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França Junior
Ato Único
O teatro representa uma sala elegantemente mobiliada. Portas ao fundo, à
direita e à esquerda. No centro uma mesa coberta por um pano em cima
da qual há um violão.
Cena I
Vicente e Eduardo Coutinho
Eduardo – Arranjaste tudo quanto te encomendei?
Vicente (Limpando os trastes.) – Tudo, Nhonhô. Vosmecê já
sabe para quanto presta este mulatinho. Cá ao degas não é
preciso repetir as coisas. Se vosmecê bem o disse, melhor o fiz. Olhe:
uma empada, dois pratos de croquetes, uma galinha de molho pardo…
Eduardo – Podes limpar a mão à parede com o tal molho pardo.
Alugo este aposento para receber uma mulher que é a encarnação
da elegância e do chique. Encomendo-te uma ceia esquisita e procuras
matar a poesia de uma segunda entrevista amorosa, apresentado-nos à
mesa um prato, que traz em seu seio os germens de uma indigestão. Tens
às vezes certas lembranças…Decididamente acabo por te dar
baixa deste serviço. Aposto que esqueceste o vaso de flores.
Vicente – O vaso de flores?
Eduardo – Está visto, és um estonteado.
Vicente – dou as mãos à palmatória, Nhonhô; mas
em compensação preparei uma surpresa, que há de pôr
a mocinha (imitando.) assim…de beiço caído.
Eduardo – Faço idéia.
Vicente – Nhonhô não sabe o que é. São dois guardanapos,
dobrados em forma de coração: num enterrei uma faca, no outro
espetei um garfo, e arranjei uns floreados da silva…está mesmo coisa
papafina.
São dois lindos corações,
Que à mocinha hão de encantar.
Cá o degas, meu Nhonhô,
Sabe as coisas preparar.
Quando a moça vir aquilo
Sentirá tal emoção,
Que, ao pegar no guardanapo,
Dar-lhe-á o coração.
Eduardo – Capadócio!
Vicente – Aquilo dispensa uma declaração; poupa palavras e ale
por trinta vasos de flores.
Eduardo – Está bom; não há tempo a perder. (Vendo as
horas.) É quase meia-noite e ela está à minha espera.
O segredo é a alma do negócio: se deres com a língua
nos dentes…Até já.(Sai.).
Cena II
Vicente, só.
Vicente – Pois não! Era preciso que eu fosse um pedaço de asno
para andar por aí contando o que ouço e o que vejo. Cá
o degas não mete mãos em cumbuca. Tenho casa e comida grátis
por Deo, passo aqui os dias em santo ócio a cantar modinhas, com as
algibeiras sempre recheadas, e pouco se me dá de saber que interesse
tem este sujeito em ocultar-me a sua morada e muito menos de indagar o nome
da tal sirigaita, que entra por aqui, toda embuçada e estremecendo
ao mais pequeno ruído. O que lucraria eu, se começasse a papaguear?
Era posto no olho da rua, perdia a manjuba e recrutamento me fecit. O filho
de Inocência Floresbela do Amparo não vai para o Paraguai não,
mas é o mesmo. Tenho muito amor a este pêlo e não caio
de cavalo magro.
Por amor de contar novidades
Não arrisco este pêlo tão caro,
Em cumbuca não mete os gadanhos
O finório Vicente do Amparo.
(Ouve-se fora grande algazarra e gritos de pega ladrão!)
O que é isto?
Cena III
O mesmo e Miguel Carneiro (Que entra correndo, em mangas de camisa, muito cansado;
atira Vicente ao chão.)
Vicente – Ó senhor!
Miguel – Cala-te, pelo amor de Deus.
Vicente – Quem é o senhor?
Miguel – Ponho às tuas ordens a minha bolsa, dou-te tudo o que me pedires
sob condição de e esconderes aqui até amanhã. Eu
ficarei em qualquer parte; na cozinha, dentro de um armário, na clarabóia,
debaixo de um cesto; mas salva-me por tudo quanto tens de mais caro nesta vida.
Vicente – Mas como é que o senhor entra, sem mais nem menos, a esta hora,
pelo asilo do cidadão, e nestes trajes?!
Miguel – Se tu soubesses o que me aconteceu, desgraçado, terias dó
de mim.
