Prosas – Fernando Pessoa

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Páginas de estética e de teoria e críticas
literárias

I – Aforismos e Fragmentos sobre a Arte

1

[ms.] [1914?]

– Só a Arte é útil. Crenças, exércitos,
impérios, atitudes – tudo isso passa. Só a arte fica, por isso
só a arte vê-se, porque dura.

2

[ms.] [1925?]

O valor essencial da arte está em ela ser o indício da passagem
do homem no mundo, o resumo da sua experiência emotiva dele; e, como
é pela emoção, e pelo pensamento que a emoção
provoca, que o homem mais realmente vive na terra, a sua verdadeira experiência,
regista-a ele nos fastos das suas emoções e não na crónica
do seu pensamento cientifico, ou nas histórias dos seus regentes e
dos seus donos [?].

Com a ciência buscamos compreender o mundo que habitamos, mas para
nos utilizarmos dele; porque o prazer ou ânsia só da compreensão,
tendo de ser gerais, levam à metafísica, que é já
uma arte.

Deixamos a nossa arte escrita para guia da experiência dos vindouros,
e encaminhamento plausível das suas emoções. É
a arte, e não a história, que é a mestra da vida.

3

[ms.] [1909?]

A ciência descreve as coisas como são; a arte descreve-as como
são sentidas, como se sente que são.

O essencial na arte é exprimir; o que se exprime não interessa.

4

[ms.] [1913?]

A arte é a auto-expressão forcejando por ser absoluta.

5

[ms.] [1915?]

O valor de uma obra de arte é tanto maior quanto é puramente
artístico o meio de manifestar a ideia.

6

[ms.] [1910?]

H[istory] of a D[ictatorship] (1) ou Estética

A arte é apenas e simplesmente a expressão de uma emoção.
Um grito, uma simples carta pertencem um à arte de cantar, à
literatura a outra, inevitàvelmente.

O próprio gesto é artístico segundo é ou não
interpretação de uma emoção. Porque no gesto há
o fim do gesto e a expressão desse fim. Uma cousa reporta-se à
vontade, a outra à emoção. Elegância ou deselegância
de um gesto significam conformidade ou não-conformidade com a emoção
que exprime. Assim uma estátua da dor é a fixação
dos gestos que mostram a dor – e será tanto mais bela quanto mais justa
e exactamente representar por esses gestos a emoção da dor,
quanto mais adaptados em tudo forem esses gestos ao mostrar essa emoção.

(1) O titulo refere-se ao projecto duma história da ditadura de João
Franco, de que existem alguns fragmentos no espólio do autor.

7

[ms.] [1915?]

Arte – Idealização

Todo o material da arte repousa sobre uma abstracção: a escultura,
p. ex., desdenha o movimento e a cor; a pintura desdenha a 3 dimensão
e o movimento portanto; a música desdenha tudo quanto não seja
o som; a poesia baseia-se na palavra, que é a abstracção
suprema, e por essência, porque não conserva nada do mundo exterior,
porque o som – acessório da palavra – não tem valor senão
associado – por impercebida que seja essa associação.

A arte, portanto, tendo sempre por base uma abstracção da realidade,
tenta reaver a realidade idealizando. Na proporção da abstracção
do seu material está a proporção em que é preciso
idealizar. E a arte em que mais é preciso idealizar é a maior
das artes.

8

[ms.] [1930?]

Porque a arte dá-nos, não a vida com beleza, que, porque é
a vida [var.: concreta], passa, mas a beleza com vida, que, como é
beleza [var.: abstracta], não pode perecer.

A cada conceito da vida cabe não só uma metafísica,
mas também uma moral. O que o metafísico não faz porque
é falso, e o moralista não faz porque é mau, o esteta
não faz porque é feio.

9

[ms.] [1913?]

Os desvios ideativos da poesia moderna

Emoção que não seja vaga, pensamento que o seja não
prestam. Os modernos poetas franceses têm o contrário: são
nítidos e (…) na emoção e vagos, deploràvelmente
vagos na ideia.

Uma obra literária procura sentimentos que têm que ver com:
a ideia, a emoção, a imaginação (que vem a ser
uma combinação inteira de ideia e emoção). A ideia
deve ser nítida, a emoção vaga, a imaginação,
como é composta essencialmente de ambos, ao mesmo tempo vaga e nítida.
– A arte deve dirigir-se a estas 3 faculdades, que não a uma ou duas
delas isoladamente.

10

[ms.] [1916?]

Se a obra de arte proviesse da intenção de fazê-la, podia
ser produto da vontade. Como não provém, só pode ser,
essencialmente, produto do instinto; pois que instinto e vontade são
as únicas duas qualidades que operam.

A obra de arte é, portanto, uma produção do instinto.
O drama, sendo primàriamente uma obra de arte, é-o também.

11

[dact.] [1925?]

Introdução à Estética

Exigir de sensibilidades como as nossas, sobre que pesam, por herança,
tantos séculos de tantas cousas, que sintam e portanto se exprimam
com a limpidez, e a inocência de sentidos, de Safo ou de Anacreonte,
nem é legítimo, nem razoável. Não é no
conteúdo da sensibilidade que está a arte, ou a falta dela:
é no uso que se faz desse conteúdo.

Distinguiremos na arte, como em tudo, um elemento material, e um formal.
A matéria da arte, dá-a a sensibilidade, a forma, dirige-a a
inteligência. E na forma há, ainda, duas partes a considerar:
a forma concreta ou material, que se prende com a matéria mesma da
obra, e a forma abstracta ou imaterial, que se prende só com a inteligência
e depende de suas leis imutáveis.

Três são as leis da forma abstracta, e, como são da forma
abstracta, aplicam-se a todas as artes e a todas as formas de cada arte. Abdicar
delas é abdicar da mesma arte. Podemos eleger quebrar tais leis; não
podemos, porém, elegendo-o, presumir que fazemos arte, pois a arte
consiste, mais que em qualquer outra cousa, na obediência a essas leis.
As três leis da forma abstracta são: a unidade; a universalidade
ou objectividade; e (…).

Por unidade se entende que a obra de arte há-de produzir uma impressão
total definida, e que cada seu elemento deve contribuir para a produção
dessa impressão; não havendo nela nem elemento que não
sirva para esse fim, nem falta de elemento que possa servir para esse fim.
É uma falha artística, por exempla, a introdução
em um poema de um trecho, por belo que seja, que não tenha relação
necessária com o conjunto do poema, como o é, mais palpàvelmente,
a introdução em um drama de uma cena em que, por grande que
seja a força ou a graça própria, a acção
pára ou não progride, ou, o que é pior, se atrasa.

Por universalidade, ou objectividade, se entende que a obra de arte há-de
ser imediatamente compreensível a quem tenha o nível mental
necessário para poder compreendê-la.

Quanto mais altamente intelectual for uma obra de arte, maior será,
em princípio, a sua universalidade, pois que a inteligência abstracta
é a mesma em todos os tempos e em todos os lugares – dada a espécie
humana no nível de tê-la -, enquanto a sensibilidade varia de
tempo para tempo e de lugar para lugar.

Cumpre esclarecer este ponto. A obra de arte procede de uma impressão
ou emoção do artista que a constrói, impressão
ou emoção que, como tal, é própria e intransmissível.
Se o valor dessa emoção, para quem a sente, é o ser própria,
deve gozar-se simplesmente, e não exprimir-se. Se o valor dela, porém,
é mais alguma cousa, (…).

Todos nós sentimos a dor e o delírio do Rei Lear de Shakespeare;
esse delírio, contudo, é, diagnosticàvelmente, o da demência
senil, de que não podemos ter experiência, pois quem cai em demência
senil nem pode perceber Shakespeare, nem qualquer outra causa. Porque é,
então, que, sendo esse delírio tão caracterizadamente
o do demente senil, o sentimos tanto nós, que não temos conhecimento
desse delírio? Porque Shakespeare pôs nesse delírio só
aquela parte que nele é humano, e afastou a que nele seria, ou particular
do indivíduo Lear, ou especial do demente senil. Todo o processo mórbido
envolve essencialmente ou um excesso, ou um abatimento, de função;
ou uma hipertrofia, ou uma atrofia, de órgão. O desvio, que
constitui a doença, está na distância a que fica o excesso,
ou o abatimento, do nível da função normal; na dessemelhança
que se estabelece entre o órgão hipertrofiado, ou atrofiado,
e o órgão são. Assim a doença é, ao mesmo
tempo, e no mesmo acto, um excesso ou abatimento do normal, e um desvio (ou
diferença) desse normal. Se, apresentando um caso de doença
mental, o apresentarmos pelo lado em que é excesso ou abatimento da
função normal, com isso mesmo o apresentamos como ligação
a essa função, e compreensível para quem a tenha; se,
porém, o apresentarmos pelo lado em que é desvio ou diferença,
com isso mesmo o apresentamos como desligado ou separado dessa função,
e incompreensível, portanto, a quem não esteja no mesmo caso
mórbido, o que será pouca gente, senão pouquíssima.
As duas maneiras são comparáveis à maneira racional,
e à dogmática ou aforística, de apresentar uma conclusão:
o raciocinador leva o ouvinte ou lente até à conclusão
por um processo gradual, e ainda que a conclusão seja estranha ou paradoxal,
torna-se em certo modo aceitável por se tornar compreensível
como se chegou até ela; o dogmático põe a conclusão
sem explicar como chegou a ela, e sucede, como se não vê relação
entre o ponto de partida e o de chegada, que só quem tenha feito o
raciocínio necessário, ou quem aceite a conclusão sem
raciocínio, pode convir nessa conclusão.

Tudo que se passa numa mente humana de algum modo análogo se passou
já em toda outra mente humana. O que compete, pois, ao artista que
quer exprimir determinado sentimento, por ex., é extrair desse sentimento
aquilo que ele tenha de comum com os sentimentos análogos dos outros
homens, e não o que tenha de pessoal, de particular, de diferente desses
sentimentos.

A obra de arte, ou qualquer seu elemento, deve produzir uma impressão,
e uma só; deve ter um sentido, e só um; seja sugestivo o processo,
ou explícito. Isto se vê claramente no emprego do epíteto
em literatura. Muito se tem bradado contra o emprego de adjectivos estranhos,
ou juntos a substantivos com os quais não parecem poder ligar-se. Não
há, porém, adjectivos estranhos, nem é possível
construir uma frase a que se não possa atribuir um sentido qualquer.
O que é necessário é que esse «sentido qualquer»
seja só um, e não possivelmente um de vários. Ésquilo,
numa frase célebre, refere-se ao «riso inúmero das ondas»;
o epíteto é daqueles a que é uso chamar ousados, pois
que tudo é ousado para quem a nada se atreve. Toda a gente, porém,
compreende a frase, nem lhe é atribuível mais que um sentido.
Há, porém, uma poetisa francesa que deu a um seu livro o título,
mimado desta frase, de O Coração inúmero, frase esta
que pode ter vários sentidos, porém que não é
certo que tenha este ou aquele. A «ousadia» do epíteto
é igual no grego e na francesa; uma, porém, é a ousadia
da inteligência, a outra a do capricho.

Pode ser, no caso de um epíteto desta última ordem, que a sensibilidade
de várias pessoas convenha na mesma interpretação, e,
ainda, que essa interpretação seja – o que também poderia
não acontecer – aquela mesma que lhe o autor deu. Como, porém,
a sensibilidade é passageira e local, local e passageira é também
a interpretação que dela procede.

Estas considerações têm que ser interpretadas em relação
às diversas artes, diversamente para cada uma, conforme sua matéria
e fim. Aquele trecho musical cuja frescura e alegria me dá a mim a
impressão de madrugada, pode dar a outro a impressão de Primavera.
Como, porém, não é função da música
definir as cousas, senão a emoção que geram, o trecho
produziu, em verdade, a mesma impressão em mim e no outro, pois ambos
sentimos nele frescura e alegria; o lembrar-me essa frescura a madrugada,
e a outro a Primavera, é apenas a tradução pessoal que
cada um de nós faz da sensação que recebeu, pois a sensação
abstracta de alegria e de frescura é comum à madrugada e à
Primavera. A um terceiro esse mesmo trecho poderia evocar, por exemplo, certa
cena de amor, ou certa paisagem, sem que em alguma cousa saísse do
seu fim próprio, logo que a essa cena de amor e a essa paisagem estejam
nele ligadas as ideias de frescura e alegria. Do mesmo modo a frase de Ésquilo
«riso inúmero das ondas» não é diversa em
mim e num veneziano por em mim evocar o Atlântico e nele o Adriático.

14

[dact.] [1916?]

Regresso dos Deuses: Estética (1)

Mas o critério de perspicuidade não limitará demasiado
a arte? Não limita, se atendermos a um ponto importante, que é
que há várias artes, cada uma das quais corresponde a um género
de perspicuidade. Certos sentimentos vagos e pensamentos nebulosos, que são
naturais a todos os homens, encontram a sua expressão em a música.

O critério de perspicuidade é, porém, derivado na arte
helénica. O grego amava a perspicuidade porque amava a generalidade,
a universalidade e a distinção das artes. Ora, era difícil
que uma ideia vaga pudesse ser geral, universal, e caber na arte literária
ou scultural, por muito bem que estivesse em a música.

Semelhantemente, não é a sobriedade um característico
essencial na estética pagã, senão também um corolário
dela. A arte é o aperfeiçoamento do mundo exterior. Ora este
aperfeiçoamento (da Realidade) pode fazer-se de três maneiras:
pela alteração do mundo exterior, (…).

(1) Nos dois fragmentos seguintes respeitamos traços típicos
da ortografia de Ricardo Réis, autor suposto do ensaio Regresso dos
Deuses (cf. Páginas intimas e de auto-interpretação).

15

[dact.] [1916?]

