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Leia abaixo as Obras de Gonçalvez Dias.
Canção do Exílio
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas tem mais flores,
Nossos bosques tem mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho, à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Coimbra – Julho 1843.
A Concha e a Virgem
Linda concha que passava,
Boiando por sobre o mar,
Junto a uma rocha, onde estava
Triste donzela a pensar,
Perguntou-lhe: — "Virgem bela,
Que fazes no teu cismar?"
— "E tu", pergunta a donzela,
"Que fazes no teu vagar?"
Responde a concha: — "Formada
Por estas águas do mar,
Sou pelas águas levada,
Nem sei onde vou parar!"
Responde a virgem sentida,
Que estava triste a pensar:
— "Eu também vago na vida,
Como tu vagas no mar!
"Vais duma a outra das vagas,
Eu dum a outro cismar;
Tu indolente divagas,
Eu sofro triste a cantar.
"Vais onde te leva a sorte,
Eu, onde me leva Deus:
Buscas a vida, — eu a morte;
Buscas a terra, — eu os céus!
A Escrava
O bien qu’aucun bien ne peut rendre!
Patrie! doux nom que l’exil fait comprendre!
— Marino Faliero
Oh! doce país de Congo
Doces terras d’além-mar!
Oh! dias de sol formoso!
Oh! noites d’almo luar!
Desertos de branca areia
De vasta, imensa extensão,
Onde livre corre a mente,
Livre bate o coração!
Onde a leda caravana
Rasga o caminho passando,
Onde bem longe se escuta
As vozes que vão cantando!
Onde longe inda se avista
O turbante muçulmano,
O Iatagã recurvado,
Preso à cinta do Africano!
Onde o sol na areia ardente
Se espelha, como no mar;
Oh! doces terras de Congo,
Doces terras d’além-mar!
Quando a noite sobre a terra
Desenrolava o seu véu,
Quando sequer uma estrela
Não se pintava no céu;
Quando só se ouvia o sopro
De mansa brisa fagueira,
Eu o aguardava – sentada
Debaixo da bananeira.
Um rochedo ao pé se erguia,
Dele à base uma corrente
Despenhada sobre pedras,
Murmurava docemente.
E ele às vezes me dizia:
– Minha Alsgá, não tenhas medo;
Vem comigo, vem sentar-te
Sobre o cimo do rochedo.
E eu respondia animosa:
– Irei contigo. onde fores! –
E tremendo e palpitando
Me cingia aos meus amores.
Ele depois me tornava
Sobre o rochedo – sorrindo.
– As águas desta corrente
Não vês como vão fugindo?
Tão depressa corre a vida,
Minha Alsgá; depois morrer
Só nos resta!… – Pois a vida
Seja instantes de prazer.
Os olhos em torno volves
Espantados – Ah! também
Arfa o teu peito ansiado!…
Acaso temes alguém?
Não receies de ser vista,
Tudo agora jaz dormente;
Minha voz mesmo se perde
No fragor desta corrente.
Minha Alsgá, porque estremeces?
Porque me foges assim?
Não te partas, não me fujas,
Que a vida me foge a mim!
Outro beijo acaso temes,
Expressão de amor ardente?
Quem o ouviu? – o som perdeu-se
No fragor desta corrente.
Assim praticando amigos
A aurora nos vinha achar!
Oh! doces terras de Congo,
Doces terras d’além-mar!
Do ríspido senhor a voz irada
Rábida soa,
Sem o pranto enxugar a triste escrava
Pávida voa.
Mas era em mora por cismar na terra,
Onde nascera,
Onde vivera tão ditosa, e onde
Morrer devera!
Sofreu tormentos, porque tinha um peito,
Qu’inda sentia;
Mísera escrava! no sofrer cruento.
Congo! dizia.
A História
Triste lição de experiência deixam
Os evos no passar, e os mesmos atos
Renovados sem fim por muitos povos,
Sob nomes diversos se encadeiam:
Aqui, além, agora ou no passado,
Amor, dedicação, virtude e glória,
Baixeza, crime, infâmia se repetem,
Quer gravados no soco de uma estátua,
Quer em vil pelourinho memorados.
Eis a história! — rainha veneranda,
Trajando agora sedas e veludos,
Depois vestindo um saco desprezível,
D’imunda cinza apolvilhada a fronte.
Se as virtudes do pobre não têm preço,
Também dos vícios seus a nódoa exígua
Não conspurca as nações; mas ai dos grandes,
Que trilham senda errada, a cujo termo
Se levanta a barreira do sepulcro,
Onde se quebra a adulação sem força.
Se virtuoso, as gerações passando
As cinzas lhe beijaram; se malvado,
Cospem-lhe afrontas na vaidosa campa,
Jamais de amigas lágrimas molhada.
E qual do Egito nos festins funéreos,
Maldizem bons e maus sua memória,
Lançando à face da real mumia
Dos crimes seus a lacrimosa história.
Talvez, porém, um infortúnio grande,
Um exemplo sublime de virtude,
Cobre dourada página, que aos olhos
Pranto consolador sem custo arranca.
Eis a história! um espelho do passado,
Folhas do livro eterno desdobradas
Aos olhos dos mortais; — aqui sem mancha,
Além golfeja sangue e sua crimes.
Tal foi, tal é: retrato desbotado,
Onde se mira a geração que passa,
Sem cor, sem vida, — e ao mesmo tempo espelho,
Que há de ser nova cópia à gente nova,
Como os anos aos anos se sucedam.
Ondas de mar sereno ou tormentoso,
As mesmas na aparência, que se quebram
Sobre as d’areia flutuantes praias.
A Leviana
Souvent femme varie,
Bien fol est qui s’y fie.
— Francisco I
És engraçada e formosa
Como a rosa,
Como a rosa em mês d’Abril;
És como a nuvem doirada
Deslizada,
Deslizada em céus d’anil.
Tu és vária e melindrosa,
Qual formosa
Borboleta num jardim,
Que as flores todas afaga,
E divaga
Em devaneio sem fim.
És pura, como uma estrela
Doce e bela,
Que treme incerta no mar:
Mostras nos olhos tua alma
Terna e calma,
Como a luz d’almo luar.
Tuas formas tão donosas,
Tão airosas,
Formas da terra não são;
Pareces anjo formoso,
Vaporoso,
Vindo da etérea mansão.
Assim, beijar-te receio,
Contra o seio
Eu tremo de te apertar:
Pois me parece que um beijo
É sobejo
Para o teu corpo quebrar.
Mas não digas que és só minha!
Passa asinha
A vida, como a ventura;
Que te não vejam brincando,
E folgando
Sobre a minha sepultura.
Tal os sepulcros colora
Bela aurora
De fulgores radiante;
Tal a vaga mariposa
Brinca e pousa
Dum cadáver no semblante.
A Mendiga
Donnez: –
Et quand vous paraîtrez devant juge austère
Vous direz: J’ai connu la pitié sur la terre,
Je puis la demander aux cieux!
— Turquety
I
Eu sonhei durante a noite…
Que triste foi meu sonhar!
Era uma noite medonha,
Sem estrelas, sem luar.
E ao través do manto escuro
Das trevas, meus olhos viam
Triste mendiga formosa,
Qu’infortúnios consumiam.
Era uma pobre mendiga,
Porém, cândida donzela;
Pudibunda, afável, doce,
Amorosa, e casta, e bela.
Vestia rotos andrajos,
Que o seu corpo mal cobriam;
Por vergonha os olhos dela
Sobre ela se não volviam.
Pelas costas descobertas
Cortador o frio entrava;
Tinha fome e sede, – e o pranto
Nos seus olhos borbulhava.
E qual vemos dos céus descendo rápido
Um fugaz meteoro, vi descendo
Um anjo do Senhor; – Parou sobre ela,
E mudo a contemplava. – Uma tristeza
Simpática, indizível pouco e pouco
Do anjo nas feições se foi pintando:
Qual tristeza de irmão que a irmã mais nova
Conhece enferrna e chora. – Ela no peito
Menor sentiu a dor, e humilde orava.
II
De um vasto edifício nas frias escadas
Eu vi-a sentada; – era um templo, diziam,
Secreto concílio de sócios piedosos,
Que o bem tinha juntos, que bem só faziam.
Defronte um palácio soberbo se erguia,
E dele partia confuso rumor:
– A dança girava, e a orquestra sonora
Cantava alegria, prazeres e amor.
E quando ao palácio um conviva chegava,
Rugindo se abria o ruidoso portão;
Eflúvios de incenso nos ares corriam
Da rua esteirada com vivo clarão.
E a triste mendiga ali ‘stava ao relento,
Com fome, com frio, com sede e com dor;
E eu vi o seu anjo, mais triste no aspecto,
Mais baço, mais turvo da glória o fulgor.
E à porta do vasto sombrio edifício
Um vulto chegou.
– Senhor, uma esmola! bradou-lhe a mendiga
E o vulto parou.
E rude no acento, no aspecto severo,
Lhe disse: – O teu nome?
Tornou-lhe a mendiga: – Senhor, uma esmola,
Que eu morro de fome.
– Não, dizes teu nome? lhe torna o soberbo
– Sou órfã, sozinha;
Meu nome qu’importa, se eu sofro, se eu gemo,
Se eu choro mesquinha!"
– Em vis meretrizes não cabe esse orgulho,
Tornou-lhe o Senhor,
Que à noite, nas trevas, contratam no crime,
Vendendo o pudor.
E a porta do templo – erguido à piedade
Com força batia;
Co’o peso do insulto acrescido à crueza,
A triste gemia.
III
Ouvi depois um rodar que a todo o instante
Mais distinto se ouvia; e logo um forte,
Fascinador clarão por toda a rua
Se derramou soberbo. – Infindos pajens
Ricas librés trajando, mil archotes
Nos ares revolviam; – fortes, rápidos,
Fumegantes corcéis, sorvendo a terra,
Tiravam rica sege melindrosa.
Sobre a terra saltou airosa e bela
A dona, em frente do festivo paço;
E a mendiga bradou: – Senhora minha,
Dai uma esmola, dai! – À voz dorida
Volveu-se o rosto d’anjo, porém d’anjo
Não era o coração; – foi-lhe importuno,
Mais que importuno… da mesquinha o grito!
E da mendiga o protetor celeste
Parecia falar em favor dela;
E a rica dona o escutava, como
Se ouvisse a interna voz que dentro mora.
E eu dizia também – Ó bela Dona,
Dai-lhe uma esmola, daí; – de que vos serve
Um óbolo mesquinha, que não pode
Sequer um dixe sem valor comprar-vos?
Ah! bela como sois, que vos importam
Custosas flores, com que ornais a fronte?
Para a salvar do vórtice do crime,
O preço delas, uma só, da coisa,
Que sem valor julgardes, é bastante.
Sabeis? – Além da vida, além da morte,
Quando deixardes o ouropel na campa,
Quando subirdes do Senhor ao trono,
Sem andrajos sequer, também mendiga,
Ali tereis as lágrimas do pobre,
A bênção do afligido, a prece ardente
Do que sofrendo vos bendisse, – ó Dona.
Fechou-se a porta festival sobre ela!
E a donzela se ergueu, corou de pejo,
Lançando os olhos pela rua escusa,
E segura no andar, e firme, à porta
Do palácio bateu – entrou – sumiu-se.
E o anjo, como aflito sob um peso,
Um gemido soltou; era uma nota
Melancólica e triste, – era um suspiro
Mavioso de virgem, – um soído
Subtil, mimoso, como d’Harpa Eólia,
Que a brisa da manhã roçou medrosa.
IV
Dos muros ao través meus olhos viram
Soberba roda de convivas, – todos
Veludos, sedas, e custosas galas
Trajavam senhoris. – Reinava o jogo
Avaro e grave, leda e viva a dança
Em vórtices girava, a orquestra doce
Cantava oculta; condensados, bastos,
Em redor do banquete estavam muitos.
A mendiga ali estava, – não trajando
Sujos farrapos, mas delgadas telas.
Choviam brindes e canções e vivas
À Deusa airosa do banquete; todos
Um volver dos seus olhos, um sorriso,
Uma voz de ternura, um mimo, um gesto
Cobiçavam rivais; – e ali com ela,
Como um raio do sol por entre as nuvens
Lá na quadra hibernal penetra a custo
Quase sem vida, sem calor, sem força,
Menos brilhante vi seu anjo belo.
Nos curtos lábios da feliz mendiga
Passava rápido um sorriso às vezes;
Outras chorava, no volver do rosto,
Na taça do prazer sorvendo o pranto.
Encontradas paixões sentia o anjo:
Parecia chorar co’o seu sorriso,
Parecia sorrir co’o choro dela.
A Minha Musa
Gratia, Musa, tibi; nam tu solattia praebes.
— Ovídio
Minha Musa não é como ninfa
Que se eleva das águas – gentil –
Co’um sorriso nos lábios mimosos,
Com requebros, com ar senhoril.
Nem lhe pousa nas faces redondas
Dos fagueiros anelos a cor;
Nesta terra não tem uma esp’rança,
Nesta terra não tem um amor.
Como fada de meigos encantos,
Não habita um palácio encantado,
Quer em meio de matas sombrias,
Quer à beira do mar levantado.
Não tem ela uma senda florida,
De perfumes, de flores bem cheia,
Onde vague com passos incertos,
Quando o céu de luzeiros se arreia.
___________
Não é como a de Horácio a minha Musa;
Nos soberbos alpendres dos Senhores
Não é que ela reside;
Ao banquete do grande em lauta mesa,
Onde gira o falerno em taças d’oiro,
Não é que ela preside.
Ela ama a solidão, ama o silêncio,
Ama o prado florido, a selva umbrosa
E da rola o carpir.
Ela ama a viração da tarde amena,
O sussurro das águas, os acentos
De profundo sentir.
D’Anacreonte o gênio prazenteiro,
Que de flores cingia a fronte calva
Em brilhante festim,
Tomando inspirações à doce amada,
Que leda lh’enflorava a ebúrnea lira;
De que me serve, a mim?
Canções que a turba nutre, inspira, exalta
Nas cordas magoadas me não pousam
Da lira de marfim.
Correm meus dias, lacrimosos, tristes,
Como a noite que estende as negras asas
Por céu negro e sem fim.
É triste a minha Musa, como é triste
O sincero verter d’amargo pranto
D’órfã singela;
E triste como o som que a brisa espalha,
Que cicia nas folhas do arvoredo
Por noite bela.
É triste como o som que o sino ao longe
Vai perder na extensão d’ameno prado
Da tarde no cair,
Quando nasce o silêncio involto em trevas,
Quando os astros derramam sobre a terra
Merencório luzir.
Ela então, sem destino, erra por vales,
Erra por altos montes, onde a enxada
Fundo e fundo cavou;
E pára; perto, jovial pastora
Cantando passa – e ela cisma ainda
Depois que esta passou.
Além – da choça humilde s’ergue o fumo
Que em risonha espiral se eleva às nuvens
Da noite entre os vapores;
Muge solto o rebanho; e lento o passo,
Cantando em voz sonora, porém baixa,
Vêm andando os pastores.
Outras vezes também, no cemitério,
Incerta volve o passo, soletrando
Recordações da vida;
Roça o negro cipreste, calca o musgo,
Que o tempo fez brotar por entre as fendas
Da pedra carcomida.
Então corre o meu pranto muito e muito
Sobre as úmidas cordas da minha Harpa,
Que não ressoam;
Não choro os mortos, não; choro os meus dias
Tão sentidos, tão longos, tão amargos,
Que em vão se escoam.
Nesse pobre cemitério
Quem já me dera um lugar!
Esta vida mal vivida
Quem já ma dera acabar!
Tenho inveja ao pegureiro,
Da pastora invejo a vida,
Invejo o sono dos mortos
Sob a laje carcomida.
Se qual pegão tormentoso,
O sopro da desventura
Vai bater potente à porta
De sumida sepultura:
Uma voz não lhe responde,
Não lhe responde um gemido,
Não lhe responde urna prece,
Um ai – do peito sentido.
Já não têm voz com que falem,
Já não têm que padecer;
No passar da vida à morte
Foi seu extremo sofrer.
Que lh’importa a desventura?
Ela passou, qual gemido
Da brisa em meio da mata
De verde alecrim florido.
Quem me dera ser como eles!
Quem me dera descansar!
Nesse pobre cemitério
Quem me dera o meu lugar,
E co’os sons das Harpas d’anjos
Da minha Harpa os sons casar!
À Morte Prematura DA II. ma Sra. D.
(no Álbum de seu Irmão Da. J. D. Lisboa Serra)
On dirait que le ciel aux coeurs plus magnanimes
Measure plus de maux.
— Lamartine
Perfeita formosura em tenra idade
Qual flor, que antecipada foi colhida,
Murchada está da mão da sorte dura.
— Camões (soneto)
Lá, bem longe daqui, em tarde amena,
Gozando a viração das frescas auras,
Que do Brasil os bosques brandamente
Faziam balançar, – e que espalhavam
No éter encantado odor, pureza –
Do que a rosa mais bela, – meiga e casta,
Como as virgens do sol,
Que de vezes não foi ela pendente
Dos braços fraternais em meigo abraço;
Como mimosa flor presa, enlaçada
A tenro arbusto que a vergôntea débil
Lhe ampara docemente. . .
E o Irmão que só nela se revia,
O Irmão que a adorava, qual se adora
Um mimo do Senhor;
Que a tinha por farol, conforto e guia,
Os seus dias contava por encantos;
E as virtudes co’os dias pleiteavam.
E ela morreu no viço de seus anos!…
E a laje fria e muda dos sepulcros
Se fechou sobre o ente esmorecido
Ao despontar de vida
Tão rica de esperanças e tão cheia
De formosura e graças!… _
Campal campa! que de terror incutes!
Quanto esse teu silêncio me horroriza!
E quanto se assemelha a tua calma
À do cruel malvado que impassível
Contempla a sua vítima torcer-se
Em convulsões horríveis, desesp’radas;
Cruas vascas da morte!…
Quem tão má fé te criou?
Tu que tragas o ente que esmorece
Ao despontar de vida
Tão rica de esperanças e tão cheia
De formosura e graças?!
O farol se apagou? a luz sumiu-se!
Como o fugaz clarão do meteoro,
Extinguiu-se a esperança; e o malfadado
Sobre a terra deserta em vão procura
Traços dessa que amou, que tanto o amara,
Da jovem companheira de seus brincos,
Pesares e alegrias.
Ele a procurai… o viajor pasmado
Nos campos de Pompéia, alonga a vista
Pela amplidão do plano,
Destroços e ruínas encontrando,
Onde esperava movimento e vida.
Não poder eu a troco de meu sangue
Poupar-te dessas lágrimas metade!
Oh! poder que eu pudesse! – e almo sorriso.
Que tanto me compraz ver-te nos lábios,
Inda uma vez brilhasse!
E essa existência,
Que tão cara me é, ta visse eu leda,
E feliz como a vida dos Arcanjos!
Infeliz é quem chora: ela finou-se,
Porque os anjos à terra não pertencem:
Mas lá dos imortais sobre os teus dias
A suspirada irmã vela incessante.
Vinde, cândidas rosas, açucenas,
Vinde, roxas saudades;
Orvalhai, tristes lágrimas, as c’roas,
Que hão de a campa adornar por mim depostas
Em holocausto à vítima da morte.
Inocência, pudor, beleza e graça
Com ela nessa campa adormeceram.
Anjo no coração, anjo no rosto,
Devera o amor chorar sobre o teu seio,
Que não grinaldas fúnebres tecer-te;
Devera voz d’esposo acalentar-te
O sono da inocência, – não grosseira
Canção de trovador não conhecido.
Coimbra, junho de 1841.
A Tarde
Ave Maria! blessed be the hour!
The time, the clime, lhe spot where I so oft
Have felt thar moment in its fullest power
Sink o’er the earth so beautiful and soft…
— Byron
Ó tarde, oh bela tarde, oh meus amores,
Mãe da meditação, meu doce encanto!
Os rogos da minha alma enfim ouviste,
E grato refrigério vens trazer-lhe
No teu remansear prenhe de enlevos!
Em quanto de te ver gostam meus olhos,
Enquanto sinto a minha voz nos lábios,
Enquanto a morte me não rouba à vida,
Um hino em teu louvor minha alma exale,
Oh tarde, oh bela tarde, oh meus amores!
I
É bela a noite, quando grave estende
Sobre a terra dormente o negro manto
De brilhantes estrelas recamado;
Mas nessa escuridão, nesse silêncio
Que ela consigo traz, há um quê de horrível
Que espanta e desespera e geme n’alma;
Um quê de triste que nos lembra a morte!
No romper d’alva há tanto amor, tal vida,
Há tantas cores, brilhantismo e pompa,
Que fascina, que atrai, que a amar convida;
Não pode suportá-la homem que sofre,
Órfãos de coração não podem vê-la.
Só tu, feliz, só tu, a todos prendes!
A mente, o coração, sentidos, olhos,
A ledice e a dor, o pranto e o riso,
Folgam de te avistar; – são teus, – és deles
Homem que sente dor folga contigo,
Homem que tem prazer folga de ver-te!
Contigo simpatizam, porque és bela,
Qu’és mãe de merencórios pensamentos,
Entre os céus e a terra êxtasis doce,
Entre dor e prazer celeste arroubo.
II
A brisa que murmura na folhagem,
As aves que pipilam docemente,
A estrela que desponta, que rutila,
Com duvidosa luz ferindo os mares,
O sol que vai nas águas sepultar-se
Tingindo o azul dos céus de branco e d’oiro;
Perfumes, murmurar, vapores, brisa,
Estrelas, céus e mar, e sol e terra,
Tudo existe contigo, e tu és tudo.
III
Homem que vivo agro viver de corte,
lndiferente olhar derrama a custo
Sobre os fulgores teus; – homem do mundo
Mal pode o desbotado pensamento
Revolver sobre o pó; mas nunca, oh nunca!
Há de elevar-se a Deus, e nunca há de ele
Na abóbada celeste ir pendurar-se,
Como de rósea flor pendente abelha.
Homem da natureza, esse contemple
De púrpura tingir a luz que morre
As nuvens lá no ocaso vacilantes!
Há de vida melhor sentir no peito,
Sentir doce prazer sorrir-lhe n’alma,
E fonte de ternura inesgotável
Do fundo coração brotar-lhe em ondas.
Hora do pôr do sol? – hora fagueira,
Qu’encerras tanto amor, tristeza tanta!
Quem há que de te ver não sinta enlevos,
Quem há na terra que não sinta as fibras
Todas do coração pulsar-lhe amigas,
Quando desse teu manto as pardas franjas
Soltas, roçando a habitação dos homens?
Há i prazer tamanho que embriaga,
Há i prazer tão puro, que parece
Haver anjos dos céus com seus acordes
A mísera existência acalentado!
IV
Sócia do forasteiro, tu, saudade,
Nesta hora os teus espinhos mais pungentes
Cravas no coração do que anda errante.
Só ele, o peregrino, onde acolher-se,
Não tem tugúrio seu, nem pai, nem ‘spôsa,
Ninguém que o espere com sorrir nos lábios
E paz no coração, – ninguém que estranhe,
Que anseie aflito de o não ver consigo!
Cravas então, saudade, os teus espinhos;
E eles, tão pungentes, tão agudos,
Varando o coração de um lado a outro,
Nem trazem dor, nem desespero incitam;
Mas remanso de dor, mas um suave
Recordar do passado, – um quê de triste
Que ri ao coração, chamando aos olhos
Tão espontâneo, tão fagueiro pranto,
Que não fora prazer não derramá-lo.
E quem – ah tão feliz! — quem peregrino
Sobre a terra não foi? Quem sempre há vista
Sereno e brando deslizar-se o fumo
Sobre o teto dos seus; e sobre os cumes
Que os seus olhos hão visto à luz primeira
Crescer branca neblina que se enrola,
Como incenso que aos céus a terra envia?
Tão feliz! quando a morte envolta em pranto
Com gelado suor lh’enerva os membros,
Procura inda outra mão co’a mão sem vida,
E o extremo cintilar dos olhos baços,
De um ente amado procurando os olhos,
Sem prazer, mas sem dor, ali se apaga.
O exilado! esse não; tão só na vida,
Como no passamento ermo e sozinho,
Sente dores cruéis, torvos pesares
Do leito aflito esvoaçar-lhe em torno,
Roçar-lhe o frio, o pálido semblante,
E o instante derradeiro amargurar-lhe.
Porém, no meu passar da vida à morte,
Possa co’a extrema luz destes meus olhos
Trocar último adeus com os teus fulgores!
Ah! possa o teu alento perfumado,
Do que na terra estimo, docemente
Minha alma separar, e derramá-la
Como um vago perfume aos pés do Eterno.
A Tempestade
Quem porfiar contigo… ousara
Da glória o poderio;
Tu que fazes gemer pendido o cedro,
Turbar-se o claro rio?
A. HERCULANO
Um raio
Fulgura
No espaço
Esparso,
De luz;
E trêmulo
E puro
Se aviva,
S’esquiva
Rutila,
Seduz!
Vem a aurora
Pressurosa,
Cor de rosa,
Que se cora
De carmim;
A seus raios
As estrelas,
Que eram belas,
Tem desmaios,
Já por fim.
O sol desponta
Lá no horizonte,
Doirando a fonte,
E o prado e o monte
E o céu e o mar;
E um manto belo
De vivas cores
Adorna as flores,
Que entre verdores
Se vê brilhar.
Um ponto aparece,
Que o dia entristece,
O céu, onde cresce,
De negro a tingir;
Oh! vede a procela
Infrene, mas bela,
No ar s’encapela
Já pronta a rugir!
Não solta a voz canora
No bosque o vate alado,
Que um canto d’inspirado
Tem sempre a cada aurora;
É mudo quanto habita
Da terra n’amplidão.
A coma então luzente
Se agita do arvoredo,
E o vate um canto a medo
Desfere lentamente,
Sentindo opresso o peito
De tanta inspiração.
Fogem do vento que ruge
As nuvens aurinevadas,
Como ovelhas assustadas
Dum fero lobo cerval;
Estilham-se como as velas
Que no alto mar apanha,
Ardendo na usada sanha,
Subitâneo vendaval.
Bem como serpentes que o frio
Em nós emaranha, — salgadas
As ondas s’estanham, pesadas
Batendo no frouxo areal.
Disseras que viras vagando
Nas furnas do céu entreabertas
Que mudas fuzilam, — incertas
Fantasmas do gênio do mal!
E no túrgido ocaso se avista
Entre a cinza que o céu apolvilha,
Um clarão momentâneo que brilha,
Sem das nuvens o seio rasgar;
Logo um raio cintila e mais outro,
Ainda outro veloz, fascinante,
Qual centelha que em rápido instante
Se converte d’incêndios em mar.
Um som longínquo cavernoso e ouco
Rouqueja, e n’amplidão do espaço morre;
Eis outro inda mais perto, inda mais rouco,
Que alpestres cimos mais veloz percorre,
Troveja, estoura, atroa; e dentro em pouco
Do Norte ao Sul, — dum ponto a outro corre:
Devorador incêndio alastra os ares,
Enquanto a noite pesa sobre os mares.
Nos últimos cimos dos montes erguidos
Já silva, já ruge do vento o pegão;
Estorcem-se os leques dos verdes palmares,
Volteiam, rebramam, doudejam nos ares,
Até que lascados baqueiam no chão.
Remexe-se a copa dos troncos altivos,
Transtorna-se, tolda, baqueia também;
E o vento, que as rochas abala no cerro,
Os troncos enlaça nas asas de ferro,
E atira-os raivoso dos montes além.
Da nuvem densa, que no espaço ondeia,
Rasga-se o negro bojo carregado,
E enquanto a luz do raio o sol roxeia,
Onde parece à terra estar colado,
Da chuva, que os sentidos nos enleia,
O forte peso em turbilhão mudado,
Das ruínas completa o grande estrago,
Parecendo mudar a terra em lago.
Inda ronca o trovão retumbante,
Inda o raio fuzila no espaço,
E o corisco num rápido instante
Brilha, fulge, rutila, e fugiu.
Mas se à terra desceu, mirra o tronco,
Cega o triste que iroso ameaça,
E o penedo, que as nuvens devassa,
Como tronco sem viço partiu.
Deixando a palhoça singela,
Humilde labor da pobreza,
Da nossa vaidosa grandeza,
Nivela os fastígios sem dó;
E os templos e as grimpas soberbas,
Palácio ou mesquita preclara,
Que a foice do tempo poupara,
Em breves momentos é pó.
Cresce a chuva, os rios crescem,
Pobres regatos s’empolam,
E nas turvam ondas rolam
Grossos troncos a boiar!
O córrego, qu’inda há pouco
No torrado leito ardia,
É já torrente bravia,
Que da praia arreda o mar.
Mas ai do desditoso,
Que viu crescer a enchente
E desce descuidoso
Ao vale, quando sente
Crescer dum lado e d’outro
O mar da aluvião!
Os troncos arrancados
Sem rumo vão boiantes;
E os tetos arrasados,
Inteiros, flutuantes,
Dão antes crua morte,
Que asilo e proteção!
Porém no ocidente
S’ergue de repente
O arco luzente,
De Deus o farol;
Sucedem-se as cores,
Qu’imitam as flores
Que sembram primores
Dum novo arrebol.
Nas águas pousa;
E a base viva
De luz esquiva,
E a curva altiva
Sublima ao céu;
Inda outro arqueia,
Mais desbotado,
Quase apagado,
Como embotado
De tênue véu.
Tal a chuva
Transparece,
Quando desce
E ainda vê-se
O sol luzir;
Como a virgem,
Que numa hora
Ri-se e cora,
Depois chora
E torna a rir.
A folha
Luzente
Do orvalho
Nitente
A gota
Retrai:
Vacila,
Palpita;
Mais grossa
Hesita,
E treme
E cai.
A Um Menino
Oferecida à exma. Sra. D. M. L. L. V.
I
Gentil, engraçado infante
Nos teus jogos inconstante,
Que tens tão belo semblante,
Que vives sempre a brincar,
– Dos teus brinquedos te esqueces
À noitinha, – e te entristeces
Como a bonina, – e adormeces,
Adormeces a sonhar!
II
Infante, serão as cores
De várias, viçosas flores,
Ou são da aurora os fulgores
Que vem teus sonhos doirar?
Foi de algum ente celeste,
Que de luzeiros se veste,
Ou da brisa é que aprendeste,
Que aprendeste a suspirar?
III
Tens no rosto afogueado
Um qual retrato acabado
De um sentir aventurado,
Que te ri no coração;
É talvez a voz mimosa
De uma fada caprichosa,
Que te promete amorosa,
Algum brilhante condão!
IV
Ou por ventura és contente,
Porque no sonho, que mente,
Fantasiaste inocente
Algum dos brinquedos teus!. . .
Senhor, tens bondade infinda!
Fizeste a aurora bem linda,
Criaste na vida ainda
Um’outra aurora dos céus.
V
O som da corrente pura,
A folhagem que sussurra,
Um acento de ternura,
De ternura divinal;
A indizível harmonia
Dos astros no fim do dia,
A voz que Mêmnon dizia,
Que dizia matinal;
VI
Nada disto tem o encanto,
Nada disto pode tanto
Como o risonho quebranto,
Divino – do seu dormir:
Que nada há como a Donzela
Pensativa, doce e bela,
E a comparar-se com ela…
Só de um infante o sorrir.