Vicente – Percebo. (Gira com os dedos da mão direita ao redor do dedo
grande.).
Miguel – Não me julgues pelo que acabas de ouvir. “Pega ladrão”
é uma fórmula de que o povo se serve para alcançar o infeliz
que a polícia persegue. Eu sou uma vítima do amor. Imagina uma
Cena de Julieta e Romeu, sem balcão nem escada de corda. Eu e ela! Por
cima de nossas cabeças o céu crivado de estrelas e por teatro
da nossa felicidade um modesto quintal. À hora indicada abro a porta
com esta chave (Mostrando-a), coso-me ao muro como uma lagartixa e espero, mal
podendo conter a respiração, que aparecesse o anjo dos meus sonhos.
Um cachorrinho felpudo, ou antes a imagem do diabo, aparece na porta da cozinha,
e seus latidos foram bastantes para acordar um galo e com ele toda a pacífica
população, que dormia empoleirada no galinheiro. O ruído
que fizeram os gansos do Capitólio na cidadela de Roma, pondo em alarma
as forças de Manlio, não pode ser equiparado à algazarra
infernal que houve naquela casa. O grito de “pega ladrão”
veio coroar a obra. Esgueiro-me pela rua, e começo a correr como um veado,
perseguido por dois urbanos, em cujas mãos deixei o paletó e por
uma súcia de vagabundos, que afinavam o maldito “pega” em
todos os tons. Foi esta a única porta aberta que encontrei. Salva-me,
salva-me por tudo quanto tens de mais caro sobre a terra.
Vicente – Mas o senhor não pode ficar aqui: meu amo não tarda,
e ele recomendou-me…Oh diabo, lá ia dando com a língua nos dentes.
Miguel – Desalmado, queres me expor ao ridículo da sociedade? Não
sabes que tenho um emprego público, que sou o juiz de paz mais votado
da freguesia, que tenho mulher e filhos e que, se caio nas garras da polícia,
depois de amanhã aparecerá o meu nome nos jornais como o de um
larápio?
Vicente – Mas, senhor…
Miguel – Queres me reduzir à triste posição de filho do
Celeste Império, atacando a horas mortas os galinheiros estranhos?
Vicente – E por que foi se meter o senhor em camisas de onze varas? É
Boa!
Miguel – Tu não sabes o que é o amor. Sentir no peito as pulsações
de um coração, que se expande em suaves harmonias, ouvir de uns
lábios purpurinos palavras de consolo, como notas místicas de
um coro de anjos, apertar a mão cetinosa,q eu se nos confia a medo, sobraçar
a cintura que foge…Olha….Como te chamas?
Vicente – Vicente Maria do Amparo, um seu criado.
Miguel – Nunca amaste, Vicente?
Vicente – Que o diga o meu violão. Nós cá não amamos
como os senhores, que dizem às moças umas bobages e umas tolices
que ninguém entende. Passa-se, pisca-se o olho…Assim, olhe. (Arremedando.)
De noite reúne-se a troça debaixo da janela da crioula, e o violão
começa a gemer.
Miguel – Mas que diabo lucras tu com isto?
Vicente – Não exponho o pêlo a uma sova de pau como lhe ia acontecendo,
e a gente se adverte.
Miguel – És engraçado.
Vicente – Deita-se o cigarro atrás da orelha, afina-se o violão,
e a gente canta assim. (Segurando o violão e cantando.):
Trovador, o que tens, o que sofres,
Por que choras com tanta aflição…
Olhe só este transporte (Ferindo o violão.); isto chama-se tom
de pestana.
O teu pranto assaz me compunge,
Trovador, ah! Não chores mais, não.
O essencial é que se floreie bem nos bordões e que este pedaço
de pau (Mostrando o violão.) não trasteje na prima. Eu cá
sou músico de orelha, mas…
Miguel – E é por isso que flagelas as orelhas de tuas amadas.
Vicente – Oh! mas conheço isto a palmos. (Indicando o violão.)
Lá vai o resto.
Se acaso a mulher que tu amas
Te tratou com acerbo rigor,
Trovador, ah! Por isto não chores…
Miguel – Está bom, basta.
Vicente – Cantei esta modinha pela primeira vez debaixo da janela do meu primeiro
amor. Era uma crioula linda como os amores; chamava-se…chamava-se…(Procurando
recordar-se.) Como se chamava ela, Vicente?