Regresso dos Deuses: Estética

Objectar-se-á, sem dúvida, que, havendo sentimentos que são
vagos, sentimentos que são confusos, impulsos do ânimo (spírito)
que, de confundidos com outros, se nos não apresentam claros, é
abusivo exigir do artista que os delineie como nítidos, como qualquer
cousa que eles não são.

A resposta a esta observação stá na pergunta, se esses
stados do ânimo são legitimamente representáveis em arte?
O artista subjectivo parte do princípio que o fim da sua arte é
exprimir as suas próprias emoções. Critério é
esse que o artista objectivo não aceita, e com razão absoluta
o não aceita, porque a arte objectiva é que é a arte,
por isso que é uma cousa realizada, que passa para fora do artista,
e não fica nele, como a emoção que a produz.

De feito, perguntemos, porque é um pensamento confuso, porque é
um sentimento vago, por que razão não se apresenta nítido
um impulso volitivo? Para todos a razão é uma: é que
o pensamento se não pôs em contacto com a realidade, é
que o sentimento se não comparou com a sua realização,
é que a vontade se não mediu com o exterior.

Uma obra de arte é um objecto exterior; obedece portanto às
leis a que stão subordinados os objectos exteriores, no que objectos
exteriores.

O artista não exprime as suas emoções. O seu mister
não é esse. Exprime, das suas emoções, aquelas
que são comuns aos outros homens. Falando paradoxalmente, exprime apenas
aquelas suas emoções que são dos outros. Com as emoções
que lhe são próprias, a humanidade não tem nada. Se um
erro da minha visão me faz ver azul a cor das folhas, que interesse
há em comunicar isso aos outros? Para que eles vejam azul a cor das
folhas? Não é possível, porque é falso. Para que
eles saibam que eu vejo azuis as folhas? Não é preciso porque
não tem importância nenhuma. O mais que o fenómeno é
curioso, e o curioso é senti-lo; senti-lo sinto-o eu, não os
outros. O que há de realmente estético, pois, nas sensações
estranhas é que cada um as guarde para si, gozando-as em silêncio,
se para tal lhe dá o gozo.

Assim, o primeiro princípio da arte é a generalidade. A sensação
expressa pelo artista deve ser tal que possa ser sentida por todos os homens
por quem possa ser compreendida.

O segundo princípio da arte é a universalidade. O artista deve
exprimir, não só o que é de todos os homens, mas também
o que é de todos os tempos. O subjectivismo cristista, além
do erro pessoalista, produziu essoutro erro, a preocupação de
interpretar a época. A frase de Goethe, bastas vezes citada sobre o
assunto, é de mestre; com efeito, um homem de génio é
da sua época só pelos seus defeitos. A nossa época deduz-nos
da humanidade. Como o artista deve procurar erguer-se acima da sua personalidade,
deve procurar levantar-se fora da sua época.

O terceiro princípio da arte é, finalmente, a limitação.
Isto é, a cada arte. corresponde um modo de expressão, sendo
o da música diferente do da literatura, e o da literatura diverso do
da escultura, este do da pintura, e assim com todas as artes. Erro crasso,
mas recentemente vulgar, é o de confundir os limites das artes., Foi
cometido por uma época tão aparentemente ortodoxa como o século
dezassete dos franceses. Os poetas como Corneille e Racine aplicaram à
poesia a secura de expressão, a nitidez de raciocínio, que são
características da prosa. Racine, errou como errou Mallarmé.
Por um errar por fazer da poesia prosa, e outro por fazer da poesia música,
não é menor o erro de um do que o de outro.

Para os sentimentos vagos, que não comportam definição,
existe uma arte – a música, cujo fim é sugerir sem determinar.
Para os sentimentos perfeitamente definidos, de tal modo que é difícil
a emoção neles, existe a prosa. Para os sentimentos que são
harmoniosos e fluidos, existe a poesia. Em uma época sã e robusta,
um Verlaine ou um Mallarmé escreveriam a música que nasceram
para escrever. Não teriam tido nunca a tendência para dizer em
palavras aquilo que a palavra não comporta. Pergunto ao maior entusiasta
dos simbolistas franceses se Mallarmé os comoveu tanto como uma melodia
vulgar, se a inexpressão de Verlaine chegou alguma vez à inexpressão
legítima de uma valsa simples. Não chegou, e se me responderem
que preferem para esse fim Verlaine e Mallarmé à música,
o que me estão dizendo é que preferem a literatura como música
à música. Stão-me dizendo uma cousa que não tem
sentido fora de lamentá-los.

II
Da Crítica e da História Literária

1

[ms.] [1917?] [Formas de crítica estética]

Toda a produção humana se pode analisar sob 3 pontos de vista:
o do seu valor, o da sua produção e o da sua significação
humana. Teremos pois que qualquer produção do homem se pode
apreciar sob os pontos de vista valorista, psicológico e sociológico.
O que significa perante o que produziu? (crítica psicológica).
O que significa na sociedade? (crítica sociológica). O que significa
perante o ideal? (crítica valorista).

A crítica valorista divide-se evidentemente segundo as 3 formas do
ideal (verdade, bem, beleza) em crítica científica, crítica
moral (ou ética) e crítica estética.

2

[ms.] [1915?]

Balança de Minerva

Falar é o modo mais simples de nos tornarmos desconhecidos. E esse
modo imoral e hipócrita de falar a que se chama escrever, mais completamente
nos vela aos outros e àquela espécie de outros a que a nossa
inconsciência chama nós-próprios. Por isso, se escrever,
no sentido de escrever para dizer qualquer cousa, é acto que tem um
cunho de mentira e de vício, criticar as cousas escritas não
deixa de ter um correspondente aspecto de curiosidade mórbida ou de
futilidade perversa. E, quando a crítica é escrita também,
requinta-se para repugnante a sua imoralidade essencial. Pega-se-lhe a doença
do criticado – o facto de existir escrito.

Pròpriamente, o único crítico de arte ou de letras deve
ser o psiquiatra; porque, ainda que os psiquiatras sejam tão ignorantes
e laterais aos assuntos como todos os outros homens daquilo a que eles chamam
ciência, têm ainda assim, perante o que vem a ser um caso de doença
mental, aquela competência que consiste em nós julgarmos que
eles a têm. Nenhum edifício de sabedoria humana pode erguer-se
sobre outros alicerces.

5

[ms.] [1915?]

Balança de Minerva

Aferição.

Destina-se esta secção à crítica dos maus livros
e especialmente à crítica daqueles maus livros que toda a gente
considera bons. O livro, consagrado por qualidades que não tem, do
homem consagrado por qualidades com que outros o pintaram; o livro daquele
que, tendo criado fama, se deitou a fingir que dormia; o livro do que entrou
no palácio das Musas pela janela ou colheu a maçã da
sabedoria com o auxílio dum escadote – tudo isto se pesará na
Balança de Minerva.

Claro que a razão do título Balança de Minerva é
a circunstância de Minerva não ter balança nenhuma. Vagamente
absurdo, leva este título em si a definição dum modo-de-ver
que escolhe o onde opor-se a todos para ter razão inùtilmente.
A consciência do esforço inútil e do trabalho perdido
ainda é uma das grandes emoções estéticas que
restam a quem se preocupa com as cousas que ainda restam.

A crítica, de resto, é apenas a forma suprema e artística
da maledicência. É preferível que seja justa, mas não
é absolutamente necessário que o seja. A injustiça, aliás,
é a justiça dos fortes. No fundo isto é tudo bondade.
Dizer mal dum livro é o único modo de dizer bem dele. Se é
mau, faz-se justiça; se é bom põe-o na evidência
que os livros bons merecem. E, no fim de tudo, nada disto tem importância,
porque os livros bons leva-os a História ao colo para casa. E quanto
aos maus – criticar é apenas abrir-lhes a cova e rezar-lhes em cima
da última descida o latim que falava Juvenal. Às vezes é
com sete pós de elogios que esta justiça mortal melhor se sela.

A justificação última da crítica assim bem entendida
é o satisfazer a função natural de desdenhar – função
tão natural como a de comer e que é de boa higiene de espírito
satisfazer cuidadosamente. Quem sente vontade de desdenhar não deve
atar-se à cobardia de julgar isso feio, nem vender-se à infâmia
de ir desdenhar o que os outros desdenham, abdicando assim da sua individualidade,
gregário.

As horas passam devagar e pesa em tédio a consciência delas.
Buscar o conforto no desprezo é não só o nosso dever
para com o desprezo, mas também o nosso dever para com nós-próprios.
Espetar alfinetes na alma alheia, dispondo esses alfinetes em desenhos que
aprazam à nossa atenção fùtilmente concentrada,
para que o nosso tédio se vá esvaindo – eis um passatempo deliciosamente
de crítico, e ao qual juramos fidelidade.

Traduzindo isto para a metáfora que dá cor a esta secção,
pretendemos dar a entender que o nosso uso da Balança de Minerva limitar-se-á,
na maioria dos casos, a dar com ela – pesos e tudo – na cabeça do criticado.
Isso, de resto, não deve preocupar ninguém. Quem tiver de ser
imortal pode sê-lo mesmo com a cabeça partida. O ser imortal
é a única das preocupações anti-sociais que não
faz mal a ninguém. Visto que o futuro raras vezes dá por ela,
não é demais que o presente algumas vezes dê nela.

III
Arte e Moral

1

[ms.] (domingo, 13 de Outubro de 1914?]

A arte suprema tem por fim libertar – erguer a alma acima de tudo quanto
é estreito, acima dos instintos, das preocupações morais
ou imorais.

A arte nada tem com a moral, quanto ao fim; tem, quanto ao conteúdo.

Toda a arte deve dar prazer – o tipo de prazer é que varia. A arte
inferior dá prazer porque distrai, liberdade porque liberta das preocupações
da vida; a arte superior menor dá prazer porque alegra, liberdade porque
liberta da imperfeição da vida; a arte superior dá prazer
porque liberta, liberdade porque liberta da própria vida.

Um assunto sexual deve ser tratado em arte de modo que não suscite
desejo. Para suscitar desejos, serve melhor uma fotografia pornográfica.

2

[ms.] [1916?]

As artes

As relações entre a arte e a moral são análogas
às entre a arte e a ciência. Não há relação
entre a arte e a moral, como a não há entre a arte e a ciência;
mas um poema que viola as nossas noções morais impressiona idênticamente
o homem são como um poema que viola a nossa noção da
verdade.

Um poeta que canta, elogiando, o roubo, não fará com isso um
bom poema; nem o fará um poeta moderno a quem lembre cantar o curso
do sol á volta da terra, que é uma cousa falsa.

Viola a regra do agrado. Agradará a mais gente um poema que, sobre
ser belo, seja moral, que um que, sendo belo, seja imoral. As épocas
têm mais de comum as suas ideias morais que as suas imoralidades. Só
nas épocas de decadência é que a moralidade deixou de
ser um ideal; e, mesmo nessas, reconhece-se o seu valor ideal.

As relações são entre o artista e o moralista, não
entre a arte e a moral. Como é improvável que um grande artista,
por isso mesmo que é um grande artista, falseie a verdade, é
improvável que falseie a moral. Não pertence esse característico
aos de um cérebro típico de criador.

O criador de arte para influenciar tem, em geral, como motivo o interesse
de influenciar; ao qual falha se cria obra com elementos que tendem a limitar
a acção da obra.

A tendência moral é reconhecida pela espécie [?] humana
como superior à realidade [?] imoral. O poeta imoral corre portanto,
na proporção em que é imoral, o risco de não influenciar
os espíritos superiores (quando não da sua época, porventura
decadente), das outras épocas pelo menos.

[ms.] [1914?]

A questão da arte moral ou imoral – se a arte deve ser «art
for art’s sake», independentemente da moralidade -, apesar de muito
simples de solução, não tem deixado de ocupar desagradàvelmente
muito pensador, especialmente dos que desejam provar que a arte deve ser moral.

Em primeiro lugar dêmos inteira razão – é evidente que
a têm – aos estetas; a arte tem, em si, por fim só a criação
de beleza, à parte considerações de ser moral ou não.
Se isto é assim, quem manda pois à arte ser moral? A resposta
é simples: a moral. Manda-o a moral porque a moral deve reger todos
os actos da nossa vida e a arte é uma forma da nossa vida. Têm
errado aqueles que têm querido achar uma razão, dentro da própria
natureza da arte, para a arte ser moral. Não existe essa razão
onde a procuraram. A arte, quâ arte, tem por fim apenas a beleza. A
razão que a manda ser moral existe na moral, que é exterior
à estética; existe na natureza humana.

A arte tem duas feições: a feição puramente artística
e a feição social. A feição artística é
criar a beleza – nada mais. Como a beleza é uma cousa independente
do consenso humano (apesar de julgada por ele), como a beleza em si, digamos,
é independente de opiniões, a arte na sua (…) social nenhum
outro fim tem que a criação da beleza, sem outra consideração
moral ou intelectual.

Mas a arte tem outra feição. É a feição
social. O artista é um homem e um artista. Puramente artista a sua
obra, já o dissemos, tem só por fim criar a beleza, só
uma responsabilidade – perante a Estética. Mas o artista vive em sociedade,
publica as suas obras de arte. Vive em sociedade como artista e vive em sociedade
como homem. Como artista o seu fim é um só: agradar. Como homem
o seu fim é um só: obter glória. Vemos pois que o artista
mostra-se-nos sob 3 feições: como puramente artista (não
tendo outro fim que criar a beleza), como ao mesmo tempo artista e homem (querendo
ver essa beleza que criou admirada), e finalmente como homem (desejando a
glória, no que é comum aos outros homens, geralmente a todos).
O primeiro sentimento é puramente impessoal; o segundo é entre
pessoal e impessoal – o desejar ver admirada uma obra de arte, conquanto sua,
não é inteiramente egoísta; o terceiro é inteiramente
pessoal.

Cremos ter dado, nestas palavras, a solução definitiva do problema.

