Contrastes e Confrontos – Euclides da Cunha

 

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Euclides da Cunha

HERÓIS E BANDIDOS

Num dia de setembro de 1820 chegou à tristonha Assunção, do Dr. Francia, um prisioneiro ilustre e sexagenário, a quem, entretanto, não se concedera o preito da mais diminuta escolta. Vinha só; passou, a cavalo, pelas longas ruas retilíneas e retangularmente cruzadas, entre janelas de grades, à maneira de extensos corredores de uma prisão vastíssima, e descavalgou no largo onde se erige o palácio do governo.

Viu-se então que a idade o não abatia. Num desempeno de rapaz atlético aprumava-se-lhe a estatura elegantíssima entre as voltas do poncho desbotado que lhe desciam ate. às botas de viagem, flexíveis e armadas das rosetas largas das esporas retinindo ao compasso de um andar seguro.

Grande sombrero de abas derribadas cobria-lhe a meio a face magra; e naquela lace rígida, cindida de linhas incisivas e firmes – como se um buril maravilhoso ali rasgasse a imagem da bravura, num bloco palpitante de músculos e nervos – um olhar dominador e duro, velado de tristeza indescritível.

Era José Artigas, o motim feito homem, o primeiro molde dos caudilhos,
primeiro resultado dessa combinação híbrida e anacrônica
de D. Quixote, do Cid e de Hernani – a idealização doentia,
a coragem esplendorosa e o banditismo romântico – indo perpetuar na
América a ociosidade turbulenta, a monomania da glória e o anelo
de combates que sacrificaram a Espanha do século XVII.
Correra-lhe a vida aventurosa e tumultuaria. Chefe de contrabandistas arremessado
à ventura pelas cochilhas da Banda Oriental e do Rio Grande, transformara-se
logo depois, com o mais doloroso espanto dos quadrilheiros condutícios,
em capitão de carabineiros da metrópole que o captara, impondo-lhe
o exercitar sobre os antigos sócios de desmandos uma fiscalização
incorruptível e feroz, até que se voltasse contra a mesma metrópole,
transmudado em tenente-coronel revolucionário, e avantajando-se aos
maiores demolidores do antigo vice-reinado, ou se transfigurasse de chofre
em general, “yef de los Orientales y protector de las ciudads libres”,
arremetendo com os irmãos de armas da véspera e destruindo a
solidariedade platina, com o afastamento do Uruguai.
Salteador, policial, revolucionário, chefe de governo.. – Por fim,
caiu. A tática estonteadora quebraram-lha os voluntários reais
de Lecor, endurecidos na disciplina incoercível de Beresford; e traído
pelos seus melhores sequazes, sem exército e sem lar, errante e perseguido,
viera bater às portas do seu mais sinistro adversário, a quem
tanto afrontara nas antigas tropelias.
O ditador não lhe apareceu, mas não o repeliu: mandou-o para
um convento.
Extraordinário e enigmático Dr. Francia! Este ato denuncia-lhe
do mesmo passo a índole retrincada, a ironia diabólica e a ríspida
educação política que tanto o incompatibilizava com o
heroísmo criminoso daqueles esmaniados cavaleiros andantes da liberdade.
Entre o borzeguim esmoedor e a estrapada desarticuladora só lhe dependiam
de um gesto todos os requintes das torturas: escolheu uma cela e constringiu
ali dentro, entre paredes nuas, sobre alguns metros quadrados de soalho, uma
vida que se agitara desafogadamente nos cenários amplíssimos
dos pampas.
A vingança era, como se vê, antes de tudo, uma lição
duríssima, mas foi improdutiva.
Artigas deixara no estado Oriental o seu melhor discípulo, Fructuoso
Rivera, e em torno deste e de seu êmulo e companheiro de armas, Lavalleja,
veio desdobrando-se até ao nosso tempo esta interessantíssima
frandula de heróicos degenerados que invadem desabaladamente a história,
fugindo da polícia correcional, e vem desfilando ante a civilização,
surpreendida, sob aspectos vários, que vão do astucioso Urquiza
a esse desassombrado Aparicio, que nesta hora convulsiona to das as paragens
entre o Taquerembó e o Salto.
Em todos, uniformes na disparidade dos tempera mentos, do sanguinário
Oribe ao destemeroso Lavalleja, que nos arrebatou a Cisplatina, os mesmos
traços característicos: a combatividade irrequieta, a bravura
astuciosa e a ferocidade não raro sulcada de inexplicáveis lances
generosos.
Traçar-lhes a história é fazer em grande parte a nossa
mesma história militar. Quase toda a nossa atividade guerreira tem
sido uma diretriz predominante naquela fronteira perturbadíssima do
Rio Grande, ha cem anos batida a patas de cavalos, e estirando-se como longo
diafragma por onde nos penetra, numa permanente endosmose, o espírito
febril da caudilhagem, obrigando-nos por vezes a colaborar também,
a pontaços de lanças, naquelas revoluções crônicas
e naquele regime clássico de tropelias.
Ali, na longa faixa que se estira de Jaguarão ao Quaraim, o gaúcho
resume, na envergadura possante e no ânimo resoluto e inquieto, os traços
proeminentes de dois povos. Não ha destaca-los às vezes. O bravo
e versátil Rivera copia servilmente o versátil e bravo Bento
Manoel; Lavalleja, um Bayard vibrátil e volúvel, afeiçoado
a todas as temeridades, se acaso o nobilitasse a disciplina, irromperia na
figura escultural do primeiro Mena Barreto.
Ainda agora o Aparicio oriental tem uma larva, o João Francisco rio-grandense:
acorrentai o primeiro num posto sedentário, e terei o molosso ferocíssimo
da fronteira; arremessai o segundo pelo revesso das cochilhas, e vereis o
caudilho…
Daí as surpresas que muitas vezes nos saltearam naquelas bandas. Notemos
uma, de relance. A guerra do Paraguai, em que pese aos seus velhos antecedentes,
teve, inegavelmente, um prelúdio muito expressivo nas ruidosas “californias”,
que arrebataram os nossos bravos patrícios aos entreveros entre blancos
e cobrados. A primeira bandeira que ali congregou brasileiros e orientais
foi o pala do general Flores, desdobrado e ruflando nas correrias vertiginosas.
E quaisquer que fossem depois os milagres de uma diplomacia que desde 1853
e 185S vinha lentamente suplantando o malmequer e a vesania de Lopez, talvez
não nô-lo impedisse mais, desde a hora em que os pealadores de
um e de outro lado, guascas e gringos, mas uniformemente gaúchos, entrelaçassem,
sobre o solo vibrante das campinas, os laços e as bolas silvantes,
objetivando a fraternidade sanguinolenta que os atrai àqueles trágicos
divertimentos, e às arrancadas súbitas, e às batalhas
originalíssimas e minúsculas dispersas em torneios céleres,
feitas de perseguições e de fugas, e nas quais raro se queima
um único cartucho, porque ao lidador selvagem o que sobretudo apraz
é desfechar sobre o contrário os golpes simultâneos de
cinco armas formidáveis – a lança e as quatro patas do cavalo…
Ora, esta identidade de estímulos, efeito de antiquíssimo contagio,
reveste-nos de importância considerável a situação
atual do Uruguai. Entretanto, atraída por outros sucessos, toda volvida
para a Amazônia ameaçada, ou para o enorme duelo do Extremo Oriente,
a opinião geral mal se impressiona com aquelas desordens. Um ou outro
telegrama, impertinente e mal lido, entre outros casos de maior monta, nos
denuncia de longe em longe que o caudilho rebelado ainda respira.
A despeito de não sabermos quantas derrotas para logo corridas com
outras tantas fugas triunfais, rompendo entre as tropas do governo vitoriosas
e desapontadas – no “Passo dos Carros” em Taquarembó, em
Daymam, em Salto, em Santa Luzia e em Santa Rosa, na Concórdia, no
Aceguai e em toda a parte – a revolta irradia para todos os lados, intangível
e invencível, espalhando alarmas desde Montevidéu, inopinadamente
ameaçada de um assalto, às remotas povoações e
estâncias do interior, de súbito despertadas pelo tradicional
ahy vienem! que há um século por ali espalha e atira fora dos
lares as gentes retransidas de espanto ante o estrupido dos cavaleiros errantes
e ferozes…
Vencido pelo general Moniz desde os primeiros dias da luta; acutilado, e algumas
vezes morto a golpes de telegramas; erradio, ou fugindo com os restos de uma
tropa desmoralizada, para o abrigo da nossa fronteira salvadora, Aparício
Saraiva recorda uma paródia grosseira do herói macabro do “Romancero”,
morto e espavorindo os inimigos.
Pelo menos a sua revolução, tantas vezes destruída e
tantas vezes renascente, tem a estrutura privilegiada dos polipos: despedaçá-la
é multiplicá-la.
Ainda neste momento, rijamente repelido do Salto, este combate perdido parece
ter tido o efeito único de remontar-lhe a cavalhada, permitindo-lhe
a divisão das forças em três corpos que, dirigidos por
ele, por Lamas e Muñoz, vão refluir de novo sobre todo o Uruguai
e reeditar a mesmice inaturável das refregas inúteis e das correrias
e das derrotas e das eternas vitórias telegráficas – enfeixadas
todas numa anarquia deplorável cujo termo e cujas conseqüências
dificilmente se prevêem.
Lutas à gandaia, adstritas ao sustento aleatório das estâncias
saqueadas, em que o soldado surge pronto de todos os lados, laçando
os adversários como laça os touros bravios, combatendo ou “parando
o rodeio”, sem notar diferenças nas azáfamas perigosas,
elas podem prolongar-se indefinidamente.
Bastam-lhes como recursos únicos alguns ginetes ensofregados e a pampa:
a disparada violenta e o plaino desimpedido; a velocidade e a amplidão…
Daí os seus principais inconvenientes. O duradouro dessas desordens
à ourela de uma fronteira agitada fez sempre a mais prejudicial dissipação
dos nossos esforços e do nosso valor.
Quando se traçar o quadro emocionante das nossas campanhas do sul,
que vêm, desde as arrancadas na colônia do Sacramento, desdobrando-se
numa interminável série de conflitos sulcados de armistícios
e de desfalecimentos, ver-se-á que aos nossos melhores generais coube
sempre o arriscadíssimo papel de uns tenazes e brilhantes caçadores
de caudilhos e de tiranos irrequietos.
Felizmente, mudaram-se os tempos.
E certo não mais nos atrairão a dispendiosas aventuras aqueles
estonteados heróis, singulares revenants, que nestes tempos de utilitarismo
positivo exigem apenas, prosaicamente, e de acordo com a lição
memorável de Francia, um termo de bem viver e uma cadeia.

O MARECHAL DE FERRO

No meio em que surgiu, o marechal Floriano Peixoto sobressaía pelo
contraste. Era um impassível, um desconfiado e um cético, entre
entusiastas ardentes e efêmeros, no inconsistente de uma época
volvida a todos os ideais, e na credulidade quase infantil com que consideramos
os homens e as coisas. Este antagonismo deu-lhe o destaque de uma glória
excepcionalíssima. Mais tarde o historiador não poderá
explicá-la.
O herói, que foi um enigma para os seus contemporâneos pela circunstância
claríssima de ser um excêntrico entre eles, será para
a posteridade um problema insolúvel pela inópia completa de
atos que justifiquem tão elevado renome. E um dos raros casos de grande
homem que não subiu, pelo condensar no âmbito estreito da vida
pessoal as energias dispersas de um povo. Na nossa translação
acelerada para o novo regime ele não foi uma resultante de forças,
foi uma componente nova e inesperada que torceu por algum tempo os nossos
destinos.
Assim considerado, é expressivo. Traduz de modo admirável, ao
invés da sua robustez, a nossa fraqueza.
O seu valor absoluto e individual reflete na história a anomalia algébrica
das quantidades negativas: cresceu, prodigiosamente, à medida que prodigiosamente
diminuiu a energia nacional. Subiu, sem se elevar – porque se lhe operara
em torno uma depressão profunda. Destacou-se à frente de um
país, sem avançar – porque era o Brasil quem recuava, abandonando
o traçado superior das suas tradições…
Diante da sua figura insolúvel e dúbia, os revolucionários
apreensivos traçavam na tarde de 14 de novembro o ponto de interrogação
das dúvidas mais cruéis, e ao meio-dia de 15 de novembro os
pontos de admiração dos máximos entusiasmos. Não
se conhece transformação, ao mesmo passo, tão repentina
e tão explicável.
Sobretudo explicável. O seu prestígio nascera paradoxalmente
antes da revolução. Sabia-se, ou conjecturava-se, que sobre
o regime condenado velava, imperceptível, aquela astúcia silenciosa,
formidável e cauta, contraminando talvez dentro do próprio exército
o traço subterrâneo da revolta; ou acompanhando-o talvez, linha
por linha, ponto por ponto, num paralelismo assombroso, e no prodígio
de conspirar contra a conspiração, ajustando soturnamente o
rigorismo da lei ao lado clã rebeldia incauta, de modo que, ao estalar,
tivesse de improviso, em cima, irrompendo da sombra, a mão possante
que a jugularia.
Esta dúvida, ou dolorosíssima suspeita – sabem-no todos os revolucionários,
embora muitos a negassem depois – era a mais inibitória incerteza entre
tantas outras que nos manietavam.
Revela-o um incidente inapreciável como muitos outros, porque o 15
de novembro foi uma glorificação exagerada de minúcias:

Na véspera daquele dia, às 10 horas da noite, toda a segunda
brigada, em plena revolta, estava em forma e pronta para a marcha. Mas antes
de a realizar sucedeu o fato ilógico e inverossímil de seguir
um capitão mandado pelos chefes revolucionários, a participar
o acontecimento ao próprio ajudante general de exército, ao
marechal Floriano. Por um impulso idêntico ao do criminoso que segue,
num automatismo doentio, a confessar o crime ao juiz que o apavora, a conspiração
denunciava-se. Atirava aquela cartada arriscadíssima; iludia o temor
do adversário procurando-o; trocava a expectativa do perigo pelo perigo
franco.
Mas nada conseguiu. Diante do oficial rebelde que viera de S. Cristóvão
a procurá-lo, encontrando-o na única sala que se destacava iluminada
no vasto quartel do campo de Santana imerso na mais profunda treva – o marechal
Floriano apareceu ainda mais indecifrável. Determinou com a palavra
indiferente de quem dá a mais desvaliosa ordem a uma ordenança,
que se desarmasse a brigada sediciosa. Mas não fez a recriminação
mais breve, ou traiu o mais fugitivo espanto; e não prendeu o parlamentário
indisciplinado que ao sair adivinhou adensados no escuro, dentro, no vasto
pátio interno, todos os batalhões de infantaria, com as espingardas
em descanso, e de baionetas caladas onde se joeirava salteadamente, em súbitos
reflexos, o brilho das estrelas…
A consulta à esfinge complicara o enigma. Como interpretar-se aquela
ordem apenas balbuciada pela primeira autoridade militar rodeada da parte
mais numerosa da guarnição que os regimentos levantados iriam
encontrar vigilante e firme nas formaturas rigorosas?…
A revolta desencadeou-se nesta indecisão angustiosa, e foi quase um
arremesso fatalista para a derrota.
Porque a vitória foi uma surpresa; e desfechara-a precisamente o homem
singular que equilibrara até o último minuto a energia governamental
e a onda revolucionária – até transmudar a própria infidelidade
no fiel único da situação, de súbito inclinado
para a última.
Este golpe teatral, deu-o com a impassibilidade costumeira; mas foi empolgante.
Minutos depois, quando diante do ministério vencido o marechal Deodoro
alteava a palavra imperativa da revolução, não era sobre
ele que convergiam os olhares, nem sobre Benjamin Constant, nem sobre os vencidos-mas
sobre alguém que a um lado deselegantemente revestido de uma sobrecasaca
militar folgada, cingida de um talim frouxo de onde pendia tristemente urna
espada, olhava para tudo aquilo com uma serenidade imperturbável. E
quando, algum tempo depois, os triunfadores, ansiando pelo aplauso de uma
platéia que não assistira ao drama, saíram pelas ruas
principais do Rio – quem quer que se retardasse no quartel-general veria sair
de um dos repartimentos, no ângulo esquerdo do velho casarão,
o mesmo homem, vestido à paisana, passo tranqüilo e tardo, apertando
entre o médio e índex um charuto consumido a meio, e seguindo
isolado para outros rumos, impassível, indiferente, esquivo…
E foi assim – esquivo, indiferente e impassível – que ele penetrou
na História.

***

Vimo-lo depois, de perto, na conspiração contra o golpe de
estado de 3 de novembro.
A sua casa no Rio Comprido era o centro principal da resistência. Ia-se
para lá de dia, em plena luz: nenhuns resguardos, nenhuma dessas cautelas,
e ânsias, ou sobressaltos, com os quais numa conspiração
se romanceiam os perigos. Os conspiradores iam, prosaicamente, de bonde; saltavam
num portão, à direita; galgavam uma escada lateral, de pedra;
e viam-se a breve trecho num salão modesto, com a mobília exclusiva
de um sofá, algumas cadeiras e dois aparadores vazios. Lá dentro,
janelas largamente abertas, como se se tratasse da reunião mais lícita,
rabeava ferozmente a rebeldia: gisavam-se planos de combate; balanceavam-se
elementos, ou recursos; pesavam-se incidentes mínimos; trocavam-se
alvitres, denunciavam-se trânsfugas, enumeravam-se adeptos, e nas palestras
esparsas em grupos febricitantes vibrava longamente este entusiasmo despedaçado
de temores que trabalha as almas revolucionárias.
De repente, uma ducha enregelada: aparecia o marechal Floriano com o seu aspecto
característico de eterno convalescente e o seu olhar perdido caindo
sobre todos sem se fitar em ninguém. Sentava-se, vagarosamente; e no
silêncio, que se formava de súbito, lançava uma longa
e pormenorizada resenha dos achaques que o vitimavam. Era desalentador.
Passado, porém, aquele sobressalto invertido, aquela quietude alarmante
e aquela calma impertinente, mais cruciante do que a ansiedade anterior, renovava-se
a agitação – e no gisarem-se planos, no balancearem-se recursos,
no pesarem-se todos os incidentes, no contraposto, no revolto, no desordenado,
nos diálogos esparsos; ou cruzando-se, ou afinal fundidos na palavra
única de alguém que atirava, de golpe, entre os grupos, uma
notícia emocionante, naquele tumulto, o homem que era a nossa esperança
mais alta lançava avaramente um monossílabo, um não apagado,
um sim imperceptível no balanço fugitivo da cabeça, ou
abria a encruzilhada de um talvez…
Saía-se jurando que estava na sala um traidor, impossibilitando-lhe
o livre curso das idéias. Porque, isoladamente, a cada um dos que lá
iam, ele se manifestava com a sua lucidez incomparável.
Aceitava-se um a um; repelia-nos unidos. E a pouco e pouco naquele retrair-se
cauteloso, naquele escorregar precavido sobre todas as questões que
se lhe propunham na reunião revolucionária, tão diferente
do firme, do definido e do claro de pensar, que, parceladamente, manifestava
a cada um dos que a constituíam, ele foi infiltrando na conspiração
a sua índole retrátil e precatada. Por fim – confiava-se no
melhor companheiro da véspera… desconfiando.
E natural que a trama sediciosa se alastrasse durante vinte dias, inteiramente
às claras e imperceptível; e que ao irromper a 23 de novembro
o movimento da Armada – simples remate teatral da mais artística das
conspirações – o marechal Floriano, imutável na sua placabilidade
temerosa, seguisse triunfal e tranqüilo para tomar o governo, “obedecendo”
a um chamado do Itamarati, espantosamente disciplinado no fastígio
da rebeldia que alevantara – e indo depor o marechal Deodoro vencido, com
um abraço, um longo e carinhoso abraço, fraternal e calmo.

***

Conta-se que ao estalar a revolução de 6 de setembro, no meio
do espanto, e do alarma, e do delírio de adesões e entusiasmos,
que para logo repontaram de todos os lados, gerando aquela angustiosíssima
comoção nacional culminada pela loucura trágica de Aristides
Lobo – conta-se que o marechal Floriano requintara na proditoria quietude.

Impassível naquele estonteamento, superpôs ao tumulto o seu meio
sorriso mecânico e o seu impressionador mutismo.
Num dado momento, porém, abeirou-se de uma das janelas do palácio
abertas na direção aproximada do mar; e ali quedou um minuto,
meditativo, na atitude habitual da sua apatia, enganosa e falsa…
Depois alevantou vagarosamente a mão direita, espalmada, vertical e
de chapa para o ponto onde se adivinhavam os navios revoltosos, no gesto trivial
e dúbio de quem atira longe uma esperança ou uma ameaça…
Traçou naquele momento o molde da sua estatua. Nenhum escultor de gênio
o imaginará melhor, a um tempo ameaçador e plácido, sem
expansões violentas e sem um tremor no rosto impenetrável, desdobrando
silenciosamente, diante do assalto das paix&ototilde;es tumultuárias
e ruidosas, a sua tenacidade incoercível, tranqüila e formidável.

O KAISER

Bismarck, sempre tão penetrante nos conceitos que disparava – disparava
é o termo próprio àquela sua ironia férrea, que
matava como as balas – definiu, certa vez, a política do segundo império,
fantasista e frívola, e tão estonteada na Europa, ou na América,
na Itália, ou no México, entre deslumbrantes frivolidades, em
que se dissipava o heroísmo tradicional da França:
– “Era uma política de gorjetas.”
Depois, esculpiu com quatro pranchadas de pena o homem que a inspirava:
“Napoleão III, com o seu egoísmo de corretor, incidiu no
vício dos antigos diplomatas italianos, que confundiam a diplomacia
e a perfídia. Tinha uma política ao mesmo passo bem ponderada
e quimérica, complicada e ingênua. pensando trabalhar para a
França, abalou-lhe a liberdade e trouxe durante 20 anos a Europa em
contínuo alarma, mercê de suas indefinidas ambições.
Faltavam a sua inteligência precisão e eficiência, a par
de uma extraordinária fé na sua estrela3 levando-o às
mais ousadas tentativas com os planos mais quiméricos.”
Ora, Bismarck fazia então, sem o imaginar, o retrato da Alemanha de
agora e do Kaiser.
Bem pouco há que alterar naquelas linhas lapidárias.
A terra clássica do bom senso equilibrado, da frieza de propósitos
e da perseverança tranqüila, há dez anos que sobressalteia
a Europa, graças à imaginação ardente, às
fantasias e à vaidade feminil, laivada de arreganhos militares de seu
imperador imensamente francês, e francês antigo, romântico,
imprevidente e aventureiro.
E um caso notável – o aspecto transcendental, talvez, dessa revanche
tão longamente acariciada pela França e que aparece espontânea,
trocadas inteiramente as fisionomias das duas vizinhas irreconciliáveis.
Realmente, a Alemanha, que acordou tarde para a expansão colonizadora
– longo tempo iludida pela visão errada de Bismarck, preferindo ao
melhor trato de território longínquo o arcabouço do último
granadeiro pomerânio – a Alemanha agita-se hoje num estonteamento.
A dilatação territorial impõe-se-lhe como uma condição
de vida, não já no sentido superior de um primado de idéias,
senão também no sentido estritamente biológico da própria
alimentação. O seu industrialismo robusto matou-lhe a produção
agrícola, de sorte que a sua vida intensíssima, a mais intensa
da Europa, em grande parte desviada à agitação fecunda
das fábricas, é de todo aleatória. Não lha garante,
mesmo imperfeitamente, a terra, cada vez mais escassa, à medida que
lhe vai crescendo o povoamento constrito entre as fronteiras inteiriças.
Dai o seu arremesso dos estaleiros de Kiel para o desimpedido dos mares, visando
amplificar a pátria, insuficiente, com o solo artificial e móvel
dos conveses de uma frota mercante, que é a segunda do mundo, exigindo,
paralelamente, as garantias de uma marinha de guerra formidável.
Mas neste concorrer à partilha da terra, com todos os inconvenientes
de quem chega tarde e encontra os melhores bocados noutras mãos, a
política germânica tem sido, de fato, copiando-se a frase do
lendário chanceler de ferro, uma política de gorjetas. Nem lhe
disfarça este caráter decaído a maneira arrojada que
a reveste. Em todos os seus atos – nos arrogantes ultimata contra a frágil
Venezuela, nos assaltos ferocíssimos de Waldersée, em Pequim,
ou nas tortuosidades e perfídias diplomáticas que rodeiam a
longa história da estrada para Bagdá, ou, ainda, no ganancioso
alongar de olhos para os nossos Estados do Sul, a sua ânsia alucinada
do ganho, pela pilhagem dos últimos restos da fortuna dos países
fracos, pode assumir todas as formas, até mesmo o aspecto heróico:
mas destaca-se com aquele traço inferior e irredutível.
Falta-lhe um Witte, falta-lhe um Chamberlain, falta-lhe um Roosevelt, e –
note-se esta ironia singular da história – falta-lhe um Delcassé,
ou um Combes…

***

Tem Guilherme II, um grande homem inédito.
Realmente, o Kaiser é uma promessa cada vez maior e mais irrealizável.
Bismarck esboçou-se sem o saber, de ricochete, pela fisionomia de Napoleão
III, mas fez-lhe a caricatura apenas a largos traços, vivos; e os melhores
psicólogos, ao escandirem os seus atributos característicos,
não descobrem de onde lhe advém tão antigermânicas
qualidades. Perquirem-lhe a linhagem toda, e não lobrigam, nos confins
indecisos do século XIII, o príncipe obscuro, misto de minnesinger
e de soldado, errante, de castelo em castelo, pela Baviera em fora, todo vestido
de ferro, feito um caçador de glórias e de perigos, a cantar
o amor e a coragem, que veio, por um milagre de atavismo, surgir tão
de pancada e estonteadamente em nossos dias …
É um revenant; e este evadido do passado ao mesmo passo que se isola
na Alemanha, vai isolando a Alemanha do convívio das nações.
Autocrata sem rebuços num império constitucional, em que os
seus secretários particulares substituem os ministros responsáveis,
aperta-se no estreitíssimo círculo de uma Corte louvaminheira,
que não só o afasta do influxo austero da opinião pública
germânica, como o impropria a avaliar os desastrosos efeitos de sua
garrulice inconveniente sobre todas as nações. Embalde von Treitschk,
o notável sucessor de Mommsen, denuncia “o exagerado culto teocrático
à majestade que macula a monarquia prussiana “e as formalidades
e .cerimônias de uma Corte, onde “há a abjeção
estagnada do servilismo oriental”; ou o Dr. Hann, secretário da
Liga Agrária, denuncia nuamente, em público, o acabamento das
qualidades superiores de consistência, de continuidade e de firmeza
de inabalável política bismarckiana. O imperador não
os ouve: repele-os.
Eles não lhe embalam a vaidade, não lhe aplaudem os discursos,
não lhe admiram as concepções, não se enfileiram
na numerosa claque que lhe proclama o enciclopedismo distenso. Wirchow atravessou
o seu reinado, inteiramente desfavorecido, porque era liberal. Hauptmann,
o maior dramaturgo da Alemanha, figura-se-lhe um rabiscador inaturável;
a sua grande voz não vinga o abafamento dos reposteiros de Potsdam.
Hoje o gênio loureado na terra sonhadora de Goethe é o capitão
Lanff, um lírico de caserna. Para este todos os requintes dos favores
imperiais, porque os seus dramas, impostos por decreto a todos os teatros
subsidiados do Império – os seus dramas tremendos, refertos de cutiladas,
de tiros, de urros pavorosos de terribilíssimos heróis, em que
os entrechos se embaralham pisoados de cargas de cavalaria – são a
apologia sanguinolenta dos Hohenzollerns. Reconhece-se que são maus,
que são positivamente idiotas, nota canhear dos conceitos, na frase
cambeante e perra, nos enredos desconexos e nos desenlaces abstrusos – mas
lisonjeiam a vaidade imperial.
Esta vaidade é tudo, e para a satisfazer tudo se sacrifica.
Mostra-o o mesmo exército alemão, que, durante tanto tempo,
foi o pavor da Europa. Viu-se-lhe, depois, a imponente fragilidade.
E um exército decorativo, adrede instruído a que rebrilhe ao
sol dos dias festivos a espada virginalmente inocente do Kaiser, diante da
burguesia assustadiça.
Revelou-o, recentemente ainda, Wolf von Schierbraum, e propositadamente escolhemos,
não já um prussiano, mas um rígido prussiano da guerra
de 70, para que se firme este conceito: “O imperador, graças à
sua índole espetaculosa, preparou o exército, não para
a luta consoante a tática e as armas atuais, mas como se ainda vivêssemos
nos antigos tempos”. E logo adiante, textualmente: “Há quinze
anos que o educa para falsas batalhas, arremetendo com imaginários
inimigos, em condições tais, que lhe acarretarão completo
extermínio em qualquer campanha destes dias”.
E um exército de paradas. Guilherme II conserva-o, cheio de desvelos
de artista e de colecionador de raridades – como um dos seus avós,
Frederico Guilherme I, conservava os seus granadeiros de dois metros de altura.
e os seus dragões torreantes – cuidadosamente, fora das intempéries
danosas das batalhas…
Ele é a sua claque favorita e temerosa; e acredita-se, por vezes, que
o arma contra a própria Alemanha.
Quando o imperador escreveu, no Livro de Ouro de Munich, o seu célebre
suprema lex regi voluntas, ninguém aplaudiu a barbaria deste latim
certíssimo, mas os feld-marechais deliraram, eletrizados.
Pouco tempo depois, ao rematar um de seus discursos perigosos com aquele:
“Todos vós deveis ter uma vontade, a Minha vontade, e uma só
lei, a Minha lei” – houve em toda a Alemanha um doloroso espanto, e o
partido socialista, crescente à medida que a vontade imperial impõe
ao Reichstag sucessivos aumentos de baionetas, replicou-lhe com uma de suas
manifestações ruidosas. O Kaiser assusta-se; mete-se, assombrado,
entre as fileiras adensadas, no campo de manobras de março de 1900,
e ali, sob a hipnose estonteadora de milhares de espadas rebrilhantes:
“Se Berlim renovar contra o rei o insolente levante de 1&98, vós,
meus granadeiros, corrigireis os rebeldes a pontaços de baionetas!”
E houve um longo, estripitoso aplauso …
Nada mais límpido no delatar o seu antagonismo com a própria
capital do império, se inúmeros outros casos não o atestassem
sob variadíssimas formas.
Sumo árbitro em tudo, em política, como em música, em
arquitetura, como em poesia, em pintura, como em qualquer ciência; estrategista,
dramaturgo, arqueólogo, teólogo, inédito em tudo, poeta
sem um verso, filósofo sem um conceito, músico sem uma nota,
guerreiro sem um golpe de sabre, esse dissipar a individualidade irrequieta,
espraiando-a largamente sobre todas as coisas, tem-lhe acarretado sucessivos
desapontamentos.
Aqui, um edifício, o novo palácio de Reichstag, é o melhor
exemplo, que se lhe afigura monstruoso aleijão, na mesma hora em que
todos os profissionais alemães consagravam em verdadeira apoteose o
arquiteto feliz que o planejou; além, um músico, que se lhe
afigura simplesmente detestável – e que se imortaliza, e é Wagner…
Não raro o antagonismo avulta e enreda-se ao ponto de dirimir-se nos
tribunais. Há tempos o imperador, no meio de seus pensares, teve uma
idéia surpreendente:
construir mais igrejas em Berlim. Uma obsessão de artista. Entristecia-o,
talvez, o belo firmamento berlinês, arqueado e vazio sobre as casernas
acaçapadas, ou
chatos alpendres de fábricas, sem o delicado granito das rosáceas,
sem um grande, arrebatador e vivo tumultuar de campanários alterosos…
E a este propósito fez que ressurgisse uma lei obsoleta, de há
quatro séculos, pela qual a cidade se obrigava a construir um número
de templos proporcional ao de habitantes. O fóssil decreto medieval,
porém, caiu estrepitosamente sob a condenação dos juizes…
Assim por diante.
E natural que a Alemanha se isole, perenemente ameaçadora e ameaçada.
Nada se pode prever na sua política ferrotoada de caprichos. Rodeia-se
a suspeita receosa das nações.
E, no momento agudo que vai passando, nesta vasta crise universal apenas começada
nos recantos do Extremo Oriente, quando os máximos resguardos presidem
os atos de todos os governos, devem-se aguardar todas as surpresas da volubilidade
alarmante e das arrancadas românticas daquele minúsculo deus
do Edda, desgarrado na terra e errando entre as gentes – incompreendido, idealista
e temeroso – como se fosse um neto retardatário das Walkyrias…

A ARCÁDIA DA ALEMANHA

Este belo titulo clássico cabe ao Brasil. E o que nos revela um sociólogo
qualquer da Contemporary Review, um dos muitos que hoje arremetem, aforradamente,
com o indefinido das questões sociais. E inglês; e o argumento
essencial ressalta-lhe na resvaladura desta cinca: somos um povo sem juízo
e a vitalidade germânica, em breve, nos absorverá. Registe-se-lhe
a frase, onde a massuda sisudez britânica aflora o riso da alacridade
ibérica: the brasilians themselves, as Dom Quixote said of Sancho Pansa,
are people ol “muy poca sal en la mollera».
É interessante. Para o filósofo, pintoresco no amenizar de jogralidades
cogitações tão maciças, temperando o seu Hegel
com Cervantes, somos decididamente um povo pródigo, doudivanas, que
anda na história a esperdiçar uma herança. Impõe-se-nos
a curadoria de um protetorado ou de uma conquista mansa, o carinhoso puxão
de orelhas paterno com que se reaviam os pupilos inexperientes. E um caso
em que o direito internacional, cujo elastério vai aumentando à
medida que se dilatam as parábolas das balas, pode humanizar-se, transmudando-se
no código civil proeminente das nações.
De feito, vai, ao parecer, dando demasiado nas vistas esta nossa vida fácil
e perdulária, esta nossa vida à gandaia, ociosa e comodista,
sobre a enorme fazenda de uns quatrocentos milhões de alqueires de
terras, onde sestiamos, fartos, entre os primores de uma flora que tem tudo,
desde o mais reles cereal ao líber e ao látex, para os lavores
da indústria – e que nos da tudo de graça com a sua exuberância
incomparável, permitindo-nos contemplar, (contemplar apenas como coisas
meramente decorativas de um vasto parque de recreio), as nossas virgens bacias
carboníferas, as nossas montanhas de ferro, as nossas cordilheiras
de quartzito, os nossos litorais dourados pelas areias monazíticas,
e o estupendo dilúvio canalizado dos nossos rios, e os cerros lastrados
de ouro das grupiaras, e os pendores numerosos, onde se desatam perpetuamente
as longas fitas alvinitentes da hulha branca à espera das roldanas
que elas moverão um dia… Coisas que mal vemos, pisando distraídos
sobre o macadame sem preço dos cascalhos diamantinos e errando nos
paraísos vazios dos gerais sem fim …
Enquanto isto acontece, a vida de outras gentes, intensíssima e a crescer,
a crescer dia a dia, mais e mais se agita, constrita à força
na clausura das fronteiras. De sorte que a nossa esplêndida mediocridade
se lhes torna em perpétuo desafio, repruindo-lhes a riqueza torturada
e a pletora de forças que, na ordem econômica, caracteriza o
moderno imperialismo.
A Alemanha é o melhor exemplo. E o caso típico de um povo sob
a ameaça permanente de seu mesmo progresso. Passando, com uma rapidez
sem par na história, do regime agrícola em que se aplicavam,
há meio século, três quartos da sua gente, para o máximo
regime industrial, onde se aplicavam hoje dois terços da sua atividade
– ficou duplamente adstrita a todas as exigências do expansionismo obrigatório.
Para viver e para agir. De um lado, calcula-se que o seu solo, intensamente
explorado, no máximo, bastará a alimentar trinta milhões
de homens, e ela tem quase o dobro. De outro, cerca de metade das matérias-primas,
que lhe alimentam as indústrias, vem do exterior. Está numa
alternativa. Ou isolar-se num papel secundário e obscuro, procurando,
na emigração pacifica, um desafogo à sua sobrecarga humana
– ou expandir-se, sistematicamente conquistadora, arriscando-se às
maiores lutas.
Preferiu o último caso. Não tinha por onde sair.
A atitude entonada, o recacho atrevido, as hipérboles políticas
e todo o gongorismo guerreiro desse Guilherme II, de fartos bigodes repuxados
e duros olhos verdes resumando cintilar de espadas, e os seus arrancos oratórios,
as suas inconveniências e os seus exageros, e até as suas temeridades,
todas essas coisas anômalas que, há dez anos, sobressalteiam
a Europa – têm o beneplácito dos mais frios pensadores da Germânia.
Há quem descubra naquela figura tumultuária algo de medieval.
É, de fato, um revenant.
Mas, por isso mesmo, é o melhor tipo representativo desta situação
especialíssima da Alemanha a idealizar, com os mesmos enlevos dos trovadores
de suas velhas baladas, a sua missão na terra.
Apenas a odisséia não tem rimas; tem cifras; reponta de argumentos
inflexivelmente práticos; e os seus melhores cantores, uns velhinhos
mansíssimos, saem do remanso das academias. Resolvem um problema: e
não indagam se ele requer, ou dispensa, o processo de eliminação
de algumas batalhas.
Para o Dr. Vosberg-Rekow, todo o corpo político-industrial alemão
depende do estrangeiro por maneira tal que a súbita parada na remessa
das matérias-primas essenciais lhe acarretará desorganização
completa – verdadeira ruína que só pode prevenir com uma poderosa
marinha apta, do mesmo passo, a fiscalizar os caminhos do mar e a facilitar
a conquista de colônias produtivas.
O professor Schmoeller é até alarmante: se a Alemanha se não
robustecer bastante no mares, ao ponto de garantir, perenemente, a importação
do trigo de que carece, e, em dadas circunstâncias, exercer uma pressão
eficaz sobre os países que lho vendem – a sua própria existência
material está em perigo.
Sobre todos, Bassenge, abertamente terrorista, agita três espectros
do futuro: a Rússia açambarcando quase toda a Ásia; a
América do Norte, com a sua ilimitada energia econômica, derrotando
a Europa dentro dos mercados europeus; e a Inglaterra, monopolizando o comércio
de um quinto da superfície terrestre. Apelam para a estatística,
a serva desleal da sociologia; calculam; perdem-se nas tortuosidades dessa
aritmética imaginária, e Schleiden descobre que em 1980 haverá
1.280 milhões de eslavos e anglo-saxônios contra 180 milhões
de alemães, o que equivale à morte do pan-germanismo pelo simples
peso material daquela massa humana.
Sering não vai tão longe. A seu parecer dentro de vinte anos
a indústria russa atenderá por si só ao mercado nacional,
o que sucederá também com a norte-americana, – e se a Inglaterra
realizar a planejada Imperial Customs Union, o industrialismo alemão
ruirá de todo, restando às populações o abandono
da pátria.