Miguel – Pois bem; tu já amaste muito, e podes avaliar os apuros em que
me vejo.
Vicente – Chamava-se…Que maldita memória!
Miguel – Eu tenho os pés em cima de uma cratera.
Vicente – Repita, repita esta palavra estrangeira, que o senhor acaba de dizer.
Miguel – Cratera!
Vicente (Batendo na testa.) – é isso mesmo! Maria Joaquina chamava-se
a crioula. (Ouve-se o rodar de um carro.) É meu amo, saia, senhor; não
me comprometa.
Miguel – Nestes trajes? Mas por onde?
Vicente – saia por aqui. (Indicando a porta da esquerda.) Por aí não.
Miguel – Que noite, meu Deus!
Vicente – Esconda-se, esconda-se, senhor; não tempo a perder. Eles sobem
já a escada. (Miguel vai sair por uma das portas da direita , que deve
estar fechada, esbarra-se nela e esconde-se embaixo da mesa.)
Cena IV
Os mesmos, Eduardo Coutinho e Adelaide Carneiro
Eduardo – Apóie-se no meu braço. Não tenha o mais pequeno
receio. Estamos sós. (Para Vicente.) Passa para dentro. (Vicente sai.)
Ninguém testemunhará as nossas confidências e aqui, entre
as quatro paredes deste aposento, longe dos falsos ouropéis do mundo
que se agita lá fora, escreveremos a página mais feliz da nossa
vida.
Miguel (À parte.) – Uma entrevista!
Adelaide – Sinto faltarem-se-me as forças, mas como são gratas
estas emoções!
Miguel (À parte.) – Eu conheço esta voz.
Adelaide – Afigura-se-me Parisina, indo ao encontro do desditoso amante nessa
hora em que o rouxinol, oculto na espessa ramagem, modula as mais sentidas
endeixas. Lembra-se desta situação? É logo no primeiro
canto do poema. Oh! mas este amor criminoso não há de levar-me
ao sepulcro. Eu terei a força necessária para arrancá-lo
do peito.
Miguel (À parte.) – Esta voz é de minha mulher!
Eduardo – Oh! não fales na fria lousa que deve encerrar os restos preciosos
de tua beleza, diante da vida que nos sorri.
Ah, não fales em sepulcro
Quando a esperança nos sorri.
Miguel (Á parte.) – ! Patife de uma figa,
Quanta gente tenho em ti.
Adelaide – O amor é sentimento
Que a mulher prende e seduz,
Somos qual a mariposa
Que queima as asas na luz.
Eduardo – Se o amor é sentimento
Que a mulher prende e seduz,
Voemos juntos, voemos
Em torno da mesma luz.
Miguel – Ó que lábia de patife,
Que finório sedutor!
Muito caro hás se Pagar-me
As venturas deste amor.
Adelaide – É justamente como disse Byron: – Na vida do homem o amor
é um episódio; para a mulher é a existência inteira.
Miguel (À parte.) – Cita Byron! É minha mulher. Estava escrito
que aquele livro perigoso me havia de ser fatal.
Eduardo – E no entretanto, por que te mostras tão esquiva para comigo,
fazendo surgir sempre entre nossos corações, que palpitam cheios
de vida e de esperança, a imagem severa de teu marido?
Miguel (À parte.) – Que patife!
Adelaide – É porque amo muito meu marido. Quando vi pela primeira vez
aquela fronte pálida, aqueles olhos lânguidos e rasgados, exclamei:
– Ali está uma alma de poeta! E em minha mente, incendiada pela flama
da mais radiante poesia, desenhou-se em toda a majestade o tipo de D. Juan,
acordando à luz amortecida das estrelas do céu da Grécia,
no regaço perfumado da divina Haidéia.
Eduardo – Eu serei o teu D. Juan; deixa-me repousar também a fronte
em teu regaço.
Miguel (À parte.) – Que noite, meu Deus!
Adelaide – Meu marido também me dizia o mesmo nos dias felizes da lua
de mel. Um mês depois de ter-me levado ao altar, ria-se quando eu lhe
falava da nossa felicidade, virava-me as costas, quando lhe exprobava o seu
comportamento, e o ósculo marital que me dava ao entrar em casa, era
dizer-me que o feijão estava muito caro.