Ora, segundo estas 3 feições do artista, está ele submetido
a diversas leis. Como puramente artista nenhuma outra lei tem que não
seguir a estética. Mas já buscando agradar se tem que submeter
a outras leis; a natureza da humanidade é uma só, não
se divide em estética, moral, intelectual, etc. Só a Estética
personalizada é que poderia apreciar uma obra de arte sob o ponto de
vista puramente estético. A humanidade não; o amor da beleza
é fundamental na sua alma – é arte; mas não só
isso reside nela, não só com isso critica e aprecia. Outros
elementos entram inevitàvelmente nessa apreciação. Um
grande poema revolucionário agradará mais a um republicano do
que a um conservador, admitindo em ambos, quanto a qualidades críticas,
a mesma dose de estética.

Os homens não apreciam só estèticamente, apreciam segundo
toda a sua constituição moral. Por isso cousas grosseiras, impuras,
lhes desagradam, não na parte estética neles, mas na parte moral
que não podem mandar embora de si.

IV
Sobre a Poesia

1

[dact.] [1930?] [Os graus da poesia lírica]

O primeiro grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, de
temperamento intenso e emotivo, exprime espontânea ou reflectidamente
esse temperamento e essas emoções. É o tipo mais vulgar
do poeta lírico; é também o de menos mérito, como
tipo. A intensidade da emoção procede, em geral, da unidade
do temperamento; e assim este tipo de poeta lírico é em geral
monocórdio, e os seus poemas giram em torno de determinado número,
em geral pequeno, de emoções. Por isso, neste género
de poetas, é vulgar dizer-se, porque com razão se nota, que
um é «um poeta do amar», outro «um poeta da saudade»,
um terceiro «um poeta da tristeza».

O segundo grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, por
mais intelectual ou imaginativo, pode ser mesmo que só por mais culto,
não tem já a simplicidade de emoções, ou a limitação
delas, que distingue o poeta do primeiro grau. Este será também
tipicamente um poeta lírico, no sentido vulgar do termo, mas já
não será um poeta monocórdio. Os seus poemas abrangerão
assuntos diversos, unificando-os todavia o temperamento e o estilo. Sendo
variado nos tipos de emoção, não o será na maneira
de sentir. Assim um Swinburne, tão monocórdio no temperamento
e no estilo, pode contudo escrever com igual relevo um poema de amor, uma
elegia mórbida, um poema revolucionário.

O terceiro grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, ainda
mais intelectual, começa a despersonalizar-se, a sentir, não
já porque sente, mas porque pensa que sente; a sentir estados de alma
que realmente não tem, simplesmente porque os compreende. Estamos na
antecâmara da poesia dramática, na sua essência íntima.
O temperamento do poeta, seja qual for, está dissolvido pela inteligência.
A sua obra será unificada só pelo estilo, último reduto
da sua unidade espiritual, da sua coexistência consigo mesmo. Assim
é Tennyson, escrevendo por igual Ulysses e The Lady of Shalott, assim,
e mais, é Browning, escrevendo o que chamou «poemas dramáticos»,
que não são dialogados, mas monólogos revelando almas
diversas, com que o poeta não tem identidade, não a pretende
ter e muitas vezes não a quer ter.

O quarto grau da poesia lírica é aquele, muito mais raro, em
que o poeta, mais intelectual ainda mas igualmente imaginativo, entra em plena
despersonalização. Não só sente, mas vive, os
estados de alma que não tem directamente. Em grande número de
casos, cairá na poesia dramática, propriamente dita, como fez
Shakespeare, poeta substancialmente lírico erguido a dramático
pelo espantoso grau de despersonalização que atingiu. Num ou
outro caso continuará sendo, embora dramàticamente, poeta lírico.
É esse o caso de Browning, etc. (ut supra). Nem já o estilo
define a unidade do homem: só o que no estilo há de intelectual
a denota. Assim é em Shakespeare, em quem o relevo inesperado da frase,
a subtileza e a complexidade do dizer, são a única coisa que
aproxima o falar de Hamlet do do Rei Lear, o de Falstaff do de Lady Macbeth.
E assim é Browning através dos Men and Women e dos Dramatic
Poems.

Suponhamos, porém, que o poeta, evitando sempre a poesia dramática,
externamente tal, avança ainda um passo na escala da despersonalização.
Certos estados de alma, pensados e não sentidos, sentidos imaginativamente
e por isso vividos, tenderão a definir para ele uma pessoa fictícia
que os sentisse sinceramente (…)

2

[dact.] [Junho de 1930] [Carta a Adolfo Rocha]

Meu prezado camarada:

Recebi a sua carta que agradeço, e vou procurar expor em frases sem
imagens o sentido daquilo que lhe havia escrito. Devo explicar, antes de mais
nada, que, tendo tardado já uns dias em agradecer o seu livro, escrevi
uma carta rápida, para não demorar mais. Sucede que, quando
escrevo ràpidamente, isto é, sem ter tempo de desdobrar em razões
o que digo, e concisamente, por escrever ràpidamente, o que escrevo
assume naturalmente uma forma metafórica, e não lógica.
Isto lhe explicará a confusão, ou a obscuridade, que necessàriamente
existiria na minha carta. O que não havia nela era o dogmatismo que
parece supor que continha. Nunca sou dogmático, porque o não
pode ser quem de dia para dia muda de opinião, e é, por temperamento,
instável e flutuante. Vamos, que consigo o caso não foi grave:
já me sucedeu pior, com um poeta espanhol – ainda que porventura um
pouco por imperfeito conhecimento da língua – o ser o conciso tomado
por seco, e o metafórico por irónico.

Em substância, e expondo discursivamente, o ponto de vista que lhe
expus é o seguinte:

1) Toda a arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade;

2) A sensibilidade é pessoal e intransmissível;

3) Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte
buscamos fazer, temos que decompor a sensação, rejeitando nela
o que é puramente pessoal, aproveitando nela o que, sem deixar de ser
individual, é todavia susceptível de generalidade, portanto,
compreensível, não direi já pela inteligência,
mas ao menos pela sensibilidade dos outros.

4) Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a intelectualização
directa e instintiva da sensibilidade, pela qual ela se converte em transmissível
(é isto que vulgarmente se chama «inspiração»,
quer dizer, o encontrar por instinto as frases e os ritmos que reduzam a sensação
à frase intelectual (prim. versão: tirem da sensação
o que não pode ser sensível aos outros e ao mesmo tempo, para
compensar, reforçam o que lhes pode ser sensível); b) a reflexão
crítica sobre essa intelectualização, que sujeita o produto
artístico elaborado pela «inspiração» a um
processo inteiramente objectivo – construção, ou ordem lógica,
ou simplesmente conceito de escola ou corrente.

5) Não há arte intelectual, a não ser, é claro,
a arte de raciocinar. Simplesmente, do trabalho de intelectualização,
em cuja operação consiste a obra de arte como coisa, não
só pensada, mas feita, resultam dois tipos de artista: a) o inspirado
ou espontâneo, em quem o reflexo crítico é fraco ou nulo,
o que não quer dizer nada quanto ao valor da obra; b) o reflexivo e
critico, que elabora, por necessidade orgânica, o já elaborado.

Dir-lhe-ei, e estou certo que concordará comigo, que nada há
mais raro neste mundo que um artista espontâneo – isto é, um
homem que intelectualiza a sua sensibilidade só o bastante para ela
ser aceitável pela sensibilidade alheia; que não critica o que
faz, que não submete o que faz a um conceito exterior de escola ou
de moda, ou de «maneira», não de ser, mas de «dever
ser».

Na sua aplicação ao seu livro, estas considerações
tomam para mim a forma seguinte: 1) a sua sensibilidade é boa, e, por
natureza, de tipo intelectual; 2) pode, portanto, ser um poeta espontâneo,
sem ter que sobreintelectualizar demais ou recorrer a uma atitude reflexiva
ou crítica; 3) para isso, porém, convinha-lhe (a meu ver, bem
entendido-mas era a minha opinião, que não a de outrem, que
lhe dava), ou a) focar num ponto nítido e universalmente transmissível
a intelectualização da sensação, ou b) distribuir
mais igualmente a intelectualização pela extensão da
sensação.

Isto não é, talvez, muito claro; não sei, porém,
como o diga melhor. Servir-me-ei de exemplos. Um homem que era, e suponho
(embora nada publique, nem talvez escreva) ainda é, o mais curioso
espírito crítico português, Manuel António de Almeida,
escreveu, em 1912, no «Inquérito Literário» de Boavida
Portugal, esta definição da arte moderna: «Uma representação
central nítida, em torno da qual bóia todo um nimbo de coisas
evocadas.» Isto representa muito bem o que quero indicar como o primeiro
processo que lhe sugeri. O segundo seria, servindo-me de uma expressão
de igual tipo, «uma representação central vaga, em torno
da qual brilham, nítidas, e para lhe destacar o vago, todas as representações
secundárias».

É este, meu Camarada, o desenvolvimento mais claro que, de momento,
e para não tardar em responder-lhe, posso fazer do que na minha primeira
carta lhe disse translatamente. Peço-lhe que creia no verdadeiro apreço
de…

3

[dact.] [1928?]

Estética

A composição de um poema lírico deve ser feita não
no momento da emoção, mas no momento da recordação
dela. Um poema é um produto intelectual, e uma emoção,
para ser intelectual, tem, evidentemente, porque não é, de si,
intelectual, que existir intelectualmente. Ora a existência intelectual
de uma emoção é a sua existência na inteligência
– isto é, na recordação, única parte da inteligência,
pròpriamente tal, que pode conservar uma emoção.

4

[dact.] [1924?]

Às três subespécies da poesia lírica – a heróica,
a elegíaca e a lírica pròpriamente dita – atribuíam
os antigos a protecção de três musas, Calíope para
a primeira, Érato para a segunda, e para a terceira Polímnia.

Chama-se poesia lírica, em boa razão estética, a toda
aquela que não é dramática nem narrativa, e na espécie
da poesia chamada narrativa há por certo que incluir a didáctica.
A poesia lírica pode exprimir directamente os sentimentos e as emoções
do poeta, sem deles querer tirar conclusões gerais, ou lhes atribuir
maior sentido que o de serem simples emoções e sentimentos:
é esta a poesia pròpriamente, ou simplesmente, lírica.
A esta é que Polímnia rege. Pode também a poesia lírica
exprimir não sentimentos ou emoções do poeta, senão
o conceito que forma desses sentimentos, ou dos alheios: é esta, pròpriamente,
a poesia elegíaca, que não há mister que seja triste,
como o uso vulgar do nome ordinàriamente indica. Desta poesia Érato
é a musa. Pode, por fim, a poesia lírica dedicar-se a exaltar
ou a deprimir a pessoa ou os feitos de outrem, não tanto os comentando,
quanto os elevando ou diminuindo: é esta, em seus dois ramos, a poesia
heróica e a satírica. A estas legitimamente rege Calíope,
se bem que lhe não dessem os antigos a regência da sátira.

5

[ms.] [1913?] [Poesia e Música]

A poesia é a emoção expressa em ritmo através
do pensamento, como a música é essa mesma expressão,
mas directa, sem o intermédio da ideia.

Musicar um poema é acentuar-lhe a emoção, reforçando-lhe
o ritmo.

6

[ms.] [1915?]

Estética

[Poesia e Música]

Poesia lírica primeiro música+poesia, poesia cantada. Depois
a poesia tomou para si o ritmo. A música passou a expressar sentimentos
por si, e a poesia lírica a ter música em si (Cf. as poesias
de Shelley e a sua má musicabilidade). A sátira, o epigrama
são duros, mas é porque a música do satirizar é
a aspereza e a […]

Toda a poesia lírica tem, ou deve ter, uma música própria
(como Tennyson tem). – A arte que poetas líricos, às vezes instintivos
de todo, têm, é uma composição musical.

Uma poesia (lírica ou outra) exige intérprete, como uma partitura
(trecho musical); só que na poesia a interpretação é
mais restritamente inindividualizável por causa do elemento fixador.

VII
Sobre as Escolas Literárias

1

[ms.] [1915?]

Classicismo

O movimento da ode grega – estrofe, antístrofe, epodo – não
representa uma invenção dos Gregos, mas uma descoberta sua.
Não é um postulado da inteligência grega; é um
axioma da inteligência humana, que aos Gregos foi dado encontrar. A
sua constatação não é a duma teoria artística,
é a de um facto científico, de uma lei da inteligência.

Este triplo movimento não é só a lei da ode, o fundamento
eterno [var.: perene] da poesia lírica; é, mais, a lei orgânica
da disciplina mental, o regulamento eterno da criação psíquica.
É a constatação superior do facto simples de que todas
as cousas têm um princípio, um meio e um fim, de que o princípio
conteria já em si o fim, e a indicação do meio; e de
que o meio é o modo como o princípio se torna fim.

A tal ponto esta descoberta psicológica dos Gregos – mais importante,
por certo, que a subversão por Galilei da astronomia Ptolemaica – é
uma lei do espírito, que a vemos reaparecer várias vezes, e
sempre com o mesmo carácter de eterna, na história do pensamento.
Outra cousa não é o triplo movimento – tese, antítese,
síntese – da dialéctica de Platão. Outra cousa não
é o pensamento substancial de Hegel – em que o ser em si (Sein) se
torna outro-ser (Dasein) e volta a si (für sich Sein). Outra base não
tem, no seu exterior filosófico, a doutrina cristã da Trindade
divina, que representa Deus como sendo aquele de quem tudo procede, como Pai,
por quem tudo existe, como Filho, e para quem tudo existe, como Espírito
Santo; havendo assim, no entender da filosofia cristã, já uma
previsão da doutrina rígida de Hegel na doutrina fluida de S.
Paulo.

Perderemos [var.: Erraremos] por completo o sentido do classicismo se não
nos obrigamos a estudá-lo como deve ser estudado – na Grécia,
onde nasceu, e segundo a lei do pensamento. Da Grécia para cá
não tem havido senão aplicações tortuosas e incertas
da Disciplina helénica.

