Fundamentação da Meta Física – Immanuel Kant

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Immanuel Kant

A antiga filosofia grega repartia-se em três ciências: a Física,
a Ética e a Lógica. Esta divisão está inteiramente
de acordo com a natureza das coisas, nem temos que introduzir-lhe qualquer
espécie de aperfeiçoamento, a não ser acrescentar o princípio
em que ela se baseia, para que desse modo possamos, por um lado, possuir a
certeza de ela ser completa e, por outro lado, determinar com exatidão
as subdivisões necessárias.

Todo conhecimento racional é ou material e refere-se a qualquer objeto,
ou formal e ocupa-se exclusivamente com a forma do entendimento e da razão,
um e outro em si mesmos considerados, e com as regras universais do pensamento
em geral, sem distinção de objetos. A filosofia formal denomina-se
Lógica, mas a filosofia material, que trata de objetos determinados
e das leis a que eles estão sujeitos, divide-se, por sua vez, em duas,
visto estas leis serem ou leis da natureza ou leis da liberdade. A ciência
das primeiras chama-se Física; a das segundas, Ética. Aquela
dá-se também o nome de Filosofia da natureza ou Filosofia natural;
a esta, o de Filosofia dos costumes.

A Lógica não pode comportar parte empírica, ou seja,
parte na qual as leis universais e necessárias do pensamento estribem
em princípios tomados da experiência; de contrário, não
seria lógica, isto é, cânone do entendimento e da razão,
válido para todo pensamento e capaz de ser demonstrado. Ao invés,
tanto a Filosofia natural como a Filosofia moral podem, cada uma, possuir
uma parte empírica, pois devem aplicar suas leis, aquela à natureza
como a objeto da experiência, e esta à vontade humana enquanto
afetada pela natureza: leis, no primeiro, caso, em conformidade com as quais
tudo acontece; leis, no segundo caso, de acordo com as quais tudo deve (388)
acontecer, tomando todavia em consideração as condições,
mercê das quais muitas vezes não acontece o que deveria acontecer.

Pode-se denominar empírica toda filosofia que se apóia em princípios
da experiência; e pura, a que deriva suas doutrinas exclusivamente de
princípios a priori. Esta, quando simplesmente formal, chama-se Lógica;
mas, se for circunscrita a determinados objetos do entendimento, recebe o
nome de Metafísica.

Deste modo, surge a idéia de uma dupla metafísica: uma Metafísica
da natureza e uma Metafísica dos costumes. A Física terá
pois, além de sua parte empírica, uma parte racional . Outro
tanto sucede com a Ética; embora, aqui, a parte empírica possa
denominar-se particularmente Antropologia prática, e a parte racional
receber o nome de Moral.

Todas as indústrias, mesteres e artes lucraram com a divisão
do trabalho. Devido a ela, não é um só que faz todas
as coisas, mas cada qual se circunscreve àquela tarefa peculiar que,
por seu modo de execução, se distingue sensivelmente das demais,
a fim de poder cumpri-la com o máximo de perfeição e
de facilidade possível. Onde os trabalhos não são assim
divididos e discriminados, e cada artista tem de realizar tudo por si, as
indústrias permanecem numa fase de grande barbárie. Ora seria,
por certo, questão digna de ser examinada, perguntar se a filosofia
pura não exige em todas as suas partes uni especialista que se lhe
dedique exclusivamente, e se, para o conjunto desta indústria que é
a ciência, não seria preferível que os que estão
habituados a apresentar, conforme ao gosto do público, o empírico
imiscuído com o racional, combinado em toda a sorte de proporções
que eles próprios desconhecem, que a si próprios se qualificam
de autênticos pensadores ao mesmo tempo que apodam de visionários
os que se ocupam da parte puramente racional, se não seria preferível,
digo, que esses tais fossem advertidos a que não se incumbissem simultaneamente
de duas tarefas que devem ser desempenhadas de maneira inteiramente diferente,
cada uma das quais reclama sem dúvida talento particular, e cuja reunião
numa só pessoa conduz fatalmente a produzir obra imperfeita. Limito-me,
entanto, aqui, a perguntar se a natureza da ciência não exige
que se separe sempre com sumo cuidado a parte empírica da parte racional,
que se faça preceder a Física propriamente dita (empírica)
de uma Metafísica da natureza, e a Antropologia prática de uma
Metafísica dos costumes, as quais Metafísicas deveriam ser cuidadosamente
expurgadas de todo elemento (389) empírico, com o intuito de saber
tudo o que a razão pura pode fazer em ambos os casos e em que mananciais
ela haure esta sua doutrinação a priori, quer semelhante tarefa
seja empreendida por todos os moralistas (que não têm conto),
quer somente por alguns que para tal se sintam especialmente chamados.

Como aqui não tenho em vista senão propriamente a filosofia
moral, limito a estes termos a questão proposta: não seria de
suma necessidade elaborar, de vez, uma Filosofia moral. pura completamente
expurgada de tudo quanto é empírico e pertence à Antropologia?
Que tal filosofia deva existir resulta manifestamente da idéia comum
do dever e das leis morais. Deve-se concordar que uma lei, para possuir valor
moral, isto é, para fundamentar uma obrigação, precisa
de implicar em si uma absoluta necessidade; requer, além disso, que
o mandamento: "Não deves mentir" não seja válido
somente para os homens, deixando a outros seres racionais a faculdade de não
lhe ligarem importância. O mesmo se diga das restantes morais propriamente
ditas. Por conseguinte, o princípio da obrigação não
deve ser aqui buscado na natureza do homem, nem nas circunstâncias em
que ele se encontra situado no mundo, mas a priori. só nos conceitos
da razão pura]; e qualquer outra prescrição, que estribe
nos princípios da simples experiência, mesmo que sob certos aspectos
fosse prescrição universal, por pouco que se apóie em
razões empíricas, nem que seja por um motivo apenas, pode ser
denominada regra prática, nunca porém lei moral.

Pelo que, em todo conhecimento prático não só as leis
morais, juntamente com seus princípios, se distinguem essencialmente
de tudo o que contém algum elemento empírico, como também
toda filosofia moral se apóia inteiramente em sua parte pura, e, aplicada
ao homem, não deduz coisa alguma do conhecimento do que este é
(Antropologia), senão que lhe confere, na medida em que ele é
ser racional, leis a priori. Sem dúvida tais leis exigem uma faculdade
de julgar aguçada pela experiência, capaz de, em parte, discernir
em que casos elas são aplicáveis e, em parte, procurar-lhes
acesso à vontade humana e influência para a prática; porque
o homem, sujeito como se encontra a tantas inclinações, possui
decerto capacidade para conceber a idéia de uma razão pura prática,
mas não pode assim com facilidade Tornar essa idéia eficaz in
concreto em seu procedimento.

(390) Uma Metafísica dos costumes é pois rigorosamente necessária,
não só por motivo de necessidade da especulação,
a fim de indagar a origem dos princípios práticos que existem
a priori em nossa razão, mas também porque a própria
moralidade está sujeita a toda a espécie de perversões,
enquanto carecer deste fio condutor e desta norma suprema de sua exata apreciação.
Com efeito, para que uma ação seja moralmente boa, não
basta que seja conforme com a lei moral; é preciso, além disso,
que seja praticada por causa da mesma lei moral; de contrário, aquela
conformidade e apenas muito acidental e muito incerta, visto como o princípio
estranho à moral produzirá, sem dúvida, de quando em
quando, ações conformes com a lei, mas muitas vezes também
ações que lhe são contrárias – Ora, a lei moral
em sua pureza e genuinidade (e justamente é isto o que mais importa
na prática) não deve ser buscada senão numa Filosofia
pura; donde, a necessidade de esta (a Metafísica) vir em primeiro lugar,
pois sem ela não pode haver filosofia moral. Nem a filosofia, que confunde
princípios puros com princípios práticos merece o nome
de filosofia (pois esta distingue-se do conhecimento racional comum, precisamente
por expor numa ciência à parte o que este conhecimento comum
apreende apenas de modo confuso); merece menos ainda o nome de filosofia moral,
porque justamente devido a tal confusão prejudica a pureza da moralidade
e vai de encontro a seu próprio fim.

Não se pense todavia que o que se requer aqui se encontre já
na propedêutica que o ilustre Wolff antepõe à sua filosofia
moral, a saber na obra a que deu o título de Filosofia prática
universal, e que, por conseguinte, não há campo inteiramente
novo que explorar. Precisamente porque essa propedêutica devia ser uma
filosofia prática universal, considerou ela, não uma vontade
de qualquer espécie particular, como seria, por exemplo, uma vontade
determinada, não por motivos empíricos, mas só por princípios
a priori, e que pudesse ser denominada vontade pura, mas o querer em geral,
com todas as ações e condições que lhe convém
dentro deste significado geral; distingue-se pois da Metafísica dos
costumes, do mesmo modo que a Lógica geral se distingue da Filosofia
transcendental: a Lógica geral expõe as operações
e regras do pensamento em geral, ao passo que a Filosofia transcendental expõe
unicamente as operações e regras particulares do pensamento
puro, ou seja, do pensamento, por meio do qual os objetos são conhecidos
inteiramente a priori. É que a Metafísica dos costumes deve
indagar a idéia e os princípios de uma vontade pura possível,
e não as ações e condições do humano querer
em geral, as quais, em sua maioria, são tomadas da Psicologia. O fato
de na Filosofia prática geral se falar igualmente (391) (embora sem
razão) de leis morais e de dever não constitui objeção
contra o que afirmo. Com efeito, os autores dessa ciência permanecem
fiéis, neste ponto, à idéia que dela formam; não
distinguem, entre os princípios de determinação, aqueles
que, como tais, são representados absolutamente a priori pela só
razão e são propriamente morais, daqueles que são empíricos,
e que o entendimento erige em conceitos gerais por um simples confronto das
experiências; consideram-nos, ao invés, sem atentarem na diferença
de suas origens, apenas segundo seu número maior ou menor (pois os
encaram como sendo todos da mesma espécie) e formam assim seu conceito
de obrigação. Na verdade, este conceito é tudo menos
moral; mas é o único que se pode esperar de uma filosofia que,
sobre a origem de todos os conceitos práticos possíveis, não
decide de maneira nenhuma se se produzem a priori ou só a posteriori.

Ora, propondo-me publicar, um dia, uma Metafísica dos costumes, faço-a
preceder deste opúsculo que lhe serve de fundamentação.
Decerto não há, um rigor, outro fundamento em que da possa assentar,
de não seja a Crítica de uma razão pura prática,
do mesmo modo que, para fundamentar a Metafísica, se requer a Crítica
da razão pura especulativa por mim já publicada. Mas, em parte,
a primeira destas Críticas não é de tão extrema
necessidade como a segunda, porque em matéria moral a razão
humana, mesmo entre o comum dos mortais, pode ser facilmente levada a alto
grau de exatidão e de perfeição, ao passo que no seu
uso teorético, mas puro, da é totalmente dialética; e,
em parte, no que concerne à Crítica de uma razão pura
prática, para que ela seja completa, reputo imprescindível que
se mostre ao mesmo tempo a unidade da razão prática e da razão
especulativa num princípio comum; pois que, em última instância,
só pode haver uma e a mesma razão, e só na aplicação
desta há lugar para distinções. Ora, não me seria
possível aqui realizar um trabalho tão esmiuçado e completo,
sem introduzir considerações de ordem inteiramente diferente
e sem lançar a confusão no ânimo do leitor. Por isso,
em vez de dar a este livrinho o título de Crítica da razão
pura prática, denominei-o Fundamentação da Metafísica
dos costumes.

Mas, porque, em terceiro lugar, uma Metafísica dos costumes, não
obstante o que o título comporta de assustador, pode entanto ser exposta
em forma popular e adequada à inteligência do vulgo, afigura-se-me
útil publicar à parte este trabalho preliminar, no qual são
assentes os fundamentos, (392) para posteriormente não me ver obrigado
a imiscuir sutilezas, inevitáveis em semelhante matéria, a doutrinas
de mais fácil compreensão.

A presente Fundamentação não é mais do que a
pesquisa e a determinação do princípio supremo da moralidade,
o bastante para constituir um todo completo, separado e distinto de qualquer
outra investigação moral. Certamente minhas afirmações
sobre tão momentoso problema, e que até ao presente não
foi tratado de modo satisfatório, muito pelo contrário, receberiam
ampla e elucidativa confirmação, se o princípio em questão
fosse aplicado a todo o sistema, mercê do poder de explicação
suficiente que ele em tudo manifesta; vi-me porém obrigado a renunciar
a esta vantagem, que, no fundo, estaria mais de acordo com o meu amor próprio
do que com o interesse geral, uma vez que a facilidade de aplicação
de um princípio bem como sua aparente suficiência não
fornecem prova absolutamente segura de sua exatidão, antes, pelo contrário,
suscitam em nós certa atitude de parcialidade capaz de nos induzir
a não examiná-lo e apreciá-lo rigorosamente por si mesmo,
sem atender às conseqüências.

Segui, neste opúsculo, o método que penso ser o mais conveniente,
quando pretendemos elevar-nos analiticamente do conhecimento vulgar à
determinação do princípio supremo do mesmo, e, depois,
por caminho inverso, tornar a descer sintèticamente do exame deste
princípio e de suas origens ao conhecimento vulgar, onde se verifica
sua aplicação. A divisão da obra é pois a seguinte:

1) Primeira secção: Passagem do conhecimento racional comum
da moralidade ao conhecimento filosófico.

2) Segunda secção: Passagem da filosofia moral popular à
Metafísica dos costumes.

3) Terceira secção: Último passo da Metafísica
dos costumes à Crítica da razão pura prática.

PRIMEIRA SEÇÃO

Passagem do conhecimento racional comum da moralidade ao conhecimento filosófico

Não É possível conceber coisa alguma no mundo, ou mesmo
fora do mundo, que sem restrição possa ser considerada boa,
a não ser uma só: uma BOa vontade. A inteligência, o dom
de apreender as semelhanças das coisas, a faculdade de julgar, e os
demais talentos do espírito, seja qual for o nome que se lhes dê,
ou a coragem, a decisão, a perseverança nos propósitos,
como qualidades do temperamento, são sem dúvida, sob múltiplos
respeitos, coisas boas e apetecíveis; podem entanto estes dons da natureza
tornar-se extremamente maus e prejudiciais, se não for boa vontade
que deles deve servir-se e cuja especial disposição se denomina
caráter. O mesmo se diga dos dons da fortuna. O poder, a riqueza, a
honra, a própria saúde e o completo bem-estar e satisfação
do próprio estado, em resumo o que se chama felicidade, geram uma confiança
em si mesmo que muitas vezes se converte em presunção, quando
falta a boa vontade para moderar e fazer convergir para fins universais tanto
a imprudência que tais dons exercem sobre a alma como também
o princípio da ação. Isto, sem contar que um espectador
razoável e imparcial nunca lograria sentir satisfação
em ver que tudo corre ininterruptamente segundo os desejos de uma pessoa que
não ostenta nenhum vestígio de verdadeira boa vontade; donde
parece que a boa vontade constitui a condição indispensável
para ser feliz.

Há certas qualidades favoráveis a esta boa vontade e que podem
facilitar muito sua obra, mas que, não obstante, (394) não possuem
valor intrínseco absoluto, antes pressupõem sempre uma boa vontade.
É esta uma condição que limita o alto apreço em
que, justificadamente, as temos, e que não permite reputá-las
incondicionalmente boas. A moderação nos afetos e paixões,
o domínio de si e a calma reflexão, não são apenas
bons sob múltiplos aspectos, mas parece constituírem até
uma parte do valor intrínseco da pessoa; falta contudo ainda muito
para que sem restrição possam ser considerados bons (a despeito
do valor incondicionado que os antigos lhes atribuíam). Sem os princípios
de uma boa vontade podem tais qualidades tornar-se extremamente más:
por exemplo, o sangue frio de um celerado não só o torna muito
mais perigoso, como também, a nossos olhos, muito mais detestável
do que o teríamos julgado sem ele.

A boa vontade é tal, não por suas obras ou realizações,
não por sua aptidão para alcançariam fim proposto, mas
só pelo "querer " por outras palavras, é boa em si
e, considerada em si mesma, deve sem comparação ser apreciada
em maior estima do que tudo quanto por meio dela poderia ser cumprido unicamente
em favor de alguma inclinação ou, se , se prefere, em favor
da soma de todas as inclinações. Mesmo quando, por singular
adversidade do destino ou por avara dotação de uma natureza
madrasta, essa vontade fosse completamente desprovida do poder de levar a
bom termo seus propósitos; admitindo até que seus esforços
mais tenazes permanecessem estéreis; na hipótese mesmo de que
nada mais restasse do que a só boa vontade (entendendo por esta não
um mero desejo, mas o apelo a todos os meios que estão ao nosso alcance),
ela nem por isso deixaria de refulgir como pedra preciosa dotada de brilho
próprio, como alguma coisa que em si possui valor. A utilidade ou inutilidade
em nada logra aumentar ou diminuir esse valor. A utilidade seria, por assim
dizer, apenas o engaste que faculta o manejo da jóia no uso corrente,
ou capaz de fazer convergir para si a atenção dos que não
são suficientemente entendidos no assunto, mas que nunca poderia torná-la
recomendável aos peritos nem determinar-lhe o valor.

Há todavia nesta idéia do valor absoluto da simples vontade,
neste modo de a estimar prescindindo de qualquer critério, de utilidade,
algo de tão estranho que, a despeito do completo acordo existente entre
ela e a razão comum, pode todavia surgir uma suspeita: quem sabe se,
na realidade, não se alberga aqui, no fundo, senão uma vaporosa
fantasmagoria e (395) se não será compreender falsamente a natureza
em sua intenção de conferir à razão a direção
de nossa vontade. Pelo que, propomo-nos examinar, desde este ponto de vista,
a idéia do valor absoluto da pura vontade.

Na constituição natural de um ser organizado, ou seja, de um
ser constituído em vista da vida, assentamos como princípio
fundamental que não existe órgão destinado a uma função,
que não seja igualmente o mais próprio e adaptado a essa função.
Ora, se num ser prendado de razão e de vontade a natureza tivesse como
fim peculiar a sua conservação, o seu bem-estar, numa palavra,
a sua felicidade, devemos confessar que ela teria tomado muito mal suas precauções,
escolhendo a razão desse ser como executora de sua intenção.
Todas as ações, que um tal ser deve cumprir para realizar este
fim, bem como a regra completa de seu comportamento, ter-lhe-iam sido indicadas
com muito maior exatidão pelo instinto, podendo desse modo aquele fim
ter sido muito mais facilmente alcançado do que por meio da razão;
e se a uma tal criatura devesse ser concedida por acréscimo a razão,
esta não deveria servir-lhe senão para refletir sobre as felizes
disposições de sua natureza, para as admirar, para delas se
regozijar e se mostrar grata à Causa benfazeja; que não para
submeter àquela, fraca e ilusória direção sua
potência apetitiva, estragando assim os planos da natureza, Numa palavra,
a natureza teria impedido que a razão se imiscuísse num uso
prático e tivesse a presunção de, com suas fracas luzes,
formular para si o plano da felicidade e os meios de a alcançar; a
natureza teria tomado sobre si a escolha, não só dos fins, como
também dos meios, e com sábia previdência os teria confiado
ao instinto

.

É fato que, quanto mais uma razão cultivada se afadiga na busca
dos prazeres da vida e da felicidade, tanto mais o homem se afasta do verdadeiro
contentamento; donde acontece que para muitos, e justamente para os mais experimentados
no uso da razão, se eles são bastante sinceros para o confessar,
surge um certo grau de mesologia ou, por outras palavras, de ódio da
razão. Feito o cômputo das vantagens que auferem, não
digo da descoberta de todas as artes que convergem no luxo vulgar, mas também
das ciências (que, no fim, lhes aparecem como um luxo do entendimento),
verificam eles que as fadigas sofridas superam em muito a felicidade desfrutada;
(396) e, por tal motivo, comparando-se com a categoria de homens inferiores,
que de preferência se deixam guiar pelo instinto, nem concedem &agraagrave;
razão senão diminuta influência sobre seu procedimento,
acabam por sentir mais inveja do que desprezo deles. Importa, além
disso, confessar que o juízo de tais homens que rebaixam muito e chegam
a reduzir a nada as pomposas glorificações das vantagens que
a razão nos deveria proporcionar relativamente à felicidade
e contentamento da vida, não provém de maneira nenhuma do mau
humor ou da falta de agradecimento à bondade da Providência;
mas que, no fundo deste juízo, se alberga a idéia, não
expressa, de que o fim de sua existência é, de fato, diferente
e muito mais nobre, que a este fim e não à felicidade a razão
é peculiarmente destinada, e que, por conseguinte, a ele, como a condição
suprema, devem as mais das vezes submeter-se as intenções particulares
do homem.

Com efeito, dado que a razão não é suficientemente capaz
de guiar com segurança a vontade no concernente a seus objetos e satisfação
de todas as nossas necessidades (que ela em parte concorre para multiplicar),
e que um instinto natural inato a guiaria mais seguramente a esse fim; atendendo
entanto a que a razão nos foi outorgada como potência prática;
isto é, como potência que deve exercer influência sobre
a vontade, é mister que sua verdadeira destinação seja
produzir uma vontade boa, não como meio para conseguir qualquer outro
fim, mas boa cm si mesma; para o que a razão era absolutamente necessária,
uma vez que, em tudo o mais, a natureza, na repartição de suas
propriedades, procedeu de acordo com. fins determinados. Esta vontade poderá
não ser o único bem, o bem integral; deve porém ser necessariamente
o bem supremo, a condição donde dependem os restantes bens,
e até mesmo a aspiração à felicidade. ""Neste
caso, é perfeitamente coadunável com a sabedoria da natureza
o fato de a cultura da razão, indispensável para obter o primeiro
destes fins que é incondicionado, limitar de muitos modos, ao menos
nesta vida, a obtenção segundo, que é sempre um fim condicionado,
ou seja, a felicidade, até ao ponto de reduzir a nada a sua realização.
Nisto a natureza não age contra toda finalidade, pois a razão,
que reconhece que seu supremo destino prático consiste em criar uma
boa vontade, não pode encontrar o cumprimento deste propósito
senão satisfação a ela adequada, ou seja, resultante
da realização de um fim que só ela determina, embora
daí redunde algum prejuízo para os fins da inclinação.

A fim de elucidar o conceito de uma vontade (397) altamente estimável
em si, de uma vontade boa independentemente de qualquer intenção
ulterior, conceito já inerente a todo entendimento são e que
precisa não tanto de ser ensinado quanto apenas de ser explicado; a
fim de elucidar este conceito, que ocupa sempre o posto mais elevado na apreciação
do valor completo de nossas ações e constitui a condição
de tudo o mais, examinaremos o conceito do dêver, que contém
o de uma boa vontade, com certas restrições, e certo, e com
certos entraves subjetivos, mas que, longe de o dissimularem e tornarem irreconhecível,
mais o salientam por contraste e o tornam mais esplendente.