Miguel (À parte.) – E é por causa da carestia do feijão
que esta mulher, mesmo nas minhas bochechas…Vou fazer uma estralada.
Eduardo – Deixa-me abraçar esta cintura delicada. (Faz menção
de abraçá-la.)
Adelaide – Não me toque, senhor. Eu já lhe disse que amo muito
meu marido, apesar da indiferença com que sou tratada. Há neste
peito, porém, muita sede de poesia e o senhor não é para
mim neste momento mais que o ideal de um belo romance, que acabo de ler.
Miguel (Á parte.) – É o Rafael de Lamartine. E fui eu quem o
comprou! Eu acabo por atacar fogo em todas as livrarias.
Eduardo – Mas isto não pode ser. É a segunda entrevista que
a senhora me concede e eu tenho direitos.
Miguel (À parte.) – Direitos tenho eu de te meter o cacete.
Adelaide – Direitos tão-somente à minha estima e amizade. Se
aqui vim, é porque amo o imprevisto e o mistério e estas Cenas
romanescas falam-me às fibras mais recônditas da alma. Eu queria
sentir as emoções de uma entrevista e nada mais.
Miguel (À parte.) – Que ouço!
Eduardo – Então a senhora ama deveras seu marido?
Adelaide – Amo-o com estremecimento.
Eduardo – Pois bem; eu o amo igualmente com idolatria. Amêmo-lo nós
dois.
Eu o amo, tu o amas,
Ele ama, nós amamos,
E amando gozaremos
A ventura que sonhamos.
Conjugando o doce verbo
Sentimos igual paixão
Nesse amor de parceria
Cada qual teu seu quinhão.
Miguel (À parte.) – È demais. Vou arrebentar a cara deste patife.
Cena V
Eduardo, Miguel, Adelaide e Vicente
Vicente – A ceia está na mesa.
Eduardo – Passemos à sala imediata. Lá ergueremos um brinde a
esse amor casto e puro, que eu e a senhora consagramos a seu marido.
Miguel (À parte.) – E eu hei de dar o urras! Tratante. (Saem todos menos
Miguel.)
Cena VI
Miguel, só.
Miguel (Saindo debaixo da mesa.) – E esta! Escapo de Cila e venho cair em Caríbides.
Mas agora, não há mais considerações que me obriguem
a guardar conveniências. Este tratante há se Pagar-me. Minha mulher
julga-me no clube, jogando o voltarete, e enquanto eu namoro a mulher do próximo,
ela procura idéias fora de casa. É bem feito, seu Miguel Carneiro.
Mas, em suma, quem é este homem que eu não conheço? Eu
tenho o direito de saber o seu nome; porque no fim de contas minha mulher tem
por ele uma paixão…platônica. Oh! este platonismo alivia-me de
um peso…É demais! Quero saber tudo. (Avança para a porta e é
detido por Vicente.)
Cena VII
O mesmo e Vicente
Vicente – O senhor ainda está aqui!
Miguel – Quem é esse homem que daqui saiu?
Vicente – Vá-se embora, senhor; não me faça perder a paciência.
Suma-se, suma-se.
Miguel – Eu quero saber o nome desse homem, e daqui não sairei, enquanto
não arrancar do seu poder aquela mulher.
Vicente – Mau, mau, o senhor está me fazendo perder as estribeiras. Não
me obrigue a lançar mão da grafia. (Faz partes de capoeira.)
Miguel – Estou disposto a arrostar um escândalo.
Vicente – Olhe que eu lhe mostro para quanto presta este mulatinho. Se duvida
muito, passo-lhe as bocas enquanto o diabo esfrega um olho. Vá-se embora,
moço, vá-se embora. Que moço de maçada!
Cena VIII
Os mesmos e Emília Coutinho
Emília (Entrando às pressas.) – Felizmente encontro-o são
e salvo!
Miguel – Senhora! O que veio aqui fazer?!
Vicente (À parte.) – Por esta casa anda hoje o diabo.
Emília – Que susto, meu Deus! Repare como estou tremendo. Quando o vi
perseguido pela polícia, como um ladrão, não pude conter-me:
saí também para a rua, afrontando as conseqüências
deste passo irrefletido e , depois de muito indagar, soube que tinha entrado
aqui. Estou comprometida até a raiz dos cabelos, apesar da inocência
dos nossos amores e agora não sei como sair deste apuro.