***

Diante de perspectivas tão sombrias, compreendem-se os lances arrojados
da política teutônica, que assumem hoje os mais díspares
aspectos – desde a anglofobia exposta durante a guerra do Transvaal, disfarçando
o intento de captar um consumidor na África do Sul, a esta fantástica
estrada de ferro de Bagdá, visando transformar Ormuz num Suez prussiano,
de onde se facilite uma passagem para o oceano Índico.
Mas, sobre todos estes expedientes, a medida que faz delirar a quantos filósofos,
sábios, meio-sábios e sociólogos o fetichismo nacional
de Kreisreidee agita entre o reportado von Bulow e o irrequietíssimo
imperador, o ideal que estonteia os Wagner, Schmoeller, Hartmann, Vosberg,
Schumacher, Voigt, Sering e toda uma legião de foliculários
assanhados – é a posse do Brasil do Sul.
Não lhes resta o vacilar mais breve: caímos na órbita
da Alemanha, como o Egito na da Inglaterra, e na da Rússia a Manchúria.
O Dr. Leyser – são em geral doutores estes pioneres abnegados – não
o disfarça no seu belo livro:
“Hoje, nestas províncias (Paraná, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul) cerca de 30% dos habitantes são germanos ou seus descendentes:
e, por certo, nos pertence o futuro desta parte do mundo. De feito, ali, no
Brasil meridional, há paragens ricas e salubres, onde os alemães
podem conservar a nacionalidade, e um glorioso futuro se antolha a tudo que
se compreende na palavra – germanismus”.
Como este, idéiam-se outros projetos imaginários, que fora inútil
reproduzir, tão conhecidos são eles. E intermitentemente, um
naturalista de nome arrevezado, H. Meyer, von den Stein, ou qualquer outro,
ou esse Dr. Valentim, espécie de repórter enciclopédico
de um jornal berlinês, aparece entre nós; traça, em alemão,
o melhor das nossas inéditas paisagens, e atira para além-mar,
dentro de um livro curioso, ou nas entrelinhas das correspondências
administrativas, ou nos cifrões dos relatórios maciços,
novos elementos ao fervor expansionista em que, por igual, ali se abrasam,
unidos pelo mesmo anelo, militares arrogantes, políticos solertes e
austeros pensadores…

***

Ora, tudo isto é monstruosamente verdadeiro; tudo isto forma um dos
prediletos assuntos de grande número de revistas, e tudo isto é
um exaustivo, um absolutamente estéril bracejar entre miragens.
Que não nos assuste este imperialismo platônico…
Um simples, o mais apagado lance de vista sobre o atual momento histórico,
revela que a Alemanha não pode balançar-se, tão cedo,
a empresas de tal porte. A sua política expansiva gira num círculo
vicioso original; precisa de colônias e mercados estranhos para viver
e vencer a concorrência de outros povos; precisa dominar, sob todas
as formas, esta concorrência, para conseguir aquelas colônias
e mercados.
Dificilmente se forrará aos entraves desta situação penosa.
O seu duelo econômico com a América do Norte e com a Inglaterra
é dos que não terminam nunca; a sua incompatibilidade com a
França é irremediável; e a aliança com a Itália
implica com a solidariedade latina renascente. Guilherme II, com o seu desastrado
ansiar pelas simpatias de todo o mundo, só conseguiu um amigo, um deplorável
amigo, o seu grande amigo Habdul-Hamid, o sultão vermelho, encouchado,
traiçoeiramente, nos Dardanellos, na encruzilhada suspeita de dois
mundos…
Resta-lhe o gravitar passivo na órbita desmedida da Rússia.
Mas esta há de arrebatá-lo para o Oriente, longe.
Além disto, o príncipe de Monroe, interpretemo-lo à vontade,
com ser um reflexo político dos interesses estritamente comerciais
do ianque, tem o valor de nos facilitar ao menos uma longa trégua.
Podemos deixar estas batalhas de frases contra fantasmas e voltar à
luta real, à campanha austera do nosso alevantamento próprio.
Que a Alemanha sonhe à vontade: é a grande terra idealista por
excelência, onde os mesmos matemáticos da envergadura de Leibnitz
são poetas.
Ali nasceu Schiller, de quem se conhece um verso admirável.
Arcádia, pátria ideal de toda a gente!
Sendo assim, errou o minúsculo sociólogo precipitado, A Arcádia
da Alemanha não é o Brasil.
Lá está dentro dela mesmo, no seu melhor retalho, na Prússia
liricamente guerreira e fantasista, onde, nesta hora, tumultuam não
sabemos quantos marechais devaneadores e não sabemos quantos filósofos
belicosos.

A VIDA DAS ESTÁTUAS

O artista de hoje é um vulgarizador das conquistas da inteligência
e do sentimento. Extinguiu-se-lhe com a decadência das crenças
religiosas a maior de suas fontes inspiradoras. Aparece num tempo em que as
realidades demonstráveis dia a dia se avolumam, à medida em
que se desfazem todas as aparências enganadoras, todas as quimeras e
miragens das velhas e novas teogonias, de onde a inspiração
lhe rompia, libérrima, a se desafogar num majestoso simbolismo. Resta-lhe,
para não desaparecer, uma missão difícil: descobrir,
sobre as relações positivas cada vez mais numerosas, outras
relações mais altas em que as verdades desvendadas pela analise
objetiva se concentrem, subjetivamente, numa impressão dominante. Aos
fatos capazes das definições científicas ele tem de superpor
a imagem e as sensações, e este impressionismo que não
se define, ou que palidamente se define “como uma nova relação,
passiva de bem estar moral, levando-nos a identificar a nossa sinergia própria
com a harmonia natural”.
E a “verdade extensa”, de Diderot, ou o véu diáfano
da fantasia, de Eça de Queiroz, distendido sobre todas as verdades
sem as encobrir e sem as deformar, mas aformoseando-as e retificando-as, como
a melodia musical se expande sobre as secas progressões harmônicas
da acústica, e o arremessado maravilhoso das ogivas irrompe das linhas
geométricas e das forças friamente calculadas da mecânica.
Daí as dificuldades crescentes para o artista moderno em ampliar e
transmitir, ou reproduzir, a sua emoção pessoal. Entre ele e
o espectador, ou leitor, estão os elos intangíveis de uma série
cada vez maior de noções comuns – o perpetuum mobile dessa vasta
legislação que resume tudo o que se agita e vive e brilha e
canta na existência universal. Diminui-se-lhe a primitiva originalidade.
Vinculado cada vez mais ao meio, este lhe impõe a passividade de um
prisma: refrata os brilhos de um aspecto da natureza, ou da sociedade, ampliando-os
apenas e mal emprestando-lhe os cambiantes de um temperamento. Já lhe
não é indiferente, nestes dias, a idéia ou o assunto
que tenha de concretizar no mármore ou no livro.
O seu trabalho é a homogenia da sua afetividade e da consciência
coletiva. E a sua personalidade pode imprimir-se fundamente num assunto, mas
lá permanecera inútil se destoar das idéias gerais e
dos sentimentos da sua época…

***

Tomemos um exemplo.
Há uma estátua do marechal Ney, em que se têm partido
todos os dentes da crítica acadêmica e reportada.
Dos múltiplos aspectos da vida dramática e tormentosa do valente,
o escultor escolheu o mais fugitivo e revolto: o final de uma carga vitoriosa.
O general, cujo tronco se apruma num desgarre atrevido, mal equilibrado numa
das pernas, enquanto a outra se alevanta em salto impetuoso, aparece no mais
completo desmancho: a farda desabotoada, e a atitude arremetente num arranco
terrível, que se denuncia menos na espada rijamente brandida que na
face contorcida, onde os olhos se dilatam exageradamente e exageradissimamente
a boca se abre num grito de triunfo.
E um instantâneo prodigioso. Uma vida que se funde no relance de um
delírio e num bloco de metal. Um arremesso que se paralisa na imobilidade
da matéria, mas para a animar, para a transfigurar e para a idealizar
na ilusão extraordinária de uma vida subjetiva e eterna, perpetuamente
a renascer das emoções e do entusiasmo admirativo dos que a
contemplam.
Mas para muitos são perfeitamente ridículos aquela boca aberta
e muda, aquele braço e aquela perna no ar. Em um quadro, sim, conclamam,
à frente de um regimento, aquela atitude seria admirável. Ali,
não; não se compreende aquela nevrose, aquela violência,
aquela epilepsia heróica no isolamento de um pedestal.
Entretanto, o que a miopia da crítica até hoje ainda não
distinguiu, adivinhou-o sempre a alma francesa; e o legitimista, o orleanista,
o bonapartista e o republicano, divergentes, ali se irmanam, enleados pelos
mesmos sentimentos, escutando a ressoar para sempre naquela boca metálica
o brado triunfal que rolou dos Pireneus à Rússia, e vendo na
imprimadura transparente e clara daqueles ares não o regimento tão
complacentemente requisitado, mas todo o grande exército …
E que a escultura, sobretudo a escultura heróica, tem por vezes a simultaneidade
representativa da pintura, de par com a sucessão rítmica da
poesia ou da música. Basta-lhe para isto que se não limite a
destacar um caráter dominante e especial, senão que também
o harmonize com um sentimento dominante e generalizado.
Neste caso, malgrado o restrito de seus recursos e as exigências máximas
de uma síntese artística, capaz de reproduzir toda a amplitude
e toda a agitação de uma vida num bloco limitado e imóvel
este ideal é notavelmente favorecido pelo sentimento coletivo. A mais
estática das artes, se permitem o dizer, vibra então na dinâmica
poderosa das paixões e a estátua, um trabalho de colaboração
em que entra mais o sentimento popular do que o gênio do artista, a
estátua aparece-nos viva – positivamente viva, porque é toda
a existência imortal de uma época, ou de um povo, numa fase qualquer
de sua história que para perpetuar-se procura um organismo de bronze.
Porque há até uma gestação para estes entes privilegiados,
que renascem maiores sobre os destroços da vida objetiva e transitória.
Não bastam, às vezes, séculos. Durante séculos,
gerações sucessivas os modelam e refazem e aprimoram, já
exagerando-lhes os atributos superiores, já corrigindo-lhes os deslizes
e vão transfigurando-os nas lendas que se transmitem de lar em lar
e de época em época, até que se ultime a criação
profundamente humana e vasta. De sorte que, não raro, a estátua
virtual, a verdadeira estátua, esta feita, restando apenas ao artista
o trabalho material de um molde.
A de Anchieta, em S. Paulo, é expressivo exemplo.
Tome-se o mais bisonho artista; e ele a modelara de um lance.
Tão empolgante, tão sugestiva é a tradição
popular em torno da memória do evangelizador que o seu esforço
se reduzira ao trabalho reflexo de uma cópia.
Não pode errar. As linhas ideais do predestinado corrigem-lhe os desvios
do buril. O elemento passivo, ali, não é a pedra ou o bronze,
é o seu gênio. A alma poderosa do herói, nascente do culto
de todas as almas, absorve-lhe toda a personalidade, e transfigura-o e imortaliza-o
com o mais apagado reflexo da sua mesma imortalidade.. –
Mas há ocasiões (e aqui se nos antolha uma contraprova desta
psicologia transcendental e ao parecer singularmente imaginosa) em que a estátua
nasce prematura.
Falta-lhe a longa elaboração do elemento popular. Possui talvez
admiráveis elementos capazes de a tornarem grande ao cabo de um longo
tempo – um longo tempo em que se amorteçam as paixões e se apaguem,
pelo só efeito de uma dilatada perspectiva histórica, todas
as linhas secundárias de uma certa fase da existência nacional…
Mas não se aguarda esse tempo; não se respeita esse interregno,
ou essa quarentena ideal, que livra as grandes vidas dos contágios
perniciosos das nossas pequenas vidas; e decreta-se uma estátua, como
se fosse possível decretar-se um grande homem.
Então, neste vir fora de tempo, ela é historicamente inviável.
E não há golpes de gênio que a transfigurem.
E uma estátua morta.

ANCHIETA

O grande missionário reconcilia-nos com a Companhia de Jesus.
É o seu maior milagre.
Votada em parte é antipatia de uma forte corrente de sábios
e pensadores, como um elemento dispersivo na solidariedade moral dos povos,
a instituição, para eles irrevogavelmente condenada, tem, na
historia, na feição de José de Anchieta, talvez a sua
feição mais atraente.
Combatente, na Europa, como centro de resistência do catolicismo ante
a irrupção impetuosa da Reforma, combatente no Extremo Oriente
ante as regiões seculares do paganismo, ela, ante as tribos ingênuas
da América, foi humana, persuasiva, evangelizadora. Incoerente e sombria,
pregando no século XVI, exageradamente, através da justificação
singular da estranha teoria do regicídio de Mariana, a soberania do
povo, e combatendo, aliada aos tronos, essa mesma soberania quando surgia
triunfante no século XVIII; precipitando ora os reis sobre os povos,
ora os povos sobre os reis; traçando, através da agitação
de três longos séculos atumultuados, os meandros de espantosas
intrigas – ela foi, na América, coerente na missão civilizadora
e pacífica, seguindo a trajetória retilínea do bem, heróica
e resignada, difundindo nas almas virgens dos selvagens os grandes ensinamentos
do Evangelho. Não dispersou, uniu.
Ligou à humanidade, emergente da agitação fecunda da
Idade Média, um povo inteiro – espíritos jungidos a um fetichismo
deprimente, forças perdidas nas correrias guerreiras dos sertões…

E para esta empresa imensa teve entre nós uma alma simples, sem violentos
ímpetos de heroicidade – amplíssima e casta – iluminada pela
irradiação serena do ideal.
Daí todo o encanto que ressalta à simples contemplação
da bela figura de Anchieta, entregue hoje à existência subjetiva
da história, e cujo nome tem na nossa terra a propriedade de fundir
todas as crenças e opiniões numa veneração comum.

E que em virtude de causas múltiplas, em que preponderam de um lado
as condições do meio e de outro o próprio sentimento
dos missionários, a Companhia de Jesus perdeu, no novo mundo, a feição
batalhadora.
Longe das controvérsias irritantes que circulavam a dissolução
do regime católico-feudal, os apóstolos que agiram fora da convulsão
que abalava a Europa, com S. Francisco Xavier nas Índias e com Anchieta
e Nóbrega no Ocidente, ao desdobrarem, diante do gentio deslumbrado,
a significação divina da vida, num cândido misticismo,
souberam fazer da humildade a forma mais nobre do heroísmo e venceram
pelo incutir nas almas obscuras dos bárbaros todo o fulgor que lhes
esclarecia as próprias almas.
E foram além na missão evangelizadora.
A nossa história o diz: depois do combate incruento à idolatria,
depois da catequese das tribos, através de esforços que lembram
os primeiros séculos da igreja, animou-os a preocupação
capital de salvá-las da escravidão. A ambição
extraordinária de audazes aventureiros exigia a força inconsciente
do selvagem para as longas pesquisas nos sertões.
A história dolorosa das reduções jesuíticas terminada
pelo sombrio epílogo de Guaíra, patenteia uma inversão
singular de papéis: o missionário reagia à frente dos
bárbaros arrancados às selvas, contra os bárbaros oriundos
das terras civilizadas.
Desse conflito resulta, em muitos pontos, a feição verdadeiramente
heróica do nosso passado.
Ora, os que arcavam, no Brasil, com esta missão múltipla e elevada,
definem-se admiravelmente em Anchieta – um nome que é a síntese
de uma época.
Grande homem, segundo a definição profunda de Carlyle, a sua
história abrange um largo trecho da nossa própria história
nacional.
Desde 1554, ao criar o terceiro colégio regular no Brasil, erigindo
Piratininga, graças ao estabelecimento de um melhor sistema de proselitismo,
esse centro diretor da larga movimentação das missões
brasileiras, até 1597, ao expirar em Reritibá, rodeado pelos
discípulos e pelas tribos catequizadas, a sua existência, dia
por dia, hora por hora, constante no devotamento à mais sagrada das
causas, irradia sobre uma época tumultuosa como uma apoteose luminosa
e vasta.
Soberanamente tranqüilo sobre a revolta das paixões, nada o perturbou
– nem mesmo quando, colaborando diretamente para a organização
futura da nossa nacionalidade, ele ligou a palavra ardente de apóstolos
ao cintilar da espada heróica de Estácio de Sá ou impelindo
ao combate os guaianases leais, repelia as hordas ferozes dos tamoios que
investiam contra S. Paulo.
Preso entre esses últimos, sob a ameaça persistente do martírio
e da morte, a sua alma religiosa expande-se em poema belíssimo no qual
a dicção aprimorada se alia à erudição
notável. Seguindo ásperos itinerários nos sertões
em busca do aimoré bravio, à amplitude do seu espírito
não escapa a nossa natureza deslumbrante acerca da qual faz estudos,
lidos mais tarde com surpresa por todos os naturalistas, que o proclamaram,
pela pena de Aug. Saint-Hilaire, um dos homens mais extraordinários
do século XVI. Por toda a parte, em todas as situações
de uma carreira longa e brilhante, como simples irmão ou no fastígio
do provincialado, enfeixando nas mãos poderes extraordinários,
não há um salto, um hiato, um acidente ligeiro perturbando a
continuidade da sua existência privilegiada de grande homem – útil,
sincero e bom.
Fora longo e dificílimo traçá-la, palidamente embora.

Mais alto e com mais eloqüência do que nós, fala este sentimento
sagrado de veneração que pressentimos em torno, amplo, forte
e generoso, inacessível às diversidades de crenças e
sob cujo influxo se opera em nosso tempo a ressurreição do grande
morto de há três séculos.

GARIMPEIROS

O forasteiro que rio último quartel do século XVIII demandasse
os povoados de Minas Gerais, erecto da noite para o dia na extensa zona do
distrito Diamantino, sentia a breve trecho o mais completo contraste entre
a aparência singela daqueles modestos vilarejos e as gentes que neles
assistiam.
Entrava pelas ruas tortuosas e estreitas, ora marginando as lezírias
dos córregos em torcicolos, ora envesgando, clivosas, pelo viés
dos pendores, ladeadas de casas deprimidas de beirais desgraciosos e saídos;
percorria-as calcando um áspero calçamento de pedras malgradadas;
desembocava num largo irregular onde avultava a picota do pelourinho, ameaçadora
e solitária; deparava mais longe duas ou três pesadas igrejas
de taipa; e, certo, sentiria crescer a desoladora saudade do torrão
nativo se naquele curto trajeto não se lhe antolhassem singularíssimos
quadros.
Surpreendiam-no, empolgantes, o excesso de vida daqueles recantos sertanejos
e o espetáculo original da Fortuna domiciliada em pardieiros.
E se conseguisse abarcar de um lance a multidão doudejante e inquieta,
que atestava as vielas e torvelinhava nas praças, teria a imagem estranha
de uma sociedade artificial, feita de elementos díspares transplantados
de outros climas e mal unidos sobre a base
instável, dia a dia destruída, ruindo solapada pela vertigem
mineradora – da própria terra em que pisavam.
Acampado nos cerros, o povo errante levava para aqueles rincões – escalas
transitórias ocupadas à ventura – todos os hábitos avoengos
que não afeiçoavam ao novo meio. E estadeava todos os seus elementos
incompatíveis fortuitamente reunidos, mas repelindo-se pelo contraste
das punições e das raças: – dos congos tatuados que moirejavam
nas lavras, com a rija envergadura mal velada pelas tangas estreitas ou rebrilhando,
escura, entre os rasgos das roupas de algodão; aos contratadores ávidos
e opulentos, passando por ali como se andassem nas cidades do reino, entrajando
as casacas de veludo, de portinholas e canhões dobrados, abertas para
que se visse o colete bordado de lantejoulas, descidas sobre os calções
de seda de Macau atacados com fivelas de ouro. A grenha inestricável
do africano chucro contrastava com a cabeleira de rabicho, empoada e em volta
de um cadarço de gorgorão rematando numa laçada, do peralvilho
rico; a alpercata de couro cru estalava rudemente junto do sapato fino, pontiagudo,
cravejado de pérolas, do reinol casquilho, graciosamente bamboleante
com o andar que ensinavam os “mestres de civilidade”; o cacete de
guarda-costas vibrava próximo do bastão de biqueira de ouro,
finamente encastoado; e o facão de cabo de chifre, do mateiro, fazia
que ressaltassem, mais artísticos, os brincos de ourivesaria dos floretes
de guarnições luxuosas dos fidalgos recém-vindos.
Ia-se de um salto de uma camada social a outra.
Parecia não haver intermédios àquela simbiose da Escravidão
com o Ouro, porque não havia encontrá-los mesmo no agrupamento
incaracterístico, e mais separador que unificador, dos solertes capitães-do-mato,
dos meirinhos odientos, dos bravateadores oficiais de dragões, dos
guarda-mores, dos escrivães, dos pedestres e dos exatores, açulados
pelas ruas, farejando as estradas e as picadas, perquirindo os córregos
e os desmontes, em busca do escravo; filando-se às pernas ágeis
dos contrabandistas; colados no rastro dos contraventores; e espavorindo os
faiscadores pobres, inquirindo, indagando, prendendo, intimando e, quase sempre,
matando…
Sobre tudo isto dois tremendos fiscais que a Corte longínqua despachara
apercebidos de faculdades discricionárias: o Ouvidor da comarca e o
Intendente dos diamantes.
Tinham a tarefa fácil de uma justiça que por seu turno se exercitava
entre extremos, monstruosa e simples, mal variando nos “termos de prisão,
hábito e tonsura”; oscilando em mesmices torturantes, da devassa
ao pelourinho, do confisco à morte, dos troncos das cadeias aos dez
anos de degredo em Angola.
E que a terra farta, desentranhando-se nos minérios anelados, não
era um lar, senão um campo de exploração predestinado
a próximo abandono quando as grupiaras ricas se transmudassem nas restingas
safaras, e fossem avultando, maiores, mais solenes e impressionadoras, sobre
a pequenez dos povoados decaídos, as Catas silenciosas e grandes montões
de argila revolvidos tumultuando nos ermos à maneira de ruínas
babilônicas…

***

Mas fora da mineração legal adscrita na impertinência
bárbara dos alvarás e cartas régias; trabalhada de fintas,
alternativamente agravada pelo quinto e pela captação exaurida
a princípio pelos contratadores e depois pela extração
real, estendera-se intangível, e livre, e criminosa, irradiante pelos
mil tentáculos dos ribeirões e dos rios, desdobrando-se pelos
tabuleiros, ou remontando às serras, a faina revolucionária
e atrevida dos garimpos.
Despejados dos arraiais; esquivos pelas matas que varavam premunidos de cautelas
porque não raro no glauco das paisagens coruscavam, de golpe, os talins
dourados e os terçados dos dragões girando em sobre-rondas céleres;
caçados como feras – os garimpeiros, incorrigíveis devassadores
das demarcações interditas, davam o único traço
varonil que enobrece aquela quadra.
Vinham de um tirocínio bruto de perigos e trabalhos, nas velhas minerações;
e, únicos elementos fixos numa sociedade móvel, de imigrantes,
iam capitalizando as energias despendidas naqueles assaltos ferocíssimos
contra a terra.
Desde as primitivas buscas pelos leitos dos córregos, dos caldeirões
e das itaipavas, com o almocrafe curvo ou a bateia africana, na atividade
errante das faisqueiras; aos trabalhos nos tabuleiros, arcando sob os carumbés
refertos ou vibrando as cavadeiras chatas até aos lastros ásperos
dos nódulos de hematita das tapanhuacangas; às catas mais sérias,
às explorações intensas das grupiaras pelos recostos
dos morros que broqueados de cavas circulares e sarjados pelas linhas retilíneas
e paralelas das levadas, desmantelados e desnudos, tornavam maiores as tristezas
do ermo; e, por fim, à abertura das primeiras galerias acompanhando
os veios quartzosos, mas sem os resguardos atuais, tendo sobre as cabeças
o peso ameaçador de toda a massa das montanhas – eles percorreram todas
as escalas da escola formidável da força e da coragem.
Vibraram contra a natureza recursos estupendos.
Abriram canais de léguas ajustados às linhas das cumiadas altas;
e adunando a centenas de metros de altura, em vastos reservatórios,
as águas captadas, rompiam-nos. Ouviam-se sons das trompas e buzinas
prevenindo os eitos de escravos derramados nas encostas, para se desviarem;
e logo após uma vibração de terremoto, um como desabamento
da montanha, a avalancha artificial desencadeada pelos pendores, tempesteando
e rolando – troncos e galhadas, fraguedos e graieiros, confundidos, embaralhados,
remoendo-se, triturando-se, descendo vertiginosamente e batendo embaixo dentro
dos amplos mundéus onde acachoava o fervor da vasa avermelhada lampejante
das palhetas apetecidas…
Desviavam os rios; invertiam-lhes as nascentes, ou torciam-nos cercando-os;
e, por vezes, alevantavam-nos, inteiros, sobre os mesmos leitos. Todo o Jequitinhonha,
adrede contido e alteado por uma barragem, derivou certa vez por um bicame
colossal, de grossas pranchas presas de gastalhos, deixando em seco, poucos
metros abaixo, o cascalho sobre que fluia há milênios…
E ali embaixo, centenares de titães tranqüilos, compassando as
modinhas dolentes com o soar dos almocrafes e alavancas, labutavam, cantando
descuidados, tendo por cima o dilúvio canalizado…
Assim foram crescendo…
De sorte que quando a metrópole, exagerando a antiga avidez ante a
fama dos novos “descobertos”, se demasiou em rigores e prepotências
para tornar efetivo o monopólio da extração, isolando
aquela zona de todo o resto do mundo, dificultando as licenças de entrada
e os passaportes, multiplicando registos e barreiras, extinguindo os correios,
e tentando mesmo circunvalar as demarcações, não lhe
bastando o permanente giro das esquadras de pedestres, baldaram-se-lhe em
parte os esforços ante os rudes caçadores furtivos da fortuna,
inatingíveis às fintas, às multas, às tomadias,
aos confiscos, às denúncias, às derramas; e que aliados
aos pechilingueiros vivos, aos tropeiros ardilosos passando entre as patrulhas
com o contrabando precioso metido entre os forros das cangalhas, aos comboieiros
que enchiam os cabos ocos das facas com as pedras inconcessas, ou aos mascates
aventureiros intercalando-as nos remontes dos coturnos grosseiros – estendiam
por toda a banda, até ao litoral, a agitação clandestina,
heróica e formidável.
“Desaforados escaladores da terra!…” invectivavam as ríspidas
cartas régias, delatando o desapontamento da Corte remota ao pressentir
escoarem-se-lhe as riquezas pelos infinitos golpes que lhe davam nos regimentos
aqueles adversários.
E armou contra eles exércitos.
Bateram longamente os caminhos as patas entaloadas dos corpos de dragões.
Adensaram-se em batalhões as patrulhas errantes e dispersas dos pedestres;
e avançaram ao acaso pelas matas em busca dos adversários invisíveis.
Os garimpeiros remontavam às serras: espalhavam-se em atalaias; grupavam-se
em guerrilhas diminutas; e por vezes os graves intendentes confessavam aos
conselhos de ultramar a “vitória de uma emboscada de salteadores”.
Finalmente se planearam batalhas.
Rijos capitães-generais, endurados nas refregas da Índia, largaram
dos povoados ao ressoar das preces propiciatórias e sermões,
chefiando os terços aguerridos, e arrastando penosamente pelos desfreqüentados
desvios as colubrinas longas e os pedreiros brutos.
Mas roncearam, inutilmente, pelos ermos.
Enquanto à roda, desafiando-os, alcandorados nos itambés a prumo;
relampeando no súbito fulgir das descargas, das tocaias; derivando
em escaramuças pelos telhados dos montes; arrebentando à boca
das velhas minas em abandono, de repente escancaradas numa explosão
de tiros – os “desaforados escaladores da terra”, os anônimos
conquistadores de uma pátria, zombavam triunfalmente daqueles aparatos
guerreiros, espetaculosos e inofensivos.

UMA COMÉDIA HISTÓRICA

Na Europa diplomática do século XVIII o Portugal de D. João
V era urna exceção desanimadora. Despeara-se no progresso geral
e ia atingir a quadra revolucionária, mal disfarçando, com a
exterioridade deslumbrante das minas do Brasil, os máximos desfalecimentos
da originalidade e da vida.
Há um atestado expressivo desse fato: a feição literária
do tempo, incolor e exótica, laivada de perífrases e trocadilhos,
ou sulcada de metáforas extravagantes, reveladoras dos resaibos corruptores
das canzoni alambicadas de Mazini ou das agudezas e hipérboles assombrosas
de Gongora.
Era um recuo deplorável. O italianismo e o espanholismo, que haviam
sido um característico geral da literatura européia, em passado
recente, desapareciam em toda a banda. Na Inglaterra, o excêntrico eufuísmo,
que lembra um assalto de cansaço depois da formidável elaboração
shakespeariana, alastrando-se da fantasia maravilhosa de Milton, as rimas
infamíssimas de Wicherley – desaparecia ante a frase lapidaria de Burton;
na França, o preciosismo acabava pelo próprio exagero, embora
se abrisse no salão de Luiz XIV o grande molde dourado do classicismo,
com o recato do pensar e o requintado polido das maneiras e do dizer; e na
mesma Itália, de onde surgira o primado efêmero dos pensieri
o lirismo vigoroso de Metastasio iniciava triunfalmente uma era nova. É
que nestes países se formara a energia de uma renovação
científica e filosófica que, com F. Bacon, Descartes e Galileu,
alevantara sobre a rumaria da escolástica os elementos do espírito
moderno. Em todos a arte de escrever era apenas um aspecto, o mais sedutor
talvez, e nada mais, das inteligências que, em breve, encontrariam no
maior operário da Enciclopédia – a um tempo romancista, dramaturgo,
crítico, cientista e filósofo – em Diderot, o exemplo vivo do
quanto importam ao mais ousado idealizar estético os mais aparentemente
frios recursos positivos.
~m Portugal, não. A língua forte dos quinhentistas gaguejava
nas silvas e acrósticos alambicados, nas maravilhas do falar e no requinte
estéril de um culteranismo, onde a fragilidade das idéias facultava
aos períodos vazios o caprichoso das formas mais bizarras. A terra
de Bieira dava quase o espetáculo da desordem da palavra numa espécie
de afasia literária.
O século XVIII teve o seu aspecto filosófico e o seu aspecto
mundano. Teve Voltaire e teve Crebillon. Portugal copiava o último,
ao mesmo tempo que D. João V imitava a frivolidade resplandecente do
rei Sol dos minuetes e das etiquetas, olvidando o Luiz XIV dos tratados.
Daí o burlesco daquela tentativa de transferir para Lisboa um lampejo
de Versalhes, numa grandeza achamboada e informe que era, como todas as paródias,
um contraste. E o contraposto entre o medido das frases e das idéias,
que na corte parisiense transmudavam o classicismo numa sistematização
da vulgaridade, e o retumbante e amaneirado das glosas e madrigais dos versejadores
portugueses. Comparem-se o Camões do Rocio e Boileau; ou então
a pragmática dos saraus de Rambouillet aos festejos ruidosos de Lisboa
onde se viam, sem escândalo à fradaria inumerável, rompentes
nas procissões ou saracoteando nos salões, ao toar dos alaúdes
e guitarras, a Poesia, a Gramática (a gramática!) e a Retórica
com a sua ninhada de Tropos espalhafatosos, de Metáforas nervosas,
de Gerúndios rotundos e de supinos desfibrados, materializados todos
num grande excesso de objetivismo.
Esta literatura refletia uma época.
A terra forte que se sacrificara ao progresso geral, repontando à tona
da Renascença para mergulhar numa outra Idade Média e reconstituir
no novo mundo o mundo antigo que acabara – chegava, surpreendida e deslumbrada,
à quadra maravilhosa. Quis encalçá-la e só lhe
absorveu os estigmas remanescentes.
A própria galanteria, que encontrara no abade Prevost – e na maioria
dos padres voltairianos, que embarcavam galantemente para Cítera –
intérpretes inimitáveis, ali se derrancara nas requestas perigosas.
O amor era brutal, liricamente brutal se o quiserem, armado de capa e espada,
de botas e esporas, marchando para as entrevistas como para os fossados arriscados.
Ao cair da noite, espessa e impenetrável, sem a fresta única
de um lampião mortiço, as ruas de Lisboa tinham os pavores das
azinhagas solitárias.