Passo aqui em silêncio todas as ações geralmente havidas
por contrárias ao dever, se bem que, deste ou daquele ponto de vista,
possam ser úteis, pois nelas não se põe a questão
de saber se podem ser praticadas por dever\ uma vez que estão em contradição
com ele. Deixo também de lado as ações que são
realmente conformes com o dever, para as quais entanto os homens não
sentem inclinação imediata, mas que apesar disso executam sob
o impulso de outra tendência porque, em tal caso, é fácil
distinguir se a ação conforme com o dever foi realizada por
dever ou por cálculo interesseiro. Muito mais difícil é
notar esta distinção, quando, sendo a ação conforme
com o dever, o sujeito sente para com ela uma inclinação imediata.
Por exemplo, é manifestamente conforme com o dever que o comerciante
não peça um preço demasiado elevado a um comprador inexperiente,
e, mesmo quando o comércio é intenso, o comerciante hábil
não procede desse modo; mantém, pelo contrário, um preço
fixo igual para todos, de sorte que uma criança lhe pode comprar uma
coisa pelo mesmo preço que qualquer outro cliente. As pessoas são
pois servidas lealmente; mas isso não basta para crer que o negociante
procedeu assim por dever ou por princípios de probidade; movia-o o
interesse; e não se pode supor neste caso que ele tivesse, além
disso, uma inclinação imediata para com seus clientes, que o
induzisse a fazer, por amor, preços mais convenientes a um do que a
outro. Eis aí uma ação cumprida não por dever,
nem por inclinação imediata, mas tão-somente por cálculo
interesseiro.

Pelo contrário, conservar a própria vida é um dever,
e é, além disso, uma coisa para a qual todos sentimos inclinação
imediata. Justamente por isso a solicitude muitas vezes angustiante que a
maior parte dos homens demonstra pela vida é destituída de todo
valor intrínseco, e a máxima, que, (398) exprime tal solicitude,
não tem nenhum valor moral.

De fato, eles conservam a vida conformemente ao dever, mas não por
dever. Ao invés, se contrariedades ou uma dor sem esperança
tiraram a um homem todo o prazer da vida, se o infeliz, de ânimo forte,
se sente mais enojado de sua sorte que descoroçoado ou abatido, se
deseja a morte, e, no entanto, conserva a vida sem a amar, não por
inclinação ou temor, mas por dever, então sua máxima
comporta valor moral.

Ser benfazejo, quando se pode, é um dever; contudo há certas
almas tão propensas à simpatia que, sem motivo de vaidade ou
de interesse, experimentam viva satisfação em’ difundir
em volta de si a alegria e se comprazem em ver os outros felizes, na medida
em que isso é obra delas. Mas afirmo que, em tal caso, semelhante ação,
por conforme ao dever e por amável que seja, não possui valor
moral verdadeiro; é simplesmente concomitante com outras inclinações,
por exemplo, com o amor da glória, o qual, quando tem em vista um objeto
em harmonia com o interesse público e com o dever, com o que, por conseguinte,
é honroso, merece louvor e estímulo, mas não merece respeito;
pois à máxima da ação falta o valor moral, que
só está presente quando as ações são praticadas,
não por inclinação, por dever. Imaginemos pois a alma
deste filantropo anuviada por um daqueles desgostos pessoais que sufocam toda
simpatia para com a sorte alheia; que ele tenha ainda a possibilidade de minorar
os males de outros desgraçados, sem que todavia se sinta comovido com
os sofrimentos deles, por se encontrar demasiado absorvido pelos seus próprios;
e que, nestas condições, sem ser induzido por nenhuma inclinação,
se arranca a essa extrema insensibilidade e age, não por inclinação,
mas só por dever: só nesse caso seu ato possui verdadeiro valor
moral. Mais ainda. Se a natureza houvesse deposto no coração
deste ou daquele pequena dose de inclinação para a simpatia
se um tal homem (aliás honesto), fosse de temperamento frio e indiferente
para com os sofrimentos alheios, talvez porque, sendo prendado de especial
dom de resistência e de paciente energia contra os sofrimentos próprios,
supõe igualmente nos outros, ou deles exige, qualidades idênticas;
se a natureza não tivesse particularmente formado este homem (que,
na verdade, não seria a sua pior obra) para dele fazer um filantropo,
não encontraria ele em si estofo com que se atribuir um valor muito
superior ao de um homem de temperamento naturalmente benévolo?. Por
certo quê sim.

E justamente aqui transparece o valor moral incontestavelmente mais elevado
de seu (399) caráter, resultante de ele praticar o bem, não
por inclinação, {mas por dever. assegurar a própria,
felicidade é um, dever (ao menos, indireto), porque o não estar
satisfeito com o seu estado, o viver oprimido por inumeráveis preocupações
e no meio de necessidades não preenchidas pode muito facilmente converter-se
em grande tentação de infringir seus deveres. Mas, uma vez mais,
independentemente do dever, todos os homens possuem dentro em si uma inclinação
muito forte e muito profunda para a felicidade, pois que justamente nesta
idéia de felicidade se unem todas as suas tendências. Simplesmente
o preceito, que nos manda buscar a felicidade, apresenta muitas vezes caráter
tal que prejudica algumas de nossas inclinações, de sorte que
não é possível ao homem formar idéia nítida
e bem definida do complexo de satisfação de seus desejos, a
que dá o nome de felicidade. Não há pois motivo para
ficar surpreendido de que’uma só inclinação, determinada
quanto ao prazer que promete e quanto à época em que poderá
ser satisfeita, seja capaz de sobrepujar uma idéia vaga. Por exemplo,
um gotoso preferirá saborear um acepipe de seu agrado, não se
lhe dando de sofrer as conseqüências, porque segundo seus cálculos,
ao menos nesta circunstância, acha preferível não se privar
de um prazer atual, pela esperança acaso infundada de uma felicidade
associada à saúde. Mas, também neste caso, se a saúde,
para ele ao menos, não fosse coisa a que devesse outorgar lugar preponderante
em seus cálculos, permaneceria ainda de pé, neste como nos demais
casos, uma lei, a saber, a lei que manda trabalhar pela própria felicidade,
não por inclinação, por inclinação, mas
por dever. Só então seu comportamento possui autêntico
valor moral.

Assim devem, sem dúvida, ser compreendidos também os passos
da Escritura, onde se ordena amar o próximo e ate os inimigos. Com
efeito, o amor, como inclinação, não pode ser comandado;
mas praticar o bem por dever, quando ne­nhuma inclinação
a isso nos incita, ou quando uma aversão natural e invencível
se opõe, eis um amor prático e não pato­lógico,
que reside na vontade, e não na tendência da sensibilidade, nos
princípios da ação, e não numa compaixão
emoliente. Ora, é este único amor que pode ser comandado.

Venhamos à segunda proposição. Uma ação
cumprida por dever tira seu valor moral não do fim que por ela deve
ser alcançado, mas da máxima que a determina. Este valor (400)
não depende, portanto, da realidade do objeto da ação,
mas unicamente do princípio do querer, segundo o qual a ação
foi produzida, sem tomar em conta nenhum dos objetos da faculdade apetitiva.
De tudo quanto precede, segue-.se que os fins que podemos ter em nossas ações,
bem como os efeitos daí resultantes, considerados como fins e molas
da von­tade, não podem comunicar às ações
nenhum valor moral absoluto. Onde pode pois residir esse valor, se não
deve encon­trar-se na relação da vontade com os resultados
esperados destas ações ? Em nenhuma outra parte é possível
encontrá-lo senão no principio da vontade, abstraindo dos fins
que podem ser realizados por meio de uma tal ação. De fato,
a vontade, situada entre seu princípio a. priori, que é formal
e seu móbil a posteriori, que é material, está como que
na bifurcação de dois caminhos; e, como é necessário
que alguma coisa a determine, será determinada pelo princípio
formal do querer em geral, sempre que a ação se pratique por
dever, pois lhe é retirado todo princípio material.

Quanto à terceira proposição, conseqüência
das duas pre­cedentes, eis como a formulo o dever é a necessidade
de cumprir uma ação pelo respeito à lei. Para. o objeto
concebido como efeito da ação que me proponho, posso verdadeiramente
sentir inclinação, nunca porém respeito, precisamente
por­que ele é simples efeito, e não a atividade de uma vontade.
Do mesmo modo, não posso ter respeito a uma inclinação
em geral, seja ela minha ou de outrem; quando muito, posso aprová-la
no primeiro caso, no segundo caso talvez até amá-la, isto é,
considerá-la como favorável a meu interesse. Só o que
está ligado à minha vontade unicamente como princípio,
e nunca como efeito, o que não serve a minha inclinação
mas a domina, e ao menos a exclui totalmente da avaliação no
ato de decidir, por conseguinte a simples lei por si mesma é que

pode ser objeto de respeito, e, portanto, ordem, para mim. Ora, se uma ação
cumprida por dever elimina completamente a influência da inclinação
e, com ela, todo objeto da vontade," nada resta capaz de determinar a
mesma vontade, a não ser objetivamente a. lei e subjetivamente um puro
respeito a esta lei prática, portanto a máxima (*) de obedecer
a essa lei, embora com dano de todas as minhas inclinações"

Portanto, o valor moral da ação não reside no (401)
efeito que dela se espera, como nem em qualquer princípio da ação
que precise de tirar seu móbil deste efeito esperado. Com efeito, todos
estes resultados (contentamento de seu estado, e até mesmo contribuição
para a felicidade alheia) poderiam provir de outras causas; não é
necessária para isso a vontade de um ser raciona, muito embora somente
nesta se possa encontrar o supremo bem, o bem incondicionado. Por isso a representação
da lei cm si mesma, que seguramente só tem lugar num ser racional,
com a condição de ser esta representação, e não
o resultado esperado, o princípio determinado da vontade, eis o que
só é capaz de constituir o bem tão excelente que denominamos
moral, o qual já se encontra presente na pessoa que age segundo essa
idéia, mas que não deve ser esperado somente do efeito de sua
ação(**).

(* Máxima é o princípio subjetivo do querer; o princípio
objetivo (isto é, o princípio capaz de servir também
subjetivamente’ de principio pratico para todos os seres racionais,
se a razão tivesse pleno poder sobre a faculdade apetitiva) é
a lei prática (58).

(**) Poderiam objetar-me que, servindo-me do termo respeito, tento apenas
refugiar-me num sentimento obscuro, em vez de aclarar a questão por
meio de um conceito da razão. Mas, conquanto o respeito seja um sentimento,
não é todavia sentimento proveniente de influência estranha,
mas, sim, pelo contrário, sentimento espontaneamente produzido por
um conceito da razão, e por isso mesmo especificamente distinto dos
sentimentos da primeira espécie, referentes à inclinação
ou ao temor. O que reconheço imediatamente como lei para mim, reconheço-o
com um sentimento de respeito que exprime simplesmente a consciência
que tenho da subordinação de minha vontade a uma lei, sem intromissão
de outras influências em minha sensibilidade. A determinação
imediata da vontade pela lei, e a consciência que tenho dessa determinação,
chama-se respeito, de sorte que este deve ser considerado, não como
causa da lei, mas como efeito, da mesma sobre o sujeito. Em rigor de expressão
o respeito é a representação— de um valor que vai
de encontro ao meu amor próprio. Conseguintemente é alguma coisa
que não é considerada nem como objeto de inclinação,
nem como de temor, se bem que apresente alguma analogia com ambos ao mesmo
tempo. O objeto do respeito é pois simplesmente, a lei, lei que nos
impomos a nós mesmos, mas que no entanto é necessária
em si. Enquanto lei, estamos-lhes sujeitos, sem consultar nosso amor próprio;
enquanto imposta por nós a nós mesmos, é conseqüência
de nossa vontade. Do primeiro ponto de vista oferece analogia com o temor;
do segundo ponto de vista, tem analogia com a inclinação. O
respeito que se sente para com uma pessoa, na realidade não 6 mais
do que o respeito da lei (da honestidade, etc.) de que essa pessoa nos dá
exemplo. Do mesmo modo que consideramos um dever cultivar nossos talentos,
assim também vemos numa pessoa prendada de talentos como que o exemplo
de. uma lei (que ordena que nos exercitemos cm nos assemelhar-nos nela nisto):
eis o que constitui o nosso respeito. Tudo quanto se designa interesse moral
consiste unicamente no respeito da lei.

(402) Mas que lei pode ser esta, cuja representação, sem qualquer
espécie de consideração pelo efeito que dela se espera,
deve determinar a vontade, para que esta possa ser denominada boa absolutamente
e sem restrição ? Após ter despojado a vontade de todos
os impulsos capazes de nela serem suscitados pela idéia dos resultados
provenientes da observância de uma lei, nada mais resta do que a conformidade
universal das ações a uma lei em geral que deva servir-lhe de
princípio: noutros termos, devo portar-me sempre de modo que eu possa
também querer que minha máxima se torne em lei universal. A
simples conformidade com a lei em geral (sem tomar por base uma determinada
lei para certas ações) é a que serve aqui de princípio
à vontade, e por conseguinte deve igualmente servir-lhe de princípio,
se o dever não é ilusão vã e conceito quimérico.
O bom-senso vulgar, no exercício de seu juízo prático,
concorda plenamente com o princípio exposto, e nunca o perde de vista.

Tomemos, por exemplo, a questão seguinte: ser-me-á lícito,
em meio de graves apuros, fazer uma promessa com intenção de
a não observar ? Não oferece dificuldade distinguir os dois
sentidos que a questão pode comportar, consoante se deseja saber se
é prudente, ou se é conforme ao dever, fazer uma promessa falsa.
Sem dúvida que muitas vezes pode ser prudente; mas é claro que
não basta safar-me, mercê deste expediente, de um embaraço
presente; devo ainda examinar com cuidado se dessa mentira não me redundarão,
no futuro, aborrecimentos muito mais graves do que aqueles de que me liberto
neste momento; e como, a despeito de toda minha sagacidade, não são
fáceis de prever as conseqüências, de meu ato, devo./ recear
que a perda de confiança por parte de ou trem me acarrete maiores prejuízos
que todo o mal que neste momento penso evitar. Agirei pois mais sensatamente,
portando-me, nesta ocorrência em conformidade com uma máxima
universal e procurando criar o hábito de nada prometer sem intenção
de cumprir, Mas depressa se me afigura evidente que tal máxima estriba
sempre no temor das conseqüências. Ora, uma coisa é ser
sincero por dever, e outra coisa ser sincero pôr temos das conseqüências
desagradáveis: no primeiro caso, o conceito da ação em
si mesma contém já uma lei para mim; mas no segundo caso, preciso,
antes de mais nada, tentar descobrir alhures quais as conseqüências
que se seguirão à minha ação. Porque, se me desvio
do princípio do dever, cometo decerto uma ação má;
mas se abandono minha máxima de prudência, posso, em certos casos,
auferir daí grandes (403) vantagens, embora, na verdade, seja mais
seguro ater-me a ela. Afinal de contas, no concernente à resposta a
esta questão: se uma promessa mentirosa é conforme ao dever,
o meio mais rápido e infalível de me informar consiste em perguntar
a mim mesmo: ficaria eu satisfeito, se minha máxima (tirar-me de dificuldades
por meio de uma promessa enganadora devesse valer como lei universal (tanto
para mim como para os outros? Poderei dizer a mim mesmo: pode cada homem fazer
uma promessa falsa, quando se encontra em dificuldades, das quais não
logra safar-se de outra maneira ? Deste modo, depressa me convenço
que posso bem querer a mentira! mas não posso, de maneira nenhuma querer
uma lei que mande mentir; pois, como conseqüência de tal lei, não
mais haveria qualquer espécie de promessa, porque seria, de fato, inútil
manifestar minha vontade a respeito de minhas ações futuras
a outras pessoas que não acreditariam nessa declaração,
ou que, se acreditassem à toa, me retribuiriam depois na mesma moeda;
de sorte que minha máxima, tão logo fosse arvorada em lei universal,
necessariamente se destruiria a si mesma.

Portanto não preciso de possuir grande perspicácia para saber
o que devo fazer, a fim de que minha vontade seja moralmente boa. Mesmo que
me faleça a experiência das coisas do mundo, e me sinta incapaz
de enfrentar todos os acontecimentos que nele se produzem, basta que a mim
próprio pergunte: Podes querer que também tua máxima
se converta em lei universal ? Se isso não for possível, deve
a máxima, ser rejeitada, não precisamente por causa de algum
dano que daí possa resultar para ti ou também pára outros,
mas porque ela não pode ser admitida como princípio de uma possível
legislação universal. Com efeito, a razão me constrange
a um respeito imediato para com essa legislação; e se, de momento,
não enxergo ainda qual seja o fundamento de tal respeito (o que pode
ser objeto de pesquisa por parte do filósofo), ao menos compreendo
bem que se trata aqui de apreciar um valor que sobrepuja o valor de tudo o
que é exaltado pela inclinação, e que a necessidade em
que me encontro de agir por puro respeito à lei prática, constitui
o que se denomina dever, perante o qual qualquer outro motivo deve ceder,
visto ele ser a condição de uma vontade boa em si, cujo valor
está acima de tudo.

Por esta forma, no conhecimento moral da razão humana comum, chegamos
àquilo que é o princípio da mesma, princípio que,
por certo, ela não concebe assim separado numa forma universal, mas
que, no entanto, sempre tem diante (404) dos olhos, e do qual se serve como
de regra de seu juízo. Muito fácil seria mostrar aqui como,
com este compasso na mão, a razão possui, em todos os casos
supervenientes, plena competência para distinguir o que é bom
e o que é mau, o que é conforme e o que é contrário
ao dever, bastando que, sem nada lhe ensinarem de novo e aplicando apenas
o método de Sócrates , a tornem simplesmente atenta a seu próprio
princípio; mostrando-lhe como não precisa de ciência nem
de filosofia para saber como é que uma pessoa se deve portar para ser
honesta e boa, e até sábia e virtuosa. Já desde o inicio

se podia supor que o conhecimento daquilo que a todo homem compete fazer,
e por conseguinte também saber, é propriedade de todos os seres
humanos, por vulgares que sejam. A este propósito, não pode
deixar de causar admiração o fato de, na inteligência
comum da humanidade, a faculdade de julgar em matéria prática
prevalecer grandemente sobre a faculdade de julgar em matéria teorética.
Nesta última, quando a razão comum ousa afasta-se das leis da
experiência e das percepções dos sentidos, ela cai em
manifestos absurdos e contradições consigo mesma, cai pelo menos
num caos de incertezas de obscuridades e de inconseqüências. Pelo
contrário, em matéria prática, a faculdade de julgar
começa justamente a mostrar suas vantagens, quando a inteligência
comum exclui das leis práticas todos os impulsos sensíveis.
Ela torna-se então sutil, quer queira chicanar com a sua consciência
ou com outras opiniões relativas àquilo que deve ser considerado
honesto, quer pretenda, para sua própria instrução, determinar
exatamente o valor das ações; e, o que é sumamente importante,
pode ela, neste último caso, esperar ser bem sucedida na tarefa de
determinar o valor das ações, tão bem quanto qualquer
filósofo; mais ainda, pode proceder com maior segurança do que
este, porque o filósofo, não dispondo de outros princípios
diferentes dos dela, pode deixar-se enredar facilmente por uma série
de considerações estranhas ao assunto, que o desviam do reto
caminho. Não seria, portanto, mais sensato, ater-se, nas questões
morais, ao juízo da razão comum, e não recorrer à
filosofia senão para expor, quando muito, o sistema da moralidade de
maneira mais completa e mais compreensiva, para apresentar as regras, que
lhe dizem respeito, de maneira mais cômoda para o uso (e mais ainda
para a discussão), nunca porém para privar a inteligência
humana, mesmo do ponto de vista prático, de sua ditosa simplicidade,
nem para fazer que ela enverede, com o auxílio da filosofia, por um
novo caminho de investigação e de instrução ?

Esplêndida coisa é a inocência; mas é para lamentar
que ela não saiba preservar-se e que se deixe seduzir com tanta facilidade.
Pelo que, "a sabedoria" – — que, aliás, consiste mais
na conduta do que no saber — precisa também da ciência,
não para dela tirar ensinamentos, senão para garantir a suas
prescrições, influência e estabilidade. O homem sente,
em seu foro íntimo, potente força de oposição
a todos os preceitos do dever que a razão lhe apresenta como altamente
dignos de respeito; e esta força é constituída por suas
necessidades e inclinações, cuja satisfação completa
se compendia naquilo a que dá o nome de felicidade. Ora, a razão
enuncia seus preceitos, sem condescender com as inclinações,
sem nunca ceder; por conseguinte, com uma espécie de desdém
e sem consideração de espécie alguma por aquelas pretensões
tão impetuosas e, por isso mesmo, aparentemente tão legítimas
(que não consentem em se deixar suprimir por nenhum preceito). Daqui
procede uma Dialética natural, ou seja, uma tendência para sofisticar
contra aquelas severas leis do dever e pôr em dúvida a validade
ou, ao menos, a pureza e o rigor das mesmas, bem como para tentar adaptá-las
o mais possível a nossos desejos e inclinações; por outras
palavras, para corrompê-las cm sua essência e destituí-las
de toda dignidade: coisa que a razão prática vulgar, não
pode, por forma alguma, aprovar.

Assim, a razão humana comum é impelida, não por necessidade
de especulação (necessidade que ela não sente, enquanto
se contenta cm ser apenas a sã razão), mas por motivos práticos,
a sair de sua esfera e a dar um. passo no campo de uma filosofia prática,
para recolher informações exalas e explicações
claras acerca da origem do seu princípio e da definição
precisa do mesmo, em oposição às máximas que estribam
nas necessidades e inclinações. Por este meio, espera ela poder
safar-se da dificuldade em presença de pretensões opostas e
não correr o risco de perder, em conseqüência dos equívocos
em que facilmente poderia incorrer, todos os genuínos princípios
morais.

Deste modo se desenvolve insensivelmente no uso prático da razão
comum, quando esta é cultivada, uma Dialética, que a constringe
a buscar auxílio na filosofia, tal como lhe acontece no uso teórico;
e, assim, tanto no primeiro caso como no segundo, ela não pode encontrar
repouso senão numa crítica completa da nossa razão;

SEGUNDA SECÇÃO

Passagem da filosofia moral popular à metafísica dos costumes

Se até aqui derivamos do uso comum de nossa razão prática
o conceito do dever, nem por isso devemos concluir que o tratamos como sendo
um conceito empírico. Ao invés, se voltarmos a atenção
para a experiência do comportamento positivo e negativo dos homens,
deparamos com contínuas e, segundo se nos afigura, justas queixas,
sobre nossa impossibilidade de aduzir exemplos certos, que nos permitam julgar
se houve a intenção de agir por puro dever. Muitas ações
podem ser conformes àquilo que o dever prescrevessem que por isso desapareça
a dúvida de que tenham sido realmente cumpridas por dever e, por conseguinte,
de que possuam valor moral. Eis por que houve, em todos os tempos, filósofos
que negaram absolutamente a realidade desta intenção às
ações humanas, e que as atribuíram todas a um amor-próprio
mais ou menos apurado. Não punham eles em dúvida a exatidão
do conceito de moralidade. Pelo contrário, lamentavam grandemente a
fraqueza e impureza da natureza humana, a qual, se por um lado é suficientemente
nobre para tomar como regra de conduta uma idéia tão digna de
respeito, por outro lado é demasiado fraca para a seguir; e que, além
disso, se utiliza da razão, que deveria ditar-lhe leis, apenas para
favorecer o interesse das inclinações, quer escolhendo uma entre
as demais, quer, ao sumo, conciliando-as entre si da melhor maneira possível.