Há, depois, que distinguir no classicismo [var.: na arte grega], como
em tudo mais, entre a matéria e a forma. A matéria dá-a
a sensibilidade, o temperamento especial, a visão individual [?] do
artista; a forma supõe a inteligência. Geral na sua natureza,
como a ciência, seu produto màximamente característico,
é antiparticular de sua índole.

O pseudoclassicismo francês – Boileau, Corneille, Racine – foi na cultura
europeia o pior inimigo da tradição clássica, porque
foi o seu desvirtuador, e, como disse Tennyson, «a mentira que é
meia verdade é a pior das mentiras». O classicismo francês
é um classicismo de duas dimensões, um classicismo de silhueta
ou [var.: e] de papel cortado. A disciplina helénica é aplicada,
mas não há sensibilidade a que aplicá-la. O grego aceitava,
a mãos plenas, a experiência integral da vida da emoção;
e a essa experiência plena impunha a disciplina da sua inteligência
(abstracta). O francês

castra, limita, arredonda primeiro a experiência da vida, depois é
que disciplina essa sensibilidade que castrou. O classicismo que resulta é
tão natural como a castidade num eunuco. É como o escolar que,
tendo que fazer uma soma de parcelas compostas de números inteiros
e de quebrados, começasse, para chegar a uma soma perfeita, por apagar
do quadro os quebrados. O francês não tem força mental
para aceitar a experiência total da vida; tem que ter dieta na sensibilidade
para a poder digerir com a inteligência.

Quando, como no Romantismo, adquiriu a sensibilidade plena, o espírito
francês revelou imediatamente a sua debilidade; perdeu o poder da disciplina,
produziu as monstruosidades construtivas que são os poemas de Hugo,
de Musset e de Lamartine. Só, e em alguns poemas, a alma triste de
Vigny conseguiu filiar-se, em estilo Chénier, na velha, na grande tradição
da Beleza. O espírito francês é a apoteose do secundário.

Só em Flaubert […]. Mais uma prova da secundariedade intelectual
da França. Só atingiu o ideal clássico num género
secundário – no romance. Nem na poesia épica, nem na dramática…

2

[ms.] [1915?]

O Sentido do Classicismo

Entre as tendências recentes do espírito crítico europeu
há uma que acima de todas avulta quer pelo (…) como está espalhada,
quer pela coesão inteira dos vários pontos que representam a
essência da sua doutrina. Essa tendência – representada pelo movimento
conservador em política – aflora na crítica literária
sob a forma do chamado neoclassicismo.

No nome da doutrina vai já a sua explicação. Ela inclui
uma contraposição aos princípios românticos ou
pós-românticos – considerados quer como literàriamente
falsos (Matthew Arnold), quer como a forma literária de princípios
politicos dissolventes – dos princípios por que ostensivamente se regia
a literatura pré-revolucionária.

Como, porém, os expositores deste sistema não primem pela originalidade
(cf. Maurras), sucede que, na elaboração dessa doutrina, caem
em três erros (…).

Os 3 erros são: 1) errar o ponto de partida desses princípios
clássicos; 2) confundir o conteúdo da obra de arte com o seu
(…), a sua estática com a sua dinâmica; 3) fazer crítica
literária sem referência a condições médias
(?).

O primeiro erro é dos conservadores franceses, e, de aí, dos
que eles influenciam. Consiste em confundir a essência dos princípios
clássicos com a sua aplicação em determinada época.
Assim, quando defendem os princípios clássicos, defendem, em
geral, apenas os princípios do século dezassete, e, o que é
pior, do século XVII em França. Não reparam, porém,
que a mentalidade francesa difere muito da mentalidade grega. O grego aceita
as sensações e a vida e subordina-as a uma disciplina intelectual.
O francês, incapaz de criar uma disciplina superior, trunca e restringe
a vida e o sentimento para os poder disciplinar. É como um escolar
que, tendo que somar parcelas (…) (1).

O papel da inteligência, no romantismo, é apenas representativo;
serve apenas para exprimir a emoção que inspirou o poema. Nos
pseudoclássicos dos séculos anteriores, o papel da inteligência
é outro – é criar a emoção; não criar nenhuma,
é claro, porque esse papel é anti-humano, ao passo que o dos
românticos é apenas inferiormente humano.

(1) Cf. o fragmento anterior.

3

[ms.] [1914?] [Neoclassicismo e Romantismo]

O que a nossa época sente é um desejo de inteligência.
O que a desgosta no romantismo é a escassez dos elementos intelectuais,
quer directamente pela escassez, quer pela subordinação deles
aos elementos emotivos. O único elemento intelectual notável
no romantismo é o da especulação, da reflexão,
aparecido naturalmente pela ruína progressiva das influências
religiosas. Nisto o romantismo é forte, porque está na grande
tradição civilizacional europeia, que é a tradição
helénica, do individualismo racionalista.

Por outra parte o romantismo é o aboutissement de outra tradição,
a cristã; é isso pelo seu emotivismo e subjectivismo. De novo,
o que o romantismo trouxe foi o sentimento, propriamente tal, da Natureza.
(A renovação da metáfora e da imagem.)

O «classicismo» decadente, a que o romantismo se seguiu e se
opôs, não tinha pensamento, não tinha emoção,
não tinha alma. Custa-nos hoje a crer num Delille, nos Árcades.
Como, salvo alguns versos, pesam hoje sobre nós tedientamente The Traveller,
The Deserted Village, Retaliation!

O fim do classicismo teve talento só na sátira, na poesia social,
no género de que os vers de société são uma espécie.

Quanto maior a subjectividade da Arte, maior tem que ser a sua objectividade,
para que haja equilíbrio, sem o qual não há vida, nem,
portanto, vida ou duração da mesma arte. Como o romantismo tinha
mais emoção, tinha que ter mais pensamento; como tinha mais
subjectividade, tinha que ter mais objectividade.

[Ao alto deste fragmento, a lápis, escreveu F. Pessoa, para confronto:
«A. de Campos: A nossa época está farta de inteligência.
A inteligência é infecunda […] As filosofias irracionalistas.]

4

[dact.] [1917?] [O perigo do Romantismo]

O verdadeiro perigo do romantismo é que os princípios, por
que se rege ou diz reger, são de natureza a que os possa invocar qualquer,
para conferir a si-próprio a categoria de artista. Tomar a ânsia
de uma felicidade inatingível, a angústia dos sonhos irrealizados,
a inapetência ante a acção e a vida, como critério
definidor do génio ou do talento, imediatamente facilita a todo o indivíduo
que sente aquela ânsia, sofre daquela angústia, e é presa
daquela inapetência, o convencimento de que é uma individualidade
interessante, que o Destino, fadando-a para aquelas ânsias, aqueles
sofrimentos, e aquelas impossibilidades, implicitamente fadou para a grandeza
intelectual.

Na teoria clássica não era assim. O discípulo dos antigos
apoiava a sua crença em que era poeta em faculdades de construção
e de coordenação, em uma disciplina interior que não
é tão fácil a qualquer presumir, para si mesmo, que possui.
Não é tão fácil, em relação às
pretensões que são a base do romantismo, do sentimento romântico.
Há basta gente que pode crer-se, falsamente, dotada de qualidades construtivas
em arte; mas toda a agente, e não alguma, pode julgar-se artista, quando
as qualidades fundamentais exigidas são um sentimento de vácuo
nos desejos, um sofrimento sem causa, e uma falta de vontade para trabalhar
– característicos que mais ou menos todos possuem, e que nos degenerados
e nos doentes do espírito assumem um relevo especial.

Não é no estímulo que dá ao individualismo que
o perigo romântico consiste; consiste, sim, no estímulo que dá
a um falso individualismo. O individualismo não é necessàriamente
falso; quando muito, é uma teoria moral e política. Mas há
uma certa forma do individualismo – como há uma certa forma do classicismo
– que é com certeza falsa. É a que permite que o primeiro histérico
ou o mais reles dos neurasténicos se arrogue o direito de ser poeta
pelas razões que, de per si, só lhe dão o direito de
se considerar histérico ou neurasténico.

Quando um poeta romântico canta, lamentando-se, a eterna imperdurabilidade
das coisas, faz uso legítimo de um sentimento bem humano. Quando, do
fundo da sua dor, sofrendo pelo contacto com a humanidade, apela para a grande
Natureza e para o seu constelado repouso, faz uso legítimo de uma emoção
que, sendo velha como a humanidade, nem sempre serviu de tema poético.

A ruína de uma vida simples, ou de uma vida reles, é tão
trágica como a ruína de uma vida grande, ou de uma vida nobre;
mas isso é vistas de fora, não de dentro. A ruína de
uma alma reles não pode ser grande para a alma reles, porque ela é
uma alma reles.

5

[dact.] [1918?] [Sobre o Romantismo]

O movimento literário, a que ordinàriamente se chama romantismo,
contrapôs-se de três maneiras ao classicismo que o precedera.
À estreiteza e secura dos processos clássicos substituiu o uso
da imaginação, liberta, quanto possível, de outras leis,
que não as suas próprias. À mesquinhez especulativa da
arte clássica, onde a inteligência aparece apenas como elemento
formativo, e nunca como elemento substancial, substituiu a literatura feita
com ideias. À clássica subordinação da emoção
à inteligência, substituiu, invertendo-a, a subordinação
da inteligência à emoção, e do geral ao particular.
Os dois primeiros processos representaram uma inovação, e uma
vigoração da arte; o terceiro é puramente mórbido.

Segundo aquele movimento cíclico, que parece ser o de toda a civilização,
o romantismo, nos seus dois processos verdadeiramente inovadores, não
fez mais que reeditar o helenismo, contra a fórmula clássica,
mais latina que grega. Nestes dois pontos, de resto, ele é o continuador
daquilo que a Renascença trouxe de novo – mas também de helénico
– à literatura da Europa. No que teve de próprio, a substituição
da ordem da inteligência e da emoção, o romantismo foi
um simples fenómeno de decadência; e foi porque a Renascença
não mostrou este terceiro característico que ela pôde
atingir um nível poético mais alto, pois que no romantismo não
há Dante nem Milton, tal a falência construtiva de que o novo
sistema vinha inquinado.

No seu desenvolvimento, o romantismo, que nasceu mórbido, esfacelou-se.
Desintegrou-se nos seus três elementos componentes, e cada um destes
passou a ter uma vida própria, a formar uma corrente separada das outras.
Da substituição da imaginação ao escrúpulo
imitativo nasceu toda a literatura da Natureza que distinguiu o século
passado. Da introdução da especulação na substância
da arte nasceu toda a literatura realista. Da inversão das posições
mentais da inteligência e da emoção nasceu todo o movimento
decadente, simbolista, e os seguintes.

É claro que estes elementos, embora criassem correntes que podem dizer-se
separadas, não estão separados; e a maioria dos cultores das
literaturas nascidas dos dois primeiros estão viciados pelo preconceito
personalista que é a base mórbida do terceiro.

O século vinte encontrou diante de si, herdado do século que
o precedeu, um problema fundamental – o da conciliação da Ordem,
que é intelectual e impessoal, com as aquisições emotivas
e imaginativas dos tempos recentes.

É impossível resolver este problema, como querem os integralistas
franceses, pela supressão de um dos seus termos. É igualmente
impossível resolvê-lo aceitando a predominância da emoção
sobre a razão, porque, aceite esta predominância, desaparece
a ordem, e o problema está por resolver. Evidentemente que há
só uma solução: o levar a personalidade do artista ao
abstracto, para que contenha em si mesma a disciplina e a ordem. Assim a ordem
será subjectiva e não objectiva.

Tornar a imaginação abstracta, tornar a emoção
abstracta, é o caminho.

[ms.]

Dramatização da emoção. Os homens da Renascença
já a tinham; a sua poesia da emoção é impessoal
e humanamente universal.

Emoção do abstracto.

A literatura de fantasia, que irrompeu com os transcendentalistas alemães
e seguidamente nos 2 grandes poemas de Goleridge. Este elemento é de
origem medieval.

Por dramatização da emoção entendo o despir a
emoção de tudo quanto é acidental e pessoal, tornando-a
abstracta – humana

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação

Notas AutobiogrÁficas e de Autognose

1

Jamais houve alma mais amante ou terna do que a minha, alma mais repleta
de bondade, de compaixão, de tudo o que é ternura e amor. Contudo,
nenhuma alma há tão solitária como a minha solitária,
note-se, não mercê de circunstâncias exteriores, mas sim
de circunstâncias interiores. O que quero dizer é: a par da minha
grande ternura e bondade, entrou no meu carácter um elemento de natureza
inteiramente oposta, um elemento de tristeza, egocentrismo, portanto de egoísmo,
produzindo um efeito duplo: deformar e prejudicar o desenvolvimento e a plena
acção interna daquelas outras qualidades, e prejudicar, deprimindo
a vontade, a sua plena acção externa, a sua manifestação.
Hei-de analisar isto; um dia hei-de examinar melhor, destrinçar, os
elementos que constituem o meu carácter, pois a minha curiosidade acerca
de tudo, aliada à minha curiosidade por mim próprio e pelo meu
carácter, conduz a uma tentativa para compreender a minha personalidade.

*

Foi por causa destas características que eu escrevi acerca de mim
próprio, em «The Writers Day»(1):

Alguém como Rousseau,

Misantrópico amante da humanidade.

De facto, tenho muitas, demasiadas, afinidades com Rousseau. Em certas coisas,
é idêntico o nosso carácter. O caloroso, intenso, inexprimível
amor da humanidade e a dose de egoísmo que o contrapesa eis
uma característica fundamental do seu carácter, e também
do meu.

