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INTRODUÇÃO
Minha Senhora: Tive, durante quinze anos, a honra tão invejada de
ser o secretário particular de seu Ex.mo Marido, Alípio Severo
Abranhos, Conde d’Abranhos, e consumo-me, desde o dia da sua morte, no desejo
de glorificar a memória deste varão eminente, Orador, Publicista,
Estadista, Legislador e Filósofo.
V. Exª, Srª Condessa, ergue-lhe neste momento, no cemitério
dos Prazeres, um mausoléu comemorativo, onde o cinzel do escultor Craveiro
faz reviver a nobre figura do Conde.
Respeitosamente me arrojo, Srª Condessa, a imitar o piedoso acto de
V. Exª, e neste livro como o artista esculpiu no mármore
o seu invólucro físico eu pretendo reconstituir o seu
ser moral. A estátua é assim completada pela biografia: na pedra,
as gerações contemporâneas poderão contemplar a
grandeza da sua atitude e a expressão do seu rosto; no livro, admirarlhe-
ão a elevação do espírito e a rectidão
da alma.
E quem melhor do que eu poderia tornar conhecido este português histórico
eu, a quem ele fez a confidência das suas crenças, da
sua filosofia tão profundamente religiosa, da sua alta ambição,
do seu puro amor da Pátria, da sua vasta ciência política?
Eu, que tenho presente a sua correspondência, cuidadosamente
arquivada no copiador os seus manuscritos, os rascunhos dos seus discursos,
naquela letra larga e ampla que apresentava similitude com a sua alma; eu,
que tive o piedoso cuidado durante quinze anos, de recolher as menores palavras
que saíam dos seus lábios ai! que a anemia ia adelgaçando
tão cruelmente e, apenas entrava no meu quarto andar da Rua
do Carvalho, ninho doméstico que a sua generosidade me permitiu
adquirir escrevia as conversas que, à hora do chá, ou
mais tarde no seu escritório, me enlevavam de admiração.
Eu fui a testemunha da sua vida. Outros o viram em S. Bento, nas Secretarias,
no Paço, no Grémio, mas só eu o vi, perdoe-me
V. Exª, Srª Condessa, a familiar expressão em chinelos
e de «robe-de-chambre».
Todos conhecem o grande homem. Eu, conheço o homem. Eu e
V. Exª, de quem ele me dizia, pouco antes de morrer, no momento em que
lhe dava a colher de bromureto de potássio: «Zagalo amigo,
ao fim da experiência de oito anos de casamento, a Lulu (porque nos
momentos de expansão comigo, era este o nome que ele lhe dava, Srª
Condessa pois que, ordinariamen te, aos inferiores dizia, a Condessa,
e aos seus iguais, a D. Catarina) a Lulu, amigo Zagalo, tem sido mais que
uma esposa, tem sido «um bálsamo». Referia-se o ilustre
marido de V. Exª às circunstâncias dolorosas do seu primeiro
casamento, a que ele se costumava, referir, chamando-lhe «uma chaga».
Tais são os motivos, Srª Condessa o desejo de lhe erguer
um monumento espiritual e o meu conhecimento íntimo da sua vida
que me levam, depois de demorada reflexão, a escrever esta biografia
do Conde d’Abranhos.
Eu conheço ainda que as minhas tentativas literárias
têm recebido do país um acolhimento remunerador que me
escasseiam as qualidades de Estilo e de Critica, para escrever a história
complexa deste grande homem: seria necessário, para bem o pintar, um
Plutarco, ou, nos tempos mais modernos, um Victor Cousin (que ele tanto admirava),
ou ainda, contemporaneamente, um Herculano, um Rebelo, um Castilho
um desses astros que se destacam no céu da nossa Pátria, com
uma luz de serenidade eterna. Eu sei, além disso, não serem
necessárias apoteoses biográficas para que o pais reconheça
o homem que perdeu no Conde d’Abranhos. A dor de toda a Lisboa devia ser bem
grata à sua alma. Sim, Srª Condessa, devia ser bem grato ao seu
espírito imortal, já arrebatado à serenidade dos eleitos,
ver, cá em baixo, nesta Capital que ele amava, nestas ruas que ele
tão bem conhecia, a imponente cerimónia do seu préstito
fúnebre: o camarista que representava S. M. El-Rei; o presidente do
conselho que, apesar da firmeza da sua vontade de ferro, não podia
conter as lágrimas que lhe humedeciam as pálpebras; a deputação
dos meninos do Asilo de S.
Cristóvão, por quem ele tomava um interesse tão delicado
e a quem chamava, com aquela graça que nas horas felizes era o encanto
da sua conversa, «os meus pintainhos»; a deputação
das duas casas do Parlamento, levando à frente o orador da maioria,
o poeta maravilhoso dos «Sonhos e Enleios», que me disse estas
palavras memoráveis que ficarão na História:
«Vimos em nome da Viúva…» E como eu lhe perguntava,
admirado: «Em nome da Srª Condessa?» «Não
respondeu o poeta em nome da Tribuna, viúva do Génio!»