Eram o paraíso tenebroso dos chichibéus errantes, e mascarados
num requinte de resguardos, porque as formas se lhes diluíam no escuro,
apagadas e imperceptíveis, num deslizamento silencioso de lemures cautelosos.
E o estrangeiro curioso que os acompanhasse, ou que os apartasse nos duelos
subitamente travados ao acaso, no volver das esquinas, podia encontrar o faquista
desclassificado, o pródigo doudivanas, o frade corrompido, o fidalgo
marialva, ou o rei…
A aventura noturna de D. João IV e D. Francisco Manoel não fora
deslembrada. E embora D. João V, mais precavido e prático, preferisse,
ao arriscado destes encontros, os recatados cômodos do harém
seráfico de Mafra, tinha no irmão, o infante D. Francisco, e
no Duque de Cadaval, uns dignos continuadores das mesmas tropelias romanescas.
Felizmente entre estes nobres gandaieiros, um espadachim atrevido, um mestiço
à volta dos vinte anos, um tal Sebastião José de Carvalho,
aparecia às vezes, compartindo as desordens que ele mais tarde extinguiria,
porque lhes aquilatara, experimentalmente, os inconvenientes e as torpezas.

***

Mas havia também um homem, o mesmo homem que Oliveira Lima, no Secretário
d’El-Rei nos apresenta sob uma de suas mais interessantes modalidades – Alexandre
de Gusmão.
Era brasileiro; mas nesta circunstância fortuita não está
o interesse que ele nos desperta. O que dele nos impressiona é o contraste
de uma individualidade original e forte e a decrepitude do meio em que ela
agiu. Aquele escrivão da puridade preso pelo contato diário
à corte e pelo cargo obrigado a submeter-se a todas as exigências
da época e a tacanhear o talento nos escaninhos e nas estreitezas dos
relatórios enfadonhos – reponta-nos nas suas admiráveis cartas
a D. Luiz da Cunha, com a atitude inesperada de um fiscal incorruptível,
irônico e formidável. Nele, sim, enfaixavam-se todos os estímulos
céticos, agressivos e assombrosamente demolidores que se esboçavam
na França.
A sociedade pecaminosa de D. João V, onde o monstruoso substituía
a grandeza, com as suas antíteses clamorosas, com os seus lausperenes
e as suas devassidões, com o trágico da inquisição
e a glorificação de todos os ridículos, com o idiota
cardeal Mota que acabou com as trovoadas riscando-as da folhinha do ano, com
o seu místico tenente Santo Antonio, jogralescamente promovido por
atos de bravura, e com o cínico Encerrabodes tolerado em todas as salas
– o Portugal paraguaio dos Jesuítas com os seus monges, os seus padres,
os seus rufiões, a sua patriarcal, a sua escolástica garbosamente
fútil e a sua literatura desfalecida, teve no seu primeiro ministro
o seu mais implacável juiz.
Sob este aspecto, a figura ainda não bem estudada de Alexandre de Gusmão
é impressionadora.
Foi um voltairiano antes de Voltaire: a mesma espiritualidade expansiva, em
que pese uma cultura menor, a mesma mobilidade, os mesmos arrebatamentos,
o mesmo sarcasmo diabólico e a mesma emancipação intelectual,
revolucionária e brilhante.
Não o considerou sob essa feição complexa Oliveira Lima,
que dificílimo fora constrigi-lo nos três atos de uma comédia.
Fixou-o, porém, por uma de suas faces encantadoras: a adorável
complecência de uma alma sobranceira às ruínas de um amor
não correspondido e verdadeiramente heróica no amparar o rival
feliz que o compartia.
O assunto, como se vê, é profundamente dramático. A índole
do protagonista, entretanto, transmudou-o numa comédia.
O grande homem pareceu-nos talvez apequenado no tortuoso de uma intriga vulgar,
mas traça, cortando uma situação trivialíssima,
a linha impressionadora de uma individualidade nova no meio de uma sociedade
envelhecida. Realmente, o que hoje para nós é uma vulgaridade
– este triste humorismo com que na pressão atual da vida moderna disfarçamos
cautelosamente as maiores desventuras e este “levar as coisas a rir mesmo
quando elas são de fazer-nos chorar” – eram uma novidade na época
brutal em que a fraqueza irritável das gentes supersticiosas e incultas
predispunha ao impulsivo e ao desafogo máximo das paixões.
Assim considerado, o Secretário d’El-Rei é um livro belíssimo.
Que outros, mais vezados à técnica teatral, lhe apontem todos
os defeitos. Nós, não. Satisfez-nos o aprumo impecável,
a fidalguia espirituosa com que Alexandre de Gusmão, sem destoar da
nota superior de seu caráter, destramou o intrincado de um incidente
passional que o colhera de improviso no meio dos seus relatórios e
dos seus livros – sem criar uma situação de fraqueza às
suas magníficas rebeldias do pensar e do sentir.

PLANO DE UMA CRUZADA

I

As secas do extremo norte delatam, impressionadoramente, a nossa imprevidência,
embora sejam o único fato de toda a nossa vida nacional ao qual se
possa aplicar o princípio da previsão. Habituamo-nos àquelas
catástrofes periódicas. Desde a lancinante odisséia de
Pero Coelho, no alvorar do século XVII, até ao presente, elas
vêm formando, à margem da nossa história, um tristíssimo
apêndice de indescritíveis desastres. A princípio, mercê
do próprio despovoamento do território, ninguém as percebeu.
Notou-as, apreensivo, o primeiro sertanista que se afoitou, naquelas bandas,
com o desconhecido: os flagelos revelados mal rebrilham e repontam, fogacíssimos,
rompentes da linguagem perra e nebulosa dos roteiros… Depois, à medida
que se povoava a terra, cresceu-lhes a influência, e desvendaram-se-lhes
os aspectos, deploráveis todos.
Em 1692, em 1793 e em 1903 – para apontarmos apenas as datas seculares entre
as quais se inserem, inflexivelmente, como termos de uma série, outras,
sucedendo-se numa razão quase invariável – o seu limbo de fogo
abrangendo toda a expansão peninsular que o cabo de S. Roque extrema
abriu, intermitentemente, largos hiatos nas atividades. Outrora, completavam-lhe
os efeitos as depredações do tapuia – tribos errantes precipitando-se,
estonteadas, para o litoral, e para o sul, refluídas pelos sóis
bravios; hoje, as incursões dos jagunços destemerosos – almas
varonis, que a desventura maligna, derrancando-as nas aventuras brutais dos
quadrilheiros; e sobre umas e outras, em todas as quadras, o epílogo
forçado das epidemias devastadoras rematando as espantosas tragédias
que mal se denunciam no apagado de imperfeitas notícias ou inexpressivas
memórias.
Há uma estética para as grandes desgraças coletivas.
A peste negra na Europa aviventou um renascimento artístico que veio
do verso triunfal de Petrarca à fantasia tenebrosa de Albert Dürer
e ao pincel funéreo de Rembrandt. A dança de S. Guido, que sacudiu
convulsivamente as populações ribeirinhas do Reno, criou a idealização
maravilhosa da dança Macabra. A morte imortalizou os artistas definidos
pelo gênio misterioso de Holbein, e perdida a aparência lutuosa,
o seu espectro hilariante, arrebatado na tarântula infernal, percorreu
entre os aplausos de um triunfo doloroso todos os domínios da arte,
das páginas de Manzoni, às rosáceas rendilhadas das catedrais,
às iluminuras dos livros de Horas dos crentes e ao caprichoso cinzelado
dos copos das espadas gloriosas…
Mas entre nós estes transes tão profundamente dramáticos
não deixam traços duradouros. Aparecem, devastam e torturam;
extinguem-se e ficam deslembrados.
Entretanto, senão pelos seus feitos desastrosos, pela sua insistência,
pela impertinência insanável com que se ajustam aos nossos destinos,
eles são o mais imperioso desafio às forças do nosso
espírito e do nosso sentimento.
Mas criaram sob o ponto de vista artístico raras páginas incolores
de um ou outro livro, e alguns alexandrinos resplandecentes de Junqueiro;
na ordem administrativa, medidas que apenas paliam os estragos; e no campo
das investigações cientificas o conflito estéril da algumas
teorias desfalecidas.
E que o fenômeno climático, tão prejudicial a um quinto
do Brasil, só nos impressiona quando aparece; é uma eterna e
monótona novidade; estudamo-lo sempre nas aperturas e nos sobressaltos
dos períodos certos em que ele se desencadeia.
Então a alma nacional, de chofre comovida, ostenta o seu velho sentimentalismo
incorrigível desentranhando-se em subscrição e em sonetos,
em manifestos liricamente gongóricos e em telegramas alarmantes; os
poderes públicos compram sacos de farinha e organizam comissões,
e os cientistas apressados – os nossos adoráveis sábios à
la minute – ansiando por salvarem também um pouco a pobre terra, imaginam
hipóteses.
Ora, a feição proteiforme destas últimas é expressiva.
Dos fatos geométricos mais simples (a forma especial do continente
norte-oriental), às circunstâncias orográficas da orientação
das serras, à fatalidade astronômica da rotação
das manchas solares, às considerações mais sérias
relativas à constituição litológica dos terrenos
– em todos estes pontos, que formam, afinal, toda a psiografia do extremo
norte, tem doidejado as indagações com o efeito único
de revelarem o traço característico do nosso espírito
afeiçoado a um generalizar espetaculoso com o sacrifício da
especialização tenaz, mais modesta, mais obscura e mais útil.

Diante da enorme fatalidade cosmológica, temos uma atitude de amadores;
e fazemos física para moças. Daí a instabilidade e o
baralhamento dos juízos. Acompanhamos o fenômeno escravizados
à sua cadência rítmica; não lhe antepomos à
intermitência a continuidade dos esforços. Entretanto, o próprio
variar das causas precipitadas nos revela. a sua feição complexa,
exigindo longos e pacientes estudos. E evidente que estes serão sempre
estéreis, adstritos aos paroxismos estivais, desdobrando-se na plenitude
das catástrofes desencadeadas com o objetivo ilusório de as
debelar, quando uma intervenção realmente eficaz só pode
consistir no prevenir as secas inevitáveis, do futuro.
Estabelecido de modo iniludível o fatalismo das leis físicas,
que estão firmando o regime desértico em mais de um milhão
de quilômetros quadrados do território e torturando cerca de
três milhões de povoadores, impõe-se-nos a resistência
permanente, constante, inabalável e tenaz – uma espécie de “guerra
dos cem anos” contra o clima – sem mesmo a trégua dos largos períodos
benignos, porque será exatamente durante eles que nos aperceberemos
de elementos mais positivos para a reação.
As secas do norte interessam a dez Estados. Irradiantes do Ceará, vão,
pelo levante, ao centro do Piauí, buscando as extremas meridionais
do Maranhão, de onde alcançam as do norte de Goiás; alongam-se
para o ocidente abarcando com o limbo fulgurante o Rio Grande do Norte, a
Paraíba, Pernambuco e Alagoas, lançando as últimas centelhas
pelo mar em fora até Fernando de Noronha; e alastram-se pela Bahia
e Sergipe, para o sul, até às raias setentrionais de Minas.

Sendo assim, qualquer que seja o desfalecimento econômico do país,
justifica-se a formação de comissões permanentes, de
profissionais – modestas embora, mas de uma estrutura inteiriça – que,
demoradamente, desvendando com firmeza as leis reais dos fatos inorgânicos
observados, possam esclarecer a ação ulterior e decisiva do
governo.
Não há mais elevada missão à nossa engenharia.
Somente ela, ao cabo de uma longa tarefa (que irá das cartas topográficas,
e hipsométricas, aos dados sobre a natureza do solo, às observações
meteorológicas sistemáticas e aos conhecimentos relativos à
resistência e desenvolvimento da flora), poderá delinear o plano
estratégico desta campanha formidável contra o deserto.
Então, podarão concorrer, reciprocamente nas suas influências
variáveis, os vários recursos que em geral se sugerem isolados:
a açudada largamente disseminada, já pelo abarreirar dos vales
apropriados, já pela reconstrução dos lanços de
montanhas que a erosão secular das torrentes escancelou em boqueirões,
o que vale por uma restauração parcial da terra; a arborização
em vasta escala com os tipos vegetais que, a exemplo do joazeiro, mais se
afeiçoam à rudeza climática das paragens; as estradas
de ferro de traçados adrede dispostos ao deslocamento rápido
das gentes flageladas; os poços artesianos, nos pontos em que a estrutura
granítica do solo não apresentar dificuldades insuperáveis;
e até mesmo uma provável derivação das águas
do S. Francisco, para os tributários superiores do Jaguaribe e do Piauí,
levando perpetuamente à natureza torturada do norte os alentos e a
vida da natureza maravilhosa do sul…
É, por certo, um programa estonteador; mas único, improrrogável,
urgente.
Há bem pouco tempo, num artigo notável, Barbosa Rodrigues demonstrou
o empobrecimento contínuo das nossas fontes, dos nossos rios e até
mesmo das poderosas artérias fluviais da Amazônia.
A palavra austera do naturalista não logrou vingar o reduzido círculo
de alguns estudiosos. Vibrou, inutilmente, como o grito de alarma de uma atalaia
longínqua, avantajada demais. Entretanto, dela se conclui que, dada
a generalidade daquele fato e o seu crescendo desconsolativo, deve engravescê-lo
numa escala maior o regime excessivo dos sertões do norte. O deserto
invoca o deserto. Cada aparecimento de uma seca parece atrair outra, maior
e menos remorada, dando à terra crescente receptibilidade para o flagelo.

Os intervalos que as separam estreitam-se, acelerando-lhe o ritmo, agravando-lhe
o grau termométrico das canículas que são a febre alta
daquela sezão monstruosa da terra. O interessante paralelismo de datas,
que lhes dava um movimento uniforme nos séculos anteriores, parece
destruir-se a pouco e pouco; e os seus ciclos, outrora amplíssimos,
reproduzem-se, cada vez mais céleres e constritos, como arrastados
nos giros cada vez menores de uma espiral invertida.
Deste modo não há vacilar numa ação decisiva e,
sobretudo, permanente.
Os holandeses não se limitaram a construir grande parte da Holanda:
ainda hoje, quando tufam as marés e a onda ensofregada acachoa ruidosa,
chofrando a antemural dos diques, escuta-a da outra banda uma legião
tranqüila e vigilante de engenheiros hidráulicos, os primeiros
do mundo.
A França no arrancar, transfigurada, a Tunísia do Saara, reata
a empresa muitas vezes secular dos romanos.
Porque para esses desastrosos desvios da natureza só vale a resistência
organizada, permanente e contínua.
Além disto, para o nosso caso, trata-se de uma velha dívida
a saldar.
De efeito, por um contraste impressionador, as soalheiras que requeimam o
norte, são elementos benfazejos ao resto do Brasil. Por um lado os
alísios, refertos da umidade captada na travessia do Atlântico,
ao tocarem a superfície calcinada dos sertões superaquecem-se,
conservando, no altear o ponto de saturação, as chuvas que conduzem;
e repelidos pelas colunas ascencionais dos ares em fogo, que se alevantam
das chapadas desnudas, refluem às alturas e vão rolando para
o sudoeste, indo condensar, nas vertentes dos rios que derivam para o Amazonas
e para o Prata, as águas que originam os seus cursos perenes e a fecundidade
das terras.
Por outro lado, aqueles titânicos caboclos, que a desventura expulsa
dos lares modestíssimos, têm levado a todos os recantos desta
terra o heroísmo de uma atividade incomparável: povoaram a Amazônia;
e do Paraguai ao Acre estadearam triunfalmente a sua robustez e a sua esplêndida
coragem de rija sub-raça já constituída.
Assim, sob um duplo aspecto nós devemos, em parte, à sua miséria
um pouco da nossa opulência relativa, e às suas desgraças
a melhor parte da nossa glória.
E esta dívida tem mais de quatrocentos anos…

II
Delineando no artigo anterior um fugitivo esboço da reação
contra o clima singular que vitima todo o norte do Brasil, vimos de relance
os vários recursos que, simultaneamente aplicados, poderiam melhorá-lo;
mas do mesmo passo verificamos que a ação governamental seria
ilusória se não a esclarecessem os elementos e dados positivos
adquiridos em um aturado estudo daquelas paragens, sistematicamente executados
por um grupo permanente de profissionais que, mercê de uma longa estada
sobre o território, estabelecessem com a sua natureza, ainda em grande
parte desconhecida, uma estreita intimidade, facultando-lhes o conhecimento
de seus variadíssimos aspectos e, ao cabo, a revelação
completa dos agentes nefastos que a malignam e devastam.
Não vai nisto a teimosia impertinente de um teórico incorrigível.
Esta exploração científica da terra – coisa vulgaríssima
hoje em todos os países – é uma preliminar obrigatória
do nosso progresso, da qual nos temos esquecido indesculpavelmente, porque
neste ponto rompemos com algumas das mais belas tradições do
nosso passado. Realmente, a simples contemplação dos últimos
dias do regime colonial, nas vésperas da independência, revela-nos
as figuras esculturais de alguns homens que hoje mal avaliamos, tão
apequenadas andam as nossas energias, e tão grandes o descaso e o desamor
com que nos voltamos para os interesses reais deste país. Ricardo Franco
de Almeida Serra, Silva Pontes e Lacerda e Almeida são hoje uns quase
anônimos. Entretanto, os estóicos astrônomos, que os grosseiros
agulhões mal norteavam nas espessuras nunca percorridas, sem o arsenal
suntuoso dos atuais aparelhos, determinaram as coordenadas dos mais remotos
pontos e desvendaram muitos traços proeminentes da nossa natureza.
Ao último não lhe bastou o perlustrar o Brasil de extremo a
extremo. Transpôs o mar, e foi atravessar a África . . .
Não se podiam encontrar melhores mestres, nem mais empolgantes exemplos.
Mas, precisamente ao adquirirmos a autonomia política – talvez porque
com ela ilogicamente se deslocasse toda a vida nacional para os litorais agitados
– olvidamos a terra; e os esplendores do céu, e os encantos das paisagens,
e os deslumbramentos recônditos das minas, e as energias virtuais do
solo, e as transfigurações fantásticas da flora, entregamo-los
numa inconsciência de pródigos sem tutela, à contemplação,
ao estudo, ao entusiasmo, e à glória imperecível de alguns
homens de outros climas. Ao nosso nativismo nascente – e já ouriçado
com os estilhaços dilaceradores da noite das garrafadas, não
escandalizaram os ww ensarilhados, os yy sibilantes, e o estalar dos kk, e
o ranger emperrado dos rr de alguns nomes arrevesados e estranhos. Koster,
John Mawe, Wied-Newied, Langsdorf, Aug. Saint-Hilaire… primeiros termos
de uma série, onde aparecem, num constrangimento de intrusos, raros
nomes brasileiros – e que veio quase interrupto até Frederico Hart,
e que aí está contínua, imperecível e fecunda
com Eugen Hussack, Orville Derby e Emilio Goeldi.
Ora, quaisquer que sejam os inestimáveis serviços deste grupo
imortal de abnegados, são desanimadores.
Não lhes admiremos o brilho até à cegueira. Porque afinal
é lastimável que ainda hoje procuremos nas velhas páginas
de Saint-Hilaire… notícias do Brasil. Alheamo-nos desta terra. Criamos
a extravagância de um exílio subjetivo que dela nos afasta, enquanto
vagueamos como sonâmbulos pelo seu seio desconhecido.
Daí, em grande parte, os desfalecimentos da nossa
atividade e do nosso espírito. O verdadeiro Brasil nos aterra; trocamo-lo
de bom grado pela civilização mirrada que nos acotovela na rua
do Ouvidor; sabemos dos sertões pouco mais além da sua etimologia
rebarbativa, desertus; e, a exemplo dos cartógrafos medievos, ao idealizarem
a África portentosa, podíamos escrever em alguns trechos dos
nossos mapas a nossa ignorância e o nosso espanto: hic abent liones…

Não admiram o incolor, o inexpressivo, o incaracterístico, o
tolhiço e o inviável na nossa arte e das nossas iniciativas:
falta-lhes a seiva materna. As nossas mesmas descrições naturais
recordam artísticos decalques, em que o alpestre da Suíça
se mistura, baralhado, ao distendido das landes: nada do arremessado impressionador
dos itambés a prumo, do áspero rebrilhante dos cerros de quartzito,
do desordenado estonteador das matas, do dilúvio tranqüilo e largamente
esparso dos enormes rios, ou do misterioso quase bíblico das chapadas
amplas… É que a nossa história natural ainda balbucia em seis
ou sete línguas estrangeiras, e a nossa geografia física é
um livro inédito.

***

Aí está para o demonstrar esta questão gravíssima
das secas. Nenhuma outra reclama mais imperativamente conhecimentos positivos
acerca da estrutura dos terrenos.
Entre os recursos sugeridos, que se não excluem e cuja simultaneidade
é indispensável a uma solução definitiva, aponta-se,
preeminente, a açudada em vasta escala.
As mais ligeiras noções climatológicas denotam-lhe o
valor: os numerosos e minúsculos lagos largamente espalhados na região
terão o efeito moderador de um mediterrâneo subdividido; desaparecerão
as colunas ascencionais dos ares adustos, que por ali repulsam vivamente os
alísios, e com eles a umidade recolhida nos mares; as irrigações
fecundarão a terra e, a breve trecho, despertas as suas energias adormecidas,
a renascença da flora ultimará a intervenção humana.
Mas este meio, tão decisivo pelos efeitos prefigurados, será
ilusório sem a preliminar de investigações complexas,
desdobrando-se dos simples trabalhos de nivelamento, aos exames relativos
à permeabilidade ou inclinação dos extratos, até
aos estudos mais sérios e delicados da fisiologia vegetal. Porque mesmo
na passividade inorgânica dos fatos naturais se entrelaçam solidários.
Vai para meio século que Elie de Beaumont o demonstrou, num dos lances
de sua intuição genial. É uma aliança indestrutível
em que os incidentes mais díspares se acolchetam, e os vários
aspectos naturais se desenrolam numa seqüência impecável,
lembrando um enredo firme de onde ressaltam as grandes vicissitudes e, diríamos
melhor, o drama comovedor da existência indefinida da terra. Jamais
o apreenderemos no afogadilho das empreitadas científicas, de todo
inaptas a nos facilitarem, numa síntese final, a imagem aproximada
desses misteriosos passados geológicos, que tanto esclarecem, às
vezes, a nossa situação presente.
Ainda hoje quem contempla, na plenitude do estio, a natureza estranha do norte,
sobretudo nos trechos em que se desatam as chapadas intermitentemente cindidas
de serros aspérrimos e abruptos – não sabe bem se está
sobre o chão recém-emergido de algum mar terciário, ou
se pisa um velhíssimo afloramento do globo, brutalmente trabalhado
pelos elementos; se tudo aquilo é a desordem de um cenário em
preparativos para novas maravilhas da criação, ou um país
que está morrendo; uma construção prodigiosa, em começo,
ou o desabar de uma ruinaria imensa…
A drenagem de águas selvagens, que por ali se exercita nas quadras
tempestuosas, os seus rios que quando transitoriamente cheios volvem as águas
num ímpeto de torrentes colossais, tão céleres que mesmo
quando eles cansam, no falar dos matutos, prestes a secarem, não dão
vau; e o desmantelo das encostas e os pendores arruinados; e aqueles singulares
boqueirões, tão lucidamente vistos por I. Joffili, que as águas
rasgaram nas montanhas – tudo isto denuncia a segunda hipótese. E para
logo nos empolga a imagem retrospectiva de uma terra admirável e farta
e feracíssima – um vastíssimo jardim à margem dos grandes
lagos – nos velhíssimos tempos fora da órbita da nossa história,
antes que estourassem os seus diques de montanhas e a natureza viesse lentamente
definhando – roída pelas torrentes e calcinada pelos sóis, até
ao melancólico aspecto que hoje patenteia…
Ora, se uma série suficiente de realidades observadas desse algum valor
a esta demasiado imaginosa conjectura e pudéssemos reconstruir este
episódio assombrosamente dramático dos nossos fastos geológicos,
bastaria, certo, à nossa intervenção o acompanhar, numa
marcha invertida, os rastos indeléveis dos estragos. Encadeadas as
torrentes e os rios, e restauradas as velhas represas naturais, ligando-se,
mesmo sem a primitiva imponência, os muramentos arruinados das terras
– todo aquele território volveria à fisionomia antiga, pelo
simples jogo equilibrado dos mesmos agentes físicos que hoje tumultuariamente
o devastam.
Mas para que isto suceda, para que nos aparelhemos de uma série completa
de elementos garantidores de uma ação decisiva, faz-se mister
que este problema urgentíssimo das secas seja um motivo para que demos
maior impulso a uma tarefa, que é o mais belo ideal da nossa engenharia
neste século: a definição exata e o domínio franco
da grande base física da nossa nacionalidade.
Aí está a nossa verdadeira missão.
A outros destinos talvez mais altos: a organização das atividades
e do regime geral da riqueza, o doutrinamento filosófico e a direção
política, a remoção das dificuldades presentes e o alevantamento
das tradições históricas; mas todos esses grandes atos
exigem antes de tudo um cenário amplíssimo que os abranja e
não se reduza como até hoje às bordas alteadas dos planaltos
e à estreita faixa de uma costa desmedida. Tudo quanto fizermos fora
deste traçado será vão ou efêmero. Será
o eterno tatear entre as miragens de um progresso falaz e duvidoso, até
agora medido pelos estoques das sacas de café, pelas levas de imigrantes
e por umas combinações políticas que ninguém entende.

III
A expansão imperialista das grandes potências é um fato
de crescimento, o transbordar naturalíssimo de um excesso de vidas
e de uma sobra de riquezas em que a conquista dos povos se torna simples variante
da conquista de mercados. As lutas armadas que daí resultam, perdido
o encanto antigo, transformam-se, paradoxalmente, na feição
ruidosa e acidental da energia pacífica e formidável das indústrias.
Nada dos velhos atributos românticos do passado ou da preocupação
retrógrada do heroísmo. As próprias vitórias perderam
o significado antigo. São até dispensáveis. A Inglaterra
suplantou o Transvaal ao cabo de sucessivas derrotas; amanhã a Rússia,
constantemente batida, talvez esmague o Japão. Estão fora dos
lances de gênio dos generais felizes e do fortuito dos combates. Vagas
humanas desencadeadas pelas forças acumuladas de longas culturas e
do próprio gênio de raça, podem golpeá-las à
vontade os adversários que as combatem e batem debatendo-se, e que
se afogam. Não param. Não podem parar. Impele-as o fatalismo
da própria força. Diante da fragilidade dos países fracos,
ou das raças incompetentes, elas recordam, na história, aquele
horror ao vácuo, com que os velhos naturalistas explicavam os movimentos
irresistíveis da matéria.
Revelam quase um fenômeno físico. Por isso mesmo nesta expansão
irreprimível, não é do direito, nem da Moral com as mais
imponentes maiúsculas, nem de alguma das maravilhas metafísicas
de outrora que lhes despontam obstáculos.
E da própria ordem física.
Realmente, à parte a Rússia seguindo para o levante entre os
mesmos paralelos, a Europa e os Estados Unidos abandonaram as latitudes onde
se formaram; e como, qualquer que seja a flexibilidade do homem para o clima,
os limites históricos dos povos se traçam pelas zonas terrestres
onde surgiram, o problema capital do imperialismo está menos no adquirir
um pedaço de território que na adaptação do território
adquirido. Trata-se de inquirir se a raça branca afeiçoada às
zonas temperadas, que são as das civilizações duradouras,
poderá viver e crescer fora do seu deslumbrante habitat.
Porque as disposições geográficas imutáveis lhe
oferecem os maiores cenários precisamente na África adusta,
na Ásia meridional ardentíssima ou na Austrália desértica,
deixando-lhe como únicas paragens, próprias a uma aclimação
rápida, um trecho do Brasil do Sul, a Argentina, o Chile, uma faixa
do Canadá, a ponta da África e algumas ilhas do Pacífico.

Daí, seguindo de par com a marcha expansionista, industrial e guerreira,
das potências, um movimento científico adrede disposto a facilitar
estas mudanças de povos.
Desbravados os caminhos pelos exércitos, estabelecidas as primeiras
levas de colonos e delineados os primeiros entrepostos – os governos entregam
aos cientistas de todos os matizes a campanha maior e mais longa contra o
clima, e toda a responsabilidade deste transplante das civilizações
sem prejuízo do organismo das raças que as representam. Felizmente
a empresa coincide com a época em que, dominando a máxima especialidade
de ofícios, se entrelaçam, em generalizações admiráveis,
todos os resultados das ciências. Profissões ontem distintas,
fundem-se, vinculadas. A engenharia não lhe bastam os recursos que
vão da matemática à química. As próprias
exigências da tecnologia sanitária dilatam-se à biologia
e às mais altas indagações sobre a vida; enquanto a medicina,
deparando na radiologia nascente inesperados elementos, se alonga pela física,
ou vai, pela bacteriologia, para a amplitude das ciências naturais.

Médicos ou geômetras, ou geógrafos, todos por igual naturalistas,
confundem-se, indistintos, numa tarefa inteiramente nova, a do saneamento
da terra. Passam, sem um desvio na profissão complexa, da geologia
maciça à física quase espiritualizada, do rádio,
ou às indagações biológicas; e inscrita de todo
no quadro dos agentes exteriores, a existência humana vai aparecendo-lhes
feita um índice abreviado de toda a vida universal.
Pelo menos hoje a amparam leis naturais tão rigorosas, que já
não se considera vã a tentativa de bater-se vantajosamente a
fatalidade cosmológica dos climas.
Esta empresa belíssima, porém, realiza-se obscuramente. As linhas
telegráficas não a espalham, são poucas a irradiarem
as notícias e os mínimos pormenores das batalhas. Mal se adivinham
no rastro dos exércitos os agrupamentos pacíficos, armados de
inofensivos aparelhos, dos que observam, e experimentam, e compram, e induzem;
profissionais e operários, estudando as modalidades climáticas
ou corrigindo-as, lucidamente teóricos e maciçamente práticos,
passando da análise dos extratos do solos à dinâmica das
correntes atmosféricas; aqui, redimindo pelas drenagens uma superfície
condenada, mais longe fazendo ressurgir, transfigurado pela irrigação,
um trato morto, de deserto – e por toda a parte polindo ou afeiçoando
o chão maninho, ou os ares perniciosos, às novas vidas que os
procuram.
Obedecem a um programa prescrito e inviolável. Na Franca e na Inglaterra
as escolas de “Medicina Colonial”, onde se matriculam engenheiros
oficiais de marinha, denunciam, pelo simples título, a carreira nova
destinada a sistematizar todos os dados e a balancear todos os recursos decisivos
para esta luta contra os novos meios, desdobrada dos mais simples trabalhos
de campo à mais difícil profilaxia das moléstias que
lhes são imanentes, de modo a auxiliar a adaptação compensadora
do organismo europeu a ambientes tão díspares dos que lhe são
habituais.
E assim se transfiguram a Tunísia e o Egito à ourela dos desertos,
a ilha de Cuba, recentemente; e vão-se transfigurando o Sudão,
a Índia e as Filipinas…
Ora, inegavelmente, um tal objetivo basta a nobilitar as invasões modernas.
Redime-lhe todas as culpas e as grandes brutalidades da força esta
empresa maravilhosa, que é urna espécie de reconstrução
da terra, aparecendo cada dia maior e oferecendo à história
novos cenários no seio das paragens mortas que ressurgem. . .

***

Mas para nós brasileiros, tudo isto é um desapontamento.
Realmente, nesta agitação utilíssima, que fazemos nós?

A parte os Estados do sul, estamos num país que a aclimação,
apenas favorecida pela mestiçagem, condena às formas medíocres
da humanidade.
A faixa da zona tórrida que entra no litoral do Pacífico ao
norte do Peru inflete para o sul, abrange Mato Grosso e vem sair perto de
Santos, deixando-se interferir e cortar pela linha tropical. Deste modo o
Brasil, na sua maior área, está vinculado pelas condições
físicas mais videntes à África Central, à Índia,
às ilhas que se salteiam de Madagascar a Borneo e à Nova Guiné,
e ao extremo norte calcinado da Austrália – em plena “Régio
adusta” fechada à aristocracia dos povos. E um fato plenamente
sabido. Ressalta ao mais breve olhar sobre um mapa. Não há fantasias
patrióticas que no-lo escondam.
E quaisquer que sejam as teorias e hipóteses e imaginosas teses que
desde Montesquieu se degladiam, irreconciliáveis, acerca do valor das
influências extremas – não há desconhecer-se que temos
aquele perpétuo coeficiente de redução do nosso desenvolvimento,
atirando-nos em plano inferior ao da Argentina e do Chile.
Entretanto, não nos impressionamos. Num tempo em que se demonstra a
eficácia da ação do homem sobre o meio, capaz de deslocar
os climas, quedamos numa indiferença muçulmana sob o clima que
nos fulmina. Não o estudamos mesmo rudimentarmente, pela rama, e com
objetivo de o transfigurar. Não temos mesmo esparso, mesmo reduzido
nos pontos principais dos Estados, um serviço meteorológico
sistemático e plenamente generalizado de modo a permitir uma comparação
permanente e contínua das modalidades climáticas. Da terra,
sob os infinitos aspectos que vão da rocha à flor, sabemos apenas
o que se colhe em vários livros estrangeiros e raras monografias nacionais;
e ainda hoje, quando se nos antolha uma bacia de carvão de pedra, ou
um veieiro farto de ouro, faz-se-nos mister a importação de
um sábio.
Deslumbrados pelo litoral opulento e pelas miragens de uma civilização,
que recebemos emalada dentro dos transatlânticos, esquecemo-nos do interior
amplíssimo onde se desata a base física real da nossa nacionalidade.
Ali se patenteiam dois casos invariáveis: ou as populações,
sobre o solo estéril, vegetam miseravelmente decaídas pelo impaludismo,
tão característico das regiões incultas, e vão
formando, pela hereditariedade dos estigmas, uma raça de mestiços
lastimáveis, agitantes num quase deserto; ou as populações,
sobre o solo exuberante, atacam-no ferozmente, a ferro e fogo, nas derribadas
e nas queimadas das largas culturas extensivas, e vão fazendo o deserto.