VII
Mas de repente chorando
Despertas do sono brando
Assustado e soluçando…
Foi uma revelação!
Esta vida acerba e dura
Por um dia de ventura
Dá-nos anos de amargura
E fráguas do coração.
VIII
Só aquele que da morte
Sofreu o terrível corte,
Não tem dores que suporte,
Nem sonhos o acordarão:
Gentil infante, engraçado,
Que vives tão sem cuidado,
Serás homem – mal pecado!
Findará teu sonho então.
A Um Poeta Exilado
Tão bem vaguei, Cantor, por clima estranho,
Vi novos vales, novas serranias,
Vi novos astros sobre mim luzindo;
E eu só! E eu triste!
Ao sereno Mondego, ao Doiro, ao Tejo
Pedi inspirações, – e o Doiro e o Tejo
Do mísero proscrito repetiram
Sentidos carmes.
Repetiu-mos o plácido Mondego;
Talvez em mais de um peito se gravaram,
Em mais de uns meigos lábios murmurados,
Talvez soaram.
Os filhos de Minerva, novos cisnes,
Que a fonte dos amores meigos cria,
E alguns de Lísia sonoros vates,
Sisudos mestres;
Ouvindo aquele canto agreste e rudo
Do selvagem guerreiro, – e a voz do piaga
Rugindo, como o vento na floresta,
Prenhe d’augúrios;
Benignos me olharam, e aos meus ensaios
Talvez sorriram; porém mais prendeu-me,
Quem sofrendo como eu, chorou comigo,
Quem me deu lágrimas!
Eu pois, que nesta vida hei aprendido
Só cantar e sofrer, não vejo embalde
Ao canto a dor unida, – e os repassados
Versos de pranto.
Do triste poleá choro a desdita,
Choro e digo entre mim: “Pobre Canário
Que fado mau cegou, por que soltasse
Mais doce canto;
Pobre Orfeu, nestes tempos mal nascido,
Atrás dum bem sonhado pelo mundo
A vagar com lira – um bem que os homens
Não podem dar-te!
Se quer esta lembrança a dor te abrande:
A vida é breve, e o teu cantar simelha
Vagido fraco de menino enfermo,
Que Deus escuta.
A Vila Maldita, Cidade de Deus
Ao seu querido e afetuoso amigo
A. T. de Carvalho Leal
Peccata peccavit Jerusalem, et propter
ea instabilis facta est; omnes qui
glorificabant eam, spreverunt illam, quia
viderunt ignominiam ejus; ipsa autem
gemens conversa est retrorsum.
— Lament
I
O imenso aposento a luz alaga
Com soberbo clarão,
E as mesas do banquete se devolvem
Pelo vasto salão;
E os instrumentos palpitantes soam
Frenética harmonia;
E o coro dos convivas se levanta
Pleno d’ébria alegria!
Ali se ostenta o nobre vicioso
Rebuçado em orgulho, – o rico infame,
Cheio de mesquinhez, – o envilecido,
Imundo pobre no seu manto involto
De misérias, torpeza e vilanias;
– A prostituta que alardeia os vícios,
Menosprezando a castidade e a honra,
Sem pejo, sem pudor, d’infâmia eivada.
E o livre ditirambo, a atroz blasfêmia,
Os cantos imorais, canções impudicas,
Gritos e orgia envolta em negro manto
De fumo e vinho, – os ares aturdiam;
E muito além, no meio d’alta noite,
Nos ecos, ruas, praças rebatiam.
II
Depois, ainda suja a boca, as faces,
D’imundo vomitar,
Com vacilante pé calcando a terra
Os viras levantar.
A larga porta despedia em turmas
A noturna coorte;
Ouvia-se depois por toda a parte
Gritos, horror de morte!
E ninguém vinha ao retinir de ferro,
Que assassinava;
Porque era dum valente o punhal nobre,
Que as leis ditava.
Outra vez a cair se emaranhavam
Da porta pelo umbral:
Tinham tintas de sangue a face, as vestes,
Em sangue tinto o punhal.
E vinha o sol manifestar horrores
Da noite derradeira;
E a morte vária revelava a fúria
Da turba carniceira.
E o sacrílego padre só vendia
O tum’lo por dinheiro;
Vendia a terra aos mortos insepultos,
O vil interesseiro!
Ou lá ficavam, como pasto aos corvos,
Por sobre a terra nua;
E ninguém de tal sorte se pesava,
Que ser podia a sua!
"E Deus maldisse a terra criminosa,
"Maldisse aos homens dela,
"Maldisse a cobardia dos escravos
"Dessa terra tão bela."
III
E a mortífera peste lutuosa
Do inferno rebentou,
E nas asas dos ventos pavorosa
Sobre todos passou.
E o mancebo que via esperançoso
Longa vida futura,
Doido sentiu quebrar-lhe as esperanças
Pedra de sepultura.
E a donzela tão linda que vivia
Confiada no amor,
Entre os braços da mãe provou bem cedo
Da morte o dissabor.
E o trêmulo ancião qu’inda esperava
Morrer assim
Como um fruto maduro destacado
D’árvore enfim,
Sentiu a morte esvoaçar-lhe em tomo,
Como um bulcão,
Que afronta o nauta quando avista a terra
Da salvação.
Era deserta a vila, a casa, o templo –
Ar de morte soprou!
Mas a casa dos vis nos seus delírios
Ébria continuou!
"E Deus maldisse a terra criminosa,
"Maldisse os homens dela,
"Maldisse a cobardia dos escravos
"Dessa terra tão bela."
IV
Eis o aço da guerra lampeja,
Do fogoso corcel o nitrido,
Eis o brônzeo canhão que rouqueja,
Eis da morte represso o gemido.
Já se aprestam guerreiros luzentes,
Já se enfreiam corcéis belicosos,
Já mancebos se partem contentes,
Augurando a vitória briosos.
Brilha a raiva nos olhos; – nas faces
O interno rancor podes ler;
Eia, avante! – clamaram os bravos,
Eia, avante! – ou vencer ou morrer!
Eia, avante! – briosos corramos
Na peleja o imigo bater;
Crua morte na espada levamos!
Eia, avante! – ou vencer ou morrer!
Eis o aço da guerra lampeja,
Do corcel belicoso o nitrido,
Eis o brônzeo canhão que rouqueja
E da morte represso o gemido.
V
E a selva vomitou homens sem conto
A voz do onipotente,
Como a neve hibernal que o sol derrete,
Engrossando a corrente.
E em redor dessa vila se estreitaram,
Cingidos d’armadura;
E a vila se doeu no íntimo seio
De tão acre amargura.
Mas os fortes bradaram: – Eia, avante!
Prontos a batalhar;
Mas o braço e valor ante os imigos
Se vieram quebrar.
E um ano inteiro sem cessar lutaram,
Cheios de bizarria,
Como dois crocodilos que brigassem
Dum rio a primazia!
E renderam-se enfim, mas de famintos.
De sequiosos;
Valentes lidadores foram eles,
Se não briosos.
VI
E o exército contrário entra rugindo
Na vila, que as suas portas lhe franqueia:
Rasteiro corre o incêndio e surdamente
O custoso edifício ataca e mina.
Eis que a chama roaz amostra as fendas
Das portas que se abrasam; descortina
O torvo olhar do vencedor – apenas –
Lá dentro o incêndio só, fora só trevas!
Urros de frenesi, de dor, de raiva
Escutam dos que, às súbitas colhidos,
Contra os muros em brasa se arremessam;
Dos que, perdido o tino, intentam loucos
Achar a salvação, e a morte encontram.
Lá dentro confusão, silêncio foral
São carrascos aqui, vítimas dentro,
Geme o travejamento, estrala a pedra,
Cresce horror sobre horror, desaba o teto,
E o fumo enegrecido se enovela
Co’o vértice sublime os céus roçando.
Como o vulcão que a lava arroja às nuvens,
Como ígnea coluna que da terra
Hiante rebentasse, – tal se eleva,
Tal sobe aos ares, tal se empina e cresce
A labareda portentosa; e baixa,
E desce à terra, c o edifício enrola,
E o sorve inteiro, qual se foram vagas
Que a dura rocha do alicerce abalam,
Que a enlaçam, como a preá, – e ao fundo pego
Levam, deixando e mar branco d’espuma.
No horror da noite, sibilando os ventos,
Línguas piramidais do atroz incêndio.
Fumosas pelas ruas estalando,
Tingem da cor do inferno a cor da noite,
Tingem da cor do sangue a cor do inferno!
– O ar são gritos, fumo o céu, e a terra fogo.
VII
E aqueles que inda sãos e imunes eram,
Os que a peste enjeitou,
Que fome e sede e privações sofreram…
A espada decepou.
E a donzela tremeu, da mãe nos braços
Não salva ainda,
Que incitava os prazeres do soldado
A face linda.
E o fido amante, que de a ver tão bela
Sentiu prazer,
Sente martírios porque a vê formosa
No seu morrer.
Coisa alguma escapou! – Já tudo é cinzas
Tudo destruição:
A coluna, o palácio, a casa, o templo,
O templo da oração!
Meninos, homens e mulheres, – todos
Já rojam sobre o pó;
Mas o Deus, o Deus bom já está vingado.
Por ela já sente dó.
E a vila d’outrora mais ruidosa,
Lá ressurgiu cidade;
Porque o Deus da justiça, o das armadas,
O Deus é de bondade.
A Virgem
Linda virgem simelha a linda rosa,
Que se abre ao romper d’alva;
Encapelam-se as pétalas mimosas,
Lacreadas de pudor com rubro selo:
Cego mortal só lhe respira o incenso;
Mas dela a abelha extrai seu mel mais puro.
Seu nobre coração é como um templo,
Onde só Deus habita;
Ali reina o mistério involto em sombras,
E maga placidez involta em cantos:
Só vê isto o profano; mas o antiste
De Deus a sombra vê, e a voz lhe escuta.
É como um lago de marmóreo leito
Sua alma ingênua e bela:
No fundo não se enxerga o verde limo,
E a lisa face nos amostra os astros.
E onde o humilde pastor só vê luzeiros,
Os anjos lá dos céus contemplam mudos.
E se eu a vejo nos saraus ruidosos,
C’roada de beleza,
E a sombra da tristeza irresistível
Tingir-lhe o rosto, e desbotar-lhe o riso;
Na mulher, que outros vêm, descubro o anjo,
que as asas d’oiro, que perdeu, lamenta!
Então como que sinto arrebatar-me
Simpática atração!
Quisera doces carmes de ternura
Nas mais delgadas cordas da minha Harpa
Cantar-lhe, e assim dizer-lhe: “Um canto ao menos
O acerbo exílio teu torne mais brando!”
Baldado empenho! Começado apenas,
Afrouxa-se-me o canto;
Debaixo dos meus dedos mal palpita
A corda melindrosa da minha Harpa;
E como em espaço, que até d’ar carece,
Tangida, o extremo som morre sem eco!
Adeus
Aos meus amigos do Maranhão
Meus amigos, Adeus! Já no horizonte
O fulgor da manhã se empurpurece:
É puro e branco o céu, – as ondas mansas,
– Favorável a brisa; – irei de novo
Sorver o ar puríssimo das ondas,
E na vasta amplidão dos céus e mares
De vago imaginar embriagar-me!
Meus Amigos, Adeus! – Verei fulgindo
A lua em campo azul, e o sol no ocaso
Tingir de fogo a implacidez das águas;
Verei hórridas trevas lento e lento
Desceram, como um crepe funerário
Em negro esquife, onde repoisa a morte;
Verei a tempestade quando alarga
As negras asas de bulcões, e as vagas
Soberbas encastela, esporeando
O curto bojo de ligeiro barco,
Que geme, e ruge, e empina-se insofrido
Galgando os escarcéus, – bem larga esteira
De fósforo e de luz trás si deixando:
Generoso corcel, que sente as cruzes
Agudas de teimosos acicates
Lacerarem-lhe rábidas o ventre.
Inda uma vez, Adeus! Curtos instantes
De inefável prazer – horas bem curtas
De ventura e de paz frui convosco:
Oásis que encontrei no meu deserto,
Tépido vale entre fragosas serras
Virente derramado, foi a quadra
Da minha vida, que passei convosco.
Aqui de quanto amei, do que hei sofrido,
De tudo quanto almejo, espero, ou temo
Deslembrado vivi! – Oh! quem me dera
Que entre vós outros me alvejasse a fronte,
E que eu morresse entre vós! Mas força oculta,
lrresistível, me persegue e impele.
Qual folha instável em ventoso estio
Do vento ao sopro a esvoaçar sem custo;
Assim vou eu sem tino, – aqui pegadas
Mal firmes assentando – além pedaços
De mim mesmo deixando. Na floresta
O lasso viandante extraviado
Por todo o verde bosque estende os olhos,
E cansado esmorece, – cai, medita,
Respira mais de espaço, cobra alento,
E nas solidões de novo ei-lo se entranha.
Vestígios mal seguros sopra o vento,
Ou nivela-os a chuva, ou relva os cobre:
Talvez que folhas ásperas de arbusto
Mordam velos da túnica, e denotem
(Duvida o viajor, que os vê com pasmo)
Que errante caminheiro ali passasse.
E eu parti! – Não chorei, que do meu pranto
A larga fonte jaz de há muito exausta;
Há muito que os meus olhos não gotejam
O repassado fel d’acre amargura;
E o pranto no meu peito represado
Em cinza o coração me há convertido.
É assim que um vulcão se torna fonte
De linfa amarga e quente; e a fonte em ermo,
Onde não crescem perfumadas flores,
Nem tenras aves seus gorjeios soltam,
Nem triste viajor encontra abrigo.
Rasgado o coração de pena acerba,
Transido de aflições, cheio de mágoa,
Miserando parti! tal quando réprobo,
Adão, cobrindo os olhos co’as mãos ambas,
Em meio a sua dor só descobria
Do Arcanjo os candidíssimos vestidos,
E os lampejos da espada fulminante,
Que o Éden tão mimoso lhe vedava.
Porém quando algum dia o colorido
Das vivas ilusões, que inda conservo,
Sem força esmorecer, – e as tão viçosas
Esp’ranças, que eu educo, se afundarem
Em mar de desenganos; – a desgraça
Do naufrágio da vida há de arrojar-me
A praia tão querida, que ora deixo,
Tal parte o desterrado: um dia as vagas
Hão de os seus restos rejeitar na praia,
Donde tão novo se partira, e onde
Procura a cinza fria achar jazigo.
FIM
Agora e Sempre
Ponham-me embora na crestada Líbia,
Ou lá nas zonas em que o gelo mora
Ali tua alma viverá comigo
Ali teu nome!
Ponham-me em terras que leões só ceiam,
Nas altas serras que o condor habita;
Ali ainda viverá contigo
Minha alma ardente.
Faminto e triste na região deserta,
Co’os pés em sangue de esfarpada estilha.
Cortado o rosto de gelado vento,
Mádida a coma:
Ali aos urros do leão sedento,
Aos crebros gritos do condor alpestre,
Ardendo em chamas d|este amor sem termo,
Direi? Eu te amo!
Duros ferrolhos de prisão medonha
Escute embora sepultar-me em vida;
Embora sinta roxear-me os pulsos
Férreas algemas;
Embora malhos de tortura infame
Quebrem-me os ossos no medroso equúleo:
Agudos dentes de tenaz raivosa
Mordam-me as carnes:
Nas feias sombras de cruel masmorra,
Nos duros tratos da tortura bruta,
Quer só comigo, quer em meio às gentes.
Direi: Eu te amo!
Mas nunca o gelo, nem a frágua ardente,
Nem brutas feras, nem crueza humana
Farão que eu sofra mais agudas dores,
Nem mais penadas!
Reclina-se outro em teu nevado seio,
Cinge-te o corpo em divinais carícias,
Beija-te o colo, beija-te o sorriso,
Goza-te e vive!
E eu no entanto esforço-me com dores!
Praguejo o inferno que nos pôs tão longe,
Louco bravejo, misero soluço…
Desejo e morro!
Ainda Uma Vez Adeus
I
Enfim te vejo! – enfim posso,
Curvado a teus pés, dizer-te,
Que não cessei de querer-te,
Pesar de quanto sofri.
Muito penei! Cruas ânsias,
Dos teus olhos afastado,
Houveram-me acabrunhado
A não lembrar-me de ti!
II
Dum mundo a outro impelido,
Derramei os meus lamentos
Nas surdas asas dos ventos,
Do mar na crespa cerviz!
Baldão, ludíbrio da sorte
Em terra estranha, entre gente,
Que alheios males não sente,
Nem se condói do infeliz!
III
Louco, aflito, a saciar-me
D’agravar minha ferida,
Tomou-me tédio da vida,
Passos da morte senti;
Mas quase no passo extremo,
No último arcar da esperança,
Tu me vieste à lembrança:
Quis viver mais e vivi!
IV
Vivi; pois Deus me guardava
Para este lugar e hora!
Depois de tanto, senhora,
Ver-te e falar-te outra vez;
Rever-me em teu rosto amigo,
Pensar em quanto hei perdido,
E este pranto dolorido
Deixar correr a teus pés.
V
Mas que tens? Não me conheces?
De mim afastas teu rosto?
Pois tanto pôde o desgosto
Transformar o rosto meu?
Sei a aflição quanto pode,
Sei quanto ela desfigura,
E eu não vivi na ventura…
Olha-me bem, que sou eu!
VI
Nenhuma voz me diriges!…
Julgas-te acaso ofendida?
Deste-me amor, e a vida
Que me darias – bem sei;
Mas lembrem-te aqueles feros
Corações, que se meteram
Entre nós; e se venceram,
Mal sabes quanto lutei!
VII
Oh! se lutei!… mas devera
Expor-te em pública praça,
Como um alvo à populaça,
Um alvo aos dictérios seus!
Devera, podia acaso
Tal sacrifício aceitar-te
Para no cabo pagar-te,
Meus dias unindo aos teus?
VIII
Devera, sim; mas pensava,
Que de mim t’esquecerias,
Que, sem mim, alegres dias
T’esperavam; e em favor
De minhas preces, contava
Que o bom Deus me aceitaria
O meu quinhão de alegria
Pelo teu, quinhão de dor!
IX
Que me enganei, ora o vejo;
Nadam-te os olhos em pranto,
Arfa-te o peito, e no entanto
Nem me podes encarar;
Erro foi, mas não foi crime,
Não te esqueci, eu to juro:
Sacrifiquei meu futuro,
Vida e glória por te amar!
X
Tudo, tudo; e na miséria
Dum martírio prolongado,
Lento, cruel, disfarçado,
Que eu nem a ti confiei;
"Ela é feliz (me dizia)
"Seu descanso é obra minha."
Negou-me a sorte mesquinha…
Perdoa, que me enganei!
XI
Tantos encantos me tinham,
Tanta ilusão me afagava
De noite, quando acordava,
De dia em sonhos talvez!
Tudo isso agora onde pára?
Onde a ilusão dos meus sonhos?
Tantos projetos risonhos,
Tudo esse engano desfez!
XII
Enganei-me!… – Horrendo caos
Nessas palavras se encerra,
Quando do engano, quem erra.
Não pode voltar atrás!
Amarga irrisão! reflete:
Quando eu gozar-te pudera,
Mártir quis ser, cuidei qu’era…
E um louco fui, nada mais!
XIII
Louco, julguei adornar-me
Com palmas d’alta virtude!
Que tinha eu bronco e rude
C’o que se chama ideal?
O meu eras tu, não outro;
Stava em deixar minha vida
Correr por ti conduzida,
Pura, na ausência do mal.
XIV
Pensar eu que o teu destino
Ligado ao meu, outro fora,
Pensar que te vejo agora,
Por culpa minha, infeliz;
Pensar que a tua ventura
Deus ab eterno a fizera,
No meu caminho a pusera…
E eu! eu fui que a não quis!
XV
És doutro agora, e pr’a sempre!
Eu a mísero desterro
Volto, chorando o meu erro,
Quase descrendo dos céus!
Dói-te de mim, pois me encontras
Em tanta miséria posto,
Que a expressão deste desgosto
Será um crime ante Deus!
XVI
Dói-te de mim, que t’imploro
Perdão, a teus pés curvado;
Perdão!… de não ter ousado
Viver contente e feliz!
Perdão da minha miséria,
Da dor que me rala o peito,
E se do mal que te hei feito,
Também do mal que me fiz!
XVII
Adeus qu’eu parto, senhora;
Negou-me o fado inimigo
Passar a vida contigo,
Ter sepultura entre os meus;
Negou-me nesta hora extrema,
Por extrema despedida,
Ouvir-te a voz comovida
Soluçar um breve Adeus!
XVIII
Lerás porém algum dia
Meus versos d’alma arrancados,
D’amargo pranto banhados,
Com sangue escritos; – e então
Confio que te comovas,
Que a minha dor te apiade
Que chores, não de saudade,
Nem de amor, – de compaixão.
Aniversário de um Casamento
A MRS. A. N. DA G.
A filha d’Albion bem vinda seja
Ao solo brasileiro!
Bem vinda seja às margens florescentes
Do rio hospitaleiro!
Qu’importa que te acene a Pátria ao longe,
Que vejas incessante
As memória, os templos, os palácios
Da Cidade gigante?
A pátria é conde quer que a vida temos
Sem penar e sem dor;
Onde rostos amigos nos rodeiam,
Onde temos amor:
Onde vozes amigas nos consolam
Na nossa desventura,
Onde alguns olhos chorarão doridos
Na erma sepultura;
A pátria é onde a vida temos presa:
Aqui tão bem há sol!
Tão bem a brisa corre fresca e leve
Da manhã no arrebol!
Aqui tão bem a terra produz flores,
Tão bem os céus têm cor;
Tão bem murmura o rio, e corre a fonte,
E os astros tem fulgor!
Aqui tão bem se arrelva o prado, o monte,
De mimoso tapiz;
Nas asas do silêncio desce a noite
Tão bem sobre o infeliz!
A filha d’Albion bem vinda seja
Ao solo brasileiro;
Bem vinda seja às margens florescentes
Do Rio hospitaleiro!
Compridos anos e folgados viva
Neste ditoso clima,
E veja à par dos filhos seus queridos
Crescer do esposo a estima!
Possa eu tão bem do seu feliz consórcio
De novo em cada ano
Soltar um hino de amizade estreme,
Um canto mais que humano!
Ao Dr João Duarte Lisboa Serra
23 agosto.
Mais um pungir de acérrima saudade,
Mais um canto de lágrimas ardentes,
Oh! minha Harpa, – oh! minha Harpa desditosa.
Escuta, ó meu amigo: da minha alma
Foi uma lira outrora o instrumento;
Cantava nela amor, prazer, venturas,
Até que um dia a morte inexorável
Triste pranto de irmão veio arrancar-te!
As lágrimas dos olhos me caíram,
E a minha lira emudeceu de mágoa!
Então aventei eu que a vida inteira
Do bardo, era um perene sacerdócio
De lágrimas e dor; – tomei uma Harpa:
Na corda da aflição gemeu minha alma,
Foi meu primeiro canto um epicédio!
Minha alma batizou-se em pranto amargo,
Na frágua do sofrer purificou-se!
Lancei depois meus olhos sobre o mundo,
Cantor do sofrimento e da amargura;
E vi que a dor aos homens circundava,
Como em roda da terra o mar se estreita;
Que apenas desfrutamos, – miserandos!
Desbotado prazer entre mil dores,
– Uma rosa entre espinhos aguçados,
Um ramo entre mil vagas combatido.
Voltou-se então p’ra Deus o meu esp’rito,
E a minha voz queixosa perguntou-lhe:
– Senhor, porque do nada me tiraste,
Ou por que a tua voz onipotente
Não fez secar da minha vida a sebe,
Quando eu era principio e feto – apenas?
Outra voz respondeu-me dentro d’alma:
– Ardam teus dias como o feno, – ou durem
Como o fogo de tocha resinosa,
– Como rosa em jardim sejam brilhantes,
Ou baços como o cardo montesinho.
Não deixes de cantar, ó triste bardo. –
E as cordas da minha harpa – da primeira
À extrema – da maior à mais pequena,
Nas asas do tufão – entre perfumes,
Um cântico de amores exaltaram
Ao trono do Senhor; – e eu disse às turbas:
– Ele nos faz gemer porque nos ama;
Vem o perdão nas lágrimas contritas,
Nas asas do sofrer desce a demência;
Sobre quem chora mais ele mais vela!
Seu amor divinal é como a lâmpada,
Na abóbada dum templo pendurada,
Mais luz filtrando em mais opacas trevas.
Eu o conheço: – o cântico do bardo
É bálsamo ao que morre, – é lenitivo,
Mas doloroso, mas funéreo e triste
A quem lhe carpe infausto a morte crua.
Mas quando a alma do justo, espedaçando
O invólucro de lodo, aos céus remonta,
Como estrada de luz correndo os astros,
Seguindo o som dos cânticos dos anjos
Que na presença do Senhor se elevam;
Choro… tão bem Jesus chorou a Lázaro!
Mas na excelsa visão que se me antolha
Bebo consolações, – minha alma anseia
A hora em que também há de asilar-se
No seio imenso do perdão do Eterno.
Chora, amigo: porém quando sentires
O pranto nos teus olhos condensar-se,
Que já não pode mais banhar-te as faces,
Ergue os olhos ao céu, onde a luz mora,
Onde o orvalho se cria, onde parece
Que a tímida esperança nasce e habita.
E se eu – feliz! – puder inda algum dia
Ferir por teu respeito na minha harpa
A leda corda onde o prazer palpita,
A corda do prazer que ainda inteira,
Que virgem de emoção inda conservo,
Suspenderei minha harpa dalgum tronco
Em of’renda à fortuna; – ali sozinha,
Tangida pelo sopro só do vento,
Há de mistérios conversar co’a noite.
De acorde estreme perfumando as brisas:
Qual Harpa de Sião presa aos salgueiros
Que não há de cantar a desventura,
Tendo cantos gentis vibrado nela.
As Artes São Irmãs
As artes são irmãs, e os seus cultores
Do fogo criador nas mesmas chamas,
Perante o mesmo altar, coroam-se, ardendo.
A mesma inspiração, que acende o estro,
Guia a mão do pintor quando debuxa
Do rosto nas feições o brilho interno,
Dá linguagem sublime à estátua muda,
Ou lânguida na lira se transforma
Em sons cadentes, que derramam n’alma
Idéias do prazer — do mal no olvido!
O mesmo entusiasmo as vivifica,
São iguais, são irmãs no amor do belo!
4 de junho de 1852
As Duas Amigas
Já vistes sobre a flor de manso lago
Duas aves brincando solitárias,
Já pousadas na lisa superfície,
Já levantando vôo?
Já vistes duas nuvens no horizonte,
Brancas, orladas com listões de fogo,
A deslumbrante alvura cambiando
Ao pôr de sol estivo?
Já vistes duas lindas mariposas,
Abrindo ao romper d’alva as longas asas,
Onde reflete o sol, como em um prisma,
Belas, garridas cores?
Nem as pombas que vagam solitárias,
Nem as nuvens do ocaso, nem as vagas
Borboletas gentis que adejam livres
Em vale ajardinado:
Tanto não prazem, como doces virgens,
Airosas, belas, com sorrir singelo,
Da vida negra e má duros abrolhos
Impróvidas calcando.
Quanto há no mundo d’ilusões fagueiras,
De perfume e de amor, guardam no peito,
Quanto há de luz no céu mostram nos olhos,
Quanto há de belo – n’alma.
Como um jardim seu coração se mostra,
Seus olhos como um lago transparente,
Sua alma como uma harpa harmoniosa,
Seu peito como um templo!
Mas um fraco arruído espanta as aves,
Uma brisa ligeira as nuvens rasga,
E uma gota de orvalho ensopa as asas
Das leves mariposas.
Desgarrdas voando as aves fogem,
Dos castelos dos céus perdem-se as nuvens,
Nem mais adejam borboletas vagas
Sobre o esmalte das flores.
Pois quem resiste ao perpassar do tempo?
Depois que derramou grato perfume
Sobre as asas dos ventos que a bafejam,
A flor também definha.
Mas um nobre sentir que se enraíza
No peito da mulher, que menos ame,
É como essência preciosa e grata,
Que se lacrou num vaso.
Repassa-o: depois embora o esgotem,
Leves emanações, gratos eflúvios
Há de eterno verter da mesma essência,
Talvez porém mais doces.
As Duas Coroas
Hermosa, en tu linda frente
El laurel sienta mejor,
Que con su regio esplendor,
Corona de rey potente.
G. y S.
Há duas c’roas na terra,
Uma d’ouro cintilante
Com esmalte de diamante,
Na fronte do que é senhor;
Outra modesta e singela,
C’roa de meiga poesia,
Que a fronte ao vate alumia
Com a luz dum resplendor.
Ante a primeira se curvam
Os potentados da terra:
No bojo, que a morte encerra,
Sobre a líquida extensão,
Levam naus os seus ditames
Da peleja entre os horrores;
Vis escravos, crus senhores,
Preito e menagem lhe dão.
E quando o vate suspira
Sobre esta terra maldita,
Ninguém a voz lhe acredita,
Mas riem dos cantos seus:
Os anjos, não; porque sabem
Que essa voz é verdadeira,
Que é dos homens a primeira,
Enquanto a outra é de Deus!
Se eu fora rei, não te dera
Quinhão na régia amargura;
Nem te qu’ria, virgem pura,
Sentada sob o dossel,
Onde a dor tão viva anseia,
Tão cruel, tão funda late,
Como no peito que bate
Sob as dobras do burel.
Não te quisera no trono,
Onde a máscara do rosto,
Cobrindo o interno desgosto,
Ser alegre tem por lei;
Manda Deus, sim, que o rei chore;
Mas que chore ocultamente,
Porque, se o soubera a gente,
Ninguém quisera ser rei!
Mas o vate, quando sofre,
Modula em meigos acentos,
Seus doridos pensamentos,
A sua interna aflição;
E das lágrimas choradas
Extrai um bálsamo santo,
Que vale estancar o pranto
Nos olhos do seu irmão.
(…)
Canção do Tamoio
I
Não chores, meu filho;
Não chores, que a vida
É luta renhida:
Viver é lutar.
A vida é combate,
Que os fracos abate,
Que os fortes, os bravos
Só pode exaltar.
II
Um dia vivemos!
O homem que é forte
Não teme da morte;
Só teme fugir;
No arco que entesa
Tem certa uma presa,
Quer seja tapuia,
Condor ou tapir.
III
O forte, o cobarde
Seus feitos inveja
De o ver na peleja
Garboso e feroz;
E os tímidos velhos
Nos graves concelhos,
Curvadas as frontes,
Escutam-lhe a voz!
IV
Domina, se vive;
Se morre, descansa
Dos seus na lembrança,
Na voz do porvir.
Não cures da vida!
Sê bravo, sê forte!
Não fujas da morte,
Que a morte há de vir!
V
E pois que és meu filho,
Meus brios reveste;
Tamoio nasceste,
Valente serás.