E enfim, fechando o préstito, vinte carruagens particulares,
vinte e cinco da companhia e algumas de praça entre as quais
notei com admiração alguns operários da Sociedade «Probidade
Cristã», que ele tanto ajudara a formar, e que vinham pagar um
tributo derradeiro ao homem que, mais que nenhum em Portugal, amou, protegeu
e educou o operário! Ali vinham, quatro numa tipóia, nos seus
casacos dos domingos, as lágrimas nos olhos, a fé no peito,
levar com saudade à sepultura aquele que um dia exclamara na Câmara
dos Deputados (sessão de 15 de Agosto, «Diário do Governo»
nº 2758): «Não podemos dar ao operário o
pão na terra, mas obrigando-o a cultivar a fé, preparamos-lhe
no Céu banquetes de Luz e de Bem-aventurança!» E quem
negará aí que não seja esta a verdadeira maneira de promover
a felicidade das classes trabalhadoras? Mas não foram estas as únicas
demonstrações de luto social. A Imprensa a que ele se
orgulhava de pertencer, e a que chamava, com tanta elevação,
o «porta-voz do progresso» dedicou-lhe páginas
que, pela unanimidade do sentimento, e até, se me é permitido
descer a estes detalhes, o tipo grande dos artigos, entre tarjas negras, lembravam
os funerais de um Rei.
As musas mesmo o choraram, e quem esquecerá essa jóia da poesia
portuguesa, que dedicou à sua morte o nosso grande lírico, o
autor melodioso dos «Cânticos e Suspiros»? Ah! Srª
Condessa, recitemos ambos, na nossa dor comum, esta estrofe, digna dos Hugos,
dos Passos e dos Leais: Teu corpo desce à terra escura e fria…
Terra de Portugal. Treva sombria Te cobre e te devora! Mas não perecerá
teu génio altivo, E surges para a História redivivo como da
Noite a Aurora…
A música mesmo (para que todas as Artes se reunissem no coro de prantos)
lá lhe vai dar o seu tributo, nessa inspirada com posiçãoeA
Civilização» valsa dedicada à memória
do ilustre Conde d’Abranhos, pelo padre Abílio Figueira! Era tempo,
pois, Srª Condessa, que eu, que nessa grande explosão de dor me
conservei taciturno e retraído (devendo dizer-se que o severo ataque
de fígado que então me prostrou, resultante das longas noites
de vigília à cabeceira do grande enfermo, me forçou a
um silêncio involuntário) venha enfim depor sobre o seu
túmulo esta memória humilde.
A Ele, Srª Condessa, devo tudo. O pão do corpo e o pão
da alma, me deu ele com generosidade larga e fidalga. Nunca o esquecerei.
Por vezes, quando me via (sobretudo.4 depois da bronquite de que padeci no
Inverno de 1870) um pouco pálido ou debilitado, ele próprio
ia ao armário do seu escritório e por sua mão me servia
de um, às vezes dois cálices de vinho do Porto de 1815. Nos
dias em que tinha gente a jantar, nunca se esquecia de mandar guardar alguma
sobremesa para eu levar a meus filhos, que lhe devem, além desta lembrança
mimosa, a educação sólida e cristã de que gozam
e que os habilitará, espero, a entrar um dia, com justo mérito,
nas Repartições do Estado.
Mas, Srª Condessa eu sou feliz em o poder dizer bem alto
o que acima de tudo devo ao Conde d’Abranhos, é ter-me ele refeito
um ser moral. Eu, que na mocidade, sob a influência perniciosa de leituras
inconvenientes e de camaradagens fúteis, partilhava as ideias que a
sociedade condena, fui transformado pelo seu exemplo, pelos seus conselhos,
pela sua eloquência e pela sua protecção. Sim, Srª
Condessa, seu ilustre marido encontrou-me pobre, e portanto repastando-me
de leituras perniciosamente democráticas, e acompanhando com moços
de talento, é certo, mas inteiramente devorados pelos estragos de unia
filosofia materialista e de uma sociologia anárquica; empregando-me
como seu secretário particular, com um ordenado suficiente às
neces-sidades de minha família (eu casara então com a minha
angélica Madalena), o Conde d’Abranhos deu-me os meios materiais de
me tornar um conservador convicto, um defensor fervoroso das instituições,
um amigo da ordem. Pondo-me ao abrigo da pobreza, digo-o bem alto, pôs-me
ao abrigo da depravação intelectual, moral e social.
E de V. Exª, Srª Condessa, que direi, que o não tenham
dito na terra os pobres de que V. Ex.» cura os males e afasta a necessidade,
e no Céu, os anjos de quem V. Ex.» é seguramente predilecta
e decerto futura companheira? Permita-me pois, Srª Condessa,
que ponha aos pés de V. Exª este trabalho, no qual consignei a
primeira fase da carreira admirável do Conde d’Abranhos, essa ascensão
vertiginosa às culminâncias do poder, de modesto filho de Pena
fiel a ministro ilustre, e onde deixei o que na minha alma existe de melhor,
de mais nobre, de mais duradouro a minha respeitosa admiração
pela grande figura do Conde d’Abranhos.