De fato, é absolutamente impossível estabelecer, (407) mediante
a experiência, com plena certeza, um só caso, em que a máxima
de uma ação, aliás, conforme ao dever, estribe na Representação
do dever. Na verdade, acontece, por vezes, que, malgrado o mais escrupuloso
exame de nós próprios, não encontramos absolutamente
motivo que, fora do princípio moral do dever, tenha sido capaz de nos
incitar à prática desta ou daquela boa ação, deste
ou daquele grande sacrifício; mas daqui não se pode

com certeza concluir que um secreto impulso do amor-próprio, sob a
simples miragem da idéia do dever, não tenha sido a verdadeira
causa determinante da vontade. Na verdade, de bom grado nos lisonjeamos, atribuindo-nos
falsamente um princípio de determinação mais nobre; de
fato, porém, nunca podemos, nem mesmo mediante o mais rigoroso exame,
penetrar inteiramente em nossos mais secretos impulsos. Ora, quando se trata
de valor moral, o que importa não são as ações
exteriores que se vêem, mas os princípios internos da ação,
que se não vêem.

Àqueles que zombam de toda moral, como de quimera da imaginação
humana, que por presunção a si mesma se exalta, não se
pode prestar serviço mais conforme a seus desejos, do que conceder-lhes
que os conceitos do dever (bem como por comodidade se crê facilmente
serem todos os outros conceitos) devem ser derivados exclusivamente da experiência;
pois assim se lhes prepara um triunfo seguro. Por amor da humanidade, concedo
que a maior parte das nossas ações seja conforme ao dever; mas,
examinando de mais perto o móbil e fim delas, esbarramos por toda a
parte com o Eu querido, que termina sempre por levar a melhor. Sobre este
Eu, e não sobre o rígido comando do dever, que as mais das vezes
exigiria a abnegação de nós próprios, se fundamenta
o impulso donde tais ações promanam. Sem ser precisamente inimigo
da virtude, basta observar com sangue frio e não confundir o bem com
o vivo desejo de o ver realizado, para que, em certas circunstâncias
(principalmente em idade já avançada, e quando se tem a faculdade
de julgar, por um lado, amadurecida pela experiência e, por outro lado,
aguçada pela observação) duvidemos de que realmente se
possa encontrar no mundo alguma virtude verdadeira. Por conseguinte, para
nos preservar da falência total de nossas idéias sobre o dever,
bem como para manter na alma um respeito bem fundado da lei que o prescreve,
nenhuma outra coisa existe, a não ser a convicção clara
de que, mesmo quando nunca houvessem sido praticadas ações derivadas
de fontes tão puras, o que importa não é saber se este
ou aquele ato se verificou mas sim que a razão por si mesma, e independentemente
(408) de todos os fenômenos, ordena o que eleve acontecer; e que, conseqüentemente,
ações, de que o mundo até hoje nunca talvez tenha oferecido
exemplo, e cuja possibilidade de execução poderia ser posta
fortemente em dúvida por aquele mesmo que tudo fundamenta sobre a experiência,
são prescritas sem remissão alguma pela razão. Por exemplo,
a pura lealdade na amizade, embora até ao presente não tenha
existido nenhum amigo leal, e imposta a todo homem essencialmente,.pelo fato
de tal dever estar implicado..como dever em geral, anteriormente a toda experiência,
na idéia de uma razão que determina a vontade segundo princípios
a priori.

Acrescente-se que, a não ser que se conteste ao conceito moral toda
verdade e toda relação com qualquer objeto possível,
não se pode desconhecer que a lei moral possua um significado a tal
ponto extenso que deva ser válida não só para os homens,
mas para todos os seres racionais em geral, e isto não só debaixo
de condições contingentes e com exceções, mas
de maneira absolutamente necessária; assim sendo, manifesto que nenhuma
experiência pode levar à. conclusão da simples possibilidade
de tais leis apodícticas. Pois, com que direito poderemos converter
em objeto de respeito ilimitado, em prescrição universal para
toda natureza racional, o que [talvez não vale senão para as
condições contingentes da humanidade ? E como é que as
leis de determinação de nossa vontade deveriam ser tomadas como
leis de determinação da vontade do ser racional em geral e,
apenas nessa qualidade, como leis igualmente aplicáveis à nossa
própria vontade, se elas fossem puramente empíricas, e não
derivassem sua origem completamente a priori de uma razão pura, mais
pratica ?

Além disso, não se poderia prestar pior serviço à
moralidade, do que fazê-la derivar de exemplos. Porque todo exemplo,
que me seja proposto, deve primeiramente ser julgado segundo os princípios
da moralidade, para se poder saber se merece servir de exemplo original, isto
é, de modelo; mas não pode, por forma alguma, fornecer por si
só, e primariamente, o conceito de moralidade. Mesmo o Justo do Evangelho
deve ser primeiramente confrontado com o nosso ideal de perfeição
moral, para que possa ser reconhecido como tal; por isso, ele diz de si mesmo:
"Por que me chamais bom (a mim que vedes) ? Ninguém é bom
(o protótipo do bem) senão (409) Deus (a quem não vedes)".
Mas donde nos advém o conceito de Deus considerado como supremo bem
? Unicamente da idéia que a razão traça a priori da perdição
moral, e que ela liga indissoluvelmente ao conceito de uma vontade livre.
Em matéria moral não tem cabimento a imitação,
e os exemplos servem apenas de estímulo, isto é, põem
fora de dúvida a {possibilidade daquilo que a lei impõe, tornam
evidente aquilo que a lei prática exprime de modo mais geral; mas nunca
logram autorizar que ponhamos de parte o seu verdadeiro original, que reside
na razão, e que regulemos por eles o nosso procedimento.

Portanto, se não há nenhum autêntico princípio
supremo de moralidade, que não deva apoiar-se unicamente na razão
pura, independentemente de toda experiência, penso não ser sequer
necessário perguntar se vale a pena expor estes conceitos sob forma
universal (in abstracto). tais como existem a priori, juntamente com os princípios
que lhes dizem respeito, dado que o conhecimento propriamente dito deve distinguir-se
do conhecimento vulgar e denominar-se filosófico. Mas, em nossos dias,
talvez seja necessário pôr esta questão. Com efeito, se
se procedesse a uma votação para averiguar qual deva ser preferido,
se o conhecimento racional puro isento de todo elemento empírico, e
portanto a metafísica dos costumes, ou se a filosofia prática
popular, depressa se descobriria para que lado pende a balança.

De fato, é muito louvável este processo de descer aos conceitos
populares, contanto que primeiro nós tenhamos elevado aos princípios
da razão pura, de modo que o espírito quede plenamente satisfeito.
Proceder deste modo equivale a fundamentar a doutrina dos costumes sobre uma
metafísica, e, depois de esta ter sido firmada em base sólida,
a. torná-la acessível a todos, por meio da vulgarização.
Mas seria extremamente absurdo aquiescer com este processo de agir desde as
primeiras investigações, das quais depende a exatidão
dos princípios. Tal maneira de proceder jamais poderia pretender para
si o mérito extremamente raro de uma verdadeira vulgarização
filosófica, porque, de fato, não é difícil fazer-se
compreender do comum dos homens, quando para isso se renuncia a toda profundidade
de pensamento; mas redundaria em fastidiosa mescla de observações
a trouxe-mouxe amontoadas e de princípios de uma razão só
a meias raciocinante, na qual somente cérebros vazios se repastam,
porque, apesar de tudo, há aí alguma coisa de útil para
os bate-papos de todos os dias; mas os espíritos clarividentes só
encontram aí confusão, e insatisfeitos, sem saberem que partido
tomar, desviam a (410) atenção. Quanto aos filósofos,
que não se deixam iludir por aparências enganosas, esses não
desfrutam de grande aceitação, sempre que se propõem
suspender, por um tempo, a pretensa vulgarização, a fim de poderem
com direito tornar-se populares, só depois de haverem obtido conhecimentos
bem definidos.

Basta examinar ao de leve as obras de moral compostas em conformidade com
aquele gosto preferido, para nelas se encontrar ora a idéia do destino
peculiar da natureza humana (de quando em quando, aparece também a
idéia de uma natureza racional em geral), ora a perfeição,
ora a felicidade; aqui, o sentimento moral, ali, o temor de Deus; um pouco
disto e também um pouco daquilo, em maravilhosa confusão, sem
que ao espírito ocorra perguntar se é propriamente no conhecimento
da humana natureza (que, decerto, não pode provir senão da experiência)
que se devem procurar os princípios da moralidade. Se assim não
for, se estes princípios devem ser encontrados completamente a priori,
independentemente de toda matéria empírica, e só nos
puros conceitos da razão e em nenhuma outra parte, mesmo assim a ninguém
ocorre a idéia de isolar completamente esta investigação,
para considerá-la como pura filosofia prática (ou, se é
lícito empregar um nome tão suspeito), como Metafísica
(*) dos costumes, como nem a idéia de desenvolvê-la até
ser cabalmente perfeita e de exortar o público, ávido de vulgarização,
que contemporize até a empresa ser levada a bom termo.

(*) Do mesmo modo que se distingue a matemática pura da matemática
aplicada, e a lógica pura da lógica aplicada, também,
se quisermos, é possível distinguir a filosofia pura dos costumes
(Metafísica) da filosofia dos costumes aplicada (á natureza
humana). Toda esta terminologia nos mostra imediata- mente que os princípios
morais não devem ser fundados sobre as propriedades da natureza humana,
mas devem existir por si mesmos a priori;’e que de tais princípios
é que devem ser derivadas regras práticas válidas para
toda natureza racional, e portanto também para a natureza humana.

Ora, uma tal metafísica dos costumes completamente isolada, não
imiscuída de antropologia, nem de teologia, nem de física ou
de hiperfísica menos ainda de quaisquer qualidades ocultas (que se
poderiam denominar hipofísicas), não é apenas o indispensável
substrato de toda teoria dos deveres claramente definida, mas é igualmente
um desiderato da mais alta importância para o cumprimento efetivo de
suas prescrições. Com eleito, a representação
do dever, e em geral da lei moral, quando é pura, ou seja, não
mesclada de acréscimos estranhos de impulsos sensíveis, exerce
sobre o coração humano, por via da só razão (a
qual então, pela primeira vez, se dá conta de que pode ser prática
por si mesma) uma influência muito mais eficaz do que a de todos os
outros (411) impulsos (*) que se podem invocar no domínio da experiência,
de sorte que a razão, cônscia de sua dignidade, despreza esses
impulsos e pouco a pouco se torna capaz de os dominar. Ao invés, uma
doutrina moral bastarda e confusa, formada de impulsos derivados de sentimentos
e de inclinações, e ao mesmo tempo de conceitos da razão,
torna necessariamente o espírito hesitante entre motivos de ação
irredutíveis a qualquer princípio, e que só por acaso
podem guiar ao bem, mas muitas vezes também podem conduzir ao mal.

(*) Tenho uma carta do falecido Sulzer (8-1), na qual me pergunta por que
motivo as doutrinas da virtude, por mais convincentes que possam ser para
a razão, possuem tão pouca eficácia. Adiei a resposta,
para que esta pudesse sair completa. A resposta é só uma, a
saber: aqueles mesmos que ensinam tais doutrinas não reconduziram seus
princípios ao estado de pureza e, querendo procedei demasiado bem,
enquanto procuram principalmente motivos que incitem ao bem moral, a fim de
tornarem o remédio mais enérgico, o estragam. Consoante o mostra
a mais comezinha observação, se se apresentar um ato de probidade,
imune de iodo fim interessado neste mundo ou no outro, praticado por um Animo
corajoso no meio das maiores tentações, provocadas pela miséria
ou pelo atrativo de certas vantagens, ele deixa atrás de si e eclipsa
qualquer outro ato análogo, que também só em mínima
escala haja sido causado por um impulso estranho; ele eleva a alma e excita
o desejo de proceder do mesmo modo. Até mesmo crianças de meia
idade experimentam esta impressão, o penso que nunca os deveres lhes
deviam ser expostos senão desta maneira.

De quanto precede ressalta que todos; os conceitos morais têm sua sede
e origem completamente a priori na razão, na razão humana mais
comum tanto quanto na razão que se eleva ao alto grau de especulação;
que eles não podem ser abstraídos de nenhum conhecimento empírico,
e, por conseguinte puramente contingente que a pureza de sua origem é
justamente o que os torna dignos de servirem de princípios práticos
supremos; que quanto mais se lhes acrescenta de empírico, tanto mais
diminui sua verdadeira influência e o valor absoluto das ações;
que não é só exigência da mais premente necessidade,
do ponto de vista teórico, em que se trata tão-somente de especulação,
mas que é ainda da maior importância prática criar estes
conceitos e estas leis, tirando-os da razão pura, sem mescla de qualquer
espécie; e mais ainda, determinar o âmbito de todos estes conhecimentos
racionais práticos ou puros, isto é, determinar todo o poder
da razão pura prática, abstendo-se, contudo (na medida em que
a filosofia especulativa o permita e mesmo, por vezes, encontre necessário)
de fazer depender tais princípios da natureza especial da razão
humana; mas, antes já (412) que as leis morais devem ser válidas
para todo ser racional em geral, deduzindo-as do conceito universal de um
ser racional em geral. Deste modo, toda a moral, que em sua aplicação
à humanidade precisa da antropologia, será exposta, independentemente
desta última ciência, como filosofia pura, isto é, como
metafísica, e isto de modo completo (o que é fácil de
fazer neste gênero de conhecimento inteiramente separado). E convém
ter presente que, sem estar de posse desta metafísica, é trabalho
inútil, não digo o determinar exatamente por meio do juízo
especulativo o elemento moral do dever em tudo o que é conforme ao
dever; mas que é impossível, em tudo o que concerne puramente
ao uso comum e prático, e particularmente à instrução
moral, fundamentar a moralidade sobre seus verdadeiros princípios,
produzir, mediante ela, sentimentos morais puros e infundi-los nas almas,
para que daí redunde o maior bem no mundo.

Ora, para progredir neste trabalho, avançando por gradações
naturais, não simplesmente do juízo moral comum (aqui muito
apreciável) ao juízo filosófico, como já foi indicado,
mas de uma filosofia popular, que não vai mais além do que ela
pode alcançar as apalpadelas por meio de exemplos, até à
metafísica. (que não se deixa deter por nenhuma influência
empírica, e que, devendo medir todo o domínio do conhecimento
racional desta espécie, se ergue, em todo caso, até à
região das Idéias, onde os próprios exemplos nos abandonam),
importa seguir e expor claramente a potência prática da razão,
partindo das suas regras universais de determinação até
ao ponto em que dela brota o conceito do dever.

Todas as coisas na natureza operam segundo leis. Apenas um ser racional possui
a faculdade de agir segundo a representação das leis, isto é,
segundo princípios, ou, por outras palavras, só ele possui uma
vontade. E, uma vez que, para das leis derivar as ações, é
necessária a razão, a vontade outra coisa não é
senão a razão prática. Quando, num ser, a razão
determina infalivelmente a vontade, as ações deste ser, que
são Reconhecidas objetivamente necessárias, são necessárias
também subjetivamente; quer dizer que então a vontade é
uma faculdade de escolher somente aquilo que a razão, independentemente
de toda inclinação, reconhece como praticamente necessário,
isto é, como bom. Mas se a razão não determina suficientemente
por si só a vontade, se esta é ainda subordinada (413) a condições
subjetivas (ou a certos impulsos) que nem sempre concordam com as condições
objetivas; numa palavra, se a vontade não é cm si completamente
conforme à razão (como acontece realmente com os homens), então
as ações reconhecidas necessárias objetivamente são
subjetivamente contingentes, e a determinação de uma tal vontade
conformemente a leis objetivas é uma coação; por outras
palavras, a relação das leis objetivas com uma vontade não
completamente boa é representada como sendo a determinação
da vontade de um ser racional por meio de princípios da razão,
aos quais entanto aquela vontade, mercê de sua natureza, não
é| necessariamente dócil.

A representação de um princípio objetivo, na medida
em que coage a vontade, denomina-se mandamento (da razão), e a fórmula
do mandamento chama-se imperativo.

Todos os imperativos são expressos pelo verbo (dever e indicam, por
esse modo, a relação entre uma lei objetiva da razão
e uma vontade que, por sua constituição subjetiva, não
é necessariamente determinada por essa lei (uma coação)-
Declaram eles, que seria bom fazer tal coisa ou abster-se dela, mas declaram-no
a uma vontade que nem sempre faz uma coisa, porque lhe é apresentada
como boa para ser feita. Portanto, praticamente é bom o que determina
a vontade por meio de representações da razão, isto é,
não em virtude de causas subjetivas, mas objetivamente, quer dizer
por meio de princípios que são válidos para todo ser
racional enquanto tal. O bem prático é, pois, distinto do agradável,
isto é, do que exerce influxo sobre a vontade unicamente por meio da
sensação, por causas puramente subjetivas, válidas apenas
para a sensibilidade deste e daquele, e não como princípio da
razão, válido para todos (*).

Uma vontade perfeitamente boa estaria, pois, tão (414) sujeita ao
império de leis objetivas (leis do bem) quanto uma vontade imperfeita;
mas nem por isso poderia ser representada como coagida a ações
conformes à lei, porque, mercê de sua constituição
subjetiva, ela só pode ser determinada pela representação
do bem. Eis por que não há imperativo válido para a vontade
divina, e em geral para uma vontade santa; o dever não tem aqui cabimento,
porque o querer já por si é necessariamente concorde com a lei.
Por isso, os imperativos são apenas fórmulas que exprimem a
relação entre as leis objetivas do querer em geral e a imperfeição
subjetiva da vontade deste ou daquele ser racional, por exemplo, da vontade
humana.

.

(*) A dependência da faculdade apetitiva a respeito de sensações
denomina-se inclinação, e, por conseguinte, esta é sempre
prova de uma necessidade. A dependência de uma vontade, capaz de ser
determinada de modo contingente pelos princípios da razão, chama-se
interesse. O interesse encontra-se, pois, tão-somente numa vontade
dependente, a qual não é por si mesma sempre conforme à
razão; na vontade divina é impossível conceber qualquer
interesse. Mas também a vontade humana pode tomar interesse por uma
coisa, sem por isso agir por interesse. A primeira expressão significa
o interesse prático pela ação; a segunda, o interesse
patológico pelo objeto da ação. A primeira indica apenas
a dependência da vontade a respeito dos princípios da razão
em si mesma; a segunda, a dependência da vontade a respeito dos princípios
da razão posta ao serviço da inclinação, no qual
caso, a razão ministra somente a regra prática para poder satisfazer
as necessidades da inclinação. No primeiro caso, interessa-me
a ação; no segundo, interessa-me o objeto da ação
(na medida em que me é agradável). Na Primeira Secção,
verificamos que, numa ação executada, por dever, importa considerar,
não o interesse pelo objeto, mas unicamente o Interesse pela própria
ação e seu princípio racional (a lei).

Ora, todos os Imperativos preceituam ou hipoteticamente ou categoricamente.
Os imperativos hipotéticos representam a necessidade de uma ação
possível, como meio para alcançar alguma outra coisa que se
pretende (ou que, pelo menos, é possível que se pretenda). O
imperativo categórico seria aquele que representa uma ação
como necessária por si mesma, sem relação com nenhum
outro escopo, como objetivamente necessária.

.

Dado que toda lei prática representa uma ação possível
como boa é, conseguintemente, como necessária para um sujeito
capaz de ser determinado praticamente pela razão, todos os imperativos
são fórmulas, pelas quais é determinada a ação
que, segundo os princípios de uma vontade de qualquer modo boa, é
necessária. Ora, quando a ação não é boa
senão como meio de obter alguma outra coisa , o imperativo é
hipotético; mas, quando a ação é representada
como boa em si, e portanto como necessária numa vontade conforme em
si mesma a razão considerada como princípio do querer, então
o imperativo é categórico.

O imperativo indica, pois, qual ação, para mim possível.
I seria boa, e representa a regra prática em relação
com uma vontade que não executa imediatamente urna ação
porque é boa, em parte porque o sujeito não sabe sempre se ela
é boa, e, em parte, porque, mesmo que o soubesse, suas máximas
poderiam, não obstante, ser contrárias aos ‘princípios
objetivos de uma razão prática.

(415) O imperativo hipotético significa, portanto, apenas, que a ação
é boa com relação a um escopo possível ou real.
No primeiro caso, é um princípio problemàticamente prático;
no segundo caso, é um princípio assertOricamEnte prático.
Pelo contrário, o imperativo categórico, que declara a ação
como objetivamente necessária por si mesma, sem relação
com algum fim, isto é, sem qualquer outro fim, tem o valor de princípio
apodícticamente prático.

Podemos imaginar que tudo quanto é possível apenas pelas forças
de algum ser racional é também um escopo possível para
qualquer vontade; por isso, os princípios da ação, enquanto
esta é representada como necessária para a aquisição
de algum fim possível, susceptível de ser por ela realizado,
são, de fato, infinitos em número- Todas as ciências têm
uma parte prática, constante de problemas que supõem que qualquer
fim é possível para nós, e de imperativos que indicam
como tais fins podem ser alcançados. Estes imperativos podem, por isso,
chamar-se em geral imperativos da habilidade. Não se trata, neste caso,
de saber se o escopo é racional e bom, mas só de saber o que
se deve fazer para o alcançar. As prescrições que um
médico segue para curar radicalmente o seu enfermo, e as do envenenador
para o matar seguramente, têm igual valor, na medida em que umas e outras
servem para realizar perfeitamente o escopo que se tem em vista.

Como nos primeiros anos da juventude ignoramos as surpresas que a vida nos
reserva no porvir, os pais empenham-se principalmente em que os filhos aprendam
quantidade de coisas diversas, e cuidam em que eles se tornem hábeis
no uso dos meios necessários para alcançarem toda sorte de fins
desejáveis. São eles incapazes de saber se algum desses fins
virá a ser, mais tarde, realmente desejado por seus filhos, mas ê
possível que isso aconteça um dia; e esta preocupação
é tão grave, que eles comumente se descuidam de formar e corrigir
o juízo dos filhos acerca do valor das coisas que estes poderiam propor-se
como fins.

Há todavia um escopo, que se pode supor real para todos os seres racionais
(na medida em que os imperativos se aplicam a estes seres considerados como
dependentes); portanto, um escopo que eles não só podem propor-se,
mas do qual se pode certamente admitir que todos o propõem a si efetivamente,
em virtude de uma necessidade natural, e este escopo é a felicidade.
O imperativo categórico, que apresenta a necessidade prática
da ação como meio para alcançar a felicidade, é
assertório. Não podemos apresentá-lo simplesmente tomo
indispensável à realização de um fim incerto,
puramente possível, mas de um fim que se pode seguramente e a priori
supor em todos os homens, porque faz parte da natureza (416) deles. Pode dar-se
o nome de prudência (*), com a condição de tomar este
vocábulo em seu mais estrito significado! à habilidade em escolher
os meios que nos proporcionam maior bem-estar. Sendo assim, o imperativo que
se refere à escolha dos meios capazes de assegurar nossa felicidade
pessoal, isto é, a prescrição da prudência, é
sempre hipotético; a ação é ordenada, não
de modo absoluto, mas só como meio de alcançar outro escopo.