Sê duro guerreiro,
Robusto, fragueiro,
Brasão dos tamoios
Na guerra e na paz.
VI
Teu grito de guerra
Retumbe aos ouvidos
D’imigos transidos
Por vil comoção;
E tremam d’ouvi-lo
Pior que o sibilo
Das setas ligeiras,
Pior que o trovão.
VII
E a mão nessas tabas,
Querendo calados
Os filhos criados
Na lei do terror;
Teu nome lhes diga,
Que a gente inimiga
Talvez não escute
Sem pranto, sem dor!
VIII
Porém se a fortuna,
Traindo teus passos,
Te arroja nos laços
Do inimigo falaz!
Na última hora
Teus feitos memora,
Tranqüilo nos gestos,
Impávido, audaz.
IX
E cai como o tronco
Do raio tocado,
Partido, rojado
Por larga extensão;
Assim morre o forte!
No passo da morte
Triunfa, conquista
Mais alto brasão.
X
As armas ensaia,
Penetra na vida:
Pesada ou querida,
Viver é lutar.
Se o duro combate
Os fracos abate,
Aos fortes, aos bravos,
Só pode exaltar.
Canção
Tenho uma harpa religiosa,
Toda inteira fabricada
De madeira preciosa
Sobre o Líbano cortada.
Foi o Senhor quem ma deu,
Se santas palmas coberta,
Que as notas suas concerta
Aos sons do saltério hebreu!
Tenho alaúde polido
Em que antigos Trovadores,
Em tom de guerra atrevido,
Cantavam trovas de amores.
Mas chegando a Santa Cruz,
De volta do meu desterro,
Cortei-lhe as cordas de ferro.
Cordas de prata lhe pus.
Tenho tão bem uma lira
De festões engrinaldada,
Onde minha alma afinada
Melindres d’amor suspira.
Nas grinaldas, nos festões,
Nas rosas com que s’inflora,
Goteja o orvalho da aurora,
Ditame dos corações.
Eis o que tenho, ó Donzela,
Só harpa, alaúde e lira;
Nem vejo sorte mais bela,
Nem coisa que prefira.
Votei assim ao meu Deus
A minha harpa religiosa,
A ti a lira mimosa,
O grave alaúde aos meus!
Canto Inaugural
À MEMÓRIA DO CÔNEGO JANUÁRIO DA CUNHA
BARBOSA
Onde essa voz ardente e sonorosa,
Essa voz que escutamos tantas vezes,
Polida como a lâmina dum gládio,
Essa voz onde está?
No rostro popular severa e forte,
No púlpito serena, amiga e branda,
Pelas naves do templo reboava,
Como oração piedosa!
E a mão segura, e a fronte audaciosa,
Onde um vulcão de idéias borbulhava
E o generoso ardor de uma alma nobre
– Onde param tão bem?
Novo Colombo audaz por novos marés,
A sonda em punho, os olhos nas estrelas,
Co’as brônzeas quilhas retalhado as vagas
Do inóspito elemento;
Porfioso e tenaz no duro empenho,
No manto do porvir bordava ufano,
Sob os troféus da liberdade sacra,
Os destinos da Pátria!
Noturno viajor que andou vagando
A noite inteira, a revolver-se em trevas,
Onde te foste, quando o sol roxeia
Nevem de um céu mais puro?
Secou-se a voz nas fauces ressequidas
Parou sem força o coração no peito,
Quando somente um pé firmava a custo
Na terra prometida!
E a mão cansada fraquejou… pendeu-lhe.
Inda a vejo pendente, sobre as páginas
Da pátria história, onde gravou seu nome
Tarjado em letras d’oiro.
Pendeu-lhe… quando a mente escandecida
Talvez quadro maior lhe afigurava
Eu a luta acerba do Titã brioso,
Última prole de Saturno.
Inveja Claudiano pincel válido,
Que nos retrata o cataclismo horrendo,
Que ele – poeta – não achou nos combros
Da ignívoma Tessália!
Inveja… mas às formas do Gigante
Sorri-se o grande Homero; – e o cego Bardo
Da verde Erin, entre os heróis famosos
Prazenteiro o recebe!
Dorme, ó lutador, que assaz lutastes!
Dorme agora no gélido sudário;
Foi duro o afã, aspérrima a contenda,
Será fundo o descanso.
Dorme, ó lutador, teu sono eterno;
Mas sobre a lousa do sepulcro humilde,
Como na vida foi, surja o teu busto
Austero e glorioso.
Coluna inteira em combros derrocados,
Rolo encerado, que já beija as praias
Do remoto porvir, – seguro e salbo
Dos naufrágios dum século;
Dorme! – não serei eu quem te desperte,
Meus versos… não serão: – palmas em graça,
Ou pobre rama d’árvore funérea,
Piramidal cipreste.
São flores que desfolha sobe um túmulo
Singelo, entre um rosal, quase fagueiro,
Piedosa mão de peregrino estranho,
Que ali passou acaso!
Caxias
Quanto és bela, ó Caxias! – no deserto,
Entre montanhas, derramada em vale
De flores perenais,
És qual tênue vapor que a brisa espalha
No frescor da manhã meiga soprando
À flor de manso lago.
Tu és a flor que despontaste livre
Por entre os troncos de robustos cedros,
Forte – em gleba inculta;
És qual gazela, que o deserto educa,
No ardor da sesta debruçada exangue
À margem da corrente.
Em mole seda as graças não escondes,
Não cinges d’oiro a fronte que descansas
Na base da montanha;
És bela como a virgem das florestas,
Que no espelho das águas se contempla,
Firmada em tronco anoso.
Mas dia inda virá, em que te pejes
Dos, que ora trajas, símplices ornatos
E amável desalinho:
Da pompa e luxo amiga, hão de cair-te
Aos pés então – da poesia a c’roa
E da inocência o cinto.
Como Se Ama o Calor e a Luz Querida
Como se ama o calor e a luz querida,
A harmonia, o frescor, os sons, os céus,
Silêncio, e cores, e perfume, e vida,
Os pais e a pátria e a virtude e a Deus:
Assim eu te amo, assim; mais do que podem
Dizer-to os lábios meus, — mais do que vale
Cantar a voz do trovador cansada:
O que é belo, o que é justo, santo e grande
Amo em ti. — Por tudo quanto sofro,
Por quanto já sofri, por quanto ainda
Me resta de sofrer, por tudo eu te amo.
O que espero, cobiço, almejo, ou temo
De ti, só de ti pende: oh! nunca saibas
Com quanto amor eu te amo, e de que fonte
Tão terna, quanto amarga o vou nutrindo!
Esta oculta paixão, que mal suspeitas,
Que não vês, não supões, nem te eu revelo,
Só pode no silêncio achar consolo,
Na dor aumento, intérprete nas lágrimas
Consolação nas Lágrimas
Como é belo à meia noite
O azul do céu transparente,
Quando a esfera d’alva lua
Vagueia mui docemente,
Quando a terra não ruidosa
Toda se cala dormente,
Quando o mar tranqüilo e brando
Na areia chora fremente!
Como é belo este silêncio
Da terra todo harmonia,
Que aos céus a mente arrebata
Cheia de meiga poesia!
Como é bela a luz que brilha
Do mar na viva ardentia!
Este pranto como é doce,
Que entorna a melancolia!
Esta aragem como é branda
Que enruga a face do mar,
Que na terra passa e morre
Sem nas folhas sussurrar!
Os sons d’aéreo instrumento
Quisera agora escutar,
Quisera mágoas pungentes
Neste silêncio olvidar!
O azul do céu, nem da lua
A doce luz refletida,
Nem o mar beijando a praia,
Nem a terra adormecida,
Nem meigos sons, nem perfumes,
Nem a brisa mal sentida,
Nem quanto agrada e deleita,
Nem quanto embeleza a vida;
Nada é melhor que este pranto
Em silêncio gotejado,
Meigo e doce, e pouco e pouco
Do coração despegado;
Não soro de fel, mas santo
Frescor em peito chagado;
Não espremido entre dores,
Mas quase em prazer coado!
Delírio
Quando dormimos o nosso espírito vela. – Ésquilo
A noite quando durmo, esclarecendo
As trevas do meu sono,
Uma etérea visão vem assentar-se
Junto ao meu leito aflito!
Anjo ou mulher? não sei. – Ah! se não fosse
Um qual véu transparente,
Como que a alma pura ali se pinta
Ao través do semblante,
Eu a crera mulher… – E tentas, louco,
Recordar o passado,
Transformando o prazer, que desfrutaste,
Em lentas agonias?!
Visão, fatal visão, por que derramas
Sobre o meu rosto pálido
A luz de um longo olhar, que amor exprime
E pede compaixão?
Por que teu coração exala uns fundos,
Magoados suspiros,
Que eu não escuto, mas que vejo e sinto
Nos teus lábios morrer?
Por que esse gesto e mórbida postura
De macerado espírito,
Que vive entre aflições, que já nem sabe
Desfrutar um prazer?
Tu falas! tu que dizes? este acento,
Esta voz melindrosa,
Noutros tempos ouvi, porém mais leda;
Era um hino d’amor.
A voz, que escuto, é magoada e triste,
– Harmonia celeste,
Que à noite vem nas asas do silêncio
Umedecer as faces
Do que enxerga outra vida além das nuvens.
Esta voz não é sua;
É acorde talvez d’harpa celeste,
Caído sobre a terra!
Balbucias uns sons, que eu mal percebo,
Doridos, compassados,
Fracos, mais fracos; – lágrimas despontam
Nos teus olhos brilhantes…
Choras! tu choras!… Para mim teus braços
Por força irresistível
Estendem-se, procuram-me; procuro-te
Em delírio afanoso.
Fatídico poder entre nós ambos
Ergueu alta barreira;
Ele te enlaça e prende… mal resistes…
Cedes enfim. . . acordo!
Acordo do meu sonho tormentoso,
E choro o meu sonhar!
E fecho os olhos, e de novo intento
O sonho reatar.
Embalde! porque a vida me tem preso;
E eu sou escravo seu!
Acordado ou dormindo, é triste a vida
Dês que o amor se perdeu.
Há contudo prazer em nos lembrarmos
Da passada ventura,
Como o que educa flores vicejantes
Em triste sepultura.
Deprecação
Tupã, ó Deus grande! cobriste o teu rosto
Com denso velâmen de penas gentis;
E jazem teus filhos clamando vingança
Dos bens que lhes deste da perda infeliz!
Tupã, ó Deus grande! teu rosto descobree:
Bastante sofremos com tua vingança!
Já lágrimas tristes choraram teus filhos
Teus filhos que choram tão grande mudança.
Anhangá impiedoso nos trouxe de longe
Os homens que o raio manejam cruentos,
Que vivem sem pátria, que vagam sem tino
Trás do ouro correndo, voraces, sedentos.
E a terra em que pisam, e os campos e os rios
Que assaltam, são nossos; tu és nosso Deus :
Por que lhes concedes tão alta pujança,
Se os raios de morte, que vibram, são teus?
Tupã, ó Deus grande! cobriste o teu rosto
Com denso velâmen de penas gentis;
E jazem teus filhos clamando vingança
Dos bens que lhes deste da perda infeliz.
Teus filhos valentes, temidos na guerra,
No albor da manhã quão fortes que os vi!
A morte pousava nas plumas da frecha,
No gume da maça, no arco Tupi!
E hoje em que apenas a enchente do rio .
Cem vezes hei visto crescer e baixar…
Já restam bem poucos dos teus, qu’inda possam
Dos seus, que já dormem, os ossos levar.
Teus filhos valentes causavam terror,
Teus filhos enchiam as bordas do mar,
As ondas coalhavam de estreitas igaras,
De frechas cobrindo os espaços do ar.
Já hoje não caçam nas matas frondosas
A corça ligeira, o trombudo quati…
A morte pousava nas plumas da frecha,
No gume da maça, no arco Tupi!
O Piaga nos disse que breve seria,
A que nos infliges cruel punição;
E os teus inda vagam por serras, por vales,
Buscando um asilo por ínvio sertão!
Tupã, ó Deus grande! descobre o teu rosto:
Bastante sofremos com tua vingança!
Já lágrimas tristes choraram teus filhos,
Teus filhos que choram tão grande tardança.
Descobre o teu rosto, ressurjam os bravos,
Que eu vi combatendo no albor da manhã;
Conheçam-te os feros, confessem vencidos
Que és grande e te vingas, qu’és Deus, ó Tupã!
Desejo
E poi morir. – Metastásio
Ah! que eu não morra sem provar, ao menos
Sequer por um instante, nesta vida
Amor igual ao meu!
Dá, Senhor Deus, que eu sobre a terra encontre
Um anjo, uma mulher, uma obra tua,
Que sinta o meu sentir;
Uma alma que me entenda, irmã da minha,
Que escute o meu silêncio, que me siga
Dos ares na amplidão!
Que em laço estreito unidas, juntas, presas,
Deixando a terra e o lodo, aos céus remontem
Num êxtase de amor!
O Desterro de um Pobre Velho
Et dulces moriens reminiscitur Argos.
— Virgílio
O! schwer ist’s, in der Fremde sterben unbeweint
— Schiller
A aurora vem despontando,
Não tarda o sol a raiar:
Cantam aves, – a natura
Já começa a respirar.
Bem mansa na branca areia
Onda queixosa murmura,
Bem mansa aragem fagueira
Entre a folhagem sussurra.
É hora cheia de encantos,
E hora cheia de amor;
A relva brilha enfeitada,
Mais fresca se mostra a flor.
Esbelta joga a fragata,
Como um corcel a nitrir;
Suspensa a amarra tem presa,
Suspensa, que vai partir.
Em demanda da fragata,
Leve barco vem vogando;
Nele um velho cujas faces
Mudo choro está cortando.
Quem era o velho tão nobre,
Que chorava,
Por assim deixar seus lares,
Que deixava?
"Ancião, por que te ausentas?
Corres tu trás de ventura?
Louco! a morte já vem perto.
Tens aberta a sepultura.
"Louco velho, já não sentes
Bater frouxo o coração? .
Oh! que o sente! – É lei d’exílio
A que o leva em tal sazão!
"Não ver mais a cara pátria,
Não ver mais o que deixava,
Não ver nem filhos, nem filhas,
Nem o casal, que habitava!…
"Oh! que é má pena de morte,
A pena de proscrição;
Traz dores que martirizam,
Negra dor de coração!
"pobre velho! – longe, longe
Vás sustento mendigar;
Tens de sofrer novas dores,
Novos males que penar.
"Não t’há de valer a idade,
Nem a dor tamanho e nobre;
Tens de tragar vis afrontas,
– Insultos que sofre o pobre!
"Nada acharás no degredo,
Que fale dos filhos teus;
Ninguém sente a dor do pobre,,,
Só te fica a mão de Deus.
"O sol, que além vês raiando
Entre nuvens de carmim,
Noutros climas, noutras terras
Não verás raiar assim.
"Não verás a rocha erguida,
Onde t’ias assentar;
Nem o som bem conhecido
Do teu sino hás de escutar.
"Há de cair sobre as ondas
O pranto do teu sofrer,
E nesse abismo salgado,
Salgado se há de perder."
Já chegou junto à fragata,
Já na escada de apoiou,
Já com voz intercortada
Último adeus soluçou.
Canta o nauta, e solta as velas
Ao vento que o vai guiar;
E a fragata mui veleira
Vai fugindo sobre o mar.
E o velho sempre em silêncio
A calva testa dobrou,
E pranto mais abundante
O rosto senil cortou.
Inda se vê branca a vela
Do navio, que partiu;
Mais além – inda se avista!
Mais além – já se sumiu!
Epicédio
Passa la bella donna e par che dorma.
— Tasso
Seu rosto pálido e belo
Já não tem vida nem cor!
Sobre ele a morte descansa,
Envolta em baço palor.
Cerraram-se olhos tão puros,
Que tinham tanto fulgor;
Coração que tanto amava
Já hoje não sente amor;
Que o anjo belo da morte
A par desse anjo baixou!
Trocaram brandas palavras,
Que Deus somente escutou.
Ventura, prazer, ledice
Duma outra vida contou;
E o anjo puro da terra
Prazer da terra enjeitou.
Depois co’as asas candentes
O formoso anjo do céu
Roçou-lhe a face mimosa,
Cobriu-lhe o rosto co’um véu.
Depois o corpo engraçado
Deixou à terra sem vida,
De tênue palor coberto,
– Verniz de estátua esquecida.
E bela assim, como um lírio
Murcho da sesta ao ardor,
Teve a inocência dos anjos,
Tendo o viver duma flor.
Foi breve! – mas a desgraça
A testa não lhe enrugou,
E aos pés do Deus que a crIara
Alma inda virgem levou.
Sai da larva a borboleta,
Sai da rocha o diamante,
De um cadáver mudo e frio
Sai uma alma radiante.
Não choremos essa morte,
Não choremos casos tais;
Quando a terra perde um justo,
Conta um anjo o céu de mais.
Gigante e a Pedra
I
Gigante orgulhoso, de fero semblante,
Num leito de pedra lá jaz a dormir!
Em duro granito repousa o gigante,
Que os raios somente puderam fundir.
Dormido atalaia no serro empinado
Devera cuidoso, sanhudo velar;
O raio passando o deixou fulminado,
E à aurora, que surge, não há de acordar!
Co’os braços no peito cruzados nervosos,
Mais alto que as nuvens, os céus a encarar,
Seu corpo se estende por montes fragosos,
Seus pés sobranceiros se elevam do mar!
De lavas ardentes seus membros fundidos
Avultam imensos: só Deus poderá
Rebelde lançá-lo dos montes erguidos,
Curvados ao peso, que sobre lhe ‘stá.
E o céu, e as estrelas e os astros fulgentes
São velas, são tochas, são vivos brandões,
E o branco sudário são névoas algentes,
E o crepe, que o cobre, são negros bulcões.
Da noite, que surge, no manto fagueiro
Quis Deus que se erguesse, de junto a seus pés,
A cruz sempre viva do sol no cruzeiro,
Deitada nos braços do eterno Moisés.
Perfumam-no odores que as flores exalam,
Bafejam-no carmes de um hino de amor
Dos homens, dos brutos, das nuvens que estalam,
Dos ventos que rugem, do mar em furor.
E lá na montanha, deitado dormido
Campeia o gigante, — nem pode acordar!
Cruzados os braços de ferro fundido,
A fronte nas nuvens, os pés sobre o mar!
II
Banha o sol os horizontes,
Trepa os castelos dos céus,
Aclara serras e fontes,
Vigia os domínios seus:
Já descai p’ra o ocidente,
E em globo de fogo ardente
Vai-se no mar esconder;
E lá campeia o gigante,
Sem destorcer o semblante,
Imóvel, mudo, a jazer!
Vem a noite após o dia,
Vem o silêncio, o frescor,
E a brisa leve e macia,
Que lhe suspira ao redor;
E da noite entre os negrores,
Das estrelas os fulgores
Brilham na face do mar:
Brilha a lua cintilante,
E sempre mudo o gigante,
Imóvel, sem acordar!
Depois outro sol desponta,
E outra noite também,
Outra lua que aos céus monta,
Outro sol que após lhe vem:
Após um dia outro dia,
Noite após noite sombria,
Após a luz o bulcão,
E sempre o duro gigante,
Imóvel, mudo, constante
Na calma e na cerração!
Corre o tempo fugidio,
Vem das águas a estação,
Após ela o quente estio;
E na calma do verão
Crescem folhas, vingam flores,
Entre galas e verdores
Sazonam-se frutos mil;
Cobrem-se os prados de relva,
Murmura o vento na selva,
Azulam-se os céus de anil!
Tornam prados a despir-se,
Tornam flores a murchar,
Tornam de novo a vestir-se,
Tornam depois a secar;
E como gota filtrada
De uma abóbada escavada
Sempre, incessante a cair,
Tombam as horas e os dias,
Como fantasmas, sombrias,
Nos abismos do porvir!
E no féretro de montes
Inconcusso, imóvel, fito,
Escurece os horizontes
O gigante de granito.
Com soberba indiferença
Sente extinta a antiga crença
Dos Tamoios, dos Pajés;
Nem vê que duras desgraças,
Que lutas de novas raças
Se lhe atropelam aos pés!
III
E lá na montanha deitado dormido
Campeia o gigante! — nem pode acordar!
Cruzados os braços de ferro fundido,
A fronte nas nuvens, e os pés sobre o mar!…
IV
Viu primeiro os íncolas
Robustos, das florestas,
Batendo os arcos rígidos,
Traçando homéreas festas,
À luz dos fogos rútilos,
Aos sons do murmuré!
E em Guanabara esplêndida
As danças dos guerreiros,
E o guau cadente e vário
Dos moços prazenteiros,
E os cantos da vitória
Tangidos no boré.
E das igaras côncavas
A frota aparelhada,
Vistosa e formosíssima
Cortando a undosa estrada,
Sabendo, mas que frágeis,
Os ventos contrastar:
E a caça leda e rápida
Por serras, por devesas,
E os cantos da janúbia
Junto às lenhas acesas,
Quando o tapuia mísero
Seus feitos vai narrar!
E o germe da discórdia
Crescendo em duras brigas,
Ceifando os brios rústicos
Das tribos sempre amigas,
— Tamoi a raça antígua,
Feroz Tupinambá.
Lá vai a gente impróvida,
Nação vencida, imbele,
Buscando as matas ínvias,
Donde outra tribo a expele;
Jaz o pajé sem glória,
Sem glória o maracá.
Depois em naus flamívomas
Um troço ardido e forte,
Cobrindo os campos úmidos
De fumo, e sangue, e morte,
Traz dos reparos hórridos
D’altíssimo pavês:
E do sangrento pélago
Em míseras ruínas
Surgir galhardas, límpidas
As portuguesas quinas,
Murchos os lises cândidos
Do impróvido gaulês!
V
Mudaram-se os tempos e a face da terra,
Cidades alastram o antigo paul;
Mas inda o gigante, que dorme na serra,
Se abraça ao imenso cruzeiro do sul.
Nas duras montanhas os membros gelados,
Talhados a golpes de ignoto buril,
Descansa, ó gigante, que encerras os fados,
Que os términos guardas do vasto Brasil.
Porém se algum dia fortuna inconstante
Puder-nos a crença e a pátria acabar,
Arroja-te às ondas, o duro gigante,
Inunda estes montes, desloca este mar!
Hinos A Lua
Salve, ó Lua cândida,
Que trás dos altos montes
Erguendo a fronte pálida,
Dos negros horizontes
As sombras melancólicas
Vens ora afugentar
Salve, ó astro fúlgido,
Que brilhas docemente,
Melhor que o lume trêmulo
D’estrela inquieta, ardente,
Melhor que o brilho esplêndido
Do sol ferindo o mar!
Salve, ó reflexo tênue
Da eterna luz preclara
Nas nossas noites hórridas;
Qual sol que em linfa clara
Desponta os raios vívidos,
Em tarja multicor;
És como a virgem pudica.
Que amor no peito encerra;
Mas só, mas solitária,
Vagando aqui na terra
Triplica o selo místico
Do não sabido amor!
Eu te amo, ó Lua cândida,
No giro sonolento.
E o teu cortejo mádido
De estrelas, e do vento
O sopro merencório,
Que à noite dá frescor.
Por teus influxos mágicos
Minha alma aos sons do canto
Revive; e os olhos úmidos
Gotejam triste pranto,
Que orvalha a chaga tépido,
Que míngua a antiga dor!
Em gélido sudário
De neve alvinitente,
Por terras vi longínquas,
Durante a noite algente,
A tua luz benéfica
Luzir meiga do céu.
Nos mares solitários
Tão bem a vi! – nas vagas
Brincava o lume argênteo,
Cantava o nauta as magas
Canções, no voluntário,
Cansado exílio seu!
Tão bem a vi na límpida
Corrente vagarosa;
Tão bem nas densas árvores
De selva majestosa,
Coando os raios lúbricos
No lôbrego palmar.
E eu só e melancólico
Sentado ao pé da veia,
Que a deslizar-se tímida
Beijava a branca areia;
Ou já na sombra tétrica
Da mata secular;
Em devaneio plácido
Velava, em quanto via
Ao longe – os altos píncaros
Da negra serrania,
– Disformes atalaias,
Que sempre ali serão!
No rórido silêncio
Minha alma se exaltava;
E das visões fantásticas,
Que a lua desenhava,
Seguia os traços áureos,
Tremendo em negro chão!
Pensava ledo, impróvido,
Até que de repente
Da minha vida mísera
Se me antolhava à mente
A quadra breve e rápida
Do malfadado amor.
Então fugia atônito
O bosque, a selva, a fonte,
E as sombras, e o silêncio;
Bem como o cervo insonte,
Que às setas foge pávido
Do fero caçador!
Salve, ó astro fúlgido,
Que brilhas docemente.
Melhor que o lume trêmulo
D’estrela inquieta, ardente,
Melhor que o brilho esplêndido
Do sol ferindo o mar.
Eu te amo, ó Lua pálida,
Vagando em noite bela,
Rompendo as nuvens túrdidas
Da ríspida procela;
Eu te amo até nas lágrimas
Que fazes derramar.
Hinos A Noite
Eu amo a noite solitária e muda,
Quando no vasto céu fitando os olhos,
Além do escuro, que lhe tinge a face,
Alcanço deslumbrado
Milhões de sóis a divagar no espaço,
Como em salas de esplêndido banquete
Mil tochas aromáticas ardendo
Entre nuvens d’incenso!
Eu amo a noite taciturna e quêda!
Amo a doce mudez que ela derrama,
E a fresca aragem pelas densas folhas
Do bosque murmurando:
Então, mau grado o véu que involve a terra,
A vista, do que vela, enxerga mundos,
E apesar do silêncio, o ouvido escuta
Notas de etéreas harpas.
Eu amo a noite taciturna e quêda!
Então parece que da vida as fontes
Mais fáceis correm, mais sonoras soam,
Mais fundas se abrem;
Então parece que mais pura a brisa
Corre, — que então mais funda e leve a fonte
Mana, — e que os sons então mais doce e triste
Da música se espargem.
O peito aspira sôfrego ar de vida,
Que da terra não é; qual flor noturna,
Que bebe orvalho, ele se embebe e ensopa
Em êxtasis de amor;
Mais direitas então, mais puras devem,
Calada a natureza, a terra e os homens,
Subir as orações aos pés do Eterno
Para afagar-lhe o trono!
Assim é que no templo majestoso
Reboa pela nave o som mais alto,
Quando o sacro instrumento quebra a augusta
Mudez do santuário;
Assim é que o incenso mais direito
Se eleva na capela que o resguarda,
E na chave da abóbada topando,
Como um dossel, se espraia.
Eu amo a noite solitária e muda;
Como formosa dona em régios paços,
/Trajando ao mesmo tempo luto e galas
Majestosa e sentida;
Se no dó atentais, de que se enluta,
Certo sentis pesar de a ver tão triste;
Se o rosto lhe fitais, sentis deleite
De a ver tão bela e grave!
Considerai porém o nobre aspecto,
E o porte, e o garfo senhoril e altivo,
E as falas poucas, e o olhar sob’rano,
E a fronte levantada:
No silêncio que a veste, adorna e honra,
Conhecendo por fim quanto ela é grande
Com voz humilde a saudareis rainha,
Curvado e respeitoso.
Eu amo a noite solitária e muda,
Quando, bem como em salas de banquete
Mil tochas aromáticas ardendo;
Giram fúlgidos astros!
Eu amo o leve odor que ela difundo,
E o rorante frescor caindo em per’las,
E a mágica mudez que tanto fala,
E as sombras transparentes!
Oh! Quando sobre a terra ela se estende,
Como em praia arenosa mansa vaga;
Ou quando, como a flor dentre o seu musgo,
A aurora desabrocha;
Mais forte e pura a voz humana soa,
E mais se acorda ao hino harmonioso,
Que a natureza sem cessar repete,
E Deus gostoso escuta.
Hinos a Tempestade
I
De cor azul brilhante o espaço imenso
Cobre-se inteiro; o sol vivo luzindo
Do bosque a verde coma esmalta e doira,
E na corrente dardejando a prumo
Cintila e fulge em lâminas doiradas.
Tudo é luz, tudo vida, e tudo cores!
Nos céus um ponto só negreja escuro!
Eis que das partes, onde o sol se esconde,
Brilha um clarão fugaz pálido e breve:
Outro vem após ele, inda outro, muitos;
Sucedem-se freqüentes, — mais freqüentes,
Assumem cor mais viva, –inda mais viva,
E em breve espaço conquistando os ares
Os horizontes co’o fulgir roxeiam.
Qual manca d’óleo em tela acetinada,
Que os fios todos lhe repassa e embebe;
Ou qual abutre do palácio aéreo
Tombando acinte, — no descer sem asas
Um ponto só, – até que em meia altura
Abrindo-as, paira majestoso e horrendo:
Assim o negro ponto avulta e cresce,
E a cúpula dos céus de cor medonha
Tinge, e os céus alastra, e o espaço ocupa.
A abóbada de trevas fabricada
Descansa em capitéis de fogo ardente!
De quando em quando o vento na floresta
Silva, ruge, e morre; e o vento ao longe
Rouqueja, e brama, e cava-se empolado,
E aos píncaros da rocha enegrecida
De iroso e mal sofrido a espuma arroja!
Raivoso turbilhão consigo arrasta
O argueiro, a folha em vórtice espantoso;
No vale arranca a flor, sacode os troncos,
No mar os vagalhões incita e cruza.
II
Os sons da tempestade ao longe escuto!
Concentra a natureza os seus esforços
Primeiro que entre em luta; não lampeja
Ínvio fogo nos céus; não sopra o vento:
É tudo escuridão, silêncio e trevas!
Somente o mar de soluçar não cessa,
Nem de rugir as ramas buliçosas,
Nem de soar confuso borborinho,
Incompr’ensível, como que sem causa,
Imenso como o eco de mil vozes
No céu de extensa gruta repulsando.
Silêncio!perto vem a tempestade!
Grávidas nuvens de fatais coriscos,
Sem rumo, como nau em mar desfeito,
Eu muda escuridão negros fantasmas,
Indistintos, em forma, — ondulam, jogam.
Logo poder oculto impele as nuvens,
Atraem-se os castelos tenebrosos,
Embatem-se nos ares, — brilha o raio,
E o ronco do trovão após ribomba!
III
Ruge e brame, sublime tempestade!
Desprende as asas do tufão que enfreias,
Despega os elos do veloz corisco
E as nuvens rasga em rúbidas crateras.
Os fuzis da cadeia temerosa
Desfaz e quebra; e o espaço e as nuvens
Do teu açoite aos látegos bramindo,
Ocupem de pavor os céus e a terra,
Ruge, e o teu poder mostra rugindo;
Que assim por teus influxos me comoves,
Que todo me eletrizas e me arroubas!
Qual foi Mazeppa no veloz ginete
Por desertos, por sirtes arenosas
Jungido e preso e atônito levado;
Assim minha alma sobe e vai contigo,
E vinga os teus palácios mais subidos,
Contempla os teus horrores, e dos astros
No prazer, que lhe dás, toda embebida,
Mau trado teu horror, folga contigo!