Sou de V. Exª o mais humilde criado Z. Z.
Ex-secretário do Ex.mo Sr. Conde d’Abranhos, sócio honorário
do Grémio Recreativo do Rio Grande do Sul.
108 Rua do Carvalho Lisboa 1º de Janeiro de 1879.
O CONDE D’ABRANHOS ALÍPIO SEVERO ABRANHOS nasceu no ano de 1826,
em Penafiel, no dia de Natal.
A Providência, por um símbolo subtil e engenhoso, fez nascer
no dia sagrado em que nasceu Jesus de Nazaré, aquele que em Portugal
devia ser o mais forte pilar e o procurador mais eloquente da Igreja, dos
seus interesses e do seu reino.
Muitas vezes o Conde se comprazia em contar que, nessa noite de 24 de Dezembro
de 1826, Inverno que ficou na história pelas grandes neves que caíram,
seus pais segundo a tradição venerada na família
tinham armado um presépio, como era costume nesses tempos em
que a boa fé portuguesa amava a piedosa devoção dos altares
íntimos. Ao centro do presépio, florido de muita verdura, entre
os animais da narração evangélica, o Menino Jesus sorria,
nos braços de uma Virgem, obra delicadamente trabalhada por Antão
Serrano, o grande santeiro de Amarante. Em torno, ardiam as velas de cera;
na cozinha, cantavam nas frigideiras os rojões da ceia; o lume de lenha
húmida estalava jovialmente, e fora, na neve que caía, os sinos
repicavam para a missa do Galo quando a mãe do Conde, subitamente
Sentiu o tenro ser…
como diz o nosso grande lírico no seu poema, A Mãe.
O parto foi singularmente feliz, e, aludindo a esta circunstância,
o Conde muitas vezes me dizia, que, segundo o seu velho amigo Dr. Flores,
a facilidade em nascer era o indício misterioso de um destino fácil
e de imprevistas fortunas. Todos os homens providenciais Napoleão
I, o nosso Santo Papa Pio IX, o grande estadista Fonseca Magalhães,
nasceram como dizia o Conde com chiste «com uma perna
às costas!» A fortuna começa-lhes no ventre maternal:
a porta da vida abre-se-lhes a dois batentes, mostrando-lhes uma sequência
de épocas gloriosas, como salões festivos. Outros têm
de arrombar com dor essa mesma porta, saindo para um destino escuro como uma
estrada de Inverno. Providenciais antíteses da Sorte! E o parto da
mãe do Conde foi tão feliz, que, meia hora depois das primeiras
dores, o pequeno Alípio foi trazido triunfantemente para a sala. A
comadre sentara-se casualmente diante do presépio, e os dois meninos
o que havia de ser um homem, e o que fora um Deus sorriamse
à claridade das velas festivas do Natal, ambos nuzinhos, ambos ao colo,
enquanto de fora, lançados vivamente, vinham os repiques do sino, através
dos flocos de neve! Tocante quadro; e poucos conheço se atendermos
à glória do Conde d’Abranhos que mais mereçam
ser lançados na tela ou esculpidos no mármore.
Os pais do Conde, é geralmente sabido, eram pobres. Mas a origem
da sua família não só é plebeia como afectavam
supor os seus adversários de ideias mas, bem estudada, revela
uma origem tão nobre como a das melhores casas do norte de Portugal.
Os Abranhos são originários de Amarante e aliados, pelas mulheres,
à ilustre casa de Noronha. Em 1758, D. Jacinta Ana de Sobral Vieira
Alcoforado e Noronha, viúva do capitãomor Teles Azurara, senhora
já avançada em anos, mas ainda de aspecto imponente, casara
com Manuel Abranhos, que, pelas suas formas atléticas e beleza viril,
era chamado o Apolo de Amarante. Manuel Abranhos não era decerto um
fidalgo, mas é inteiramente inexacto o dizerse, como se imprimiu na
Revolução de Setembro, então na oposição,
que era um carniceiro: estas insinuações pérfidas desonram
as grandes lutas intelectuais da política! D. Jacinta Ana concebera
por ele uma dessas paixões, como aquelas que a poesia Alípio
Severo Abranhos nasceu no ano de 1826, em Penafiel, no dia de Natal. A Providência,
por um símbolo subtil e engenhoso, fez nascer no dia sagrado em que
nasceu Jesus de Nazaré, aquele que em Portugal devia ser o mais forte
pilar e o procurador mais eloquente da Igreja, dos seus interesses e do seu
reino..6 tem celebrado, e, apesar da renitência dos parentes
que faz lembrar a dos Capuletos, pai e irmão da doce Julieta (tanto
as famílias históricas se assemelham nos grandes sentimentos
que as agitam) D. Jacinta apoderou-se do belo Abranhos, e o casamento
foi celebrado (recordo-o a título de curiosidade histórica)
pelo padre Vicente Tardinho, reitor de Varzelhe, que depois tanto se celebrizou
num processo retumbante.