(*) A palavra prudência é tomada em duplo sentido: no primeiro
sentido, designa a prudência nas relações que lemos com
o mundo; no segundo sentido, a prudência pessoal. A primeira indica
a habilidade que um homem possui de aluar sobre outros, para deles se servir
em benefício de seus fins. A segunda é a sagacidade em fazer
convergir estes fins para sua vantagem pessoal e estável.A esta última
se reduz propriamente o valor da primeira; e daquele que é prudente
no primeiro sentido, não o sendo no segundo, com melhor razão
se diria (pie é engenhoso e astuto, mas, em suma, imprudente.

Enfim, há um imperativo que, sem assentar como condição
fundamental a obtenção de um escopo, ordena imediatamente este
procedimento. Tal imperativo é categórico. Diz respeito, não
à matéria da ação, nem às conseqüências
que dela possam redundar, mas à forma e ao princípio donde ela
resulta; donde, o que no ato há de essencialmente bom consiste na intenção,
sejam quais forem as conseqüências. A este imperativo pode dar-se
o nome de imperativo da moralidade.

O ato de querer segundo estas três espécies de princípios
é ainda claramente especificado pela diferença que existe no
gênero de coação por eles exercida sobre a vontade. Para
tornar sensível esta diferença, penso não haver maneira
mais apropriada de os designar em sua ordem do que dizendo: tais princípios
são ou regras da habilidade, ou conselhos da prudência, ou ordenações
(leis) da moralidade. De fato, só a lei implica em si o conceito de
necessidade incondicionada, verdadeiramente objetiva e, conseqüentemente,
válida para todos, e as ordenações são leis a
que é mister obedecer, isto é, devem ser seguidas, mesmo quando
contrariam a inclinação. Os conselhos implicam, sem dúvida,
uma necessidade, mas uma necessidade só válida sob uma condição
subjetiva contingente, consoante este ou aquele homem considera esta ou aquela
coisa como parte de sua felicidade; ao invés, o imperativo categórico
não é limitado por nenhuma condição, e como é
absolutamente, embora praticamente, necessário, pode propriamente ser
denominado prescrição. Aos imperativos da primeira espécie
podemos ainda dar o nome de técnicos (417) (referentes à arte);
aos da segunda espécie, o de pragmáticos (*) (referentes ao
bem-estar); aos da terceira espécie, o de morais (referentes ao livre
comportamento em geral, isto é, aos costumes).

(*) Parece-me que o significado próprio da palavra pragmático
pode ser exatamente determinado deste modo. Com efeito, chamam-se pragmáticas
as sanções que não derivam propriamente do direito dos
Estados como leis necessárias, mas sim da solicitude pelo bem-estar
geral. Uma história è composta pragmaticamente, quando nos torna
prudentes, isto é, quando ensina à sociedade hodierna os meios
de cuidarem de seus interesses melhor ou, pelo menos, tão bem como
a sociedade de outros tempos.

Apresenta-se aqui a questão: como são possíveis todos
estes imperativos ? Esta questão visa a indagar a maneira de imaginar,
não o cumprimento da ação que o imperativo ordena, mas
tão-somente a coação da vontade que o imperativo exprime,
na tarefa que propõe. Como seja possível um imperativo da habilidade,
é coisa que decerto não requer peculiar explicação.
Quem quer o fim, quer também (na medida em que a razão tem influxo
decisivo sobre suas ações) os meios indispensàvelmente
necessários de o alcançar, e que estão em seu poder.
Esta proposição é, no que respeita ao querer, analítica,
porque o ato de querer um objeto, efeito de minha atividade, supõe
já a minha causalidade, como causalidade de uma causa agente, isto
é, o uso dos meios; e o imperativo extrai, do conceito da volição
de um fim, a idéia das ações necessárias para
chegar a esse fim (sem dúvida, para determinar os meios aptos para
alcançar um escopo prefixado, são absolutamente exigidas proposições
sintéticas, mas estas referem-se ao princípio de realização,
não do ato da vontade, mas do objeto). Que para dividir, segundo um
princípio certo, uma linha reta em duas partes iguais, eu deva traçar
desde as extremidades desta linha dois arcos de círculo, a matemática
o ensina unicamente por meio de proposições sintéticas;
mas que, sabendo que por este processo só se obtém o objeto
proposto, eu, querendo plenamente o efeito, deva querer igualmente a ação
por ele exigida, é uma proposição analítica; pois
que, representar-me uma coisa como um efeito que eu posso produzir de certo
modo, e representar-me a mim mesmo, em relação a esse efeito,
como agindo do mesmo modo, é, de fato, uma e a mesma coisa.

Os imperativos da prudência concordariam plenamente com os da habilidade,
e seriam igualmente analíticos, sei fosse fácil dar um conceito
determinado da felicidade. Pois tanto aqui como ali se poderia dizer que quem
quer o fim quer também necessariamente segundo a razão) os (418)
meios indispensáveis para o obter, que estejam ao seu alcance. Mas,
por desgraça, o conceito da felicidade é conceito tão
indeterminado que, não obstante o desejo de todo homem de ser feliz,
ninguém todavia consegue dizer em termos precisos e coerentes o que
verdadeiramente deseja e quer. A razão disso é que os elementos,
que integram o conceito da felicidade, são todos quantos empíricos,
isto é, devem ser extraídos da experiência, e, não
obstante, a idéia da felicidade implica a idéia de um todo absoluto,
um máximo de bem-estar no meu estado presente e em toda minha condição
futura. Ora, é impossível que um ser, embora imensamente perspicaz
e, ao mesmo tempo, potentíssimo, mas finito, faça uma idéia
determinada daquilo que verdadeiramente quer. Quer ele riqueza ? Que de preocupações,
invejas, ciladas não vai atrair sobre si! Quer maior soma de conhecimentos
e de ilustração ? Talvez isso lhe aumente o poder de penetração
e a perspicácia do olhar, lhe revele de maneira ainda mais terrível
os males que por ora lhe estão ocultos e que não podem ser evitados
ou incremente a exigência de seus desejos que muito a custo consegue
satisfazer. Quer vida longa ? E quem lhe afiança que ela não
se converteria em longo sofrimento ? Quer, ao menos, a saúde ? Mas
quantas vezes a indisposição do corpo impediu excessos, em que
uma perfeita saúde o teria feito cair ! E assim por diante. Em suma,
ele é incapaz de determinar com plena certeza segundo qualquer princípio,
o que o tornará verdadeiramente feliz, pois para tal precisaria de
ser onisciente. Portanto, para ser feliz, não é possível
agir segundo princípios determinados, mas apenas segundo conselhos
empíricos, que recomendam, por exemplo, um regime dietético,
a economia, a delicadeza, a reserva, etc, coisas estas que, de acordo com
os ensinamentos da experiência, contribuem, em tese, grandemente, para
o bem-estar. Donde se segue que os imperativos da prudência, rigorosamente
falando, não podem ordenar coisa alguma, isto é, não
podem apresentar ações de maneira objetiva como praticamente
necessárias.

É mister considerá-los, antes, como conselhos (consilia), do
que como preceitos (praecepta) da razão. O problema de determinar,
de maneira certa e geral, quais as ações capazes de favorecer
a felicidade de um ser racional, é problema, de fato, insolúvel,
e, por conseguinte, relativamente a ele, não há imperativo capaz
de ordenar, no sentido rigoroso da palavra, que se faça aquilo que
dá a felicidade, porque a felicidade é um ideal, não
da razão, mas da imaginação, fundado unicamente (419)
sobre princípios empíricos, dos quais em vão se espera
que possam determinar uma ação, um modo de agir, por meio do
qual se alcance a totalidade de uma série de conseqüências
verdadeiramente infinita. Este imperativo da prudência, mesmo admitindo
que os meios de chegar à felicidade se possam fixar com certeza, seria,
em todo caso, apenas uma proposição prática analítica,
pois se distingue do imperativo da habilidade só porque, para este
último, o fim é simplesmente possível, ao passo que para
aquele é dado efetivamente; mas, como ambos prescrevem unicamente os
meios para alcançar aquilo que se supõe que queremos como fim,
o imperativo, que ordena àquele, que quer o fim, que queira também
os meios, é, nos dois casos, analítico. Acerca de um imperativo
deste gênero não subsiste, pois, dificuldade.

Pelo contrário, a possibilidade do imperativo da moralidade é,
sem dúvida, a única questão que precisa de ser solucionada,
porque tal imperativo não é absolutamente hipotético,
e, por isso, sua necessidade, objetivamente representada, não pode
apoiar-se em nenhuma suposição, como sucede nos imperativos
hipotéticos. Só que não se deve aqui perder nunca de
vista, que não é possível decidir por meio de algum exemplo,
e portanto empiricamente, se, na realidade, há algum imperativo deste
gênero; convém não esquecer que todos os imperativos,
que parecem ser categóricos, podem ser imperativos hipotéticos
disfarçados. Quando, por exemplo, se diz: "não deves fazer
falsas promessas", e se supõe que a necessidade desta proibição
não é simples conselho que se deva seguir, a fim de evitar algum
mal, não é conselho que se reduza mais ou menos a dizer: "não
deves fazer falsas promessas, para não perderes o crédito, no
caso em que se viesse a apurar a verdade"; mas, antes se assevere que
uma ação deste gênero deve ser considerada em si mesma
como má, de modo que o imperativo, que a proíbe, seja categórico,
todavia não se pode afirmar com certeza, em nenhum exemplo, que a vontade
não é determinada por nenhum outro impulso, embora o pareça,
mas unicamente pela lei. Com efeito, é sempre possível que o
temor da vergonha, e acaso também uma vaga apreensão de outros
perigos exerça influência secreta sobre a vontade. Como provar,
mediante a experiência, a não-existência de uma causa,
desde que essa experiência não ensina mais do que nossa impossibilidade
de distinguir aquela causa ? Neste caso, o pretenso imperativo moral, que,
como tal, parece categórico e incondicionado, não seria, na
realidade, senão um preceito pragmático, que faz convergir nossa
atenção sobre o nosso interesse e unicamente nos ensina a tomá-lo
em consideração.

Devemos, pois, examinar inteiramente a priori a possibilidade de um imperativo
categórico, visto aqui não nos ser concedida a vantagem de encontrar
este imperativo (420) realizado na experiência, de sorte que não
tenhamos de examinar a possibilidade d ele senão para o explicar, e
não para o estabelecer. Entretanto, de momento, importa preliminarmente
admitir que só o imperativo categórico tem o valor de lei prática,
ao passo que os demais imperativos em conjunto podem bem ser denominados princípios,
mas não leis da vontade. Com efeito, o que é simplesmente necessário
fazer para alcançar um fim almejado, pode em si ser considerado como
contingente (109), nós poderemos sempre ser libertos das prescrições,
renunciando ao fim; ao invés, o preceito incondicionado não
entrega, por forma alguma, ao beneplácito da vontade a faculdade de
optar pelo contrário: portanto só ele implica em si aquela necessidade
que reclamamos para a lei.

Em segundo lugar, no que concerne a este imperativo categórico, ou
a esta lei da moralidade, a causa da dificuldade (de apreender a sua possibilidade)
é também assaz considerável. Este imperativo é
uma proposição prática sintética (*) a priori,
e visto haver tamanha dificuldade no conhecimento teórico para compreender
a possibilidade de proposições deste gênero, é
fácil presumir que no conhecimento prático a dificuldade não
será menor.

Para resolver esta questão, importa, antes de mais nada, verificar,
se não seria possível que o conceito simples de imperativo categórico
fornecesse também a fórmula do mesmo, fórmula que contivesse
a proposição que só pode ser um imperativo categórico;
pois a questão de saber como seja possível um tal mandamento
absoluto, mesmo quando lhe conhecemos a fórmula, exigirá ainda,
de nossa parte, um esforço peculiar e difícil, do qual trataremos
na derradeira Secção desta obra.

(*) Eu, sem pressupor condições derivadas de qualquer inclinação,
ligo o ato a vontade; ligo-o a priori, portanto necessariamente (embora só
objetivamente, ou seja, tomando como ponto de partida a idéia de uma
razão dotada de plenos poderes sobre todas as causas subjetivas de
determinação). Esta é, pois, uma proposição
prática, que não deriva analiticamente o fato de querer uma
ação de um outro querer já pressuposto (porque não
temos uma vontade tão perfeita), mas que o liga imediatamente ao conceito
da vontade de um ser racional, como algo que nele não está contido.

Quando imagino um imperativo hipotético em geral, não sei com
antecedência o que ele conterá, enquanto não me for dada
a condição do mesmo. Mas, se imagino um imperativo categórico,
sei imediatamente o seu conteúdo. Não contendo o imperativo,
além da lei, senão a necessidade de a máxima (*) se conformar
à lei, e não contendo esta (421) lei nenhuma condição
a que esteja sujeita, nada mais resta que a universalidade de uma lei em geral,
à que a máxima da ação deve ser conforme, e é
só esta conformidade que o imperativo apresenta propriamente como necessária.

O imperativo categórico é, pois, um só e precisamente
este: Procede apenas .segundo aquela máxima, em virtude da qual podes
querer ao mesmo tempo que ela se tome em lei universal.

(*) A máxima é o princípio subjetivo da ação,
e imporia distingui-la do principio objetivo, isto é, da lei prática.
A máxima contém a regra prática que determina a razão
segundo as condições do sujeito (em muitos casos, segundo a
sua ignorância, ou também segundo suas inclinações,
e, deste modo, é o principio fundamental, segundo o qual o sujeito
age; a lei, pelo contrário é o princípio objetivo válido
para todo ser racional, o princípio segundo o qual ele deve agir, ou
seja, um imperativo.

Ora, se deste só imperativo podem ser derivados, como de seu princípio,
todos os imperativos do dever, embora deixamos de lado a questão de
saber se aquilo, a que se dá o nome de dever, não é,
no fundo, um conceito oco, poderemos todavia, ao menos, mostrar o que entendemos
por isso e o que este conceito pretende significar.

Uma vez que a universalidade da lei, segundo a qual se produzem efeitos,
constitui o que propriamente se chama natureza no sentido mais geral (quanto
à forma), isto é, constitui a existência dos objetos,
enquanto determinada por leis universais, o imperativo universal do dever
pode ainda ser expresso nos termos seguintes: Procede como se a máxima
de tua ação devesse ser erigida, por tua vontade, em lei universal

DA NATUREZA.

Enumeremos agora alguns deveres, de acordo com a divisão ordinária
dos deveres em deveres para conosco e deveres para com os outros, em deveres
perfeitos e deveres imperfeitos. (*)

(*) Convém observar que me reservo tratar da divisão dos deveres
numa futura Metafísica cios costumes; pelo que, a divisão agora
proposta obedece apenas a um critério de comodidade (para classificação
dos exemplos que apresento). Aliás, por "dever perfeito"
emendo aqui o dever que não admite exceções em favor
da inclinarão; assim"~~sendo, admito não só deveres
perfeitos exteriores, mas também deveres perfeitos interiores, o que
está em contradição com a terminologia empregada nas
escolas; não é porém meu intento justificar aqui.

Cita concepção pois pouco se me dá que ela seja admitida
ou não (114).

1. Um homem, por uma série de males que o levaram ao (422) desespero,
sente grande nojo de viver, muito embora mantenha o suficiente domínio
de si para se perguntar se o atentar contra a própria vida não
constitui uma violação do dever para consigo mesmo. Procura
então averiguar se a máxima de sua ação pode converter-se
em lei universal da natureza. Sua máxima seria esta: "por amor
de mim mesmo, estabeleço o princípio de poder abreviar minha
existência, se vir que, prolongando-a, tenho mais males que temer do
que satisfações que esperar dela". A questão agora
está apenas em saber se tal princípio do amor de si pode ser
erigido em lei universal da natureza. Mas imediatamente se vê que uma
natureza, cuja lei fosse destruir a vida, em virtude justamente daquele sentimento
que tem por função peculiar estimular a conservação
da vida, estaria em contradição consigo mesma e não poderia
subsistir como natureza, Conseguintemente, esta máxima não pode,
por forma alguma, ocupar o posto de lei universal da natureza, e por tal motivo
é inteiramente contrária ao princípio supremo de todo
dever.

2. Outro homem é impelido pela necessidade a pedir dinheiro emprestado.
Sabe que não poderá restituí-lo, mas sabe igualmente
que nada lhe será emprestado, se não tomar o sério compromisso
de satisfazer a dívida dentro de determinado prazo. Sente vontade de
fazer essa promessa, mas tem ainda bastante consciência para a si mesmo
perguntar se não será proibido e contrário ao .dever
tentar safar-se da necessidade por meio de tal expediente. Supondo que tome
esta decisão, a máxima de sua ação significaria
isto: quando penso estar falto de dinheiro, peço emprestado, prometendo
restituí-lo, embora saiba que nunca o farei. Ora, é bem possível
que este princípio do amor de si ou da utilidade própria se
prenda com todo o meu bem-estar futuro, mas, de momento, a questão
consiste em saber se isso é justo. Transformo, pois, a exigência
do amor de si em lei universal, e ponho a questão seguinte: que sucederia,
se minha máxima se convertesse em lei universal ? Ora, imediatamente
vejo que ela nunca poderia valer como lei universal da natureza e estar de
acordo consigo mesma, mas que deveria necessariamente contradizer-se. Admitir
como lei universal que todo homem, que julgue encontrar-se em necessidade,
possa prometer o que lhe vem à mente, com o propósito de não
cumprir, equivaleria a tornar impossível toda promessa, e inatingível
o fim que com ela se pretende alcançar, pois ninguém acreditaria
mais naquilo que se lhe promete e todos se ririam de semelhantes declarações,
como de fingimentos vãos.

3. Um terceiro sente-se dotado de aptidões que, devidamente cultivadas,
poderiam fazer dele um homem útil sob múltiplos aspectos. Mas,
encontrando-se bem instalado(423) na vida, prefere entregar-se a uma existência
de prazer do que esforçar-se por ampliar e aperfeiçoar suas
boas disposições naturais. Contudo, ele pergunta a si mesmo
se. a sua máxima "descurar os dons naturais", além
de concordar com sua tendência para o prazer, concorda também
com o que se chama o dever. Ora, ele vê bem que, sem dúvida,
uma natureza que tivesse uma lei universal deste gênero poderia subsistir,
mesmo que o homem (como o indígena insular do Mar do Sul) deixasse
enferrujar seus talentos e não pensasse senão em aplicar sua
vida ao ócio, ao prazer, à propagação da espécie,
numa palavra, ao gozo; mas ele não pode absolutamente querer que isto
se converta em lei universal da natureza, ou que seja inato em nós
como instinto natural. Como ser racional, ele quer necessariamente que todas
as suas faculdades atinjam seu pleno desenvolvimento, visto que lhe são
de utilidade e lhe foram dadas para toda espécie de fins possíveis.

4. Enfim, um quarto homem, a quem tudo corre pelo melhor, vendo que outros
seus semelhantes (a quem poderia ajudar) se encontram a braços com
graves dificuldades, raciocina da seguinte forma: E a mim que se me dá
? Cada qual seja feliz, consoante ao céu apraz ou de acordo com suas
próprias posses; não lhe subtrairei a mínima porção
do que ele possui, nem sequer tenho inveja dele; só que não
me empenharei em contribuir de qualquer maneira para o seu bem-estar ou para
auxiliá-lo em sua necessidade. Se tal modo de pensar se convertesse
em lei universal da natureza, a espécie humana continuaria sem dúvida
subsistindo, e, na verdade, em melhores condições do que quando
alguém fala constantemente de simpatia e de benevolência, e se
afadiga em praticar ocasionalmente estas virtudes, mas, logo em seguida, desde
que se lhe oferece ocasião de ludibriar, trafica o direito dos homens
ou os prejudica de qualquer outra maneira. Embora seja possível existir
uma lei universal da natureza conforme àquela máxima, é
todavia impossível querer que tal princípio seja universalmente
válido como lei da natureza. Com efeito, uma vontade, que tomasse tal
decisão, a si mesma se contradiria, uma vez que, apesar de tudo, podem
apresentar-se casos, em que se tenha necessidade do amor e da simpatia dos
outros, e então, em virtude desta lei oriunda de nossa vontade, ficaríamos
privados de toda esperança de obter a assistência que desejaríamos.

Estes são alguns dos inúmeros deveres reais, ou ao menos por
nós tidos como tais, cuja dedução, a partir do único
(424) princípio por nós aduzido, salta manifestamente aos olhos.
É mister que possamos querer que uma máxima de nossa ação
se torne em lei universal: este o cânone de apreciação
moral de nossa ação em geral. Ações há
de tal natureza, que a máxima das mesmas nem sequer pode ser concebida
sem contradição como lei universal da natureza; estamos portanto
muito longe de querer desejar que ela deva tornar-se tal. Noutras, e certo,
não se encontra essa possibilidade interna, sendo todavia impossível
querer que a máxima delas obtenha a universalidade de uma lei da natureza,
porque tal vontade a si mesma se contradiria. Facilmente se vê que a
máxima das primeiras é contrária ao dever estrito ou
rígido (rigoroso), ao passo que a máxima das segundas só
é contrária ao dever em sentido lato (meritório). Assim
sendo, todos os deveres, no que tange ao gênero de obrigação
que impõem (não ao objeto das ações que determinam)
aparecem plenamente, graças a estes exemplos, como sendo redutíveis
ao princípio único por nós emitido.

Examinando agora atentamente o que em nós ocorre todas as vezes que
transgredimos um dever, verificamos que não queremos realmente que
a nossa máxima se converta em lei universal, pois isso é impossível;
pelo contrário, a máxima oposta deve continuar sendo universalmente
uma. lei; só que tomamos a liberdade de (só por esta vez) abrir
uma exceção em nosso favor, a fim de satisfazermos nossa inclinação.
Por conseguinte, se considerarmos tudo debaixo de um único e mesmo
ponto de vista, isto é, do ponto de vista da razão, encontraremos
uma contradição em nossa própria vontade, pois queremos
que certo princípio seja necessário objetivamente como lei universal,
e que, no entanto, não tenha valor universal subjetivamente, mas admita
exceções. Mas, se considerarmos nossa ação do
ponto de vista de uma vontade plenamente conforme à razão, e,
em seguida, do ponto de vista de uma vontade influenciada pela inclinação,
então não encontramos realmente nenhuma contradição,
senão, antes, uma resistência da inclinação às
prescrições da razão (antagonismus), pela qual a universalidade
do princípio (universalitas) é convertida em simples generalidade
(generalitas), de sorte que o princípio prático da razão
e a máxima deverão encontrar-se a meio caminho. Ora, conquanto
este compromisso não possa ser justificado, quando julgamos imparcialmente,
contudo ele mostra que reconhecemos realmente a validade do imperativo categórico
e que (não obstante todo o respeito que temos pelo mesmo) nos permitimos
algumas exceções, ao que parece, sem importância, e que
nos são impostas por uma espécie de coação.