Este caso é notável no refletir o círculo vicioso da
atividade nacional. Numa época em que dominam os milagres da engenharia
e da biologia industrial – tão grandes os ianques em três anos
transformaram num prado o deserto clássico de Colorado-a nossa cultura
tem como efeito final o barbarizar a terra.
Malignamo-la, desnudamo-la rudemente, sem a mínima lei repressiva refreando
estas brutalidades – e a pouco e pouco, nesta abertura contínua de
sucessivas áreas de insolação, vamos ampliando em S.
Paulo, em Minas, em todos os trechos, mais apropriados à vida, a faixa
tropical que nos malsina.
Não há exemplo mais típico de um progresso às
recuadas. Vamos para o futuro sacrificando o futuro, como se andássemos
nas vésperas do dilúvio.
Não nos contentamos em resolver a golpes de subscrições
intermitentes a fatalidade das secas, que vitimam o norte; vamos além:
alargamo-las criando no sul, sobre as vastas áreas insoladas, continuadamente
crescentes, todas as mínimas barométricas que no-las atrairão
mais tarde…
E tudo isto – esta indiferença ou esta intervenção, ambas
prejudiciais, se observa numa época em que o único significado
verdadeiramente civilizador do movimento expansionista das raças vigorosas
sobre a terra, está todo em afeiçoar os novos cenários
naturais a uma vida maior e mais alta – condensando-se o duro esrnagamento
das raças incompetentes com a redenção maravilhosa dos
territórios…

A MISSÃO DA RÚSSIA

A Rússia é bárbara.
Entre a sociabilidade cortes, o sentimento da justiça e a expansiva
espiritualidade latina, ou saxônia, penetrou, vigorosamente, o impulsivo
e a rude selvatiqueza do tártaro, para se criar o tipo histórico
do eslavo – isto é, um intermediário, um povo de vida transbordante
e forte e incoerente, refletindo aqueles dois estádios, sob todas as
suas formas, da mais tangível à mais abstrata, desde uma arquitetura
original, em que passa do bizantismo pesado para o gótico ligeiro e
deste para a harmonia retilínea das fachadas gregas – ao temperamento
emocional e franco, a um tempo infantil e robusto, paciente ensofregado, em
que se misturam uma incomparável ternura e uma assombradora crueldade.
Polida demais para o caráter asiático, inculta demais para o
caráter europeu – funde-os. Não é a Europa, e não
é a Ásia: é a Eurásia desmedida, desatando-se,
do Báltico ao Pacifico, sobre um terço da superfície
da terra e desenrolando no complanado das estepes o maior palco da história.
A Rússia veio ocupá-la retardatária.
Nasceu quando os demais povos renasciam. Tártara até o século
XV, apareceu – engatinhando para o futuro balbuciante na sua língua
sonora e incompreendida – quando a Europa em peso, num repentino refluxo para
o passado, ia transfigurar-se entre os esplendores da Renascença e
iniciava os tempos modernos, deixando-a, a iniciar, tateando e tarda, a sua
longa Idade Média, talvez não terminada.
Mas aí está a sua força e a garantia de seus destinos.
Ninguém pode prever quanto se avantajará um povo que, sem perder
a energia essencial e a coragem física das raças que o constituem,
aparelhe a sua personalidade robusta, impetuosa e primitiva, de bárbaro,
com os recursos da vida contemporânea.
E nenhum outro, certo, no atual momento histórico, talvez gravíssimo
– porque devem esperar-se todas as surpresas deste renascer do Oriente, que
o Japão comanda – é mais apto a garantir a marcha, o ritmo e
a diretriz da própria civilização européia.
Há quem negue isto. No último número, de junho, da North
American Review, Carl Blind, nome que se ajusta bem a um deslumbrado diante
do grande plágio do Japão – negando ao império moscovita
o papel de campeão da raça ariana contra o perigo amarelo, esteia-se
numa sabidíssima novidade: o russo é duplamente mongólico:
é-o pela circunstância inicial de o constituírem as tribus
khazares e turanas, e pelo fato acidental da conquista tártara, no
século XIII, dos netos de Gengis Khan.
Atraído pela simplicidade deste argumento, conclui que não pode
ser uma barreira ao pan-mongolismo um povo tão essencialmente asiático.
Mas se esquece de que o russo é, antes de tudo, o tipo de uma raça
histórica. Turano pelo sangue, transmudou-se, em quinhentos anos de
adaptação forçada, sob o permanente influxo do Ocidente.
A sua melhor figura representativa é a daquele original e inquieto
Pedro, o Grande, perlustrando a Europa toda num perquirir incansável,
que o arrebatava das escolas para os estaleiros, dos estaleiros para as oficinas,
das oficinas para os salões, entre os filósofos, entre os mestres
e artífices, entre os cortesãos e os reis, observando, indagando
e praticando, imperador, aprendiz e discípulo, bárbaro perdidamente
enamorado da civilização, propelido por uma ânsia inextinguível
de saber e iniciar-se em todos os segredos da existência nova, que anelava
transplantar ao seu povo ingênuo, grandioso e robusto…
Sabe-se quanto foi longa a tarefa.
Durante todo este tempo, não rebrilha o mais apagado nome eslavo. Houve
as tormentas sociais do século XV com a renascença literária
e a renascença religiosa; houve o deslumbramento do período
clássico, e a renovação filosófica subseqüente,
e o cataclismo revolucionário; por fim, de par com o desafogo franco
das ciências, o alvorecer encantador do romantismo.
A mesma Turquia teve no renascimento a sua idade de ouro, na corte do magnífico
Solimão, onde imperava absolutamente o místico Baki, “o
sultão da poesia lírica”.
A Rússia, não. Na sua iniciação demorada, impondo-lhe
o abandono da originalidade de pensar e sentir pela imitação
e pela cópia obrigatórias, quedou pouco além das rudes
rapsódias heróicas dos kalmukos.
Apareceu de golpe, já feita, e foi um espanto. Na região tranqüila
das ciências e das artes, parecia reproduzir-se a invasão da
“Horda Dourada” dos mongóis. De um lado, Wronsky, uma espécie
de Átila da matemática, convulsionando-a com a sua alucinação
prodigiosa de gênio, ora transviado nos maiores absurdos, ora nivelado
com Lagrange na interpretação positiva do cálculo; e
de outro lado, Pouchkine, prosador e poeta, imprimindo no verso e na novela
o vivo sentimentalismo e a energia e as esperanças do seu país.
Então, o poder assimilador do gênio eslavo ostentou-se em toda
a plenitude; e, pouco depois, a nação, educada pela Europa,
apare-
cia-lhe com uma originalidade inesperada, apresentando-lhe aos olhos surpreendidos
e aos aplausos que rebentaram, espontâneos, com Turguenieff, com Dostoiewski,
com Tchkkorf e com Tolstoi, esse naturalismo popular e profundo repassado
de um forte sentimento da raça, que tanto contrasta com a organização
social e política da Rússia.
Estava feita a transformação: as gentes, constituídas
de fatores tão estranhos, surgiram revestidas das melhores conquistas
morais do nosso tempo. Mostra-o essa mesma literatura, onde vibra uma nota
tão impressionadora dramática e humana. Qualquer romance russo
é a glorificação de um infortúnio. Quem quer que
os deletreie variando vontade de autores e de assuntos, deparara sempre a
dolorosa mesmice da desdita invariável, trocados apenas os nomes aos
protagonistas: todos humildes, todos doentes, todos os fracos: o mujique,
o criminoso impulsivo, o revolucionário, o epiléptico incurável,
o neurastênico bizarro e louco. Desenvolvendo este programa singular
e inexplicável, porque, segundo observa Talbot, não há
país que possua menor número relativo de degenerados, o que
domina o escritor russo não é a tese preconcebida, ou o caráter
a explanar friamente, senão um largo e generoso sentimento da piedade,
diante do qual se eclipsam, ou se anulam, o platônico humanitarismo
francês e a artística e seca filantropia britânica.
Nada mais expressivo no trair a alma nova de uma raça do mesmo passo
em conflito com a retrógrada organização social, que
a comprime, e com o utilitarismo absorvente destes tempos. Conforme um acerto
de F. Loliée, o que caracteriza esta mentalidade é a preocupação
superior dos fatos morais, o eterno problema altruísta, para que tendem
todos os impulsos individuais ou políticos, através de uma análise
patética dos menores abalos da natureza humana e visando, essencialmente,
no franco estadear dos males profundos da Rússia, estimular as suas
grandes aspirações e a sua marcha para o direito e para a liberdade.
O próprio niilismo, com as suas mulheres varonis, os seus pensadores
severos, os seus poetas sentimentais e ferozes, e os seus facínoras
românticos – um desvario dentro de um generoso ideal – reponta às
vezes nesta crise, como a forma tormentosa e assombradora da justiça.
No conflito o que se distingue bem é o choque inevitável das
duas Rússias, a nova, dos pensadores e artistas, e a Rússia
tradicional dos czares; o recontro do ária e do kalmuko.
Daí a sua fisionomia bárbara, porque é incoerente e revolta,
surgindo numa profusão extraordinária de vida, em que os velhos
estigmas ancestrais, cada vez mais apagados, mal se denunciam entre os esplendores
de um belo idealismo cada vez mais intenso e alto …

***

Mas daí também a sua missão histórica neste século.
Conquistada pelo espírito moderno, a Rússia tem, naqueles estigmas
remanescentes, admiráveis recursos para a luta que nesta hora se desencadeia
no Extremo Oriente. O seu temperamento bárbaro será o guarda
titânico invencível, não já de sua civilização,
mas também de toda a civilização européia.
O conceito é de Havelock Ellis: o centro da vida universal dos povos
tende a deslocar-se para o Pacífico circundado pelas nações
mais jovens e vigorosas da terra – a Austrália, o Japão e as
Américas.
Ali a Rússia não tem apenas o privilégio de ser a única
representante da Europa, senão o de ser a única entre as nacionalidades
que, por um longo contacto com a barbaria, pelo hábito de vencer e
dominar os impérios orientais tipicamente bárbaros e por conservar
ainda vivazes os atributos guerreiros do homem primitivo – está mais
bem aparelhada a constituir-se o núcleo de resistência do “bloc”
ocidental contra a ameaça asiática.
E inevitavelmente – quaisquer que sejam os prodígios dos bravos generais
e dos bravíssimos almirantes japoneses – a civilização
seguirá para aquele novo mundo do futuro – que margeará o Pacífico
– tomando uma passagem no Transiberiano…

TRANSPONDO O HIMALAIA

Um despacho para o War Office transmitiu as informações do
coronel Younghusband, acerca da primeira vitória decisiva das tropas
que constituem a expedição do Tibete – e aquele telegrama mal
desviou a atenção geral, toda entregue à emocionante
luta russo-japonesa.
Entretanto, ali estão as primeiras linhas de um drama menos teatral
e ruidoso, mas, talvez, mais profundo e de mais imprevistas conseqüências.
pratica, como sempre, a Inglaterra aproveitou as aberturas atuais da Rússia
e transpôs a muralha do Himalaia.
Que vai fazer? Adiante, deixada a orla formosíssima do vale de Cachemira,
desata-se-lhe o planalto, asperamente revolto, que recorda uma dilatação
lateral de enorme cordilheira. Os terrenos ondulam, riçados de gargantas,
dobrando-se em vales numerosos e empinando-se em contrafortes crespos de fraguedos,
formando-se os pamirs desolados e ásperos, quase despidos, onde uma
flora escassa, mal abrolhando entre pedras, reflete todo o excessivo de um
clima impiedoso: de verão, calcinando no reverbero fulgurante das soalheiras;
de inverno, amortalhando a natureza toda no sudário branco das geadas.
Ali não ha firmar-se a mais indecisa continuidade de um esforço.
A vida deriva-se tolhida e incompleta, num permanente mal das montanhas.
Dada uma centena de passos, o forasteiro estaca, ofegante, no delíquio
de um repentino assalto de fadiga, sentindo que não lhe basta aos pulmões
afeiçoados aos ares nativos, toda a atmosfera rarefeita que o envolve.
Fala, e mal percebe a própria voz. Grita, e o grito extingue-se logo,
sem ecos, num abafamento de segredo. Depara os primeiros habitantes e assombra-se.
Está diante de uns originalíssimos colossos-anões, que
resumem na estatura meã todos os extremos da plástica: amplos
torsos de atletas sobre pernas bambeantes e finas, de cretinos.
Compreende então, de pronto, as terríveis exigências de
aclimação deformadora, capaz daquela caricatura horripilante
de titãs.
O inglês, desempenado e rijo, tem naqueles lugares, na sua impecável
harmonia orgânica, uma condição desfavorável e
a fraqueza paradoxal da própria robustez, meio asfixiado num ambiente
que lhe não basta. suplanta-o o indígena desfibrado, o chepang,
ou o hayn, o monstrengo que vive à custa da redução da
vida e da miséria orgânica, largamente satisfeita com uma hematose
imperfeitissíma.
Este, sim, lá se equilibra. Não lhe pula o sangue, a escapar-se
no afogueado rubor das arteríolas refertas; não o estonteia
a vertigem: e o seu pulmão, amplificado à custa da atrofia de
todo o organismo, colhe bem, no espaço rarefeito, a exígua meia
ração de ar de que precisa.
Chegam-lhe, além disso, a fartar, os aleatórios recursos do
solo esterilizado e pobre. E quando não lhe bastassem, lá está,
para ampará-lo e transmudar-lhe em benefícios as misérias,
a sua religiosidade extraordinária, maior que todas as outras, no sistematizar
a renunciação e os sacrifícios.
Realmente, o Tibete – este “teto do mundo”, consoante a hipérbole
oriental – tem, na sua maior cidade, Lassa, o Vaticano do budismo.
A filosofia, que é um prodígio de imaginação e
de incoerência – toda baseada na idéia essencial do nada, ao
mesmo passo que vê na natureza uma infinita série de decomposições
e recomposições sem princípio e sem fim – não
podia encontrar melhor cenário, nem mais apropriada gente.
O Tibete é uma vasta Tebaída misteriosa. Um terço de
sua população é de lamas – monges miseráveis e
repulsivos, vestidos de trapos de mortalhas, meio idiotas e errantes de mosteiro
em mosteiro, de povoado em povoado, ou à toa, pelos descampados, a
pregarem, alucinadamente, a extinção da personalidade, o dogma
do desespero e o tédio universal da vida: enquanto os dois terços
restantes se abatem aniquilados, inteligências mortas sob o fardo de
deuses e de mundos e de kalpas seculares da mitologia formidável, que
as estonteia e que as esmaga…
Toda essa gente ali se agita, num meio sonambulismo. O viajante encontra,
por vezes, em todos os cantos de ruas, à entrada das casas, ou dos
templos, incontáveis moinhos, tocados pelos escravos, ou pelos ventos,
ou pela água – e tem a ilusão do trabalho. Mas a ilusão
apenas. A breve trecho, nota que os cilindros gigantes não esmoem o
trigo, ou separam a lã; sacodem, esterilmente, as orações
e as fórmulas consagradas que contêm.
As energias escassíssimas das gentes vão-se naquele industrialismo
místico da reza.
Então, avalia bem a identidade admirável que no Tibete, associa,
indissoluvelmente, o homem e a terra. Lança o olhar em volta. Contempla
as paragens desoladas e abruptas, tumultuando em píncaros desnudos,
perdidos no silêncio misterioso das alturas, e compreende que para aquele
recanto do planeta, alternadamente trabalhado pelos maiores estios e pelos
maiores invernos – só mesmo a quietude eterna e a imensidade vazia
do Nirvana…

***

Que vai fazer, ali, o inglês?…
Vai defender a Índia. Lorde Curzon, o atual vice-rei, declara-o formalmente;
a Índia é uma enorme fortaleza triangular, tendo o Índico
como um fosso envolvendo-a por dois lados e, pelo outro, o muro do Himalaia.
Transposto este, está uma esplanada, o glacis, que deve jazer na mais
absoluta neutralidade. E a região ao sul do Tibete. Este porém
abandonando, nos últimos tempos, o seu isolamento milenário,
mandou emissários ao tzar, abrindo espontaneamente à política
asiática da Rússia um dilatado campo, que se expande, a partir
das fronteiras orientais do Turquestão. Deste modo, a Rússia,
sobre o glacis, irá ajustar-se, por terra, às lindes da mais
imponente das possessões inglesas, bloqueando-lhe daquele lado trezentos
milhões de súditos.
Daí, esse movimento de contrapolítica, que o Times resume limpidamente:
“A resolução do governo inglês é clara. Para
o russo dominante no Turquestão, o Tibete é um pais muito distante,
que tem muito perto, a um passo, a Índia. E, embora este passo tenha
de dar-se por cima do Himalaia, a grande cordilheira, de modo algum se compara
ao imenso planalto enregelado, onde o caminhante opresso, numa altitude de
5.000 metros, calca, durante dois meses, a neve sem ver um homem, sem ver
uma única árvore entre os piamos do Turquestão e as primeiras
cabanas dos caçadores, a 200 quilômetros de Lassa. Este planalto,
e não a cordilheira, é que forma a fronteira setentrional da
Índia; e o governo inglês não permite que lha ocupem num
movimento ameaçador e contorneante.
A Inglaterra não vai conquistar, povoar, ou colonizar aquele trato
do território. O que a Inglaterra não quer, e tenazmente, é
que lhe extingam aquele deserto – e que penetre no país, perpetuamente
malignado pelo clima, pela imbecilidade dos lamas e pela vadiagem aventureira
dos tchandalas, a alma forte e maravilhosa dos russos.”
Ressalta, nesta circunstância, o significado interessantíssimo
do caso.
A nação mais prática entre todas – onde a inteligência,
conforme a frase de Emerson, está numa espécie de materialismo
mental, porque nada produz sem se basear num fato positivo – coloca-se, inesperadamente,
ao lado da infinita idealização estagnada do budismo…
Porque, afinal, o que convém à política inglesa na Índia
é a permanência da sociedade decaída e apática,
o vazio da célebre “esplanada” – com tanta seriedade e tão
involuntário humorismo exposta pelo previdente Lorde Curzon.
E para isso, armou-se uma expedição, que lá está,
há meses, assoberbada de dificuldades de toda a ordem, num solo onde
as armas inglesas, encontrando nos tibetanos uma resistência inesperada,
ainda não perderam o brilho, somente devido à bravura e à
tenacidade inamolgável dos gurkas e siks do Nepal, os melhores soldados
do velho mundo.
A tomada de Giantsé, efetuada pelo coronel Younghusband, depois de
um rude canhoneio, deu-lhes um ponto estratégico de primeira ordem.
Aquela cidade era o primeiro objetivo da campanha. Segundo se colhe de notícias
anteriores, o governador da Índia pretendia, expugnando-a, transformá-la
num centro de negociações diplomáticas com os grandes
lamas e com o Dalai-Lama de Lassa, por maneira a firmar o prestígio
britânico, sem maiores dispêndios de sacrifícios.
A este propósito, citou-se, mesmo, o grande lama de Tashe Lump, “o
grande mestre”, como o denominam, que assiste em Shigtsé, a poucas
léguas de Giantsé.
Ao que se figura, porém, as tentativas neste sentido fracassaram.
Os últimos despachos noticiam que a expedição, agora
sob o mando direto do general MacDonald, segue rumo decisivo para o seu objetivo
lógico, para Lassa, para o âmago do país, para a Roma
intangível do budismo…
Vai desenrolar-se um dos mais empolgantes episódios da história
universal.
Realmente, devem aguardar-se todas as surpresas, e até as revelações
mais imprevistas, deste recontro:
um conflito entre o povo que melhor equilibra as energias da civilização
moderna e a velhíssima raça, onde melhor se conserva o desvairado
misticismo das sociedades primitivas.

CONJECTURAS

Entre os enredos prováveis que em breve embaralharão a luta
do Extremo Oriente avulta, a ressaltar em destaque sobre todas as conjecturas,
uma ação interventiva da Inglaterra.
Tudo a sugere. A parte um sem número de outras circunstâncias,
mostram-na, com toda a clareza de um traçado geométrico, os
itinerários seguidos pelas duas grandes nacionalidades no velho mundo.
A princípio marcharam paralelamente: o inglês pelo Egito, pelo
Afeganistão, pela Índia; o russo pelo norte do Turquestão
e pela Sibéria em forma a defrontar o Pacífico; e, certo, teriam
no Tibete e na China propriamente dita uma larga superfície isolante,
que devia garantir a imiscibilidade de suas poderosas vagas invasoras, se
uma delas, a russa, não houvesse de inflectir forçadamente para
o sul, tendendo para um encontro, que será um conflito.
De feito, a rota do eslavo para o Oriente – a mais lenta e a maior de todas
as invasões – não denuncia, como a do saxônio, um excesso
de vida, porem a mesma necessidade inflexível de viver. Não
obedece a um traçado sistemático e seco; não vai num
percurso de gentes disciplinadas avançando adstritas à retitude
de programas prefixos – e um espraiamento largo a assoberbar fronteiras, o
refluxo desordenado e em massa de um povo rudemente repelido num final espantoso
de batalhas.
Realmente, a guerra de Criméia fechou o ocidente da Europa à
Rússia e despenhou-a sobre a Ásia. A típica bonomia política
de Napoleão III, com servir tão complacentemente aos interesses
da Inglaterra, em 1853, afigura-se hoje um lance aquilino de estadista maquiavélico,
porque toda aquela campanha recorda um reconhecimento armado preparando meio
século mais tarde uma luta titânica a’ adversária secular
da França.
Era fácil prevê-la. O colosso moscovita, vencido, ficara inteiramente
bloqueado: o Bósforo interdito seqüestrava-o nos seus estepes,
sem saída; e a indústria triunfante das raças vitoriosas
malsinava-lhe, suplantando-lho, o desenvolvimento econômico incipiente.
A Rússia, com a sua estrutura social variadíssima e imperfeita
e a sua atividade ainda tateante entre a servidão e a liberdade, seria
para sempre vencida pelo trabalho organizado e pelas riquezas estáveis
de todo o resto da Europa.
Mas dominou a situação gravíssima. Contornou-a; transmudou
todo aquele recuo num avançamento; e abalou para o levante num movimento
de flanco admirável entre ameaçador e pacífico, porque
não lho estimulava ou inspirava apenas o velho sonho guerreiro de Pedro,
o Grande, a conquista do mar, senão também o anelo de deparar
em outras terras novos centros produtivos, de cultura. Ao revés da
expansão britânica na Índia, não buscava mercados
para o desafogo de indústrias que não tinha, mas novas áreas
de produção industrial e agrícola, onde as caravanas
anuais dos mujiques das Terras Negras – dois milhões de homens periodicamente
postos fora dos lares pela miséria – encontrassem o abrigo salvador
dos territórios ferozes que demoram além dos plainos estéreis
do Turquestão ou da Sibéria.
Para a sua grande vida vacilante e distensa procurou a base econômica
da China – uma Canaã vastíssima…
E assim se traçou a “estrada do império” o transiberiano,
menos um caminho comercial do que um dreno desmedido canalizando para a Rússia
européia toda a força vital da Ásia conquistada.
Para isso se demasiou em esforços em que as empresas militares mal
se destacam entre os prodígios de uma diplomacia incomparável.
Não há resumi-los. Diante dos hábeis diplomatas, de Mouravieff
a Cassini, abria-se o desconhecido: o Império do Meio, com a sua contextura
política indecifrável, onde a autoridade periclitante de uma
dinastia intrusa mal se equilibra entre os Kanatos anárquicos da Mongólia
– e a força religiosa dos lamas do Tibete. Neste sistema desfalecido,
em que divergem os poderes mal unidos pela identidade das crenças difundidas
na amplitude do budismo, penetrou a componente dominante da política
russa, que os equilibrou ou os dirigiu, ou os anulou pelo contraste dos interesses
em jogo; de sorte que a breve trecho a nacionalidade, que se perdia na grandeza
inútil da Sibéria, tendo no Pacifico, em Petropavlosky, uma
saída única obstruída pelos gelos, se dilatou para o
sul até Vladivostock; firmou-se depois, mais avantajada, em Porto Arthur
– de onde assoberbando todo o vale do Amur, abrangeu a Manchúria, e
conquistou o protetorado franco da Mongólia, onde se estréia
a suserania do Tibete…
Em cinqüenta anos expandiu-se em superfície capaz de cobrir a
de toda a Europa ocidental de onde refluíra em 1853.
Foi um triunfo e um revide.
Completa-os – fato sugestivo, ainda que desvalioso – uma destas minúcias
pinturescas tão em destaque as vezes entre os maiores acontecimentos.
De fato, o último aspecto desta estupenda hipertrofia territorial recorda-lhe
o ponto de partida. A extremidade peninsular de Liao-Tong – neste momento
o mais ruidoso palco do drama russo-japonês é a miniatura da
Criméia. Ali ainda se retrata, estereotipado no desmantelamento da
terra, o cataclismo geológico que destacou o Japão da Coréia,
deixando-lhes de permeio a rumaria esparsa das “Dez mil ilhas”,
que fervilham entre Fuzan e Nangasaki. A ponte extrema da peninsular Kuang-Tong,
a “espada do regente”, embebida no mar à feição
de gládio desmedido, denteia-se de numerosas enseadas ou reentrâncias
nos ásperos costões de micaxisto… Numa delas o acesso se faz
por uma passagem estreita, breve angustura de taludes a pique à maneira
de brecha de muralha.
E lá dentro, no encerro da baía, as falésias a prumo
desatam-se em cortinas unidas, encimadas de baluartes, desenrolam-se ou entrelaçam-se
entrincheiramentos, acompanhando os sulcos das ravinas, e os cerros torreados
crivam de fortalezas as alturas …
É Porto Arthur – a Sebastopol ameaçadora do Pacífico.

***

Ora, esta expansão vitoriosa contrabate, de um lado, os interesses
imediatos do Japão transfigurado nos últimos trinta anos, com
uma vida intensíssima a desbordar no âmbito de suas ilhas para
o cenário maior do continente fronteiro – e de outro aos interesses
futuros da Inglaterra na Índia, sobre a qual descerá direta
e esmagadoramente o peso morto formidável deste antigo mundo restituído
à história.
Daí a luta – a luta às claras do Japão, arrojando na
Manchúria todo o seu exército, e a luta surda da Inglaterra,
mal disfarçada sob a forma meio diplomática, meio militar, da
missão do Tibete, que neste momento chega aos muros de Lassa, a “impenetrável”.

Mas neste investir com a capital interdita do budismo, as armas inglesas
vão bater precisamente no centro irradiante das inspirações
superiores da diplomacia moscovita. De fato, toda ela, a despeito da sua complexidade
e das infinitas muralhas em que enleou a metade da Ásia, tem consistido
em destacar o prestígio eslavo entre a fidelidade precária dos
chineses à dinastia reinante e a aversão nacional à expansão
econômica do Ocidente. Teve que harmonizar coisas opostas: captar a
confiança da primeira, protegendo-a ou dirigindo-a, e ao mesmo tempo
o apoio da grande maioria do povo, em quem o nacionalismo antidinástico
é um caso particular de xenofobia, o ódio ao estrangeiro, que
o caracteriza.
Ora, o instrumento desta maquinação – a maior e mais vasta de
quantas intrigas rememora a história foi o mais alto fator da vida
oriental, o clero búdico, a oligarquia teocrática de Lassa,
o árbitro pré-excelente de todas as questões asiáticas.
Tudo mais está num plano subordinado; os nove mil quilômetros
de rails que prendem Porto Arthur a Petersburgo; os possantes locomóveis
que correm hoje pelos plainos da Mongólia, arrastando pesadíssimos
trens e resolvendo o problema da rápida viação sem trilhos;
as cidades russas emergentes com os seus nomes caracteristicamente russos
por toda a Manchúria; as operações em vasta escala do
Banco Russo-Chinês, açambarcando todas as finanças do
Oriente; e todo o vasto acampamento que perlonga as vias férreas, onde
em cada estação se abarraca uma sotnia de cossacos; todas estas
formas materiais e imponentes do domínio têm a garantia maior
da aliança habilmente estabelecida, desde 1901, entre o papa ortodoxo
do Neva e o imperador teocrático de Lassa.
Graças a ela, desenvolveu-se o protetorado russo na Mongólia
e a suserania virtual do czar sobre toda a China. E quando a corte mandchu,
rudemente molestada pela última intervenção européia,
se acolheu sob o amparo da Rússia, desvendou-se inteiramente> diante
da Europa surpreendida, a aliança singularíssima entreabrindo
uma nova fase na história do Oriente.
Delatou-a incidente expressivo. O chefe do budismo, o super-homem tibetano,
modificou a cerimônia tradicional com que através dos séculos
ele consagra os poderes supremos da Ásia: o chanceler de Lassa, conduzindo
os presentes simbólicos do domínio, não se dirigiu mais
a Pequim. Dirigiu-se para a Livadia.
Era a sagração do czar – logo depois sancionada pela própria
dinastia mandchu com o tratado confidencial de julho de 1902. E o enorme bloc
russo-búdico, descendo esmagadoramente sobre a Ásia meridional,
cerrou todas as passagens à expansão inglesa.
Compreende-se, então, a última entente cordialíssima
entre a Inglaterra e a França, rematando tão de improviso uma
rivalidade secular. Não no-la explicam as simples tendências
galófilas do antigo príncipe de Gales. A política inglesa
é a menos sentimental das políticas, e embora a inquinassem
os nossos belos defeitos latinos, o seu aparelho complexo repele todos os
influxos pessoais. A explicação reponta das linhas anteriores.
A arrogância britânica, tão desafiadora ainda há
pouco em Fashoda, transmudou-se em dócil cortesia, porque se lhe antolhava,
depois do problema africano resolvido no Transvaal, o problema asiático,
mais sério e quase misterioso no intricado de infinitas incógnitas.
Previu próxima e inevitável deslocação da sua
força para a Ásia, a enterreirar um antagonista que além
da própria robustez lhe tem às portas, separado pelas seis horas
de travessia da Mancha, um aliado respeitável. Era-lhe preciso remover
todas as interpretações inconvenientes da aliança franco-russa.
Daí as suas transigências quanto aos pontos controvertidos em
Sião, o abandono dos projetos de linhas férreas contrapostos
aos interesses franceses no sudoeste chinês, assim como as suas imprevistas
concessões do norte da África e na Terra Nova – e sobretudo
o afogo, a ânsia, a vibratibilidade perfeitamente latina com que se
precipitam os debates do acordo anglo-francês, na Câmara dos Comuns.
De qualquer modo, deixando o seu esplêndido isolamento, o Reino Unido
enfraquecerá os compromissos franceses na dupla aliança e poderá
abalançar-se à maior das guerras.
A situação é clara.
Se a Rússia for vencida, não terá o apoio do Ocidente
num trabalho de paz que lhe salve ao menos uns restos de domínio. A
convenção anglo-japonesa de julho de 1902, tão denunciativa
do largo descortínio de Chamberlain, e destinada sobretudo a fechar
as estradas da Índia e do Pacífico à Rússia, terá
todos os seus efeitos, e o governo de Mikado ficará largamente compensado
do amargo desapontamento daquele ilógico tratado de Simonosaki, em
que as nações interventoras, entoando um vae victoribus! extravagante,
lhe remataram as vitórias sobre a China, obrigando-o a respeitar a
integridade territorial do vencido. A Coréia, o Império da Manhã
Serena, cairá inteiramente na órbita do Sol Levante…
E se a Rússia triunfar – o historiador futuro terá de narrar
uma campanha tão anormal, tão vasta e cheia de titânicas
batalhas, que todos os recontros e assaltos desta rude refrega, desencadeada
agora no Oriente, surgirão apequenados, feitos simples combates de
vanguardas.

CONTRASTES E CONFRONTOS

Quem vai com Humboldt através das serras e das gentes do Peru, observa
um paralelismo interessante.
Copiam-se, refletem-se. A história, ali, parece um escandaloso plágio
da natureza física. Busquemo-la em todos os tempos e em todas as datas
– com o arqueólogo nos baixos relevos dos templos desabados, com o
geólogo nas páginas unidas dos extratos que se dobram nas vertentes
abruptas, ou com os cronistas coloniais nas emocionantes narrativas dos “conquistadores”
e veremos um baralhamento de contrastes em que os fatos sociais recordam um
decalque dos fatos inorgânicos, repontando, reproduzindo-se e traduzindo-se
entre dois extremos: os Andes e a civilização dos incas, os
terremotos e o Peru dos “pronunciamentos”.
Vai-se da terra que se retalha e se esboroa presa nas redes vibrantes das
curvas sismais que rudemente a sacodem, à impotência imóvel
da cordilheira equilibrada numa ossatura rígida de dolerito; do império
patriarcal, e esteado numa teocracia inflexível e do regime das castas,
à república revolta e doidejante, intermitentemente abalada
pela fraqueza irritável dos caudilhos.
Não se disfarçam estes contrastes e estas identidades. Eles
lá estão na faixa litorânea amaninhada pelas dunas e na
montana feracíssima, que as matas ajardinam. Numa e noutra se fronteiam
um passado imemorial quase maravilhoso e um presente indefinido e deplorável.
Fronteiam-se e repelem-se. Destacam-se tão incompatíveis que
o viajante, sem que o perturbem os agrupamentos incaracterísticos que
hoje ali se agitam, pode reconstruir nos seus aspectos dominantes toda a idade
de ouro dos aimaras.
Segue a princípio pelo deserto salpintado de oásis, que se desata
de Arica e Tumbez, e encontra para logo, nas huacas subterrâneas, a
própria sociedade antiga: múmias ressequidas, abertos no escuro
das colônias tumulares os olhos de esmalte, num protesto eloqüentíssimo
contra a destruição.
Mais longe, nas cercanias de Pachacamac, as ruínas dos primeiros santuários
do Sol: longas galerias de muros derruídos culminando as serranias,
e os primeiros baluartes arremessados na altura nos cimos que sobranceiam
o Pacifico, denunciando um tino incomparável nos dispositivos para
a defesa do território.
Prossegue até Trujillo e desponta-lhe um traço superior de caráter
utilitário da administração incaica; as acéquias
e os diques que canalizavam ou abarreiravam os rios, alastrando em largas
superfícies as redes irrigadoras, permitindo culturas opulentas em
lugares onde jamais chove, ou um trecho muitas vezes secular, de estrada incomparável,
investindo com os primeiros esporões da cordilheira… Subindo-a, vai
num crescendo a imagem retrospectiva do passado.
A paisagem torturada da serra, em que a luz crua do trópico não
anima as cores apagadas da flora rarefeita, e os horizontes se abreviam no
escarpado dos pendores, não impressiona. Suplanta-a a ruinaria da civilização
lendária: É a princípio a mesma estrada que se pisa:
uma avenida do Equador ao Chile, torneando as encostas em cortes na rocha
viva, transpondo despenhadeiros em pontes suspensas que precederam de séculos
às da nossa engenharia pretensiosa, e evocando nos traços remanescentes
dos postos militares, nas estações intervaladas, nos parques
escalonados em que se encerravam os lamas velocíssimos, os tempos gloriosos
em que lhe batiam no calçamento de silhares o tropear dos exércitos,
o galope dos correios céleres e a marcha das longas caravanas dos mercados
tranqüilos.
Ladeiam-na fortalezas e templos.
De Cajamarca a Cuzco não há talvez um quilômetro onde
uma pirâmide truncada, um obelisco, um pilar, um pedaço de muro,
um pórtico desabado, um bloco de granito polido com desenhos em relevo,
e um renque de monólitos, e uma cariátide monstruosa de porfiro
azulado – não recordem a raça extraordinária que, sem
conhecer o ferro, se afoitou a cinzelar a pedra, e com uma frágil ferramenta
de bronze criou uma escultura monumental em blocos de montanhas.
Em Olaitaitambo os santuários talharam-se na rocha viva.
Pisace é um contraforte de cordilheira e uma fortaleza; coroam-na sete
píncaros, sete baluartes; ninguém lhe marca o ponto em que as
ousadias do homem cederam às grandezas naturais, porque com lhe derivarem
as encostas em taludes fortes, as plataformas circulantes que lhas dominam
em sucessivos patamares multiplicaram-se, cobrindo-as inteiramente com a imagem
exata de uma assombrosa escadaria de gigantes.
A estas brutalidades da força aliaram-se, maiores, os prodígios
da inteligência. A natureza que lhe negava as chuvas, o inca contrapôs
a preocupação científica do estudo persistente do clima,
ainda hoje tão bem denunciado no aquário de pedra do observatório
higrométrico de Quenco.
Foi buscar os mananciais eternos dos nevados; captou-os; dirigiu-os em aquedutos,
ora ajustados às vertentes, ora, subterraneamente, varando serranias;
ou então – pormenor que é um recuo considerável das origens
da hidráulica moderna – lançados de uma a outra serra em vasos
comunicantes desmedidos. Por fim, nos lugares onde não encontrou o
cerne rijo da terra para erigir os seus monumentos, inventou os aparelhos
poligonais ciclópicos: uma arquitetura para desafiar o cataclismo…

***

Mas não previu o espanhol do século XVI.
A raça forte e pacífica, que dava os primeiros lugares aos inspetores
agrícolas, aos engenheiros, que lhe abriam as estradas e os canais,
e aos arquitetos que lhe alteavam os templos, foi colhida à traição
pela brutalidade militar da Espanha.
Fez-se na história a cópia servil de um daqueles terremotos
que no Peru subvertem cidades em minutos.
A unidade da raça autóctone, disciplinada e integra, marchando
com um método tão seguro que lhe permitiu tão altos cometimentos,
contrapôs-se a desordem de uma exploração em larga escala
e o dispersivo dos caracteres de imigrantes atraídos de todos os países.