Já então, digamo-lo de passagem, sob a influência dessa
vaga aragem revolucionária que soprava de França, tinha principiado
esta longa perseguição ao clero, que um dia devia tomar proporções
que de certo modo lembram as perseguições de Diocleciano.
O casamento, escrevo-o com dor, não foi feliz. Não possuo
os documentos necessários para decidir a quem pertence a responsabilidade
das desinteligências crescentes, mas é certo que o belo Apolo
que, como dizia com um chiste adorável o Conde, «frequentava
muito o seu colega Baco», espancava tão imprevistamente D. Jacinta,
que obrigou muita vez esta dama a refugiar-se em casa dos seus parentes, levando
apenas sob as suas formas, que tinham conservado uma grande majestade aristocrática,
um saiote de flanela! Apesar, porém, destas violências, a paixão
de D. Jacinta, que eu respeitosamente comparo à mulher de Putifar ou
às Fedras da lenda antiga, trazia-a de novo, submissa e amorosa, à
casa comum e ao leito conjugal, até que um dia, (e aqui textualmente
copio uma carta, existente no arquivo da família e escrita por Segismundo
de Noronha, irmão da dama espancada): «…a sova foi tão
forte, que vimos a mana Jacinta entrar-nos pelo portão da casa em camisa
e tendo nos ombros nódoas tão roxas e dilatadas, que o padre
Simões, o nosso bom capelão, as comparou, com o devido respeito,
às nódoas roxas nos ombros do Redentor depois de 12 horas de
Via Dolorosa».
A família Noronha exigiu uma reparação. D. Jacinta
veio viver com seus irmãos, e cinco meses depois deu à luz um
menino que, por se julgar que não sobreviveria, foi à pressa
baptizado pelo capelão Simões, com o nome poético de
Florido. Sobreviveu, porém, felizmente. E aqui encontro um facto que,
por respeito às duas famílias Abranhos e Noronhas, não
cerco de comentários; é ele igualmente justificável e
condenável. Biógrafos irreverentes e temerários poderiam
talvez emitir uma opinião nítida, cortante, definitiva: eu abstenho-me,
e assim deve fazer todo o historiador honesto, sempre que se trate de factos
em que duas famílias, ambas ilustres, ambas históricas, tenham
um conflito de interesses: a ordem social repousa nestas respeitosas reticências.
O facto é este na sua nudez histórica: o menino Floridozinho
foi lançado à roda.
Um irmão, porém e aqui dou amplamente saída
ao meu desejo de glorificar os Abranhos um irmão, porém,
de Apolo (que Apolo a esse tempo desaparecera de Amarante) reclamou Florido,
adoptou-o, educou-o, e foi recompensado desta nobre dedicação,
porque Florido Abranhos foi um espelho de virtudes e uma flor de honradez.
É talvez aqui a ocasião de destruir outro erro que tende a introduzir-se
na História: o irmão de Apolo, tio de Florido, sem estar decerto
numa alta situação social, não era todavia, como perfidamente
insinuou em tempos a Gazeta de Portugal, um padeiro. Como dizia o Conde com
grande elevação moral, estas pesquisas miúdas, mesquinhas,
na intimidade familiar de um homem de Estado, são singularmente odiosas.
Florido, que pelo lado materno era um Noronha, casou em Penafiel, e a sua
vida teve a tranquilidade límpida de um belo rio de águas claras
que corre entre margens de serenidade idílica. Viveu, amou, trabalhou…
Et sa vieillesse fut comme le soir d’un beau jour…
Teve dois filhos uma menina que herdou a beleza de seu avô
Apoio, e um rapaz.7 que foi António Abranhos, o pai feliz que na noite
de Natal de 1826, diante da pompa do Menino Jesus no seu presépio iluminado,
apertou nos braços o seu filho único Alípio Severo
de Noronha Abranhos, futuro Conde d’Abranhos.
O Conde, portanto, é da família dos Noronhas e dos
Noronhas que direi que o não saiba a Pátria? O seu nome está
na História pelos altos feitos e na Legenda pelos poéticos amores.
Não vos lembrais da nobre canção: Aldina na alta torre
Alta torre d’Algeciras, Chora de noite e de dia Que condenou-a seu pai A não
ter mais alegria…
Levai-lhe os prantos, oh! rios, Nuvens, levai-lhe os suspiros…
Aldina é uma Noronha. Da torre de Algeciras restam vestígios
todo um lanço de alvenaria, evidentemente do século
XIII, descoberto ultimamente pelo nosso distinto arqueólogo Macedo
Garção, que ofereceu à família Noronha uma formosa
fotografia da ruína.
Outra Noronha foi de grande beleza e ilustrou o seu nome e o da sua raça,
partilhando o leito do nosso Rei D. Afonso V.
