fronte
merencória? Não; se a menor suspeita passasse em seu espírito,
a houvera espavorido.

Sua tristeza foi sem dúvida por não ver satisfeito seu desejo.
As crianças são assim, tiranas e absolutas em seus caprichos.

27 de abril

Não mais voltarei àquele sítio! Não mais profanarei
com a minha presença o olhar puro e santo do anjo que se comiserou
de mim!

O mau espírito apoderou-se deste abjeto esqueleto, e fez dele um inferno.
Revolvem-se em meu seio pensamentos que me enchem de pavor.

Quando, há duas horas, cheguei à praia, não vi Úrsula
no lugar do costume, o que me deu ânimo para aproximar-me bem perto
do terraço, na impaciência de entrevê-la através
da folhagem.

Ela que se tinha escondido para surpreender-me, logo se debruçou no
gradil, e estendeu para mim uma rosa que tinha na mão.

Pus-me de joelhos para recebê-la como uma graça celeste. Mas,
Deus poupou-me a essa infâmia, abatendo sobre mim a sua cólera.
Caí, prostrado ao chão, escondendo o rosto na poeira da terra.

E fugi como um louco!…

Como pôde esta miserável carcaça que me deu o Criador
para repasto dos gusanos, como pôde conceber o vil desejo de tocar a
sua hediondez a mão pura e imaculada da formosa donzela?

Deus fez o homem do limo da terra; da sânie, só tirou as vespas.
Mas o virulento inseto apenas destila veneno; e o meu contágio é
mais do que a peste; porque não só mata o corpo, como também
a alma. É o contágio da abjeção.

Ah! os felizes que morrem na vida, levando a estima do mundo, não
sabem o que é esse frio assassínio duma alma, que o mundo lapida,
como se ela fora um perro danado, e cujo despojo lança-se ao monturo
e queima-se para não contaminar os ares!

28 de abril

Tinha jurado não voltar ao eirado; e voltei arrastado por uma força
a que não posso resistir.

Parecia-me que estava atado ao leito da dor, onde todo o dia me revolvi em
uma angústia cruel, e todavia, ao toque de trindades, sem que desse
tento de mim, caminhava como um espectro para aquele sítio, onde me
disputam o céu e o inferno; porque ali está a fonte de meus
júbilos e a antro de meus sofrimentos.

Assomava a luz no horizonte, como uma sultana a recostar-se nos estofados
coxins de brocado azul recamado de branco. Nas folhas dos coqueiros, passava
a brisa sutil ramalhando as verdes palmas.

Da terra, bordada de quintais e granjearias, se exalava, como de uma caçoula,
a suave fragrância do campo. O mar dormia em bonança; e o colo
da onda arfava mansamente, como o seio da criança engolfada em sonhos
ridentes.

Derramava-se no espaço uma doçura inefável, que parecia
manar do céu em um jorro de luz alva e macia. Parecia-me, às
vezes, que eu sugava no teu peito, mãe, um sorvo de leite vigoroso,
que me infundia saúde e contentamento.

Nunca, em minha vida, tive eu tamanha sede de ventura; também nunca
a fortuna escarninha aproximara tão perto de meus lábios a taça
falaz.

Ávido, precipitei-me sobre ela, e pior que Tântalo, a quem o
destino apenas retraía o pábulo, a mim trocou-o no mais negro
fel.

Traguei a minha própria peçonha; e não morri, não,
porque a morte seria uma redenção, e eu não expiei ainda
toda a minha culpa de haver nascido, para ser um arremedo de homem…

29 de abril

Não pude acabar ontem. Embruteceu-me o desespero, se não é
que empederniu-me; pois nem gemer eu podia como a besta quando sofre…

Que medonho transe!

Tinha-me eu embuçado na sombra das árvores, que serviam de
manto escuro, e não deixavam que ela entrevisse mais do que um vulto.
Meu semblante, se o descobrisse à claridade da lua, não resistiria
à hedionda catadura do maldito!

Do seio da terra, que é o meu só regaço, mãe,
depois que perdi o teu, onde me conchegava no delírio da dor; das entranhas
da noite, onde se gerou o aborto de peste que eu sou, estava alheio de mim
na contemplação de Úrsula.

Eis rasga-se a escuridão e vomita sobre mim uma chama do inferno.
Alaga o rúbido clarão todo o arvoredo, e cinge-me de uma labareda
sinistra.

Corro; mas além está o luar alvacento, que amortalha-me em
fantasma. Volvo esvairado sobre os passos, e entro de novo na flama vermelha
que me persegue como a língua de Satanás.

Nisto surge o corpo alquebrado de um velho e afasta-se horrorizado.

— É o lázaro!… É o lázaro!…

Ainda ouvi o grito de angústia que despedaçou a alma de Úrsula,
mas vindo doutro mundo, diverso daquele onde eu estava. Do mais não
soube, até as alvoradas que me acharam estremunhando na vasa onde eu
jazera o resto da noite; da noite dos outros, que não desta contínua
e perpétua que se estende sobre minha vida.

Mas até o sono do jazigo me rouba a sorte ímpia.

30 de abril

Lembro-me agora! O velho é o mesmo que me repeliu, quando eu o acabava
de salvar do cão danado. Daquela vez tinha razão: meu contacto
o enchia de horror; mas desta, que mal lhe fiz eu para me precipitar nesta
voragem do desespero?