Porque o peruano é, ainda mais do que nós, uma ficção
etnográfica.
Em 1873 Charles Wiener contemplou, numa das ruas de Lima, uma galeria de quase
todas as raças – o branco, o negro, o amarelo e o bronzeado e todos
os cambiantes destas cores do bambo ao cholo, do mulato ao chino-cholo – completada
por uma separação absoluta de classes, do cooli, que aluga a
liberdade, substituindo o negro, ao estrangeiro que ali chega, explora adoidamente
a terra e vai-se embora, ao quíchua, espalhando na tristeza incurável
a doença de sua gens que está morrendo… No alto o neto dos
conquistadores, o quase hidalgo, em que pese a mestiçagem, o condutício
dos caudilhos, o irrequieto industrial das revoluções, o que
se diz peruano, guardando, intacta, a velha altivez espanhola, quer a estadeie
entre as opulências das haciendas, ou a levante, mais impressionadora,
revestido de andrajos, e mendigando intimamente como se fosse um gentil-homem
da miséria…
Ora, toda essa gente – à parte as culturas nos pontos em que se desenterram
as acéquias dos antigos – de um modo geral se aplica aferradamente,
numa agitação ansiosa, aos únicos trabalhos que lhe não
implicam as disparidades de um temperamento e as divergências de esforços:
saqueia a terra e o passado. Arrebata-lhes o ouro, e a prata, e os nitratos,
e o guano, e as múmias, e as pedras dos templos.
Desbastam-se as costas e as ilhas, degradam-se os flancos das serranias, profanam-se
as pirâmides funerárias, e revolvem-se as huacas, que, às
vezes, valem pelas melhores minas, bastando notar-se que com um quinto de
ouro de uma delas se construiu Trujillo…
Não se define o repulsivo dessas pesquisas lúgubres e dessa
indústria macabra, que tem como matéria-prima arcabouços
disjungidos e profanados, ou velhos sudários em pedaços.
Nada caracteriza melhor o parasitismo, o apego as tradições,
a falta de solidariedade e o desequilíbrio da energia das gentes que
abarracaram por aquelas bandas.
O passado é um despojo.
Aproveitam-no na sua forma estreitamente utilitária. E neste apropriar-se
a esmo, a sociedade revolucionária e frágil vai dando uma expressão
tangível ao contraste que a apequena ante a sociedade morta: vêem-se
então mesquinhos pardieiros desequilibradamente erectos sobre embasamentos
ciclópicos; ou cidades, e citemos apenas o Huamachuco, construídas
com os blocos arrancados dos templos: uma triste projeção horizontal
de velhas fachadas, um acaçapado estiramento de grandezas repartidas
em casas de tetos deprimidos e paredes espessas, e uma melancólica
arquitetura de ruínas…

***

Ora, esta atividade, que um sem-número de causas físicas e
sociais tornaram impulsiva, agitadíssima e estéril, derivando
em desfalecimentos e arrancos, rebate-se na existência política
do Peru. Daí a monotonia irritante dos pronunciamentos, os desastres
das guerras infelizes e o tumultuário das perigosas sucessões
presidenciais, que ora se fazem, progressivamente, à americana, a revólver,
ora com o requinte feroz daquele suplício dos dois usurpadores Gutierres
– expostos, oscilantes, nas torres da Catedral de Lima, e despenhados depois,
do alto daquelas duas Trapeas barrocas para as fogueiras vingadoras acesas
na Plaza de Armas…

***

Confrontados estes contrastes, acredita-se quase que as incursões
peruanas, neste momento exercitadas nas fronteiras remotas do Alto Juruá,
se traduzam como uma retirada, uma tendência para abandonar a estreita
e alongada região onde uma nacionalidade, cujos antecedentes étnicos
prefiguram mais elevados destinos, jaz bloqueada entre o maior dos mares e
a maior das cordilheiras, sobre um solo batido pelo desequilíbrio dos
agentes físicos e em contacto com um passado que tanto tem influído
na sua desfortuna.
Realmente, no levante, transmontada a segunda cadeia dos Andes, desdobra-se
a natureza estável – sem catástrofes e sem ruínas – guardando
intactas as forças criadoras, à espera da componente prodigiosa
do trabalho, e oferecendo, no remanso das culturas, na disciplina da atividade
adstrita a longos esforços consistentes, e na sugestão permanente
da própria harmonia natural, a situação de parada que
sempre faltou aos peruanos para que se lhes despertassem os notáveis
atributos, até hoje suplantados por uma combatividade, que é
uma fraqueza e é um anacronismo. Mas esta só poderá engravecer,
criando-lhes maiores desditas, se, ressurgindo sob um novo aspecto, for encontrar
novos alentos nas arrancadas dos caucheiros que estão prolongando na
devastação das grandes matas, um longo, um antiquíssimo
tirocínio de tropelias.

CONFLITO INEVITÁVEL

As incursões peruanas não denunciam apenas a avidez de alguns
aventureiros doidamente ferretoados da ambição que os arrebata
às paragens riquíssimas dos seringais. São mais sérias;
são quase um expressivo movimento histórico, desencadeado com
uma finalidade irresistível. Não as determinam apenas as energias
sociais instáveis e dispersivas da república sul-americana mais
malignada pela caudilhagem, senão as mesmas leis físicas invioláveis
de toda aquela zona.
Realmente, quem quer que contemple através da visão prodigiosa
de Humboldt, ou da clara inteligência de C. Wiener, todo o trato de
terras que vai de Arica a Trujillo, constrito entre o Pacífico e os
Andes, compreende que os destinos do Peru oscilam entre dois extremos invariáveis:
ou a extinção completa da nacionalidade suplantada por uma numerosa
população adventícia, que assume todas as modalidades
do alemão industrioso ao cooli quase escravo – ou um desdobra. mento
heróico para o futuro, uma entrada atrevida na Amazônia, um rush
salvador às cabeceiras do Purus, visando do mesmo passo uma saída
para o Atlântico e um cenário mais e mais fecundo às atividades.
Não há escapar às aperturas do dilema.
A posição prejudicial dos Andes cria ao Peru, como à
Bolívia, regimes que se combatem: um litoral estéril que mal
se alarga em dunas ondeantes, separado, por uma cordilheira, da porção
mais vasta e mais exuberante do país. Na estreita faixa da costa, onde
se adensou o povoamento e se erigiu a capital, e pulsa toda a existência
política da república, estira-se um esboço de deserto;
na montana alpestre do levante e mais longe nas planícies amplas, cobertas
de florestas estupendas, por onde derivam, remansados, os últimos galhos
dos tributários do Amazonas – pervagam, errantes, as tribos dos quichuas
inúteis.
Deste modo a natureza criadora e forte do oriente se desentranha em riquezas
incalculáveis diante das vistas incuriosas do selvagem – enquanto no
ocidente as praias e vales areentos mal revestidos de uma flora tolhiça
onde rebrilham os cristais nitrosos e se derrama em largas superfícies
a lava endurecida, vão a pouco e pouco molificando o temperamento dos
descendentes diretos dos “conquistadores”.
Realmente, ali, naquela tira litorânea e primeiros recostos andinos,
que formam, afinal, toda a geografia política do Peru, a sociedade
não se irmana à terra, desatando-lhe as energia recônditas
e nobilitando-a pelas culturas. Faz uma aliança com os terremotos:
devasta-a.
Enquanto estes lhe devoram as cidades, e lhe desviam os rios, e a retalham
de fendas em que se enredam, baralhadas, as curvas sismais dos cataclismos
– ela despedaça os flancos das montanhas em procura de ouro e de prata;
perfura, escava e esquadrinha as dunas onduladas onde repousa há séculos,
nas huacas subterrâneas, a sociedade espectral dos incas mumifícados
com as suas incalculáveis riquezas, perquire e tala os descampados
na faina estonteadora da exploração dos nitratos de sódio;
e desbasta as costas e as ilhas na pesquisa do guano, que exporta para o estrangeiro
sem notar que a natureza previdente lhe oferece ao lado da esterilidade do
solo os adubos preexcelentes que a destroem.
Mas ainda nesta atividade febril e parasitária, desencadeada à
ventura, o peruano não está só. Em qualquer rua de Lima,
já o notou um observador, se ostenta a mais numerosa galeria etnográfica
da terra: do caucásio puro, ao africano retinto, ou amarelo desfibrado
e ao quichua decaído; e entre estes quatro termos principais, as incontáveis
variedades de uma mestiçagem dissímil do mulato de todos os
sangues, aos zampos e cafuzos, aos cholos que lembram os nossos caboclos,
e aos interessantíssimos chino-cholos em cujos rostos se fundem as
linhas capitais de quase todas as raças. Assim, ao desordenado das
atividades se prende o conflito inevitável dos temperamentos. A vida
decorre sem continuidade, sem a disciplina resultante de uma harmonia de esforços
que extinga o dispersivo indispensável dos ofícios; e a sociedade
incaracterística, sem tradições definidas – porque a
invade e a perturba, intermitentemente, a grande massa de estrangeiros que
a explora e abandona – parece refletir na ordem política o desequilíbrio
das forças naturais que lhe convulsionam o território, oscilando,
dolorosamente, sacudida pelos terremotos e pelos “pronunciamentos”.
Ninguém lhe lobrigou ainda um aspecto estável, um caráter
predominante, um traço nacional incisivo. Perenemente em começo,
nesse agremiar os tipos adventícios de todos os quadrantes, vai absorvendo-lhes
e refletindo-lhes por igual os atributos superiores e os estigmas. Quem lhe
deletreia os fastos segue através de uma vertigem, e sofre o constante
saltear das emoções mais opostas emergentes num baralhamento
de sucessos que se entrechocam díspares. Depois de sentir o mesmo espanto
de Darwin ao ver em 1832, na catedral de Lima, desdobrar-se sobre a tropa
genuflexa a lúgubre bandeira negra de uma revolta inesperada, completando
um Te-Deum – sente a frívola alegria de Offenbach ao divisar a mantilha
rendada da Perichole que tanto justificou a ironia popular (Perra e chola!)
pela vida desmandada na corte pretensiosa do antigo Peru dos vice-reis.
Passa do trágico ao repulsivo, do assombroso ao gracil.
Ora, este jogar de contrastes oriundos em grande parte do viver aleatório
de uma sociedade que parece estar apenas abarracada no território alongado
que prolonga o Pacífico, não escapou aos estadistas peruanos.
Nascem daquela localização prejudicial sobre um chão
maninho encerrando riquezas ocasionais que dia a dia decrescem, que se não
reproduzem e dão ao trabalho improdutivo de as descobrir um triste
aspecto de pilhagem – confundindo na mesma azáfama tumultuária
a aglomeração irrequieta em que há todos as raças
e não há um povo…

***

A salvação está no vingar e transpor a cordilheira.
Ali ao menos há a sugestão dominadora da civilização
surpreendente dos incas: a estrada de duas milhas distendida de Quito às
extremas do Chile, lastrada pelas neves eternas, contorneando encostas abruptas
em releixos de rocha viva, alcandorada em pontes pênseis sobre abismos,
e estirando nas planuras as calçadas eternas de silhares unidos com
cimento betuminoso; e os velhíssimos baluartes pré-incaicos
feitos de montanhas inteiras arremessando-se nas alturas em sucessivos patamares
ameados; e a ruinaria dos santuários do Sol com os seus aparelhos ciclópicos
de blocos poligonais de porfiro brunido; e os longos aquedutos do monte Silva,
em cujos canais subterrâneos, perfurando as serras, se espelham esforços
de uma engenharia titânica…
Depois, descidas as vertentes orientais da primeira cadeia dos Andes, transposta
a “montaña” e a segunda cordilheira – a terra exuberante
é de medida, prefigurando nas grandes matas a mesma hiloe amazonense.
Nesta região, tão outra, está – pela implantação
do trabalhador e pelo equilíbrio da existência agrícola
a redenção daquelas gentes que possuem os melhores fatores para
um elevado tirocínio histórico.
Mas, ao mesmo passo que lhes despontam estas esperanças, extingue-lhas
a mesma cordilheira com o seu largo tumultuar de píncaros e de pendores
impraticáveis num alude vivo de muralha, que lhes trancam quase por
completo as comunicações com o litoral. De fato, o Pacifico,
ainda que se rasgue o canal de Nicarágua, parece que pouco influirá
no progresso do Peru. O seu verdadeiro mar é o Atlântico; a sua
saída obrigatória o Purus. Sabem-no há muito os seus
melhores estadistas: a expansão para o levante traduz-se-lhes como
um dever elementar de luta pela vida. Revelam-no todos os insucessos de numerosas
tentativas buscando libertá-los das anomalias físicas que o
deprimem. Revelou-as desde 1879 C. Wiener: “Os peruanos aquilatam bem
a importância enorme que teriam as estradas, ligando os afluentes navegáveis
do Amazonas e do Ucayali às cidades do litoral; fizeram todos os esforços
para executá-las porque lhas impõem a lógica e o interesse;
mas parece que a sua força de vontade é menor que a constituição
física dos autóctones”.
De feito, contemplando-se diante de um mapa a faixa costeira entre Pachacamas
e Tumbez, nota-se um como diagrama daquelas tentativas desesperadas e constantes.
Foi a princípio, no extremo norte, a linha férrea de Paita e
Piura, procurando os tributários setentrionais do Solimões;
depois, próxima e ao sul, uma outra, de Lambayaque a Ferenafe: ambas
estacionaram, trilhos imersos nos areais da costa. A terceira, lançada
de Pascamayo à estação terminus de Cajamarca, e a quarta
partindo de Salavery, pouco ao sul de Trujíllo – buscavam as linhas
de derivação do Ucayali: embateram ambas de encontro às
fílades espessas e aos dolentos e quartzos duríssimos das cordilheiras.
A quinta, a admirável estrada de Oroya, dominou parte da serrania,
mas ficou bem longe do seu objetivo essencial no transmontar as últimas
cordas de serras, varar pelas planícies do Sacramento e alcançar
o Purus.
Esta é expressiva: mostra como o traçado do grande tributário
do Amazonas, em cujas margens contendem agora os flibusteiros, norteia de
há muito a administração daquela república.
Por outro lado, desde 1859, com Faustino Maldonado e dez anos depois com o
coronel Latorre, sucessivas expedições se lançam para
o oriente impelidas por alguns abnegados caídos todos naqueles lugares
remotos, numa extraordinária intuição dos interesses
reais. do seu país.
Estes antecedentes delatam nas perturbações que lavram em toda
aquela zona um significado bem diverso do que lhe podem dar algumas correrias
de seringueiros.
A guerra iminente tem uma feição gravíssima.
Se contra o Paraguai, num teatro de operações. mais próximo
e acessível, aliados às repúblicas platinas, levamos
cinco anos para destruir os caprichos de um homem – certo não se podem
individuar e prever os sacrifícios que nos imporá a luta com
a expansão vigorosa de um povo.

CONTRA OS CAUCHEIROS

A remessa de sucessivos batalhões para o Alto Purus – movimento de
armas recordando um começo de guerra declarada – parece uma medida
elementar de previdência.
É um erro. Não implica apenas o desfalecido das nossas finanças,
nem se limita a projetar, de golpe, um brilho perturbador de baionetas no
meio de um debate diplomático; vai além: prejudica de antemão
a campanha provável e torna desde já precária a defesa
das circunscrições administrativas criadas pelo tratado de Petrópolis.

Estas afirmativas parecem paradoxais, e vão muito ao arrepio da corrente
geral da opinião revoltadíssima contra esse Peru – tão
fraco diante da nossa própria fraqueza. Mas são demonstráveis.
Está passado o tempo em que a honra e a segurança das nacionalidades
se entregavam, exclusivamente, ao rigor das tropas arregimentadas.
A última guerra do Transvaal, à parte os efeitos materiais,
teve conseqüências surpreendentes. Estão ainda vivíssimos
em todas as memórias os admiráveis episódios daquela
esgrima magistral dos boers contra as armas pesadas da Inglaterra; e entre
eles, um que pelo aparecer constante e invariável nos dois campos adversos,
se reveste quase do caráter de uma lei, se é que as tem a maneira
heróica de brutalidade humana. Indiquemo-lo: em Paardeberg, quando
as tropas regulares inglesas recuaram rudemente repelidas dos entrincheiramentos
de Cronje, ampararam-na os voluntários canadenses num assalto brilhante,
que ultimou no assédio; Kimberley, defendida pelos cidadãos
armados, reagiu com mais eficácia e diante de mais numerosos sitiantes
do que Ladsmith guarnecida pela tropa de linha; em Magersfontain o pânico
dos soldados teve o corretivo instantâneo de uma ducha, na fria impassibilidade
dos highlanders escoceses… São fatos expressivos. Não escaparam
à visão dos modernos profissionais da guerra. O coronel Henderson,
que os testemunhou de perto, no estado-maior de Lorde Roberts, explica-os
pelos terríveis efeitos desmoralizadores do armamento moderno e pelos
embaraços criados pela pólvora sem fumaça.
O espírito de classe e a alta responsabilidade que lhe advém
do cargo que ocupou junto ao comandante em chefe, não lhe tolheram
o dizer nuamente que toda a luta sul-africana fora a glorificação
dos lutadores improvisados, e a triumph for the principle of voluntary service.

De Bloch foi ainda mais incisivo: a preeminência do civil resulta-lhe,
iniludível, das mesmas condições do campo das batalhas
modernas, onde a virulência e rapidez do tiro impõem uma dispersão
de todo oposta aos dispositivos das paradas e das manobras. Em tais circunstâncias
os oficiais não podem dirigir efetivamente os soldados, e estes, sem
o hábito das deliberações próprias, estonteiam,
desunidos e inúteis, porque quanto maior é a sua disciplina
e o “training” da fileira, tanto menor é a aptidão
individual de agir.
O argumento é impressionadoramente claro: o civil apanhado a laço,
o voluntário de pau e corda, o caipira a quem a farda aterroriza-mas
cuja capacidade de ação se desenvolveu autônoma nas caçadas,
na faina da lavoura, nos múltiplos ofícios, nas viagens e nas
várias peripécias de uma existência modesta e livre, surge
de improviso desarticulando todas as peças da sinistra entrosagem em
que a arte militar tem triturado os povos.
E para que isto sucedesse bastou que esta última se desenvolvesse ao
ponto de deslocar todas as velharias da tática, firmando a única
garantia dos combates nas faculdades de iniciativa.
A conclusão é tão arrojada, e deforma tanto os moldes
do conceito vulgar, que precisamos afastá-la da nossa responsabilidade
de latinos sentimentais e exagerados. Deixemo-la aí blindada na rigidez
britânica: “It is this quality which makes the superiority of the
boers over the british. And it is this also which accounts for the superiority
of the british civilian over the british regular”. (De Bloch – The wars
of the f uture) .
Assim se esclarecem notáveis anomalias: a glória napoleônica,
em que colaborou talvez o precipitado de recrutas colhidos em todos os pontos
e que iam aperrar pela primeira vez as espingardas na frente do inimigo; as
batalhas estupendas da guerra da Sucessão; o esporte ruidoso e álacre
dos americanos em Cuba; e, neste momento, os desfalecimentos da formidável
disciplina russa diante da vibratibilidade japonesa…
Inesperado desfecho: a guerra cresceu para diminuir na guerrilha; e depois
de devorar os povos devora os próprios filhos, extinguindo o soldado.
Não é Marte, é Saturno.
Reagiu à reprimenda dos filósofos e ao sentimentalismo dos poetas;
evolveu ilogicamente apropriando-se dos recursos da ciência, que a repelem,
e dos da indústria, que é a sua antítese; por fim, armou-se
com uns dez milhões de baionetas e transformou-as na arma única
que a trespassa. Acaba como os velhos facínoras salteados pela fadiga
moral dos próprios crimes. Suicida-se.
Ora, um fato que ressalta tão vivo no esmoitado e no desimpedido dos
campos mais próprios aos combates e aos seus alinhamentos prescritos,
naturalmente se ampliará no embaralhado e no revolto do Alto Purus
e do Alto Juruá, onde, até materialmente, são impossíveis
aqueles dispositivos.
Ali não nos aguardam tropas alinhadas. Esperam-nos os caucheiros solertes
e escapantes, mal reunidos nos baleões de voga, dispersos nas ubás
ligeiras, ou derivando velozmente, isolados, à feição
das correntes, nos mesmos paus boiantes que os rios acarretam; e repontando,
a súbitas, na orla florida dos igapós, e desaparecendo, impalpáveis,
no afogado dos paranamirins, onde se entrançam as ramagens das árvores
que os escondem; ou girando pelas infinitas curvas e pelos incontáveis
furos que formam a interessantíssima anastomose hidrográfica
dos tributários meridionais do Amazonas.
A imagem material de uma campanha, ali, será o labirinto inextricável
dos igarapés. Aos nossos estrategistas não impenderá
a tarefa relativamente fácil de bater o inimigo – mas a empresa, talvez
insuperável, de lobrigar o inimigo. Iludem-se os que imaginam que o
só aparecimento de alguns corpos de tropas regulares no desmarcado
trato de terras que demoram entre o Juruá e o Acre – baste a policiá-las,
e a garantir os povoadores, e a impedir a violação de uma fronteira
indeterminada. Os batalhões maciços, presos a uns tantos preceitos
e ao retilíneo das formaturas, serão tanto mais inúteis
quanto mais disciplinados e feitos à solidariedade de movimentos. O
melhor de sua organização militar impecável culminará
no péssimo da mais completa inaptidão a se ajustarem ao teatro
das operações, e a enfrentarem o torvelinho dos recontros súbitos
ou a se subtraírem aos perigos das tocaias. Não exemplifiquemos,
recordando lastimáveis sucessos da nossa história recente.
Sobre tudo isto uma consideração capital. Aqueles longínquos
lugares do Purus – mais conhecidos hoje, depois da exploração
de Chandless, do que muitos pontos do nosso far west paulista – exigem uma
aclimação dificílima e penosa. Apesar de um rápido
povoamento, de cem mil almas em pouco mais de trinta anos, tem ainda o caráter
nefasto das paragens virgens onde a copiosa exuberância da vida vegetal
parece favorecida por um ambiente impróprio à existência
humana. O seu quadro nosológico assombra, pela vasta série de
doenças, que vão das maleitas permanentes à hipoemia
intertropical entorpecedora e àquela originalíssima “purupuru”
que não mata mas desfigura, embaciando a pele do selvagem e dando-lhe
um facies de cadáver, pondo no rosto do negro, salpintado de manchas
brancas, uma espantada máscara demoníaca, e imprimindo no do
branco a brancura repulsiva do albinismo . . .
Vê-se bem quantos agentes, dispares nos aspectos mas convergentes nos
efeitos, das conclusões mais recentes da técnica guerreira às
mínimas exigências climáticas, concorrerão no invalidar
a ocupação estritamente militar daquela zona.
Além disto, as forças para repelir a invasão já
ali se acham, destras e aclimadas, nas tropas irregulares do Acre, constituídas
pelos destemerosos sertanejos dos Estados do norte, que há vinte anos
estão transfigurando a Amazônia. Eles formam o verdadeiro exército
moderno como o preconizam, como o desejam, como o proclamam altamente, dentro
dos círculos militares da Europa, os luminares da guerra precitados
– não já para o caso especial das guerrilhas, mas para todas
as formas das campanhas, quer estas se desenrolem nos campos clássicos
da Bélgica, quer na topografia revessa do Transvaal. E confiados naqueles
minúsculos titãs de envergadura de aço enrijada na têmpera
das soalheiras calcinantes, a um tempo bravos e joviais, afeitos às
deliberações rápidas e decisivas de uma tática
estonteadora, que improvisam nos combates com a mesma espontaneidade com que
lhes saltam das bocas as rimas ressoantes dos folguedos – poderemos permanecer
tranqüilos.
Para o caucheiro – e diante desta figura nova imaginamos um caso de hibridismo
moral: a bravura aparatosa do espanhol difundida na ferocidade mórbida
do quichua – para o caucheiro um domador único, que suplantará,
o jagunço.

ENTRE O MADEIRA E O JAVARI

Não há em todo o Brasil região alguma que tenha tido
o vertiginoso progresso daquele remotíssimo trecho da Amazônia,
onde não vingou entrar o devotamento dos carmelitas nem a absorvente
atividade, meio evangelizadora, meio comercial, dos jesuítas. Ha pouco
mais de trinta anos era o deserto. O que dele se conhecia bem pouco adiantava
às linhas desanimadoras do padre João Daniel no seu imaginoso
Tesouro Descoberto: “Entre o Madeira e o Javari, em distância de
mais de 200 léguas, não há povoação alguma
nem de brancos nem de tapuias mansos ou missões”. O dizer é
do século XVIII e podia repetir-se em 1866 na frase de Tavares Bastos:
“O Amazonas é uma esperança; deixando as vizinhanças
do Pará penetra-se no deserto”.
Entretanto, nada explicava o olvido daquele território.
Compreende-se que os próprios norte-americanos tenham reprimido até
1868 a vaga povoadora impetuosíssima que assoberbou a barreira dos
Alleganis e a transmontou, espraiando-se no far west; sopeara-lhe o arremesso
a maninhez desalentadora dos terrenos absolutamente estéreis que se
desatam a partir das vertentes orientais das Rocky Mountains.
Entre nós, não. As nossas duas maiores linhas de penetraçáo,
a de S. Paulo e a do Pará, convergentes ambas em Cuiabá, nortearam-se
desde o começo como a procura de empecilhos de toda a ordem.
Os sertanistas que abalaram de Porto Félix à feição
do Tietê e do Paraná, para vencerem as águas torrenciais
do Pardo até alcançarem pelo Taquari e pelo São Lourenço
aquele longínquo objetivo depois de uma navegação de
cerca de quatro mil quilômetros – e os que demandavam, a partir de Belém,
sempre ao arrepio das águas do Amazonas, do Madeira e do Guaporé,
numa travessia de mais de setecentas léguas, iam apostados a luta formidável
com os baques das catadupas, com o acachoar das itaipavas, com a monotonia
inaturável das varações remoradas, com o choque das correntes
e com os torvelinhos dos peraus. Venceram-nos; e o planalto dos Parecis, expressivo
divortium aquarum, de onde irradiam caudais para todos os quadrantes, teve,
em pleno contraste com este caráter físico dispersivo, uma função
histórica unificadora que só será compreendida quando
o espírito nacional tiver robustez para escrever a epopéia maravilhosa
das Monções.
Entretanto, demoravam-lhes no ocidente paragens que seriam facilmente percorridas
sem aquela extraordinária dissipação de esforços.
A queda do maciço brasileiro, irregular e abrupta noutros pontos e
originando regimes fluviais perturbadíssimos, que alguns rios, como
o Tocantins e o S. Francisco, prolongam quase ao litoral, ali se desafoga
na maior expansão em longitude da América do Sul, precisamente
na zona em que a viva deflexão dos Andes para o ocidente propiciou
uma área à maior bacia hidrográfica da terra. Daí
o remansado e o desimpedido dos seus fartos tributários. O Purus e
o Juruá são, depois do Paraguai e do Amazonas, os rios mais
navegáveis do continente. Descidas as vertentes orientais dos últimos
contrafortes andinos, onde lhes abrolham as fontes, e repontam as suas únicas
cachoeiras, volvem as águas num declive que o mais rigoroso aparelho
às vezes não distingue. Ajustam-se à rara uniformidade
dos terrenos. tão eloqüentemente exposta, à mais breve
contemplação de um mapa, no paralelismo dos grandes cursos de
água que correm entre o Madeira e o Javari, drenando lentamente a região
desimpedida que prolonga os piamos bolivianos e onde a natureza equilibrada
esconde as opulências de uma flora incomparável nos labirintos.
dos igarapés…
Mas ninguém a procurou. A metrópole que firmara a posse da terra
nas cabeceiras do Rio Branco, do Rio Negro, no Solimões e no Guaporé
com as paliçadas e os pedreiros de bronze dos velhos fortes de S. Joaquim,.
Marabitanas, Tabatinga e Príncipe da Beira – quatro, enormes escudos
desafiando a rivalidade tradicional da. Espanha – evitara por completo (como
se recuasse ante a ferocidade, tão fabulada pelos cronistas, dos muros
irradios) aqueles longínquos tratos do território – até
que no-las desvendassem, em 1851, Castelnau e o tenente da marinha norte-americana
F. Maury.
Foi uma revelação. O descobrimento coincidia com uma renascença
da atividade nacional. Na imprensa, o robusto espírito prático
de Souza Franco aliara-se à. inteligência fulgurante de Francisco
Otaviano nessa propaganda irresistível pela franquia do Amazonas a
todas as bandeiras, a que tanto ampararam o lúcido critério
de Agassiz, as pesquisas de Bates, as observações de Brunet
e os trabalhos de Souza Coutinho, Costa Azevedo (Ladário) e Soares
Pinto, até que ela desfechasse no decreto civilizador de 6 de dezembro
de 66.
Tavares Bastos, não lhe bastando, à alma varonil e romântica,
o tê-la esclarecido com o fulgor das melhores páginas das Cartas
de um solitário, transmudava-se num sertanista genial: perlustrou o
grande rio trazendo-nos de lá um livro, O Vale do Amazonas, que é
um reflexo virtual da Hiloe portentosa e é ainda hoje o programa mais
avantajado do nosso desenvolvimento. Ora, neste largo expandir de novos horizontes,
um explorador tenaz, Chandless, traçou repentinamente a diretriz de
um objetivo definido. Levara-o até lá, no trecho onde os grandes
rios misturam as suas águas na anastomose das nascentes, o intento
de descobrir uma passagem do Acre para o Madre-de-Dios – o velho problema
da ligação das bacias do Amazonas e do Paraguai. Não
o resolveu. Fez mais: sugestionado pelas maravilhas naturais, transformou-se
num pioneiro salteado de ambições e fundou ali o primeiro estabelecimento
que fixou o homem à terra; enquanto um mateiro destemeroso, Manoel
Urbano da Conceição, um quase anônimo, como o é
a grande maioria dos nossos verdadeiros heróis, batia longamente o
reticulado inextricável dos furos e, desvendando as nascentes de todos
os tributários do Purus, preparava a um outro dominador de desertos,
o coronel Rodrigues Labre, grande parte do terreno para um rápido e
intensíssimo povoamento.
De feito, foi uma transfiguração. Em pouco, sucessivas vagas
de imigrantes reproduziam em nossos dias o tumulto das entradas do século
XVIII.
O látex das seringueiras, o cacau, a salsa, a capaíba e toda
a espécie de óleos vegetais, substituindo o ouro e os diamantes,
alimentavam as mesmas ambições ensofregadas.
A terra, até então entregue às tribos erradias, teve
em cerca de dez anos (1887) uma população de 60.000 almas, ligando-se
as suas mais remotas paragens de Sepatini e Hintanaam a Manaus, pela Companhia
Fluvial de Amazonas, com um primeiro desenvolvimento de 1.014 milhas, logo
depois de distendidas na navegação dos tributários superiores
que vão do Ituxi ao Acre. E por fim uma cidade, uma verdadeira cidade.
Lábrea, repontou daquela forte convergência de energias trazendo
desde o nascer um caráter destoante do de nossos povoados sertanejos
– com o requinte progressista de uma imprensa de dois jornais, o Purus e o
Labrense, e o luxo suntuário de um teatro concorrido, e colégios,
e as ruas calçadas e alinhadas: a molécula integrante da civilização
aparecendo, repentinamente, nas vastas solidões selvagens…
Ora, estes sucessos, que formam um dos melhores capítulos da nossa
história contemporânea, são, também, o exemplo
mais empolgante da aplicação dos princípios transformistas
às sociedades. Realmente, o que ali se realizou> e está realizando-se,
é a seleção natural dos fortes. Para esse investir com
o desconhecido não basta o simples anelo das riquezas: requerem-se,
sobretudo, uma vontade, uma pertinácia, um testemor estóico
e até uma constituição física privilegiada. Aqueles
lugares são hoje, no meio dos nossos desfalecimentos, o palco agitadíssimo
de um episódio da concorrência vital entre os povos. Alfredo
Marc encontrou, nas margens do Juruá, alguns parisienses, autênticos
parisienses, trocando os encantos dos bulevares pela exploração
trabalhosa de um seringal fartíssimo; e acredita-se que o viajante
não exagerou. Lá estão todos os destemerosos convergentes
de todos os quadrantes. Mas, sobrepujando-os pelo número, pela robustez,
pelo melhor equilíbrio orgânico da aclimação, e
pelo garbo no se afoitarem com os perigos, os admiráveis caboclos do
norte que os absorverão, que lhes poderão impor a nossa língua,
os nossos usos e, ao cabo, os nossos destinos, estabelecendo naquela dispersão
de forças a componente dominante da nossa nacionalidade.
E o que deve acontecer.
Volvendo ao paralelo que, pouco há, indicamos, ao notarmos a súbita
parada da expansão norte-americana no far west, levemo-lo às
últimas conseqüências.
Por uma circunstância realmente interessante, os ianques, depois de
estacionarem largos anos diante das Rochosas, saltaram-nas, vivamente atraídos
pelas minas descobertas na Califórnia, precisamente no momento em que
nos avantajávamos até ao Acre. O paralelismo. das datas é
perfeito. No mesmo ano de 1869, em que nos prendíamos por uma companhia
fluvial àquelas esquecidas fronteiras, eles se ligavam ao Pacifico
pela linha férrea do Missouri, audaciosamente locada nas cordilheiras
e nos desertos.
Emparelhamo-nos, neste episódio da vida nacional, com a grande república.
Aceitemos, por isto mesmo, uma lição de Bryce.. Traçado
magistralmente o quadro da expansão ianque,. o historiador nos demonstra
que, diante do exagerado.. afastamento da costa oriental, as gentes localizadas
nas novas terras do Pacífico formariam inevitavelmente uma outra nacionalidade,
se os recursos da engenharia atual lhes não houvessem permitido uma
intimidade. permanente com o resto do país.
O nosso caso é idêntico, ou mais sério.
As novas circunscrições do alto Purus, do alto Juruá
e do Acre devem refletir a ação persistente do governo em um
trabalho de incorporação que, na ordem prática, exige
desde já a facilidade das comunicações e a aliança
das idéias, de pronto transmitidas e traçadas. na inervação
vibrante dos telégrafos.
Sem este objetivo firme e permanente, aquela Amazônia onde se opera
agora uma seleção natural de energias e diante da qual o espírito
de Humboldt foi empolgado pela visão de um deslumbrante palco, onde
mais cedo ou mais tarde se há de concentrar a civilização
do. globo, a Amazônia, mais cedo ou mais tarde, se destacará
do Brasil, naturalmente e irresistivelmente, como. se despega um mundo de
uma nebulosa – pela expansão centrífuga do seu próprio
movimento.