D. Violante de Noronha, de uma beleza clássica que lhe mereceu o
nome de Juno (nesta família, a beleza das mulheres iguala a bravura
dos homens) recebeu o mesmo alto favor do nosso senhor Rei D. Pedro II.
Dos varões desta casa citarei Fernando de Noronha, tão cioso
da sua raça que um dia, entrando no momento em que um criado repelia
com força seu filho Afonso que num inocente brinquedo lhe arrepelava
os cabelos, mandou decepar a mão direita ao lacaio.
Estes actos inspiravam um terror salutar e ainda que nos nossos tempos mais
doces poderiam ser desaprovados e o júri decerto mandaria o seu autor
para a costa de África, eram todavia necessários nessa época
gloriosa da monarquia, para manter as classes nos justos limites indicados
pela Providência.
Citarei também Camilo de Noronha, que, já neste século
foi notável como toureiro e varredor de feiras. A sua destreza no jogo
de pau era tal, que chegava a um arraial, apeava e destroçava a multidão,
atirando homens por terra como uma criança que derrota um regimento
de soldadinhos de chumbo. Contam-se dele deliciosas anedotas. Na Covilhã,
por exemplo, tinha um cavalo adestrado que escoiceava, mal o alegre Camilo
de Noronha assobiava.
Costumava aproximá-lo de fidalgos e senhoras (mas sobretudo de plebeus)…
Um assobio rápido, um coice imprevisto, e o indivíduo ou a dama
eram levados em braços, no meio da hilaridade que entre os seus amigos
causavam sempre tais façanhas. Sem inteiramente aprovar estas distracções
violentas, não se pode, todavia, deixar de reconhecer que há
em tais actos uma plenitude de seiva, de vida animal e de força que
agrada em jovens fidalgos.
Estas migalhas de História, apanhadas ao acaso, pintam a traços
largos a feição desta família ilustre. Os Noronhas usam
sobre o campo de prata três castelos de ouro e este mote: In Chistro
spes meu (em Cristo a minha esperança), sublime divisa, a melhor, a
mais nobre. E foi esta a divisa do Conde d’Abranhos, até que, por decreto
do 1º de Janeiro de 1860, S. M. lhe concedeu o título de Conde.
Tomou então este outro mote: Ex corde pro rege (do coração
pelo Rei!) Estas palavras, partindo de um homem que não era um cortesão
e até então não mostrara especial dedicação
pelo Monarca, parecem-me exemplo alto e resplandecente de reconhecimento,
neste século de ingratidões endurecidas e lealdades frouxas.
Foi sempre para mim um motivo de assombro que durante a sua infância,
Alípio Abranhos não tivesse como Napoleão, Chateaubriand
ou Lord Byron revelado a sua futura elevação de espírito
e de carácter por alguma dessas estranhas precocidades que são
como as faíscas inesperadas que saem de um fogo ainda incubado. Os
seus primeiros anos são sem relevo e inteiramente incaracterísticos.
Ele mesmo o reconhecia com modéstia, quando dizia, sorrindo: «Como
toda a gente, apanhei ninhos e fiz papagaios de papel…
É certo que o meio em que se passou a sua mocidade não oferecia
ocasião a que se revelassem os seus gostos inatos e se acentuassem
as suas tendências. Estou bem certo que se tivesse sido educado numa
dessas velhas casas morgadas, onde gerações letradas formavam
ricas e sábias bibliotecas, veríamos o pequeno Alípio
deixar os ninhos e os papagaios, para se ir esconder nalgum recanto da silenciosa
livraria, e ali, folhear os antigos romances de cavalaria, ou, o que era mais
natural à feiç&atildatilde;o nativa do seu espírito, ler,
compreendendo-os mal, os filósofos do passado. E porém sabido
que seu pai e não creio ofender a sua memória revelando-o
tinha um pequeno e honesto estabelecimento de alfaiate, e as únicas
publicações que decerto ali se veriam entre os cortes de pano,
seriam os volumes do antigo Espelho da Moda. Eu creio, porém, que esta
falta de vida intelectual foi singularmente favorável ao seu desenvolvimento
físico. Não tendo livros que o prendessem em casa, Alípio
passava os seus dias pelas hortas e pelos quintais, crescendo em plena natureza,
crestado pelo Sol, batido dos largos ares, e, como dizia um poeta antigo,
mamando à farta nos peitos de Cíbele.
Foi esta forte educação rural que lhe deu aquelas cores sadias,
aquele porte erecto, que destacavam com um tão edificante relevo entre
os bustos anémicos e as faces amareladas da raça lisboeta. E
a esta primitiva comunicação com a Natureza que ele deveu o
seu espírito recto e tão bem ponderado, amando em tudo a ordem,
o equilíbrio, a formosa disposição das hierarquias. Mens
sana in corpore sano: que eu por mim tenho que as ideias falsas, anárquicas,
são o resultado das organizações debilitadas. As cidades
modernas, com as suas ruas mal arejadas, os seus quintos andares abafados,
o seu rumor trovejante de fábricas e de veículos, a luz crua
do gás, a alimentação insa-lubre, formam estas gerações
pálidas, nervosas, agitadas por um desejo histérico de novidade,
de artifício, de desordem e de violência. E esta a origem do
espírito revolucionário. O homem que, pelo contrário,
habita os campos, que respira o ar dos largos prados, repousa a vista na vasta
linha do horizonte, na serenidade silenciosa das aldeias, ganha, num corpo
forte, um espírito calmo: odeia a agitação; está
naturalmente preparado para respeitar a Autoridade, os Princípios sólidos,
a Ordem, toda a ordenação harmónica e bela do Estado.