Miguel – Fuja quanto antes, minha senhora; a sua presença nesta casa
é a minha perdição.
Vicente (À parte.) – Isto acaba numa grande água suja. Eu vou
para dentro e cá não venho mais, haja o que houver. (Sai.)
Emília – Meu marido já está talvez em casa. Que fizeste,
Emília!
Miguel – Que noite, que noite, meu Deus!
Emília (Chorando) – O senhor foi o culpado.
Miguel – Não grite, senhora.
Emília (Chorando.) – Eu amava muito meu marido. Por que veio desinquietar-me?
Estou perdida por causa de um namoro de passatempo e amanhã serei apontada
por toda a cidade como uma réproba.
Miguel – Não grite, senhora, que eles estão ali.
Emília – Não poder aparecer mais diante de meus filhos. Que fizeste,
Emília?
Miguel – Mas com os diabos, quem lhe mandou vir aqui a estas horas? Queixe-se
de sua leviandade. Aí vêm eles: esconda-se. (Depois de correrem
atrapalhados pela Cena, escondem-se afinal os dois ao lado da mesa.)
Cena IX
Emília, Miguel, Eduardo e Vicente
Eduardo (A Vicente.) – Vai depressa buscar um carro.
Emília (À parte.) – É a voz de meu marido; segure-me que
estou desmaiando. (Cai nos braços de Miguel.)
Miguel (À parte.) – Seu marido!
Vicente – Ó Nhonhô, aquela mocinha parece-me meia gira. Eu creio
que ela sofre do fígado. (Apontando para a cabeça; saí.)
Eduardo – Decididamente não é uma mulher; é um romance
vivo. Sou para ela D. Juan, Gilbert, Dartagnan, tudo que tem saído da
cabeça dos poetas, menos o que sou. Já não posso aturá-la.
Miguel (À parte.) – Que noite, meu Deus!
Eduardo – Enquanto ela lê versos, reclinada nos coxins do divã,
vou respirar um pouco de ar à janela. (Sai.)
Cena X
Emília e Miguel
Miguel – Ó senhora, olhe que a ocasião não é própria
para faniquitos. Acabe com isto.
Emília – Ele já partiu?
Miguel – Ele quem?
Emília – Meu marido; eu ouvi a sua voz. Estou comprometida para sempre,
e no entretanto o senhor bem sabe que ainda não me esqueci dos meus deveres.
Miguel – Infelizmente sei: mas descanse que a senhora está salva e eu
também.
Emília – Salva?! O senhor não o conhece; é ciumento como
um Otelo e será capaz de estrangular-me aqui mesmo com este pano de mesa.
Miguel – Eu aposto a minha cabeça como ele não lhe dirá
a mais pequena palavra. Escute; eu vou ajoelhar-me a seus pés, segurar-lhe
na cetinosa mão. (Ajoelha-se e segura-lhe na mão. ) E a senhora
gritará, fingindo que forceja por sair de meus braços.
Emília – Deixe-me, senhor; deixe-me, ele pode chegar e a minha vida corre
perigo.
Miguel – bravo, bravo, muito bem; é isto mesmo o que eu quero.
Emília – Não abuse da minha situação e considere
que sou uma mãe de família.
Miguel – Eu te amo, te idolatro, és a estrela polar do meu firmamento.
Ande, grite mais.
Emília – Senhor.
Cena XI
Os mesmos e Adelaide
Adelaide (À parte.) – O que vejo? De joelhos aos pés de outra
mulher, e já em mangas de camisa! (Alto.) Senhor, o seu comportamento
é inqualificável! (Emília grita. Miguel levanta-se e volta-se.)
Meu marido! (Desmaia.)
Emília – Não me explicará o que significa tudo isto, senhor?
Miguel – Oculte-se aqui; não devemos perder um só minuto. Vai
saber em breve a decifração de tudo. (Leva-a para uma das portas
da direita e fecha a porta; para Adelaide.) Levante-se, minha senhora, os desmaios
estão já muito explorados pelos romances modernos.
Adelaide (Ajoelhando-se.) – Perdão, Miguel.
Miguel – Esta posição é ridícula demais para uma
heroína.