SOLIDARIEDADE SUL-AMERICANA

A República tirou-nos do remanso isolador do império para a
perigosa solidariedade sul-americana: caímos dentro do campo da visão,
nem sempre lúcida, do estrangeiro, insistentemente fixa sobre os povos,
os governos e os “governos” (ironicamente sublinhados ou farpeados
de aspas) da América do Sul.
O imperador, em que pese à sua educação imperfeita e
às suas sensíveis falhas de estadistas, era o grandes plenipotenciário
do nosso bom senso equilibrado e da nossa seriedade. A sua bela meia ciência,
toda ornada de excertos hebraicos e das estrelas da astronomia doméstica
de Flammarion, mas ansiosamente atraída para o convívio dos
sábios e costumaz freqüentadora de institutos, era a nossa mesma
ânsia, talvez precipitada, mas nobilíssima, de acertar, e a sua
bonomia, os seus hábitos modestos e simples, os mesmos hábitos
modestos, certo sem brilhos, mas em todo o caso decentes, com que andávamos
na história.
Tinha a força sugestiva e dominadora dos símbolos, ou das imagens.
Era, para a civilização tão distraída por infinitos
assuntos mais urgentes e mais sérios, um índice abreviado onde
ela aprendia de um lance os aspectos capitais da nossa vida: o epítome
vivo do Brasil.
Talvez não fosse bem certo e carecesse de uma mondadura severa, ou
revisão acurada, mas tinha a vantagem de nos determinar uma consideração
à parte. Na atividade revolucionária e dispersiva da política
sul-americana, apisoada e revolta pelas gauchadas dos caudilhos, a nossa placidez,
a nossa quietude, digamos de uma vez, o nosso marasmo, delatavam ao olhar
inexperto do estrangeiro o progresso dos que ficam parados quando outros velozmente
recuam. E, dada a complexidade étnica e o apenas esboçado de
uma sub-raça onde ainda se caldeiam tantos sangues, aquela placabilidade
e aquele marasmo recordavam-lhe na ordem social e política a imprescindível
tranqüilidade de ambiente que, por vezes, se exige, na física,
para que se completem as cristalizações iniciadas…
Hoje, não. Sem aquele ponto de referência, a opinião geral
desvaira; derranca-se em absurdos e em erros; estonteia num agitar sem sentido,
de maravalhas inúteis; confunde-nos nas desordens tradicionais de caudilhagem;
mistura os nossos quatorze anos de regime novo a mais de um século
de pronunciamentos; e como, durante esta crise de crescimento, nos saltearam
e salteiam desastres – que só podem ser atribuídos à
República por quem atribuía ao firmamento as tempestades que
no-lo escondem – já não nos distingue nos mesmos conceitos.
E que conceitos …
Deletreiem-se as revistas norte-americanas, para não citarmos outras,
e vejam-se o desabrido da palavra, o cruciante dos assertos e até o
temerário de futuros planos de absorção, sempre que acontece
tratar-se das sister republics, curioso eufemismo com que se designa vulgarmente
o vasto e apetecido res nullius, desatado do Panamá ao cabo Horn.
Para os rígidos estadistas que não nos conhecem, e a quem justamente
admiramos, as Repúblicas latinas -“as que se dizem Repúblicas”
no dizer dolorosíssimo de James Bryce, patenteiam, impressionadoramente,
o espetáculo assombroso de algumas sociedades que estão morrendo.
Aplicando à vida superorgânica as conclusões positivas
do transformismo, esta filosofia caracteristicamente saxônia, e exercitando
crítica formidável a que não escapam os mínimos
sintomas mórbidos de uma política agitada, expressa no triunfo
das mediocridades e na preferência dos atributos inferiores, já
de exagerado mando, já de subserviência revoltante, o que eles
lobrigam nas gentes sul-americanas é uma seleção natural
invertida: a sobrevivência dos menos aptos, a evolução
retrógrada dos aleijões, a extinção em toda a
linha das belas qualidades do caráter, transmudadas numa incompatibilidade
à vida, e a vitória estrepitosa dos fracos sobre os fortes incompreendidos…
Imaginai o darwinismo pelo avesso aplicado à história…
Ora, precisamos anular estes conceitos lastimáveis, que às vezes
nos marcam situações bem pouco lisonjeiras. Porque, ainda os
há que excetuam o México disciplinado por Porfirio Díaz
e enriquecido por José Ignez, embora abrangido de todo pela órbita
comercial e industrial da Norte-América; e o Chile com a sua rígida
estrutura aristocrática; e a Argentina, que poucos anos de paz vão
transfigurando, sob o permanente influxo do grande espírito de Mitre
– um homem que é o poder espiritual de um povo.
Nós ficamos alinhados com o Paraguai, convalescente; com a Bolívia,
dilacerada pelos motins e pelas guerras; com a Colômbia e a abortícia
república que há meses lhe saiu dos flancos; com o Uruguai,
a esta hora abalado pelas cavalarias gaúchas e com o Peru.
Não exageramos. Poderíamos fazer numerosas e até monótonas
citações, recentes todas, espalhadas em livros e em revistas,
onde se move esta extravagante e crudelíssima guerrilha de descrédito.
Aqui, um secretário de legação – poupemos o seu nome
– que na North-American Review patenteia um adorável ciúme ante
a expansão teutônica em Santa Catarina e bate alarmadamente a
afinadíssima tecla do princípio de Monroe; e demasia-se depois
no excesso de zelo de denunciar a nossa apatia de filhos de uma terra onde
é sempre de tarde – a land where it is always afternoon! – e a nossa
miopia patriótica que não percebe em Von den Stein, em Hermann
Meyer, em Landerberg os caixeiros sábios de Hansa, os batedores sem
armas do germanismo; além do pretenso sociólogo – deixemos também
em paz o seu nome e o seu livro, que ambos não valem a escolta dos
mais desarranjados adjetivos – que pontificando dogmaticamente, genialmente
canhestro, acerca do imperfeito da instrução japonesa, aponta-a
como inferior a das Repúblicas sul-americanas, “exceto o Paraguai
e o Brasil”, recusando-nos, nesta parceria, a mesma procedência
alfabética…
Realmente, o que surpreende em tais artigos não é o extravagante
das afirmativas; é faltar-lhes, subscrevendo-os, a assinatura de Marc
Twain, o mestre encantador da risonha gravidade da ironia ianque.

***

Ora esta campanha iminente com o Peru pode ser um magnífico combate
contra essas guerrilhas extravagantes.
Fizemos tudo por evitá-la, sobrepondo à fraqueza belicosa da
nação vizinha o generoso programa da nossa política exterior
no últimos tempos, tão elevada no sacrificar interesses transitórios
aos intuitos mais dignos de seguirmos à frente das nações
sul-americanas como os mais fortes, os mais liberais e os mais pacíficos.
O recente tratado de Petrópolis – resolvido há quarenta anos,
quase pormenorizado por Tavares Bastos e Pimenta Bueno – todo ele resultado
de uma inegável continuidade histórica – é o melhor atestado
dessa antiga irradiação superior do nosso espírito, destruindo
ou dispensando sempre o brilho e a fragilidade das espadas. Nada exprime melhor
a nossa atitude desinteressada e originalíssima, de povo cavaleiro-andante,
imaginando na América do Sul, robustecida pela fraternidade republicana,
a garantia suprema e talvez única de toda a raça latina diante
da concorrência formidável de outros povos.
Mas não a compreendeu nunca a opinião estrangeira, que um excesso
de objetivismo leva à contemplação exclusiva do quadro
material das nossas desditas, à análise despiedada de tudo quanto
temos de mau, à indiferença sistemática por tudo quanto
temos de bom: e interpretam-na talvez como um sintoma de fraqueza as próprias
nações irmãs do continente.
Desiludamo-las.
Aceitemos tranqüilamente a luta com que nos ameaçam, e que não
podemos temer.
Não será o primeiro caso de uma guerra reconstrutora. Mesmo
quando rematam aparentes desastres, estes conflitos vitais entre os povos,
se os não impelem apenas os caprichos dinásticos ou diplomáticos,
traduzem-se em grandes e inesperadas vantagens até para os vencidos.
A França talvez não monopolizasse hoje as simpatias da Europa
sem a catástrofe de 70, que fez a dolorosa glorificação
do seu espírito e o ponto de partida de uma regeneração
incomparável, toda esteada numa experiência duríssima.
Entram muito na glória imortal da Gambeta os planos estratégicos
de Moltke.
Tão certo é que as artificiosas combinações políticas,
afeiçoadas ao egoísmo dos grupos, se despedaçam nos largos
movimentos coletivos, que não abrangem. E nós, afinal, precisamos
de uma forte arregimentação de vontade e de uma sólida
convergência de esforços, para grandes transformações
indispensáveis.
Se essa solidariedade sul-americana é um belíssimo ideal absolutamente
irrealizável, com o efeito único de nos prender às desordens
tradicionais de dois ou três povos irremediavelmente perdidos, pelo
se incompatibilizarem às exigências severas do verdadeiro progresso
– deixemo-la.
Sigamos – no nosso antigo e esplêndido isolamento – para o futuro; e,
conscientes da nossa robustez, para a desafronta e para a defesa da Amazônia,
onde a visão profética de Humboldt nos revelou o mais amplo
cenário de toda a civilização da terra.

O IDEAL AMERICANO

Roosevelt é um estilista medíocre. A frase adelgaça-se-lhe
no distendido de uns períodos oratórios cheios de incidentes
intermináveis e rematados pela simulcadência inaturável
das mesmas idéias repisadas, volvidas e revolvidas sob todas as faces,
com o sacrifício absoluto da forma à clareza, ou à exposição
desatada em pormenores e minúcias exemplificadoras. Não escreve,
leciona. Não doutrina, demonstra. Não generaliza, não
sintetiza e não se compraz com os aspectos brilhantes de uma teoria:
analisa, disseca, induz friamente, ensina.
Mas isto sem o aprumo pretensioso de um lente que pontifica, senão
com a modéstia fecunda de um adjunto que rediz, experimenta e mostra.
E o grande repetidor da filosofia contemporânea. Nada diz de novo.
Diz tudo de útil.
O seu último livro, o Ideal Americano, é uma sistematização
de truísmos, para adotarmos o anglicismo indispensável às
coisas sabidíssimas e claras. E no primeiro momento, deletreadas as
primeiras páginas, imaginamo-nos às voltas com um excêntrico
rival de Marc Twain, abalançando-se a ressuscitar velharia e a demonstrar
axiomas.
No entanto, a pouco e pouco ele nos domina e absorve. Há um encanto
irresistível naquela rudeza de rough rider e de quaker; e o paladino
rejuvenescido de coisas tão antigas – a energia, a ocupação
aparente dos destinos de seu pais, vai, realmente, traçando todas as
condições imprescindíveis à vida de todos os países.
Para nós, sobretudo, a sua leitura é imperiosa e urgente.
Copiamos, numa quase agitação reflexa, com o cérebro
inerte, a Constituição norte-americana, arremetendo com as mais
elementares noções do nosso tirocínio histórico
e da nossa formação, violando do mesmo passo as nossas tradições
e a nossa índole; é natural e obrigatório que lhe vejamos,
a par da grandeza, os males, sobretudo quando eles entendem especialmente
com a nossa situação presente e o nosso caráter nacional.
De fato, Roosevelt, ao delatar os “perigos excepcionais” que ameaçam
a grande República, antepõe-lhes por vezes de relance, mas insistentemente,
feito uma contraprova expressiva, o quadro da anarquia sul-americana; “rusguento
grupo de Estados, premidos pelas revoluções, onde um único
senão destaca mesmo como nação de segunda”.
Deste modo, enquanto recuamos espavoridos imaginando o espantalho do perigo
ianque, o estrênuo professor de energia põe, na frente da opinião
ianque, o espantalho do perigo sul-americano. Temos medo daquela força;
e, no entanto, ela é quem se assusta e foge apavorada da nossa fraqueza.
Ora, infelizmente para nós, a covardia paradoxal do colosso é
mais compreensível que a infantilidade dos nossos receios.
Folheiem-se ao acaso as primeiras folhas do Ideal Americano. Depara-se-nos
para logo uma novidade: o homem tão representativo do absorvente utilitarismo
e do triunfo industrial da América do Norte é um idealista,
um sonhador, um poeta incomparável de virtudes heróicas.
Para ele, as garantias de sucesso da sua terra estão menos nos prodígios
da atividade e no assombro de uma riqueza material sem par, do que nas belíssimas
tradições de honra, e eficiência, traduzidas na ordem
política pelos nomes que se inserem entre os de Washington e Lincoln,
e na ordem social pelo repontar ininterrupto dessas emoções
generosas, que propelem aos verdadeiros estadistas e sem as quais as nações
se transmudam “em trambolhos obstrutivos de alguns tratos da superfície
terrestre”. Não lhe bastam as virtudes da economia e do trabalho;
superpõe-lhes a glorificação permanente da honra nacional,
da coragem e da persistência, do altruísmo, da lealdade e das
grandes tradições provindas das façanhas passadas, formando
a capacidade crescente para as empresas maiores do futuro…
Traçado este rumo, é inflexível. Caem-lhe sob o passo
de carga de uma lógica inteiriça, confundidos, embolados e ruídos
no mesmo esmagamento: – o político tortuoso e solerte que, malignado
pelo oblíquo incurável da visão moral, faz da política
um meio de existência e supre com a esperteza criminosa a superioridade
de pensar; o doutrinador estéril que não transforma a vida numa
força ativa e combatente; o indiferente que resmoneia, agressivo, contra
a corrupção política ou administrativa, e não
intervém num protesto vigoroso e alto, definito por atos decisivos;
o jornalista que não exercita uma critica intrépida dos homens
e dos partidos, ou se desfaz em lisonjarias indecorosas… e sobre todos eles,
os que formam a platéia louvaminheira, não só para lhes
explorar as ações como para lhas divinizar e aplaudir, garantindo-lhes
no mesmo lance a impunidade dos crimes e a recompensa das males perpetrados
Ao lermos estas páginas impiedosas, pressentimos o dardo de uma alusão
ferina. Ali está, latente, um comentário interlinear, de onde
ressalta o pior da nossa desalentadora psicologia.
Mas prossigamos. Há identidades mais empolgantes. O impávido
moralista repisa logo adiante uma outra novidade velha: firma de modo inflexível
a necessidade de um largo americanismo, um forte sentimento. nacional contraposto
a um localismo deprimente e dispersivo. Combate às claras – numa lúcida
compreensão,. que não possuímos, do verdadeiro regime
federal – o maligno espírito de paróquia e esse estreito patriotismo
de campanário provincial ou estadual, que subordina a nacionalidade
ao bairrismo e retrata, em nosso tempo, o federalismo incoerente da antigüidade
grega, das Repúblicas medievais da Itália, e dos retrógrados
Estados da Alemanha antes de Bismarck.
Neste lance, aponta ainda uma vez os fatos “abjetos e sangrentos”
da América do Sul. E tão desanimador se lhe afigura este vício
do regime, que se apressa em lhe denunciar a quase extinção
na América do Norte, graças a uma evolução inegável
e positiva, porque significa, ali, a passagem de uma forma incoerente e dispersiva
a uma forma mais coerente e definida, consoante o preceito elementar do maior
pensador da sua raça.
Trata-se como se vê, de um mal que lá está em plena decadência,
próximo a extinguir-se, mas que ainda atemoriza; ao passo que entre
nós ele surge vigoroso, e se desenvolve e irradia para toda a banda,
delineando umas fronteiras ridículas, ou ostentando irritantemente
umas questões de limites inclassificáveis, e deixa-nos impassíveis…
Completa-o um outro.
Ao patriotismo diferenciado alia-se, pior, o cosmopolitismo – essa espécie
de regime colonial do espírito que transforma o filho de um país
num emigrado virtual vivendo, estéril, no ambiente fictício
de uma civilização de empréstimo. Mas não há
explicar-se a insistência do escritor neste ponto. O americano do norte
é um absorvente e um dominador de civilizações. Suplanta-as,
transfigura-as, afeiçoa-as ao seu individualismo robusto e ao seu bom
senso incomparável; americaniza-as.
Para nós, sim, é que parecem feitas aquelas páginas severas
riçadas de repentinos e vivos golpes de ironia – porque entre nós
é que se faz mister repetir longamente, e monotonamente mesmo, que
mais vale ser um original do que uma cópia, embora esta valha mais
do que aquele” e que o ser brasileiro de primeira mão, simplesmente
brasileiro, malgrado a modéstia do titulo, “vale cinqüenta
vezes mais do que ser a cópia de 2ª classe, ou servil oleografia,
de um francês ou de um inglês”.
Parafraseando, diríamos: os nossos melhores estadistas, guerreiros,
pensadores e dominadores da terra, os que engenharam as melhores leis e as
cumpriram, os homens de energia ativa e de coração, que definiram
com mais brilho a nossa robustez e o nosso espírito – todos sentiram,
pensaram e agiram principalmente como brasileiros; destacam-se, como no passado,
de todo destoantes da fisionomia moral de uma época onde o mesmo esboço
de um irrequieto e frágil nativismo foi pedir à história
do estrangeiro o próprio nome do batismo.
O Ideal Americano não é um livro para os Estados Unidos, é
um livro para o Brasil.
Os nossos homens públicos devem – com diurna e noturna mão –
versá-lo e decorar-lhe as linhas mais incisivas, como os arquitetos
decoram as fórmulas empíricas da resistência dos materiais.
E um compêndio de virilidade social e de honra política incomparável.
Traçou-o o homem que é o melhor discípulo de Hobbes e
de Gunplowicz – um fanático da força, um tenaz propagandista
do valor sobre todos os aspectos, que vai da simples coragem física
ao estoicismo mais complexo.
Daí a sua utilidade, não nos iludamos. Na pressão atual
da vida contemporânea, a expansão irresistível das nacionalidades
deriva-se, como a de todas as forças naturais, segundo as linhas de
menor resistência. A absorção de Marrocos ou do Egito,
ou de qualquer urna outra raça incompetente, é antes de tudo
um fenômeno natural, e, diante dele, conforme insinua a ironia aterradora
de Mahan, o falar-se no Direito é extravagância idêntica
à quem procura discutir ou indagar sobre a moralidade de um terremoto.
É o darwinismo rudemente aplicado à vida das nações.
Roosevelt compara de modo pinturesco essa concorrência formidável
a um vasto e estupendo football on the green: o jogo deve ser claro, franco,
enérgico e decisivo; nada de desvios, nada de tortuosidades, nada de
receios, porque o triunfo é obrigatoriamente do lutador que hits tle
line hard!
Aprendamos, enquanto é tempo, esta admirável lição
de mestre.

TEMORES VÃOS

Numa quase mania coletiva da perseguição, andamos, por vezes,
às arrancadas com alguns espectros: o perigo alemão e o perigo
ianque. Nunca, em toda a nossa vida histórica, o terror do estrangeiro
assumiu tão alarmante aspecto, ou abalou tão profundamente as
almas. Estamos, neste ponto, como os romanos da decadência depois dos
revezes de Varus: escutamos o rumor longínquo da invasão. Uma
diferença apenas: Átila não ruge o stella cadi, tellus
fremit! descarregando-nos àcabeça o frankisk pesado, e sobre
o chão as patas esterilizadoras do cavalo, é Guilherme II, um
sonhador medieval desgarrado no industrialismo da Alemanha; e Genserico, a
despeito da sua envergadura rija de cowboy dominador das pastagens, é
Roosevelt, o grande professor da energia, o maior filósofo prático
do século, o ríspido evangelista da vida intensa e proveitosa.
Não é o bárbaro que nos ameaça, é a civilização
que nos apavora. Esta última consideração é expressiva.
Mostra que os receios são vãos.
De fato, atentando-se para a maior destas ameaças, a da absorção
ianque, põe-se de manifesto que o imperialismo nos últimos tempos
dominante na política norte-americana não significa o fato material
de uma conquista de territórios, ou a expansão geográfica
à custa do esmagamento das nacionalidades fracas – senão, numa
esfera superior, o triunfo das atividades, o curso irresistível de
um movimento industrial incomparável e a expansão naturalíssima
de um país onde um individualismo esclarecido, suplantando a iniciativa
oficial, sempre emperrada ou tardia, permitiu o desdobramento desafogado de
todas as energias garantidas por um senso prático incomparável,
por um largo sentimento da justiça e até por uma idealização
maravilhosa dos mais elevados destinos da existência.
Esta vida prodigiosa alastra-se pela terra com a fatalidade irresistível
de uma queda de potenciais. Mas não leva exclusivamente o vigor de
uma indústria em busca de mercados, ou uma pletora de riquezas que
impõe o desafogo de emigração forçada dos capitais
senão também as mais belas conquistas morais do nosso tempo,
em que a inviolabilidade dos direitos se ajusta cada vez mais ao respeito
crescente da liberdade humana.
Sendo assim, é pelo menos singular que vejamos uma ameaça naquela
civilização. Singular e injustificável. Tomemos um exemplo
recentíssimo.
Quando o almirante Dewey rematou em Manilha a campanha acelerada que em tão
pouco tempo se alongara, num teatro de operações de 160o de
longitude, da ilha de Cuba às extremas do Pacifico, a conquista das
Filipinas pareceu a toda a gente uma intervenção desassombrada
do ianque na partilha do continente asiático. Os melhores propagandistas
de uma política liberal e respeitadora da autonomia de outros povos,
os mesmos antiexpansionistas do North America, justificavam uma posse arduamente
conseguida através de uma luta penosa e ferocíssima. Além
disto, o arquipélago não decairia da situação
anterior, permanecendo no sistema subalterno de colônia. Melhoraria
com a troca das metrópoles; e as suas 114.000 milhas quadradas de terras
fertilíssimas, onde se entranham as mais opulentas minas e pompeiam
os primores de uma flora surpreendente, eram um novo palco que se abria às
grandes maravilhas do trabalho. Realizava-se a profecia de J. Keill: a civilização,
depois de contornar a terra, volvia ao berço fulgurante do Oriente,
levando-lhe os tesouros de uma faina secular…
Deste modo, quando ao termo da campanha seguiu a primeira “comissáo
filipina” a manter entre os tagalos o prestígio americano, consolidar
a paz e instituir a justiça, viu-se neste aparato pacífico o
primeiro sintoma da absorção inevitável. E era falso.
Aquela conquista, fato consumado pelo triunfo militar, pela aquiescência
de todas as nações, e pela submissão completa dos indígenas,
sem nenhum empeço material que se lhe oponha, é, neste momento,
duvidosa, problemática e talvez inexeqüível.
Não no-lo diz um sentimental; demonstra-o, friamente, num seco argumentar
incisivo, o homem mais competente para isto – Gould Shurmann, precisamente
o chefe daquela primeira comissão, e o intérprete mais veraz,
senão único, dos intuitos da política nos Estados Unidos
naquele caso.
A sua linguagem é franca; não segreda ou coleia. no abafamento
e nas minúcias das informações oficiais; vibra às
claras e alto numa revista – The Ethical Record, de março último,
onde o assunto, a great national question, está sob as vistas de todo
o mundo.
Ali se discutem os três destinos essenciais das Filipinas: a dependência
colonial, a independência incompleta, a exemplo do que sucede em Cuba,
ou a constituição de um território, prefigurando vindouro
Estado confederado. E a conclusão é surpreendente, sobretudo
para os que tanto armam olhos e ouvidos aos esgares truanescos e às
versas extravagantes do Jingoismo ianque, tão desmoralizado na própria
terra onde se agita: Gould Shurmann, embora ressalvando os interesses da sua
terra, declara-se, com um desassombro raro, advogado da independência
Filipina. A seu parecer ela se impõe feito um corolário inflexível
e insofismável de princípios e tradições políticas
que a grande República não poderá negar ou iludir sem
a renúncia indesculpável “da sua própria história
e dos seus próprios ideais.”
Convenhamos em que estes dizeres, dada a autoridade oficial de quem os emite,
tornam bastante opinável o perigo ianque – a funambulesca Tarasca que
tanto desafia por aí o ferretoar dos pontos de admiração
das frases patrióticas.
Afinal, ele não existe; como, afinal, não existe o perigo germânico,
inexplicável mesmo diante das nossas tentativas para que se ab-rogue
completamente o rescrito de Von der Heydt, que proibiu a emigração
germânica para o Brasil.

***

Concluímos que este pavor e este bracejar entre fantasmas são
um simples reflexo subjetivo de fraqueza transitória; e que estes perigos
– alemão, ianque ou italiano ou ainda outros rompentes ao calor das
fantasias, e que se nos figuram estranhos são claros sintomas de um
perigo maior, do perigo real e único que está todo dentro das
nossas fronteiras e irrompe’ numa alucinação da nossa própria
vida nacional: o perigo brasileiro.
Este, sim; aí está e se desvenda ao mais incurioso olhar sob
infinitos aspectos.
Mas não os consideramos.
Seria uma tarefa crudelíssima.
Teríamos de contemplar, na ordem superior dos nossos destinos, o domínio
impertinente da velha tolice metafísica, consistindo em esperarmos
tudo das artificiosas e estéreis combinações políticas,
olvidando que ao revés de causas elas são meros efeitos dos
estados sociais; e aos desastrosos resultados de um código orgânico,
que não é a sistematização das condições
naturais do nosso progresso, mas uma cópia apressadíssima, onde
prepondera um federalismo incompreendido, que é o rompimento da solidariedade
nacional
Nos recessos mais íntimos da nossa vida, veríamos desdobrar-se
um pecaminoso amor da novidade, que se demasia ao olvido das nossas tradições;
o afrouxamento em toda a linha da fiscalização moral de uma
opinião publica que se desorganiza de dia a dia, e cada dia se torna
mais inapta a conter e corrigir aos que a afrontam, que a escandalizam, e
que triunfam; uma situação econômica inexplicavelmente
abatida e tombada sobre as maiores e mais fecundas riquezas naturais; e por
toda a parte os desfalecimentos das antigas virtudes do trabalho e perseverança
que já foram, e ainda o serão, as melhores garantias do nosso
destino.
Concluiríamos que os temores são vãos.
Mesmo no balancear com segurança os únicos perigos reais que
nos assoberbam, não se distinguiriam males insanáveis – mas
a crise transitória da adaptação repentina a um sistema
de governo que, mais do que qualquer outro, requer, imperativamente, o influxo
ininterrupto e tonificante da moral sobre a política. Por isso mesmo
ele nos salvará.
Firmar-se-á, inevitavelmente, uma harmonia salvadora entre os belos
atributos da nossa raça e as fórmulas superiores da República,
empanados num eclipse momentâneo; e desta mútua reação,
deste equilíbrio dinâmico de sentimentos e de princípios,
repontarão do mesmo passo as regenerações de um povo
e de um regime.
Veremos então, melhor, todo o infundado de receios ou de imaginosas
conquistas, que são até uma calúnia e uma condenável
afronta a nacionalidades que hoje nos assombram, porque progridem, e que nos
ameaçam pelo motivo único de avançarem triunfante e civilizadoramente
para o futuro.

A ESFINGE

(De um Diário da Revolta)

8 de fevereiro de 1894

…Determinação inesperada destacou-me para erigir urna fortificação
ligeira ao lado do edifício das Docas Nacionais.
Ainda bem. Deixei, afinal, aquele tristonho morro da Saúde, que há
dois meses retalho, e mino, e terrapleno, rasgando-lhe em degraus as encostas,
taludando-o e artilhando-o, numa azáfama guerreira de que sou o primeiro
a me surpreender. Lucro com a mudança. É uma variante ao menos.
Livra-me do quadro demasiado visto daquele recanto comercial que a Revolta
paralisou – circulado de trapiches desertos, atulhado pelo ciscalho bruto
da ferragem velha da Mortona, e banhado pelas águas mortas de uma reentrância
da baia, onde bóiam, apodrecendo, velhos pontões demastreados
e inúteis.
Dei, por isto, para logo, rápidas ordens de partida, e os sapadores
abalaram em turmas – incorretos pelotões armados de picaretas e enxadas.
Acompanhei-os; e não esqueci um adorável companheiro e mestre,
Thomaz Carlyle, em cujas páginas nobremente revolucionárias
me penitencio do uso desta espada inútil, deste heroísmo à
força e desta engenharia malestreada…
Cheguei, em pouco, ao local indicado, encontrando novos trabalhadores. Um
apontador da diretoria de obras militares, armado de ordem terminante do comandante
da linha, e seguido de meia dúzia de praças, já havia
percorrido as tavernas e vivendas pobres das cercanias, à cata de operários
como quem busca criminosos. Avezado àquelas caçadas, não
se demorara Em breve, algumas dezenas de estivadores, de varias nacionalidades
– patriotas sob a sugestão irresistível dos rifles desembainhados
e pranchadas iminentes – reforçaram as turmas desfalcadas.
Havia braços de sobra. Podia-se abordar a empresa da construção
de mais uma Humaitá de sacos de areia, idêntica às que
vêm hoje, debruando todo o litoral, desde o Flamengo à Gamboa.
A que se projetava, porém, requeria avantajadas proporções.
Destinava-se a um Withworth 70, desentranhado da Armação (onde
jazia desde a questão Christie) e vindo por terra, em longo rodeio,
até aqui.
Pesado e desgracioso, alongando por sobre o reparo sólido, à
maneira de um animal fantástico, o pescoço denegrido e áspero,
ele parecia aguardar, ao lado, que lhe preparassem o estrado onde pudesse
ser conteirado à vontade, rugindo, temeroso, sobre a rebeldia impenitente…
É o que sucederia, talvez, dentro de poucas horas.
Surdo boato, dos que por aí irrompem e se alastram, sem que se saiba
de onde partem, lançara nas. fileiras legais, comovidas, a nova de
próximo embarque – toda a maruja revoltosa em terra, desencadeada.
em lances de desespero e ousadias.
Urgia por mãos à tarefa. Certo não desfaleceria da minha
banda a defesa da Legalidade – belo eufemismo destes tempos sem leis.
Foi atacado o trabalho. Cento e tantos homens, agitantes sobre as ordens ríspidas,
arcados sob os sacos cheios de areia ou arrastando-os, arrumando-os, superpostos,
como grandes adobes de um muramento ciclópico, bracejavam durante o
dia todo…
De sorte que ao chegar a noite, brusca e varada de chuvisqueiros intermitentes
e frios, pude contemplar o meu prodígio de baluarte chinês, uma
duna ensacada, erguida em poucas horas sobre a crista do cais, dominante e
desafiando assaltos.
Protegidos por ela, e apagados, para maior resguardo, os lampiões de
gás, da vizinhança, os carpinteiros principiaram a ajeitar os
pranchões aparelhados, madeirando a plataforma.
Era a fase mais perigosa da empresa. Aquela agitação, que se
realizara até ali sem ruidos, ia transmudar-se, pela ação
estrepitosa dos martelos, precisamente na hora das surpresas, das repentinas
visitas das torpedeiras traidoras.
Sustive-a, por isto, um momento, indeciso.
Considerei em torno…
Aquele trecho da Prainha espécie de White-Cheapel em miniatura, enredado
de bitesgas tortuosas e estreitas, onde mourejava população
ativa, parecia abandonado. Nem uma voz. Nem uma luz.
Em frente, no mar inteiramente calmo, avultavam, mal percebidos, os navios
de guerra estrangeiros, destacando-se melhor os couraçados brancos
da esquadra americana. Ao fundo, um cordão de pontos luminosos – Niterói.
Adivinhavam-se ainda uns perfis de ilhas, as da Conceição e
Mocanguê, vagos, numa difusão de sombras; e a silhueta apagada
do Tamandaré junto à última, imóvel, calada a
artilharia formidável, mudo na solidão das águas… Depois,
para a direita, algumas lanternas bruxoleantes, asfixiadas nas brumas: a do
forte de Gragoatá, a de Santa Cruz, mais longe, e a da fortaleza da
Lage, intermitindo em cintilações longínquas, chofradas
pelas ventanias ríspidas da barra.
Nada mais na tela obscurecida…
O cenário quadrava bem a um episódio habitual e dramático,
que embora diuturnamente reproduzido não perde o traço emocionante
e bárbaro.
Atravessando em silêncio a baía, o Vulcano, a Lucy ou qualquer
outro sócio de catástrofes – caldeiras surdas, fogos abafados,
avançando em deslizamentos velozes – abeira-se do litoral. Não
o percebem as sentinelas, vigilantes no alto dos parapeitos…
De repente, arrebenta-lhes adiante, nas águas, a explosão de
uma cratera. Desencadeia-se o alarma. Correm os soldados surpreendidos. Baqueiam
alguns, baleados. A maioria alinha-se nas trincheiras, carabinas estendidas
sobre o plano de fogo. Deflagram na treva os fulgores das descargas. Espingardeia-se
por cinco minutos, o vácuo… e reinam de novo o silencio e as sombras,
enquanto o rebocador, atacante, banhado nos últimos clarões
do tiroteio, se afasta como uma salamandra enorme, intangível, engolfando-se
na noite.
Ora, o trabalho a iniciar-se ia atrair, sem dúvida, um desses recontros
rápidos e ferozes. Era, porém, improrrogável.
Um carpinteiro arriscou a primeira pancada, medrosa, vacilando. Depois outra,
mais firme – um estalo dilacerador na mudez absoluta. Sucederam-se outras;
e em breve, sem cadência, sacudidos pelos punhos trêmulos, vibrando
na psicose convulsiva do medo mal refreado, estrepitavam os martelos sobre
as tábuas.
Tirei O relógio. Uma hora da madrugada. Ia acordar o Rio de Janeiro
todo com aquele despertador estranho que desandava, de chofre, à sua
cabeceira.
Alguém, porém, fê-lo parar. As marteladas chegaram, alarmantes,
ao escritório do Lóide, onde aquartelava o comandante da linha,
e este veio em pessoa interrompê-las.
O bravo coronel – orgulho de Piauí – chegou dentro do seu dólmã
vistoso e do estado maior alarmado Traía no afogo da respiração
a caminhada feita e a emoção sagrada dos perigos. Ponderou a
inconveniência daquela matinada heróica àquelas horas.
Proibiu-a. E voltou marcialmente, seguido do estado maior brilhante num grande
estrépito de espadas novas, batendo nas calçadas.
A medida era, afinal, prudente. Evitava-se que os revoltosos viessem, por
sua vez, inquirir de tal ruído, com as habituais arrancadas e sacrifícios
inúteis de inofensivos operários.
Suspensa a tarefa, estes se amontoaram por perto, abrigados pelo beiral saído
de velho armazém acaçapado, mudos, tiritando sobre a calçada
resvaladia e úmida.
E o silêncio desceu de novo, deixando distinguir-se, ao longo, o crepitar
do tiroteio escasso duma sortida qualquer, insignificante, como tantas outras
que se fazem todos os dias, pela tendência destruidora apenas, avultando,
somadas, na crônica sombria da Revolta…
Atravessando, como dardos, à noite, os feixes de luz do refletor elétrico
do morro da Glória destacavam-se no espaço, divergente e longos,
fazendo surgir no giro amplíssimo – de súbito aclarados e logo
desaparecendo – além, os navios de guerra numa passividade traidora;
mais à frente Niterói, adormecida; a Armação,
sinistra e deserta; e todas as angras, todas as angusturas, todas as ilhas,
uma por uma, repontando e extinguindo-se, no volver da paisagem móvel
e fantástica; distendo, a súbitas, num coruscar repentino de
areias claras, a fita de uma praia remota; resvalando, logo depois, devagar,
pelos pendores dos cerros; estirando-se, por fim, em distenção
máxima, ate Magé, ao fundo da baía. E dali voltando,
lentos, perquirindo, na marcha fulgurante, um por um todos os pontos fortificados;
demorando-se um instante sobre a ilha das Cobras, e mostrando uma visão
de Acrópole, meio derruída, naquela ponta de granito arremessada
fora das ondas; deixando-a, e pondo uma nesga de luar errante sobre o convés
revolto da Guanabara; deslizando dali para o costado arrombado da Trajano;
e passando a outros pontos, banhando-os um a um no fulgor tranqüilo e
forte – feito um olhar olímpico da Lei, insistente e fixo, sobre os
combatentes…
Admirável quadro. Curvei-me sobre a canhoneira recém-construída.
Contemplei-a e dei largas a fantasia caprichosa…
Imaginei-me, então, obscuríssimo comparsa numa dessas tragédias
da antigüidade clássica, de um realismo estupendo, com os seus
palcos desmedidos, sem telão e sem coberturas, com os seus bastidores
de verdadeiras montanhas em que se despenhavam os heróis de Esquilo,
ou o proscênio de um braço de mar, onde uma platéia de
cem mil espectadores pudesse contemplar, singrantes, as frotas dos fenícios.
A ilusão é completa.
Vai para quatro meses que não fazemos outra coisa senão representar
um drama da nossa história, de desenlace imprevisto e peripécias
que dia a dia se complicam, neste raro cenário que nos rodeia.
A civilização, espectadora incorruptível, observa-nos,
dentro de camarotes cautelosamente blindados: a França, na Arethuse
veloz; a Inglaterra, entre as amuradas da Beagle veleira, cujos passeios diários
fora da barra dão tanto que pensar; e a Alemanha, e os Estados Unidos,
e o próprio Portugal sobre o convés pequeno da Mindello…
Aplaudem-nos?
É duvidoso. Representamos desastradamente. Baralhamos os papéis
da peça que deriva num jogar de antíteses Infelizes, entre senadores
armados até aos dentes, brigando como soldados, e militares platônicos
bradando pela paz – diante de uma legalidade que vence pela suspensão
das leis e uma constituição que estrangulam abraços demasiados
apertados dos que a adoram.
Daí as antinomias que aparecem. Neste enredo de Eurípedes, há
um contra-regra – Sardou. Os heróis desmandam-se em bufonerias trágicas.
Morrem, alguns, com um cômico terrível nesta epopéia pelo
avesso. Sublimam-se e acalcanham-se. Se há por aí Aquiles, não
é difícil descobrir-lhes no frêmito da voz imperativa
a casquinada hilar de Trimalcião.
E a Esfinge…
Mas interrompi este desfiar de conjecturas.
Aproximavam-se dois vultos. Nada tinham de alarmantes, porque a guarda, velando
à entrada da rua, lhes permitira a passagem. Vinham à paisana.
Chegaram até à borda da plataforma, onde uma lanterna clareava
o estrado num raio de dois metros; e pararam.
Aproximei-me, saudando-os.
Um (reformado do Paraguai que a República retirou de um cartório
de tabelião para o fazer senador e general), com aprumo varonil a despeito
da idade, correspondeu-me britanicamente, corretíssimo e firme. O outro,
murchou-lhe a mão num cumprimento frio…
À meia penumbra da claridade em bruxoleios, lobriguei um rosto imóvel,
rígido e embaciado, de bronze: o olhar sem brilho e fixo, coando serenidade
tremenda, e a boca ligeiramente refegada num rictus indefinível – um
busto de duende em relevo na imprimidura da noite, e diluindo-se no escuro
feito a visão de um pesadelo.
Reconheci-o e emudeci, respeitando-lhe o incógnito.
Vi-o logo depois abeirar-se da trincheira; e debruçar-se sobre o plano
de fogo, e ali ficar meio minuto, pensativo, a vista cravada entre a afumadura
das brumas, na outra banda da baía.
– Estão tranqüilos… murmurou.
Fez um gesto breve, despedindo-se, e seguiu acompanhado do companheiro desempenado
e vivo, desaparecendo ambos a breve trecho – duas silhuetas agitando-se um
momento, ao longe, ao brilho escasso de um lampião distante e embebendo-se
depois, inteiramente, na noite…
Curvei-me, então, de novo, sobre a canhoneira recém-construída
e reatei o meu sonhar acordado no ponto em que o interrompera:
…e a Esfinge, quebrando a imobilidade da pedra, veste um paletó burguês
e vem – desconfiadamente confiante – rondar os lutadores…