Tenho, porém, a certeza de que o Conde, com a sua grande modéstia,
não exprimia inteiramente a verdade quando atribuía aos ninhos
e aos papagaios o privilégio de lhe absorverem todo o interesse! Não!
Já então naquele espírito de criança deviam passar
ideias, ainda indefinidas mas fortemente marcadas de originalidade: soltando
aos ares os seus papagaios, é de crer que pensasse na eterna aspiração
da alma para os cimos azulados da graça; e, ao contemplar ovos de pintassilgo,
fofamente dispostos no fundo de um ninho muito quente e muito tenro, decerto
lhe devia passar na alma a ideia eterna.9 da instituição da
família. Um dia mesmo, ao contar-lhe estas suposições
que me tinham atravessado o espírito: Qual história!
respondeu com bondade o Conde. Isso são coisas da sua
imaginação de poeta. Eu era um cavalão, aqui onde me
vê!… Não nego, porém, que desde novo, fui inclinadote
a agitar questões sociais!…
E quando eu vejo, hoje, moços saídos das escolas, sem experiência
da vida, do Estado, da Administração, quererem reformar a Sociedade,
como me parece admirável a modéstia deste homem notável,
que classificava assim o seu grande génio filosófico:
inclinadote a agitar questões sociais!…
Assim, pois, crescia o jovem Alípio Abranhos, quando do que
depende o destino dos homens e muitas vezes a sorte das nações!
sua tia Amália veio a Penafiel consultar um dentista americano,
então famoso em todo o Norte.
Esta senhora providencial (em que reaparecia a singular beleza do Apolo
de Amarante) casara em nova com um proprietário rico de Amarante, e
viúva, sem filhos, vivia em isolamento na sua Quinta dos Miguéis.
Naturalmente, em Penafiel, a tia Amália viu frequentemente seu sobrinho
Alípio, e bem depressa a graça, a vivacidade, a esperteza do
pequeno cativaram a tia, que, secretamente infeliz por não ter filhos,
se vira até então obrigada a empregar o seu fundo de afeição
maternal nas aves domésticas e nos diversos animais da sua quinta.
Alípio era como um filho inesperado que lhe aparecia «a meio
do caminho da sua vida» (Dante).
Não é hoje segredo para ninguém que o Conde d’Abranhos
preparava um volume de Memórias Intimas, quando o acometeu a doença.
E dessas notas interrompidas, truncadas, que eu transcrevo o seguinte parágrafo,
relativo a este período decisivo da sua carreira: «Minha tia
Amália concebera o plano abençoado plano! de
me levar para a Quinta dos Miguéis, e mandar-me dar uma educação
que me habilitasse a tomar na sociedade a posição elevada que
naturalmente me pertencia pela minha bisavó paterna: numa palavra,
fazer de mim um Noronha, digno dos Noronhas.
Abriu-se a este respeito com meu pai, que acedeu prontamente, deslumbrado
pela perspectiva de me ver possuidor de uma educação que os
seus meios de fortuna não lhe permitiriam darme.
A sua vontade, porém, encontrou formidáveis escolhos nas lágrimas
de minha mãe.
Separar-se do filho que ela criara ao seu peito, parecia-lhe tão
doloroso como uma amputação.
Lembra-me vagamente de a ver abraçada a mim, dizendo, banhada em
rios de lágrimas: Ó Lipinho, que te querem levar! Ai, Lipinho,
que querem fazer de ti um doutor! Mas meu pai, com o seu bom-senso, minha
tia, com as suas promessas, venceram essa resistência, igual à
da leoa a que impudente caçador quer arrebatar os filhos, e numa manhã
de Agosto como recordo o opulento Sol nascente, cravando o mundo das
suas flechas de ouro! parti com minha tia Amália para a pitoresca
Quinta dos Miguéis, onde me decorreram a infância e a puberdade,
primeiro nos infantis brinquedos, mais tarde em úteis estudos. E nunca
revisitei a Quinta dos Miguéis, sem uma profunda saudade desses anos
descuidosos, e sem ir ao pequeno cemitério, onde minha tia
Amália repousa no seu bem tratado jazigo, cercada de floridos goivos
ajoelhar e murmurar uma reconhecida prece, no silêncio da tarde,
pela alma simples que me abriu a sua bolsa e me habilitou a cursar as aulas
da nossa sábia Universidade.» Página admirável!
em que se nos revelam as qualidades eminentes do escritor e a tocante
bondade do homem! Que quadro aquele em que o vemos, já ilustre, já
titular, já ministro, seguir o caminho estreito do cemitério,
por alguma tarde suave de Outono, pousar o joelho sobre a relva, descobrir-se,
e rezar! Página admirável, repito, repassada de uma saudade
grave, num colorido tão delicado de paisagem! Na Quinta dos Miguéis
se passou a mocidade do Conde d’Abranhos. Ali estudou a gramática e
o latim, sob a direcção do abade de Serzedelo, velho de raras
virtudes cristãs. Ali passou as suas férias de formatura.