Parece que ali tem a régia c’roa
Que o feliz condenado achou na Ucrânia.
Ruge, ruge embora, ó tempestade!
IV
Enfim descendo a chuva copiosa
Nuvens, bulcões desfaz; os rios crescem,
De pérolas a relva se matiza,
O céu de puro azul todo se arreia,
Sorri-se a natureza, e o sol rutila!
V
Assim, meu Deus, assim será no dia
Do final julgamento, quando o anjo
Soprar a trompa que desfez os muros
De Jericó soberba!
O mar sobrepujando os seus limites,
Com roncos temerosos, nunca ouvidos,
Virá para sorver, com fúria brava,
Ilhas e continentes.
O sol, perdendo o brilho e a natureza,
Não luz, mas puro fogo, há de acender-se,
Como o fogo sagrado, que se prende
Nas cortinas do templo.
Os orbes dos seus eixos desmontados,
No abismo hão de cair com grande estrondo,
E, redomas de vidro, hão-de partir-se
Em pedaços sem conto.
Do abismo as solidões hão-de acordar-se!
Flamívomos vapores condensados,
Te nós, e além de nós, hão de elevar-se
Em pavoroso incêndio.
O ar há de acender-se, a terra em fogo
Tornar-se, como o ferro ardendo em frágua,
Coalhar-se o mar e em áspera secura
Converterem-se as ondas.
E nesta confusão de fumo e chamas,
Neste caos, que a mente mal alcança,
Quando nada existir de quanto existe,
Será vencida a morte.
Logo, à um só dizer do Onipotente,
O pó segunda vez há de animar-se,
E os mortos, mal sofrendo a luz da vida,
Atônitos, pasmados;
Hão de erguer-se na campa, inteiros, vivos,
E como Adão, a tatear os membros,
Estranhos a existência já vivida,
Perguntarão: Quem somos?
Então, Senhor, então, — tu o disseste—
Virás cheio de glória e majestade,
Em sólio de luzeiros resplendente,
E em celeste cortejo!
Virás, sol da justiça em fins do mundo
Acalmar a procela, e quando aos mortos
Disseres tu, quem és, — lembrar-nos-emos,
Senhor, do que já fomos.
Feliz então quem só viveu contigo,
Quem n’âncora da fé prendeu sua alma,
Quem só em ti fundou sua esperança,
Pequeno e humilde!
Feliz então quem tua lei guardando,
Seus passos graduou nos teus caminhos;
Quem dia e noite revolveu consigo
Como aplacar-te.
Ideia de Deus
I
À voz de Jeová infindos mundos
Se formaram do nada;
Rasgou-se o horror das trevas, fez-se o dia,
E a noite foi criada,
Luziu no espaço a lua! sobre a terra
Rouqueja o mar raivoso,
E as esferas nos céus ergueram hinos
Ao Deus prodigioso.
Hino de amar a criação, que soa
Eternal, incessante,
Da noite no remanso, no ruído
Do dia cintilante!
A morte, as aflições, o espaço, o tempo,
O que é para o Senhor?
Eterno, imenso, que lh’importa a sanha
Do tempo roedor?
Como um raio de luz, percorre o espaço,
E tudo nota e vê –
O argueiro, os mundos, o universo, o justo;
E o homem que não crê.
E ele que pode aniquilar os mundos,
Tão forte como ele é,
E vê e passa, e não castiga o crime,
Nem o ímpio sem fé!
Porém quando corrupto um povo inteiro
O Nome seu maldiz,
Quando só vive de vingança e roubos,
Julgando-se feliz;
Quando o ímpio comanda, quando o justo
Sofre as penas do mal,
E as virgens sem pudor, e as mães sem honra.
E a justiça venal;
Ai da perversa, da nação maldita,
Cheia de ingratidão,
Que há de ela mesma sujeitar seu colo
A justa punição.
Ou já terrível peste expande as asas,
Bem lenta a esvoaçar;
Vai de uns a outros, dos festins conviva,
Hóspede em todo o lar!
Ou já torvo rugir da guerra acesa
Espalha a confusão;
E a esposa, e a filha, de tenor opresso,
Não sente o coração.
E o pai, e o esposo, no morrer cruento,
Vomita o fel raivoso;
– Milhões de insetos vis que um pé gigante
Enterra em chão lodoso.
E do povo corrupto um povo nasce
Esperançoso e crente.
Como do podre e carunchoso tronco
Hástea forte e virente.
II
Oh! como é grande o Senhor Deus, que os mundos
Equilibra nos ares;
Que vai do abismo aos céus, que susta as iras
Do pélago fremente,
A cujo sopro a máquina estrelada
Vacila nos seus eixos,
A cujo aceno os querubins se movem
Humildes, respeitosos,
Cujo poder, que é sem igual, excede
A hipérbole arrojada!
Oh! como é grande o Senhor Deus dos mundos,
O Senhor dos prodígios.
III
Ele mandou que o sol fosse princípio,
E razão de existência,
Que fosse a luz dos homens – olho eterno
Da sua providência.
Mandou que a chuva refrescasse os membros,
Refizesse o vigor
Da terra hiante, do animal cansado
Em praino abrasador.
Mandou que a brisa sussurrasse amiga,
Roubando aroma à flor;
Que os rochedos tivessem longa vida,
E os homens grato amor!
Oh! como é grande e bom o Deus que manda
Um sonho ao desgraçado,
Que vive agro viver entre misérias,
De ferros rodeado;
O Deus que manda ao infeliz que espere
Na sua providência;
Que o justo durma, descansado e forte
Na sua consciência!
Que o assassino de contínuo vele,
Que trema de morrer;
Enquanto lá nos céus, o que foi morto,
Desfruta outro viver!
Oh! como é grande o Senhor Deus, que rege
A máquina estrelada,
Que ao triste dá prazer; descanso e vida
À mente atribulada!
Inocência
Ó meu anjo, vem correndo,
Vem tremendo
Lançar-te nos braços meus;
Vem depressa, que a lembrança
Da tardança
Me aviva os rigores teus.
Do teu rosto, qual marfim,
De carmim
Tinge um nada a cor mimosa;
É belo o pudor, mas choro,
E deploro
Que assim sejas medrosa.
Por inocente tens medo
De tão cedo,
De tão cedo ter amor;
Mas sabe que a formosura
Pouco dura,
Pouco dura, como a flor.
Corre a vida pressurosa,
como a rosa,
Como a rosa na corrente.
Amanhã terás amor?
Como a flor,
Como a flor fenece a gente.
Hoje ainda és tu donzela
Pura e bela,
Cheia de meigo pudor;
Amanhã menos ardente
De repente
Talvez sintas meu amor.
Juca Pirama
I
No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos – cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d’altiva nação;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.
São rudos, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
Condão de prodígios, de glória e terror!
As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,
As armas quebrando, lançando-as ao rio,
O incenso aspiraram dos seus maracás:
Medrosos das guerras que os fortes acendem,
Custosos tributos ignavos lá rendem,
Aos duros guerreiros sujeitos na paz.
No centro da taba se estende um terreiro,
Onde ora se aduna o concílio guerreiro
Da tribo senhora, das tribos servis:
Os velhos sentados praticam d’outrora,
E os moços inquietos, que a festa enamora,
Derramam-se em torno dum índio infeliz.
Quem é? – ninguém sabe: seu nome é ignoto,
Sua tribo não diz: – de um povo remoto
Descende por certo – dum povo gentil;
Assim lá na Grécia ao escravo insulano
Tornavam distinto do vil muçulmano
As linhas corretas do nobre perfil.
Por casos de guerra caiu prisioneiro
Nas mãos dos Timbiras: – no extenso terreiro
Assola-se o teto, que o teve em prisão;
Convidam-se as tribos dos seus arredores,
Cuidosos se incumbem do vaso das cores,
Dos vários aprestos da honrosa função.
Acerva-se a lenha da vasta fogueira,
Entesa-se a corda de embira ligeira,
Adorna-se a maça com penas gentis:
A custo, entre as vagas do povo da aldeia
Caminha o Timbira, que a turba rodeia,
Garboso nas plumas de vário matiz.
Entanto as mulheres com leda trigança,
Afeitas ao rito da bárbara usança,
O índio já querem cativo acabar:
A coma lhe cortam, os membros lhe tingem,
Brilhante enduape no corpo lhe cingem,
Sombreia-lhe a fronte gentil canitar.
II
Em fundos vasos d’alvacenta argila ferve o cauim;
Enchem-se as copas, o prazer começa, reina o festim.
O prisioneiro, cuja morte anseiam, sentado está,
O prisioneiro, que outro sol no ocaso jamais verá!
A dura corda, que lhe enlaça o colo, mostra-lhe o fim
Da vida escura, que será mais breve do que o festim!
Contudo os olhos d’ignóbil pranto secos estão;
Mudos os lábios não descerram queixas do coração.
Mas um martírio, que encobrir não pode, em rugas faz
A mentirosa placidez do rosto na fronte audaz!
Que tens, guerreiro? Que temor te assalta no passo horrendo?
Honra das tabas que nascer te viram, folga morrendo.
Folga morrendo; porque além dos Andes revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos da fria morte.
Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva, lá murcha e pende:
Somente ao tronco, que devassa os ares, o raio ofende!
Que foi? Tupã mandou que ele caísse, como viveu;
E o caçador que o avistou prostrado esmoreceu!
Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos da fria morte.
III
Em larga roda de novéis guerreiros
Ledo caminha o festival Timbira,
A quem do sacrifício cabe as honras.
Na fronte o canitar sacode em ondas,
O enduape na cinta se embalança,
Na destra mão sopesa a ivirapeme,
Orgulhoso e pujante. – Ao menor passo
Colar d’alvo marfim, insígnia d’honra,
Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme,
Como que por feitiço não sabido
Encantadas ali as almas grandes
Dos vencidos Tapuias, inda chorem
Serem glória e brasão d’imigos feros.
"Eis-me aqui, diz ao índio prisioneiro;
"Pois que fraco, e sem tribo, e sem família,
"As nossas matas devassaste ousado,
"Morrerás morte vil da mão de um forte."
Vem a terreiro o mísero contrário;
Do colo à cinta a muçurana desce:
"Dize-nos quem és, teus feitos canta,
"Ou se mais te apraz, defende-te." Começa
O índio, que ao redor derrama os olhos,
Com triste voz que os ânimos comove.
IV
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo Tupi.
Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.
Já vi cruas brigas,
De tribos imigas,
E as duras fadigas
Da guerra provei;
Nas ondas mendaces
Senti pelas faces
Os silvos fugaces
Dos ventos que amei.
Andei longes terras,
Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras
Dos vis Aimorés;
Vi lutas de bravos,
Vi fortes – escravos!
De estranhos ignavos
Calcados aos pés.
E os campos talados,
E os arcos quebrados,
E os piagas coitados
Já sem maracás;
E os meigos cantores,
Servindo a senhores,
Que vinham traidores,
Com mostras de paz
Aos golpes do imigo
Meu último amigo,
Sem lar, sem abrigo
Caiu junto a mi!
Com plácido rosto,
Sereno e composto,
O acerbo desgosto
Comigo sofri.
Meu pai a meu lado
Já cego e quebrado,
De penas ralado,
Firmava-se em mi:
Nós ambos, mesquinhos,
Por ínvios caminhos,
Cobertos d’espinhos
Chegamos aqui!
O velho no entanto
Sofrendo já tanto
De fome e quebranto,
Só qu’ria morrer!
Não mais me contenho,
Nas matas me embrenho,
Das frechas que tenho
Me quero valer.
Então, forasteiro,
Caí prisioneiro
De um troço guerreiro
Com que me encontrei:
O cru dessossego
Do pai fraco e cego,
Enquanto não chego,
Qual seja – dizei!
Eu era o seu guia
Na noite sombria,
A só alegria
Que Deus lhe deixou:
Em mim se apoiava,
Em mim se firmava,
Em mim descansava,
Que filho lhe sou.
Ao velho coitado
De penas ralado,
Já cego e quebrado,
Que resta? – Morrer.
Enquanto descreve
O giro tão breve
Da vida que teve,
Deixa-me viver!
Não vil, não ignavo,
Mas forte, mas bravo,
Serei vosso escravo:
Aqui virei ter.
Guerreiros, não coro
Do pranto que choro;
Se a vida deploro,
Também sei morrer.
V
Soltai-o! – diz o chefe. Pasma a turba;
Os guerreiros murmuram: mal ouviram,
Nem pode nunca um chefe dar tal ordem!
Brada segunda vez com voz mais alta,
Afrouxam-se as prisões, a embira cede,
A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo,
– Timbira, diz o índio enternecido,
Solto apenas dos nós que o seguravam:
És um guerreiro ilustre, um grande chefe,
Tu que assim do meu mal te comoveste,
Nem sofres que, transposta a natureza,
Com olhos onde a luz já não cintila,
Chore a morte do filho o pai cansado,
Que somente por seu na voz conhece.
– És livre; parte.
– E voltarei.
– Debalde.
– Sim, voltarei, morto meu pai.
– Não voltes!
É bem feliz, se existe, em que não veja,
Que filho tem, qual chora: és livre; parte!
– Acaso tu supões que me acobardo,
Que receio morrer!
– És livre; parte!
– Ora não partirei; quero provar-te
Que um filho dos Tupis vive com honra,
E com honra maior, se acaso vencem,
Da morte o passo glorioso afronta.
– Mentiste, que um Tupi não chora nunca,
E tu choraste!… parte; não queremos
Com carne vil enfraquecer os fortes.
Sobresteve o Tupi: – arfando em ondas
O rebater do coração se ouvia
Precipite. – Do rosto afogueado
Gélidas bagas de suor corriam:
Talvez que o assaltava um pensamento…
Já não… que na enlutada fantasia,
Um pesar, um martírio ao mesmo tempo,
Do velho pai a moribunda imagem
Quase bradar-lhe ouvia: – Ingrato! ingrato!
Curvado o colo, taciturno e frio,
Espectro d’homem, penetrou no bosque!
VI
– Filho meu, onde estás?
– Ao vosso lado;
Aqui vos trago provisões: tomai-as,
As vossas forças restaurar perdidas,
E a caminho, e já!
– Tardaste muito!
Não era nado o sol, quando partiste,
E frouxo o seu calor já sinto agora!
– Sim, demorei-me a divagar sem rumo,
Perdi-me nestas matas intrincadas,
Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo;
Convém partir, e já!
– Que novos males
Nos resta de sofrer? – que novas dores,
No outro fado pior Tupã nos guarda?
– As setas da aflição já se esgotaram,
Nem para novo golpe espaço intacto
Em nossos corpos resta.
– Mas tu tremes
– Talvez do afã da caça…
– Oh filho caro
Um quê misterioso aqui me fala,
Aqui no coração; piedosa fraude
Será por certo, que não mentes nunca!
Não conheces temor, e agora temes?
Vejo e sei: é Tupã que nos aflige,
E contra o seu querer não valem brios.
Partamos!… – E com mão trêmula, incerta
Procura o filho, tateando as trevas
Da sua noite lúgubre e medonha.
Sentindo o acre odor das frescas tintas,
Uma idéia fatal correu-lhe à mente…
Do filho os membros gélidos apalpa,
E a dolorosa maciez das plumas
Conhece estremecendo: – foge, volta,
encontra sob as mãos o duro crânio,
Despido então do natural ornato!…
Recua aflito e pávido, cobrindo
Às mãos ambas os olhos fulminados,
Como que teme ainda o triste velho
De ver, não mais cruel, porém mais clara,
Daquele exício grande a imagem viva
Ante os olhos do corpo afigurada.
Não era que a verdade conhecesse
Inteira e tão cruel qual tinha sido;
Mas que funesto azar correra o filho,
Ele o via; ele o tinha ali presente;
E era de repetir-se a cada instante.
A dor passada, a previsão futura
E o presente tão negro, ali os tinha;
Ali no coração se concentrava,
Era num ponto só, mas era a morte!
– Tu prisioneiro, tu?
– Vós o dissesses.
– Dos índios?
– Sim.
– De que nação?
– Timbiras
– E a muçurana funeral rompeste,
Dos falsos manitôs quebraste a maça…
– Nada fiz… aqui estou.
– Nada! –
Emudecem;
Curto instante depois prossegue o velho:
– Tu és valente, bem o sei; confesso,
Fizeste-o, certo, ou já não foras vivo!
– Nada fiz; mas souberam da existência
De um pobre velho, que em mim só vivia…
– E depois?…
-Eis-me aqui.
-Fica essa taba?
– Na direção do sol, quando transmonta.
– Longe?
– Não muito.
– Tens razão: partamos.
– E quereis ir?…
– Na direção do ocaso.
VII
"Por amor de um triste velho,
Que ao termo fatal já chega,
Vós, guerreiros, concedesses
A vida a um prisioneiro.
Ação tão nobre vos honra,
Nem tão alta cortesia
Vi eu jamais praticada
Entre os Tupis – e mas foram
Senhores em gentileza.
"Eu porém nunca vencido,
Nem os combates por armas
Nem por nobreza nos atos;
Aqui venho, e o filho trago.
Vós o dizeis prisioneiro,
Seja assim como dizeis;
Manda! vir a lenha, o fogo,
A maça do sacrifício
E a muçurana ligeira:
Em tudo o rito se cumpra!
E quando eu for só na terra,
Certo acharei entre os vossos,
Que tão gentis se revelam,
Alguém que meus passos guie;
Alguém, que vendo o meu peito
Coberto de cicatrizes,
Tomando a vez de meu filho,
De haver-me por pai se ufane!"
Mas o chefe dos Timbiras,
Os sobrolhos encrespando,
Ao velho Tupi guerreiro
Responde com torvo acento:
– Nada farei do que dizes:
É teu filho imbele e fraco!
Aviltaria o triunfo
Da mais guerreira das tribos
Derramar seu ignóbil sangue:
Ele chorou de cobarde;
Nós outros, fortes Timbiras,
Só de heróis fazemos pasto. –
Do velho Tupi guerreiro
A surda voz na garganta
Faz ouvir uns sons confusos,
Como os rugidos de um tigre,
Que pouco a pouco se assanha!
VIII
"Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de vis Aimorés.
"Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!
"Não encontres doçura no dia,
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.
"Que a teus passos a relva se torre;
Murchem prados, a flor desfaleça,
E o regato que límpido corre,
Mais te acenda o vesano furor;
Suas águas depressa se tornem,
Ao contacto dos lábios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde festas como asco e terror!
"Sempre o céu, como um teto incendido,
Creste e punja teus membros malditos
E o oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.
"Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d’argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sé maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és."
IX
Isto dizendo, o meserando velho
A quem Tupã tamanha dor, tal fado
Já nos confins da vida reservara,
Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias
Da sua noite escura as densas trevas
Palpando. – Alarma! alarma! – O velho para.
O grito que escutou é voz do filho,
Voz de guerra que ouviu já tantas vezes
Noutra quadra melhor. – Alarma! alarma!
– Esse momento só vale apagar-lhe
Os tão compridos transes, as angústias,
Que o frio coração lhe atormentaram
De guerreiro e de pai: – vale, e de sobra.
Ele que em tanta dor se contivera,
Tomado pelo súbito contraste,
Desfaz-se agora em pranto copioso,
Que o exaurido coração remoça.
A taba se alborota, os golpes descem,
Gritos, imprecações profundas soam,
Emaranhada a multidão braveja,
Revolve-se, enovela-se confusa,
E mais revolta em mor furor se acende.
E os sons dos golpes que incessantes fervem.
Vozes, gemidos, estertor de morte
Vão longe pelas ermas serranias
Da humana tempestade propagando
Quantas vagas de povo enfurecido
Contra um rochedo vivo se quebravam.
Era ele, o Tupi; nem fora justo
Que a fama dos Tupis – o nome, a glória,
Aturado labor de tantos anos,
Derradeiro brasão da raça extinta,
De um jacto e por um só se aniquilasse.
– Basta! clama o chefe dos Timbiras,
– Basta, guerreiro ilustre! assaz lutaste,
E para o sacrifício é mister forças. –
O guerreiro parou, caiu nos braços
Do velho pai, que o cinge contra o peito,
Com lágrimas de júbilo bradando:
"Este, sim, que é meu filho muito amado!
"E pois que o acho enfim, qual sempre o tive,
"Corram livres as lágrimas que choro,
"Estas lágrimas, sim, que não desonram."
X
Um velho Timbira, coberto de glória,
guardou a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi!
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
do que ele contava,
Dizia prudente: – "Meninos, eu vi!
"Eu vi o brioso no largo terreiro
cantar prisioneiro
Seu canto de morte, que nunca esqueci:
Valente, como era, chorou sem ter pejo;
parece que o vejo,
Que o tenho nest’hora diante de mim.
"Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo!
Pois não, era um bravo;
Valente e brioso, como ele, não vi!
E à fé que vos digo: parece-me encanto
Que quem chorou tanto,
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!"
Assim o Timbira, coberto de glória,
guardava a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi.
E à noite nas tabas, se alguém duvidava
do que ele contava,
Tomava prudente: "Meninos, eu vi!"
Leito de Folhas Verdes
Por que tardas, Jatir, que tanto a custo
À voz do meu amor moves teus passos?
Da noite a viração, movendo as folhas,
Já nos cimos do bosque rumoreja.
Eu sob a copa da mangueira altiva
Nosso leito gentil cobri zelosa
Com mimoso tapiz de folhas brandas,
Onde o frouxo luar brinca entre flores.
Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
Já solta o bogari mais doce aroma!
Como prece de amor, como estas preces,
No silêncio da noite o bosque exala.
Brilha a lua no céu, brilham estrelas,
Correm perfumes no correr da brisa,
A cujo influxo mágico respira-se
Um quebranto de amor, melhor que a vida!
A flor que desabrocha ao romper d’alva
Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Eu sou aquela flor que espero ainda
Doce raio do sol que me dê vida.
Sejam vales ou montes, lago ou terra,
Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,
Vai seguindo após ti meu pensamento;
Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!
Meus olhos outros olhos nunca viram,
Não sentiram meus lábios outros lábios,
Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
A arazóia na cinta me apertaram.
Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
Já solta o bogari mais doce aroma
Também meu coração, como estas flores,
Melhor perfume ao pé da noite exala!
Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes
À voz do meu amor, que em vão te chama!
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
A brisa da manhã sacuda as folhas!
Lira
Se me queres a teus pés ajoelhado,
Ufano de me ver por ti rendido,
Ou já em mudas lágrimas banhado;
Volve, impiedosa,
Volve-me os olhos;
Basta uma vez!
Se me queres do rojo sobre a terra,
Beijando a fímbria dos vestidos teus,
Calando as queixas que meu peito encerra,
Dize-me, ingrata,
Dize-me: eu quero!
Basta uma vez!
Mas se antes folgas de me ouvir na lira
Louvor singelo dos amores meus,
Por que minha alma há tanto em vão suspira;
Dize-me, ó bela,
Dize-me: eu te amo!
Basta uma vez!
Marabá
Eu vivo sozinha, ninguém me procura!
Acaso feitura
Não sou de Tupá!
Se algum dentre os homens de mim não se esconde:
— "Tu és", me responde,
"Tu és Marabá!"
— Meus olhos são garços, são cor das safiras,
— Têm luz das estrelas, têm meigo brilhar;
— Imitam as nuvens de um céu anilado,
— As cores imitam das vagas do mar!
Se algum dos guerreiros não foge a meus passos:
"Teus olhos são garços",
Responde anojado, "mas és Marabá:
"Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes,
"Uns olhos fulgentes,
"Bem pretos, retintos, não cor d’anajá!"
— É alvo meu rosto da alvura dos lírios,
— Da cor das areias batidas do mar;
— As aves mais brancas, as conchas mais puras
— Não têm mais alvura, não têm mais brilhar.
Se ainda me escuta meus agros delírios:
— "És alva de lírios",
Sorrindo responde, "mas és Marabá:
"Quero antes um rosto de jambo corado,
"Um rosto crestado
"Do sol do deserto, não flor de cajá."
— Meu colo de leve se encurva engraçado,
— Como hástea pendente do cáctus em flor;
— Mimosa, indolente, resvalo no prado,
— Como um soluçado suspiro de amor! —
"Eu amo a estatura flexível, ligeira,
Qual duma palmeira",
Então me respondem; "tu és Marabá:
"Quero antes o colo da ema orgulhosa,
Que pisa vaidosa,
"Que as flóreas campinas governa, onde está."
— Meus loiros cabelos em ondas se anelam,
— O oiro mais puro não tem seu fulgor;
— As brisas nos bosques de os ver se enamoram
— De os ver tão formosos como um beija-flor!
Mas eles respondem: "Teus longos cabelos,
"São loiros, são belos,
"Mas são anelados; tu és Marabá:
"Quero antes cabelos, bem lisos, corridos,
"Cabelos compridos,
"Não cor d’oiro fino, nem cor d’anajá,"
————
E as doces palavras que eu tinha cá dentro
A quem nas direi?
O ramo d’acácia na fronte de um homem
Jamais cingirei:
Jamais um guerreiro da minha arazóia
Me desprenderá:
Eu vivo sozinha, chorando mesquinha,
Que sou Marabá!
Meu Anjo, Escuta
Meu anjo, escuta: quando junto à noite
Perpassa a brisa pelo rosto teu,
Como suspiro que um menino exala;
Na voz da brisa quem murmura e fala
Brando queixume, que tão triste cala
No peito teu?
Sou eu, sou eu, sou eu!
Quando tu sentes lutuosa imagem
D’aflito pranto com sombrio véu,
Rasgado o peito por acerbas dores;
Quem murcha as flores
Do brando sonho? — Quem te pinta amores
Dum puro céu?
Sou eu, sou eu, sou eu!
Se alguém te acorda do celeste arroubo,
Na amenidade do silêncio teu,
Quando tua alma noutros mundos erra,
Se alguém descerra
Ao lado teu
Fraco suspiro que no peito encerra;
Sou eu, sou eu, sou eu!
Se alguém se aflige de te ver chorosa,
Se alguém se alegra co’um sorriso teu,
Se alguém suspira de te ver formosa
O mar e a terra a enamorar e o céu;
Se alguém definha
Por amor teu,
Sou eu, sou eu, sou eu!
Mimosa e Bela
I
Tão bela és, tão mimosa,
Qual viçosa
Fresca rosa,
Que em serena madrugada
Despontada,
Rorejada
Foi pelo orvalho do céu;
E a aurora que tudo esmalta,
Brilha reflexos de prata
No orvalho que ali prendeu.
II
Quando um penar aflitivo,
Sem motivo,
D’improviso
Tua alma ocupa e entristece,
Que padece,
Que esmorece
Com aquele imaginar;
Aumenta a tua beleza
Lânguido véu de tristeza,
Palor de quem sabe amar.
III
Assim murcha a sensitiva,
Sempre viva,
Sempre esquiva;
Assim perde o colorido
Por um toque irrefletido
Mal sentido:
Assim vai o nenúfar,
Como que sofre e tem mágoas,
Esconder-se em fundas águas,
Te que o sol torne a brilhar.
IV
Mas também a flor brincada,
Perfumada,
Debruçada
Sobre a tranqüila corrente,
Logo sente
Vir a enchente
Longe, longe a rouquejar,
Que a pobrezinha desfolha,
Sem lhe deixar uma folha,
Sem deixa-la em seu lugar.
V
Não consintas pois que as mágoas,
Como as águas,
Que das fragas
Furiosas vêm tombando,
Vão tomando,
Vão levando
A flor do teu coração!
Há na vida u’amor somente,
Um só amor inocente,
Uma só firme paixão.
VI
Sê antes flor, bem-fadada,
Suspirada,
Bafejada
Pela brisa que a namora,
Pela frescura da aurora,
Que a colora:
À luz do sol se recreia.
E de noite se retrata
Da fonte na lisa prata,
Quando o céu de luz se arreia.
Minha Terra
(Paris, 1864)
Quanto é grato em terra estranha
Sob um céu menos querido,
Entre feições estrangeiras,
Ver um rosto conhecido;
Ouvir a pátria linguagem
Do berço balbuciada,
Recordar sabidos casos
Saudosos – da terra amada!
E em tristes serões d’inverno,
Tendo a face contra o lar,
Lembrar o sol que já vimos,
E o nosso ameno luar!
Certo é grato; mais sentido
Se nos bate o coração,
Que para a pátria nos voa,
P’ra onde os nossos estão!
Depois de girar no mundo
Como barco em crespo mar,
Amiga praia nos chama
Lá no horizonte a brilhar.
E vendo os vales e os montes
E a pátria que Deus nos deu,
Possamos dizer contentes:
Tudo isto que vejo é meu!
Meu este sol que me aclara,
Minha esta brisa, estes céus:
Estas praias, bosques, fontes,
Eu os conheço – são meus!
Mais os amo quando volte,
Pois do que por fora vi,
A mais querer minha terra,
E minha gente aprendi.
Minha Vida e Meus Amores
QUANDO, no albor da vida, fascinado
Com tanta luz e brilho e pompa e galas,
Vi o mundo sorrir-me esperançoso:
– Meu Deus, disse entre mim, oh! quanto é doce.
Quanto é bela esta vida assim vivida! –
Agora, logo, aqui, além, notando
Uma pedra, uma flor, uma lindeza,
Um seixo da corrente, uma conchinha
A beira-mar colhida!
Foi esta a infância minha; a juventude
Falou-me ao coração: – amemos, disse,
Porque amar é viver.
E esta era linda, como é linda a aurora
No fresco da manhã tingindo as nuvens
De rósea cor fagueira;
Aquela tinha um quê de anelos meigos
Artífice sublime;
Feiticeiro sorrir dos lábios dela
Prendeu-me o coração; – julguei-o ao menos.
Aquela outra sorria tristemente,
Como um anjo no exílio, ou como o cálix
De flor pendida e murcha e já sem brilho.
Humilde flor tão bela e tão cheirosa,
No seu deserto perfumando os ventos.
– Eu morrera feliz, dizia eu d’alma,
Se pudesse enxertar uma esperança
Naquela alma tão pura e tão formosa,
E um alegre sorrir nos lábios dela.
A fugaz borboleta as flores todas
Elege, e liba e uma e outra, e foge
Sempre em novos amores enlevada:
Neste meu paraíso fui como ela,
Inconstante vagando em mar de amores.
O amor sincero e fundo e firme e eterno,
Como o mar em bonança meigo e doce,
Do templo como a luz perene e santo,
Não, nunca o senti; – somente o viço
Tão forte dos meus anos, por amores
Tão fáceis quanto indi’nos fui trocando.
Quanto fui louco, ó Deus! – Em vez do fruto
Sazonado e maduro, que eu podia
Como em jardim colher, mordi no fruto
Pútrido e amargo e rebuçado em cinzas,
Como infante glutão, que se não senta
À mesa de seus pais.
Dá, meu Deus, que eu possa amar,
Dá que eu sinta uma paixão,
Torna-me virgem minha alma,
E virgem meu coração.
Um dia, em qu’eu sentei-me junto dela,
Sua voz murmurou nos meus ouvidos,
– Eu te amo? – Ó anjo, que não possa eu crer-te!
Ela, certo, não é mulher que vive
Nas fezes da desonra, em cujos lábios
Só mentira e traição eterno habitam.