FAZEDORES DE DESERTOS

É natural que todos os dias chegue do interior um telegrama alarmante
denunciando o recrudescer do verão bravio que se aproxima. Sem mais
o antigo ritmo, tão propício às culturas, o clima de
S. Paulo vai mudando.
Não o conhecem mais os velhos sertanejos afeiçoados à
passada harmonia de uma natureza exuberante, derivando na intercadência
firme das estações, de modo a permitir-lhes fáceis previsões
sobre o tempo.
As suas regras ingênuas enfeixadas em alguns ditados que tinham, às
vezes, rigorismo de leis, falham-lhes, hoje, em toda a linha: passam-lhes,
estéreis, as luas novas trovejadas; diluem-se-lhes como fumaradas secas
as nuvens que ao entardecer abarreiram os horizontes; varrem-lhes as ventanias
súbitas a poeira líquida das neblinas que se adensam de manhã,
pelo topo dos outeiros; e em plena primavera, agora, sob o alastramento das
soalheiras fortes, o aspecto de suas plantações, esfoliadas
e esfloradas, principia a ser desanimador, revelando, antes do estio franco,
esse período máximo à vida vegetativa que, nos países
quentes, estão no desequilíbrio entre a evaporação
intensa pelas folhas e a absorção escassa, e cada vez menor,
pelas raízes.
Toda a vegetação estiva, e esgota-se, desfalecida, precisamente
na quadra em que as primeiras chuvas e as primeiras descargas elétricas,
já lhe deviam ter, do mesmo passo, dissolvido os princípios
nutritivos do solo e desdobrado, na mais interessante das reações,
os que se disseminam profusamente pelos ares.
Ao invés disto, exaurida dos sóis, cerra o ciclo vital: morrem-lhe
improdutivas as primeiras flores; extingue-se-lhe a função assimiladora
dos tecidos superficiais, exsicados; e a poeira, que lhe entope os estomas
e reveste as folhas, asfixia-a e enfraquece-lhe a reação tonificante
da luz.
Daí o quadro lastimável descortinado pelos que se aventuram,
nestes dias, a uma viagem no interior – varando a monotonia dos campos mal
debruados de estreitas faixas de matas, ou pelos carreadores longos dos cafezais
requeimados, desatando-se indefinidos para todos os rumos – miríades
de esgalhos estonados quase sem folhas ou em varas, dando em certos trechos,
às paisagens, um tom pardacento e uniforme de estepe . . .
Mas é natural o fenômeno. Nem é admissível que
ante ele se surpreendam os nossos lavradores, primeiras vítimas dessa
anomalia climática.
Porque há longos anos, com persistência que nos faltou para outros
empreendimentos, nós mesmos a criamos.
Temos sido um agente geológico nefasto, e um elemento de antagonismo
terrivelmente bárbaro da própria natureza que nos rodeia.
É o que nos revela a história.
Foi a princípio um mau ensinamento do aborígene. Na agricultura
do selvagem era instrumento preeminente o fogo. Entalhadas as árvores
pelos cortantes digis de diorito, e encoivarados os ramos, alastravam-lhes
por cima as caitaras crepitantes e devastadoras. Inscreviam, depois, em cercas
de troncos carbonizados a área em cinzas onde fora a mata vicejante;
e cultivavam-na. Renovavam o mesmo processo na estação seguinte,
até que, exaurida, aquela mancha de terra fosse abandonada em caapuera,
jazendo dali por diante para todos sempre estéril, porque as famílias
vegetais, renovadas no terreno calcinado, eram sempre de tipos arbustivos
diversos das da selva primitiva.
O selvagem prosseguia abrindo novas roças, novas derribadas, novas
queimas e novos círculos de estragos; novas capoeiras maninhas, vegetando
tolhiças, inaptas para reagir contra os elementos, agravando cada vez
mais os rigores do próprio clima que as flagelava – e entretecidas
de carrascais, afogadas em macegas, espelhando, aqui, o facies adoentado da
caatanduva sinistra, além da braveza convulsiva das caatingas. Veio
depois o colonizador e copiou o processo. Agravou-o ainda com se aliar ao
sertanista ganancioso e bravo, em busca do silvícola e do ouro.
Afogada nos recessos de uma flora que lhe abreviava as vistas e sombreava
as tocaias do tapuaia, dilacerou-a, golpeando-a de chamas, para desvendar
os horizontes e destacar, bem perceptíveis, tufando nos descampados
limpos, as montanhas que o norteavam balizando a rota das bandeiras.
Atacaram a terra nas explorações mineiras a céu aberto;
esterilizaram-na com o lastro das grupiaras; retalharam-na a pontaços
de alvião; degradaram-na com as torrentes revoltas; e deixaram, ao
cabo, aqui, ali, por toda a banda, para sempre áridas, avermelhando
nos ermos com o vivo colorido da argila revolvida, a£ catas vazias e
tristonhas com o seu aspecto sugestivo de grandes cidades em ruínas…

Ora, tais selvatiquezas atravessaram toda a nossa história.
Mais violentos no norte, onde se firmou o regime pastoril nos sertões
abusivamente sesmados, e desbravados a fogo – incêndios que duravam
meses derramando-se pelas chapadas em fora – ali contribuíram para
que se estabelecesse, em grandes tratos, o regime desértico e a fatalidade
das secas.
O sul subtraiu-se em parte à faina destruidora, que o próprio
governo da metrópole, em sucessivas cartas-régias, procurou
refrear, criando mesmo juizes conservadores das matas que impedissem a devastação.

O mesmo sistema de culturas largamente extensivas, porém, e as lavouras
parasitárias arrancando todos os princípios vitais da terra
sem lhe restituir um único, foram, a pouco e pouco, remodelando-lhe
as paragens mais férteis, transmudando-as e amaninhando-as.
Não precisamos acompanhar em todas as fases esse aspecto infeliz da
nossa atividade.
Notemos apenas que pouco a alteraram as belas criações da indústria
moderna, os progressos rápidos da biologia e da química, fornecendo-nos
todos os recursos para que se multipliquem as energias do solo. Deixamo-los,
de um modo geral, de parte. Persistimos na tendência primitiva e bárbara,
plantando e talando. E prolongamos ao nosso tempo esse longo traço
demolidor, que vimos no passado.
Demos-lhe mesmo novas feições, consoante novas exigências.

E o que observa quem segue, hoje, pelas estradas do oeste paulista? Depara,
de momento em momento, perlongando as linhas férreas, com desmedidas
rumas de madeira em achas ou em toros, aglomeradas em volumes consideráveis
de centenares de ésteres, progredindo, intervaladas, desde Jundiaí
ao extremo de todos os ramais.
São o combustível único das locomotivas. Iludimos a crise
financeira e o preço alto do carvão de pedra atacando em cheio
a economia da terra, e diluindo cada dia no fumo das caldeiras alguns hectares
da nossa flora. Deste modo – reincidentes no erro – a inconveniência
provada das lavouras ultra-extensivas e ao cautério vivo das queimas,
aditamos o desnudamento rápido das derribadas em grande escala.

***

As conseqüências repontam, naturais.
A temperatura altera-se, agravada nesse expandir-se de áreas de insolação
cada vez maiores pelo poder absorvente dos nossos terrenos desnudados, cuja
ardência se transmite por contato aos ares, e determina dois resultados
inevitáveis: a pressão que diminui tendendo para um mínimo
capaz de perturbar o curso regular dos ventos, desorientando-os pelos quatro
rumos do quadrante, e a umidade relativa que decresce, tornando cada vez mais
problemáticas as precipitações aquosas.
De sorte que o sueste – regulador essencial do nosso clima – depois de transmontar
a Serra do Mar, onde precipita grande cópia de vapores, ao estirar-se
pelo planalto, vai encontrando atmosfera mais quente do que dantes, cujo efeito
é aumentar-lhe a capacidade higrométrica, diminuindo na mesma
relação as probabilidades de chuvas.
São fatos positivos, irrefregáveis, e bastam para que se explique
a alteração de um clima.
Mas apontemos um outro.
Neste entrelaçamento de fatores climáticos, introduzimos um
– artificial e de todo fora das indagações meteorológicas
normais – a queimada.
É transitória, mas engravece os perigos.
De feito, a irradiação noturna contrabate a insolação:
a terra devolve aos céus o excesso de calor acumulado; resfria; e o
orvalho decorrente ilude de algum modo a carência das chuvas.
Ora, as queimadas impedem esse derivativo único.
As colunas de fumo, rompentes de vários lugares, a um tempo, adensam-se
no espaço e interceptam a descarga do solo. Desaparece o sol e o termômetro
permanece imóvel ou, de preferência, sobe. A noite sobrevem em
fogo: a terra irradia como um sol obscuro, porque se sente uma impressão
estranha de faúlhas invisíveis, mas toda a ardência reflui
sobre ela recambiada pelo anteparo espesso da fumaça; e mal se respira
no bochorno inaturável em que toda a adustão golfada pelas soalheiras
e pelos incêndios, se concentra numa hora única da noite.

***

Traçamos estas linhas numa dessas noites, certo, desconhecidas pelos
nossos patrícios de há cem anos.
Então a energia solar, descendo, armazenava-se nos ares, criando o
influxo moderador de uma atmosfera benigna, e transformava-se em trabalho
no seio das grandes matas, impulsionando a dinâmica maravilhosa das
células.
Esse tempo passou.
Hoje, Thomaz Buckle não entenderia as páginas que escreveu sobre
uma natureza que acreditou incomparável no estadear uma dissipação
de forças, wantonness of power, com esplendor sem par.
Porque o homem, a quem o romântico historiador negou um lugar no meio
de tantas grandezas, não as corrige, nem as domina nobremente, nem
as encadeia num esforço consciente e sério.
Extingue-as.

ENTRE AS RUÍNAS

Quem saltar em qualquer das estações da Central no trecho paulista,
a partir de Cachoeira, entra quase de improviso em lugares que não
lhe recordam mais as bordas pinturescas do Paraíba.
A terra, uma terra antiga cortada pela estrada real três vezes secular
que ia do Rio a S. Paulo, vai tornando-se cada vez mais desabrigada e pobre.
Tumultuando em colinas desnudas, de flancos entorroados; afundando em pequenos
vales sem encantos, onde se rebalsam pauis frechados de tábuas; desatando-se,
planas arenosas e limpas – nada mais revela da opulência incomparável
que por três séculos, da expedição de Glimmer aos
dias da Independência, fez do vale do grande rio, alteado num socalco
de cordilheiras e recamado de matas exuberando floração ridente,
o cenário predileto da nossa história.
Por mais incurioso que seja o viajante, ao romper aquelas veredas em torcicolos,
vai sendo invadido pela tristeza daqueles ermos desolados. E deparando de
momento em momento as cruzes sucessivas que a espaços aparecem às
margens do caminho, tem a impressão de calcar um antigo chão
de batalhas esterilizado e revolto pela marcha dos exércitos…
É uma sugestão empolgante.
Ressaltam, a cada passo, expressivos traços de grandezas decaídas.

Os morros escalvados, por onde trepa teimosamente uma flora tolhiça,
de cafezais de 80 anos, ralos e ressequidos, mas revelando os alinhamentos
primitivos; cintados ainda pela faixa parda-avermelhada dos carreadores tortuosos,
por onde subiam, outrora, as turmas dos escravos; tendo ainda pelos topos,
à ourela dos velhos valos divisórios, extensos renques de bambuzais;
e ao viés das encostas, salteadamente, branqueando nas macegas, as
vivendas humildes por ali esparsas, a esmo, dão quase um traço
bíblico às paisagens. Sem mais a vestidura protetora das matas,
destruídas na faina brutal das derribadas, desagregam-se, escoriados
dos enxurros, solapados pelas torrentes, tombando aos pedaços nas “corridas
da terra” depois das chuvas torrenciais, e expõem agora, nos barrancos
a prumo, em acervos de blocos, a rígida ossamenta de pedra desvendada,
ou alevantam-se despidos e estéreis, revestidos de restolhos pardos,
no horizonte monótono, que abreviam entre as encostas íngremes…

Os caminhos tornejam-nos, galgam-nos, vingam-nos, descem-nos. Mas os quadros
não se animam.
Sucedem-se choupanas pobres, em ruínas umas – tetos de sapé
caídos sobre montes de terras e paus, roliços – habitadas, outras,
centralizando exíguas roças maltratadas, à beira dos
córregos apaulados, onde os lírios selvagens derramam, no perfume
insidioso, o filtro das maleitas.
As estradas são ermas. De longe em longe um caminhante. Mas é
também um decaído. Não é daqueles caboclos rijos
e mateiros, que abriram neste vale as picadas atrevidas das “bandeiras”.
O caipira desfibrado, sem o desempeno dos titãs bronzeados que lhe
formam a linha obscura e heróica, saúda-nos com uma humildade
revoltante, esboçando o momo de um sorriso deplorável, deixa-nos
mais apreensivos, como se vivêssemos uma ruína maior por cima
daquela enorme ruinaria da terra.
Seguimos.
Em vários trechos cerradões trançados, guardando ainda
no afogado das embaúbas e dos tabocais alguns raros pés de café
de remotas culturas em abandono, desdobram-se inextricáveis na lenta
reconquista do solo, num ressurgimento da floresta primitiva.
A estrada vara-os entre espinheirais e barrancos, tendo, não raro,
ladeando-a longo tempo, extensos lanços desmoronados de velhos muros
de taipa dos sítios florescentes noutro tempo.
Destes, alguns permanecem ainda animados. Mas sem a azáfama antiga,
sem o mourejar febril das colheitas fartas, sem os requinos festivos dos engenhos,
sem o bulício álacre e estonteador das moendas ruidosas, nos
velhos tempos, quando por aquelas encostas ondulavam e subiam lentamente à
melopéia das cantigas africanas – dezenas de dorsos luzidios rebrilhando
ao sol – os cordões desenvolvidos dos eitos.
Os demais, num decair contínuo, mal avultam nos terreiros desertos.
Vão sendo, lento e lento, afogados na constrição do matagal
que se lhe aperta em roda e cobre-lhes as plantações, e invade-lhes
as pastagens, até atingi-los e suplantá-los, penetrando-os pelas
portas e janelas; enraizando-se nas suas paredes de barro e disjungindo-lhas
e derribando-lhas à maneira de uma reação formidável
e surda da natureza contra os que outrora, ali, aplicaram no seu seio, torturando-a,
o cáustico fulgurante das queimadas.
Outros ainda surgem, de improviso, no bolear os cerros, à meia encosta
dos pendores, com a imagem perfeita de uns desgraciosos castelos, sem barbacãs
e sem torres, gizados por essa arquitetura terrivelmente chata em que se esmeravam
os nossos avós de há dois séculos. Entretanto, malgrado
o deprimido das linhas, essas vivendas quadrangulares e amplas, sobranceando
as senzalas abatidas, os moinhos estruídos, os casebres de “agregados”,
e alteando de chapa para a estrada os altos muramentos de pedra, que lhe sustentam
os planos unidos dos terreiros, conservam o antigo aspecto senhoril.
Mas jazem para todo o sempre vazias, até que as destrua o absoluto
abandono. Porque o caipira crendeiro, por menos célere que siga e por
mais que o fustiguem os aguaceiros e os ventos, não pára às
suas portas.
Segue, desabaladamente, sem desfitar as esporas dos flancos do cavalo, fazendo
o “pelo sinal”, e fugindo…
Nem um olhar para a vivenda sinistra e mal assombrada, onde imagina coisas
pavorosas: constante pervagar de sombras; choros plangentes; ulular golpeante
de espectros merencórios; aparições macabras; longos
arrastamentos de correntes; e adoidados sabbats das almas vagabundas; e cabeças,
e pernas, e braços, que despencam dos tetos e rompem das paredes, fundindo-se,
improvisadamente, em demônios horrorosos…
E quem, curioso e incrédulo, as procura, justifica-lhes os temores.

Aproxima-se do largo portão desquiciado, de umbrais vacilantes, ou
tensos; desapeia e avança pelos terreiros de pedra, arruinados; galga
a velha escadaria, pulando sobre os degraus que faltam; e estaca no patamar,
em cima, diante da porta, escancarada, da entrada, abrindo para o amplo salão
deserto. Penetra-o.
Contempla, de relance, as molduras esborcinadas das paredes, e o teto onde
adivinha resquícios de frisos dourados na cimalha de estuque. Enfia
pelo longo corredor afogado no bafio angulhento do ambiente imóvel,
para o qual se abrem as portas de outros repartimentos desertos, onde chiam
e revoam desequilibradamente centenas de morcegos tontos. Chega à sala
de jantar, deserta…
E naquela quietude sinistra, se não o amedrontam os ecos dos próprios
passos, longos, reboantes, morrendo vagarosamente na habitação
vazia, comove-os, irresistível, a visão retrospectiva dos belos
tempos em que a vivenda senhoril pompeava triunfalmente no centro dos cafezais
floridos.
Então era o tropear ruidoso das cavalgadas que chegavam; a longa escadaria
onde rolavam saudações joviais, risos felizes, subidas e descidas
tumultuarias entre os estrépitos argentinos das esporas; o vasto salão
referto de convivas; a velha sala ornada para os banquetes ricos; e à
noite as janelas resplandecendo, abertas para a escuridão e para o
silêncio, golfando claridades e a cadência das danças,
enquanto fora, no terreiro limpo, ao brilho das fogueiras, turbilhonava o
samba dos cativos ao toar, melancólico e bruto, dos cachambus monótonos.

É um contraste comovente.
O viajante deixa a vivenda malsinada com uma emoção maior que
a dos recoveiros: vai como quem foge. Rompe por um matagal bravio, onde adivinha
os restos de um jardim, ou de um pomar; volve ao terreiro orlado de senzalas
que desabam; transpõe o portão encombente; galga o cavalo e
parte, disparando-o…
Não voltará mais: segue pelos caminhos em torcicolos, torneja
outros morros escalvados, atravessa outras fazendas antigas, divisa outras
vivendas desertas. depara outros caminhantes taciturnos; e ao encontrar, de
momento a momento, intermináveis, como se andasse pelas avenidas de
um velhíssimo cemitério – as mesmas “santas-cruzes”
à orla dos caminhos, sente-se, sem o querer, invadido pelas crenças
ingênuas dos caipiras.
Justifica-se, ao menos, como se, de fato, por ali vagassem, na calada dos
ermos, todas as sombras de um povo que morreu, errantes, sobre uma natureza
em ruínas.

NATIVISMO PROVISÓRIO

O nosso antilocalismo frisa pela parcialidade. Não há aplausos
que nos bastem aos forasteiros disciplinados que nos últimos tempos
transfiguraram as nossas culturas e se vincularam aos nossos destinos, nobilitando
o trabalho e facilitando a maior reforma social do nosso tempo.
Somos adversários do nativismo sentimental e irritante, que é
um erro, uma fraqueza e uma velharia contraposta ao espírito liberal
da política contemporânea. A este pseudopatriotismo, para o qual
Spencer, na sua velhice melancólica e desiludida, criou a palavra “diabolismo”,
deve antepor-se um lúcido nacionalismo, em que o mínimo desquerer
ao estrangeiro, que nos estende a sua mão experimentada, se harmonize
com os máximos resguardos pela conservação dos atributos
essenciais da nossa raça e dos traços definidores da nossa qens
complexa, tão vacilantes, ou rarescentes na instabilidade de uma formação
etnológica não ultimada e longa. E ainda quando nos turbasse
um esmaniado jacobinismo, todo ele ruiria ao defrontar o quadro da imigração
do Brasil: homens de outros climas que aqui se nacionalizam consorciados com
a terra pelos vínculos fecundos das culturas.
Mesmo sob o aspecto estritamente econômico, pensamos como Louis Couty
– este belo espírito a um tempo imaginoso e prático que com
tão largo descortino prefigurou o nosso desenvolvimento: não
podemos ainda dispensar a energia européia mais ativa e apta, para
que se desencadeiem as nossas energias naturais. O colono, entre nós,
é o primeiro, senão o único fator econômico, e,
pelo destaque vivíssimo entre a sua perícia infatigável
e a nossa atividade tateante, ele reponta, transformando a biologia industrial
num capitulo interessantíssimo de psicologia social.
Deste modo, a simpatia pelo estrangeiro, baseamo-la, até movidos pelo
egoísmo, nos nossos interesses imediatos e mais urgentes.
Podemos apreciar com segurança o lado sombrio deste assunto.
De fato, esta imigração que desejamos, não já
pelo concurso mecânico do braço que trabalha, senão também
porque carecemos da colaboração artística e do adiantamento
dos outros povos, aparece diante do vacilante da nossa estrutura política
e da nossa formação histórica incompleta como um problema,
que não podemos afastar, que não queremos e não devemos
afastar, mas que devemos resolver com infinitas cautelas. Não podemos
encará-lo com o ânimo folgado nem com o moderantismo com que
o enfrentam os naturais de um país onde o forasteiro, parta de onde
partir, depare, a par de um intenso individualismo de raça constituída,
a atmosfera virtual de uma civilização onde ele para viver tenha
que se adaptar. A nossa situação não é ainda esta.
O forasteiro de um modo geral – à parte naturalmente o rebotalho das
levas imigrantes – aqui depara um meio intelectual e moral facilmente complectível,
senão inferior àquele onde nasceu; a pouco e pouco vai trazendo-nos
o seu ambiente moral, destruindo pelo continuo implante dos seus costumes
o próprio exílio que procurou e criando-nos ao cabo, graças
ao nosso desapego às tradições, ao cosmopolitismo instintivo
e à inseguridade dos nossos estímulos próprios, um quase
exílio paradoxal dentro da nossa própria terra.
É nesta circunstância única que se esboçam inconvenientes
capazes das mais exageradas susceptibilidades patrióticas esclarecidas
pelas mais sólidas inferências positivas.
Falta-nos integridade étnica que nos aparelhe de resistência
diante dos caracteres de outros povos.
O Brasil não é como os Estados Unidos ou a Austrália,
onde o inglês, o alemão ou o francês alteram e cambiam
as qualidades nativas ou as refundem e refinam, originando um tipo novo e
mais elevado do que os elementos formadores. Está numa situação
provisória de fraqueza, na franca instabilidade de uma combinação
incompleta de efeitos ainda imprevistos, em que a variedade dos sangues, que
se caldeiam, implica o dispersivo das tendências díspares, que
se entrelaçam.
E isto numa quadra excepcional em que parecem perdidas todas as esperanças
no influxo nivelador do pensamento moderno, cuja circulação
poderosa, contravindo a todos os prognósticos, não refundiu,
não misturou e não unificou os atributos primitivos dos povos,
nem destruiu, num desafogado internacionalismo, a cláusula das fronteiras.
As últimas páginas de H. Spencer são um diluente do esplêndido
rigorismo das suas mais sólidas teorias. O filósofo que se abalançou
a traduzir o desdobramento evolutivo das sociedades numa fórmula tão
concisa e fulgurante quanto a fórmula analítica em que Lagrange
fundiu toda a mecânica racional – acabou num lastimável desalento.
A seu parecer, a civilização desfecha na barbaria.
Depois de presidir ao triunfo das ciências e de caracterizar os seus
reflexos criadores nas maiores maravilhas das indústrias – assombrou-o
à última hora, salteando-o de espantos, o sombrio alvorecer
crepuscular
do novo século. E contemplando em toda a parte, de’ par com a desorientação
científica, um extravagante renascimento da atividade militar e um
imperialismo que denuncia a tendência das nacionalidades robustas a
firmarem a hegemonia política – rematou uma vida que toda ela foi um
hino ao progresso, confessando que assistia à decadência universal.
Exagerou.
Mas há um fato incontestável: o pendor atual e irresistível
das raças fortes para o domínio, não pela espada, efêmeras
vitórias ou conquistas territoriais –mas pela infiltração
poderosa do seu gênio e da sua atividade.
Para este conflito é que devemos preparar-nos, formulando todas as
medidas, de caráter provisório embora, que nos permitam enfrentar
sem temores as energias dominadoras da vida civilizada, aproveitando-as; cautelosamente,
sem abdicarmos a originalidade das; nossas tendências, garantidoras
exclusivas da nossa autonomia entre as nações. Está visto
o significado superior desse anelo quase instintivo de uma revisão
constitucional que tanto vai generalizando-se e em breve será a plataforma
única de um partido, o primeiro digno de tal nome a formar-se neste
regime. Reconhece-se, afinal, que o nosso código orgânico não
enfeixa as condições naturais do progresso; e que andamos há
quinze anos no convívio das nações com a aparência
pouco apresentável de quem, meão na altura, se revestiu desastradamente
com as vestes de um colosso.
Daí, a maioria dos males.
Fora absurdo atribuí-los à República, numa época
em que a preexcelência das formas de governo é assunto relegado
aos donaires da palavra e à brilhante frivolidade dos torneios acadêmicos.
Atribuímo-los ao artificialismo de um aparelho governamental feito
de afogadilho e sem a medida preliminar dos elementos próprios da nossa
vida. Um código orgânico, como qualquer outra construção
intelectual, surge naturalmente da observação consciente dos
materiais objetivos do meio que ele procura definir – e para o caso especial
do Brasil exige ainda medidas que contrapesem, ou equilibrem, a nossa evidente
fragilidade de raça ainda incompleta, com a integridade absorvente
das raças já constituídas.
A tarefa dos futuros legisladores será mais social do que política
e inçada de dificuldades, talvez insuperáveis.
Realmente, este velar pela originalidade ainda vacilante de um povo – numa
fase histórica em que se universalizam tendências e ideais, e
em que fora absurdo inclassificável o seqüestro do Paraguai de
há cinqüenta anos, eqüivale quase a impropriar-se ao ritmo
acelerado da civilização geral…

***

Mas se não podemos engenhar medidas que nos salvaguardem, ou amparem
nesta pressão formidável imposta pelo convívio necessário,
civilizador e útil dos demais países, devemos pelo menos evitar
as que de qualquer modo facilitem, ou estimulem, ou abram a mais estreita
frincha à intervenção triunfante do estrangeiro na esfera
superior dos nossos destinos.
É o que sucede, para citarmos um exemplo, com o projeto de reforma
constitucional que neste momento se discute no Congresso paulista.
Lá está um artigo a talho das considerações que
alinhamos.
É o que firma a elegibilidade do estrangeiro, dotado com um exíguo
qüinqüênio de vida estadual, para o cargo de presidente do
Estado. A reforma, neste ponto, não altera o estatuto antigo.
Renova-a, O naturalizado, revestido de direitos políticos de pronto
adquiridos na franquia escancarada da grande naturalização,
poderá dirigir amanhã os destinos do Estado mais próspero
do Brasil.
Assim, ao plagiar a estrutura política dos ianques, mal cepilhando-lhe
as rebarbas, vamos repeli-la e repudiá-la precisamente no lance onde
ela ostenta um magnífico ciúme nativista, rodeando de tantas
exigências, de tantos impeços e de condições tão
severas, até para os mesmos filhos do país, o conseguimento
de um cargo, que é a mais alta concretização da vontade
popular, e que se destina a imprimir uma unidade inteiriça entre os
demais órgãos do governo.
Todas as linhas anteriores nos dispensam o comentário mais breve desta
disposição legislativa que irá atrai;, para o ponto mais
alto das agitações eleitorais a arregimentação
vigorosa dos que têm a solidariedade espontânea e firme determinada
pelo próprio afastamento da verdadeira pátria. E se considerarmos
bem o quadro desanimador da nossa atual existência política,
praticamente definida pela mais completa indiferença e em que o abstencionismo
se erigiu em protesto único e contraproducente a defrontar os estigmas
que debilitam a organização dos poderes constituídos
– o artigo renovado na Constituição do Estado mais cosmopolita
do Brasil não é apenas um erro.
É até uma imprudência.

UM VELHO PROBLEMA

Li há tempos alentada dissertação sobre um singularíssimo
direito expresso em velhas leis consuetudinárias da Borgonha. Direito
de roubos…
Recordo-me que, surpreendido com tal antinomia, tão revolucionária,
sobretudo para aquela época, ainda mais alarmado fiquei notando que
a patrocinava o maior dos teólogos, S. Thomaz de Aquino; e com tal
brilho e cópia de argumentos, que a perigosa tese repontava com a estrutura
inteiriça de um princípio positivo. Realmente a repassava uma
nobre e incomparável piedade, fazendo que aquela extravagância
resumisse e espelhasse um dos aspectos mais impressionadores da justiça.