Eu tive a honra de o acompanhar, quando o Conde foi tratar da sua eleição
a Amarante, numa visita à Quinta dos Miguéis. Do portão,
uma rua plantada de loureiros conduz à casa de habitação,
baixa, sólida, coberta de um dos lados por uma formosa trepadeira,
atulhada de rosinhas brancas. Um lanço de escadas de pedra, ornado
de velhos vasos azuis, leva ao salão, grande, pintado de oca, com cortinas
vermelhas e brancas, e nas paredes litografias das batalhas de Napoleão.
Tudo é simples, patriarcal e grave. O Conde mostrou-me o seu quarto
e o rebordo da janela onde, em pequeno, pendurava gaiolas de grilos, com a
sua folhinha verde de alface. Dali descobre-se a estrada, no traçado
do antigo caminho, onde o Conde (segundo ele próprio me contou) via
com inveja passar as liteiras que levavam a Braga e ao Porto os fidalgos das
vizinhanças. Já então, um sentimento vago pressentimento
do seu alto destino ou simples aspiração de um espírito
distinto para os centros letrados e inteligentes o levava constantemente
a desejar a existência das grandes cidades.
Ao fundo da quinta foge um pequeno regato, muito claro, muito pausado, cujo
rumor tem a tristeza das águas mansas que correm entre ervas altas;
as margens são cobertas de salgueiros; na Primavera os rouxinóis
enchem de ninhos aquele lugar assombrado e terno.
Como a noite que passei na quinta era muito calma, fomos depois de jantar,
passear junto ao Ribeiral, que é o nome daquele canto de paisagem elegíaca,
e nunca esquecerei a bela confidência com que ali me honrou o Conde.
V. Exª tinha eu observado devia, muitas vezes,
durante as férias, vir passear aqui e sentir-se inspirado…
O Conde, que por causa da frescura da noite se estava cuidadosamente agasalhando
no seu cachené, parou e disse, com aquele gesto grave que tanto impressionava
a Câmara: Não o conte em Lisboa, Zagalinho, mas uma noite,
aqui compus versos! Eu não me atrevia a pedir-lhe que mos recitasse,
mas, sem dúvida, a claridade da Lua no meu rosto revelou um desejo
tão intenso de os ouvir, que o Conde, sempre bom, me tomou o braço
e disse: Era uma noite de apetite: eu andava aqui a passear, a pensar,
fumando o meu charuto, que a tia Amália tinha horror ao fumo
do tabaco quando, de repente, a Lua ergueu-se por detrás dos
salgueiros e um rouxinol pôs-se a cantar… e sem saber como, fiz uma
quadra. Não a repita! Lembra-me perfeitamente: Deus existe! Tudo o
prova, Tanto tu, altivo Sol, Como tu, raminho humilde Onde canta o rouxinol!
Não pude conter um bravo, respeitoso mas sentido.
O pensamento é bonito, mas não o diga em Lisboa, Zagalinho.
Se os jornais soubessem que fiz versos… Que gostinho para a oposição…
Eu exclamei, rindo: Que gostinho para a oposição,
mas que glória para o ministério…
Ele acrescentou:.
Enfim, são rapaziadas. Todos nós, mais ou menos, em
rapazes, fomos poetas e republicanos… Antes isso que andar a beberricar
genebra nos botequins e frequentar meretrizes… Mas quando se entra na verdadeira
vida política, é necessário pôr de lado esses sentimentos
ternos…
Eu então citei, com respeito, alguns dos nossos homens de estado,
que foram, são ainda, poetas de alta imaginação.
Pois sim… interrompeu o Conde. Mas lá têm
o seu lugar marcado na formação do Ministério… Um poeta
não pode ser Ministro do Reino, mas pode muito bem ser Ministro da
Marinha.
Grande verdade política! Quando entrámos, eu atrevi-me a pedir
a S. Exª que escrevesse aquela formosa quadra no álbum de minha
esposa, que trouxera comigo, esperando obter, no Porto e em Braga, autógrafos
de alguns poetas e prosadores das províncias do Norte.
O Conde tomou o álbum, sorrindo, e retirou-se para o seu aposento.
Qual não foi, na manhã seguinte, a minha alegria, quando ele
mo restituiu, e li ao abrir a página: Deus existe! Tudo o prova, Tanto
tu, altivo Sol, Como tu, raminho humilde Onde canta o rouxinol! Estes versos,
que eu escrevi quando me verdejavam na alma as ilusões da mocidade,
poderia escrevê-los hoje que a experiência da vida me tem demonstrado
que fora de Deus, não há senão ilusão e vaidade…
Conde d’Abrunhos.