Tem uma alma inocente, um rosto belo,
E amor nos olhos. . . – mas não posso crê-la.
Dá, meu Deus, que eu possa amar,
Dá que eu sinta uma paixão;
Torna-me virgem minha alma,
E virgem meu coração.
Outra vez que lá fui, que a vi, que a medo
Terna voz lhe escutei: – Sonhei contigo! –
Inefável prazer banhou meu peito,
Senti delícias; mas a sós comigo
Pensei – talvez! – e já não pude crê-la.
Ela tão meiga e tão cheia de encantos,
Ela tão nova, tão pura e tão bela. ..
Amar-me! – Eu que sou?
Meus olhos enxergam, em quanto duvida
Minha alma sem crença, de força exaurida,
Já farta da vida,
Que amor não doirou.
Mau grado meu, crer não posso, .
Mau grado meu que assim é;
Queres ligar-te comigo
Sem no amor ter crença e fé?
Antes vai colar teu rosto,
Colar teu seio nevado
Contra o rosto mudo e frio,
Contra o seio dum finado.
Ou suplica a Deus comigo
Que me dê uma paixão;
Que me dê crença à minha alma,
E vida ao meu coração.
Miserrimus
Quando o inverno chegou, – por sobre a terra
O robe secular espalha a coma,
Que o rábido tufão cortou de morte.
Despida e nua jaz a flor mimosa,
Agora hástea somente; e o sol brilhante
Despede a custo a luz que mal penetra
As nuvens trovejadas que o circundam.
Mas o inverno passou! – De novo assume
Virente rama o robe gigantesco,
A flor formosa e bela vem brotando,
E o sol, rei do horizonte, já rutila
Em céu de puro azul-brilhante.
Mas quando o desengano, qual tormenta
Que por desertos só valente reina,
Do quente coração arranca, esmaga
Esp’ranças, que o amor enfeitiçava,
Em vão a natureza ufana brilha,
Em vão de puro orvalho a flor se arreia,
Em vão dardeja o sol seus quentes raios,
Em vão!… que o coração jaz frio e murcho.
E não mais viverá! – que a alma sentida
Conhece que o amor é só mentira,
Que é mentira o prazer, mentira tudo!
Um dia apareceu um recém-nado,
Como a concha que o mar à praia arroja,
Cresceu; – qual cresce a planta em terra inculta
Que ninguém educou; – a chuva apenas.
Infante – viu de roda sepulturas,
Em que não atentou; – sonhos mimosos,
Acordado ou dormindo, lhe doiravam
A infância leve, d’inocência rica.
Viu belo o ar, e terra, e céus, e mares,
Viu bela a natureza, como a noiva
Sorrindo em breve dia de noivado!
Então sentiu brotarem na sua alma
Sonhos de puro amor, sonhos de glória;
Sentiu no peito um mundo de esperanças,
Sentiu a força em si – patente o mundo.
Forte se levantou! correu fogoso,
E qual águia que nas asas se equilibra,
Começou a trilhar da vida a senda.
Um monte além topou; mais vagaroso
Subiu, – vingou mais lento! – Inda mais outro
Colossal – descalvado – íngreme e liso,
Costeou, mas cansou, que era sozinho!
Sentou-se, e mudo, e fraco, é pensativo,
À borda do caminho; e sobre o peito
A cabeça inclinou, cruzando os braços.
Minha mãe! – soluçou; e um eco ao longe
Minha mãe! – respondeu. – Sentiu que a fome
Dolorosa as entranhas lhe apertava,
E sede intensa a ressequir-lhe as fauces;
Fome e sede curtiu como num sonho.
Do rosto nas maçãs descoloridas
– Filtro do coração – sentiu que o pranto
Ardente escorregava a tez queimando.
Muda era a sua dor, – d’homem que sofre,
Que chora isento de vergonha ou crime.
Encontrou mais além no seu caminho,
Bela na sua dor, sozinha e fraca,
Figura virginal que ali jazia.
Esqueceu-se de si pensando nela;
Nova força criou, – novo incentivo,
Coragem nova o seu amor criou-lhe.
Lavou-lhe os curtos pés, contra o seu peito
Do frio a protegeu, – tomou nos braços
A carga tão mimosa! – E ela co’os olhos,
Que o amor vendava um pouco, agradecia.
E ela pôde viver; – disse que o amava,
Que era o seu coração dele – e só dele: –
Disse, e mais que uma vez, com peito e lábios
No peito e lábios dele; – era mentira!
E ele o conheceu! por precipícios
Descrido se arrojou, sentindo a morte,
Seu berço entre sepulcros procurando.
Aqui – ali – além – eram sepulcros;
E o nome de sua mãe, sequer não pode
Dos nomes conhecer de tantos mortos.
E só no seu morrer, qual só na vida,
Na terra se estendeu; nem dor, nem pranto
Tinha no coração que era já morto!
E alguém, que ali passou, vendo um cadáver
De sânie e podridão comido e sujo,
Co’o pé num fosso o revolveu; – e terra
Caída acaso o sepultou p’ra sempre.
Amizade! – ilusão que os anos somem;
Amor! – um nome só, bem como o nada,
A dor no coração, delícias n’alma,
Nos lábios o prazer, nos olhos pranto
– Tudo é vão, tudo é vão, exceto a morte.
O Amor
Amor! Enlevo d’alma, arroubo, encanto
Desta existência mísera, onde existes?
Fino sentir ou mágico transporte,
(O quer que seja que nos leva a extremos,
Aos quais não basta a natureza humana;)
Simpática atração d’almas sinceras
Que unidas pelo amor, no amor se apuram,
Por quem suspiro, serás nome apenas?
A inútil chama ressecou meus lábios,
Mirrou-me o coração da vida em meio,
E à terra fez baixar a mente errada
Que entre nuvens, amor, por ti bradava!
Não te pude encontra! – em vão meus anos
No louco intento esperdicei; gelados,
Uns após outros a cair precipites
Na urna do passado os vi; eu triste,
Amor, pó ti clamava; – e o meu deserto
Aos meus acentos reboava embalde.
Em vão meu coração por ti se fina,
Em vão minha alma te compr’ende e busca,
Em vão meus lábios sôfregos cubiçam
Libar a taça que aos mortais of’reces!
Dizem-na funda, inesgotável, meiga;
Em quanto a vejo rasa, amarga e dura!
Dizem-na bálsamo, eu veneno a sorvo:
Prazer, doçura, – eu dor e fel encontro!
Dobrei-me às duras leis que me imposeste,
Curvei ao jugo teu meu colo humilde,
Feri-me aos teus ardentes passadores,
Prendi-me aos teus grilhões, rojei por terra…
E o lucro?… foram lágrimas perdidas,
Foi roxa cicatriz qu’inda conservo,
Desbotada a ilusão e a vida exausta!
Celeste emanação, gratos eflúvios
Das roseiras do céu; bater macio
Das asas auribrancas dalgum anjo,
Que roça em noite amiga a nossa esfera,
Centelha e luz do sol que nunca morre;
És tudo, mais do qu’isto: és luz e vida,
Perfume, e vôo d’anjo mal sentido,
Peregrinas essências trescalando!…
Tão bem passas veloz, – breve te apagas,
Como duma ave a sombra fugitiva,
Desgarrada voando à flor de um lago!
O Canto do Guerreiro
I
Aqui na floresta
Dos ventos batida,
Façanhas de bravos
Não geram escravos,
Que estimem a vida
Sem guerra e lidar.
– Ouvi-me, Guerreiros.
– Ouvi meu cantar.
II
Valente na guerra
Quem há, como eu sou?
Quem vibra o tacape
Com mais valentia?
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
– Guerreiros, ouvi-me;
– Quem há, como eu sou?
III
Quem guia nos ares
A frecha imprumada,
Ferindo uma presa,
Com tanta certeza,
Na altura arrojada
Onde eu a mandar?
– Guerreiros, ouvi-me,
– Ouvi meu cantar.
IV
Quem tantos imigos
Em guerras preou?
Quem canta seus feitos
Com mais energia?
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
– Guerreiros, ouvi-me:
– Quem há, como eu sou?
V
Na caça ou na lide,
Quem há que me afronte?!
A onça raivosa
Meus passos conhece,
O imigo estremece,
E a ave medrosa
Se esconde no céu.
– Quem há mais valente,
– Mais destro do que eu?
VI
Se as matas estrujo
Co os sons do Boré,
Mil arcos se encurvam,
Mil setas lá voam,
Mil gritos reboam,
Mil homens de pé
Eis surgem, respondem
Aos sons do Boré!
– Quem é mais valente,
– Mais forte quem é?
VII
Lá vão pelas matas;
Não fazem ruído:
O vento gemendo
E as malas tremendo
E o triste carpido
Duma ave a cantar,
São eles – guerreiros,
Que faço avançar.
VIII
E o Piaga se ruge
No seu Maracá,
A morte lá paira
Nos ares frechados,
Os campos juncados
De mortos são já:
Mil homens viveram,
Mil homens são lá.
IX
E então se de novo
Eu toco o Boré;
Qual fonte que salta
De rocha empinada,
Que vai marulhosa,
Fremente e queixosa,
Que a raiva apagada
De todo não é,
Tal eles se escoam
Aos sons do Boré.
– Guerreiros, dizei-me,
– Tão forte quem é?
O Canto do Índio
Quando o sol vai dentro d’água
Seus ardores sepultar,
Quando os pássaros nos bosques
Principiam a trinar;
Eu a vi, que se banhava…
Era bela, ó Deuses, bela,
Como a fonte cristalina,
Como luz de meiga estrela.
Ó Virgem, Virgem dos Cristãos formosa,
Porque eu te visse assim, como te via,
Calcara agros espinhos sem queixar-me,
Que antes me dera por feliz de ver-te.
O tacape fatal em terra estranha
Sobre mim sem temor veria erguido;
Dessem-me a mim somente ver teu rosto
Nas águas, como a lua, retratado.
Eis que os seus loiros cabelos
Pelas águas se espalhavam,
Pelas águas, que de vê-los
Tão loiros se enamoravam.
Ela erguia o colo ebúrneo,
Por que melhor os colhesse;
Níveo colo, quem te visse,
Que de amores não morresse!
Passara a vida inteira a contemplar-te,
Ó Virgem, loira Virgem tão formosa,
Sem que dos meus irmãos ouvisse o canto,
Sem que o som do Boré que incita à guerra
Me infiltrasse o valor que m’hás roubado,
Ó Virgem, loira Virgem tão formosa.
As vezes, quando um sorriso
Os lábios seus entreabria,
Era bela, oh! mais que a aurora
Quando a raiar principia.
Outra vez – dentre os seus lábios
Uma voz se desprendia;
Terna voz, cheia de encantos,
Que eu entender não podia.
Que importa? Esse falar deixou-me n’alma
Sentir d’amores tão sereno e fundo,
Que a vida me prendeu, vontade e força
Ah! que não queiras tu viver comigo,
Ó Virgem dos Cristãos, Virgem formosa!
Sobre a areia, já mais tarde,
Ela surgiu toda nua;
Onde há, ó Virgem, na terra
Formosura como a tua!?
Bem como gotas de orvalho
Nas folhas de flor mimosa,
Do seu corpo a onda em fios
Se deslizava amorosa.
Ah! que não queiras tu vir ser rainha
Aqui dos meus irmãos, qual sou rei deles!
Escuta, ó Virgem dos Cristãos formosa.
Odeio tanto aos teus, como te adoro;
Mas queiras tu ser minha, que eu prometo
Vencer por teu amor meu ódio antigo,
Trocar a maça do poder por ferros
E ser, por te gozar, escravo deles.
O Canto do Piaga
I
Ó GUERREIROS da Taba sagrada,
Ó Guerreiros da Tribu Tupi,
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi.
Esta noite – era a lua já morta –
Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.
Abro os olhos, inquieto, medroso,
Manitôs! que prodígios que vil
Arde o pau de resina fumosa,
Não fui eu, não fui eu, que o acendi!
Eis rebenta a meus pés um fantasma,
Um fantasma d’imensa extensão;
Liso crânio repousa a meu lado,
Feia cobra se enrosca no chão.
O meu sangue gelou-se nas veias,
Todo inteiro – ossos, carnes – tremi,
Frio horror me coou pelos membros,
Frio vento no rosto senti.
Era feio, medonho, tremendo,
Ó Guerreiros, o espectro que eu vi.
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi!
II
Por que dormes, Ó Piaga divino?
Começou-me a Visão a falar,
Por que dormes? O sacro instrumento
De per si já começa a vibrar.
Tu não viste nos céus um negrume
Toda a face do sol ofuscar;
Não ouviste a coruja, de dia,
Seus estrídulos torva soltar?
Tu não viste dos bosques a coma
Sem aragem – vergar-se e gemer,
Nem a lua de fogo entre nuvens,
Qual em vestes de sangue, nascer?
E tu dormes, ó Piaga divino!
E Anhangá te proíbe sonhar!
E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,
E não podes augúrios cantar?!
Ouve o anúncio do horrendo fantasma,
Ouve os sons do fiel Maracá;
Manitôs já fugiram da Taba!
Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá!
III
Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm.
Traz embira dos cimos pendente
– Brenha espessa de vário cipó –
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais, mas com folhas; é so!
Negro monstro os sustenta por baixo,
Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando – lá vão.
Oh! quem foi das entranhas das águas,
O marinho arcabouço arrancar?
Nossas terras demanda, fareja…
Esse monstro… – o que vem cá buscar?
Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!
Vem trazer-vos crueza, impiedade –
Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar Manitôs, Maracás.
Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribu Tupi vai gemer;
Hão-de os velhos servirem de escravos
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser?
Fugireis procurando um asilo,
Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se,
Vendo os vossos quão poucos serão.
Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,
Susta as iras do fero Anhangá.
Manitôs já fugiram da Taba,
Ó desgraça! ó ruína!! ó Tupá!
O Cometa
Ao Sr. Francisco Sotero dos Reis
Non est potestas, quae comparetur ei qui
factus est ut nullum timeret.
— Job
Eis nos céus rutilando ígneo cometa!
A imensa cabeleira o espaço alastra,
E o núcleo, como um sol tingido em sangue,
Alvacento luzir verte agoireiro
Sobre a pávida terra.
Poderosos do mundo, grandes, povo,
Dos lábios removei a taça ingente,
Que em vossas festas gira; eis que rutila
O sangüíneo cometa em céus infindos!…
Pobres mortais, – sois vermes!
O Senhor o formou terrível, grande;
Como indócil corcel que morde o freio,
Retinha-o só a mão do Onipotente.
Ao fim lhe disse: – Vai, Senhor dos Mundos,
Senhor do espaço infindo.
E qual louco temido, ardendo em fúria,
Que ao vento solta a coma desgrenhada,
E vai, néscio de si, livre de ferros,
De encontro às duras rochas, – tal progride
O cometa incansável.
Se na marcha veloz encontra um mundo,
O mundo em mil pedaços se converte;
Mil centelhas de luz brilham no espaço
A esmo, como um tronco pelas vagas
Infrenes combatido.
Se junto doutro mundo acaso passa,
Consigo o arrasta e leva transformado;
A cauda portentosa o enlaça e prende,
E o astro vai com ele, como argueiro
Em turbilhão levado.
Como Leviatã perturba os mares,
Ele perturba o espaço; – como a lava,
Ele marcha incessante e sempre; – eterno,
Marcou-lhe largo giro a lei que o rege,
– Às vezes o infinito.
Ele carece então da eternidade!
E aos homens diz – e majestoso e grande
Que jamais o verão; e passa, e longe
Se entranha em céus sem fim, como se perde
Um barco no horizonte!
O Desengano
JÁ VIGÍLIAS passei namorado,
Doces horas d’insônia passei,
Já meus olhos, d’amor fascinado,
Em ver só meu amor empreguei.
Meu amor era puro, extremoso,
Era amor que meu peito sentia,
Eram lavas de um fogo teimoso,
Eram notas de meiga harmonia.
Harmonia era ouvir sua voz,
Era ver seu sorriso harmonia;
E os seus modos e gestos e ditos
Eram graças, perfume e magia.
E o que era o teu amor, que me embalava
Mais do que meigos sons de meiga lira?
Um dia o decifrou – não mais que um dia
Fingimento e mentira!
Tão belo o nosso amor! – foi só de um dia,
Como uma flor!.
Por que tão cedo o talismã quebraste
Do nosso amor?
Por que num só instante assim partiste
Essa anosa cadeia?
De bom grado a sofreste! essa lembrança
Inda hoje me recreia.
Quão insensato fui! – busquei firmeza.
Qual em ondas de areia movediça,
Na mulher, – não achei!
E da esp’rança, que eu via tão donosa
Sorrir dentro em minha alma, as longas asas
Doido e néscio cortei!
E tu vás caprichosa prosseguindo
Essa esteira de amor, que julgas cheia
De flores bem gentis;
Podes ir, que os meus olhos te não vejam;
Longe, longe de mim, mas que em minha alma
Eu sinta qu’és feliz.
Podes ir, que é desfeito o nosso laço,
Podes ir, que o teu nome nos meus lábios
Nunca mais soará!
Sim, vai; – mas este amor que me atormenta,
Que tão grato me foi, que me é tão duro,
Comigo morrerá!
Tão belo o nosso amor! – foi só de um dia
Como uma flor!
Oh! que bem cedo o talismã quebraste
Do nosso amor!
O Mar
Oceano terrível, mar imenso
De vagas procelosas que se enrolam
Floridas rebentando em branca espuma
Num pólo e noutro pólo,
Enfim… enfim te vejo; enfim meus olhos
Na indômita cerviz trêmulos cravo,
E esse rugido teu sanhudo e forte
Enfim medroso escuto!
Donde houveste, ó pélago revolto,
Esse rugido teu? Em vão dos ventos
Corre o insano pegão lascando os troncos,
E do profundo abismo
Chamando à superfície infindas vagas,
Que avaro encerras no teu seio undoso;
Ao insano rugir dos ventos bravos
Sobressai teu rugido.
Em vão troveja horríssona tormenta;
Essa voz do trovão, que os céus abala,
Não cobre a tua voz. – Ah! donde a houveste,
Majestoso oceano?
Ó mar, o teu rugido é um eco incerto
Da criadora voz, de que surgiste:
Seja, disse; e tu foste, e contra as rochas
As vagas competiste.
E à noite, quando o céu é puro e limpo,
Teu chão tinges de azul, – tuas ondas correm
Por sobre estrelas mil; turvam-se os olhos
Entre dois céus brilhantes.
Da voz de Jeová um eco incerto
Julgo ser teu rugir; mas só, perene,
Imagem do infinito, retratando
As feituras de Deus.
Por isto, a sós contigo, a mente livre
Se eleva, aos céus remonta ardente, altiva,
E deste lodo terreal se apura,
Bem como o bronze ao fogo.
Férvida a Musa, co’os teus sons casada,
Glorifica o Senhor de sobre os astros
Co’a fronte além dos céus, além das nuvens,
E co’os pés sobre ti.
O que há mais forte do que tu? Se eriças
A coma perigosa, a nau possante,
Extremo de artifício, em breve tempo
Se afunda e se aniquila.
És poderoso sem rival na terra;
Mas lá te vais quebrar num grão d’areia,
Tão forte contra os homens, tão sem força
Contra coisa tão fraca!
Mas nesse instante que me está marcado,
Em que hei de esta prisão fugir p’ra sempre
Irei tão alto, ó mar, que lá não chegue
Teu sonoro rugido.
Então mais forte do que tu, minha alma,
Desconhecendo o temor, o espaço, o tempo,
Quebrará num relance o circ’lo estreito
Do finito e dos céus!
Então, entre miríades de estrelas,
Cantando hinos d’amor nas harpas d’anjos,
Mais forte soará que as tuas vagas,
Mordendo a fulva areia;
Inda mais doce que o singelo canto
De merencória virgem, quando a noite
Ocupa a terra, – e do que a mansa brisa,
Que entre flores suspira.
O Oiro
Oiro, – poder, encanto ou maravilha
Da nossa idade, – regedor da terra,
Que dás honra e valor, virtude e força,
Que tens ofertas, oblações e altares, –
Embora teu louvor cante na lira
Vendido Menestrel que pôde insano
Do grande à porta renegar seu gênio!
Outro, sim, que não eu. – Bardo sem nome,
Com pouco vivo; – sobre a terra, à noite,
Meu corpo lanço, descansando a fronte
Num tronco ou pedra ou mal nascido arbusto.
Sou mais que um rei co’o meu dossel de nuvens
Que tem gravados cintilantes mundos!
Com a vista no céu percorro os astros.
Vagueia a minha mente além das nuvens,
Vagueia o meu pensar – alto, arrojado
Além de quanto o olhar nos céus alcança. Então
do meu Senhor me calam n’alma
D’amor ardente enlevos indizíveis;
Se tento às gentes redizer seu nome,
Queimadoras palavras se atropelam
Nos meus lábios; – profética harmonia
Meu peito anseia, e em borbotões se expande.
Grandes, Senhor, são tuas obras, grandes
Teus prodígios, teu poder imenso:
O pai ao filho o diz, um sec’lo a outro,
A terra ao céu, o tempo à eternidade!
Do mundo as ilusões, vaidade, engano.
Da vida a mesquinhez – prazer ou pranto –
Tudo esse nome arrasta, prostra e some;
Como aos raios do sol desfeito o gelo,
Que em ondas corre no pendor do monte,
Precípite e ruidoso, – arbustos, troncos
Consigo no passar rompidos leva.
O Orgulhoso
Eu o vi! – tremendo era no gesto,
Terrível seu olhar;
E o cenho carregado pretendia
O globo dominar.
Tremendo era na voz, quando no peito
Fervia-lhe o rancor!
E aos demais homens, como um cedro à relva,
Se cria sup’rior.
E o pobre agricultor, junto a seus filhos,
Dentro do humilde lar,
Quisera, antes que os dele, ver um Tigre
Os olhos fuzilar:
Que a um filho seu talvez quisera o nobre
Para um Executor;
Ou para o leito infesto alguma filha
Do triste agricultor.
Quem ousaria resistir-lhe? – Apenas
Algum pobre ancião
Já sobre o seu sepulcro, desejando
A morte e a salvação.
Alguns dias apenas decorreram;
E eis que ele se sumiu!
E a laje dos sepulcros fria e muda
Sobre ele já caiu.
E o bárbaro tropel dos que o serviam
Exulta com seu fim!
E a turba aplaude; e ninguém chora a morte
De homem tão ruim.
O Pirata Episódio
Nas asas breves do tempo
Um ano e outro passou,
E Lia sempre formosa
Novos amores tomou.
Novo amante mão de esposo,
De mimos cheia, lh’of’rece;
E bela, apesar de ingrata,
Do que a amou Lia se esquece.
Do que a amou que longe pára,
Do que a amou, que pensa nela,
Pensando encontrar firmeza
Em Lia, que era tão bela!
Nesse palácio deserto
Já luzes se vêm luzir,
Que vem nas sedas, nos vidros
Cambiantes refletir.
Os ecos alegres soam,
Soa ruidosa harmonia,
Soam vozes de ternura,
Sons de festa e d’alegria.
E qual ave que em silêncio
A face do mar desflora,
À noite bela fragata
Chega ao porto, amaina, ancora.
Cai da popa e fere as ondas
Inquieta, esguia falua,
Que resvala sobre as águas
Na esteira que traça a lua.
Já na vácua praia toca;
Um vulto em terra saltou,
Que na longa escadaria
Presago e torvo enfiou..
Malfadado! por que aportas
A este sítio fatal!
Queres o brilho aumentar
Das bodas do teu rival?
Não, que a vingança lhe range
Nos duros dentes cerrados,
Não, que a cabeça referve
Em maus projetos danados!
Não, que os seus olhos bem dizem
O que diz seu coração;
Terríveis, como um espelho,
Que retratasse um vulcão.
Não, que os lábios descorados
Vociferam seu rival;
Não, que a mão no peito aperta
Seu pontiagudo punhal.
Não, por Deus, que tais afrontas
Não as sói deixar impunes,
Quem tem ao lado um punhal,
Quem tem no peito ciúmes!
Subiu! – e viu com seus olhos
Ela a rir-se que dançava,
Folgando, infame! nos braços
Porque assim o assassinava.
E ele avançou mais avante,
E viu. . . o leito fatal!
E viu. . . e cheio de raiva
Cravou no meio o punhal.
E avançou… e à janela
Sozinha a viu suspirar,
– Saudosa e bela encarando
A imensidade do mar.
Como se vira um espectro,
De repente ela fugiu!
Tal foge a corça nos bosques
Se leve rumor sentiu.
Que foi? – Quem sabe dizê-lo?
Foram vislumbres de dor:
Coração, que tem remorsos,
Sente contínuo terror!
Ele à janela chegou-se,
Horrível nada encontrou. . .
Somente, ao longe, nas sombras,
Sua fragata avistou.
Então pensou que no mundo
Nada mais de seu contava!
Nada mais que essa fragata!
Nada mais de quanto amava!
Nada mais!… – que lh’importava
De no mundo só se achar?
Inda muito lhe ficava –
Água e céus e vento e mar.
Assim pensava, mas nisto
Descortina o seu rival,
Não visto; – a mão na cintura
Cingiu raivoso o punhal!
Mas pensou. . . – não, seja dela,
E tenha zelos como eu? –
Larga o punhal, e um retrato
Na destra mão estendeu.
Porém sentiu que inda tinha
Mais que branda compaixão;
Miserando! inda guardava
Seu amor no coração.
Infeliz! não foi culpada;
Foi culpa do fado meu!
Nada mais de pensar nela;
Finjamos que ela morreu.
Por entre a turba que alegre
No baile – a sorrir-se estava,
Mudo, triste, e pensativo
Surdamente se afastava.
De manhã – quando o sarau
Apagava o seu rumor,
Chegava Lia a janela,
Mais formosa de palor.
Chegou-se; – e além -.- no horizonte
Uma vela inda avistou;
E co’a mão trêmula e fria
O telescópio buscou!
Um pavilhão viu na popa,
Que tinha um globo pintado;
E no mastro da mezena
Um negro vulto encostado.
Eram chorosos seus olhos,
Os olhos seus enxugou;
E o telescópio de novo
Para essa vela apontou.
Quem era o vulto tão triste
Parece reconheceu;
Mas a vela no horizonte
Para sempre se perdeu.
O Que Mais Dói Na Vida
O que mais dói na vida não é ver-se
Mal pago um benefício,
Nem ouvir dura voz dos que nos devem
Agradecidos votos,
Nem ter as mãos mordidas pelo ingrato,
Que as devera beijar!
Não! o que mais dói não é do mundo
A sangrenta calúnia,
Nem ver como s’infama a ação mais nobre,
Os motivos mais justos,
Nem como se deslustra o melhor feito,
A mais alta façanha!
Não! o que mais dói não é sentir-se
As mãos dum ente amado
Nos espasmos da morte resfriadas,
E os olhos que se turvam,
E os membros que entorpecem pouco e pouco,
E o rosto que descora!
Não! não é ouvir daqueles lábios,
Doces, tristes, compassivas,
Sobre o funéreo leito soluçadas
As palavras amigas,
Que tanto custa ouvir, que lembram tanto,
Que não s’esquecem nunca!
Não! não são as queixas amargadas
No triunfar da morte;
Que, se se apaga a luz da vida escassa,
Mais viva a luz rutila;
Luz da fé que não morre, luz que espanca
As trevas do sepulcro.
O que dói, mas de dor que não tem cura,
O que aflige, o que mata,
Mas de aflição cruel, de morte amara,
É morrermos em vida
No peito da mulher que idolatramos,
No coração do amigo!
Amizade e amor! — laço de flores,
Que prende um breve instante
O ligeiro batel à curva margem
De terra hospitaleira;
Com tanto amor se enastra, e tão depressa,
E tão fácil se rompe!
À mais ligeira ondulação dos mares,
Ao mais ligeiro sopro
Da viração — destrançam-se as grinaldas;
O baixel se afasta,
Veleja, foge, até que em plaga estranha
Naufragado soçobre!
Talvez permite Deus que tão depressa
Estes laços se rompam,
Por que nos pese o mundo, e os seus enganos
Mais sem custo deixemos:
Sem custo assim a brisa arrasta a planta,
Que jaz solta na terra!
O Romper D’alva
Do vento o rijo sopro as mansas ondas
Varreu do imenso pego, – e o mar rugindo
As nuvens se elevou com fúria insana;
Enoveladas vagas se arrojaram
Ao céu co’a branca espuma!
Raivando em vão se encontram soluçando
Na base d’erma rocha descalvada;
Em vão de fúrias crescem, que se quebra
A força enorme do impotente orgulho
Na rocha altiva ou na arenosa praia. _
Da tormenta o furor lhe acende os brios,
Da tormenta o furor lh’enfreia as iras,
Que em teimosos gemidos se descerram,
Da quieta noite despertando os ecos
Além, no vale humilde, onde não chega
Seu sanhudo gemer, que o dia abafa.
Mas a brisa sussurrando
A face do céu varreu,
Tristes nuvens espalhando,
Que a noite em ondas verteu.
Além, atrás da montanha,
Branda luz se patenteia,
Que d’alma a dor afugenta,
Se dentro sentida anseia.
Branda luz, que afaga a vista,
De que se ama o céu tingir,
Quando entre o azul transparente
Parece alegre sorrir;
Como és linda! – Como dobras
Da vida a força e do amor!
– Que tão bem luz dentro d’alma
Teu luzir encantador!
No teu ameno silêncio
A tormenta se perdeu,
E do mar a forte vida
Nos abismos se escondeu!
Porque assim de novo agora
Que o vento o não vem toldar,
Parece que vai queixoso
Mansamente a soluçar?
Porque as ramas do arvoredo,
Bem como as ondas do mar,
Sem correr sopro de vento,
Começam de murmurar?
Sobre o tapiz d’alva relva,
– Rocio da madrugada –
Destila gotas de orvalho
A verde folha inclinada.
Renascida a natureza
Parece sentir amor;
Mais brilhante, mais viçosa
O cálix levanta a flor.
Por entre as ramas ocultas,
Docemente a gorjear,
Acordam trinando as aves,
Alegres, no seu trinar.
O arvoredo nessa língua
Que diz, por que assim sussurra?
Que diz o cantar das aves?
Que diz o mar que murmura?
– Dizem um nome sublime,
O nome do que é Senhor,
Um nome que os anjos dizem,
O nome do Criador.
Tão bem eu, Senhor, direi
Teu nome – do coração,
E ajuntarei o meu hino
Ao hino da criação.
Quando a dor meu peito acanha,
Quando me rala a aflição.
Quando nem tenho na terra
Mesquinha consolação;
Tu, Senhor, do peso insano
Livras meu peito arquejante,
Secas-me o pranto que os olhos
Vertendo estão abundante.
Tu pacificas minha alma,
Quando se rasga com pena,
Como a noite que se esconde
Na luz da manhã serena.
Tu és a luz do universo,
Tu és o ser criador,
Tu és o amor, és a vida,
Tu és meu Deus, meu Senhor.
Direi nas sombras da noite,
Direi ao romper da aurora:
– Tu és o Deus do universo,
O Deus que minha alma adora.