Pensamos deste modo ter conseguido, ao menos, (425) provar que, se o dever
é um conceito que tem um significado e que contem uma legislação
real para nossas ações, esta. legislação deve
ser expressa apenas em imperativos categóricos, e de maneira nenhuma
em imperativos hipotéticos; ao mesmo tempo, e isto já é
importante, expusemos claramente e numa fórmula que o determina em
todas as suas aplicações, o conteúdo do imperativo categórico,
que deve encerrar o princípio de todos os deveres (se é que
há deveres em geral). Más não logramos ainda demonstrar
a priori que um tal imperativo existe realmente, que existe uma lei prática
que comanda absolutamente por si mesma, sem qualquer móbil que a solicite,
e que a obediência a esta lei é o dever.

Para chegarmos a tal resultado, é da mais alta importância ter
sempre presente esta advertência: não se pense, de maneira nenhuma,
em querer derivar da constituição peculiar da natureza humana
a realidade deste princípio. Com efeito, sendo o dever uma necessidade
prática incondicionada da ação, deve ser válido
para todos os seres racionais (os únicos, aos quais se pode aplicar
absolutamente um imperativo), e só por isso ele é também
uma lei para todas as vontades humanas. Pelo contrário, tudo o que
deriva da disposição natural própria da humanidade, de
certos sentimentos e de certas tendências, e até mesmo, se fosse
possível, tudo o que deriva de uma direção especial,
peculiar à razão humana, e não devesse necessariamente
valer para a vontade de todo ser racional, tudo isso pode bem fornecer uma
máxima para nosso uso, nunca porém uma lei: um princípio
subjetivo, que somos talvez levados a seguir por inclinação
e tendência, não porém um princípio objetivo, segundo
o qual estivéssemos obrigados a agir, mesmo de encontro a todas as
tendências, inclinações e disposições de
nossa natureza. Tão certo isto é, que a sublimidade e a dignidade
intrínseca da prescrição expressa num dever tanto mais
avultam, quanto menos os motivos subjetivos o favorecem, ou, antes, quanto
mais lhe são contrários, sem que por isso a coação
imposta pela lei .seja enfraquecida nalguma coisa ou privada de alguma parcela
de sua validade. Como se vê, a filosofia encontra-se aqui colocada em
situação crítica: precisa ela de conquistar uma posição
firme e estável, sem todavia lobrigar, nem no céu nem sobre
a terra, ponto de apoio a que se aterre. Necessita de demonstrar aqui sua
pureza, arvorando-se em guardiã de suas próprias leis, em vez
de se apresentar como arauto daquelas que lhe são sugeridas por um
senso inato ou por não sei que natureza tutelar. Sem dúvida,
estas, em seu conjunto, valem mais do (426) que nada; nunca porém podem
subministrar princípios como os ditados pela razão, aos quais
a origem plena e inteiramente a priori afiança esta autoridade imperativa,
não esperando coisa alguma da inclinação do homem, mas
tudo da supremacia da lei e do respeito que lhe é devido, de contrário
condenando o homem a desprezar-se e a sentir horror de si mesmo.

Portanto, todo elemento empírico não só é impróprio
para servir de auxiliar ao princípio da moralidade, mas é também
prejudicial, no mais alto grau, à pureza dos costumes, nos quais o
valor próprio, incomparavelmente superior a tudo,de uma vontade absolutamente
boa consiste precisamente em que o princípio da ação
é independente de toda influência exercida por princípios
contingentes, os únicos que a experiência pode fornecer. Contra
estas fraquezas, ou melhor contra este baixo modo de pensar, que induz a procurar
o princípio moral no meio de impulsos e leis empíricas, todas
as advertências que fizermos são poucas, porque a razão,
quando cansada, de boamente repousa sobre esta almofada e, deixando-se embalar
em seu sonho de doces ilusões (as quais, todavia, a fazem abraçar,
em vez de Juno, uma nuvem), substitui a moral por um monstro bastardo, formado
pela reunião artificial de membros heterogêneos, monstro que
se assemelha a tudo quanto se quiser, exceto à virtude, para aquele
que uma vez a tenha encarado em sua verdadeira forma (*).

A questão, que se põe, é, pois a seguinte: será
uma lei necessária para todos os seres racionais, julgar sempre suas
ações segundo máximas tais, que possam eles mesmos querer
erigi-las em leis universais ? Se tal lei existe, ela deve, antes de tudo,
estar ligada (inteiramente a priori) ao conceito da vontade de um ser racional
em geral. Mas, para descobrir esta conexão, é mister, por mais
que isso custe, dar um passo à frente, em direção à
Metafísica, embora num de seus domínios, distinto da filosofia
especulativa: numa (427) palavra, em direção à Metafísica
dos costumes. Numa filosofia prática, onde se trata de estabelecer,
não princípios do que acontece, mas leis daquilo que deve acontecer,
mesmo que isso nunca venha a acontecer, ou seja, das leis objetivas práticas,
não há, de fato, necessidade de investigar os motivos pelos
quais uma coisa agrada ou desagrada, ou em que é que o prazer da simples
sensação se distingue do gosto, ou se o gênero difere
de uma satisfação universal da razão; nem devemos perguntar-nos
qual a base em que repousa o sentimento do prazer e da pena, e como deste
sentimento se originam os desejos e as inclinações, e como de
tais desejos e inclinações derivam, mediante a cooperação
da razão, as máximas: tudo isto faz parte de uma ciência
empírica da alma, que deveria constituir a segunda parte de uma doutrina
da natureza, se se considera esta como filosofia da natureza, enquanto fundada
sobre leis empíricas. Mas aqui trata-se da lei objetiva prática,
conseqüentemente da relação de uma vontade consigo mesma,
enquanto determinada a agir unicamente pela razão; no qual caso, tudo
quanto se refere de algum modo ao que é empírico desaparece
por si mesmo, uma vez que, se a razãosó por si mesma determina
o comportamento (e é justamente disto que devemos agora determinar
a possibilidade), ela o deve fazer necessariamente a priori.

(*) Encarar a virtude em sua verdadeira forma, não é mais do
que expor a moralidade isenta de toda mescla de elementos sensíveis
e despojada de todo falso ornamento que lhe provenha do atrativo da recompensa
ou do amor de si próprio. Quanto ela obscurece tudo que parece ser
sedutor para as inclinações, pode cada qual facilmente verificá-lo,
servindo-se de sua razão, desde que esta não seja de todo privada
da faculdade de abstrair.

A vontade é concebida como faculdade de se determinar a si mesma a
agir conformemente à representação de certas leis. E
tal faculdade só se pode encontrar num ser racional. Ora, o que serve
à vontade de princípio subjetivo de determinação
é o fim, e, se este é dado unicamente pela razão, deve
valer igualmente para todos os seres racionais. O que, ao invés, contém
simplesmente o princípio da possibilidade da ação, de
que o efeito é o fim, chama-se o meio. O princípio subjetivo
é o impulso, o princípio objetivo do querer é o motivo;
daqui a diferença entre os fins subjetivos que se apoiam sobre impulsos
e os. fins objetivos que se referem a motivos válidos para todos os
seres racionais. Os princípios práticos são formais,
quando abstraem de todos os fins subjetivos; são, pelo contrário,
materiais, quando supõem fins subjetivos, e conseqüentemente certos
impulsos. Os fins que um ser racional se propõe a seu bel-prazer, como
efeitos de sua ação (fins materiais), são todos apenas
relativos, pois somente a relação deles com a natureza especial
da faculdade apetitiva do sujeito lhes confere o valor que possuem. Por tal
motivo, estes fins não podem subministrar princípios universais
para todos os seres racionais, como nem princípios válidos e
necessários para cada vontade, ou, por outras palavras, não
(428) podem subministrar leis práticas. Pelo que todos estes fins relativos
determinam apenas imperativos hipotéticos.

Supondo, porém, que existe alguma coisa, cuja existência cm
si mesma possua valor absoluto, alguma coisa que, como fim em si mesmo, possa
ser um princípio de leis determinadas, então nisso e só
nisso se poderá encontrar o princípio de um imperativo categórico
possível, isto é, de uma lei prática.

Agora digo: o homem, e em geral todo ser racional, existe como fim em si,
não apenas como meio, do qual esta ou aquela vontade possa dispor a
seu talento; mas, em todos os seus atos, tanto nos que se referem a ele próprio,
como nos que se referem a outros seres racionais, ele deve sempre ser considerado
ao mesmo tempo como fim. Todos os objetos das inclinações têm
somente valor condicional, pois que, se as inclinações, e as
necessidades que delas derivam, não existissem, o objeto delas seria
destituído de valor. Mas as próprias inclinações,
como fontes das necessidades, possuem tão reduzido valor absoluto que
as torne desejáveis por si mesmas, que o desejo universal de todos
os seres racionais deveria consistir, antes, em se poderem libertar completamente
delas. Pelo que é sempre condicional o valor dos objetos que podemos
conseguir por nossa atividade. Os seres, cuja existência não
depende precisamente de nossa vontade, mas da natureza, quando são
seres desprovidos de razão, só possuem valor relativo, valor
de meios e por isso se chamam coisas. Ao invés, os seres racionais
são chamados pessoas, porque a natureza deles os designa já
como fins em si mesmos, isto é, como alguma coisa que não pode
ser usada unicamente como meio, alguma coisa que, conseqüentemente, põe
um limite, em certo sentido, a todo livre arbítrio (e que é
objeto de respeito). Portanto, os seres racionais não são fins
simplesmente subjetivos, cuja existência, como efeito de nossa atividade,
tem valor para nós; são fins objetivos, isto é, coisas
cuja existência é um fim em si mesma, e justamente um fim tal
que não pode ser substituído por nenhum outro, e ao serviço
do qual os fins subjetivos deveriam pôr-se simplesmente como meios,
visto como sem ele nada se pode encontrar dotado de valor absoluto. Mas, se
todo valor fosse condicional, e portanto contingente, seria absolutamente
impossível encontrar para a razão um princípio prático
supremo.

Conseqüentemente, se deve existir um princípio prático
supremo e, no referente à vontade humana, um imperativo categórico,
é preciso que este seja tal que derive da representação
daquilo que, por ser fim cm si mesmo, necessariamente é um fim para
todos os homens, um princípio objetivo (429) da vontade; por esta forma,
poderá servir de lei prática universal. O fundamento deste princípio
é o seguinte: A natureza racional existe como fim em si mesma. O homem
concebe deste modo necessariamente sua própria existência; e,
neste sentido, tal princípio é igualmente um princípio
subjetivo da atividade humana. Mas todos os outros seres racionais concebem
de igual maneira sua existência, em conseqüência do mesmo
princípio racional que vale também para mim(*); por conseguinte,
este princípio é, ao mesmo tempo, um princípio objetivo,
do qual, como de um fundamento prático supremo, devem poder derivar-se
todas as leis da vontade. O imperativo prático será, pois, o
seguinte: Procede de maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa
como na pessoa de todos os outros, sempre ao mesmo tempo como fim, e nunca
como puro meio. Vejamos se esta fórmula é realizável.
Limitemo-nos aos exemplos acima mencionados:

(*) Esta proposição, apresento-a como postulado, As razões
disso serão dadas na última secção.

Em primeiro lugar, segundo o conceito do dever necessário para consigo
mesmo, aquele que cogita de se suicidar, perguntar-se-á se o seu ato
pode coexistir simultaneamente com a idéia da humanidade como fim em
si mesma. Se, para escapar a uma situação difícil, ele
se destrói a si próprio, serve-se de uma pessoa, unicamente
como de meio destinado a conservar ate ao fim da vida uma situação
suportável. Mas o homem não é uma coisa, não e,
por conseguinte, objeto para ser tratado unicamente como meio, senão
que, pelo contrário, deve ser considerado sempre, em todos os seus
atos, como fim em si. Portanto, não posso dispor do homem em minha
pessoa, de maneira absoluta, quer para o mutilar, quer para o danificar ou
matar. (Deixo aqui de lado uma determinação mais exata deste
princípio, como aliás conviria fazê-lo, para evitar qualquer
equívoco, no caso em que, por exemplo, se tratasse de deixar que me
amputassem os membros para me salvar, ou de arriscar a vida para a conservar;
tal determinação compete à moral propriamente dita).

Em segundo lugar, no que concerne ao dever necessário ou dever estrito
para com outrem, aquele que tem a intenção de fazer aos outros
uma falsa promessa, vê imediatamente que pretende servir-se de um outro
homem simplesmente como de meio, sem que este último contenha, ao mesmo
tempo, o fim em si. Com efeito, o homem que eu, mediante aquela (430) promessa,
pretendo fazer servir a meus propósitos, não pode, por forma
alguma, aderir ao meu modo de proceder com ele e, deste modo, conter em si
mesmo o fim desta ação. Mais claramente salta à vista
a violação do princípio da humanidade em outros homens,
quando os exemplos são tomados de atentados contra a liberdade ou propriedade
alheia. Vê-se então claramente como aquele que usurpa os direitos
dos outros homens tem a intenção de servir-se da pessoa de outrem,

unicamente como de meio, sem considerar que os outros, como seres racionais,
devem ser sempre considerados ao mesmo tempo como fins, ou seja, apenas como
seres que devem poder conter também em si mesmos o fim desta mesma
ação(*).

(*) Não se pense que a fórmula comum "quod tibi non vis
fieri", etc., possa servir de regra ou de princípio. Como ela
deriva unicamente do princípio por nós assente, embora com algumas
restrições, não pode ser lei universal porque não
contém o princípio dos deveres para consigo mesmo, como nem
o dos deveres de caridade para com outrem (visto que muitos consentiriam de
bom grado em que os outros não fossem obrigados a lhes fazer bem, contanto
que eles possam ser dispensados de fazer bem a outrem), nem enfim o princípio
dos deveres estritos dos homem entre si, porque, segundo este princípio,
o criminoso poderia argumentar contra o juiz que o pune.

Em terceiro lugar, no que se refere ao dever contingente (meritório)
para consigo mesmo, não basta que a ação não esteja
em contradição com a humanidade em nossa pessoa, como fim em
si; é mister, além disso, que esteja em acordo com ela. Ora,
há na humanidade disposições para uma perfeição
mais elevada, que fazem parte dos fins que a natureza tem em mira relativamente
à humanidade em nossa pessoa. Descurar tais disposições
poderia, em rigor, ser compatível com a conservação da
humanidade como fim em si, mas não com a consecução deste
fim.

Em quarto lugar, no concernente ao dever meritório para com outrem,
o fim natural, comum a todos os homens, é a sua própria felicidade.
Ora, certamente que a humanidade poderia subsistir, mesmo quando ninguém
contribuísse em coisa alguma para a felicidade alheia, abstendo-se
entanto de prejudicar os outros deliberadamente; isso seria tão-somente
um acordo negativo, não positivo, com a humanidade como fim em si,
se cada qual não procurasse outrossim favorecer, na medida de suas
posses, os fins dos outros. Pois, sendo o sujeito fim em si mesmo, é
mister que os seus fins sejam também, tanto quanto possível,
meus fins, se quero que a idéia de tal finalidade produza em mim toda
eficácia.

Este princípio, segundo o qual a humanidade e toda natureza racional
em geral são consideradas como fins (431) em si (condição
suprema limitadora da liberdade de ação de todos os homens),
não deriva da experiência; primeiramente, por causa de sua universalidade,
porque se estende a todos os seres racionais em geral, relativamente aos quais
nenhuma experiência é bastante para determinar qualquer coisa;
em segundo lugar, porque, neste princípio, a humanidade é representada,
não como fim puramente humano (subjetivo), isto é, como objeto
que, na realidade, por nós mesmos tomamos como sendo um fim, mas como
um fim objetivo, o qual, quaisquer que sejam os fins que nos proponhamos,
deve constituir, na qualidade de lei, a condição suprema restritiva
de todos os fins subjetivos. Ora, tal princípio deriva necessariamente
da razão pura, É que o princípio de toda legislação
prática reside objetivamente na regra e na forma da universalidade
que (segundo o primeiro princípio) a torna capaz de ser uma lei (que,
em rigor, se poderia denominar lei da natureza), e subjetivamente reside no
fim. Mas o sujeito de todos os fins (de acordo com o segundo princípio)
é todo ser racional, como fim em si; donde resulta o terceiro princípio
prático da vontade, como condição suprema de seu acordo
com a razão prática universal, o mesmo é dizer, a idéia
da vontade de todo ser racional considerada como vontade promulgadora de uma
legislação universal.

Segundo este princípio, serão rejeitadas todas as máximas
que não possam estar de acordo com a legislação universal
própria da vontade. A vontade não é, pois, exclusivamente
subordinada à lei; mas é-lhe subordinada de modo que deva ser
considerada também como promulgadora da lei, e justamente por tal motivo
deve ser subordinada à lei (da qual se pode considerar autora).

Os imperativos, segundo as fórmulas por nós acima apresentadas,
tanto a que exige que as ações sejam conformes a leis universais
como a uma ordem da natureza, quanto aquela segundo a qual os seres racionais
têm a prerrogativa universal de fins em si, excluíam, sem dúvida,
de sua autoridade soberana toda mescla de qualquer interesse a título
de móbil, precisamente por serem representados como categóricos;
mas não eram aceitos como categóricos, senão porque precisávamos
de admiti-los como tais, se quiséssemos explicar o conceito do dever.
Mas que haja proposições práticas que ordenam categoricamente,
é uma verdade que não podia demonstrar-se desde o princípio,
como nem é possível que tal demonstração possa
ser feita agora nesta Secção. Entanto, uma coisa não
podia deixar de se fazer: a saber, que a renúncia a todo interesse
no ato de querer por dever, considerado como característica que distingue
o imperativo categórico do imperativo hipotético, fosse indicada
ao mesmo tempo no próprio imperativo, por meio de alguma determinação
que lhe fosse inerente, (432) e é justamente o que acontece nesta terceira
fórmula do princípio, isto é, na idéia da vontade
de todo ser racional considerada como vontade promulgadora de urna legislação
universal.

De fato, se concebemos uma tal vontade, veremos que, enquanto existe a possibilidade
de uma vontade sujeita a leis estar ainda ligada a estas leis por um interesse,
todavia é impossível que uma vontade, que seja suprema legisladora,
dependa neste sentido de um interesse qualquer; pois uma vontade assim dependente
precisaria de outra lei, que adstringisse o interesse de seu amor-próprio
à condição de ser capaz de valer como lei universal.
Pelo que, o princípio, segundo o qual toda vontade humana aparece como
vontade que, mediante suas máximas, institui uma legislação
universal (*), se ostentasse consigo a prova de sua exatidão, conviria
perfeitamente ao imperativo categórico, uma vez que, precisamente por
causa da idéia de uma legislação universal, ele não
se apóia cm nenhum interesse e, por isso mesmo, de todos os imperativos
possíveis, só ele pode ser incondicionado; ou melhor ainda,
invertendo a proposição: se há um imperativo categórico
(isto é, uma lei válida para a vontade de todo ser racional),
ele pode apenas ordenar que procedemos sempre segundo a máxima de sua
vontade, isto é, de uma vontade tal que possa, ao mesmo tempo, considerar-se
como objeto, enquanto legisladora universal. Só então o princípio
prático é incondicionado, do mesmo modo que o imperativo a que
a vontade obedece, visto não haver nenhum interesse, sobre o qual possa
fundamentar-se.

(*) Posso aqui ser dispensado de aduzir exemplos para esclarecimento deste
princípio, visto como os anteriormente aduzidos para explicar o imperativo
categórico e suas íórmulas podem aqui ser empregados
para o mesmo um.

Se considerarmos os esforços envidados até ao presente para
descobrir o princípio da moral, não devemos estranhar que todos
necessariamente tenham falhado. Via-se que o homem estava ligado por seus
deveres a leis, mas não se refletia que ele só está sujeito
à sua própria legislação, e portanto a uma legislação
universal, e que não está obrigado a agir senão conformemente
à sua vontade própria, mas à sua vontade que, por destino
da natureza, institui uma legislação universal. Pois, se o imaginássemos
sujeito a uma lei (qualquer que (433) ela fosse), esta implicaria necessariamente
cm si um interesse sob forma de atração ou de obrigação,
e, nesse caso, não derivaria, enquanto lei, da sua vontade, e esta
vontade seria coagida a agir, em certo modo, conformemente à lei, mas
por algum outro motivo. Ora, graças a esta conseqüência
absolutamente inevitável, todo esforço para encontrar um princípio
supremo do dever era irremediavelmente perdido. Nunca se descobria o dever,
mas sim a necessidade de agir por um certo interesse. Que este interesse fosse
pessoal ou estranho, o imperativo apresentava então sempre necessariamente
um caráter condicional, e não podia valer como prescrição
moral. Chamarei, pois, a este princípio, princípio da autonomia
da vontade, em oposição a qualquer outro princípio, que,
por isso, qualifico de heteronímia.

O conceito, em virtude do qual todo ser racional deve considerar-se como
fundador de uma legislação universal por meio de todas as máximas
de sua vontade, de sorte que possa julgar-se a si mesmo e a suas ações
sob este ponto de vista, conduz-nos a uma idéia muito fecunda que com
ele se prende, a saber, à idéia de um reino dos fins.

Pela palavra reino entendo a união sistemática de diversos
seres racionais por meio de leis comuns. E como as leis determinam os fins
quanto ao seu valor universal, se se abstrai das diferenças pessoais
existentes entre os seres racionais e também do conteúdo de
seus fins particulares, poder-se-á conceber um conjunto de todos os
fins (tanto dos seres racionais como fins em si, como dos fins próprios
que cada qual pode propor-se), um todo que forme uma união sistemática,
ou seja, um reino dos fins, possível segundo os princípios precedentemente
enunciados.

Os seres racionais estão todos sujeitos à lei, em virtude da
qual cada um deles nunca deve tratar-se a si e aos outros como puros meios,
mas sempre e simultaneamente como fins em si. Daqui brota uma união
sistemática de seres racionais por meio de leis objetivas comuns, ou
seja, um reino o qual atendendo a que tais leis têm precisamente por
escopo a relação mútua de todos estes seres, como fins
e como meios, pode ser denominado reino dos fins (o que, na verdade, é
apenas um ideal).

Mas um ser racional pertence, na qualidade de membro, ao reino dos fins,
pois que, muito embora ele aí promulgue leis universais, no entanto
está sujeito a essas leis. Pertence-lhe, na qualidade de chefe, enquanto,
como legislador, não está sujeito a nenhuma vontade alheia.

O ser racional deve sempre considerar-se como (434) legislador num reino
dos fins possível pela liberdade da vontade, quer ele nesse reino exista
como membro quer como chefe. Não pode todavia reivindicar a categoria
de chefe unicamente pelas máximas de sua vontade; só o poderá
fazer, se for um ser completamente independente, sem necessidades de qualquer
espécie, e dotado de um poder de ação, sem restrições,
adequado à sua vontade.

A moralidade consiste, pois, na relação de todas as ações
com a legislação, a qual e só ela, possibilita um reino
dos fins. Esta legislação deve porém encontrar-se em
todo ser racional, e deve poder emanar de sua vontade, cujo princípio
será o seguinte: agir somente segundo uma máxima tal que possa
ser erigida em lei universal; tal, por conseguinte, que a vontade possa, mercê
de sua máxima, considerar-se como promulgadora, ao mesmo tempo, de
uma legislação universal. Mas, se as máximas não
são já por sua natureza necessariamente conformes a este princípio
objetivo dos seres racionais, considerados como autores de uma legislação
universal, a necessidade de agir segundo aquele princípio chama-se
coação prática, isto é, dever. No reino dos fins,
o dever não compete ao chefe, mas sim a cada membro, e a todos em igual
medida.