Adelaide (Erguendo-se com altivez.) – Tens razão; eu não sou tão
criminosa como te parece, e assiste-me, por conseguinte, o direito de perguntar-te
o que fazias nesta sala com aquela mulher.
Miguel – É o mesmo direito que me assiste. O que veio a senhora fazer
nesta casa?
Adelaide – Miguel, eu te juro pela minha vida que estou inocente.
Miguel – Quem é esse homem que aqui mora?
Cena XII
Eduardo, Miguel e Adelaide
Eduardo – Que faz o senhor aqui?
Miguel – Não tenho que dar-lhe satisfações.
Eduardo (Para Adelaide.) – Quem é este homem?
Adelaide (À parte.) – Estou perdida.
Miguel (Sentando-se no sofá.) – Minha senhora, tenha a bondade de dizer
aqui ao senhor quem eu sou. (Pausa.) Já que é tão curioso,
vou satisfazê-lo. Chamo-me Miguel Carneiro, e apesar de estar intimamente
convencido de que o senhor não passa de um ideal para esta mulher romanesca,
da qual sou marido, eu ainda assim o desafiaria para um duelo, como fazem os
homens de brio, se não aprouvesse à fatalidade trazer-me a esta
casa, como que expressamente para dizer-lhe – que nada devemos um ao outro.
Eduardo – Senhor Miguel Carneiro, creia que…
Miguel – Sei tudo. O senhor amou minha mulher.
Eduardo – Mas…
Miguel – Puro platonismo; estou disto intimamente convencido. Ora, na minha
qualidade de marido, devo ser grato aos obséquios que fazem à
minha mulher.
Adelaide (À parte.) – O que quererá ele fazer, meu Deus!
Miguel – Eu gosto se Pagar os benefícios à boca do cofre.
Adelaide (Ajoelhando-se entre os dois.) – Se sinistras são as tuas intenções,
oh! Miguel, antes de consumá-las, terás de passar por cima do
meu cadáver.
Miguel – Tranqüilize-se, senhora; eu não lhe darei o gosto de mais
uma emoção romanesca. (Adelaide levanta-se; para Eduardo.) Devo-lhe
em matéria de amor uma reparação; vou satisfazer-lhe já
a minha dívida. (Indo à porta onde se acha Emília.) Pode
sais, minha senhora. (Emília sai.)
Cena XIII
Os mesmos e Emília
Eduardo – Emília!!!
Emília – Não me condenes. Sobre tua cabeça pesa um crime
talvez, eu apenas cometi uma leviandade.
Miguel – Fique descansada; sobre nossas cabeças não pesa absolutamente
coisa alguma. Pode abraçar sua mulher, eu abraçarei a minha.
Eduardo – E por que artes veio o senhor ter a esta casa?
Miguel – Enquanto o senhor fazia a corte à minha metade, eu constipava-me
no seu galinheiro à espera da sua. Mas já lhe disse que pode ficar
tranqüilo; o divino Platão velava por nós. Sua mulher explicar-lhe-á
o que aqui me trouxe.
Eduardo (Abraçando Emília.) – Emília!
Adelaide (Abraçando Miguel.) – Miguel!
Miguel (Para Eduardo.) – Amor com amor se paga. Já vê que nada
devemos um ao outro; dou-lhe o troco na mesma moeda.
Cena XIV
Eduardo, Adelaide, Emília, Miguel e Vicente
Vicente – O carro está ai. (À parte.) Olé!
Miguel – Há de permitir-me que o aproveite. Não posso ir a pé
para a casa nestes trajes.
Eduardo – Com muito prazer.
Miguel (Despedindo-se.) – É verdade, a sua graça?
Eduardo – Eduardo Coutinho, seu humilde criado.
Miguel – Pois, Senhor Eduardo, lá estou às suas ordens. Creio
que já sabe onde moro.
Eduardo – Da mesma forma. Para que não tenha mais o incômodo de
entrar pelo quintal, a porta da minha casa dá para a Rua da Ajuda.
Vicente (À parte.) – Os diabos me carreguem, se compreendo esta embrulhada.
Todos (Menos Vicente.) – Ó Platão, bendito sejas.
Foste o nosso protetor;
Viva a bela teoria
Do teu casto e puro amor.
É sublime, edificante,
A lição que tu nos dás,
Onde plantas teu domínio,
Reina a ordem, impera a paz.
(Cai o pano.)
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