Tão bem eu, Senhor, direi
Teu nome – do coração,
E ajuntarei o meu hino
Ao hino da criação.
O Soldado Espanhol
I
Oh! qui révélera les troubles, les mystères
Que ressentent d’abord deux amants solitaires
Dans l’abandon d’un chaste amour?
— Amour et Foi
O céu era azul, tão meigo e tão brando,
A terra tão erma, tão quieta e saudosa,
Que a mente exultava, mais longe escutando
O mar a quebrar-se na praia arenosa.
O céu era azul, e na cor semilhava
Vestido sem nódoa de pura donzela;
E a terra era a noiva que bem se arreava
De flores, matizes; mas vária, mas bela.
Ela era brilhante,
Qual raio do sol;
E ele arrogante,
De sangue espanhol.
E o espanhol muito amava
A virgem mimosa e bela;
Ela amante, ele zeloso
Dos amores da donzela;
Ele tão nobre e folgando
De chamar-se escravo dela!
E ele disse: – Vês o céu? –
E ela disse: – Vejo. sim;
Mais polido que o polido
Do meu véu azul cetim. –
Torna-lhe ele. .. (oh! quanto é doce
Passar-se uma noite assim!).
– Por entre os vidros pintados
D’igreja antiga, a luzir
Não vês luz? – Vejo. – E não sentes
De a veres, meigo sentir?
– É doce ver entre as sombras
A luz do templo a luzir!
– E o mar, além, preguiçoso
Não vês tu em calmaria?
– É belo o mar; porém sinto,
Só de o ver, melancolia.
– Que mais o teu rosto enfeita
Que um sorriso de alegria.
– E eu tão bem acho em ser triste
Do que alegre, mais prazer;
Sou triste, quando em ti penso,
Que só me falta morrer;
Mesmo a tua voz saudosa
Vem minha alma entristecer.
– E eu sou feliz, como agora,
Quando me falas assim;
Sou feliz quando se riem
Os lábios teus de carmim;
Quando dizes que me, adoras,
Eu sinto o céu dentro em mim.
– És tu só meu Deus, meu tudo,
És tu só meu puro amar,
És tu só que o pranto podes
Dos meus olhos enxugar. –
Com ela repete o amante:
– És tu só meu puro amar! –
E o céu era azul, tão meigo e tão brando
E a terra tão erma, tão só, tão saudosa,
Que a mente exultava, mais longe escutando
O mar a quebrar-se na praia arenosa!
II
Ainsi donc aujourd’hui, demain, après encore,
Il faudra voir sans tal naître et mourir l’aurore!
— V. Hugo
E o espanhol viril, nobre e formoso,
No bandolim
Seus amores dizia mavioso,
Cantando assim:
"Já me vou por mar em fora
Daqui longe a mover guerra,
Já me vou, deixando tudo,
Meus amores, minha terra.
"Já me vou lidar em guerras,
Vou-me a Índia ocidental;
Hei de ter novos amores. . .
De guerras… não temas al.
"Não chores, não, tão coitada,
Não chores por t’eu deixar;
Não chores, que assim me custa
O pranto meu sofrear.
"Não chores! – sou como o Cid
Partindo para a campanha;
Não ceifarei tantos louros,
Mas terei pena tamanha."
E a amante que assim o via
Partir-se tão desditoso,
– Vai, mas volta; lhe dizia:
Volta, sim, vitorioso.
"Como o Cid, oh! crua sorte
Não me vou nesta campanha
Guerrear contra o crescente,
Porém sim contra os d’Espanha!
"Não me aterram; porém sinto
Cerrar-se o meu coração,
Sinto deixar-te, meu anjo,
Meu prazer, minha afeição.
"Como é doce o romper d’alva,
É-me doce o teu sorrir,
Doce e puro, qual d’estrela
De noite – o meigo luzir.
"Eram meus teus pensamentos,
Teu prazer minha alegria,
Doirada fonte d’encantos,
Fonte da minha poesia.
"Vou-me longe, e o peito levo
Rasgado de acerba dor,
Mas comigo vão teus votos,
Teus encantos, teu amor!
"Já me vou lidar em guerras,
Vou-me a Índia ocidental;
Hei de ter novos amores. . .
De guerras… não temas al."
Esta era a canção que acompanhava
No bandolim,
Tão triste, que de triste não chorava
Dizendo assim:
III
O Conde deu o sinal da partida
– À caça! meus amigos.
— Burger
"Quero, pajens, selado o ginete,
Quero em punho nebris e falcão,
Qu’é promessa de grande caçada
Fresca aurora d’amigo verão.
"Quero tudo luzindo, brilhante
– Curta espada e venab’lo e punhal,
Cães e galgos farejem diante
Leve odor de sanhudo animal.
"E ai do gamo que eu vir na coutada,
Corça, onagro, que eu primo avistar!
Que o venab’lo nos ares voando
Lhe há de o salto no meio quebrar.
Eia, avante! – Dizia folgando
O fidalgo mancebo, loução:
– Eia, avante? – e já todos galopam
Trás do moço, soberbo infanção.
E partem, qual do arco arranca e voa
Nos amplos ares, mais veloz que a vista,
A plúmea seta da entesada corda.
Longe o eco reboa: – já mais fraco,
Mais fraco ainda, pelos ares voa.
Dos cães dúbio o latir se escuta apenas,
Dos ginetes tropel, rinchar distante
Que em lufadas o vento traz por vezes.
Já som nenhum se escuta… Quê? – latido
De cães, incerto, ao longe? Não, foi vento
Na torre castelã batendo acaso,
Nas seteiras acaso sibilando
Do castelo feudal, deserto agora.
IV
Vois, à l’horizon
Aucune maison?
– Aucune.
— V. Hugo
Já o sol se escondeu; cobre a terra
Belo manto de frouxo luar;
E o ginete, que esporas atracam,
Nitre e corre sem nunca parar.
Da coutada nas ínvias ramagens
Vai sozinho o mancebo infanção;
Vai sozinho, afanoso trotando
Sem temores, sem pajens, sem cão.
Companheiros da caça há perdido,
Há perdido no aceso caçar;
Há perdido, e não sente receio
De sozinho, nas sombras trotar.
Corno ebúrneo embocou muitas vezes,
Muitas vezes de si deu sinal;
Bebe atento a resposta, e não ouve
Outro som responder-lhe; inda mal!
E o ginete que esporas atracam,
Nitre e corre sem nunca parar;
Já o sol se escondeu, cobre a terra
Belo manto de frouxo luar.
V
De rosée
Arrosée.
La rose a moins de fraîcheur.
— Henrique IV
Silêncio grato da noite
Quebram sons duma canção,
Que vai dos lábios de um anjo
Do que escuta ao coração.
Dizia a letra mimosa
Saudades de muito amar;
E o infanção enleiado
Atento, pôs-se a escutar.
Era encantos voz tão doce,
Incentivo essa ternura,
Gerava delícias n’alma
Sonhar d’havê-la a ventura.
Queixosa cantava a esposa
Do guerreiro que partiu,
Largos anos são passados,
Missiva dele não viu. . .
Parou!… escutando ao perto
Responder-lhe outra canção!…
Era terna a voz que ouvia,
Lisonjeira – do infanção:
"Tenho castelo soberbo
Num monte, que beija um rio,
De terras tenho no Doiro
Jeiras cem de lavradio;
"Tenho lindas haquenéias,
Tenho pajens e matilha,
Tenho os milhores ginetes
Dos ginetes de Sevilha;
"Tenho punhal, tenho espada
D’alfageme alta feitura,
Tenho lança, tenho adaga,
Tenho completa armadura.
"Tenho fragatas que cingem
Dos mares a linfa clara,
Que vão preiando piratas
Pelas rochas de Megara.
"Dou-te o castelo soberbo
E as terras do fértil Doiro,
Dou-te ginetes e pajens
E a espada de pomo d’oiro.
"Dera a completa armadura
E os meus barcos d’alto-mar,
Que nas rochas de Megara
Vão piratas cativar.
"Fala de amores teu canto,
Fala de acesa paixão. . .
Ah! senhora, quem tivera
Dos agrados teus condão!
"Eu sou mancebo, sou Nobre,
Sou nobre moço infanção;
Assim podesse o meu canto
Algemar-te o coração,
Ó Dona, que eu dera tudo
Por vencer-te essa isenção!
Atenta escutava a esposa
Do guerreiro que partiu,
Largos anos são passados,
Missiva dele não viu;
Mas da letra que escutava
Delícias n’alma sentiu.
VI
Si tu voulais, Madeleine,
Je te ferais châtelaine;
Je suis le comte Roger: –
Quitte pour moi ces chaumières,
A moins que tu me préfères
Que je me fasse berger.
— V. Hugo
E noutra noite saudoso
Bem junto dela sentado,
Cantava brandas endechas
O gardingo namorado.
"Careço de ti, meu anjo,
Careço do teu amor,
Como da gota d’orvalho
Carece no prado a flor.
"Prazeres que eu nem sonhava
Teu amor me fez gozar;
Ah! que não queiras, senhora,
Minha dita rematar.
"O teu marido é já morto,
Notícia dele não soa;
Pois desta gente guerreira
Bastos ceifa a morte à toa.
"Ventura me fora ver-te
Nos lábios teus um sorriso,
Delícias me fora amar-te,
Gozar-te meu paraíso.
"Sinto aflição, quando choras;
Se te ris, sinto prazer;
Se te ausentas, fico triste,
Que só me falta morrer.
"Careço de ti, meu anjo,
Careço do teu amor,
Como da gota d’orvalho
Carece no prado a flor."
VII
L’époux, dont nul ne se souvient,
Vient;
Il va punir ta vie infâme,
Femme!
— V. Hugo
Era noite hibernal; girava dentro
Da casa do guerreiro o riso, a dança,
E reflexos de luz, e sons, e vozes,
E deleite, e prazer: e fora a chuva,
A escuridão, a tempestade, e o vento,
Rugindo solto, indômito e terrível
Entre o negror do céu e o horror da terra.
Na geral confusão os céus e a terra
Horrenda simpatia alimentavam.
Ferve dentro o prazer, reina o sorriso,
E fora a teritar, fria, medonha,
Marcha a vingança pressurosa e torva:
Traz na destra o punhal, no peito a raiva,
Nas faces palidez, nos olhos morte.
O infanção extremoso enchia rasa
A taça de licor mimoso e velha,
Da usança ao brinde convidando a todos
Em honra da esposada: – À noiva! exclama.
E a porta range e cede, e franca e livre
Introduz o tufão, e um vulto assoma
Altivo e colossal. – Em honra, brada,
Do esposo deslembrado! – e a taça empunha,
Mas antes que o licor chegasse aos lábios,
Desmaiada e por terra jaz a esposa,
E a destra do infanção maneja o ferro,
Por que tão grande afronta lave o sangue,
Pouco, bem pouco para injúria tanta.
Debalde o fez, que lhe golfeja o sangue
D’ampla ferida no sinistro lado,
E ao pé da esposa o assassino surge
Co’o sangrento punhal na destra alçado.
A flor purpúrea que matiza o prado,
Se o vento da manhã lhe entorna o cálix,
Perde aroma talvez; porém mais belo
Colorido lhe vem do sol nos raios.
As fagueiras feições daquele rosto
Assim foram tão bem; não foi do tempo
Fatal o perpassar às faces lindas.
Nota-lhe ele as feições, nota-lhe os lábios,
Os curtos lábios que lhe deram vida,
Longa vida de amor em longos beijos,
Qual jamais não provou; e as iras todas
Dos zelos vingadores descansaram
No peito de sofrer cansado e cheio,
Cheio qual na praia fica a esponja,
Quando a vaga do mar passou sobre ela.
Num relance fugiu, minaz no vulto:
Como o raio que luz um breve instante,
Sobre a terra baixou, deixando a morte.
O Templo
I
Estou só neste mudo santuário,
Eu só, com minha dor, com minhas penas!
E o pranto nos meus olhos represado,
Que nunca viu correr humana vista,
Livremente o derramo aos pés de Cristo,
Que tão bem suspirou, gemeu sozinho,
Que tão bem padeceu sem ter conforto,
Como eu padeço, e sofro, e gemo, e choro.
Remorso não me punge a consciência,
Vergonha não me tinge a cor do rosto,
Nem crimes perpetrei; – porque assim choro?
E direi eu por quê? – Antes meu berço,
Que vagidos de infante vividouro,
Os sons finais de um moribundo ouvisse!
Que esperanças que eu tinha tão formosas,
Que mimosos enlevos de ternura,
Não continha minha alma toda amores!
Esperanças e amor, que é feito delas?
Um dia me roubava uma esperança,
E sozinho, uma e uma, me deixaram.
Morreram todas, como folhas verdes
Que em princípios do inverno o vento arranca.
E o amor! – podia eu senti-lo ao menos;
Quando eu via a desdita de bem perto
Co’um sorriso infernal no rosto esquálido,
Com fome e frio a tiritar demente,
Acenando-me infausta? – quando vinda
Minha honra já sentia, em que os meus lábios,
Tremendo de vergonha, soluçassem
Ao f’liz com que eu na rua deparasse,
De mãos erguidas: Meu Senhor, piedade!
Eis por que sofro assim, por que assim gemo,
Por que meu rosto pálido se encova,
Por que somente a dor me ri nos lábios,
Por que meu coração já todo é cinzas.
Menti, Senhor, menti! – porque te adoro.
No altar profano de beleza esquiva
Não queimo incenso vão; – tu só me ocupas
O coração, que eu fiz hóstia sagrada,
Apuro de elevados sentimentos,
Que o teu amor somente asilam, nutrem.
Quando ao sopé da cruz me chego aflito,
Sinto que o meu sofrer se vai minguando,
Sinto minha ama que de novo existe,
Sinto meu coração arder em chamas,
Arder meus lábios ao dizer teu nome.
Assim a cada aurora, a cada noite.
Virei consolações beber sedento
Aos pés do meu Senhor; – virei meu peito
Encher de religião, de amor, de fogo,
Que além de infindos céus minha alma exalte.
II
Quem me dera nas asas deste vento,
Que agora tão saudoso aqui murmura,
Agitando as cortinas, que me encobrem
Do teu rosto o fulgor, que me não cegue,
Subir além dos sois, além das nuvens
Ao teu trono, ó meu Deus; ou quem me desse
Ser este incenso que se arroja em ondas
A subir, a crescer, em rolo, em fumo,
Até perder-se na amplidão dos ares!
Não qu’ria aqui viver! – Quando eu padeço,
Surdez fingida a minha voz responde;
Não tenho voz de amor, que me console,
Corre o meu pranto sobre terra ingrata,
E dor mortal meu coração fragoa.
Só tu, Senhor, só tu, no meu deserto
Escutas minha voz que te suplica;
Só tu nutres minha alma de esperança;
Só tu, ó meu Senhor, em mim derramas
Torrentes de harmonia, que me abrasam.
Qual órgão, que ressoa mavioso,
Quando segura mão lhe oprime as teclas,
Assim minha alma, quando a ti se achega,
Hinos de ardente amor disfere grata:
E, quando mais serena, inda conserva
Eflúvios desse canto, que me guia
No caminho da vida áspero e duro.
Assim por muito tempo reboando
Vão no recinto do sagrado templo
Sons, que o órgão soltou, que o ouvido escuta.
O Trovador
Ele cantava tudo o que merece de ser cantado;
o que há na terra de grande e de santo – o amor e a virtude.
Numa terra antigamente
Existia um Trovador;
Na Lira sua inocente
Só cantava o seu amor.
Nenhum sarau se acabava
Sem a Lira de marfim,
Pois cantar tão alto e doce
Nunca alguém ouvira assim.
E quer donzela, quer dona,
Que sentira comoção
Pular-lhe n’alma, escutando
Do Trovador a canção;
De jasmins e de açucenas
A fronte sua adornou;
Mas só a rosa da amada
Na Lira amante poisou.
E o Trovador conheceu
Que era traído – por fim;
Pôs-se a andar, e só se ouvia
Nos seus lábios: ai de mim!
Enlutou de negro fumo
A rosa de seu amor,
Que meia oculta se via
Na gorra do Trovador;
Como virgem bela, morta
Da idade na linda flor,
Que parece, o dó trajando,
Inda sorrir-se de amor.
No meio do seu caminho
Gentil donzela encontrou:
Canta – disse; e as cordas d’oiro
Vibrando, o triste cantou.
"Teu rosto engraçado e belo
"Tem a lindeza da flor;
"Mas é risonho o teu rosto:.
"Não tens de sentir amor!
"Mas tão bem por esse dia
"Que viverás, como a flor,
"Mimosa, engraçada e bela,
"Não tens de sentir amor!
"Oh! não queiras, por Deus, homem que tenha
"Tingida a larga testa de palor;
"Sente fundo a paixão, – e tu no mundo
"Não tens de sentir amor!
"Sorriso jovial te enfeita os lábios,
"Nas faces de jasmim tens rósea cor;
"Fundo amor não se ri, não é corado…
"Não tens de sentir amor;
"Mas se queres amar, eu te aconselho,
"Que não guerreiro, escolhe um trovador,
"Que não tem um punhal, quando é traído,
"Que vingue o seu amor."
Do Trovador pelo rosto
Torva raiva se espalhou,
E a Lira sua, tremendo,
Sem cordas d’oiro ficou.
Mais além no seu caminho
Donzel garboso encontrou:
Canta – disse: e argênteas cordas
Pulsando, o triste cantou.
"Aos homens da mulher enganam sempre
"O sorriso, o amor;
"É este breve, como é breve aquele
"Sorriso enganador.
"Teu peito por amor, Donzel, suspira,
"Que é de jovens amar a formosura;
"Mas sabe que a mulher, que amor te jura,
"Dos lindos lábios seus cospe a mentira!
"Já frenético amor cantei na lira,
"Delícias já sorvi num seu sorriso,
"Já venturas fruí do paraíso,
"Em terna voz de amor, que era mentira!
"O amor é como a aragem que murmura
"Da tarde no cair – pela folhagem;
"Não volta o mesmo amor à formosura
"Bem como nunca volta a mesma – aragem.
"Não queiras amar, não; pois que a’sperança
"Se arroja além do amor por largo espaço.
"Tens, brilhando ao sol, a forte lança,
"Tens longa espada cintilante d’aço.
"Tens a fina armadura de Milão,
"Tens luzente e brilhante capacete,
"Tens adaga e punhal e bracelete
"E, qual lúcido espelho, o morrião.
"Tens fogoso corcel todo arreiado,
"Que mais veloz que os ventos sorve a terra;
"Tens duelos, tens justas, tens torneios,
"Que os fracos corações de medo cerro;
"’tens pajens, tens valetes e escudeiros
"E a marcha afoita, apercebida em guerra
"Do luzido esquadrão de mil guerreiros.
"Oh! não queiras amar! – Como entre a neve
"O gigante vulcão borbulha e ferve
"E sulfúrea chama pelos ares lança,
"Que após o seu cair torna-se fria;
"Assim tu acharás petrificada,
"Bem como a lava ardente do vulcão,
"A lava que teu peito consumia
"No peito da mulher – ou cinza ou nada –
"Não frio, mas gelado o coração!"
E o Trovador despeitoso
De prata as cordas quebrou,
E nas de chumbo seu fado
A lastimar começou.
"Que triste que é neste mundo
"O fado dum Trovador! ,
"Que triste que é! – bem que tenha ,
"Sua Lira e seu amor,
"Quando em festejos descanta,
"Rasgado o peito com dor,
"Mimoso tem de cantar
"Na sua Lira – o amor!
"Como a um servo vil ordena
"Um orgulhoso Senhor,
"Canta, diz-lhe; quero ouvir-te:
"Quero descantes de amor!
"Diz-lhe o guerreiro, que apenas
"Lidou em justas de amor:
"- Minha dama quer ouvir-te,
"Canta, truão trovador! –
"Manda a mulher que nos deixa
"De beijos murchada flor:
"- Canta, truão, quero ouvir-te,
"Um terno canto de amor!
"Mas se a mulher, que ele adora
"Atraiçoa o seu amor;
"Embalde busca a seu lado
"Um punhal – o Trovador!
Se escuta palavras dela, –
"Que a outros juram amor;
"Embalde busca a seu lado
"Um punhal – o Trovador!
"Se vê luzir de alguns lábios
"Um sorriso mofador;
"Embalde busca a seu lado
"Um punhal – o Trovador!
"Que triste que é neste mundo
"O fado dum Trovador!
"Pesar lhe dá sua Lira,
"Dá-lhe pesar seu amor!"
E o Trovador neste ponto
A corda extrema arrancou;
E num marco do caminho
A Lira sua quebrou:
Ninguém mais a voz sentida
Do Trovador escutou!
O Vate
No Álbum de um Poeta
Moi. . . j’aimerai la victoire;
Pour mon coer, ami de toute gloire,
Les triomphes d’autrui ne sont pas un affront.
Poète, j’eus toujours un chanl pour les poétes,
Et jamais le laurier qui pare d’autre têtes
Ne jeta d’ombre sur mon front.
— V. Hugo
Vate! Vate! que és tu? – Nos seus extremos
Fadou-te Deus um coração de amores,
Fadou-te uma alma acesa borbulhando
Ardidos pensamentos, como a lava
Que o gigante Vesúvio arroja às nuvens.
Vote! vote! que és tu? – Foste ao princípio
Sacerdote e profeta;
Eram nos céus teus cantos uma prece,
Na terra um vaticínio.
E ele cantava então: – Jeová me disse,
Majestoso e terrível.
“Vês tu Jerusalém como orgulhosa
“Campeã entre as nações, como no Líbano
“Um cedro a cuja sombra a hissope cresce?
“Breve a minha ira transformada em raios
“Sobre ela cairá;
“Um fero vencedor dentro em seus muros
“Tributária a fará;
“E quando escravos seus filhos, sobre pedra
“Pedra não ficará.”
E os réprobos de saco se vestiam,
Em pó, em cinza envoltos;
E colando co’a terra os torpes lábios,
E açoitando cu’as mãos o peito imbele,
Senhor! Senhor! – clamavam.
E o vate entanto o pálido semblante
Meditabundo sobre as mãos firmara,
Suplicando ao Senhor do interno d’alma.
Foram santos então. – Homero o mundo
Criou segunda vez, – o inferno o Dante, –
Milton o paraíso, – foram grandes!
E hoje!… em nosso exílio erramos tristes,
Mimosa esp’rança ao infeliz legando.
Maldizendo a soberba, o crime, os vicio;:
E o infeliz se consola, e o grande treme.
Damos ao infante aqui do pão que temos,
E o manto além ao mísero raquítico:
Somos hoje Cristãos.
Olhos verdes
Eles verdes são:
E têm por usança
Na cor esperança
E nas obras não.
Camões, Rimas.
São uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos de verde-mar,
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos cor de esperança
Uns olhos por que morri;
Que, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Como duas esmeraldas,
Iguais na forma e na cor,
Têm luz mais branda e mais forte.
Diz uma – vida, outra – morte;
Uma – loucura, outra – amor.
Mas, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
São verdes da cor do prado,
Exprimem qualquer paixão,
Tão facilmente se inflamam,
Tão meigamente derramam
Fogo e luz do coração;
Mas, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
São uns olhos verdes, verdes,
Que pode também brilhar;
Não são de um verde embaçado,
Mas verdes da cor do padro,
Mas verdes da cor do mar.
Mas, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Como se lê num espelho
Pude ler nos olhos seus!
Os olhos mostram a alma,
Que as ondas postas em calma
Também refletem os céus;
Mas, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Dizei vós, ó meus amigos
Se vos perguntam por mi,
Que eu vivo só da lembrança
De uns olhos da cor da esperança,
De uns olhos verdes que vi!
Que, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Dizei vós: Triste do bardo!
Deixou-se de amor finar!
Viu uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos da cor do mar;
Eram verdes sem esp’rança,
Davam amor sem amar!
Dizei-o vós, meus amigos,
Que, ai de mi!
Não pertenço mais à vida
Depois que os vi!
Os Suspiros
Muitas vezes tenho ouvido,
Como lânguidos gemidos,
Frouxos suspiros partidos
Dentre uns lábios de coral:
A fina tez lhes deslustram,
Bem como o alento que passa
Sobre o candor duma taça
De transparente cristal.
Ouvido os tenho mil vezes
Do coração arrancados,
Sobre lábios desmaiados
Sussurrando esvoaçar!
Como flor submarinha
Da funda gleba arrancada,
De vaga em vaga arrastada,
Correndo de mar em mar!
Ouvido os tenho mil vezes,
Em quanto a lua fulgura,
Quando a virgem d’alma pura
Feita seus olhos no céu:
Notas de mundo longínquo
Repassadas de harmonia,
Diamante que alumia
A tela de um fino véu!
Tu, virgem, por que suspiras?
Quando suspiras que cismas?
Em que reflexões te abismas,
– Do passado ou do porvir;
Mas não tens passado ainda,
Tudo é flores no presente,
Brilha o porvir docemente,
Como do infante o sorrir.
Tu, virgem, por que suspiras?
– Murmura trepida a fronte,
De relva se cobre o monte,
As aves sabem cantar;
O ditoso tem sorrisos,
O desgraçado tem pranto,
A virgem tem mais encanto
No seu vago suspirar!
Suspirar, ó doce virgem,
É da alma a voz primeira,
A expressão mais verdadeira
Da sina e do fado teu!
Vago, incerto, indefinido,
Tem um quê de inexplicável,
Como um desejo insondável,
Como um reflexo do céu.
Eu amo ouvir teus suspiros,
Ó doce virgem mimosa,
Como nota harmoniosa,
Como um cântico de amor;
Mais do que a flor entre as vagas
Sem destino flutuando,
Folgo de os ver expirando
Em lábios de rubra cor.
Mais que a longínqua harmonia,
Que o alento fraco, incerto,
Que o diamante coberto,
Cintilando almo fulgor;
Folgo de ouvir teus suspiros,
Ó doce virgem mimosa,
Como nota harmoniosa,
Como um cântico de amor!
Palinódia
Se só por vós, Senhora, corpo e alma,
Apesar da aversão que tenho ao crime,
Inteiro me embucei nos seus andrajos,
Em tremedal de vícios;
S só por vós descri do que era nobre,
Por que involto em torpeza imunda e feia,
As vestes da virtude imaculada
Rebolquei-as no Iodo;
Se só por vós persegue-me o remorso,
Que os dias da existência me consome,
E entre angústias cruéis minha alma anseia,
– Ludíbrio dos meus erros:
Consenti que a moral os seus direitos
Reivendique uma vez, e que a minha alma
Das lições que bebeu na pura infância
Uma hora se recorde!
Agora, agro censor, hão de os meus lábios,
Duras verdades trovejando em verso,
Fazer de vós, o que a razão não pôde,
Mulher ou estátua!
Mentistes quando amor tínheis nos lábios.
Mentistes q compor meigos sorrisos,
Mentistes no olhar, na voz, no gesto…
Fostes bem falsa!…
Falsa, como a mulher que em bruta orgia
Finge extremos de amor que ela não sente,
E o rosto of’rece a ósculos vendidos,
Ao sigilo da infâmia.
Quantas vezes, Senhora, não caístes
Humilhada, à meus pés, desfeita em pranto,
Chorando – e que choráveis? – a jurar-me…
Que juráveis então?
Se pois sentistes compaixão amiga
A cair gota a gota dos meus lábios
No que eu supunha cicatriz recente,
E que era úlcera funda;
Se me vistes os olhos incendidos,
Sangrar-me o coração no peito aflito
Ao fel das vossas dores, que azedáveis
Co’o pranto refalsado,
Ouvi! – não éreis bela, – nem minha alma
Vos amou, que um modelo de virtudes,
– Um sublime ideal – amou somente;
Vós o não fostes nunca.
Que uma alma como a vossa, já manchada,
Aos negros vícios mais que muito afeita,
Já feia, já corrupta, já sem brilho…
Amá-la eu, Senhora!
Deitar-me sob a copa traiçoeira,
Que ao longe espalha a sombra, o engano, a morte;
Recostar-me no seio onde outros dormem,
Que por ninguém palpita!
Beijar faces sem vida, onde se enxerga
Visgo nojento d’ósculos comprados;
Crer no que dizem olhos mentirosos,
Em prantos de loureira!
Antes curvar o colo envilecido
Ao jugo vil da escravidão nefanda;
Beijar humilde a mão que nos ofende,
Que nos cobre de opróbrio!
Antes, possesso d’imprudência estúpida,
Brincando remexer no açafate,
Onde por baixo de mimosas flores,
O áspide se esconde!
Mas eu, nos meus acessos de delírio,
Voz importuna de contínuo ouvia,
Cá dentro de mim, a rep’ender-me sempre
De vos amar… tão pouco!
Assim o cego idólatra se culpa,
Nos espasmos d’ascética virtude,
De não amar assaz o vão fantasma,
Se suas mãos feitura.
Porém se luz melhor de cima o aclara,
Cospe afronta e desdém, e à chama entrega
O cepo vil, que não mereces altares,
Nem d’ofrendas é digno!
Releva-se a imprudência feminina,
Inda um erro, uma culpa se perdoa,
Se a desvaira a paixão, se amor a cega
No mar de escolhos cheio.
O Deus, que mais perdoa a quem mais ama,
Talvez da vida a negra mancha apaga
A quem as asas de algum anjo orvalha
De lágrimas contritas.
Mas não a aquela, em cujo peito mora
Torpeza só, – onde o amor se cobre
De vícios – a nutrir-se d’impurezas,
Como vermes de Iodo.
Se porém te aproveita o meu conselho,
À quem, mais do que a mim, tens ofendido,
Que entre os risos do mundo, ve tua alma
E lê teus pensamentos;
Se não crês noutra vida além da morte,
Roga se quer a Deus, que te não rompa
À luz do sol divino da Justiça
QA máscara d’enganos!
Que a rainha da terra inamolgável,
A dura opinião – te não entregue,
Sozinha, e nua, e d’irrisão coberta,
À popular vindicta!
Pedido
Ontem no baile
Não me atendias!
Não me atendias,
Quando eu falava.
De mim bem longe
Teu pensamento!!
Teu pensamento,
Bem longe errava.
Eu vi teus olhos
Sobre outros olhos!
Sobre outros olhos,
Que eu odiava.
Tu lhe sorriste
Com tal sorriso!
Com tal sorriso,
Que apunhalava.
Tu lhe falaste
Com voz tão doce!
Com voz tão doce,
Que me matava.
Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Se então só qu’rias
Exp’rimentar-me.
Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Não lhe sorrias,
Que era matar-me.
Prólogo Primeiros Cantos
Dei o nome de Primeiros Cantos às poesias que agora publico, porque
espero que não serão as últimas.
Muitas delas não têm uniformidade nas estrofes, porque menosprezo
regras de mera convenção; adotei todos os ritmos da metrificação
portuguesa, e usei deles como me pareceram quadrar melhor com o que eu pretendia
exprimir.
Não têm unidade de pensamento entre si, porque foram compostas
em épocas diversas – debaixo de céu diverso – e sob a influência
de impressões momentâneas. Foram compostas nas margens viçosas
do Mondego e nos píncaros enegrecidos do Gerez – no Doiro e no Teia
– sobre as vagas do Atlântico, e nas florestas virgens da América.