Tratava-se, ao parecer, de um código da indigência; e os graves
doutores, no avantajarem-se tanto, rompendo com nobre rebeldia as barreiras
da moral comum, para advogarem a causa da enorme maioria de espoliados, chegavam
à conclusão de que a opulência dos ricos se traduzia como
um delitum legale, um crime legalizado. Impressionava-os o problema formidável
da miséria na sua feição dupla – material e filosófica
– pois é talvez menos doloroso refletido nos andrajos das populações
vitimadas, que na triste inopia de elementos da civilização
para o resolver.
E como lhes faleciam, mais do que hoje nos falecem, elementos para a extinção
do mal, justificavam aos desvalidos num crudelíssimo título
de posse a todos os bens – a fome.
O indigente tornava-se um privilegiado afrontando impune toda a ortodoxia
econômica. O roubo transmudava-se, do mesmo passo, num direito natural
de legítima defesa contra a Morte e num dever imperioso para com a
Vida.
Mas não foram além deste expediente, e dessas declamações,
os piedosos doutores. Tolhia-os, senão a situação mental
da Idade Média imprópria a uma apreciação exata
do conjunto do progresso humano, a mesma ditadura espiritual do catolicismo,
na plenitude de força, e para o qual a miséria – eloqüentíssima
expressão concreta do dogma do pecado original – era sempre um horroroso
e necessário capital negativo, avolumando-se com as provações
e com os martírios para a posse anelada da bem-aventurança,
nos céus…
Por outro lado, os pensadores leigos do tempo, e os que os encalçaram
até ao século XVIII, não partiram esta tonalidade sentimental
Mais sonhadores que filósofos, o que os atraía era o lado estético
do infortúnio, a visão empolgante do sofrimento humano, a que
nos associamos sempre pela piedade. Os seus livros, pelos próprios
títulos hiperbólicos, à maneira dos das novelas do tempo,
retratam uma intervenção brilhante e imaginosa, mas inútil.
São como títulos de poemas. De fato, na Utopia de Thomaz Morus,
na Oceana de Hallis, ou na Basilidade de Morelly, a perspectiva de uma existência
melhor, oriunda da riqueza eqüitativamente distribuída e dos privilégios
extintos, irrompe :num fervor de ditirambos, aos quais não faltam,
para maior destaque, prólogos arrepiadores de agruras e tormentas indescritíveis…

As medidas propostas raiam pelos exageros máximos da fantasia: do nivelamento
absoluto de João Libburne, ao platonismo adorável de Fontenelle
e ao niilismo religioso de Diderot; e para lhes não faltar grotesco,
esse cruel e antilógico grotesco imanente às mais trágicas
situações, culmina-as o desvairado comunismo de Campanella com
os seus trezentos monges, trezentos ascetas barbudos e melancólicos,
tentando uma república igualitária que seria o desabamento de
todas as conquistas do progresso.
Ora, tudo isto caracteriza bem o completo desequilíbrio das almas rudemente
trabalhadas pelas doutrinas opostas e de todo desapercebidas, então,
de uma síntese filosófica que ao mesmo passo as emancipasse
do apego tradicional ao catolicismo, cuja missão findara, e dos impulsos
demolidores da metafísica triunfante.
Assim, ao arrebentar a crise decisiva de 1789, não é de estranhar
ficasse inapercebido, e talvez sacrificado, o grande problema que desde Pitágoras
e Platão vinha agitando os espíritos. E que a grande revolução,
inspirada pela filosofia social do século XVIII, oferece o espetáculo
singular de repudiar, desde os seus primeiros atos, os seus próprios
criadores. A consideração de Guizot é profunda: nunca
uma filosofia aspirou tanto ao governo do mundo e nunca foi tão despida
do império.
Os filósofos foram, de pronto, suplantados, na agitação
revolta dos panfletos e da retórica explosiva dessa literatura política
sempre efêmera, com ser modelada pelos desvarios repentinos da multidão.
A sólida estrutura mental de um d’Alembert antepôs-se o
espírito imaginoso e pueril de um Vergniaud, e aos sonhos desmedidos
de Mably e excesso de objetivismo do trágico casquilho que passeou
pelas ruas de Paris :a deusa da Razão…
De sorte que a última pancada do antigo regime – já longamente
solapado e prestes a cair por si mesmo – se fez com excesso de energias que
atirou sobre os destroços da ordem antiga as ruínas da ordem
nova planeada. Exclusivamente atraída pelo programa, que se lhe afigurava
enorme e pouco valia, de derruir as classes privilegiadas, a Revolução
firmou, nos “direito:; do homem”, um duro individualismo que na
ordem espiritual significava a negação dos seus melhores princípios
e na ordem prática equivalia a destruir as corporações
populares, isto é, a única criação democrática
da Idade Média.
“Os direitos do homem… No entanto, a fórmula superior daquela
filosofia, visava, de preferência, através da solidariedade humana
crescente, exatamentc o contrário – os deveres do homem”. Mas
era exigir muito à loucura política do momento. Fazia-se mister,
antes de tudo, que as franquias recém-adquiridas tivessem um traço
incisivamente antiaristocrático. Que o camponês, absolutamente
livre, fosse absolutamente dono da quadra de terra onde nascera e onde tanto
tempo jazera aguilhoado à gleba feudal; enquanto o burguês das
cidades pudesse agir libérrimo, dispondo a bel-prazer de todos os seus
bens, despeado do liame das jurandes.
E o trono vazio dos Capetos teve em roda a concorrência tumultuária
de não sei quantos milhões de liliputinianos reis…
Despojados o clero e a aristocracia de suas propriedades (não raro
precárias como privilégios sujeitos aos caprichos do poder monárquico)
ficou em seu lugar – intangível, absoluta e sacratíssima – a
propriedade burguesa, para a qual o ilustre Condorcet não encontrara
limites no texto que forneceu à Convenção.
Por isto, a breve trecho, se patenteou a inanidade das reformas executadas;
ao invés de um número restrito de privilegiados, nos quais o
egoísmo se atenuava com as tradições cavalheirescas da
nobreza, um outro, maior e formado pela burguesia vitoriosa, mais inapta ainda
a compreender a missão social da propriedade,. .ávida por dominar
na arena livre que se lhe abria, e ·tornando maior o contraste entre
a sua opulência recente e a situação inalterável
do proletariado sem voto -naquele tumulto e destinada apenas a colaborar anonimamente
na epopéia napoleônica, quando em breve, culminando a catástrofe
revolucionária, o mais pequenino dos grandes homens surgisse, concretizando
a reação disfarçada do antigo regime, e fosse restaurar,
entre os -fulgores de uma glória odiosa, o anacronismo da atividade
militar.
Destruída desta maneira a obra memorável da Convenção,
vê-se, contudo, que ela tinha latentes e aguardando apenas um meio propício,
os princípios de uma distribuição mais eqüitativa
da fortuna. Para o rígido Camus a propriedade “não era
um direito natural, era um direito social”; acompanhava-o neste conceito
o romântico Saint Just; e sobre todos, mais incisivamente, num dizer
claríssimo que lhe dá as honras de um precursor do coletivismo
moderno, o incomparável Mirabeau atirava na anarquia das assembléias
estas palavras singularmente austeras: “Le proprietarie n’est
lui-même que le premier des salariés. Ce que nous appelons vulgairement
la proprieté n’est autre chose que le prix qui lui paye la societé
pour les distribuitions qu’il est chergé de faire aux autres
individus par ses consommations et ses depenses. Les proprietaires sont les
agents, les economes du corps social”.
Estas frases admiráveis, porém, que ainda hoje, transcorridos
cento e tantos anos, são a síntese de todo o programa econômico
de socialismo, ninguém as ·escutou. De modo que à massa
infelicíssima do povo, a quem a revolução libertara para
a morte despeando-a da gleba para jungi-la ao carro triunfal de um alucinado,
restavam ainda, como nos velhos tempos, apenas as fórmulas enérgicas,
mas inócuas, de alguns doutores canonizados; e em pleno repontar do
século XIX – quando a filosofia natural já aparelhara o homem
para transfigurar a terra -um triste, um repugnante, um deplorável,
e um horroroso direito: o direito do roubo

***

Mas esta filosofia natural, tão crescentemente revigorada e favorecendo
tanto, no século que passou, o ascendente industrial, era por si mesma
– isolada no campo das suas investigações – inapta à
verdadeira solução do problema. Dizem-no os insucessos de todos
os que o consideraram esteando-se nela, das estupendas utopias de Saint-Simon
e dos seus extraordinários discípulos, às alienações
de Proudhon, às tentativas bizarras de Fourier e ao soçobro
completo da política de Luiz Blanc.
Fora logo acompanhá-los. Se o fizéssemos, veríamos que,
malgrado todos os recursos das ciências, eles pouco se avantajaram aos
sonhadores medievais: o mesmo agitar de medidas fantásticas, e tão
radicais, algumas, abalando tanto os fundamentos da sociedade, a começar
pela organização da família, que acerretavam ante novos
elementos perturbadores e novas faces à questão, dando-lhe um
caráter por igual revolucionário e complexo capaz de a tornar
perpetuamente insolúvel.

***

Assim ela chegou até meados do último século – até
Karl Marx – pois foi, realmente, com este inflexível adversário
de Proudhon que o socialismo científico começou a usar uma linguagem
firme, compreensível e positiva.
Nada de idealizações: fatos; e induções inabaláveis
resultantes de uma análise rigorosa dos materiais objetivos; e a experiência
e a observação, adestradas em lúcido tirocínio
ao través das ciências inferiores; e a lógica inflexível
dos acontecimentos; e essa terrível argumentação terra-a-terra,
sem tortuosidades de silogismos, sem o idiotismo transcendental da velha dialética,
mas toda feita de axiomas, de verdadeiros truísmos, por maneira a não
exigir dos espíritos o mínimo esforço para a alcançarem,
porque ela é quem os alcança independentemente da vontade, e
os domina e os arrasta com a fortaleza da própria simplicidade.
A fonte única da produção e do seu corolário imediato,
o valor, é o trabalho. Nem a terra, nem as má quinas, nem o
capital, ainda coligados, as produzem sem o braço do operário.
Daí uma conclusão irredutível: -a riqueza produzida deve
pertencer toda aos que trabalham. E um conceito dedutivo: o capital é
uma espoliação.
Não se pode negar a segurança do raciocínio.
De efeito, desbancada a lei de Malthus, ante a qual nem se explicaria a civilização,
e demonstrada a que se lhe contrapõe consistindo em que “cada
homem produz sempre mais do que consome persistindo os frutos do seu esforço
além do tempo necessário à sua reprodução”
– põe-se de manifesto o traço injusto da organização
econômica do nosso tempo.
A exploração capitalista é assombrosamente clara, colocando
o trabalhador num nível inferior ao da máquina. De fato, esta,
na permanente passividade da matéria, é conservada pelo dono;
impõe-lhe constantes resguardos no trazê-la íntegra e
brunida, corrigindo-lhe os desarranjos; e quando morre -digamos assim – fulminada
pela pletora de força de uma explosão ou debilitada pelas vibrações
que lhe granulam a musculatura de ferro, origina a mágoa real de um
desfalque, a tristeza de um decréscimo da fortuna, o luto inconsolável
de um dano. Ao passo que o operário, adstrito a salários escassos
demais à sua subsistência, é a máquina que se conserva
por si, e mal; as suas dores recalca-as forçadamente estóico;
as suas moléstias, que, por uma cruel ironia, crescem com o desenvolvimento
industrial – o fosforismo, o saturnismo, o hidrargirismo, o oxicarborismo
– cura-as como pode, quando pode; e quando morre, afinal, às vezes
subitamente triturado nas engrenagens da sua sinistra sócia mais bem
aquinhoada, ou lentamente- esverdinhado pelos sais de cobre e de zinco, paralítico
delirante pelo chumbo, inchado pelos compostos de mercúrio, asfixiado
pelo óxido de carbônico, ulcerado pelos cáusticos dos
pós arsenicais, devastado pela terrível embriaguez petrólica
ou fulminado por um coup de plomb – quando se extingue, ninguém lhe
dá pela falta na grande massa anônima e taciturna, que enxurra
todas as manhãs à porta das oficinas.
Neste confronto se expõe a pecaminosa injustiça que o egoísmo
capitalista agrava, não permitindo, mercê do salário insuficiente,
que se conserve tão bem como os seus aparelhos metálicos, os
seus aparelhos de músculos e nervos; e está em grande parte
a justificativa dos socialistas no chegarem todos ao duplo princípio
fundamental:
Socialização dos meios de produção e circulação;

Posse individual somente dos objetos de uso.
Este princípio, unanimemente aceito, domina toda a heterodoxia socialista
– de sorte que as cisões, e são numerosas, existentes entre
eles, consistem apenas nos meios de atingir-se aquele objetivo. Para alguns,
e citam-se apenas João Ligg e Ed. Vaillant, os privilégios econômicos
e políticos devem cair ao choque de uma revolução violenta.
É o socialismo demolidor que, entretanto, menos aterroriza a sociedade
burguesa. Outros, como Emilio Vendervelde, se colocam numa atitude expectante:
as reformas serão violentas ou não, segundo o grau de resistência
da burguesia. Finalmente, outros ainda – os mais tranqüilos e mais perigosos
– como Ferri e Colajanni, corretamente evolucionistas, reconhecendo a carência
de um plano já feito de organização social capaz de substituir,
em bloco, num dia, a ordem atual das coisas, relegam a segundo plano as medidas
violentas, sempre infecundas e só aceitáveis transitoriamente,
de passagem, num ou noutro ponto, para abrirem caminho à própria
evolução.
Ferri, em belíssimo paralelo entre o desenvolvimento social e o terrestre,
mostra como os imaginosos cataclismos de Cuvier, perturbaram, sem efeito,
a geologia para explicarem transformações que se realizam sob
o nosso olhar, sendo os grandes resultados, que mal compreendemos no estreito
círculo da vida individual, uma soma de efeitos parcelados acumulando-se
na amplitude das idades do globo. Deslocando à sociedade este conceito,
aponta-nos o processo normal das reformas lentas, operando-se na consciência
coletiva e refletindo-se pouco a pouco na prática, nos costumes e na
legislação escrita, continuamente melhoradas.
Nada mais límpido. Realmente, as catástrofes sociais só
podem provocá-las as próprias classes dominantes, as tímidas
classes conservadoras, opondo-se a marcha das reformas – como a barragem contraposta
a uma corrente tranqüila pode gerar a inundação. Mesmo
nesse caso, porém, a convulsão é transitória;
é um contrachoque ferindo a barreira governamental. Nada mais. Porque
o caráter revolucionário do socialismo está apenas no
seu programa radical. Revolução: transformação.
Para a conseguir, basta-lhe erguer a consciência do proletário,
e – conforme a norma traçada pelo Congresso Socialista de Paris, em
1900 – aviventar a arregimentação política e econômica
dos trabalhadores.
Porque a revolução não é um meio, é um
fim; embora, às vezes, lhe seja mister um meio, a revolta. Mas esta
sem a forma dramática e ruidosa de outrora. As festas do primeiro de
maio são, quanto a este último ponto, bem expressivas. Para
abalar a terra inteira, basta que a grande legião em marcha pratique
um ato simplíssimo: cruzar os braços…
Porque o seu triunfo é inevitável.
Garantem-no as leis positivas da sociedade que criarão o reinado tranqüilo
das ciências e das artes, fontes de um capital maior, indestrutível
e crescente, formado pelas melhores conquistas do espírito e do coração…

AO LONGO DE UMA ESTRADA

Margem do Turvo Novembro de 901

Considero, à porta da capuaba de pau-a-pique e taipa em que abriguei,
este trecho torturante da estrada de Taboado, onde me colheu a noite.
E penso, desapontado, nas três mil léguas das quarenta e oito
estradas romanas, estendidas, irradiantes, pela terra feito uma rede aprisionadora
e forte desenrolada em roda da coluna fulgente do miliarum aureum, que centralizava
o Forum.
O viajante abalava por uma delas, a Via Flaminia, por exemplo, e contorneava
todo o norte da Itália; entrava na Panonia; varava, adiante, a Moeda
e a Tracia, seguindo por Heracléa até Constantinopla; e daí
para a Bitínia, para a Capadócia, para Antióquia, atravessando
o Tauros, e para a Sina, a Palestina e o Egito; inflectindo, afinal, vivamente,
à. direita, perlongando todo o norte da África, de Alexandria
a Tanger.
Neste longo percurso – atravessando pantanais e montanhas sobre paredões
de pedra ou galerias subterrâneas, pisava o chão duro dos stracta
enrijados, a cimento, cobertos pelas glareas de saibro sobre que se estendiam
os ladrilhos largos dos silhares.
Por ali disparavam as quadrigas velozes, como sobre raias unidas, e o pedestre
desviava-se, a salvo, sobre as calçadas laterais de basalto, das margines,
ladeadas de bancos intervalados e cômodos.
A viagens transcorriam rápidas naquelas avenidas continentais, animadas
e vibrantes, onde estrepitava a galopada dos correios precipitando-se para
as Gálias ou para a Síria, e derivavam, vagarosas, as caravanas
dos mercadores, estacando às vezes para que de permeio lhe passassem
céleres, no ritmo acelerado da estratégia de Cesar, as cortes
das legiões.
Há dois mil e tantos anos.
É natural que nos entristeçam hoje, contemplando este trecho
medonho de estrada, tortuoso e estreito, invadido de mato, rolando em aclives
vivos, afundando em grotões, enfiando, feito num túnel, pelos
tabocais que o cobrem, ou diluindo-se, impraticável, em tremedais extensos;
– um picadão malgradado, de dezenas de léguas, atravessando
todo o Estado de S. Paulo até ao Mato Grosso.
Dir-se-á que os tempos são outros, outros os nossos recursos,
e que a linhas férreas substituem com vantagem aquelas construções
monumentais da engenharia antiga, com maior economia de esforços e
resultados incomparavelmente maiores.

***

Mas esta estrada de Taboado que, pelo seu traçado, é a mais
importante não já de S. Paulo mas do Brasil inteiro, merecia
trabalhos excepcionais. Tem um caráter continental tão frisante
que devíamos, tanto quanto possível, aproximá-la de uma
estrada romana.
Desenvolvendo-se do Jaboticabal ao porto do Paraná, que a batiza, o
seu prolongamento levá-la-ia, recortando o divortium aquarum do Amazonas
e do Paraguai, a Cuiabá, quase no centro geométrico da América
do Sul. Teria, então, um comprimento de duzentas léguas escassas
e se fosse construída – não diremos com o luxo estupendo dos
caminhos antigos, nem mesmo como os modernos planck-roads do Canadá
– mas larga e abaulada, declives atenuados, atoleiros para sempre desfeitos
com aterros firmes e drenagem completa, faixas reforçadas por uma macadamizacão
pouco espessa embora, pontes que não constringissem a vazão
do rio nas estreitezas de uma economia extravagante, e tendo, regularmente
espaçados, estações e postos de segurança garantindo
e policiando o tráfego; assim constituída, aquela estrada duplicaria
em poucos anos a vitalidade nacional.
Não idealizamos.
Entre os coeficientes de redução do nosso progresso, avulta
uma condição geográfica, que toda a gente conhece.
O Brasil é compacto. Falta-lhe penetrabilidade. Falta-lhe esse articulado
fundo das costas, essa diferenciação do espaço que em
todos os tempos e lugares da Grécia antiga a Inglaterra de hoje e ao
Japão, reage vigorosamente sobre as civilizações locais.
Por outro lado, completando os inconvenientes de um aparelho litoral inteiriço,
a sua estrutura geológica, matriz do facies topográfico – antemurais
graníticas precintando planaltos – impropria-o ainda mais ao domínio
franco.
Dai todo o esforço despendido para se modificar esta fatalidade geográfica.
Em torno do problema da viação geral do Brasil tem-se travado
discussões entre as mais interessantes de toda a engenharia.
Começaram em 1870. Tiveram a princípio, como objetivo exclusivo,
o abandono do perigoso desvio pelo Prata que, de 1850 a 1866, através
de longa série de desastres diplomáticos enfeixados afinal numa
campanha feroz, tornava precárias as comunicações com
o Mato Grosso.
Apareceram, então, os traçados de Palm e Lloyd, B. Rohan, Antonio
Rebouças e outros que variando apenas no escolher os diversos vales
como linhas naturais de penetração, visavam, estreitamente estratégicos,
alcançar o Paraguai, pelo sul daquele Estado remoto. Apenas Monteiro
Tourinho ampliou o problema, sem o melhorar, com a idealização
ousada de uma linha férrea das Sete-Quedas, do Paraná, ao porto
de Anca, no Pacifico.
Depois a questão se esclareceu melhor. Sem perder o ponto de vista
militar, tornou-o apenas incidente de aspiração mais alta.
Surge o nome de Pimenta Bueno. O grande engenheiro firma, em 76, acompanhando
a divisória das águas do Tietê e do Mogi-Guaçu,
com o ponto obrigado de Santa Ana do Paranaíba, o rumo realmente prático
das nossas comunicações com a capital de Mato Grosso –
Os que se sucederam, a própria comissão de cinco notáveis
– Rio Branco, Beaurepaire Rohan, Buarque de Macedo, Raposa e Honório
Bicalho não encararam com maior lucidez o assunto.
A linha planeada, que a Companhia Paulista, infelizmente, acompanhou somente
até Araraquara, permaneceu inteiriça, completa, sem comportar
a variante mais breve, e cortando mesmo, vitoriosamente, depois, as paralelas
desse grande trângulo da viação geral, que André
Rebouças ideou, como um desafio ao nosso progresso máximo, no
futuro.
Não pormenorizaremos estes vários traçados.
Notemos apenas que em todos eles os dignos mestres tiveram a obsessão
permanente da locomotiva, rápida e triunfante, suplantando tão
desmarcadas distâncias. Agiram num plano superior demais. Foram sobremaneira
teóricos, e olvidando o aspecto econômico, dominante na questão,
parece terem imaginado que a simples chegada das vias férreas bastasse
para que surgissem os elementos vitais e a matéria-prima da mais civilizadora
das indústrias: o povoamento, a produção intensa e o
tráfego continuo.
Mas este despertar de energias em regiões despovoadas requer um prazo
longo demais para os capitais que nele se arriscam, jogando contra o futuro.
Mostra-o, entre nós, uma experiência de trinta anos.
As nossas duas melhores estradas de penetração, aparelhadas
pelos recursos acumulados de um progresso crescente, a Paulista e a Mogiana,
inauguradas em 72 e 75, no avançarem para Mato Grosso e Goiás
mal ultrapassam, hoje, um terço e a metade das distâncias.
Entretanto, organizaram-se na quadra certo mais pujante do nosso desenvolvimento
econômico, que o gênio do Visconde do Rio Branco domina, e tiveram,
nos anos subsequentes, o amparo da riqueza crescente de S. Paulo.
A primeira afastou-se do mesmo traçado civilizador de Pimenta Bueno,
seguindo ilogicamente para Barretos, desviando-se de uma rota entregue hoje
ao avançamento, naturalmente moroso, da estrada de Ribeirãozinho.
Mas dado que persistisse no primitivo rumo e fosse encontrando sempre nas
novas paragens atingidas as mesmas condições de vida, só
alcançaria Cuiabá num prazo mínimo de sessenta anos.
E ainda quando, escandalosamente otimistas diante do nosso desfalecimento
econômico, reduzíssemos aquele prazo, não pagaríamos
o traço bem pouco animador que caracteriza a distensão das nossas
redes de estradas de ferro.
De fato, nenhuma busca o centro do país visando despertar as energias
latentes que o afastamento do litoral amortece. Progridem arrebatadas npor
uma lavoura extensiva que se avantaja no interior à custa do esgotamento,
da pobreza, e da esterilização das terras que vai abandonando.
Povoam despovoando. Não multiplicam as energias nacionais, deslocam-nas.
Fazem avançamentos que não são um progresso. E alongando
para a frente os trilhos, à medida que novas terras roxas abrolham
em novos cafezais, vão, ao acaso, nesse seguir o sulco das derribadas,
deixando atrás um espantalho de civilização tacanha nas
cidades decaídas circundadas de fazendas velhas …
Este fato, que ninguém contesta, define bem as anomalias de um desenvolvimento
e de um progresso contestáveis. Reflete o vício de uma expansão
em que não colaboram as forças profundas do país, porque
vai da periferia para o centro, sobre não ter o caráter francamente
nacional, a pouco e pouco extinto no vigor das correntes intensivas de imigrantes
que, diante da nossa indiferença fatalista pelo futuro, já vão
assumindo o aspecto de uma invasão de bárbaros pacíficos.
Deste modo uma estrada de rodagem digna de tal nome, para o Mato Grosso, principalmente
agora que o automobilismo libertou a velocidade do trilho, não seria
apenas o melhor leito para a futura via férrea e o melhor meio de nos
emanciparmos do Prata, neste fase incandescente da política sul-americana,
mas ainda, sob aspecto mais grave, um belo laço de solidariedade prendendo-nos
aos patrícios dos sertões e revigorando uma integração
étnica, já consideravelmente comprometida.
E a tarefa é, relativamente, fácil.
Temos um termo de comparação expressivo na única estrada
de rodagem de todo o Brasil, a da “União e Indústria”.
Desenvolvida de Juiz de Fora a Petrópolis, com um percurso de 147 quilômetros,
esta admirável avenida, macadamizada de feldspato e quartzo, que outrora
faria inveja às melhores ruas das nossas capitais, é uma grande
lição.
Surgiu da vontade de ferro de um homem – Mariano Procópio – e foi executada
em condições desfavoráveis: de um lado as dificuldades
técnicas decorrentes da feição alpestre do Rio de Janeiro
e Minas, de outro a carência de aparelhos e maquinismos, que hoje existem,
sendo o próprio britamento das pedras feito desvantajosamente, à
mão, o que encarecia sobremodo os materiais empregados.
Mas foi feita – larga, de oito metros, abaulado o leito resistente e firme
perfeitamente drenado, decorado de obras de arte em que se salienta a ponte
das Garças sobre o Paraíba, e inflectindo em curvas capazes
dos maiores retângulos de atrelagem, ou atenuando, malgrado o acidentado
dos lugares, os esforços de tração, graças a um
máximo de 3% para os declives.
E natural que sobre ela as diligências de cerca de três toneladas,
corressem, rápidas, com a velocidade média de 17 quilômetros
por hora, o que permitia o percurso total das suas vinte e duas léguas
em muito menos de um dia.
Ora, uma estrada identicamente modelada, para Mato Grosso, seria apenas oito
vezes e meia maior.
Realmente, dando-se aos caminhos de Jaboticabal a Cuiabá, um desenvolvimento
de 0,20 sobre a linha reta, o que não é pouco para uma estrada
de rodagem, vemos que a sua extensão total importará em 1.250
quilômetros ou 190 léguas.
Com estes dados, confrontadas as duas empresas, verifica-se que todas as vantagens
são pela última.
Dois Estados, o de Mato Grosso e o de S. Paulo, e a União, por igual
interessados, certo balanceiam numa proporção maior, a energia
única de um homem, sobretudo considerando-se que a intervenção
da última acarretará a diminuição da mão-de-obra
pelo emprego de engenharia militar e contingentes do exército. Além
disso, os tempos mudaram, estando a engenharia aparelhada de elementos incomparavelmente
mais eficazes.
Ainda mais, o dilatado do desenvolvimento seria em grande parte compensado
pela disposição mais acessível do terreno.
De fato, percorridos os 435 quilômetros que vão de Jaboticabal
à margem direita do Paraná, fronteira ao Taboado, mercê
de uma ponte de 880 metros sobre o grande rio, a única obra de arte
dispendiosa a executar, a estrada se desdobrará, a partir de Santa
Ana, pelo vale do Aporé; e, deixando-o, irá deparar regiões
ainda mais praticáveis, estendendo-se em cheio sobre esse divortium
aquarum do Amazonas e do Paraguai, tão pouco acentuado e de relevos
tão breves que os tributários dos dois rios quase se anastomosam
em nascentes comuns. E se considerarmos que em todo este percurso lhe sobejam,
nos seixos rolados de inumeráveis cursos de água e nos afloramentos
de quartzitos, materiais que suplantam na facilidade do britamento, e na duração,
o gnaisse granítico da “União e Indústria”,
vemos que, de feito, numerosíssimas condições favoráveis
rodeiam a abertura desse caminho admirável, imposto por exigências
sociais e políticas tão imprescindíveis e urgentes.
Quando isto suceder – dando-nos mesmo às diligências, numa marcha
diária de dez horas, uma velocidade média de doze quilômetros,
a travessia de Jaboticabal a Cuiabá será feita, folgadamente,
em dez dias – precisamente um terço, portanto, do que hoje se gasta
na volta de quinhentas léguas pelo Prata.
Ademais, ficaram por uma vez removidos todos os embaraços, todos os
empeços inesperados da travessia num rio que, pelos atritos perigosos
que tem originado, e despertará, é o Bósforo alongado
na América do Sul.
E se isto não acontecer – então, parafraseando uma frase célebre,
é que decididamente nos faltam “um grande engenheiro, um grande
ministro e um grande chefe de Estado”, para a realização
das grandes obras.

CIVILIZAÇÃO

Convenha-se em que Spencer – Spencer o da última hora, o Spencer valetudinário
e misantropo que chegou aos primeiros dias deste século para o amaldiçoar
e morrer – desgarrou da verdade ao afirmar que há nestes tempos, um
recuo para a barbaria. Viu a vida universal com a vista cansada dos velhos.
Não a compreendeu. Não lhe aprendeu os aspectos variadíssimos
e novos. Certo, faltou-lhe às células cerebrais, exauridas pela
idade, senão pelo mesmo acúmulo das imagens que se refletiram,
a primitiva receptividade diante da época indescritível e bizarra
em que as almas se dobram à sobrecarga de maravilhas e vacilam, deslumbradas,
ora entre prodígios da indústria tão delicados, às
vezes, que recordam uma materialização do espírito criador,
ora entre as magias da ciência, tão poderosas que espiritualizam
a matéria dinamizando-a na idealização tangível
do rádio…
Ou, então, afligiu-o um duro ferrotoar da inveja. Ia-se-lhe a vida,
próxima a estagnar-se no emperramento das artérias – e ficavam-lhe
na frente, maior e crescente, prefigurando novos encantos, novas revelações
e novos ideais, o esplendor da civilização vitoriosa. Não
se conteve. Partiu-se-lhe o aprumo de filósofo. Vestiu desastradamente
a pele da raposa desapontada, e entrou na imortalidade através de uma
fábula de La Fontaine.
Que mais desejava o sábio?…
Maior amplitude na ciência?
Mas esta é, hoje, tal que obriga a inteligência a diferenciar-se
numa especialização indefinida. O mais desvalioso, o mais tíbio
aspecto particularíssimo de uma existência, exige uma existência
inteira. Em torno da criptogama mais rudimentar arma-se uma biblioteca. A
mais afanosa vida não basta a estudar todas as algas.
Breve se organizarão academias para os zoóptos. O martelo do
geólogo bate, nesta hora, na última aresta rochosa do último
recanto perdido na anfratuosidade de um contraforte sem nome de uma montanha
da África central. Aos sismógrafos, armados em toda a parte,
não escapa o mínimo tremor, a mais célere crispadura
da terra. A ocultação da estrela mais imperceptível,
sem nome ou apequenada nas últimas letras do alfabeto grego, não
se opera sem que a acompanhe o olhar perspícuo de um astrônomo
– do astrônomo que não induz como Newton, Kepler, nem calcula
como Gauss, porque lhe é escassa a vida para a infinitas minúcias
que repontam e fulguram na poeirada cósmica dos asteróides.
Neste momento, um oceanógrafo, um NN imortal qualquer, arranca o brilho
de uma revelação da vasa secular de um dos tenebrosos abismos
do Atlântico; ou pompeia, vaidoso, o fruto de vinte anos de análises,
descrevendo rigorosamente o movimento respiratório das nereidas.
E um anatomista, encanecido a estudar o grande zigomático, levanta-se
gravemente numa academia real austera ou num instituto sizudo, e, diante da
austera academia, que se edifica, ou do sizudo instituto, que se deslumbra,
faz a psicologia do riso e a dinâmica hilariante da alegria…
Maior idealização artística?
Mas Shakespeare imortalizou- se, universalizando-se: foi a grande voz assombradora
da natureza, ressoando com todas as tonalidades, da gagueira terrível
de Caliban ao correntio harmonioso do rouxinol do Capuleto – ao passo que
hoje os poemas irrompem, a granel, de um retalho qualquer da vida mais prosaica
– e um largo, irresistível misticismo baralha na mesma ebriez espiritualista
os cientistas e os poetas.
Os raios n fulminam a positividade das ciências. E a crítica
inexorável, que espantara os duendes e anulara o milagre, recua, por
sua vez, surpreendida ante a ciência imaginária, que surge sobre
os destroços da teoria atômica – e mostra-nos, em destaque, num
quase eclipse da lei suprema da conservação da energia – o espiritista
esmaniado ao lado do químico reportado, e a física de Roentgen
desfechando nos mistérios telepáticos.
Maior expansão industrial?
Mas, posto de lado o indescritível das primorosas glorificações
do trabalho, devia bastar-lhe, para aquilatar o império do homem sobre
as coisas, este aproveitamento genial do solenóide terrestre na telegrafia
sem fios: a Terra inteira transmudada em serva submissa do pensamento humano,
e toda penetrada dele, e absorvendo-o, irradiando-o, e expandindo-o no consórcio
maravilhoso da sua força magnética imensurável com as
vibrações ideais da inteligência…
Maior alevantamento moral?
Aqui se nos emperra a pena, a ranger, trada e acobardada. O assunto é
complexo e pregueia-se de inumeráveis refolhos. Não há
abrangê-lo. O movimento industrial, ou científico, pode ao menos
ser imaginado. Pode condensar-se num “bloc” resplandecente como
essa Exposição de S. Luiz, que inscreve num quadrilátero
de palácios o melhor de toda a atividade humana. Mas o progresso da
moral…

***

Entre os atrativos da Exposição de S. Luiz, um há, interessantíssimo.
Não se trata de algum novo motor, ou de uma nova aplicação
elétrica. Trata-se de uma pantomina heróica. Imagine-se o drama
esquiliano da guerra do Transvaal sobre o palco amplíssimo de um vasto
barracão de feira. A terra lendária, com o revesso dos seus
alcantis arremessados e a angustura de seus desfiladeiros longos, aparece,
à luz das gambiarras, na paisagem morta de lona chapada de largos borrões
de tinta variadas e cruas ajustadas sobre pernas de serra e sarrafos.
Ali, desenrola-se a luta nos estouros dos cartuchos de festim, no coruscar
das espadas de papelão prateado, nos assaltos aos redutos de papier-maché,
e no estavanado, e no tropear tumultuário dos guerreiros de rostos
afogueados de vermelhão ou empalecidos de pós-de-arroz, e ouvidos
armados dos apitos do contra-regra…
O ianque aplaude. A ilusão é completa. Vê-se a celeridade
nervosa de De Wet, a calma patriarcal de Krueger, a tardeza ameaçadora
de Botha… E, vibrando na distensão repentina dos atiradores, ou concentrando-se
em cargas violentas e compactas, dispersas em escaramuças ou fundidas,
de golpe, no tumulto convulsivo da batalha, as brigadas impetuosíssimas
dos boers.
Depois Ladsmith, Kimberley, Magersfontain, todos os lugares refertos de reminiscência
gloriosa. – –
Por fim, o assalto de Paardeberg e a bravura espantosamente tranqüila
de Cronje.
Nesta ocasião a imagem real da campanha é absoluta e o protagonista
surge como o não representaria o Fregoli mais protéico e plástico.
Porque é o mesmo Cronje, o Cronje autêntico, palpável
– com a sua linha magnifica de herói de envergadura atlética,
aparecendo
aos clarões da ribalta, entre explosões de palmas e gritos entusiásticos
que lhe bisam as façanhas.
Um cronista do Figaro, comentando o caso do único modo por que pode
ele ser comentado – com um humorismo laivado de melancolia – declarou “que
é preciso viver e que desgraçadamente ainda não há
incompatibilidade entre a glória e a miséria”…
Não comentemos, nós. Admiremos, absortos, este traço
adorável e utilitário dos tempos.
Acabou-se o tipo tradicional do herói transfigurado pela desfortuna;
do herói importuno e triste; do herói que pede esmola ou morre
escaveirado e tiritante, passando das palhas de uma enxerga para o mármore
dos panteões. Não mais Camões e Belisários…
Rompe o herói político, esplendidamente burguês; o herói
que faz o trust do ideal; o herói que aluga a glória e que,
antes de pedir um historiador, reclama um empresário.
Alevantamento moral…
Não prossigamos. Decididamente Spencer viu, pela última vez,
este mundo com o olhar bruxoleante de um velho.
O mestre errou; errou palmarmente, desastrosamente, escandalosamente.
Os tempos que vão passando são, na verdade, admiráveis.

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