A necessidade prática de agir segundo este princípio, ou seja,
o dever, não repousa, de fato, sobre sentimentos, impulsos e inclinações,
mas unicamente sobre a relação mútua dos seres racionais,
na qual relação a vontade de todo ser racional, deve sempre
ser considerada ao mesmo tempo como legisladora, pois de outro modo não
poderia ser concebida como fim cm si. A razão refere assim toda máxima
da vontade, concebida como legisladora universal, a toda outra vontade, e
também a toda ação que o homem ponha para consigo: procede
assim, não tendo em vista qualquer outro motivo prático ou vantagem
futura, mas levada pela idéia da dignidade de um ser racional que não
obedece a nenhuma outra lei que não seja, ao mesmo tempo, instituída
por ele próprio.

No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Uma coisa que
tem um preço pode ser substituída por qualquer outra coisa equivalente;
pelo contrário, o que está acima de todo preço e, por
conseguinte, o que não admite equivalente, é o que tem uma dignidade.

Tudo o que se refere às inclinações e necessidades gerais
do homem tem um preço de mercadoria; o que, embora não pressuponha
uma necessidade, é conforme a um certo gosto, (435) isto é,
à satisfação que nos advém de um simples jogo,
mesmo destituído de finalidade, de nossas faculdades intelectuais,
tem um preço de sentimento; mas o que constitui a só condição
capaz de fazer que alguma coisa seja um fim em si, isso não tem apenas
simples valor relativo, isto é, um preço, mas sim um valor intrínseco,
uma dignidade.

Ora, a moralidade é a única condição capaz de
fazer que um ser racional seja um fim em si, pois só mediante ela é
possível ser um membro legislador no reino dos fins. Pelo que, a moralidade,
bem como a humanidade, enquanto capaz de moralidade, são as únicas
coisas que possuem dignidade. Habilidade e diligencia no trabalho têm
um preço de mercadoria; talento, imaginação e bom humor,
têm um preço de sentimento; pelo contrário, fidelidade
às promessas, benevolência baseada em princípios (não
a benevolência instintiva), têm um valor intrínseco. A
natureza e a arte não contêm nada que possa substituir estas
qualidades, se por acaso vierem a faltar, porque o valor delas não
provém dos efeitos delas resultantes, nem das vantagens ou utilidade
que trazem, mas reside nas intenções, isto é, nas máximas
da vontade, sempre dispostas a se traduzirem em atos, embora as conseqüências
destes não sejam vantajosas. Estas ações não precisam
também de ser recomendadas por qualquer disposição ou
inclinação subjetiva, que no-las faça encarar com favor
e prazer imediatos; não precisam de nenhuma tendência e inclinação,
que nos incite imediatamente a cumpri-las; elas mostram a vontade que as executa
como objeto de respeito imediato; e só a razão é requerida
para as impor à vontade, e não para as obter desta por meio
de lisonjas, o que, aliás, em matéria de deveres, seria uma
contradição. Esta estimação leva-nos a reconhecer
o valor de tal maneira de pensar como uma dignidade, e coloca-a infinitamente
acima de todo preço, com o qual não pode ser nem avaliada nem
confrontada, sem que de algum modo se lese sua santidade.

Por conseguinte, que coisa autoriza a intenção moralmente boa
ou a virtude a ter tão altas pretensões ? Não é
senão a faculdade que ela confere ao ser racional de participar na
legislação universal e que, por essa forma, o torna capaz de
ser membro de um possível reino dos fins; mas a isto já ele
estava destinado por sua própria natureza como fim em si, e, precisamente
por isso, como legislador no reino dos fins, como livre em relação
a todas as leis da natureza, não obedecendo senão às
que ele próprio promulga, àquelas que conferem a suas máximas
o caráter de legislação universal (à qual ele
(436) ao mesmo tempo se submete). De fato, nenhuma coisa possui valor, a não
ser o que lhe é assinado pela lei. Mas a própria legislação,
que determina todos os valores, deve ter, justamente por isso, uma dignidade,
isto é, um valor incondicionado, incomparável, para o qual só
o termo respeito fornece a expressão conveniente da estima que todo
ser racional lhe deve tributar. A autonomia é, pois, o princípio
da dignidade da natureza humana, bem como de toda natureza racional.

As três maneiras, por nós indicadas, de representar o princípio
da moralidade não são, no fundo, senão outras tantas
fórmulas de uma só e mesma lei, fórmulas cada uma da
quais contém cm si, e por si mesma, as outras duas. Entretanto, existe
entre elas uma diferença que, a falar verdade, é antes subjetivamente
que objetivamente prática, isto é, tal que serve para aproximar
(segundo uma certa analogia) a idéia da razão e a intuição
e, por meio desta, o sentimento. Todas as máximas possuem:

1. uma forma, que consiste na universalidade; no qual caso, a fórmula
do imperativo moral é a seguinte: as máximas devem ser escolhidas,
como se devessem valer como leis universais da natureza;

2. uma matéria, ou seja, um fim; e eis então o enunciado da
fórmula: o ser racional, sendo por sua natureza um, fim, e portanto
um fim em si mesmo, deve constituir para toda máxima uma condição,
que sirva de limitar todo fim puramente relativo e arbitrário;

3. uma determinação completa de todas as máximas por
meio desta nova fórmula, a saber: que todas as máximas, oriundas
de nossa própria legislação, devem concorrer para um
reino possível dos fins como para um reino da natureza (*). O progresso
aqui realiza-se de algum modo por meio das categorias, indo da unidade da
forma da vontade (da universalidade da mesma) à pluralidade da matéria
(dos objetos, isto é, dos fins), e daqui à totalidade ou integralidade
dos sistemas dos mesmos fins. Mas, tratando-se de emitir um juízo moral,
é preferível proceder sempre segundo o método m.ais rigoroso.
e tomar por princípio a fórmula universal do imperativo (437)
categórico: Procede segundo a máxima que possa ao mesmo tempo
erigir-se em lei universal. Contudo, se ao mesmo tempo se pretende facultar
à lei moral o acesso à alma, importa fazer passar a mesma ação
pelos três conceitos indicados e aproximá-la, tanto quanto possível,
da intuição.

(*) A teleologia considera a natureza como um reino dos fins; a moral considera
um reino possível dos fins como um reino da natureza. Ali, o reino
dos fins ó uma idéia teórica, destinada a explicar aquilo
que 6 dado. Aqui, é uma idéia prática, que serve para
cumprir o que não foi dado, mas que. pode tornar-se real pelo nosso
modo de agir, s isso de acordo com essa mesma idéia.

Podemos agora terminar por onde começamos, a saber, pelo conceito
de uma vontade incondicionalmente boa. É absolutamente boa a vontade
que não pode ser má, portanto aquela vontade, cuja máxima,
quando convertida em lei universal, não pode contra dizer-se a si mesma.
Portanto, sua lei suprema é o princípio seguinte: procede sempre
segundo uma máxima tal, que possas querer ao mesmo tempo que ela seja
arvorada em lei universal. Esta é a única condição,
que faz que uma vontade nunca possa estar em contradição consigo
mesma; e um tal imperativo é categórico. Uma vez que o caráter
que a vontade possui de poder valer como lei universal para ações
possíveis apresenta analogia com a conexão universal da existência
das coisas segundo leis universais, que é o elemento formal da natureza
em geral, o imperativo categórico pode ainda ser expresso da maneira
seguinte: Procede segundo máximas tais que possam ao mesmo tempo tomar-se
a si mesmas por objeto como leis universais da natureza. Portanto, fica assim
estabelecida a fórmula de uma vontade absolutamente boa.

A natureza racional distingue-se de todas as outras, pelo fato de se propor
a si mesma um fim. Este fim seria a matéria de toda boa vontade. Mas,
assim como na idéia de uma vontade absolutamente boa, sem condições
restritivas (qual pode ser a aquisição deste ou daquele fim),
é mister abstrair de todo fim a obter (o qual não poderia tornar
boa uma. vontade senão relativamente), como é mister que o fim
seja concebido aqui, não como fim a realizar, senão como fim
existente por si, portanto que seja concebido de maneira puramente negativa,
isto é, como fim contra o qual nunca se deve agir, que nunca deve ser
considerado como simples meio, mas sempre e ao mesmo tempo como fim em todo
ato de querer. Ora, tal fim não pode ser senão o próprio
sujeito de todos os fins possíveis, porque este é, ao mesmo
tempo, o sujeito de toda vontade absolutamente boa possível; vontade
esta que não pode, sem contradição, ser proposta a algum
outro objeto. O princípio: procede para com todo ser racional (para
contigo e para com os outros) de modo que ele tenha, na tua (438) máxima,
o valor de fim em si, é, em suma, idêntico ao princípio:
procede segundo uma máxima tal que contenha ao mesmo tempo em si a
capacidade de valer universalmente para todo ser racional. Com efeito, dizer
que no uso dos meios, empregados em vista de um fim, devo impor à minha
máxima a condição limitativa de valer universalmente
como lei para todo sujeito, equivale a dizer isto: que como fundamento básico
de todas as máximas das ações se deve assentar que o
sujeito dos fins, ou seja, o próprio ser racional nunca deve ser tratado
como simples meio, mas sim como condição limitativa suprema
no uso de todos os meios, o mesmo é dizer que deve sempre ser tratado
como fim.

Ora, daqui segue-se indiscutivelmente que todo ser racional, como fim em
si, deve poder, relativamente a todas as leis, a que ele possa estar sujeito,
considerar-se ao mesmo tempo como legislador universal, pois é precisamente
esta capacidade de suas máximas para constituir uma legislação
universal que o distingue como fim em si; segue-se, além disso, que
a sua dignidade (prerrogativa), superior a todos os puros seres da natureza,
implica que ele deve considerar suas máximas sempre do seu próprio
ponto de vista, que é, ao mesmo tempo, o ponto de vista de todo ser
racional considerado como legislador (por isso também tais seres são
chamados pessoas). Deste modo se torna possível um mundo de seres racionais
(mundus intelligibilis) considerado como um reino dos fins, e isto mercê
da legislação própria de todas as pessoas como membros.
Pelo que, todo ser racional deve agir como se ele fosse sempre, por suas máximas,
um membro legislador no reino universal dos fins. O princípio formal
destas máximas é: Procede como se tua máxima devesse
servir ao mesmo tempo de lei universal (para todos os seres racionais). Um
reino dos fins não é possível senão por analogia
como um reino da natureza; mas o primeiro não se constitui senão
segundo máximas, isto é, segundo regras que a nós mesmos
nos impomos, ao passo que o segundo se constitui apenas segundo leis de causas
eficientes sujeitas a coação exterior. Não obstante isto,
dá-se igualmente o nome de reino da natureza ao conjunto da natureza,
considerado embora como máquina, na medida em que se relaciona com
seres racionais considerados como seus fins. Ora, tal reino dos fins seria
efetivamente realizado por meio de máximas, a norma das quais o imperativo
categórico prescreve a todos os seres racionais, como a condição
de elas serem, universalmente seguidas. Mas, conquanto o ser racional não
possa esperar que todos os outros sigam fielmente esta máxima, embora
ele a observe pontualmente, nem que o reino da natureza e sua constituição
teleológica concorram com ele, como com um membro digno de fazer parte
da mesma, para realizar um (439) reino dos fins por si mesmo possível,
ou, por outras palavras, favoreçam sua aspiração à
felicidade, todavia esta lei: Procede segundo as máximas de um membro
que institui uma legislação universal para um reino dos fins
puramente possível, mantém toda sua eficácia, porque
ordena de maneira categórica. E nisto justamente consiste o paradoxo
de que só a dignidade dá humanidade como natureza racional,
independentemente de qualquer fim ou vantagem a alcançar, e portanto
só o respeito por uma simples idéia, deva servir de prescrição
inflexível para a vontade, e que esta independência da máxima,
relativamente a todo móbil, constitua precisamente sua sublimidade,
e torne todo sujeito racional digno de ser membro legislador no reino dos
fins; porque, de outro modo, ele deveria ser representado tão-somente
como sujeito à lei natural de suas necessidades. Embora também
o reino da natureza, do mesmo modo que o reino dos fins fossem concebidos
como reunidos sob um chefe supremo, de sorte que o segundo destes reinos não
ficasse sendo apenas uma pura idéia, mas adquirisse verdadeira realidade,
essa idéia lucraria decerto uma vantagem resultante do acréscimo
de um forte impulso, nunca porém um acréscimo de seu valor intrínseco;
pois, não obstante isso, seria necessário representar sempre
esse legislador, único e limitado, como árbitro do valor de
seres racionais que julga em conformidade com a conduta desinteressada que
lhes é prescrita somente por esta idéia. A essência das
coisas não se modifica em conseqüência de suas relações
externas, e aquilo que, abstraindo de tais relações, basta para
constituir por si o valor absoluto do homem, é, além disso,
a medida, segundo a qual ele deve ser julgado por qualquer outro, até
mesmo pelo Ser supremo. A moralidade é, pois, a relação
das ações com a autonomia da vontade, isto é, com a legislação
universal que as máximas da vontade devem tornar possível- A
ação, capaz de subsistir com a autonomia da vontade, é
permitida; a que não concorda com ela, é proibida. A vontade,
cujas máximas concordam necessariamente com as leis da autonomia, é
uma vontade santa, isto é, absolutamente boa. A dependência de
uma vontade, não absolutamente boa, a respeito dos princípios
da autonomia (a coação moral) é a obrigação.
A obrigação não pode, pois, referir-se por forma alguma
a iam ente santo. A necessidade objetiva de um ato, em virtude da obrigação,
é o dever.

Por tudo quanto sumariamente fica exposto, pode facilmente explicar-se por
que motivo acontece que, embora sob o conceito do dever imaginemos uma submissão
à lei, (440) todavia nos representamos, ao mesmo tempo, uma certa sublimidade
e uma dignidade, como inerentes à pessoa cumpridora de todos os seus
deveres. Com efeito, ela não é sublime enquanto sujeita à
lei moral, mas sim enquanto, relativamente a esta lei, ela é ao mesmo
tempo legisladora, e só por isso lhe é subordinada. Também
mostramos acima como nem o temor, nem a inclinação, mas somente
o respeito da lei é o único móbil capaz de conferir valor
moral à ação. Nossa própria vontade, supondo que
não age senão sob a condição de uma legislação
universal tornada possível por suas máximas, esta vontade ideal,
que pode ser a nossa, é o objeto próprio do respeito; e a dignidade
da humanidade consiste precisamente na aptidão que ela possui para
estatuir leis universais, embora com a condição de simultaneamente
estar sujeita a esta legislação.

A autonomia da vontade como princípio supremo da moralidade

A autonomia da vontade é a propriedade que a vontade possui de ser
lei para si mesma (independentemente da natureza dos objetos do querer). O
princípio da autonomia é pois: escolher sempre de modo tal que
as máximas de nossa escolha estejam compreendidas, ao mesmo tempo,
como leis universais, no ato de querer. Que esta regra prática seja
um imperativo, isto é, que a vontade de todo ser racional lhe esteja
necessariamente ligada como a uma condição, é coisa que
não pode ser demonstrada pela pura análise dos conceitos implicados
na vontade, porque isso é uma proposição sintética;
seria mister ultrapassar o conhecimento dos objetos e entrar numa crítica
do sujeito, isto é, da razão pura prática; de fato, esta
proposição sintética que prescreve apodicticamente, deve
poder ser conhecida inteiramente a priori; contudo, tal tema mio pertence
a esta Secção do livro. Mas que o princípio em questão
da autonomia seja o único princípio da moralidade, explica-se
muito bem por meio de simples análise do conceito de moralidade. Pois,
dessa maneira, verifica-.se que o princípio da moralidade deve ser
um imperativo categórico, e que este não prescreve nem mais
nem menos do que a própria autonomia.

A heteronímia da vontade como origem de todos os princípios ilegítimos da moralidade

Quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, noutro lugar
que não na aptidão de suas máximas para instituir uma
legislação universal que dela proceda; quando, por conseguinte,
ultrapassando-se, busca esta lei na propriedade de algum de seus objetos,
o resultado disso é sempre uma heteronímia. Neste caso, a vontade
não dá a si mesma a lei; é o objeto que lha dá,
mercê de sua relação com a vontade. Esta relação,
quer se apóie sobre a inclinação quer sobre as representações
da razão), não logra possibilitar senão imperativos hipotéticos:
devo fazer esta coisa, porque quero alguma outra coisa. Pelo contrário,
o imperativo moral, por conseguinte categórico, diz: devo proceder
deste ou daquele modo, embora não queira nenhuma outra coisa. Por exemplo,
segundo o primeiro imperativo, diremos: não devo mentir, se quero continuar
sendo tido como pessoa honrada; de acordo com o segundo imperativo, diremos:
não devo mentir, embora da mentira não me advenha a menor ignomínia.
O imperativo categórico deve pois abstrair de todo objeto, de maneira
que este não exerça nenhum influxo sobre a vontade. Em suma,
importa que a razão prática (a vontade) não se limite
a administrar um interesse estranho, mas que manifeste unicamente sua própria
autoridade imperativa, como legislação suprema. Assim, por exemplo,
devo procurar concorrer para a felicidade de outrem, não como se eu
estivesse de algum modo interessado em realizá-la (quer por inclinação
imediata, quer indiretamente por causa de alguma satisfação
suscitada pela razão), mas tão-somente porque a máxima,
que exclui esta felicidade, não pode estar compreendida num só
e mesmo querer como lei universal.

Classificação de todos os princípios da moralidade,
que podem resultar do conceito fundamental da heteronímia, tal como
o definimos

A razão humana, aqui como em tudo o mais, enquanto lhe faltou a Crítica,
tentou todas as falsas vias possíveis, antes de conseguir encontrar
a única verdadeira.

Todos os princípios, que se podem admitir, deste ponto de vista, são
ou empíricos ou racionais. Os (442) primeiros, derivados do princípio
da felicidade, fundamentam-se no sentido físico ou moral; os segundos,
derivados do princípio da perfeição, baseiam-se ou no
conceito racional da perfeição, considerada como efeito possível,
ou no conceito,

de uma perfeição existente por si (a vontade de Deus), considerada
como causa determinante de nossa vontade.

Os princípios empíricos são sempre impróprios
para servir de fundamento a leis morais. Porque a universalidade, com a qual
estas devem valer para todos os seres racionais sem distinção,
a necessidade prática incondicionada que lhes é imposta, desaparecem,
se o princípio das mesmas derivar da constituição peculiar
da natureza humana, ou das circunstâncias contingentes em que ela se
encontra. Contudo, o princípio da felicidade pessoal é o mais
reprovável, não só por ser falso e porque a experiência
contradiz a suposição de que o bem-estar se regula sempre pelo
bom comportamento; não só também porque ele em nada contribui
para a fundamentação da moralidade, visto serem coisas inteiramente
diferentes tornar um homem feliz e torná-lo bom, torná-lo prudente
e atento a seus interesses e torná-lo virtuoso; mas porque ele assenta
como base da moralidade impulsos que antes a minam e lhe destroem toda grandeza;
com efeito incluem na mesma classe os impulsos que estimulam a virtude e os
que impelem ao vício; ensinam apenas a calcular melhor, mas suprimem
absolutamente a diferença específica existente entre uns e outros.
Pelo contrário, o sentimento moral, este suposto senso especial (*)
(embora seja prova de superficialidade de ânimo o recorrer a ele, visto
como só os que são incapazes de pensar imaginam poder ajudar-se
do sentimento, mesmo no que se refere unicamente a leis universais, e apesar
de os sentimentos, que por natureza se distinguem uns dos outros por uma infinidade
de graus, não conseguirem apresentar uma medida imparcial do bem e
do mal, sem contar que quem julga movido pelo sentimento não pode julgar
validamente para os outros), o sentimento moral, .digo, avizinha-se mais da
moralidade e da dignidade que lhe é própria, porque rende à
virtude a honra de lhe atribuir imediatamente a satisfação (443)
que ela dá e o respeito que ela inspira, e porque lhe não declara,
por assim dizer, frente a frente que não é a sua beleza, mas
somente o interesse, a única coisa que a ela nos prende.

Entre os princípios racionais da moralidade, o conceito ontológico
da perfeição (embora oco, indeterminado e, conseguintemente,
inservível para o fim de descobrir, no campo ilimitado da realidade
possível, o máximo de perfeição que nos convém,
e se bem que, tratando-se de distinguir especificamente de qualquer outra
a realidade de que ora nos ocupamos, ele seja irresistivelmente atraído
a rodar num círculo vicioso mal podendo esquivar-se a supor tàcitamente
a moralidade que lhe cabe explicar), este conceito ontológico, vale
todavia muito mais que o conceito teológico, o qual deriva a moralidade
a partir de uma vontade divina absolutamente perfeita, não só
porque não temos, apesar de tudo, a intuição da perfeição
de Deus, e porque não podemos derivá-la senão de nossos
conceitos, o principal dos quais é o da moralidade, mas também
porque, se não procedermos deste modo (para não nos expormos
ao grosseiro círculo vicioso que, de fato, se produziria em nossa explicação),
o único conceito que nos restaria da divina vontade, derivado dos atributos
do amor da glória e da dominação, e ligado às
temerosas representações do poder e da ira, assentaria necessariamente
os fundamentos de um sistema de moral, que seria precisamente o contrário
da moralidade.

Mas, se tivesse que optar entre o conceito do senso moral e o da perfeição
em geral (conceitos que, ao menos, não causam dano à moralidade,
embora sejam completamente impotentes para a apoiarem como princípios
fundamentais), decidir-me-ia em favor do último conceito, porque este,
ao menos, tira à sensibilidade, a fim de o remeter para o tribunal
da razão pura, o trabalho de dirimir a questão e, embora não
decida coisa alguma, todavia conserva, sem a falsear, a idéia indeterminada
(de uma vontade boa em si), até que seja possível determiná-la
de maneira mais precisa.

Penso que posso dispensar-me de apresentar uma extensa refutação
de todos estes sistemas. Essa refutação é tão
fácil, é também, segundo todas as probabilidades, tão
claramente apreendida por aqueles mesmos, cuja profissão exige que
se declarem em favor de alguma destas teorias (porque os ouvintes não
suportam de bom grado a interrupção de um juízo) que
seria tempo perdido insistir nisto. Mas o que mais nos interessa aqui, é
saber que estes princípios não estabelecem nenhum outro fundamento
primeiro à moralidade, a não ser a heteronímia da vontade,
e é justamente por isso que eles devem necessariamente falhar o seu
escopo.

(*) Incluo o princípio do sentimento moral no princípio da
felicidade, porque todo interesse empírico ocasionado pelo prazer que
uma coisa provoca, quer isto aconteça imediatamente e sem qualquer
consideração de vantagem, quer aconteça devido a intuitos
interesseiros, promete contribuir para o bem-estar. Devemos outrossim incluir,
com Hutcheson, o princípio da simpatia pela felicidade alheia neste
mesmo princípio do senso moral admitido por ele.