Escrevi-as para mim, e não para os outros; contentar-me-ei, se agradarem;
e se não… é sempre certo que tive o prazer de as ter composto.
Com a vida isolada que vivo, gosto de afastar os olhos de sobre a nossa arena
política para ler em minha alma, reduzindo à linguagem harmoniosa
e cadente o pensamento que me vem de improviso, e as idéias que em
mim desperta a vista de uma paisagem ou do oceano – o aspecto enfim da natureza.
Casar assim o pensamento com o sentimento – o coração com o
entendimento – a idéia com a paixão – cobrir tudo isto com a
imaginação, fundir tudo isto com a vida e com a natureza, purificar
tudo com o sentimento da religião e da divindade, eis a Poesia – a
Poesia grande e santa – a Poesia como eu a compreendo sem a poder definir,
como eu a sinto sem a poder traduzir.
O esforço – ainda vão – para chegar a tal resultado é
sempre digno de louvor; talvez seja este o só merecimento deste volume.
O Público o julgará; tanto melhor se ele o despreza, porque
o Autor interessa em acabar com essa vida desgraçada, que se diz de
Poeta.
Rio de Janeiro, julho de 1846.
Quadras da Minha Vida Recordação e Desejo
Ao meu bom amigo o Dr. A. Rego
Sol chi non lascia eredità d’affeti
Poca gioia ha dell’urna.
— Foscolo
I
Houve tempo em que os meus olhos
Gostavam do sol brilhante,
E do negro véu da noite,
E da aurora cintilante.
Gostavam da branca nuvem
Em céu de azul espraiada,
Do terno gemer da fonte
Sobre pedras despenhada.
Gostavam das vivas cores
De bela flor vicejante,
E da voz imensa e forte
Do verde bosque ondeante.
Inteira a natureza me sorria!
A luz brilhante, o sussurrar da brisa,
O verde bosque, o rosicler d’aurora,
Estrelas, céus, e mar, e sol, e terra,
D’esperança e d’amor minha alma ardente,
De luz e de calor meu peito enchiam.
Inteira a natureza parecia
Meus mais fundos, mais íntimos desejos
Perscrutar e cumprir; – almo sorriso
Parecia enfeitar co’os seus encantos,
Com todo o seu amor compor, doirá-lo,
Porque os meus olhos deslumbrados vissem-no,
Porque minha alma de o sentir folgasse.
Oh! quadra tão feliz! – Se ouvia a brisa
Nas folhas sussurrando, o som das águas,
Dos bosques o rugir; – se os desejava,
– O bosque, a brisa, a folha, o trepidante
Das águas murmurar prestes ouvia.
Se o sol doirava os céus, se a lua casta.
Se as tímidas estrelas cintilavam,
Se a flor desabrochava envolta em musgo,
– Era a flor que eu amava, – eram estrelas
Meus amores somente, o sol brilhante,
A lua merencória – os meus amores!
Oh! quadra tão feliz! – doce harmonia,
Acordo estreme de vontade e força,
Que atava minha vida à natureza!
Ela era para mim bem como a esposa
Recém-casada, pudica sorrindo;
Alma de noiva – coração de virgem,
Que a minha vida inteira abrilhantava!
Quando um desejo me brotava n’alma,
Ela o desejo meu satisfazia;
E o quer que ela fizesse ou me dissesse,
Esse era o meu desejo, essa a voz minha,
Esse era o meu sentir do fundo d’alma,
Expresso pela voz que eu mais amava.
II
Agora a flor que m’importa,
Ou a brisa perfumada,
Ou o som d’amiga fonte
Sobre pedras despenhada?
Que me importa a voz confusa
Do bosque verde-frondoso,
Que m’importa a branca lua,
Que m’importa o sol formoso?
Que m’importa a nova aurora,
Quando se pinta no céu;
Que m’importa a feia noite,
Quando desdobra o seu véu?
Estas cenas, que amei, já me não causam
Nem dor e nem prazer! – Indiferente,
Minha alma um só desejo não concebe,
Nem vontade já tem!… Oh! Deus! quem pôde
Do meu imaginar as puras asas
Cercear, desprender-lhe as níveas plumas,
Rojá-las sobre ó pó, calcá-las tristes?
Perante a criação tão vasta e bela
Minha alma é como a flor que pende murcha;
É qual profundo abismo: – embalde estrelas
Brilham no azul dos céus, embalde a noite
Estende sobre a terra o negro manto:
Não pode a luz chegar ao fundo abismo,
Nem pode a noite enegrecer-lhe a face;
Não pode a luz à flor prestar mais brilho
Nem viço e nem frescor prestar-lhe a noite!
III
Houve tempo em que os meus olhos
Se extasiavam de ver
Ágil donzela formosa
Por entre flores correr.
Gostavam de um gesto brando,
Que revelasse pudor;
Gostavam de uns olhos negros,
Que rutilassem de amor.
E gostavam meus ouvidos
De uma voz – toda harmonia, –
Quer pesares exprimisse,
Quer exprimisse alegria.
Era um prazer, que eu tinha, ver a virgem
Indolente ou fugaz – alegre ou triste,
Da vida a estreita senda desflorando
Com pé ligeiro e ânimo tranqüilo;
lmpróvida e brilhante parecendo
Seus dias desfolhar, uns após outros,
Como folhas de rosa; – e no futuro –
Ver luzir-lhe somente a luz d’aurora.
Era deleite e dor vê-la tão leda
Do mundo as aflições, angústias, prantos
Afrontar co’um sorriso; era um descanso
Interno e fundo, que sentia a mente,
Um quadro em que os meus olhos repousavam,
Ver tanta formosura e tal pureza
Em rosto de mulher com alma d’anjo!
IV
Houve tempo em que os meus olhos
Gostavam de lindo infante,
Com a candura e sorriso
Que adorna infantil semblante.
Gostavam do grave aspecto
De majestoso ancião,
Tendo nos lábios conselhos,
Tendo amor no coração.
Um representa a inocência,
Outro a verdade sem véu;
Ambos tão puros, tão graves,
Ambos tão perto do céu!
Infante e velho! – princípio e fim da vida! –
Um entra neste mundo, outro sai dele,
Gozando ambos da aurora; – um sobre a terra,
E o outro lá nos céus. – O Deus, que é grande,
Do pobre velho compensando as dores,
O chama para si; o Deus clemente
Sobre a inocência de continuo vela.
Amei do velho o majestoso aspecto,
Amei o infante que não tem segredos,
Nem cobre o coração co’os folhos d’alma.
Armei as doces vozes da inocência,
A ríspida franqueza amei do velho,
E as rígidas verdades mal sabidas,
Só por lábios senis pronunciadas.
V
Houve tempo, em que possível
Eu julguei no mundo achar
Dois amigos extremosos,
Dois irmãos do meu pensar:
Amigos que compr’endessem
Meu prazer e minha dor,
Dos meus lábios o sorriso,
Da minha alma o dissabor;
Amigos, cuja existência
Vivesse eu co’o meu viver:
Unidos sempre na vida,
Unidos – té no morrer.
Amizade! – união, virtude, encanto –
Consórcio do querer, de força e d’alma –
Dos grandes sentimentos cá da terra
Talvez o mais recíproco, o mais fundo!
Quem há que diga: Eu sou feliz! – se acaso
Um amigo lhe falta? – um doce amigo,
Que sinta o seu prazer como ele o sente,
Que sofra a sua dor como ele a sofre?
Quando a ventura lhe sorri na vida,
Um a par doutro – ei-los lá vão felizes;
Quando um sente aflição, nos braços do outro
A aflição, que é só dum, carpindo juntos,
Encontra doce alívio o desditoso
No tesouro que encerra um peito amigo.
Cândido par de cisnes, vão roçando
A face azul do mar co’as níveas asas
Em deleite amoroso; – acalentados
Pelo sereno espreguiçar das ondas,
Aspirando perfumes mal sentidos,
Por vesperina aragem bafejados,
É jogo o seu viver; – porém se o vento
No frondoso arvoredo ruge ao longe,
Se o mar, batendo irado as ermas praias,
Cruzadas vagas em novelo enrola,
Com grito de terror o par candente
Sacode as níveas asas, bate-as, – fogem.
VI
Houve tempo em que eu pedia
Uma mulher ao meu Deus,
Uma mulher que eu amasse,
Um dos belos anjos seus.
Em que eu a Deus só pedia
Com fervorosa oração
Um amor sincero e fundo,
Um amor do coração.
Qu’eu sentisse um peito amante
Contra o meu peito bater,
Somente um dia… somente!
E depois dele morrer.
Amei! e o meu amor foi vida insana!
Um ardente anelar, cautério vivo,
Posto no coração, a remordê-lo.
Não tinha uma harmonia a natureza
Comparada a sua voz; não tinha cores
Formosas como as dela, – nem perfumes
Como esse puro odor qu’ela esparzia
D’angélica pureza. – Meus ouvidos
O feiticeiro som dos meigos lábios
Ouviam com prazer; meus olhos vagos
De a ver não se cansavam; lábios d’homens
Não puderam dizer como eu a amava!
E achei que o amor mentia, e que o meu anjo
Era apenas mulher! chorei! deixei-a!
E aqueles, que eu amei co’o amor d’amigo,
A sorte, boa ou má, levou-mos longe,
Bem longe quando eu perto os carecia.
Concluí que a amizade era um fantasma,
Na velhice prudente – hábito apenas,
No jovem – doudejar; em mim lembrança;
Lembrança! – porém tal que a não trocara
Pelos gozos da terra, – meus prazeres
Foram só meus amigos, – meus amores
Hão de ser neste mundo eles somente.
VIl
Houve tempo em que eu sentia
Grave e solene aflição,
Quando ouvia junto ao morto
Cantar-se a triste oração.
Quando ouvia o sino escuro
Em sons pesados dobrar,
E os cantos do sacerdote
Erguidos junto do altar.
Quando via sobre um corpo
A fria lousa cair;
Silêncio debaixo dela,
Sonhos talvez – e dormir.
Feliz quem dorme sob a lousa amiga,
Tépida talvez com o pranto amargo
Dos olhos da aflição; – se os mortos sentem,
Ou se almas tem amor aos seus despojos,
Certo dos pés dó Eterno, entre a aleluia,
E o gozo lá dos céus, e os coros d’anjos,
Hão de lembrar-se com prazer dos vivos,
Que choram sobre a campa, onde já brota
O denso musgo, e já desponta a relva.
Laje fria dos mortos! quem me dera
Gozar do teu descanso, ir asilar-me
Sob o teu santo horror, e nessas trevas
Do bulício do mundo ir esconder-me!
Oh! laje dos sepulcros! quem me desse
No teu silêncio fundo asilo eterno!
Ai não pulsa o coração, nem sente
Martírios de viver quem já não vive.
Que Cousa é um Ministro
O Ministro é a fênix que renasce
Das cinzas de outro, que lhe a vez cedeu:
Nasce num dia como o sol que nasce,
Morre numa hora como vil sandeu!
Se nódoas tem, uma excelência as caia;
Mortal sublime, que não sabe rir,
Do vulgo inglório não pertence à laia,
Dará conselhos, se se lhe pedir!
Um bípede de pasta, não de barro,
Nos pés se firma por favor de Deus!
Dois fardas-rotas trotam trás do carro
Em ruços magros como dois lebréus.
Agora, sim: temos a pátria salva,
Não fará este o que já o outro fez!
Grande estadista! basta ver-lhe a calva,
D’homem assim não há dizer — talvez!
Vede-lhe a pasta, que de cheia estala
Só de projetos que farão feliz
A pátria ingrata, que seus feitos cala,
Ou mais que ingrata, o nome seu maldiz!
(…)
Que me Pedes
Tu pedes-me um canto na lira de amores,
Um canto singelo de meigo trovar?!
Um canto fagueiro já — triste — não pode
Na lira do triste fazer-se escutar.
Outrora, coberto meu leito de flores,
Um canto singelo já soube trovar;
Mas hoje na lira, que o pranto umedece,
As notas d’outrora não posso encontrar!
Outrora os ardores que eu tinha no peito
Em cantos singelos podia trovar;
Mas hoje, sofrendo, como hei de sorrir-me,
Mas hoje, traído, como hei de cantar?
Não peças ao bardo, que aflito suspira,
Uns cantos alegres de meigo trovar;
À lira quebrada só restam gemidos,
Ao bardo traído só resta chorar.
Queixumes
I
Onde estás, meu senhor, meus amores?
A que terras – tão longes! – fugiste?
Onde agora teus dias se escoam?
Por que foi que de mim te partiste?
II
Não te lembras! Quando eu te rogava
Não te fosses de mim tão asinha,
Prometeste-me breve se minha
Tua vida, que o mar me roubava.
III
Tão amigo do mar foste sempre,
Por que amigos talvez não achaste!
Nem carinhos, nem prantos te ameigam?
Nem por mim, que te amava, o deixaste?
IV
Vejo além o lugar onde estava
Tua esbelta fragata ancorada,
Mal sofrida jogando afagada
Do galerno que amigo a chamava.
V
Da partida era o fúnebre instante,
Breve instante de aflitos terrores,
Quando o mar traiçoeiro, inconstante,
Me roubava meus puros amores!
VI
Inda choro essa noite medonha,
Longa noite de má despedida!
Teu amor me deixaste nos braços,
Nos teus braços levaste-me a vida!
VII
Oh! Cruel, que então foste comigo,
Que te hei feito que punes-me assim?
Teu navio que tantos levava,
Não podia levar mais a mim?
VIII
Mas a mim! – que importava que eu fosse?
Não me ouvira a tormenta chorar,
E morrer me seria mais doce
Junto a ti, – que o meu triste penar!
IX
Junto a ti me era a vida bem cara,
Oh! Bem cara! – se ledo sorrias,
Se pensavas sozinho e profundo,
Se agras dores contigo curtias;
X
Eu te amava, senhor! – Nem podia,
Dentro em mim, convencer-me que fosse
Outra vida melhor, nem mais doce,
Nem que o amor se acabasse algum dia!
XI
Mas o mar tem lindezas que encantam,
Tem lindezas, que o nauta namora,
Tão bem dizem que vozes descantam
No silêncio pacato desta hora!
XII
São de ninfas os mares pejados,
Tão bem dizem que sabem magia,
Que suscitam cruel calmaria,
Só d’em torno dos seus namorados!
XIII
Alta noite, bem perto, aparece,
Como leiva juncada de flores,
Ilha fértil em fáceis amores,
Onde o nauta da vida se esquece!
XIV
Não te esqueças de mim! – Por Sevilha
Quando o peito de branco marfim
Perceberes na preta mantilha,
Sombreado por leve carmim;
XV
Quando vires passar a Andaluza
Pelos montes, com ar majestoso,
Decantando nas modas de que usa
As loucuras do Cid amoroso;
XVI
Quando vires a mole Odalisca
De beleza e de extremos fadada,
Respirando perfumes da Arábia,
Em sericos tapizes deitada;
XVII
Quando a vires co’a fronte bem cheia
De riquezas, de graças ornada,
Pelo andar do elefante embalada,
Que alta escolta de eunucos rodeia;
XVIII
Quando vires a Grega vagando
Pelas Ilhas de Cós ou Megara,
Em sua língua, tão doce, cantando
Seus amores que o Turco roubara;
XIX
Quando a vires no Carro de Homero,
Bela e grave e sisuda lavrando,
Pelos montes melífluos do Himeto
A parelha de bois aguilhando;
XX
Não te esqueçam meus duros pesares,
Não te esqueças por elas de mim,
Não te esqueças de mim pelos mares,
Não me esqueças na terra por fim!
XXI
Se eu fosse homem, tão bem desejara
Percorrer estes campos de prata,
E este mundo, na tua fragata,
Co’uma esteira cingir d’onda amara.
XXII
Qu’ria ver a andorinha coitada
Nos meus mastros fugida pousar,
E achar no convés abrigada,
Quando o vento começa a reinar!
XXIII
Ver o mar de toninhas coberto,
Ver milhares de peixes brincar,
Ver a vida nesse amplo deserto
Mais valente, mais forte pular!
_______________
Oh! Que o homem fosse eu, mulher tu fosses,
Ou fosse tempestade ou calmaria,
Ou fosse mar ou terra, Espanha o Grécia,
Só de ti, só de ti me lembraria!
O mar suas ondas inconstante volve,
Sem que o seu curso o mesmo rumo leve,
Assim dos homens a paixão se move,
Falaz e vária, assim no peito ferve!
Meditados enganos sempre encobre
O mesmo que ao princípio ardente amava;
Oxalá não diga eu que me enganava,
Que teu peito julguei constante e nobre!
Oh! Que o homem fosse eu, mulher tu fosses,
Ou fosse tempestade ou calmaria,
Ou fosse mar ou terra, Espanha o Grécia,
Só de ti, só de ti me lembraria!
Recordação
Nessun maggior dolore…
— Dante
Quando em meu peito as aflições rebentam
Eivadas de sofrer acerbo e duro;
Quando a desgraça o coração me arrocha
Em círculos de ferro, com tal força,
Que dele o sangue em borbotões golfeja;
Quando minha alma de sofrer cansada, .
Bem que afeita a sofrer, sequer não pode
Clamar: Senhor piedade; – e que os meus olhos
Rebeldes, uma lágrima não vertem
Do mar d’angústias que meu peito oprime:
Volvo aos instantes de ventura, e penso
Que a sós contigo, em prática serena,
Melhor futuro me augurava, as doces
Palavras tuas, sôfregos, atentos
Sorvendo meus ouvidos, – nos teus olhos
Lendo os meus olhos tanto amor, que a vida
Longa, bem longa, não bastara ainda
Porque de os ver me saciasse!… O pranto
Então dos olhos meus corre espontâneo,
Que não mais te verei. – Em tal pensando
De martírios calar sinto em meu peito
Tão grande plenitude, que a minha alma
Sente amargo prazer de quanto sofre.
Rosa no Mar
Por uma praia arenosa,
Vagarosa
Divagava uma Donzela;
Dá largas ao pensamento,
Brinca o vento
Nos soltos cabelos dela.
Leve ruga no semblante
Vem num instante,
Que noutro instante se alisa;
Mais veloz que a sua idéia
Não volteia,
Não gira, não foge a brisa.
No virginal devaneio
Arfa o seio,
Pranto ao riso se mistura:
Doce rir dos céus encanto,
Leve pranto,
Que amargo não é, nem dura.
Nesse lugar solitário.
—————— Seu fadário.
De ver o mar se recreia;
De o ver, à tarde, dormente,
Docemente
Suspirar na branca areia.
Agora, qual sempre usava,
Divagava
Em seu pensar embebida;
Tinha no seio uma rosa
Melindrosa,
De verde musgo vestida.
Ia a virgem descuidosa,
Quando a rosa
Do seio no chão lhe cai:
Vem um’onda bonançosa,
Qu’impiedosa
A flor consigo retrai.
A meiga flor sobrenada;
De agastada,
A virge’ a não quer deixar!
Bóia a flor; a virgem bela,
Vai trás ela,
Rente, rente – à beira-mar.
Vem a onda bonançosa,
Vem a rosa;
Foge a onda, a flor também.
Se a onda foge, a donzela
Vai sobre ela!
Mas foge, se a onda vem.
Muitas vezes enganada,
De enfadada
Não quer deixar de insistir;
Das vagas menos se espanta,
Nem com tanta
Presteza lhes quer fugir.
Nisto o mar que se encapela
A virgem bela
Recolhe e leva consigo;
Tão falaz em calmaria,
Como a fria
Polidez de um falso amigo.
Nas águas alguns instantes,
Flutuantes
Nadaram brancos vestidos:
Logo o mar todo bonança,
A praia cansa
Com monótonos latidos.
Um doce nome querido
Foi ouvido,
Ia a noite em mais de meia.
Toda a praia perlustraram,
Nem acharam
Mais que a flor na branca areia.
Se se Morre de Amor
Se se morre de amor! — Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre os festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n’alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve, e no que vê prazer alcança!
Simpáticas feições, cintura breve,
Graciosa postura, porte airoso,
Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Um quê mal definido, acaso podem
Num engano d’amor arrebatar-nos.
Mas isso amor não é; isso é delírio,
Devaneio, ilusão, que se esvaece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro
Clarão, que as luzes no morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,
D’amor igual ninguém sucumbe à perda.
Amor é vida; é ter constantemente
Alma, sentidos, coração — abertos
Ao grande, ao belo; é ser capaz d’extremos,
D’altas virtudes, té capaz de crimes!
Compr’ender o infinito, a imensidade,
E a natureza e Deus; gostar dos campos,
D’aves, flores, murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma
Fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes;
Isso é amor, e desse amor se morre!
Amar, e não saber, não ter coragem
Para dizer que amor que em nós sentimos;
Temer qu’olhos profanos nos devassem
O templo, onde a melhor porção da vida
Se concentra; onde avaros recatamos
Essa fonte de amor, esses tesouros
Inesgotáveis, d’ilusões floridas;
Sentir, sem que se veja, a quem se adora,
Compr’ender, sem lhe ouvir, seus pensamentos,
Segui-la, sem poder fitar seus olhos,
Amá-la, sem ousar dizer que amamos,
E, temendo roçar os seus vestidos,
Arder por afogá-la em mil abraços:
Isso é amor, e desse amor se morre!
Se tal paixão porém enfim transborda,
Se tem na terra o galardão devido
Em recíproco afeto; e unidas, uma,
Dois seres, duas vidas se procuram,
Entendem-se, confundem-se e penetram
Juntas — em puro céu d’êxtases puros:
Se logo a mão do fado as torna estranhas,
Se os duplica e separa, quando unidos
A mesma vida circulava em ambos;
Que será do que fica, e do que longe
Serve às borrascas de ludíbrio e escárnio?
Pode o raio num píncaro caindo,
Torná-lo dois, e o mar correr entre ambos;
Pode rachar o tronco levantado
E dois cimos depois verem-se erguidos,
Sinais mostrando da aliança antiga;
Dois corações porém, que juntos batem,
Que juntos vivem, — se os separam, morrem;
Ou se entre o próprio estrago inda vegetam,
Se aparência de vida, em mal, conservam,
Ânsias cruas resumem do proscrito,
Que busca achar no berço a sepultura!
Esse, que sobrevive à própria ruína,
Ao seu viver do coração, — às gratas
Ilusões, quando em leito solitário,
Entre as sombras da noite, em larga insônia,
Devaneando, a futurar venturas,
Mostra-se e brinca a apetecida imagem;
Esse, que à dor tamanha não sucumbe,
Inveja a quem na sepultura encontra
Dos males seus o desejado termo!
Se te Amo, Não Sei!
Amar! se te amo, não sei.
Oiço aí pronunciar
Essa palavra de modo
Que não sei o que é amar.
Se amar é sonhar contigo,
Se é pensar, velando, em ti,
Se é ter-te n’alma presente
Todo esquecido de mim!
Se é cobiçar-te, querer-te
Como uma bênção dos céus
A ti somente na terra
Como lá em cima a Deus;
Se é dar a vida, o futuro,
Para dizer que te amei:
Amo; porém se te amo
Como oiço dizer, não sei.
Sei que se um gênio bom me aparecesse
E tronos, glórias, ilusões floridas,
E os tesouros da terra me oferecesse
E as riquezas que o mar tem escondidas;
E do outro lado a ti somente, e o gozo
Efêmero e precário e após a morte;
E me dissesse: "Escolhe" oh! jubiloso,
Exclamara, senhor da minha sorte!
"Que tesouro na terra há i que a iguale?
Quero-a mil vezes, de joelhos sim!
Bendita a vida que tal preço vale,
E que merece de acabar assim!"
Se te Amo, Não Sei!
Amar! se te amo, não sei.
Oiço aí pronunciar
Essa palavra de modo
Que não sei o que é amar.
Se amar é sonhar contigo,
Se é pensar, velando, em ti,
Se é ter-te n’alma presente
Todo esquecido de mim!
Se é cobiçar-te, querer-te
Como uma bênção dos céus
A ti somente na terra
Como lá em cima a Deus;
Se é dar a vida, o futuro,
Para dizer que te amei:
Amo; porém se te amo
Como oiço dizer, não sei.
Sei que se um gênio bom me aparecesse
E tronos, glórias, ilusões floridas,
E os tesouros da terra me oferecesse
E as riquezas que o mar tem escondidas;
E do outro lado a ti somente, e o gozo
Efêmero e precário e após a morte;
E me dissesse: "Escolhe" oh! jubiloso,
Exclamara, senhor da minha sorte!
"Que tesouro na terra há i que a iguale?
Quero-a mil vezes, de joelhos sim!
Bendita a vida que tal preço vale,
E que merece de acabar assim!"
Sempre Ela
Eu amo a doce virgem pensativa,
Em cujo rosto a palidez se pinta,
Como nos céus a matutina estrela!
A dor lhe há desbotado a cor das faces,
E o sorriso que lhe roça os lábios
Murcha ledo sorrir nos lábios doutrem.
Tem um timbre de voz que n’alma ecoa,
Tem expressões d’angélica doçura,
E a mente do que as ouve, se perfuma
De amor profundo e de piedade santa,
E exala eflúvios dum odor suave
De aloés, de mirra ou de mais grato incenso.
E nessas horas, quando a mente aflita,
De dor oculta remordida, anseia
Desabrochar-se em confidência amiga,
“Neste mundo o qu sou? – triste clamava;
“Pérsica involta em pó, entre ruínas,
“Erma e sozinha a revolver-me em pranto!
“Flor desbotada em hástea já roída,
“De cujo tronco as outras amarelas
“Já rojam sobre o pó, já murchas pendem!
“É sentir e sofrer a minha vida!”
Merencória dizia, erguendo os olhos
Aos céus dum claro azul, que lhes sorriam.
Nada o mundo alcion por sobre os mares,
E próximo a seu fim desata o canto;
A rosa do Sarão lá se despenha
Nas águas do Jordão? E como a rosa,
Como o cisne, do mar entre os perfumes,
Aos sons duma Harpa interna ela morria!
E como o pastor que avista a linda rosa
Nas águas da corrente, e como o nauta
Que vê, que escuta o cisne ir-se embalado
Sobre as águas do mar, cantado a morte;
Eu também a segui – a rosa , o cisne,
Que lá se foi sumir pó clima estranho.
E depois que os meus olhos a perderam,
Como se perde a estrela em céus infindos,
Errei pó sobre as ondas do oceano,
Sentei-me a sombra das florestas virgens,
Procurando apagar a imagem dela,
Que tão inteira me ficara n’alma!
Embalde aos céus erguendo os olhos turvos
Meu astro procurei entre os mais astros,
Qu’outrora amiga sina me fadara!
Com brilho embaciado e lua incerta
Nos ares se perdeu antes do ocaso,
Deixando-me sem norte em mar d’angústias.
Seus Olhos Tão Negros, Tão Belos, Tão Puros
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
Estrelas incertas, que as águas dormentes
Do mar vão ferir;
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Têm meiga expressão,
Mais doce que a brisa, — mais doce que o nauta
De noite cantando, — mais doce que a frauta
Quebrando a solidão,
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
São meigos infantes, gentis, engraçados
Brincando a sorrir.
São meigos infantes, brincando, saltando
Em jogo infantil,
Inquietos, travessos; — causando tormento,
Com beijos nos pagam a dor de um momento,
Com modo gentil.
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Às vezes luzindo, serenos, tranquilos,
Às vezes vulcão!
Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco,
Tão frouxo brilhar,
Que a mim me parece que o ar lhes falece,
E os olhos tão meigos, que o pranto humedece
Me fazem chorar.
Assim lindo infante, que dorme tranquilo,
Desperta a chorar;
E mudo e sisudo, cismando mil coisas,
Não pensa — a pensar.
Nas almas tão puras da virgem, do infante,
Às vezes do céu
Cai doce harmonia duma Harpa celeste,
Um vago desejo; e a mente se veste
De pranto co’um véu.
Quer sejam saudades, quer sejam desejos
Da pátria melhor;
Eu amo seus olhos que choram em causa
Um pranto sem dor.
Eu amo seus olhos tão negros, tão puros,
De vivo fulgor;
Seus olhos que exprimem tão doce harmonia,
Que falam de amores com tanta poesia,
Com tanto pudor.
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Eu amo esses olhos que falam de amores
Com tanta paixão.
Sofrimento
Meu Deus, Senhor meu Deus, o que há no mundo
Que não seja sofrer?
O homem nasce, e vive um só instante,
E sofre até morrer!
A flor ao menos, nesse breve espaço
Do seu doce viver,
Encanta os ares com celeste aroma,
Querida até morrer.
É breve o romper d’alva, mas ao menos
Traz consigo prazer;
E o homem nasce e vive um só instante:
E sofre até morrer!
Meu peito de gemer já está cansado,
Meus olhos de chorar;
E eu sofro ainda, e já não posso alivio
Sequer no pranto achar!
Já farto de viver, em meia vida,
Quebrado pela dor,
Meus anos hei passado, uns após outros,
Sem paz e sem amor.
O amor que eu tanto amava do imo peito,
Que nunca pude achar,
Que embalde procurei, na flor, na planta,
No prado, e terra, e mar!
E agora o que sou eu? – Pálido espectro,
Que da campa fugiu;
Flor ceifada em botão; imagem triste
De um ente que existiu…
Não escutes, meu Deus, esta blasfêmia;
Perdão, Senhor, perdão!
Minha alma sinto ainda, – sinto, escuto
Bater-me o coração.
Quando roja meu corpo sobre a terra,
Quando me aflige a dor,
Minha alma aos céus se eleva, como o incenso,
Como o aroma da flor.
E eu bendigo o teu nome eterno e santo,
Bendigo a minha dor,
Que vai além da terra aos céus infindos
Prender-me ao criador.
Bendigo o nome teu, que uma outra vida
Me fez descortinar,
Uma outra vida, onde não há só trevas,
E nem há só penar.
Solidão
Se queres saber o meio
Por que as vezes me arrebata
Nas asas do pensamento
A poesia tão grata;
Por que vejo nos meus sonhos
Tantos anjinhos dos seus:
Vem comigo, ó doce amada,
Que eu te direi os caminhos,
Donde se enxergam anjinhos,
Donde se trata com Deus.
Fujamos longe das vilas,
Das cidades populosas,
Do vegetar entre as vagas
Destas cortes enganosas;
Fujamos longe, bem longe,
Deste viver cortesão!
Fujamos desta impureza,
Só vês cordura por fora;
Mas nunca o vício que mora
Nas dobras do coração!
Fujamos! Que nos importa
Rodar do carro que passa,
Esta orgulhos vã glória,
Que se resolve em fumaça?
Estas vozes, estes gritos,
Este viver a mentir?
Fujamos, que em tais lugares
Não há prazer inocente,
Só alegria que mente,
Só lábios que sabem rir!
Fujamos para o deserto;
Vivamos ali sozinhos,
Sozinhos, mas descuidados
D’estes cuidados mesquinhos;
Tu o azul do espaço olhado
E eu só a rever-me em ti!
Quando depois nos tornarmos
À terra serena e calma,
Aqui acharei tua alma,
E tu me acharás aqui.
Ou corramos o oceano
Que d’imenso a vista cansa;
Dormirei no teu regaço
Quando o tempo for bonança,
Quando o batel for jogando
Em leve ondular sem fim.