*

O meu intenso sofrimento patriótico, o meu intenso desejo de melhorar
o estado de Portugal, provocam em mim como exprimir com que ardor,
com que intensidade, com que sinceridade! mil projectos que, mesmo
se realizáveis por um só homem, exigiriam dele uma característica
puramente negativa em mim força de vontade. Mas sofro
até aos limites da loucura, juro-o como se tudo eu pudesse
fazer sem, no entanto, o poder realizar, por deficiência da vontade.
É um sofrimento horrível que, afirmo-o, me mantém constantemente
nos limites da loucura.

E, depois, incompreendido. Ninguém suspeita do meu amor patriótico,
mais intenso do que o de todos aqueles a quem encontro ou conheço.
Não o traio; como sei, então, que não o possuem? Como
posso dizer que a sua preocupação não iguala a minha?
Porque, nalguns casos na maior parte, até o seu temperamento
é inteiramente diferente; porque, nos outros casos, a sua maneira de
falar revela a ausência de, ao menos, um patriotismo nominal.

O fervor, a intensidade terna, revoltada e ardente do meu,
jamais os exprimirei, […]

Além dos meus projectos patrióticos escrever «República
de Portugal», provocar aqui uma revolução, escrever panfletos
portugueses, dirigir a publicação de obras literárias
nacionais mais antigas, fundar um periódico, uma revista científica,
etc. outros planos em que me consumo na necessidade de serem em breve
postos em prática […] conjugam-se para produzir um impulso excessivo
que me paralisa a vontade. O sofrimento que isto produz não sei se
poderá ser definido como situado aquém da loucura.

A tudo isto acrescentem-se ainda outros motivos de sofrimento, alguns físicos,
mentais outros, a susceptibilidade a toda a coisa comezinha que possa ser
dolorosa (ou que o não seria, até, para um homem normal), acrescentem-se
ainda outras coisas, complicações, dificuldades de dinheiro
– junte-se isto tudo ao meu temperamento fundamentalmente desequilibrado e
talvez se possa suspeitar qual a intensidade do meu sofrimento.

30.10.08

Uma das minhas complicações mentais mais horrível
do que as palavras podem exprimir é o medo da loucura, o qual,
em si, já é loucura. Encontro-me em parte no estado que Rollinat
denuncia como seu no poema inicial (segundo creio) das suas «Névroses».
Impulsos, alguns deles criminosos, loucos outros, que chegam, por entre o
meu sofrimento excruciante, a uma tendência horrível para a acção,
uma terrível muscularidade, sentida nos músculos, quero eu dizer
eis coisas frequentes em mim, e o seu horror e intensidade
agora maiores do que nunca em número como em intensidade são
indescritíveis.

2

Tenho pensamentos que, pudesse eu trazê-los à luz e dar-lhes
vida, emprestariam nova leveza às estrelas, nova beleza ao mundo, e
maior amor ao coração dos homens.

3

Compromisso entre Alexandre Busca, residente no Inferno, Nenhures, e Jacob
Satanás, senhor, embora não rei, do mesmo lugar:

1. Nunca esmorecer nem recuar no propósito de fazer bem à humanidade.

2. Nunca escrever coisas sensuais, ou más a qualquer outro respeito,
que possam lesar e prejudicar quem as ler.

3. Nunca esquecer, ao atacar a religião em nome da verdade, que a
religião dificilmente pode ser substituída e que o pobre ser
humano chora nas trevas.

4. Nunca esquecer o sofrimento e o padecimento dos homens.

+ A marca de Satanás.

2 de Outubro de 1907
Alexandre Busca

4

A primeira nutrição literária da minha meninice foi
a que se encontrava em numerosos romances de mistério e de aventuras
horríveis. Pouco me interessavam os livros ditos para rapazes e que
relatam vivências emocionantes. Não me atraía a vida saudável
e natural. Anelava, não pelo provável, mas pelo incrível,
nem sequer pelo impossível em grau, mas sim pelo impossível
por natureza.

A minha infância decorreu serena (…), recebi uma boa educação.
Mas, desde que tenho consciência de mim mesmo, apercebi-me de uma tendência
nata em mim para a mistificação, para a mentira artística.
Junte-se a isto um grande amor pelo espiritual, pelo misterioso, pelo obscuro,
que, ao fim e ao cabo, não era senão uma forma e uma variante
daquela outra minha característica, e a minha personalidade será
completa para a intuição.

5

[ms.][1910?]

Eu era um poeta impulsionado pela filosofia, não um filósofo
dotado de faculdades poéticas. Adorava admirar a beleza das coisas,
descortinar no imperceptível, através do que é diminuto,
a alma poética do universo.

A poesia da terra nunca morre. É possível dizermos que as eras
transactas foram mais poéticas, mas podemos dizer (…)

Há poesia em tudo – na terra e no mar, nos lagos e nas margens dos
rios. Há-a também na cidade – não o neguemos – facto
evidente para mim enquanto aqui estou sentado: há poesia nesta mesa,
neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação
dos carros nas ruas; em cada movimento ínfimo, vulgar, ridículo,
de um operário que, do outro lado da rua, pinta a tabuleta de um talho.

O meu sentido interior de tal modo predomina sobre os meus cinco sentidos
que estou convencido vejo as coisas desta vida de modo diferente
do dos outros homens. Existe para mim existia um tesouro de
significado numa coisa tão ridícula como uma chave, um prego
na parede, os bigodes de um gato. Encontro toda uma plenitude de sugestão
espiritual no espectáculo de uma ave doméstica com os seus pintainhos
que, com ar pimpão, atravessam a rua. Encontro um significado mais
profundo do que as lágrimas humanas no aroma do sândalo, nas
latas velhas jazendo numa montureira, numa caixa de fósforos caída
na valeta, em dois papéis sujos que, num dia ventoso, rolam e se perseguem
rua abaixo. É que poesia é espanto, admiração,
como de um ser tombado dos céus em plena consciência da sua queda,
atónito com as coisas. Como de alguém que conhecesse a alma
das coisas e se esforçasse por rememorar esse conhecimento, lembrando-se
de que não era assim que as conhecia, não com estas formas e
nestas condições, mas de nada mais se recordando.

6

[dact.][1910?]

Cumpre-me agora dizer que espécie de homem sou. Não importa
o meu nome, nem quaisquer outros pormenores externos que me digam respeito.
É acerca do meu carácter que se impõe dizer algo.

Toda a constituição do meu espírito é de hesitação
e dúvida. Para mim, nada é nem pode ser positivo; todas as coisas
oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio. Tudo
para mim é incoerência e mutação. Tudo é
mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas as coisas são
«desconhecidas», símbolos do Desconhecido. O resultado
é horror, mistério, um medo por de mais inteligente.

Pelas minhas tendências naturais, pelas circunstâncias que rodearam
o alvor da minha vida, pela influência dos estudos feitos sob o seu
impulso (estas mesmas tendências) por tudo isto o meu carácter
é do género interior, autocêntrico, mudo, não auto-suficiente
mas perdido em si próprio. Toda a minha vida tem sido de passividade
e sonho. Todo o meu carácter consiste no ódio, no horror da
e na incapacidade que impregna tudo aquilo que sou, física e mentalmente,
para actos decisivos, para pensamentos definidos. Jamais tive uma decisão
nascida do autodomínio, jamais traí externamente uma vontade
consciente. Os meus escritos, todos eles ficaram por acabar; sempre se interpunham
novos pensamentos, extraordinárias, inexpulsáveis associações
de ideias cujo termo era o infinito. Não posso evitar o ódio
que os meus pensamentos têm a acabar seja o que for; uma coisa simples
suscita dez mil pensamentos, e destes dez mil pensamentos brotam dez mil interassociações,
e não tenho força de vontade para os eliminar ou deter, nem
para os reunir num só pensamento central em que se percam os pormenores
sem importância mas a eles associados. Perpassam dentro de mim; não
são pensamentos meus, mas sim pensamentos que passam através
de mim. Não pondero, sonho; não estou inspirado, deliro. Sei
pintar mas nunca pintei, sei compor música, mas nunca compus. Estranhas
concepções em três artes, belos voos de imaginação
acariciam-me o cérebro; mas deixo-os ali dormitar até que morrem,
pois falta-me poder para lhes dar corpo, para os converter em coisas do mundo
externo.

O meu carácter é tal que detesto o começo e o fim das
coisas, pois são pontos definidos. Aflige-me a ideia de se encontrar
uma solução para os mais altos, mais nobres, problemas da ciência,
da filosofia; a ideia que algo possa ser determinado por Deus ou pelo mundo
enche-me de horror. Que as coisas mais momentosas se concretizem, que um dia
os homens venham todos a ser felizes, que se encontre uma solução
para os males da sociedade, mesmo na sua concepção enfurece-me.
E, contudo, não sou mau nem cruel; sou louco, e isso duma forma difícil
de conceber.

Embora tenha sido leitor voraz e ardente, não me lembro de qualquer
livro que haja lido, em tal grau eram as minhas leituras estados do meu próprio
espírito, sonhos meus mais, provocações de sonhos.
A minha própria recordação de acontecimentos, de coisas
externas, é vaga, mais do que incoerente. Estremeço ao pensar
quão pouco resta no meu espírito do que foi a minha vida passada.
Eu, um homem convicto de que hoje é um sonho, sou menos do que uma
coisa de hoje.

7

Apontamentos pessoais

[ms.][1910?]

Deixei para trás o hábito de ler. Já nada leio a não
ser um ou outro jornal, literatura ligeira e ocasionalmente livros técnicos
relacionados com o que porventura estudo e em que o simples raciocínio
possa ser insuficiente.

O género definido de literatura quase o abandonei. Poderia lê-lo
para aprender ou por gosto. Mas nada tenho a aprender, e o prazer que se obtém
dos livros é do género que pode ser substituído com proveito
pelo que me pode proporcionar directamente o contacto com a natureza e a observação
da vida.

Encontro-me agora em plena posse das leis fundamentais da arte literária.
Shakespeare já não me pode ensinar a ser subtil, nem Milton
a ser completo. O meu intelecto atingiu uma flexibilidade e um alcance tais
que me permitem assumir qualquer emoção que deseje e penetrar
à vontade em qualquer estado de espírito. Quanto àquilo
por que sempre se luta com esforço e angústia, ser-se completo,
não há livro que valha.

Isto não significa que eu tenha sacudido a tirania da arte literária.
Aceito-a apenas sujeita a mim próprio.

Há um livro de que ando sempre acompanhado«As Aventuras de Pickwick»(2).
Li várias vezes os livros de Mr. W. W. Jacobs. O declínio do
romance policial fechou para sempre uma das minhas portas de acesso à
literatura moderna.

Deixei de me interessar por pessoas que são apenas inteligentes
Wells, Chesterton, Shaw. As ideias desta gente são das que ocorrem
a muitos que não são escritores; a construção
das suas obras é inteiramente um valor negativo.

Tempo houve em que eu lia apenas pela utilidade da leitura, mas agora compreendo
que há pouquíssimos livros úteis, mesmo os que versam
assuntos técnicos que me possam interessar.

A sociologia é […]; quem pode tolerar tal escolástica na
Bizâncio de hoje?

Todos os meus livros são de consulta. Leio Shakespeare apenas em relação
com o «Problema de Shakespeare»; o resto já o sei.

Descobri que a leitura é uma forma servil de sonhar. Se tenho de sonhar,
porque não sonhar os meus próprios sonhos? […]

8

Plano de Vida

[dact.][1913?]

Um plano geral para a vida deve implicar, antes de mais, alcançar-se
qualquer forma de estabilidade financeira. Marquei como limite para essa coisa
humilde a que chamo estabilidade financeira cerca de sessenta dólares
– quarenta para o necessário, e vinte para as coisas supérfluas
da vida. A forma de o alcançar é adicionar aos trinta e um dólares
dos dois escritórios (P & FF) vinte e nove dólares de proveniência
a determinar. Em rigor, para viver apenas, cinquenta dólares bastariam,
pois, tomando trinta e cinco como base necessária, quinze já
davam para o resto.

*

A coisa essencial que vem logo a seguir é residir numa casa com bastante
espaço, espaço quanto a divisões e divisões com
os requisitos necessários, para arrumar todos os meus papéis
e livros na devida ordem; e tudo isto sem grande possibilidade de me mudar
dentro de pouco tempo. Parece que o mais fácil seria alugar eu próprio
uma casa à base de, suponhamos, oito ou, quando muito, nove
dólares e viver lá à vontade, combinando que
me levassem o jantar (e o pequeno-almoço) todos os dias, ou coisa parecida.
Mas seria este sistema absolutamente conveniente?

Substituir, no tocante à ordem dos papéis, a minha caixa grande
por caixas mais pequenas contendo os papéis por ordem de importância.
Na caixa grande e na outra em A. S. ficariam só os jornais e revistas
que guardo.

*

Alugada uma casa, qual o mobiliário? Não seria melhor combinar
de novo as coisas com S? De modo a alcançar isto de que preciso, mudando-nos
nós, se necessário, para tanto?

*

Seja como o Destino quiser.

9

[ms.] [1914?]

Cada vez estou mais só, mais abandonado. Pouco a pouco quebram-se-me
todos os laços. Em breve ficarei sozinho.

*

O meu pior mal é que não consigo nunca esquecer a minha presença
metafísica na vida. De aí a timidez transcendental que me atemoriza
todos os gestos, que tira a todas as minhas frases o sangue da simplicidade,
da emoção directa.

10

[ms.] [1915?]

Há entre mim e o mundo uma névoa que impede que eu veja as
cousas como verdadeiramente são como são para os outros.

Sinto isto.

11

Prefácio (aproveitar para o «Shakespeare»?) (3)

Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino
com uma inteligência masculina. A minha sensibilidade e os movimentos
que dela procedem, e é nisso que consistem o temperamento e a sua expressão,
são de mulher. As minhas faculdades de relação
a inteligência, e a vontade, que é a inteligência do impulso
– são de homem.