(444) Todas as vezes que se pensa cm tomar como fundamento um objeto da vontade,
com o fim de prescrever a esta a regra que deve determiná-la, a regra
não é senão heteronímia; o imperativo é
condicionado, nos termos seguintes: se ou porque se quer este objeto, deve-se
proceder deste ou daquele modo; por conseguinte, este imperativo nunca pode
comandar moralmente, isto é, categoricamente. O objeto pode determinar
a vontade ou por meio da inclinação, como no princípio
da nossa própria felicidade pessoal, ou por meio da razão aplicada
aos objetos possíveis de nossa vontade em geral, como no princípio
da perfeição; em todo caso, porém, a vontade nunca se
determina imediatamente a si própria por meio da representação
da ação, mas só pelo impulso que o efeito previsto da
ação exerce sobre a vontade: devo fazer esta coisa, porque quero
esta outra; e aqui é ainda mister pôr como fundamento, no sujeito
que eu sou, outra lei, segundo a qual quero necessariamente esta outra coisa,
a qual lei, por seu turno, precisa de um imperativo que imponha a esta máxima
um sentido definido. Com efeito, como o atrativo, que a representação
de um objeto realizável por nossas forças deve exercer sobre
a vontade do sujeito, de acordo com suas faculdades naturais, faz parte da
natureza do sujeito, quer da sensibilidade (da inclinação e
do gosto), quer do intelecto e da razão, os quais, segundo a peculiar
constituição de sua natureza, se aplicam a um objeto com prazer,
daí vem que seria propriamente a natureza quem daria a lei, que, como
tal, não só deve ser conhecida e demonstrada unicamente pela
experiência, e portanto contingente em si e inadequada para estatuir
urna regra prática apodíctica, tal como deve ser a regra moral,
mas que nunca é senão heteronímia da vontade. A vontade,
neste caso, nunca dá a si mesma a lei; mas um impulso estranho lha
fornece, graças a uma’ especial constituição do
sujeito que o dispõe a recebê-la.

A vontade absolutamente boa, cujo princípio deve ser um imperativo
categórico, será, pois. indeterminada a respeito de todos os
objetos, e não contém senão a forma do dever em geral,
e isto como autonomia; quer dizer que a aptidão da máxima de
toda boa vontade para se arvorar em lei universal é a única
lei que a vontade de todo ser racional se impõe a si própria,
sem lhe acrescentar qualquer princípio oriundo da inclinação
ou do interesse.

Como seja possível uma tal proposição prática
sintética a priori, e a razão de sua necessidade é problema
cuja solução não mais se encontra dentro dos limites
da Metafísica dos costumes. Por isso, não afirmamos aqui a verdade
(445) desta proposição; menos ainda alimentamos a pretensão
de possuir uma prova dela. Mostramos tão-somente, por meio do desenvolvimento
do conceito de moralidade universalmente aceito, que uma autonomia da vontade
lhe está inevitavelmente ligada, ou antes que é o fundamento
dele. Portanto, quem considera a moralidade como algo de real, e não
como idéia quimérica destituída de verdade, deve admitir
igualmente o princípio que nós lhe atribuímos. Esta Segunda
Secção foi, pois, como a Primeira, puramente analítica.
Para demonstrar agora que a moralidade não é pura quimera, asserto
que se impõe de maneira inevitável, admitindo que o imperativo
categórico é verdadeiro, bem como o é a autonomia da
vontade, e se ambos são absolutamente necessários como princípios
a priori, isso exige a possibilidade de um uso sintético da razão
pura prática; o que todavia não podemos agora tentar, sem que
primeiro instituamos uma Crítica desta mesma faculdade da razão.
Na última Secção, exporemos os traços principais
da mesma, os bastantes para o nosso escopo.

Passagem da Metafísica dos costumes à crítica da razão pura prática

O conceito da liberdade é a chave da explicação da autonomia
da vontade. A vontade é uma espécie de causalidade dos seres
viventes, enquanto dotados de razão, e a liberdade seria a propriedade
que esta causalidade possuiria de poder agir independentemente de causas estranhas
que a determinam; assim como a necessidade natural é a propriedade
que tem a causalidade de todos os seres desprovidos de razão, de serem
determinados a agir sob a influência de causas estranhas.

Esta definição de liberdade é negativa, e, por conseguinte,
não permite que lhe compreendamos a essência; dela porém
deriva um conceito positivo da liberdade, muito mais rico e fecundo. Dado
que o conceito de causalidade implica em si o de leis, segundo as quais alguma
coisa que chamamos efeito deve ser produzida por alguma outra coisa que é
a causa, a liberdade, embora não seja propriedade da vontade que se
conforme com leis naturais, nem por isso está fora de toda lei; pelo
contrário, ela deve ser uma causalidade que age segundo leis imutáveis,
mas leis de peculiar espécie, pois, de outro modo, uma vontade livre
seria um absurdo. A necessidade natural é uma heteronímia das
causas eficientes; porque todo efeito só é possível de
acordo com esta lei: que a causa eficiente seja determinada a agir por alguma
coisa (447) estranha. Em que pode pois consistir a liberdade da vontade senão
numa autonomia, ou seja, na propriedade que o querer tem de ser para si mesmo
sua lei ? Mas a proposição: a vontade é em todas as suas
ações lei para si mesma, significa apenas o princípio
de não agir senão de acordo com uma máxima tal, que possa
também tomar-se como objeto a título de lei universal. Ora,
esta é precisamente a fórmula do imperativo categórico,
bem como do princípio da moralidade; por conseguinte, uma vontade livre
e uma vontade sujeita a leis morais são uma e a mesma coisa.

Suposta, pois, a liberdade da vontade, basta analisar-lhe o conceito, para
daí deduzir a moralidade e seu princípio. Entanto, este princípio
é sempre uma proposição sintética: uma vontade
absolutamente boa é aquela, cuja máxima pode sempre em si conter
a lei universal, que outra não é senão essa mesma máxima,
e é sintética, porque pela análise do conceito de vontade
absolutamente boa não se pode descobrir aquela propriedade da máxima.
Tais proposições sintéticas só são possíveis
mediante a condição de as duas noções estarem
ligadas uma à outra por uma terceira na qual ambas se encontrem. O
conceito positivo da liberdade subministra este terceiro termo, que não
pode ser, como para as causas físicas, a natureza do mundo sensível
(cujo conceito compreende o conceito de alguma coisa, considerado como causa,
e o conceito de alguma outra coisa, ao qual se refere a causa, e que é
considerado como efeito). Mas que coisa seja este terceiro termo, para o qual
a liberdade nos remete, e do qual temos uma idéia a priori, não
se pode ainda indicar aqui, como nem mostrar de que maneira o conceito da
liberdade se deduz da razão pura prática, nem como é
possível o imperativo categórico. Tudo isto demanda ainda alguma
preparação.

A liberdade deve ser suposta como propriedade da vontade de todos os seres
racionais

Não basta atribuir, por qualquer motivo, a liberdade à nossa
vontade, se não temos motivo suficiente para atribuí-la igualmente
a todos os seres racionais. Uma vez que a moralidade não nos serve
de lei senão enquanto somos seres racionais, daí se segue que
ela deve valer igualmente para todos os seres racionais; e, visto ela derivar
exclusivamente da propriedade da liberdade, é preciso também
demonstrar a liberdade como propriedade da vontade de todos os seres racionais;
e (448) não basta aduzir como provas certas pretensas experiências
da natureza humana (o que, aliás, é absolutamente impossível;
pois que de possível só existe uma demonstração
exclusivamente a priori); mas é preciso demonstrá-la como pertencente
em geral à atividade de seres racionais e dotados de vontade. Portanto,
digo: todo o ser que não pode agir de outra maneira senão sob
a idéia da liberdade, é, por isso mesmo, do ponto de vista prático,
realmente livre; quer dizer que todas as leis inseparàvelmente associadas
à liberdade, valem para ele exatamente como se a sua vontade fosse
também reconhecida livre em si mesma e por motivos válidos do
ponto de vista da filosofia teorética (*). E afirmo que a todo ser
racional dotado de vontade devemos atribuir necessariamente também
a idéia da liberdade, mercê da qual somente ele pode agir. Com
efeito, num tal ser concebemos uma razão que é prática,
ou seja, dotada de causalidade em relação a seus objetos. Ora,
é impossível conceber uma razão, que, plenamente consciente
de ser autora de seus juízos, recebe uma direção vinda
de fora, porque, em tal caso, o sujeito atribuiria, não à razão,
mas a um incitamento, a determinação de sua faculdade judicativa.
A razão deve considerar-se como autora de seus princípios, independentemente
de qualquer, influxo estranho; conseqüentemente, deve enquanto razão
prática ou vontade de um ser racional, considerar-se como livre; por
outras palavras, a vontade de um ser racional apenas pode ser uma vontade
sua própria mediante a idéia da liberdade, e, além disso,
uma tal vontade, deve ser, do ponto de vista prático, atribuída
a todos os seres racionais.

(*) Este método de não admitir a liberdade senão sob
a forma de idéia, posta pelos seres racionais como fundamento de suas
ações, basta para o fim que tenho em vista; e eu adoto-o para
não ter de demonstrar também a liberdade, do ponto de vista
teorético. Ainda que a demonstração teorética
da liberdade ficasse incompleta, devem valer para um ser, que só pode
agir sob a idéia de sua própria liberdade, as mesmas leis que
valeriam para um ser que fosse verdadeiramente livre. Podemos pois libertar-nos
aqui do peso que onera a teoria.

Do interesse próprio das idéias da moralidade

Em fim de contas, reduzimos o conceito determinado da moralidade à
idéia da liberdade; contudo, não foi possível (449) demonstrar
esta como sendo algo de real em nós e na natureza humana. Limitamo-nos
a verificar que devemos supô-la, se queremos conceber um ser como racional
e dotado da consciência de sua causalidade relativamente às suas
ações, ou seja, como dotado de vontade; e assim encontramos
que, precisamente pelo mesmo motivo, devemos atribuir a todo ser dotado de
razão e de vontade esta faculdade de determinar-se a agir sob a idéia
de sua liberdade.

Além disso, vimos que da suposição desta idéia
deriva igualmente a consciência de uma lei, segundo a qual os princípios
subjetivos da ação, isto é, as máximas devem ser
sempre tais que possam valer também objetivamente, ou seja, universalmente,
como princípios, e, por conseguinte, servir para uma legislação
que, embora emanada de nós, seja legislação universal.
Mas por que devo eu submeter-me a este princípio, e isto na minha qualidade
de ser racional em geral ? E por que devem igualmente submeter-se a ele os
demais seres dotados de razão ? Quero admitir que nenhum interesse
me impele, pois nesse caso não haveria nenhum imperativo categórico;
no entanto, é preciso que eu aceite necessariamente um interesse e
que veja como isto é possível; porque este dever é propriamente
um querer em todo ser racional, com a condição ide que nele
a razão seja prática sem impedimento; mas para os seres que,
como nós, são dotados de sensibilidade, isto é, de impulsos
de outra espécie, e nos quais não sucede sempre o que a razão
sozinha faria por si, esta necessidade da ação exprime-se só
pelo termo "dever", e a necessidade subjetiva distingue-se da necessidade
objetiva.

Parece, portanto, que nos contentamos com supor propriamente a lei moral,
isto é, o próprio princípio da autonomia da vontade,
na idéia da liberdade, sem podermos demonstrar a realidade e a necessidade
objetiva deste princípio em si mesmo; todavia, mesmo assim teríamos
ganho algo de muito importante, por havermos determinado, ao menos, o verdadeiro
princípio, com maior exatidão do que se fez até ao presente;
mas, em relação à sua validade e à necessidade
prática de nos submetermos a ele, não teríamos avançado
muito. Porque, se nos perguntassem como é que a validade universal
de nossa máxima, como lei, deve ser a condição restritiva
de nossas ações, e sobre que base fundamentamos o valor por
nós atribuído a este modo de agir, valor tão considerável
que não pode ser superado por nenhum outro interesse; como, além
disso, acontece que, só por tal forma, o homem cr&ecirecirc; possuir o
sentimento de seu valor pessoal, em comparação do (450) qual
a importância, de um estado agradável ou desagradável
deve ser tida por nula: a estas perguntas não poderemos dar resposta
satisfatória.

Sem dúvida afigura-se-nos bom poder interessar-nos por uma qualidade
pessoal, da qual não depende, de fato, o interesse de nossa situação,
mas que nos torna capazes de participar numa condição feliz,
no caso em que esta fosse dispensada pela razão; por outras palavras,
o simples fato de sermos dignos de felicidade, embora não nos mova
o desejo de nela participar, pode interessar em si mesmo; mas este juízo
é, na realidade, apenas o efeito da importância já pressuposta
nas leis morais (enquanto por meio da idéia da liberdade nos despojamos
de todo interesse empírico). Mas que nos devamos despojar de tal interesse
empírico, isto é, que nos devamos considerar como livres na
ação, e todavia reputar-nos subordinados a certas leis, no intuito
de encontrar só em nossa pessoa um valor capaz de nos compensar da
perda de tudo quanto confere valor à nossa condição,
como isto seja possível, e, por conseguinte donde provém que
a lei moral obrigue, é o que não podemos ainda compreender.

Devemos confessar com franqueza haver aqui uma espécie de círculo
vicioso, do qual, segundo penso, não há meio de sair. Supomo-nos
livres na ordem das causas eficientes, a fim de nos imaginarmos, na ordem
dos fins, sujeitos a leis morais, e, em seguida, consideramo-nos sujeitos
a estas leis, por nos havermos atribuído a liberdade da vontade; de
fato, a liberdade e a legislação própria da vontade exprimem
ambas autonomia; são, pois, conceitos recíprocos, e, justamente
por tal motivo, não se pode usar um para explicar o outro e dar razão
dele; ao sumo, tudo quanto se pode fazer é, do ponto de vista lógico,
reduzir a um conceito único as representações, na aparência
diversas, de um só e mesmo objeto (como se reduzem diversas frações
de valor idêntico à expressão mais simples.

Resta-nos todavia uma saída, ou seja, procurar saber se, quando nos
imaginamos, mercê da liberdade, como causas eficientes a priori, não
nos situamos num ponto de vista diferente de quando nos representamos a nós
mesmos, segundo nossas ações, como efeitos que estão
patentes a nossos olhos.

Há que fazer uma observação, sem que para isso sejam
necessárias sutis reflexões, por ela estar ao alcance da inteligência
mais comum, embora esta a faça a seu modo, isto ê, por um obscuro
discernimento da. faculdade judicativa, que (451) ela denomina sentimento:
é que todas as representações que em nós se produzem,
independentemente de nossa vontade (como as representações dos
sentidos), não nos fazem conhecer os objetos senão segundo o
influxo que eles em nós exercem, de sorte que ficamos ignorando o que
eles possam ser em si mesmos; conseqüentemente acontece que, por meio
de tais representações, nós, a despeito dos maiores esforços
de atenção e de toda a clareza que o intelecto pode acrescentar,
não podemos obter senão o conhecimento dos fenômenos,
e nunca o das coisas em si. Uma vez feita esta distinção (e
basta para isso a diferença já apontada entre as representações
que nos vêm de fora, nas quais permanecemos passivos, e as que produzimos
exclusivamente por nós próprios, e nas quais manifestamos nossa
atividade), resulta naturalmente que devemos supor e admitir, por detrás
dos fenômenos, alguma outra coisa que não é fenômeno,
quero dizer precisamente as coisas em si; embora de boa mente concedamos que,
por nunca podermos conhecê-las de outro modo senão pela maneira
como elas nos afetam, nunca podemos avizinhar-nos delas o bastante para sabermos
o que elas são em si mesmas (182). Daqui resulta necessariamente uma
distinção, um tanto grosseira, é certo, entre o mundo
sensível e o mundo inteligível, o primeiro dos quais pode também
ser muito variado, segundo a diferença de sensibilidade nos diversos
espectadores, ao passo que o segundo, que serve de fundamento ao primeiro,
permanece sempre o mesmo. O próprio homem, segundo o conhecimento que
tem de si pelo senso íntimo, não pode gloriar-se do conhecer-se
como é em si mesmo. Com efeito, como ele de nenhuma maneira se produz
a si mesmo, nem recebe o conceito que tem de si a priori, mas empiricamente,
é natural que não possa igualmente adquirir conhecimento de
si mesmo senão pelo senso íntimo, isto é, somente mediante
a aparência fenomenal de sua natureza e pelo modo como sua consciência
é afetada. Ao. mesmo tempo, porém, deve admitir necessariamente,
acima desta modalidade de seu próprio sujeito composto unicamente de
fenômenos, alguma outra coisa que lhe sirva de fundamento, a saber o
seu próprio Eu, seja qual for a maneira como este possa ser constituído
em si mesmo; por conseguinte, no concernente à simples percepção
e à capacidade de receber as sensações, deve ele considerar-se
como fazendo parte do mundo sensível, ao passo que naquilo que pode
ser atividade pura (isso é, naquilo que chega à consciência,
não por influxo exercido sobre os sentidos, senão imediatamente),
deve considerar-se como fazendo parte do mundo inteligível, do qual
todavia ele nada mais conhece.

O homem que reflete deve chegar à mesma conclusão (452), relativamente
todas as coisas que se lhe possam apresentar: é presumível até
que a inteligência mais vulgar seja capaz de formular semelhante conclusão,
pois é notório ser ela muito inclinada a supor, por detrás
dos objetos dos sentidos, alguma realidade invisível que age por si
mesma. Mas, por outro lado, ela corrompe esta tendência, pelo fato de
o intelecto se representar este invisível debaixo de uma forma sensível,
isto é, querendo fazer dele um objeto de intuição, e
conseguintemente não tira daí nenhuma vantagem.

Mas o homem encontra realmente em si uma faculdade, por meio da qual se distingue
de todas as outras coisas sensíveis, até mesmo de si próprio,
enquanto pode ser afetado por objetos, e esta faculdade é a razão.
Esta, como espontaneidade pura, é ainda superior ao entendimento; porque,
embora este seja também espontaneidade e não contenha só,
como a sensibilidade, representações que brotam apenas sob a
influência das coisas (conseguintemente, quando se é passivo),
todavia ele não pode tirar de sua atividade nenhuns outros conceitos,
a não ser os que servem unicamente para submeter o regras as representações
sensíveis e, desse modo,,as reunir numa consciência; e sem este
uso da sensibilidade, ele nada poderia pensar; ao invés, a razão
manifesta naquilo, a que se dá o nome de idéias, uma espontaneidade
tão pura, que por essa forma se alça muito acima de tudo quanto
a sensibilidade lhe pode subministrar, e manifesta sua principal função,
distinguindo um do outro, o mundo sensível do mundo inteligível,
e marcando assim ao próprio entendimento os seus limites.

Por tal motivo, um ser racional deve, enquanto inteligência (e, portanto,
não por suas faculdades inferiores), considerar-se como pertencente,
não ao mundo sensível, mas ao mundo inteligível; tem,
por conseguinte, dois pontos de vista, desde os quais pode considerar-se a
si próprio e conhecer as leis do exercício de suas faculdades,
isto é, de todas as suas ações: de um lado. enquanto
pertencente ao mundo sensível, ele está sujeito a leis da natureza
(heteronímia); do outro lado, enquanto pertencente ao mundo inteligível,
está sujeito a leis independentes da natureza, não empíricas,
senão fundadas unicamente na razão.

Na qualidade de ser racional, portanto pertencente ao mundo inteligível,
o homem não pode conceber a causalidade de sua própria vontade
senão sob a idéia da liberdade; pois a independência a
respeito das causas determinantes do mundo sensível (independência,
que a razão deve sempre atribuir a si) é liberdade. Com a idéia,
da liberdade está inseparavelmente unido o conceito de autonomia, com
este está unido o (453) princípio universal da moralidade, que
idealmente serve de fundamento a todas as ações dos seres racionais,,
da mesma maneira que a lei da natureza serve de fundamento a todos os fenômenos.

Deste modo se desfaz a suspeita, acima insinuada, segundo a qual estaria
contido secretamente um círculo vicioso na nossa maneira de concluir
da liberdade para a autonomia e desta para a lei moral. Com efeito, podia
julgar-se que propúnhamos como fundamento a idéia da liberdade,
só tendo em mira a lei moral, para em seguida concluir novamente a
lei moral, partindo da liberdade; que, por conseguinte, não podíamos
dar absolutamente nenhuma demonstração desta lei, e que esta
era apenas como que a imposição de um princípio, que
as almas bem pensantes de bom grado nos concederiam, mas que nós nunca
poderíamos estatuir como proposição demonstrável.
Agora vemos bem que, quando nos consideramos como livres, nos transportamos
para o mundo inteligível como membros desse mundo, e que reconhecemos
a autonomia da vontade juntamente com a sua conseqüência, a moralidade;
mas, se nos imaginamos como sujeitos ao dever, consideramo-nos como pertencentes,
a um tempo, ao mundo sensível e ao mundo inteligível.

Como é possível um imperativo categórico ?

O ser racional pertence, como inteligência, ao mundo inteligível,
e só enquanto causa eficiente pertencente a este mundo, ele dá
o nome de vontade à sua causalidade. Por outro lado, ele tem ainda
consciência de si mesmo, como fazendo parte cio mundo sensível,
no qual suas ações são consideradas como simples manifestações
fenomenais dessa causalidade; é-lhe todavia impossível compreender
como são possíveis estas ações provenientes de
uma causalidade que não conhecemos; é, pois, forçado
a encarar suas ações, enquanto pertencentes ao mundo sensível,
como determinadas por outros fenômenos, a saber, por desejos e inclinações.
Se eu fosse membro unicamente do mundo inteligível, minhas ações
seriam perfeitamente conformes ao princípio da autonomia da vontade
pura; se eu fosse apenas parte do mundo sensível, elas deveriam ser
encaradas como inteiramente conformes à lei natural dos desejos e das
inclinações, e por conseguinte à heteronímia da
natureza. (No primeiro caso, as minhas ações estribariam no
princípio supremo da moral; no segundo caso, no princípio da
felicidade). Mas, dado que o mundo inteligível contém o fundamento
do mundo sensível e, conseqüentemente, também das leis
do mesmo, e uma vez que relativamente à minha vontade (que pertence
inteiramente ao mundo inteligível), ele é um princípio
imediato de legislação e, portanto, deve (454) também
ser pensado como tal, eu, como inteligível, embora seja, por outra
parte, um ser pertencente ao mundo sensível, deverei reconhecer-me
sujeito à lei do primeiro, isto é, a razão, que contém
esta lei na idéia da liberdade, e portanto sujeito igualmente à
autonomia da vontade; conseqüentemente, deverei considerar as leis do
mundo inteligível como imperativos para mim, e, como deveres, as ações
conformes a este princípio.

Deste modo, são possíveis imperativos categóricos, pelo
motivo de a idéia da liberdade me fazer membro de um mundo inteligível.
Donde resulta que, se eu fosse apenas isso, todas as minhas ações
seriam sempre conformes à autonomia da vontade; como porém,
ao mesmo tempo, me considero como membro do mundo sensível, é
preciso dizer que elas devem ser conformes; este "dever" categórico
representa uma proposição sintética a priori, pois que
a uma vontade influenciada por desejos sensíveis acresce ainda a idéia
desta mesma vontade, mas enquanto pertencente ao mundo inteligível,
ou seja, pura e prática por si mesma, a qual contém a condição
suprema da primeira segundo a razão; pouco mais ou menos, do mesmo
modo que às intuições do mundo sensível se acrescentam
os conceitos do entendimento, que por si mesmos nada mais significam do que
a forma de uma lei em geral, e que, por isso, tornam possíveis proposições
sintéticas a priori, sobre as quais repousa todo conhecimento de uma
natureza.