Mas nos roncos da procela,
Nossos olhos encontrados,
Nossos braços enlaçados,
Hei de cantar-te, inda assim!
Ou se mais te praz, zombemos
Das setas que arroja a sorte;
Vivamos nas minhas selvas,
Nas minhas selvas do norte,
Que gemem nênias sentidas
No seio da escuridão.
Não tem doçura o deserto,
Não têm harmonia os mares,
Como o rugir dos palmares
No correr da viração!
Tu verás como a luz brinca
Nas folhas de cor sombria;
Como o sol, pintor mimoso,
Seus acidentes varia;
Como é doce o romper d’alva,
Como é fagueiro o luar!
Como ali sente-se a vida
Melhor, mais viva, mais pura
Naquela eterna verdura,
Naquele eterno gozar!
Vem comigo, oh! Vem depressa,
Não se esgota a natureza;
Mas desbota-se a inocência,
Divina e santa pureza,
Que dá vida aos objetos.
Feituras da mão de Deus!
Vem comigo, ó doce amada,
Que são estes os caminhos,
Donde eu enxergo os anjinhos,
Que tu vês nos sonhos meus.
Soneto [Pensas tu, bela Anarda, que os poetas…]
Pensas tu, bela Anarda, que os poetas
Vivem d’ar, de perfumes, d’ambrosia,
Que vagando por mares d’harmonia
São melhores que as próprias borboletas?
Não creias que eles sejam tão patetas,
Isso é bom, muito bom mas em poesia,
São contos com que a velha o sono cria
No menino que engorda a comer petas!
Talvez mesmo que algum desses brejeiros
Te diga que assim é, que os dessa gente
Não são lá dos heróis mais verdadeiros.
Eu que sou pecador, — que indiferente
Não me julgo ao que toca aos meus parceiros,
Julgo um beijo sem fim cousa excelente.
Rio de Janeiro, 1848.
Sonho
Sonhava esta noite, Donzela formosa,
Já quando as estrelas tombavam no mar,
Que eu via a meu lado uma esbelta figura
Divina e mimosa…
Sonhar é ventura;
Deixai-me sonhar!
Divina e mimosa, co’um véu se cobria
D’estrêlas fulgentes de brilho sem par;
O rosto era vosso, era vossa a estatura,
E o anjo dizia…
Sonhar é ventura;
Deixai-me sonhar!
E o anjo dizia co’um jeito celeste:
“Afetos que em outro não pude encontrar
“Por fim me renderam, – paixão lisa e pura – ,
Que tanto sofreste…
Sonhar é ventura;
Deixai-me sonhar!
“Pois tanto sofreste, não devo impiedosa
“Fineza tão grande por fim mal pagar!”
Eis sinto um abraço estreitar-me a cintura,
E uns lábios de rosa…
Sonhar é ventura;
Deixai-me sonhar!
E uns lábios de rosa cobrirem-me a fronte
Com tépidos beijos de fervido amar!
Prazer tão subido após tanta amargura,
Não sei como o conte!…
Sonhar é ventura;
Deixai-me sonhar!
Não sei como o conte! – nos lábios de rosa
Vivi encantado sem ver, nem pensar,
Em quanto apertava a ligeira cintura,
Cintura mimosa…
Sonhar é ventura;
Deixai-me sonhar!
Cintura mimosa! – depois vos tecia
Grinalda que a fronte vos fosse adornar,
E um cinto de amores com broche esmaltado
De meiga poesia!…
Quem tão bem fadado Vivera a sonhar!
De meiga poesia, meu bem minha amada,
Já pago de quanto me fazeis penar,
Então vos tangia descantes na lira,
Na lira afinada!
O sonho é mentira;
Não quero sonhar!
Tabira (Poesia Americana)
I
É Tabira guerreiro valente,
Cumpre as partes de chefe e soldado;
É caudilho de tribo potente,
– Tobajaras – o povo senhor!
Ninguém mais observa o tratado
Ninguém menos de p’rigos se aterra,
Ninguém corre aos acenos da guerra
Mais depressa que o bom lidador!
II
Seu viver é batalha aturada,
Dos contrários a traça aventando;
É dispor a cilada arriscada,
Onde o imigo se venha meter!
Levam noites com ele sonhado
Potiguares, que o viram de perto;
Potiguares, que asselam por certo
Que Tabira só sabe vencer!
III
Mil enganos lhe tem já tecido,
Mil ciladas lhe tem preparado;
Mas Tabira, fatal, destemido,
Tem feitiço, ou encanto, ou condão!
Sempre o plano da guerra é frustrado,
Sempre o bravo fronteiro aparece,
Que os enganos cruéis lhes destece,
Face a face, arco e setas na mão.
IV
Já dos Lusos o trôço apoucado,
Paz firmando com ele traidora,
Dorme ileso na fé do tratado,
Que Tabira é valente e leal.
Sem Tabira do Lusos que fora?
Sem Tabira que os guarda e defende,
Que das pazes talvez se arrepende
Já feridas outrora em seu mal!
V
Chefe stulto dum povo de bravos,
Mas que os piagas vitórias te fadem,
Hão de os teus, miserandos escravos,
Tais triunfos um dia chorar!
Caraíbas tais feitos aplaudem,
Mas sorrindo vos forjam cadeias,
E pesadas algemas, e peias,
Que traidores vos hão-de lançar!
VI
Chefe sólido, insano, imprudente,
Sangue e vida dos teus malbaratas?!
Míngua as forças da tribo potente,
Vencedora da raça Tupi!
Hão de os teus, acossados nas matas,
Não podendo viver como escravos,
Dar o resto do sangue por ti!
VII
Vivem homens de pel’ cor da noite
Neste solo, que a vida embeleza;
Podem, servos, debaixo do açoite,
Nênias tristes da pátria cantar!
Mas o índio que a vida só preza
Por amor dos combates, e festas
Dos triunfos sangrentos, e sestas
Resguardadas do sol no palmar;
VIII
Ociosa. Indolente, vadio,
Ou ativo, incansável, fragueiro;
Já nas matas, no bosque erradio,
Já disposto a lutar, a vencer;
Ama as selvas, e o vento palreiro,
Ama a glória, ama a vida; mas antes
Que viver amargados instante,
Quer e pode e bem sabe morrer!
IX
Eia, avante! Ó caudilho valente!
Potiguares lá vem denodados;
Tão cerrado concurso de gente
Ninguém viu nestas partes assim!
Poucos são, mas briosos soldados;
Não são homens de aspecto jocundo!
Restos são, mas são rstos dum mundo;
Poucos são, mas soldados por fim!
X
Os seus velhos disseram consigo,
Discutindo os motivos da guerra:
“É Tabira – cruel, inimigo,
Já nem crê, renegado, em Tupã!”
Pés robustos lá batem na terra,
Pó ligeiro se expande nos ares:
Era noite! Milhar de milhares
São armados, mal rompe a manhã.
XI
Vem soberbos, – o sol luz apenas!
Confiados, galardos, lustrosos,
Vem bizarros nas armas, nas penas,
Atrevidos no acento e na voz!
Um dentre eles, dos mais orgulhosos,
Sobe à pressa nas aspas dum monte,
Dali brada, postado defronte
De Tabira – com jeito feroz:
XII
“Ó Tabira, Tabira! aqui somos
A provar nossas forças contigo;
Dizes tu que vencidos já fomos!
Di0lo tu, não no diz mais ninguém.
Ora eu só a vós todos vos digo:
Sois cobardes, irmão de Tabira!
Propagastes solene mentira,
Que vencer não sabemos tão bem.
XIII
“Para o vosso terreiro vos chamo,
Contra mim vinde todos, – sou forte:
Acorrei ao meu nobre reclamo!
Aqui sou, nem me parto daqui!
Vinde todos em densa coorte:
Travaremos combate sangrento,
Mas por fim do triunfo cruento
Direis vós, se fui eu quem menti.”
XIV
Disse o arauto: eis a turba ufanosa
Lhe responde, arco e setas brandindo,
Pés batidos, voz alta e ruidosa:
– Bem falado, ó guerreiro, mui bem!
Assim é; mas Tabira rugindo,
Ressentindo de ofensas tamanhas,
O rancor mal encobre das sanhas,
Que não leva no sangue de alguém.
XV
Raso outeiro ali perto se of’rece:
Vinga-o prestes, hardido, açodado!…
Como leiva de pálida messe,
Já madura, tremendo no pé;
Todo o campo descobre ocupado
Por guerreiros, – no extremo horizonte
Não distingue nas faldas do monte,
O que é gente, o que gente não é.
XVI
Não se abala o preclaro guerreiro,
Do que vê seu valor não fraqueia;
Diz consigo: “Um só golpe certeiro
Vai de todo esta raça apagar!
Juntos são, mas são meus!” – Já vozeia;
Logo os seus lhe respondem gritando,
Tais rugidos, tais roncos soltando
Que aos seus próprios deveram turbar!
XVII
Diz a fama que então de assustadas
Muitas aves que o espaço cruzavam,
De pavor subitâneo tomadas,
Descaíam pasmadas no chão:
Já com silvos e atitos voavam
Muitas outras, que o triste gemido
No conflito, abafado e sumido,
Talvez deram, – mas fraco, mas vão!
XVIII
Eis que os arcos de longe se encurvam,
Eis que as setas aladas já voam,
Eis que os ares se cobrem, se turvam,
De flechados, de surdos que são.
Novos gritos mais altos reboam,
Entre as hostes se apaga o terreno,
Já tornado apoucado e pequeno,
Já coberto de mortos o chão!
XIX
Peito a peito encontrados afoutos,
Braço a braço travados briosos,
Fervem todos inquietos, revoltos,
Qu’indecisa a vitória inda está.
Todos movem tacapes pesados;
Qual resvala, qual todo se enterra
No imigo que morde na terra,
Que sepulcro talvez lhe será.
XX
“Mas Tabira! Tabira! Que é dele?
“Onde agora se esconde o pujante?”
– Não no vedes?! – Tabira é aquele
-Que sangrento, impiedoso lá vai!
-Vê-lo-eis andar sempre adiante,
-Larga esteira de mortos deixando
– Trás de si, como o raio cortando
– Ramos, troncos do bosque, onde cai. –
XXI
“Foge! Foge! Leal Tobajara;
“Quantos arcos que em ti fazem mira?!”
– Muitos são; porem medos encara
– Face a face, quem é como eu sou! –
Muitas setas cravejam Tabira:
Belo quadro! – mas vê-lo era horrível!
Porco-espim que sangrado e terrível
Duras cerdas raivando espetou!
XXII
Tem um olho dum tiro flechado!
Quebra as setas que os passos lh’impedem
E do rosto, em seu sangue lavado,
Flecha e olho arrebata sem dó!
E aos imigos que o campo não cedem,
Olho e flecha mostrando extorquidos,
Diz, em voz que mais eram rugidos:
– Basta, vis, por vencer-vos um só!
XXIII
E com fúria tão grande arremete,
Com despego tão nobre da vida;
Tantos golpes, tão fundos repete,
Que senhores do campo já são!
Potiguares lá vão de fugida,
Inda à fera mais torva e bravia
Disputando guarida dum dia
No mais fundo do vasto sertão!
XXIV
Potiguares, que a aurora risonha
Viu nação numerosa e potente,
Não já povo na tarde medonha,
Mas só restos dum povo infeliz!
Insepultos na terra inclemente
Muitos dormem; mas há quem lh’inveja
Essa morte do bravo em peleja,
Uem a vida do escravo maldiz!
XV
“Este o conto que os Índios contavam,
“A desoras, na triste senzala;
“Outros homens ali descansavam,
“Negra pel1; mas escravos tão bem.
“Não choravam; somente na fala
“Era um quê da tristeza que mora
“Dentro d’alma do homem que chora
“O passado e o presente que tem!"
Te Deum
Nós, Senhor, nós te louvamos,
Nós, Senhor, te confessamos.
Senhor Deus Sabaot, três vezes santo,
Imenso é o poder, tua força imensa,
Teus prodígios sem conta: – e os céus e a terra
Teu ser e nome e glória preconizam.
E o arcanjo forte, e o serafim sem mancha,
E o coro dos profetas, e dos mártires
A turba eleita – a ti, Senhor, proclamam
Senhor Deus Sabaot, três vezes santo.
Na inocência do infante és tu quem falas;
A beleza, o pudor – és tu que as gravas
Nas faces da mulher, – és tu que ao velho
Prudência dás, – e o que verdade e força
Nos puros lábios, do que é justo, imprimes.
Es tu quem dás rumor à quieta noite,
És tu quem dás frescor à mansa brisa,
Quem dás fulgor ao raio, asas ao vento,
Quem na voz do trovão longe rouquejas.
És tu que do oceano à fúria insana
Pões limites e cobro, – és tu que a terra
No seu vôo equilibras, – quem dos astros
Governas a harmonia, como notas
Acordes, simultâneas, palpitando
Nas cordas d’Harpa do teu Rei Profeta,
Quando ele em teu louvor hinos soltava,
Qu’iam, cheios de amor, beijar teu sólio.
Santo! Santo! Santo! – teus prodígios
São grandes, como os astros, – são imensos,
Como areia delgada, em quadra estiva.
E o arcanjo forte, e o serafim sem mancha,
E o coro dos profetas, e dos mártires
A turba eleita – a ti, Senhor, proclamam,
Senhor Deus Sabaot, três vezes grande.
Tristeza
Que leda noite! – Este ar embalsamado,
Este silêncio harmônico da terra
Que sereno prazer n’alma cansada
Não espreme, não filtra, não difunde?
A brisa lá sussurra na folhagem
D’espessas matas, d’árvores robustas,
Que velam sempre e sós, que a Deus elevam
Misterioso coro, que do Bardo
A crença quase morta inda alimenta.
É esta a hora mágica de encantos,
Hora d’inspirações dos céus descidas,
Que em delírio de amor aos céus remontam.
Aqui da vida as lástimas infindas,
Do mirrado egoísmo a voz ruidosa
Não chegam; nem soluços, risos, festas,
– Hilaridade vã de turba incauta,
Néscia de ruim futuro; ou queixa amarga
De decrépito velho, enfermo, exangue,
Nem do mancebo os ais doidos, preso
Ao leito do sofrer na flor da vida.
Aqui reina o silêncio, o religioso,
Morno sossego, que povoa as ruínas,
E o mausoléu soberbo, carcomido,
E o templo majestoso, em cuja nave
Suspira ainda a nota maviosa,
O derradeiro arfar d’órgão solene.
Em puro céu a lua resplandece,
Melancólica e pura, simelhando
Gentil viúva que pranteia o extinto,
O belo esposo amado, e vem de noite,
Vivendo pelo amor, mau grado a morte,
Ferventes orações chorar sobre ele.
Eu amo o céu assim, sem uma estrela,
Azul sem mancha, – a lua equilibrada
Num céu de nuvens, e o frescor da tarde,
E o silêncio da noite adormecida,
Que imagens vagas de prazer desenha.
Amo tudo o que dá no peito e n’alma
Tréguas ao recordar, tréguas ao pranto,
À v’emência da dor, à pertinácia
Tenaz e acerba de cruéis lembranças;
Amo estar só com Deus, porque nos homens
Achar não pude amor, nem pude ao menos
Sinal de compaixão achar entre eles.
Menti – um inda achei; mas este em ócio
Feliz descansa agora, enquanto aos ventos
E ao cru furor das verde-negras ondas
Da minha vida a barca aventureira
Insano confiei; em céu diverso
Luzem com luz diversa estrelas d’ambos.
Ai! triste, que houve tempo em que eu julgava
As duas uma só, – c’o mesmo brilho
Uma e outra nos céus meigas brilhavam!
Hoje cintila a dele, enquanto a minha
Entre nuvens, sem luz, se perde agora.
Meu Deus, foi bom assim! No imenso pego
Mais uma gota d’amargor que importa?
Que importa o fel na taça do absinto,
Ou uma dor de mais onde outras reinam?
Visões
I – Prodígio
Naquele instante em que vacila a mente
Do sono ao despertar, quando pejada
Vem doutros mundos de visões etéreas;
Quando sobre a manhã surge brilhante
A luz da madrugada, – eu vi!… nem sonhos
Era a minha visão, real não era;
Mas tinha d’ambos o talvez. – Quem sabe?
Foi capricho falaz da fantasia,
Ou foi certo aventar d’eras venturas?
A ira do Senhor baixou tremenda
Sobre uma vasta capital! – em pedra
Tornou-se a gente impura. Muitos homens
Às portas férreas, largas, vi sentados.
Melhor do que um pintor ou estatuário
A morte, que de súbito os colhera
No ardor, no afã da vida, conservou-lhes
A ação – partida em meio, com tal força,
Que a mente seu malgrado a completava.
Um tinha os lábios entreabertos; outro
Parecia sorrir; mais longe aquele
Derramava um segredo, baixo, a medo,
Nos ouvidos do amigo; austero o guarda
Com rosto carregado e barba hirsuta,
Nas mãos calosas sopesava a lança.
Dos mercadores na comprida rua
Passavam muitos compradores; – este
Contava montes d’oiro; – à luz aquele
Expunha a seda do Indostão, de Tiro
A púrpura brilhante, a damasquina
Custosa tela entretecida d’oiro.
Cortês sorrindo, o mercador gabava
As cores vivas, o tecido, o corpo
Do estofo que vendia. Nos serralhos
Era o Eunuco imperfeito; das Mesquitas
Bradava à prece o Muezim…
– Num largo,
Fofo e vasto divã sentado, um velho
Os versos lia do Alcorão; – só ele
Dentre tanto punir ficara ileso.
II – A Cruz
Era um templo d’arábica estrutura,
Majestoso, elegante; – além das nuvens
Se entranhava nos céus subtil a agulha;
Sobre o zimbório retumbante e vasto
Ondas e ondas de vapor cresciam.
Dentro corriam três compridas naves
Sobre dois renques de colunas, onde
Baixos-relevos da sagrada história
Da base ao capitel se emaranhavam.
Ardia a luz na alâmpada sagrada;
No sagrado instrumento o som dormia.
Junto à cruz – da fachada egrégia pompa –
Muitos homens eu vi de torvo aspecto;
Muitos outros, servis, com mão armada
Profundos golpes entalhavam nela.
Um daqueles no entanto assim falava:
"Quando esta humilde cruz rojar por terra,
"Levando a crença de Jesus consigo,
"Nós outros, da verdade Sacerdotes,
"Nós Doutores do mundo, nós Luzeiros
"Que desvendamos a impostura, o erro,
"A mentira sagaz, a crença louca,
"Entrada fácil da razão no templo
"Teremos todos, e de então no trono,
"Do néscio vulgo imparciais sob’ranos,
"Santos juízes da verdade santa,
"Pregaremos o justo, a paz, concórdia
"E os seus deveres que dimanam fáceis
"Do amor do lucro e do interesse; todos
"- Vassalos da razão, nossos vassalos –
"Um éden terreal farão do mundo."
No entanto aos crebros golpes do machado
A cruz pendia oblíqua sobre a terra.
Criando novas forças com tal vista,
Os operários mais freqüentes golpes
Repetem, vibram, continuam; – soa
Por toda a parte o eco, – o som, mais longe,
Retumba, morre – e novamente ecoa.
Nisto a cruz – geme – estrala; um grito sobe
Uníssono e geral!. . .
Como sois grande,
Senhor, Senhor meu Deus? – Eu vi, morrendo,
Os obreiros cair; e a cruz erguer-se,
Como aos raios do sol a flor mimosa
Que a raiva do tufão vergara insana.
III – Passamento
Era um quarto espaçoso; – ali se viam
Rojar no pavimento, há pouco, as sedas,
Ricos tapetes multicor bordados,
E franjas complicadas dum céu d’oiro
Pendentes, – vastos rases narradores
De lenda pia ou de briosos feitos.
Mas de tanto luzir, de tanto ornato
Ora por mãos avaras depredado
O vasto d’área revelava aos olhos,
Tendo num canto escuro um leito apenas.
Do leito alguém rasgara o cortinado.
E da curva armação polida e bela
Aqui, ali, pendia a seda em fios,
Bem como tranças de mulher formosa
Por sobre o seio nu. – Ali no leito
Jazia um moribundo; em torno os olhos
Cheios de pasmo e de terror volvia,
Bebendo pelos sôfregos ouvidos
Mal sentido rumor doutro aposento.
Confusas vozes, altercar ruidoso,
E o tinir de metal ouvia apenas!
Então por vezes três no leito aflito
Erguer-se maquinou de raiva insano!
Por três vezes caiu, gemendo, sobre
O leito que da queda se sentia.
Da morte o cru torpor nos membros frios
Pouco e pouco s’espalha; mas teimoso
Da vida o amor debate-se nas ânsias
Desse passo fatal. . .
– Eis nisto à porta
Um Padre assoma, – dentre as mãos erguidas
Da hóstia santa resplendor luzia;
E palavras de paz, de amor, divinas,
Que nos lábios do justo Deus entorna,
Abundantes soltava. Longos anos
De piedoso sofrer o corpo enfermo
Alquebraram por fim: as cãs nevadas
Raras tremiam sobre a testa, como
Tremia na garganta a voz cansada.
Dizia o bom do velho: – "Irmão, nas ânsias,
"No extremo agonizar da morte amiga
"Ergue os olhos ao céu; – do céu te venha
"Esse divino amor, que só lá morri,
"Que filtra por nossa alma, que nos deixa
"Mais celeste prazer, mais doce arroubo,
"Do que a terra sói dar…
"Infames, tredos,
"Bufarinheiros de palavras, corvos
"De negro, feio agoiro, que esvoaçam
"Com grito grasnador por sobre o campo,
"Onde a peleja de reinar começa;
"Dizes-me tu – a mim! a mim que ao foro
"Caminho inda hoje entre alas de clientes,
"Que só me visto de veludo e d’oiro,
"Enquanto vives de burel coberto,
"Co’os lábios sobre o pó mordendo a terra!
"Dizes-me tu a mim!…"
Ergueu-se, o corpo
Caiu de fraco sobre o leito; o velho
No entanto humilde orava, que alma santa
Do mal cabido insulto não se ofende.
Jeová, que entre miríades
Vives de estrelas formosas,
Que das flores melindrosas
Da terra – os anjos formaste;
Jeová, que pela água
Lustrar quiseste o Messias,
Que ao beato, ao santo Elias
Nas chamas purificaste;
Jeová, que a mente apuras
No fogo do sofrimento,
Que divino alto portento
Deste fazer à Moisés,
Quando a negra rocha dura
Tocando co’a tênue vara,
Rebentou a linfa clara.
Lambendo-lhe mansa os pés:
Jeová, que eterno existes,
Cujo ser em si se encerra,
Que formaste o céu e a terra,
Que te chamas – o que é,
– Faz, Senhor d’altos prodígios,
Com que a mente empedernida
Não se aparte desta vida
Sem sentir a santa fé.
E tu, Cristo, que sofreste
Martírios por nosso amor,
Tu que foste o Salvador,
Salva-o, Senhor, por quem és.
Dá que em palavras piedosas
Se derrame contristado,
Como o rochedo tocado
Pela vara de Moisés.
E o confuso rumor do outro aposento
Crescia mais e mais. – Do moribundo
Os cúpidos herdeiros dividiam
Por si a vasta herança; os torvos olhos
Iam de rosto a rosto, fuzilando
Ameaças de morte.
No entanto o velho exânime e sem forças
Curtia amargos transes, que avarento,
E tendo a vida inútil presa a terra
Com toda a força d’alma, – agora em ânsias
Sentia o hálito vital fugir-lhe,
E a terra abandoná-lo.
Estua-lhe a dor no peito aflito!. . .
Só não chorava, que do pranto a fonte
Jazia extinta; mas pensava triste:
– Não tinha alguém que lhe cerrasse os olhos
Nem quem chorando lhe abrandasse o amargo
Do extremo agonizar
E a mente, já medrosa, em feio quadro
lhe pintava os seus feitos: – A vingança,
Que tão grande prazer lhe tinha sido,
Ora em martírios se tornava; a chusma
Dos homicídios seus crescia torva,
E no leito o cercava.
Crença infantil! dizia; loucos, cegos
Prejuízos do vulgo; – assim dizendo
Os vãos fantasmas repelir buscava.
Mas a crença infantil, os prejuízos
Do néscio vulgo, ríspidos tornavam,
Como inseto importuno.
Debalde por não ver cerrava os olhos.
Sobre os olhos debalde as mãos cruzava,
Que as sombras nos ouvidos lhe falavam,
E mais distintas se pintavam n’alma
– Tão bem molesta, qual se pinta o corpo
Do espelho no polido.
E do seu passamento o caso infando
Narrava uma após outra, sobre o peito
Mostrando o golpe fúnebre e cruento;
Sorvendo o fel da taça amarga o enfermo
Parecia sorrir!… era qual louco
Que sofre e um riso finge.
E das visões indo a fugir se arroja
De sobre o leito delirante; as sombras
Voam sobre ele, e em círculo se ordenam.
O moribundo a esta, a aquela, a todas
Volve o pávido rosto, no mover-se
Progressivo, incessante.
E preso ao duro embate da vertigem,
As mestas sombras ao redor com ele
Fugir sentia; o pavimento, a casa
Rápido rodava; a terra e tudo,
Como aos soluços dum vulcão tremendo,
As forças lhe tolhiam.
E o orgulhoso que feliz vivera,
Movendo a seu bom grado mil escravos,
Querendo a terra dominar co’um gesto,
Ora mesquinho, solitário e louco,
Face a face, lutando com seus crimes,
Morria impenitente.
IV
Era o vulto de um homem morto que afastando o sudário se ia
erguer do túmulo para revelar alguns dos temerosos mistérios,
que encerra a aparente quietação dos sepulcros.
— O Presbítero
O negrume da noite avulta; e cresce
Mais feia a escuridão
À luz da sacra pira que derrama
Frouxo e tíbio clarão.
Calou-se o canto, a prece, – é mudo o templo;
Apenas fraco soa
Da torre o bronze, que a noturna brisa
De rumores povoa.
Mas eis que de um sepulcro a pedra fria
S’ergue e sobre outras cai.
Não se escuta rumor! – da campa livre
Medroso espectro sai.
O rosto ossificado em tomo volve,
Volve a suja caveira;
Do liso crânio os longos dedos varrem
A fúnebre poeira.
Mas inda inteiro o coração se via
Do peito nas cavernas,
Inda sangrento lágrimas chorava
Do negro sangue eternas.
E caminhando, qual se move a sombra,
Ao órgão se assentou!
Já não dormem os sons, não dormem ecos…
– O triste assim cantou:
"Onde estás, meu amor, meus encantos,
Por quem só me pesava morrer,
Doce encanto que a vida me prendes,
Que inda em morto me fazes sofrer?
"Doce amor, minha vida no mundo,
Desse mundo em que parte serás;
Em que cismas, que pensas, que fazes,
Onde estás, meu amor, onde estás?
Ah! debalde na campa gelada,
Fria morte me pôde deitar!
Foi debalde, – que eu sinto, que eu ardo;
Foi debalde, – que eu amo a penar.
"Ah! se eu triste no mundo pudesse
Como outrora viver, respirar. . .
Não soubera dizer-te os ardores
Que o sepulcro não pode apagar.
"Onde estás? – Já da morte o bafejo
Por teu rosto divino roçou;
Já na campa descansas finada,
Que o teu corpo sem vida tragou?
"Mas a morte não pode impiedosa
Crua foice vibrar contra til
Ah! tu vives, que eu sinto, que eu sofro
Crus ardores quais sempre sofri.
"E eu não posso o teu nome à noitinha
Entre as folhas saudoso cantar,
Nem seguir-te nas asas da brisa,
Nem teu sono de sonhos doirar.
"Nem lembrar-te os queridos instantes
Que a teu lado arroubado passei,
Sem cuidados de incerto futuro,
Só ruidoso da vida que amei.
"Não te lembras da noite homicida
Em que um ferro meu peito varou,
Quando a fácil conversa de amores
Teu marido cioso quebrou?!
"Desde então hei penado sozinho,
Verte sangue meu peito – de então;
Pode a morte acabar-me a existência,
Mas delir-me não pode a paixão!
"Nosso adúltero afeto no mundo
Não se acaba; – assim quis o Senhor!
Não se acaba… – qu’importa? – hei gozado
Teus encantos gentis, teu amor.
"Por te amar outras fráguas sofrera,
Outros transes e dor e penar;
Oh! poder que eu podesse outra vida
E outro inferno sofrer por te amar!"
Mas da aurora já raiava
Macio e brando clarão;
Macia e branda a canção
Do negro espectro soava.
E medroso se colava
Ao órgão seu negro véu,
Que imiga não se ajuntava
Ao seu vulto a luz do céu.
Pouco a pouco se perdia
O negro espectro; a canção
Pouco a pouco enfraquecia:
Do dia ao tênue clarão,
Era o cantar um soído
Fraco, incerto e duvidoso;
Era o vulto pavoroso
Duma sombra vão tremido.
V – A Morte
Dans sa doiileur elle se trouvail
malheurese d’être immortelle.
— Fénélon
Da aurora vinha nascendo
O grato e belo clarão;
Eu sonhava! já mais brandos
Eram meus sonhos então.
Condensou-se o ar num ponto,
Cresceu o subtil vapor;
Vi formada uma beleza,
Cheia de encantos, de amor.
Mas na candura do rosto
Não se pintava o carmim;
Tinha um quê de cera junto ‘
À nitidez do marfim.
– "Quem és tu, visão celeste, ‘
Belo Arcanjo do Senhor?"
Respondeu-me: – "Sou a Morte,
Cru fantasma de terror?"
– Ah lhe tornei: És a morte,
Tão formosa e tão cruel!
– Correndo o mundo sozinha
No meu pálido corcel, –
Assim dizia – "Tu julgas
Que não tenho coração,
Que executo os meus deveres
Sem pesar, sem aflição?
– Que inda em flor da vida arranco
Ao jovem, sem compaixão,
A donzela pudibunda
Ou ao longevo ancião?
– Oh! não, que eu sofro martírios
Do que faço ao mais sofrer,
Sofro dor de que outros morrem,
De que eu não posso morrer;
– Mas em parte a dor me cura
Um pensamento, que é meu, –
Lembro aos humanos que a terra
É só passagem p’ra o céu.
– Faço ao triste erguer os olhos
Para a celeste mansão;
Em lábios que nunca oraram
Derramo pia oração.
– É meu poder quem apura
Os vícios que a mente encerra,
Ao fogo da minha dor;
Sou quem prendo aos céus a terra,
Sou quem ligo a criatura
Ao ser do seu Criador.
– Mas qu’importa? Sem descanso
É-me forçoso marchar,
Abater ímpias frontes,
Régias frontes decepar.
– Passar ao través dos homens,
Como um vento abrasador;
Como entre o feno maduro
A foice do segador.
– E prostrar uma após outra
Geração e geração,
Como peste que só reina
Em meio da solidão." –
Desponta o sol radioso
Entre nuvens de carmim:
Cessa o canto pesaroso,
Como corda áurea de Lira,
Que se parte, que suspira
Dando um gemido sem fim.
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