Quanto à sensibilidade, quando digo que sempre gostei de ser amado,
e nunca de amar, tenho dito tudo. Magoava-me sempre o ser obrigado, por um
dever de vulgar reciprocidade uma lealdade do espírito
a corresponder. Agradava-me a passividade. De actividade, só me aprazia
o bastante para estimular, para não deixar esquecer-me, a actividade
em amar daquele que me amava.

Reconheço sem ilusão a natureza do fenómeno. É
uma inversão sexual fruste. Pára no espírito. Sempre,
porém, nos momentos de meditação sobre mim, me inquietou,
não tive nunca a certeza, nem a tenho ainda, de que essa disposição
do temperamento não pudesse um dia descer-me ao corpo. Não digo
que praticasse então a sexualidade correspondente a esse impulso; mas
bastava o desejo para me humilhar. Somos váaacute;rios desta espécie,
pela história abaixo – pela história artística sobretudo.
Shakespeare e Rousseau são dos exemplos, ou exemplares, mais ilustres.
E o meu receio da descida ao corpo dessa inversão do espírito
– radica-mo a contemplação de como nesses dois desceu – completamente
no primeiro, e em pederastia; incertamente no segundo, num vago masoquismo.

12

[Carta a Mário Beirão] (4)

Lisboa, 1 de Fevereiro de 1913.

Meu querido Mário Beirão:

Deu-me um grande prazer a sua carta de 25, que há dias recebi. Tinha
muita pena, é certo, que v. não me tivesse escrito ainda, mas,
como eu também lhe não tinha escrito, não me cabia o
direito objectivo de ter essa pena. O pior para mim é que eu, por certo,
sinto mais a falta de correspondência que v. Estou, quanto a companhia
espiritual e imediata, quase só, se não só em absoluto…
Não sou das pessoas menos acompanháveis por si próprias,
mas ainda assim e de vez em quando aborreço-me de não
andar senão comigo.

Por isto a sua carta, ainda que breve, me causou uma grande alegria.

Estou actualmente atravessando uma daquelas crises a que, quando se dão
na agricultura, se costuma chamar «crises de abundância».

Tenho a alma num estado de rapidez ideativa tão intenso que preciso
fazer da minha atenção um caderno de apontamentos, e, ainda
assim, tantas são as folhas que tenho a encher, que algumas se perdem,
por elas serem tantas, e outras se não podem ler depois, por com mais
que muita pressa escritas. As ideias que perco causam-me uma tortura imensa,
sobrevivem-se nessa tortura, escuramente outras. V. dificilmente imaginará
que Rua do Arsenal, em matéria de movimento, tem sido a minha pobre
cabeça. Versos ingleses, portugueses, raciocínios, temas, projectos,
fragmentos de coisas que não sei o que são, cartas que não
sei como começam ou acabam, relâmpagos de críticas, murmúrios
de metafísicas… Toda uma literatura, meu caro Mário, que vai
da bruma para a bruma pela bruma…

Destaco de coisas psíquicas de que tenho sido o lugar, o seguinte
fenómeno que julgo curioso. V. sabe, creio, que de várias fobias
que tive guardo unicamente a assaz infantil mas terrivelmente torturadora
fobia das trovoadas. O outro dia o céu ameaçava chuva e eu ia
a caminho de casa e por tarde não havia carros. Afinal não houve
trovoada, mas esteve iminente e começou a chover – aqueles pingos graves,
quentes e espaçados ia eu ainda a meio do caminho entre a Baixa
e minha casa. Atirei-me para casa com o andar mais próximo do correr
que pude achar, com a tortura mental que v. calcula, perturbadíssimo,
confrangido eu todo. E neste estado de espírito encontro-me a compor
um soneto acabei-o uns passos antes de chegar ao portão de
minha casa , a compor um soneto de uma tristeza suave, calma, que parece
escrito por um crepúsculo de céu limpo. E o soneto é
não só calmo, mas também mais ligado e conexo que algumas
coisas que eu tenho escrito. O fenómeno curioso do desdobramento é
coisa que habitualmente tenho, mas nunca o tinha sentido neste grau de intensidade.
Como prova do género calmo do soneto, aqui lho transcrevo:

ABDICAÇÃO

Toma-me, ó Noite Eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho… Eu sou um Rei
Que voluntàriamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei,
E meu ceptro e coroa – eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas dum tinir tão fútil
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a Realeza, corpo e alma,
E regressei à Noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

Dê saudades minhas ao Vila-Moura e escreva-me breve e o mais extensamente
que puder.

Um grande abraço do seu dedicadíssimo

FERNANDO PESSOA

Rua Passos Manuel, 24, 3.º E.

14

[ms.] [1915?]

Ficarei o Inferno de ser Eu, a Limitação Absoluta, Expulsão-Ser
do Universo longínquo! Ficarei nem Deus, nem homem, nem mundo, mero
vácuo-pessoa, infinito de Nada consciente, pavor sem nome, exilado
do próprio mistério, da própria Vida. Habitarei eternamente
o deserto morto de mim, erro abstracto da criação que me deixou
atrás. Arderá em mim eternamente, inutilmente, a ânsia
(estéril) do regresso a ser.

Não poderei sentir porque não terei matéria com que
sinta, não poderei respirar [?] alegria, ou ódio, ou horror,
porque não tenho nem a faculdade com que o sinta, consciência
abstracta no inferno do não conter nada, não-Conteúdo
Absoluto, [Sufocação] absoluta e eterna! Oco de Deus, sem universo,
(…).

15

[Prece] [ms.] [1912?]

Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte!
O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és
os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também.
Onde nada está tu habitas e onde tudo está (o teu templo)
eis o teu corpo.

Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista
para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento
e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.

Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não
haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos
meus propósitos. Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos
e servir-te como a um pai.

[… ]

Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra,
tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao
lar.

Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me
puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como
o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.

Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor,
livra-me de mim.

16

[ms.] [1914?]

Um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda restam ao que ainda resta
de intelectual na humanidade é a leitura de romances policiais. Entre
o número aúreo e reduzido das horas felizes que a Vida deixa
que eu passe, conto por do melhor ano aquelas em que a leitura de Conan Doyle
ou de Arthur Morrison me pega na consciência ao colo.

Um volume de um destes autores, um cigarro de 45 ao pacote, a ideia de uma
chávena de café-trindade cujo ser-uma é o conjugar a
felicidade para mim resume-se nisto a minha felicidade. Seria pouco
para muitos, a verdade é que não pode aspirar a muito mais uma
criatura com sentimentos intelectuais e estéticos no meio europeu actual.

Talvez seja para os senhores como que causa de pasmo, não o eu ter
estes por meus autores predilectos – e de quarto de cama, mas o eu confessar
que nesta conta pessoal assim os tenho.

17

Estética da abdicação

[dact.] [1913?]

Conformar-se é submeter-se e vencer é conformar-se, ser vencido.
Por isso toda a vitória é uma grosseria. Os vencedores perdem
sempre todas as qualidades de desalento com o presente que os levaram à
luta que lhes deu a vitória. Ficam satisfeitos, e satisfeito só
pode estar aquele que se conforma, que não tem a mentalidade do vencedor.
Vence só quem nunca consegue. Só é forte quem desanima
sempre. O melhor e o mais púrpura é abdicar. O império
supremo é o do Imperador que abdica de toda a vida normal, dos outros
homens, em quem o cuidado da supremacia não pesa como um fardo de jóias.

18

[ms.] 21.11.1914

Hoje, ao tomar de vez a decisão de ser Eu, de viver à altura
do meu mister, e, por isso, de desprezar a ideia do reclame, e plebeia sociabilização
de mim, do Interseccionismo, reentrei de vez, de volta da minha viagem de
impressões pelos outros, na posse plena do meu Génio e na divina
consciência da minha Missão. Hoje só me quero tal qual
meu carácter nato quer que eu seja; e meu Génio, com ele nascido,
me impõe que eu não deixe de ser.

Atitude por atitude, melhor a mais nobre, a mais alta e a mais calma. Pose
por pose, a pose de ser o que sou.

Nada de desafios à plebe, nada de girândolas para o risa ou
a raiva dos inferiores. A superioridade não se mascara de palhaço;
é de renúncia e de silêncio que se veste.

O último rasto de influência dos outros no meu carácter
cessou com isto. Reconheci ao sentir que podia e ia dominar o desejo
intenso e infantil de «lançar o Interseccionismo»
a tranquila posse de mim.

Um raio hoje deslumbrou-me de lucidez. Nasci.

Pertenço a uma geração que ainda está por vir,
cuja alma não conhece já, realmente, a sinceridade e os sentimentos
sociais. Por isso não compreendo como é que uma criatura fica
desqualificada, nem como é que ela o sente. É oca de sentido,
para mim, toda essa (…) das conveniências sociais. Não sinto
o que é honra, vergonha, dignidade. São para mim, como para
os do meu alto nível nervoso, palavras de uma língua estrangeira,
como um som anónimo apenas.

Ao dizerem que me desqualificaram, eu não percebo senão que
se fala de mim, mas o sentido da frase escapa-me. Assisto ao que me acontece,
de longe, desprendidamente, sorrindo ligeiramente das cousas que acontecem
na vida. Hoje, ainda ninguém sente isto; mas um dia virá quem
o possa perceber.

Procurei sempre ser espectador da vida, sem me misturar nela. Assim, a isto
que se passa comigo, eu assisto como um estranho; salvo que tiro dos pobres
acontecimentos que me cercam a volúpia suave (5) de (…).

Não tenho rancor nenhum a quem provocou isto. Eu não tenho
rancores nem ódios. Esses sentimentos pertencem àqueles que
têm uma opinião, ou uma profissão ou um objectivo na vida.
Eu não tenho nada dessas cousas. Tenho na vida o interesse de um decifrador
de charadas.

Mas eu não tenho princípios. Hoje defendo uma cousa, amanhã
outra. Mas não creio no que defendo hoje, nem amanhã terei fé
no que defenderei. Brincar com as ideias e com os sentimentos pareceu-me sempre
o destino supremamente belo. Tento realizá-lo quanto posso.

Nunca me tinha sentido desqualificado. Como lhe agradecer ter-me ministrado
esse prazer! Ele é uma volúpia suave, como que longínqua…

Não nos entendem, bem sei…

… Assim como criador de anarquias me pareceu sempre o papel digno de um
intelectual (dado que a inteligência desintegra e a análise estiola).

20

Crónica da vida que passa (6)

[dact.]

As vezes, quando penso nos homens célebres, sinto por eles toda a
tristeza da celebridade.

A celebridade é um plebeísmo. Por isso deve ferir uma alma
delicada. É um plebeísmo porque estar em evidência, ser
olhado por todos inflige a uma criatura delicada uma sensação
de parentesco exterior com as criaturas que armam escândalo nas ruas,
que gesticulam e falam alto nas praças. O homem que se torna célebre
fica sem vida íntima: tornam-se de vidro as paredes da sua vida doméstica;
é sempre como se fosse excessivo o seu traje; e aquelas suas mínimas
acções ridiculamente humanas às vezes
que ele quereria invisíveis, coa-as a lente da celebridade para espectaculosas
pequenezes, com cuja evidência a sua alma se estraga ou se enfastia.
É preciso ser muito grosseiro para se poder ser célebre à
vontade.

Depois, além dum plebeísmo, a celebridade é uma contradição.
Parecendo que dá valor e força às criaturas, apenas as
desvaloriza e as enfraquece. Um homem de génio desconhecido pode gozar
a volúpia suave do contraste entre a sua obscuridade e o seu génio;
e pode, pensando que seria célebre se quisesse, medir o seu valor com
a sua melhor medida, que é ele-próprio. Mas, uma vez conhecido,
não está mais na sua mão reverter à obscuridade.
A celebridade é irreparável. Dela como do tempo, ninguém
torna atrás ou se desdiz.

E é por isto que a celebridade é uma fraqueza também.
Todo o homem que merece ser célebre sabe que não vale a pena
sê-lo. Deixar-se ser célebre é uma fraqueza, uma concessão
ao baixo-instinto, feminino ou selvagem, de querer dar nas vistas e nos ouvidos.

Penso às vezes nisto coloridamente. E aquela frase de que «homem
de génio desconhecido» é o mais belo de todos os destinos,
torna-se-me inegável; parece-me que esse é não só
o mais belo, mas o maior dos destinos.

Diz-se que os herméticos da Rosa-Cruz, seita esotérica e magista,
descobriram, desde o início dos tempos, o segredo da vida-eterna, o
elixir da vida; que, nunca morrendo, passam de época em época,
através dos ciclos e das civilizações, despercebidos,
nenhuns e, contudo, pela grandeza da cousa transcendental que criaram, maiores
do que os génios todos da evidência humana. Da sua seita é
o preceito, que cumprem, de se não darem nunca a conhecer. A sua presença
eterna, que vive à margem da nossa transiência, vive também
fora da nossa pequenez.

Vão-se-me os olhos da alma nessas figuras supostas e quem
sabe a que ponto reais? que, verdadeiramente, realizam o supremo destino
do homem: o máximo do poder no mínimo da exibição;
o mínimo da exibição por certo, por terem o máximo
do poder. O sentido das suas vidas é divino e longínquo. Apraz-me
crer que eles existam para que possa pensar nobremente da humanidade.

21

[dact.] [Janeiro de 1917?]

Por mim, o meu egoísmo é a superfície da minha dedicação.
O meu espírito vive constantemente no estudo e no cuidado da Verdade,
e no escrúpulo de deixar, quando eu despir a veste que me liga a este
mundo, uma obra que sirva o progresso e o bem da Humanidade. Reconheço
que o sentido intelectual que esse Serviço da Humanidade toma em mim,
em virtude do meu temperamento, me afasta, muitas vezes, das pequenas manifestações
que em geral revelam o espírito humanitário. Os actos de caridade,
a dedicação por assim dizer quotidiana são cousas que
raras vezes aparecem em mim, embora nada haja em mim que represente a negação
delas.