4 de maio

Sei tudo!…

O velho é avô de Úrsula. Percebeu sem dúvida o
aparecimento naquele sítio de um vulto suspeito, e quis reconhecê-lo.

Acendeu a fogueira, que devia esclarecer a minha figura, e fugiu aterrado,
por si e pela neta.

Não lhe quero mal por isso.

Salvar a filha de seu sangue é um dever de todo homem. Em seu lugar
eu faria mais. Exterminaria ali mesmo o pestiferado para que nunca mais ousasse
envenenar o ar que ela, a inocente, respirava.

Úrsula não tornou, e eu rogo a Deus que não me apareça
nunca mais. Assim terei ao menos o consolo de olhar os muros que a escondem
à minha vista, mas não ao meu coração. Presente
ela, nunca ousarei eu aproximar-me daqueles sítios.

O horror a afastou para sempre. Ainda bem! Ao menos não receberei
dela o asco e desprezo que o mundo arremessa sobre mim; e poderei guardar
dentro em minha alma, doce e compassiva, a linda imagem que me sorriu um dia
através das agruras de uma mísera existência.

6 de maio

Misérrimo de mim!… Despedacei a flor que desabrochara entre as urzes
de minha alma, e derramava nela o seu mago perfume!… Apaguei a estrela que
rompera um instante a procela de minha vida, para infundir-me no seio uma
luz celeste!

Úrsula anseia nas vascas da agonia e fui eu que a matei; foi o horror
de minha miséria que a assassinou.

Quando presenti a fatal nova, pela agitação que ia na casa,
perdi toda a razão, e precipitei-me pelos aposentos em busca da câmara,
onde se finava a minha única e fugaz alegria deste mundo.

Perceberam-me os da família; e esquecendo um instante a sua dor, esbordoaram-me
com tamanha ira que ali caí sem espírito, com o corpo macerado.

Despertou-me uma reza cantada ali perto, e as luzes das tochas que desfilavam
pela praia.

Era o enterro de Úrsula.

Levaram-na à igreja de São Pedro Gonçalves. Vi deporem
seu ataúde na essa rodeada de tocheiros e guardada pelas beatas.

À meia-noite, voltarei.

7 de maio

Introduzi-me na igreja por uma janela baixa da sacristia, cuja grade estava
carcomida.

Vendo à luz baça dos tocheiros assomar um vulto, as beatas
fugiram assombradas. Fiquei só ali em frente do ataúde.

Nesse momento, Úrsula me pertencia; ninguém a disputava à
minha adoração.

Como era bela no eterno sono em que repousava do mundo e de suas misérias!
Tinha nos lábios aquele mesmo sorriso que derramava sobre mim, agora
tocado de um reflexo lívido. Estava branca e imaculada como os anjos;
eram níveas como as faces as rosas que lhe cingiam os bastos cabelos
crespos.

Quis beijá-la e recuei!… Ainda morta, e brevemente pasto de vermes,
não ousei profanar o despojo santo da formosa criatura.

Nesse momento, ouço rumor do lado da sacristia. É a gente curiosa
que vem trazida pelas beatas, para espancar o espectro. Querem roubar-ma outra
vez!…

Mas não o conseguirão! Hei de disputá-la até
aos vermes e ao pó da terra.

Cingindo ao peito o corpo de Úrsula, arrojei-me fora da igreja, e
vim depositá-lo aqui, onde ninguém ousará perseguir-me.
As portas estão escâncaras, dia e noite batidas pelo vento; guarda-as
porém uma fera mais terrível que Cérbero, a peste.

Agora sim, Úrsula, tu me pertences para sempre, como eu a ti.

Que se passa?

Ouço a plebe a rugir lá fora; uma chama súbita enrosca-se
pela treva como o dragão.

Compreendo: deitaram fogo à casa para exterminar o maldito!

Graça, meu Deus! Este fogo me redimirá da maldição
que pesa sobre mim, e purificará meu ser. Assim ao menos poderão
minhas cinzas se unirem com as de Úrsula!

Bem-vindas, chamas amigas! Aqui estamos; cingí-nos, abraçai-nos,
para que em vosso seio fecundo, celebremos as núpcias da eternidade.

9 de maio

Eis-me outra vez no mundo e só… Só não; que me acompanham
ainda e sempre o meu desespero e a sanha do mundo.

O fogo não me quis; teve asco de mim, como tivera o mar, e o cão
danado. Não ousou tocar-me; tal é a repulsão que derramo
em torno.

Com o incêndio, abateu-se uma parede do aposento em que me achava,
levantando a extremidade oposta do soalho com tal violência, que me
arremessou pela janela em cima de um telhado, donde escorreguei ao chão.

Só pela madrugada, pude arrastar-me ao montão de ruínas
e deitar-me no brasido onde jaziam as cinzas de Úrsula.

Daqui, desse mesmo lugar que ninguém disputaria a um cão, expulsou-me
o ódio da gente.

Assim terminava o canhenho do lázaro. Expulso do Recife, pela plebe
irritada com os últimos sucessos, refugiou-se na casa abandonada de
Olinda, onde terminou afinal a imensa e cruel agonia de uma existência
nunca vivida, mas tão penada.

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