O uso prático, que os homens comumente fazem da razão, confirma
a exatidão desta dedução. Não existe ninguém,
nem sequer o pior celerado, contanto que esteja habituado a servir-se da razão,
que, ao lhe serem apresentados exemplos de lealdade nas intenções,
de perseverança na observância de máximas boas, de simpatia
e de benevolência universal (tudo isto ligado ainda a grandes sacrifícios
de vantagens e de bem-estar), não deseje sentir-se também ele
possuído de tais sentimentos. Ele não pode, sem dúvida,
e unicamente movido de suas inclinações e impulsos, realizar
este ideal em sua pessoa; mas nem por isso deixa de sentir o profundo desejo
de se libertar dessas inclinações que lhe são gravosas.
Mostra, por essa forma, que, com uma vontade imune dos impulsos da sensibilidade,
ele se transporta com o pensamento a uma ordem de coisas inteiramente diversa
daquela que constitui seus desejos no campo da sensibilidade; pois que de
tal aspiração não pode esperar nenhuma satisfação
de seus apetites, nem por conseguinte nenhum estado capaz de contentar alguma
de suas inclinações reais ou imaginárias (uma vez que,
por essa forma, a própria idéia, que lhe provoca o desejo, perderia
sua preeminência); ele não pode esperar daí senão
um maior valor intrínseco (455) de sua pessoa. Ora, ele crê ser
essa pessoa melhor, quando se situa no ponto de vista de membro do mundo inteligível,
para o qual o arrasta forçadamente a idéia da liberdade, isto
é, a independência relativamente às causas determinantes
do mundo sensível; neste ponto de vista, ele tem consciência
de uma boa vontade que, segundo sua própria confissão, constitui
a lei para a vontade má, a que está sujeito enquanto membro
do mundo sensível: lei, cuja autoridade ele reconhece, embora a transgrida.
O dever moral é, pois, propriamente o querer necessário para
todo membro de um mundo inteligível, e deve ser concebido por este
como dever apenas na medida em que ele se considera ao mesmo tempo como membro
do mundo sensível.

Do extremo limite de toda filosofia prática

Todos os homens se julgam livres em sua vontade. Daí procedem todos
os juízos sobre as ações, declarando quais elas deveriam
ter sido, embora não tenham sido tais. Todavia, esta liberdade não
é um conceito da experiência, nem o pode ser, porque este conceito
permanece sempre, embora a experiência mostre o contrário daquelas
exigências que, na suposição da liberdade, são
representadas como necessárias. Por outro lado, é igualmente
necessário que tudo quanto sucede seja infalivelmente determinado segundo
as leis da natureza, e esta necessidade natural não é também
um conceito da experiência, precisamente por ser um conceito que implica
em si o conceito de necessidade, por conseguinte o de um conhecimento a priori.
Mas este conceito de uma natureza é confirmado pela experiência,
e deve ser inevitavelmente pressuposto, se é que deve ser possível
a experiência, ou seja, um conhecimento coerente dos objetos dos sentidos
segundo leis universais. Pelo que, a liberdade é somente uma idéia
da razão, cuja realidade objetiva é cm si duvidosa, ao passo
que a natureza é um conceito do entendimento, que prova e deve necessariamente
provar sua realidade por meio de exemplos tomados da experiência.

É esta, sem dúvida, a origem de uma dialética da razão,
pois no concernente à vontade, a liberdade que se lhe atribui, parece
estar em oposição com a necessidade dá natureza; todavia,
embora a razão situada entre estas duas direções, do
ponto de vista especulativo encontre o caminho da necessidade natural mais
desimpedido e mais praticável que o da liberdade, todavia, do ponto
de vista prático, a senda da (456) liberdade é a única
onde seja possível lazer uso da razão em nosso comportamento;
daí o ser impossível, tanto à mais sutil filosofia quanto
à mais vulgar razão, pôr em dúvida a liberdade,
por meio de sofismas. Deve, pois, a razão admitir não ser possível
encontrar nenhuma verdadeira contradição entre a liberdade e
a necessidade natural das mesmas ações humanas, porque não
lhe é dado renunciar ao conceito de natureza, como nem ao de liberdade.

Entretanto, esta aparente contradição deve ser desfeita de
modo convincente, embora nunca se possa vir a compreender como seja possível
a liberdade. Com efeito, se o conceito da liberdade fosse contraditório
consigo ou com a idéia da natureza, que é igualmente necessária,
deveria ela (a liberdade) ser sacrificada em proveito da necessidade natural.

Mas é impossível subtrair-.se a esta contradição,
se o sujeito, que se supõe livre, se concebesse a si mesmo, quando
se denomina livre, no mesmo sentido ou precisamente na mesma relação
em que ele se supõe, relativamente à mesma ação,
sujeito à lei da natureza. Ê pois, uma tarefa, a que a filosofia
especulativa não pode subtrair-se, a de mostrar, ao menos, que aquilo
que torna esta contradição ilusória é o fato de
concebermos o homem, quando qualificamos de livre, num sentido diferente e
sob uma relação diferente de quando o consideramos como sujeito,
enquanto parte da natureza, às leis desta mesma natureza, e que não
só as duas relações podem acomodar-se uma com a outra,
senão que devem outrossim ser pensadas no mesmo sujeito como necessariamente
unidas; pois, de outro modo, não se explicaria por que deveríamos
sobrecarregar a razão com uma idéia que, embora consinta, sem
contradição, em se unir a outra suficientemente justificada,
nos envolve todavia num embaraço que entrava singularmente a razão
em seu uso teorético. Mas semelhante tarefa compete exclusivamente
à filosofia especulativa, a qual por essa forma, deve abrir livre caminho
à filosofia prática. Não fica, pois à mercê
do filósofo o cuidado de suprimir ou deixar intacta esta aparente contradição;
porque, neste último caso, a teoria é, sob este respeito, um
bonum vacans, do qual o fatalista pode com direito apossar-se, dele expulsando
toda moral como de uma pretensa propriedade, que ela possui sem título.

Todavia não se pode ainda aqui dizer que comece o campo da filosofia
prática. Porque ela não é, por forma alguma, qualidade
para dirimir o debate, mas exige apenas da razão especulativa que ponha
termo ao litígio, em que ela se encontra envolvida em matéria
teorética, a fim de que (457) a razão prática possa gozar
de repouso e segurança, relativamente a intromissões externas
que poderiam contestar-lhe o terreno onde ela pretende estabelecer-se.

Mas a pretensão legítima, que tem a razão humana, mesmo
a mais comum, à liberdade da vontade, funda-se na consciência
e na pressuposição admitida da independência da razão
a respeito de causas de determinação puramente subjetivas, o
conjunto das quais constitui o que pertence somente à sensação,
por conseqüência o que recebeu o nome gerai de sensibilidade. O
homem, que de tal modo se considera como inteligência, coloca-se, por
isso mesmo, numa outra ordem de coisas, e, quando ele se concebe como inteligência
dotada de vontade, portanto de causalidade, põe-se em relação
com princípios determinantes de outra espécie inteiramente diferente,
do que quando se considera como um fenômeno do mundo sensível
(o que ele, na verdade, também é) e submete a sua causalidade,
segundo uma determinação externa, a leis da natureza. Ora, ele
imediatamente dá conta que ambas as coisas podem, e até devem,
dar-se ao mesmo tempo. Pois, que uma coisa na ordem dos fenômenos (pertencente
ao mundo sensível) esteja sujeita a certas leis, das quais é
independente como coisa ou como ser em si mesmo, não contem em si a
mínima contradição; que o próprio homem deva conceber-se
e representar-se sob este duplo aspecto, é exigência que se funda,
no que concerne ao primeiro ponto, na consciência de si como objeto
afetado pelos sentidos, e, no que respeita ao segundo ponto, na consciência
de si como inteligência, isto é, como ser independente, no uso
da razão, das impressões sensíveis (portanto, como pertencente
ao mundo inteligível).

Daqui deriva que o homem se atribui uma vontade que não consente em
pôr no seu ativo coisa alguma do que pertença unicamente a seus
desejos e inclinações, e que, ao invés, concebe como
possíveis para ela, ou melhor, como necessárias, ações
que não podem ser executadas senão mediante uma renúncia
a todos os desejos e incitamentos sensíveis. A causalidade de tais
ações reside nele enquanto inteligência e nas leis dos
efeitos e das ações que são conformes aos princípios
de um mundo inteligível, do qual mundo, todavia, ele nada mais sabe
do que isto, que nele só a razão, e justamente a razão
pura, independente da sensibilidade, institui a lei. Além disso, como
só enquanto inteligência ele é o verdadeiro eu (ao passo
que, enquanto homem, ele é só fenômeno de si próprio),
estas leis endereçam-se a ele imediatamente e categoricamente, de sorte
que tudo aquilo a que as inclinações e impulsos o incitam (portanto
toda a natureza do mundo (458) sensível), não pode causar dano
às leis da sua vontade considerada como inteligência. Mais ainda.
ele não assume a responsabilidade destas inclinações
e tendências, nem as atribui ao seu verdadeiro eu, ou seja, à
sua vontade; só se considera responsável da complacência
que poderia ter para com elas, se porventura lhes concedesse alguma influência
sobre suas máximas, com prejuízo das leis racionais da vontade.

Introduzindo-se assim por meio do pensamento num mundo inteligível,
a razão prática não ultrapassa, de fato, seus limites;
só os ultrapassaria, se quisesse, entrando neste mundo, intuir-se,
sentir-se nele. Isso não passa de uma concepção negativa
em relação ao mundo sensível, o qual não dá
leis à razão na determinação da vontade; concepção
que só num ponto é positiva, a saber, que esta liberdade, como
determinação negativa, está ligada, ao mesmo tempo, a
uma faculdade (positiva), e precisamente a uma causalidade da razão,
que denominamos vontade, isto é, à faculdade de agir de tal
sorte que o princípio das ações seja conforme ao caráter
essencial de uma causa racional, ou seja, à condição
que a máxima erigida em lei seja universalmente válida. Mas,
se a razão quisesse ainda derivar do mundo inteligível um objeto
da vontade, isto é, um motivo, ultrapassaria, nesse caso, seus limites
e teria a ilusão de conhecer uma coisa, da qual, na realidade, nada
conhece. Portanto, o conceito de um mundo inteligível nada mais é
que um ponto de vista, que a razão se vê obrigada a aceitar,
fora dos fenômenos, para se concebera si própria como prática:
o que não seria possível, se as influências da sensibilidade
fossem determinantes para o homem, mas que todavia é necessário,
se é que não devemos contestar-lhe a consciência de si
mesmo como inteligência, portanto como causa racional e atuante por
meio da razão, ou seja, livre em suas operações. Semelhante
concepção implica a idéia de uma outra ordem e de uma
outra legislação diferente da ordem e da legislação
do mecanismo natural que se aplica ao mundo sensível, e torna necessário
o conceito de um mundo inteligível (isto é, o sistema total
dos seres racionais como coisas em si), mas sem a menor pretensão de
ultrapassar aqui 0 pensamento daquilo que é simplesmente a condição
formal do mesmo, ou seja, a universalidade da máxima da vontade como
lei e, portanto, a autonomia desta faculdade, autonomia que só pode
existir com a liberdade da mesma; ao passo que todas as leis, que são
determinadas por sua relação com um objeto, dão uma heteronímia
que só se encontra nas leis naturais e que só se pode referir
ao mundo sensível.

A razão ultrapassaria todos os seus limites, se pretendesse explicar
como é que uma razão pura pode ser prática, o (459) que
equivaleria exatamente a explicar de que maneira a liberdade é possível.

De fato, só podemos explicar aquilo que podemos reduzir a leis, cujo
objeto pode ser dado nalguma experiência possível. Ora, a liberdade
é uma simples idéia, cuja realidade não pode por forma
alguma ser demonstrada por leis da natureza, e portanto também em nenhuma
experiência possível, e que, por isso mesmo que não se
pode propor dela, segundo qualquer analogia, um exemplo, nunca pode ser compreendida,
nem sequer só concebida. Ela vale apenas como suposição
necessária da razão num ser que julga ter consciência
de possuir uma vontade, ou seja, uma faculdade muito diferente da simples
faculdade apetitiva (quero dizer: uma faculdade de se determinar a agir como
inteligência, portanto segundo leis da razão, independentemente
dos instintos naturais). Mas, onde cessa uma determinação segundo
as leis da natureza, aí cessa também toda explicação,
e nada mais resta do que manter-se na defensiva, isto é, refutar as
objeções dos que pretendem haver penetrado mais profundamente
na essência das coisas, e que, por tal motivo, declaram ousadamente
a liberdade impossível. Apenas se lhes pode mostrar que a contradição,
que eles pretendera haver descoberto, cm nada mais consiste senão em
que, para tornar a lei da natureza válida relativamente às ações
humanas, eles deveriam considerar necessariamente o homem como fenômeno;
quando agora se exige que eles devam concebê-lo, enquanto inteligência,
também como uma coisa em si, continuam todavia a considerá-lo
sempre ainda como fenômeno; então, sem dúvida, o fato
de subtrair a causalidade do homem (isto é, sua vontade) às
leis naturais do mundo sensível num só e mesmo sujeito constituiria
uma contradição; contudo, esta contradição desapareceria,
se eles quisessem refletir e, como seria de justiça, reconhecer que,
por detrás dos fenômenos, devem por certo existir (embora ocultas)
as coisas em si, as leis das quais não se pode pretender que sejam
idênticas àquelas a que são sujeitas suas manifestações
fenomenais.

A impossibilidade subjetiva de explicar a liberdade da (460) vontade é
idêntica à impossibilidade de descobrir e de fazer compreender
um interesse (*) que o homem possa tomar pelas leis morais; e, não
obstante, é fato que o homem toma realmente interesse por elas, o primeiro
do qual é em nós aquilo a que chamamos sentimento moral, sentimento
que por alguns, falsamente, é dado como sendo o critério de
nosso juízo moral quando, na verdade, deve ser antes considerado como
o efeito subjetivo exercido pela lei sobre a vontade, do qual só a
razão subministra os princípios objetivos.

Para que um ser, que é, a um tempo, racional e afetado pela sensibilidade,
queira o que só a razão prescreve como .dever, é preciso
que a razão tenha a faculdade de lhe inspirar um sentimento de prazer
ou de satisfação pelo cumprimento do dever, e, conseguintemente,
uma causalidade, pela qual determine a sensibilidade conformemente a seus
princípios. É porém, de fato, impossível compreender,
isto é, explicar a priori, como um simples pensamento, que em si não
contém coisa alguma de sensível, pode produzir um sentimento
de prazer ou de repugnância; pois isto é uma espécie peculiar
de causalidade, da qual nada podemos determinar absolutamente a priori, mas
para a qual só podemos consultar a experiência. Mas, como esta
não pode oferecer nenhuma relação entre causa e efeito,
a não ser entre dois objetos da experiência, e como aqui a razão
pura, unicamente por meio de idéias (que não subministram objetos
para a experiência), deve ser a causa de um efeito, que certamente se
encontra na experiência, por isso a nós homens e absolutamente
impossível explicar como e por que a universalidade da máxima
como lei, e por conseguinte a moralidade, nos interessa. Certo é apenas
isto: que a moralidade não possui valor para nós pelo fato de
interessar (pois isto é heteronímia e dependência da razão
prática a respeito da sensibilidade, ou seja, a respeito de um (461)
sentimento assente como princípio, no qual caso nunca poderia estabelecer
uma legislação moral); mas a moralidade apresenta interesse,
porque tem valor para nós enquanto homens, porque deriva de nossa vontade,
concebida como inteligência, portanto do nosso verdadeiro eu; ora o
que pertence ao puro fenômeno é necessariamente subordinado pela
razão à natureza da coisa em si.

(*) Interesse é aquilo pelo qual a razão se torna prática,
isto é, se torna causa determinante da vontade. Eis porque se diz apenas
de um ser racional, que ele toma interesse por qualquer coisa, ao passo que
os seres irracionais sentem somente impulsos sensíveis. A razão
toma interesse imediato pela ação, só quando a validade
universal da máxima desta ação é um princípio
suficiente de determinação da vontade. Só um interesse
deste gênero é puro. Mas, se a razão não pode determinar
a vontade senão por meio de algum outro objeto do desejo, então
ela não toma pela ação senão um interesse mediato;
e, como a razão não pode descobrir por si só, sem a experiência,
nem objetos da vontade, nem um sentimento especial que sirva a esta de fundamento,
este último interesse não pode ser senão um interesse
empírico, nunca um puro interesse racional. O interesse lógico
da razão (que a leva a aumentar seus conhecimentos) nunca é
imediato, mas pressupõe fins, aos quais se refere o uso desta faculdade.

1

Portanto, a questão: "como é possível um imperativo
categórico ?" só pode ser verdadeiramente respondida, na
medida em que seja possível indicar a única suposição
donde depende a sua possibilidade, ou seja, a idéia da liberdade, e
em que se possa também enxergar a necessidade desta suposição,
o que é suficiente para o uso prático da razão, isto
é, para nos convencermos da validade deste imperativo e, conseguintemente,
também da lei moral. Mas o que nenhuma razão humana logrará
jamais descobrir é a maneira como tal suposição seja
possível. Supondo que a vontade de uma inteligência é
livre, segue-se, como conseqüência inevitável, a autonomia
da mesma, como sendo a única condição formal, mediante
a qual ela pode ser determinada. Pressupor esta liberdade da vontade (sem
cair em contradição com o princípio da necessidade natural
da ligação dos fenômenos cio mundo sensível) não
é só absolutamente possível (como a filosofia especulativa
o pode mostrar), mas é igualmente necessário para um ser racional,
que tem consciência de sua causalidade por meio da razão, portanto
de uma vontade (distinta dos desejos) de admiti-la praticamente, isto é,
em idéia, como condição de todas as suas ações
voluntárias. Como é que a razão pura sem outro impulso,
venha ele donde vier, possa por si mesma ser prática, por outras palavras,
como é que o simples princípio da validade universal de todas
as suas máximas como leis (o qual seria certamente a forma de uma razão
pura prática), sem matéria (objeto) alguma da vontade, pela
qual se possa antecipadamente tomar interesse, possa por si mesmo subministrar
um móbil de ação e suscitar um interesse capaz de ser
denominado puramente moral; ou, por outras palavras, como é que uma
razão pura possa ser prática: explicar isto é inteiramente
impossível a qualquer razão humana, e é baldado todo
o trabalho despendido para encontrar uma elucidação.

É exatamente a mesma coisa que se eu procurasse descobrir como é
possível a própria liberdade como causalidade (462) de uma vontade.
Com efeito, aqui ponho de parte o princípio de explicação
filosófica, sem ter outro a que recorrer. Poderia, é certo,
aventurar-me no mundo inteligível que todavia me resta, no mundo das
inteligências; mas, embora tenha dele uma idéia, e bem fundada,
não tenho todavia o mínimo conhecimento do mesmo, e nunca o
poderei alcançar, malgrado todos os esforços de minha razão
natural. Esta idéia significa apenas alguma coisa, que continua subsistindo,
depois de eu ter excluído dos princípios de determinação
de minha vontade tudo quanto pertence ao mundo sensível, de maneira
que restrinja simplesmente o princípio dos impulsos derivados do campo
da sensibilidade, limitando este campo e mostrando que ele não compreende
em si o todo do todo, e que fora dele muitas outras coisas ainda existem;
mas estas muitas coisas, não as conheço. Da razão pura,
que concebe este ideal, não me resta, após haver leito abstração
de toda matéria, isto é, de todo conhecimento dos objetos, senão
a forma, ou seja, a lei prática da validade universal das máximas
e, em conformidade com esta, a concepção da razão, considerada
em

relação a um mundo inteligível puro, como causa eficiente
possível, isto é, como causa determinante da vontade; o impulso
deve aqui faltar completamente; a não ser que esta idéia de
um mundo inteligível não seja ela mesma o impulso, ou a coisa
pela qual a razão originariamente toma interesse; mas explicar isto,
é justamente o problema que não logramos resolver.

Aqui está, pois, o limite extremo de toda investigação
moral. Determiná-lo é já de grande importância,
para que a razão, por um lado, não se embrenhe no mundo sensível,
com prejuízo da moralidade, à cata do motivo supremo de determinação
e de um interesse, sem dúvida; compreensível, mas empírico;
e, por outro lado, não bata as asas em vão, sem mudar de lugar,
neste espaço de conceitos transcendentes, vazio para ela, que se chama
o mundo inteligível, nem se perca no meio de quimeras. Além
disso, a idéia de um mundo inteligível puro, concebido como
um todo formado por todas as inteligências, de que nós mesmos,
como seres racionais, fazemos parte (conquanto, por outro lado, pertençamos,
ao mesmo tempo, ao mundo sensível), continua sendo sempre uma idéia
utilizável e lícita cm benefício de uma crença
racional, se bem que todo saber se confine dentro dos limites deste mundo.
E mercê do magnífico ideal de um reino universal dos fins cm
si (dos seres racionais), ao qual não podemos pertencer como membros
senão tendo o cuidado de nos portar de acordo com as máximas
da liberdade, como se elas fossem leis da «463) natureza, a idéia
do mundo inteligível é capaz de produzir em nós vivo
interesse pela lei moral.

Observação final

O uso especulativo da razão, relativamente à natureza, conduz
à absoluta necessidade de uma causa suprema do mundo; o uso prático
da razão, relativamente à liberdade, conduz também a
uma necessidade absoluta, mas que é só a necessidade das leis
das ações de um ser racional como tal. Ora, é um principio
essencial de todo uso da nossa razão, estimular o conhecimento, que
ela nos dá, até à consciência de sua necessidade
(pois sem isso não seria conhecimento da razão). Mas a mesma
razão está igualmente sujeita a uma restrição
não menos essencial, que consiste em a razão ser incapaz de
perceber a necessidade daquilo que é e acontece, e do que deve acontecer,
se não assenta como princípio uma condição, sob
a qual a coisa é, acontece ou deve acontecer. Deste modo, porém,
mercê da constante busca da ‘condição, a razão
não pode ver senão que sua satisfação é
sempre adiada. Pelo que, ela busca sem descanso o necessário incondicionado,
e é obrigada a admiti-lo, sem meio algum de o tornar inteligível
a si, sentindo-se já bastante feliz em só poder descobrir o
conceito que se ajusta com esta suposição. Não se deve,
portanto, censurar a nossa dedução do princípio supremo
da moralidade; deveria, antes, criticar-se a razão humana em geral,
por não lograrmos explicar uma lei prática incondicionada (qual
deve ser o imperativo categórico) em sua necessidade absoluta. Não
nos podem, pois, censurar, por não querermos fazer isto mediante uma
condição, ou seja mediante algum interesse estabelecido como
princípio, porque, nesse caso, não seria mais uma lei moral,
isto é, uma lei suprema da liberdade. Assim, se não compreendemos
verdadeiramente a necessidade prática incondicionada do imperativo
moral, compreendemos todavia a sua incompreensibilidade, e é tudo quanto
se pode exigir racionalmente de uma filosofia que se empenha por alcançar,
nos princípios, os limites da razão humana.

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