Em todo o caso, reconheço, em justiça para comigo próprio,
que não sou mais egoísta que a maioria dos indivíduos,
e muito menos o sou que a maioria dos meus colegas nas artes e nas letras.
Pareço egoísta àqueles que, por um egoísmo absorvente,
exigem a dedicação dos outros como um tributo.

25

[ms.] [1934?]

Não é que não publique porque não quero: não
publico porque não posso. Não se entendam estas palavras como
dirigidas contra a Comissão de Censura; ninguém tem menos razão
de queixa do que eu dessa Comissão. A Censura obedece, porém,
a directrizes que lhe são superiormente impostas; e todos nós
sabemos quais são, mais ou menos, essas directrizes.

Ora sucede que a maioria das coisas que eu pudesse escrever não poderia
ser passada pela Censura. Posso não poder coibir o impulso de escrevê-las:
domino fàcilmente, porque não o tenho, o impulso de as publicar
nem vou importunar os Censores com matéria cuja publicação
eles teriam forçosamente que proibir.

Sendo assim para quê publicar? Privado de poder publicar o que deveras
interessará o público, que empenho tenho eu em levar a um jornal
qualquer o que, por ilegível, lhe não serve, ou que (…)

Posso, é certo, dissertar livremente (e, ainda assim, só até
certo ponto e em certos meios) sobre a filosofia de Kant (…)

III
Para a Explicação da Heteronímia

1

[ms.] [1915?]

Não sei quem sou, que alma tenho.

Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou
vàriamente outro do que um eu que não sei se existe (se é
esses outros).

Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio.
A minha perpétua atenção sobre mim perpètuamente
me ponta traições de alma a um carácter que talvez eu
não tenha, nem ela julga que eu tenho.

Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos
fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única
anterior realidade que não está em nenhuma e está em
todas.

Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu
sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente,
como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada
[?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.

2

[ms.] [s. d.]

Sê plural como o universo!

3

[dact.] [s. d]

Sendo nós portugueses, convém saber o que é que somos.

a) adaptabilidade, que no mental dá a instabilidade, e portanto a
diversificação do indivíduo dentro de si mesmo. O bom
português é várias pessoas.

b) a predominância da emoção sobre a paixão. Somos
ternos e pouco intensos, ao contrário dos espanhóis – nossos
absolutos contrários – que são apaixonados e frios.

Nunca me sinto tão portuguêsmente eu como quando me sinto diferente
de mim Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Fernando
Pessoa, e quantos mais haja havidos ou por haver.

4

[dact.] [1930?]

Aspectos [Prefácio para a edição projectada das suas
obras]

A obra complexa, cujo primeiro volume é este, é de substância
dramática, embora de forma vária aqui de trechos em
prosa, em outros livros de poemas ou de filosofias.

É, não sei se um privilégio se uma doença, a
constituição mental que a produz. O certo, porém, é
que o autor destas linhas não sei bem se o autor destes livros
nunca teve uma só personalidade, nem pensou nunca, nem sentiu,
senão dramàticamente, isto é, numa pessoa, ou personalidade,
suposta, que mais pròpriamente do que ele próprio pudesse ter
esses sentimentos.

Há autores que escrevem dramas e novelas; e nesses dramas e nessas
novelas atribuem sentimentos e ideias às figuras, que as povoam, que
muitas vezes se indignam que sejam tomados por sentimentos seus, ou ideias
suas. Aqui a substância é a mesma, embora a forma seja diversa.

A cada personalidade mais demorada, que o autor destes livros conseguiu viver
dentro de si, ele deu uma índole expressiva, e fez dessa personalidade
um autor, com um livro, ou livros, com as ideias, as emoções,
e a arte dos quais, ele, o autor real (ou porventura aparente, porque não
sabemos o que seja a realidade), nada tem, salvo o ter sido, no escrevê-las,
o médium de figuras que ele próprio criou.

Nem esta obra, nem as que se lhe seguirão têm nada que ver com
quem as escreve. Ele nem concorda com o que nelas vai escrito, nem discorda.
Como se lhe fosse ditado, escreve; e, como se lhe fosse ditado por quem fosse
amigo, e portanto com razão lhe pedisse para que escrevesse o que ditava,
acha interessante porventura só por amizade o que,
ditado, vai escrevendo.

O autor humano destes livros não conhece em si próprio personalidade
nenhuma. Quando acaso sente uma personalidade emergir dentro de si, cedo vê
que é um ente diferente do que ele é, embora parecido; filho
mental, talvez, e com qualidades herdadas, mas as diferenças de ser
outrem.

Que esta qualidade no escritor seja uma forma da histeria, ou da chamada
dissociação da personalidade, o autor destes livros nem o contesta,
nem o apoia. De nada lhe serviriam, escravo como é da multiplicidade
de si próprio, que concordasse com esta, ou com aquela, teoria, sobre
os resultados escritos dessa multiplicidade.

Que este processo de fazer arte cause estranheza, não admira; o que
admira é que haja cousa alguma que não cause estranheza.

Algumas teorias, que o autor presentemente tem, foram-lhe inspiradas por
uma ou outra destas personalidades que, um momento, uma hora, uns tempos,
passaram consubstancialmente pela sua própria personalidade, se é
que esta existe.

Afirmar que estes homens todos diferentes, todos bem definidos, que lhe passaram
pela alma incorporadamente, não existem – não pode fazê-lo
o autor destes livros; porque não sabe o que é existir, nem
qual Hamlet ou Shakespeare, é que é mais real, ou real na verdade.

Estes livros serão os seguintes, por enquanto: Primeiro, este volume,
«Livro do Desassossego», escrito por quem diz, de si próprio
chamar-se Vicente Guedes; depois «O Guardador de Rebanhos» e outros
poemas e fragmentos do (também, e do mesmo modo, falecido) Alberto
Caeiro, que nasceu próximo de Lisboa em 1889 e morreu onde nascera
em 1915. Se me disserem que é absurdo falar assim de quem nunca existiu,
respondo que também não tenho provas de que Lisboa tenha alguma
vez existido, ou eu que escrevo, ou qualquer cousa quer que seja.

Este Alberto Caeiro teve dois discípulos e um continuador filosófico.
Os dois discípulos, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, seguiram
caminhos diferentes; tendo o primeiro intensificado e tornado artisticamente
ortodoxo o paganismo descoberto por Caeiro, e o segundo, baseando-se em outra
parte da obra de Caeiro, desenvolvido um sistema inteiramente diferente, e
baseado inteiramente nas sensações. O continuador filosófico,
António Mora (os nomes são tão inevitáveis, tão
impostos de fora como as personalidades), tem um ou dois livros a escrever,
onde provará completamente a verdade, metafísica e prática,
do paganismo. Um segundo filósofo desta escola pagã, cujo nome,
porém, ainda não apareceu na minha visão ou audição
interior, dará uma defesa do paganismo baseada, inteiramente, em outros
argumentos.

É possível que, mais tarde, outros indivíduos, deste
mesmo género de verdadeira realidade, apareçam. Não sei;
mas serão sempre bem-vindos à minha vida interior, onde convivem
melhor comigo do que eu consigo viver com a realidade externa. Escuso de dizer
que com parte das teorias deles concordo, e que não concordo com outras
partes. Estas cousas são perfeitamente indiferentes. Se eles escrevem
cousas belas, essas cousas são belas, independentemente de quaisquer
considerações metafísicas sobre os autores «reais»
delas. Se, nas suas filosofias, dizem quaisquer verdades se verdades
há num mundo que é o não haver nada essas cousas
são verdadeiras independentemente da intenção ou da «realidade»
de quem as disse.

Tornando-me assim, pelo menos um louco que sonha alto, pelo mais, não
um só escritor, mas toda uma literatura, quando não contribuísse
para me divertir, o que para mim já era bastante, contribuo talvez
para engrandecer o universo, porque quem, morrendo, deixa escrito um verso
belo deixou mais ricos os céus e a terra e mais emotivamente misteriosa
a razão de haver estrelas e gente.

Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de
génio fazer senão converter-se, ele só, em uma literatura?
Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode
um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou,
quando menos, os seus companheiros de espírito?

Pensei, primeiro, em publicar anònimamente, em relação
a mim, estas obras, e, por exemplo, estabelecer um neopaganismo português,
com vários autores, todos diferentes, a colaborar nele e a dilatá-lo.
Mas, sobre ser pequeno de mais o meio intelectual português, para que
(mesmo sem inconfidências) a máscara se pudesse manter, era inútil
o esforço mental preciso para mantê-la.

Tenho, na minha visão a que chamo interior apenas porque chamo exterior
a determinado «mundo», plenamente fixas, nítidas, conhecidas
e distintas, as linhas fisionómicas, os traços de carácter,
a vida, a ascendência, nalguns casos a morte, destas personagens. Alguns
conheceram-se uns aos outros; outros não. A mim, pessoalmente, nenhum
me conheceu, excepto Álvaro de Campos. Mas, se amanhã eu, viajando
na América, encontrasse subitamente a pessoa física de Ricardo
Reis, que, a meu ver, lá vive, nenhum gesto de pasmo(7) me sairia da
alma para o corpo; estava certo tudo, mas, antes disso, já estava certo.
O que é a vida?

5

[ms.] [1930?]

Aspectos

A série, ou colecção, de livros, cuja publicação
com a destes se inicia, representa, não um processo novo em literatura,
mas uma maneira nova de empregar um processo já antigo.

*

Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto
que pode obrar alguém da humanidade.

*

A confecção destas obras não manifesta um qualquer estado
de opinião metafísica. Quero dizer: com o escrever estes «aspectos»
da realidade, totalizados em pessoas que os tivessem, não pretendo
uma filosofia que insinue que só há de real o haver aspectos
de uma realidade ou ilusiva, ou inexistente. Não tenho, nem essa crença
filosófica, nem a crença filosófica contrária.
Adentro do meu mester, que é literário, sou um profissional,
no sentido superior que o termo tem; isto é, sou um trabalhador científico,
que a si não permite que tenha opiniões estranhas à especialização
literária, a que se entrega. E o não ter nem esta, nem aquela,
opinião filosófica a propósito da confecção
destas pessoas-livros, tão-pouco deve induzir a crer que sou um céptico.
A questão está num plano onde a especulação metafísica,
porque não entra legitimamente, escusa de ter estes, ou aqueles caracteres.
Como o físico não tem metafísica no seu laboratório,
e a não tem o clínico nos diagnósticos que faça,
[?] não porque a não possa ter, mas porque (…) assim o problema
metafísico meu não existe, porque não pode, nem tem que
existir adentro das capas destes meus livros de outros.

6

[Rascunho duma carta a Adolfo Casais Monteiro] [ms.] [1935]

Tive sempre, desde criança, a necessidade de aumentar o mundo com
personalidades fictícias, sonhos meus rigorosamente construídos,
visionados com clareza fotográfica, compreendidos por dentro das suas
almas. Não tinha eu mais que cinco anos, e, criança isolada
e não desejando senão assim estar, já me acompanhavam
algumas figuras de meu sonho um capitão Thibeaut, um Chevalier
de Pas e outros que já me esqueceram, e cujo esquecimento,
como a imperfeita lembrança daqueles, é uma das grandes saudades
da minha vida.

Isto parece simplesmente aquela imaginação infantil que se
entretém com a atribuição de vida a bonecos ou bonecas.
Era porém mais: eu não precisava de bonecas para conceber intensamente
essas figuras. Claras e visíveis no meu sonho constante, realidades
exactamente humanas para mim, qualquer boneco, por irreal, as estragaria.
Eram gente.

Além disto, esta tendência não passou com a infância,
desenvolveu-se na adolescência, radicou-se com o crescimento dela, tornou-se
finalmente a forma natural do meu espírito. Hoje já não
tenho personalidade: quanto em mim haja de humano, eu o dividi entre os autores
vários de cuja obra tenho sido o executor. Sou hoje o ponto de reunião
de uma pequena humanidade só minha.

Trata-se, contudo, simplesmente do temperamento dramático elevado
ao máximo; escrevendo, em vez de dramas em actos e acção,
dramas em almas. Tão simples é, na sua substância, este
fenómeno aparentemente tão confuso.

Não nego, porém favoreço, até ,
a explicação psiquiátrica, mas deve compreender-se que
toda a actividade superior do espírito, porque é anormal, é
igualmente susceptível de interpretação psiquiátrica.
Não me custa admitir que eu seja louco, mas exijo que se compreenda
que não sou louco diferentemente de Shakespeare, qualquer que seja
o valor relativo dos produtos do lado são da nossa loucura.

Médium, assim, de mim mesmo, todavia subsisto. Sou, porém,
menos real que os outros, menos coeso [?], menos pessoal, eminentemente influenciável
por eles todos. Sou também discípulo de Caeiro, e ainda me lembro
do dia-13 de Março de 1914 quando, tendo «ouvido pela
primeira vez» (isto é, tendo acabado de escrever, de um só
hausto do espírito) grande número dos primeiros poemas do «Guardador
de Rebanhos», imediatamente escrevi, a fio, os seis poemas-intersecções
que compõem a «Chuva Oblíqua» («Orpheu»
2), manifesto e lógico resultado da influência de Caeiro sobre
o temperamento de Fernando Pessoa.

7

[s. d.]

Umas figuras insiro em contos, ou em subtítulos de livros, e assino
com o meu nome o que elas dizem; outras projecto em absoluto e não
assino senão com o dizer que as fiz. Os tipos de figuras distinguem-se
do seguinte modo: nas que destaco em absoluto, o mesmo estilo, me é
alheio, e se a figura o pede, contrário, até, ao meu; nas figuras
que subscrevo não há diferença do meu estilo próprio,
senão nos pormenores inevitáveis, sem os quais elas se não
distinguiriam entre si.

Compararei algumas destas figuras, para mostrar, pelo exemplo, em que consistem
essas diferenças. O ajudante de guarda-livros Bernardo Soares e o Barão
de Teive são ambas figuras minhamente alheias escrevem
com a mesma substância de estilo, a mesma gramática e o mesmo
tipo e forma de propriedade: é que escrevem com o estilo que, bom ou
mau, é o meu. Comparo as duas porque são casos de um mesmo fenómeno
a inadaptação à realidade da vida, e, o que é
mais, a inadaptação pelos mesmos motivos e razões. Mas,
ao passo que o português é igual no Barão de Teive e em
Bernardo Soares, o estilo difere em que o do fidalgo é intelectual,
despido de imagens, um pouco como o direi?, hirto e restrito; e o do burguês
é fluido, participando da música e da pintura, pouco arquitectural.
O fidalgo pensa claro, escreve claro, e domina as suas emoções,
se bem que não os seus sentimentos: o guarda-livros nem emoções
nem sentimentos domina, e quando pensa é subsidiariamente a sentir.

Há notáveis semelhanças, por outra, entre Bernardo Soares
e Álvaro de Campos. Mas, desde logo, surge em Álvaro de Campos
o desleixo do português, o desatado das imagens, mais íntimo
e menos propositado que o de Soares.

Há acidentes do meu distinguir uns de outros que pesam como grandes
fardos no meu discernimento espiritual. Distinguir tal composição
musicante de Bernardo Soares de uma composição de igual teor
que é a minha.

Há momentos em que o faço repentinamente, com uma perfeição
de que pasmo; e pasmo sem imodéstia, porque, não crendo em nenhum
fragmento de liberdade humana, pasmo do que se passa em mim como pasmaria
do que se passasse em outros em dois estranhos.

Só uma grande intuição pode ser bússola nos descampados
da alma; só com um sentido que usa da inteligência, mas se não
assemelha a ela, embora nisto com ela se funda, se pode distinguir estas figuras
de sonho na sua realidade de uma a outra.

*

Nestes desdobramentos de personalidade ou, antes, invenções
de personalidades diferentes, há dois graus ou tipos, que estarão
revelados ao leitor, se os seguiu, por características distintivas.
No primeiro grau, a personalidade distingue-se por ideias e sentimentos próprios,
distintos dos meus, assim como, em mais baixo nível desse grau, se
distingue por ideias, postas em raciocínio ou argumento, que não
são minhas, ou, se o são, o não conheço. O Banqueiro
Anarquista é um exemplo deste grau inferior; o Livro do Desassossego,
e a personagem Bernardo Soares, são o grau superior.

Há o leitor de reparar que, embora eu publique (publicasse) o Livro
do Desassossego como sendo de um tal Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros
na cidade de Lisboa, o não incluí todavia nestas «Ficções
do Interlúdio». É que Bernardo Soares, distinguindo-se
de mim por suas ideias, seus sentimentos, seus modos de ver e de compreender,
não se distingue de mim pelo estilo de expor. Dou a personalidade diferente
através do estilo que me é natural, não havendo mais
que a distinção inevitável do tom especial que a própria
especialidade das emoções necessariamente projecta.

Nos autores das «Ficções do Interlúdio»
não são só as ideias e os sentimentos que se distinguem
dos meus: a mesma técnica da composição, o mesmo estilo,
é diferente do meu. Aí cada personagem é criada integralmente
diferente, e não apenas diferentemente pensada. Por isso nas «Ficções
do Interlúdio» predomina o verso. Em prosa é mais difícil
de se outrar.

*

Dividiu Aristóteles a poesia em lírica, elegíaca, épica
e dramática. Como todas as classificações bem pensadas,
é esta útil e clara; como todas as classificações,
é falsa. Os géneros não se separam com tanta facilidade
íntima, e, se analisarmos bem aquilo de que se compõem, verificaremos
que da poesia lírica à dramática há uma gradação
contínua. Com efeito, e indo às mesmas origens da poesia dramática
Ésquilo por exemplo será mais certo dizer que
encontramos poesia lírica posta na boca de diversos personagens.

O primeiro grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, concentrado
no seu sentimento, exprime esse sentimento. Se ele, porém, for uma
criatura de sentimentos variáveis e vários, exprimirá
como que uma multiplicidade de personagens, unificadas somente pelo temperamento
e o estilo. Um passo mais, na escala poética, e temos o poeta que é
uma criatura de sentimentos vários e fictícios, mais imaginativo
do que sentimental, e vivendo cada estado de alma antes pela inteligência
que pela emoção. Este poeta exprimir-se-á como uma multiplicidade
de personagens, unificadas, não já pelo temperamento e o estilo,
pois que o temperamento está, substituído pela imaginação,
e o sentimento pela inteligência, mas tão-somente pelo simples
estilo. Outro passo na mesma escala de despersonalização, ou
seja de imaginação, e temos o poeta que em cada um dos seus
estados mentais vários se integra de tal modo nele que de todo se despersonaliza,
de sorte que, vivendo analiticamente esse estado da alma, faz dele como que
a expressão de um outro personagem, e, sendo assim, o mesmo estilo
tende a variar. Dê-se o passo final, e teremos um poeta que sela vários
poetas, um poeta dramático escrevendo em poesia lírica. Cada
grupo de estados de alma mais aproximados insensivelmente se tornará
uma personagem, com estilo próprio, com sentimentos porventura diferentes,
até opostos, aos típicos do poeta na sua pessoa viva. E assim
se terá levado a poesia lírica ou qualquer forma literária
análoga em sita substância à poesia lírica
até à poesia dramática, se todavia se lhe dar a forma
de drama, nem explícita nem implicitamente.

Suponhamos que um supremo despersonalizado, como Shakespeare, em vez de criar
o personagem de Hamlet como parte de um drama, o criava como simples personagem,
sem drama. Teria escrito, por assim dizer, um drama de uma só personagem,
um monólogo prolongado e analítico. Não seria legítimo
ir buscar a esse personagem uma definição dos sentimentos e
dos pensamentos de Shakespeare, a não ser que o personagem fosse falhado,
porque o mau dramaturgo é o que se revela.

Por qualquer motivo temperamental que me não proponho analisar, nem
importa que analise, construí dentro de mim várias personagens
distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas
vários que não são como eu, nos meus sentimentos e ideias,
os escreveria.

Assim têm estes poemas de Caeiro, os de Ricardo Reis e os de Álvaro
de Campos que ser considerados. Não há que buscar em quaisquer
deles ideias ou sentimentos meus, pois muitos deles exprimem ideias que não
aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como
estão, que é aliás como se deve ler.

Um exemplo: escrevi com sobressalto e repugnância o poema oitavo do
«Guardador de Rebanhos», com a sua blasfémia infantil e
o seu antiespiritualismo absoluto. Na minha pessoa própria, e aparentemente
real, com que vivo social e objectivamente, nem uso da blasfémia, nem
sou antiespiritualista. Alberto Caeiro, porém, como eu o concebi, é
assim: assim tem pois ele que escrever, quer eu queira, quer não, quer
eu pense como ele ou não. Negar-me o direito de fazer isto seria o
mesmo que negar a Shakespeare o direito de dar expressão à alma
de Lady Macbeth, com o fundamento de que ele, poeta, nem era mulher, nem,
que se saiba, histero-epiléptico, ou de lhe atribuir uma tendência
alucinatória e uma ambição que não recua perante
o crime. Se assim é das personagens fictícias de um drama, é
igualmente lícito das personagens fictícias sem drama, pois
que é lícito porque elas são fictícias e não
porque estão num drama.

Parece escusado explicar uma coisa de si tão simples e intuitivamente
compreensível. Sucede, porém, que a estupidez humana é
grande, e a bondade humana não é notável.

VI

Para a comprensão de Alberto Caeiro

[Ricardo Reis: Alberto Caeiro] [dact. com anotações manuscritas] [s. d.]

Alberto Caeiro da Silva nasceu em Lisboa a (…) de Abril de 1889, e nessa
cidade faleceu, tuberculoso, em (…) de (…) 1915. A sua vida, porém,
decorreu quase toda numa quinta do Ribatejo (?); só os últimos
meses dele foram de novo passados na sua cidade natal. Ali foram escritos
quase todos os seus poemas, os do livro intitulado «O Guardador de Rebanhos»,
os do livro, ou o quer que fosse, incompleto, chamado «O Pastor Amoroso»,
e alguns, os primeiros, que eu mesmo, herdando-os para publicar, com todos
os outros, reuni sob a designação, que Álvaro de Campos
me sugeriu bem, de «Poemas Inconjuntos». Os últimos poemas,
a partir daquele numerado (…), são porém produto do último
período da vida do autor, de novo passado em Lisboa. Julgo de meu dever
estabelecer esta breve distinção, pois alguns desses últimos
poemas revelam, pela perturbação da doença, uma novidade
um pouco estranha ao carácter geral da obra, assim em natureza como
em direcção.

A vida de Caeiro não pode narrar-se pois que não há
nela de que narrar. Seus poemas são o que houve nele de vida. Em tudo
mais não houve incidentes, nem há história. O mesmo breve
episódio, improfícuo e absurdo, que deu origem aos poemas de
«O Pastor Amoroso», não foi um incidente, senão,
por assim dizer, um esquecimento.

A obra de Caeiro representa a reconstrução integral do paganismo,
na sua essência absoluta, tal como nem os gregos nem os romanos, que
viveram nele e por isso o não pensaram, o puderam fazer. A obra, porém,
e o seu paganismo, não foram nem pensados nem até sentidos:
foram vindos com o que quer que seja que é em nós mais profundo
que o sentimento ou a razão. Dizer mais fora explicar, o que de nada
serve; afirmar menos fora mentir. Toda obra fala por si, com a voz que lhe
é própria, e naquela linguagem em que se forma na mente; quem
não entende não pode entender, e não há pois que
explicar-lhe. É como fazer compreender a alguém um idioma que
ele não fala.

Ignorante da vida e quase ignorante das letras, quase sem convívio
nem cultura, fez Caeiro a sua obra por um progresso imperceptível e
profundo, como aquele que dirige, através das consciências inconscientes
dos homens, o desenvolvimento lógico das civilizações.
Foi um progresso de sensações, ou, antes, de maneiras de as
ter, e uma evolução íntima de pensamentos derivados de
tais sensações progressivas. Por uma intuição
sobre-humana, como aquelas que fundam religiões, porém a que
não assenta o título de religiosa, por isso que repugna toda
a religião e toda a metafísica, este homem descreveu [??] o
mundo sem pensar nele, e criou um conceito do universo que não contém
uma interpretação. [?]

Pensei, quando primeiro me foi entregada a empresa de publicar estes livros,
em fazer um largo estudo crítico e excursivo sobre a obra de Caeiro
e a sua natureza e natural destino. Porém não pude fazer estudo
algum que me satisfizesse.

Pesa-me que a razão me compila a dizer estas nenhumas palavras (este
pouco de palavras) ante a obra do meu Mestre, de não poder escrever,
de útil ou de necessário, mais que disse, com o coração,
na Ode (…) do Livro I meu, com a qual choro o homem que foi para mim, como
virá a ser para mais que muitos, o revelador da Realidade, ou, como
ele mesmo disse, «o Argonauta das sensações verdadeiras»
– o grande Libertador, que nos restituiu, cantando, ao nada luminoso que somos;
que nos arrancou à morte e à vida, deixando-nos entre as simples
coisas, que nada conhecem, em seu decurso, de viver nem de morrer; que nos
livrou da esperança e da desesperança, para que nos não
consolemos sem razão nem nos entristeçamos sem causa; convivas
com ele, sem pensar, da necessidade objectiva do Universo.

Dou a obra, cuja edição me foi cometida, ao acaso fatal do
mundo. Dou-a e digo:

Alegrai-vos, todos vós que chorais na maior das doenças da
História!

O grande Pã renasceu!

Esta obra inteira é dedicada
por desejo do próprio autor
à memória de
Cesário Verde.

NOTAS

1 Título de um longo poema inglês da primeira mocidade.

2 Romance de Charles Dickens.

3 O título alude a um opúsculo sobre o problema shakesperiano,
de que ficaram fragmentos no espólio.

4 Publicada no «Diário Popular» de 28-11-1957.
As cartas restantes de F. Pessoa a Mário Beirão vão ser
incluídas noutra colectânea de prosas inéditas.

5 Var.: acre.

6 Escrita para «O Jornal», em 1915, não chegou
a ser publicada.

7 No texto vem «mesmo», decerto por distracção
de Pessoa ao escrever à máquina.

Pessoa e o Fado: um depoimento de 1929

No seu número de 14 de Abril de 1929, publicou o «Notícias
Ilustrado», revista semanal editada pelo «Diário de Notícias»
e dirigida por Leitão de Barros, uma vasta recolha de documentos e
depoimentos sobre o fado. Leite de Vasconcellos, Campos Monteiro, António
Botto, Augusto de Santa Rita, Teixeira de Pascoaes, Stuart Carvalhaes, e muitos
outros (como Almada ou Jorge Barradas que colaboraram com desenhos) vieram
alimentar a já acesa polémica que, por essa altura, envolvia
o assunto.

Fernando Pessoa apareceu, também, com uma deliciosa declaração
«mensageira» que, pairando acima de defensores e de atacantes,
põe em prática a sua habitual argumentação cortante
e paradoxal. Ei-la:

«Toda a poesia – e a canção é uma poesia ajudada
– reflecte o que a alma não tem. Por isso a canção dos
povos tristes é alegre, e a canção dos povos alegres
é triste.

O Fado, porém, não é alegre nem triste. É um
episódio de intervalo. Formou-o a alma portuguesa quando não
existia e desejava tudo sem ter forças para o desejar.

As almas fortes atribuem tudo ao Destino; só os fracos confiam na
vontade própria, porque ela não existe.

O fado é o cansaço de alma forte, o olhar de desprezo de Portugal
ao Deus em que creu e que também o abandonou.

No fado os Deuses regressam, legítimos e longínquos. É,
esse o segundo sentido da figura de El-Rei D. Sebastião.

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