Quando voltei a Lisboa e mostrei esta página preciosa à minha
Madalena que surpresa, que arrebatamento! Falámos até
tarde, essa noite, da bondade do Conde e da vastidão do seu génio.
Se eu me detive neste incidente íntimo de uma existência histórica,
foi para mostrar que o Conde não era um homem destituído de
sentimento poético e de imaginação idealista.
Naquele cérebro todo ocupado de legislação, de reformas,
de economia política, de debates parlamentares, tinha havido um momento,
na sua mocidade, em que florescera, como uma violeta isolada mas fresca, a
flor delicada do sentimentalismo. E quis também provar que a poesia
não é inteiramente unia arte subalterna e própria de
espíritos efeminados, pois que um homem de tão robusto génio
prático não desdenhou um dia, sob a influencia de uma paisagem
romântica, servir-se dela para exprimir um alto conceito filosófico.
Estou certo de que os poetas contemporâneos, os Hugos épicos,
os delicados Tennysons, os Campoamores de humorística melancolia, se
orgulhariam deste colega que eu lhes revelo, e que, se apenas uma vez feriu
a lira, fê-lo com tal originalidade, vigor e elevação,
que esse simples verso isolado sobe mais alto no céu da Arte do que
muitas sinfonias majestosas dos Mussets debochados ou dos Baudelaires histéricos:
Deus existe! Tudo o prova, Tanto tu, altivo Sol, Como tu, raminho humilde
Onde canta o rouxinol! Não farei uma narração detalhada
da mocidade estudiosa do Conde. Este estudo não é propriamente
uma biografia em que deva seguir, ano a ano, a carreira intelectual do seu
vasto espírito. São simples apontamentos, quadros destacados
de uma nobre carreira, que servirão para que um mais alto engenho (na
frase enérgica do Épico) reconstrua, com suficiente relevo,
esta soberba figura histórica.
Desde os onze anos, pois, Alípio Abranhos viveu na companhia de sua
tia Amália, e a não ser nas férias do segundo ano, em
que a doença da mãe o chamou imperiosamente a Penafiel, não
tornou a ver seus pais.
Compreender-se-á facilmente que o jovem Alípio, tendo penetrado
num meio mais elevado, habituado no Porto, onde estudara parte dos preparatórios,
e depois em Coimbra, às convivências eruditas, cultivadas, educadas,
se achava extremamente deslocado na companhia pobre e iletrada de seu pai.
Quando, durante anos, se tem vivido pela imaginação com os heróis
da História e do Romance, quando se tem o ouvido habituado à
nobre linguagem dos Cíceros, dos Titos Lívios, quando se tem
acostumado o espírito aos interesses da Ciência, da Lógica
e da Metafísica não é fácil suportar-se
a conversação de pessoas que só se preocupam com pequenos
interesses locais e «mexericos de vila pobre».
Depois das largas salas e dos vastos horizontes da Quinta dos Miguéis,
a pequena casa do pai, com o chão atravancado de retalhos de fazenda
e o ar abafado do cheiro acre dos estrugidos, a pequena vila escura, onde
os vizinhos vão de noite despejar as imundícies, causavam aos
costumes fidalgos daquele Noronha uma repulsa instintiva.
Já então revelava o seu gosto pelo luxo, pelas largas habitações
tapetadas, pelo serviço harmonioso de lacaios disciplinados. A pobreza
e os seus aspectos era-lhe odiosa. Quanta vez, mais tarde, quando ele subia
o Chiado pelo meu braço, eu me vi forçado a afastar com dureza
os pobres, que à porta do Baltresqui, ou da Casa Havanesa, vinham,
sob o pretexto de filhos com fome ou de membros aleijados, reclamar esmola;
o Conde, se os via muito perto, «ficava todo o dia enjoado». Todavia
a sua caridade é bem conhecida, e o Asilo de S.
Cristóvão, a que em parte deveu o seu título, aí
está como um atestado glorioso da sua magnanimidade.
Além disso, ele reconhecia que a caridade era a melhor instituição
do Estado. Quanto ao pauperismo, tinha-o como uma fatalidade social: fossem
quais fossem as reformas sociais, dizia, haveria sempre pobres e ricos: a
fortuna pública devia estar naturalmente toda nas mãos de uma
classe, da classe ilustrada, educada, bem nascida. Só deste modo se
podem manter os Estados, formar as grandes indústrias, ter uma classe
dirigente forte, por possuir o ouro e base da ordem social.
Isto fazia necessariamente que parte da população «tiritasse
de frio e rabeasse de fome». Era certamente lamentável, e ele,
com o seu grande e vasto coração que palpitava a todo o sofrimento,
lamentava-o. Mas a essa classe devia ser dada a esmola com método e
discernimento: e ao Estado pertencia organizar a esmola. Porque o Conde censurava
muito a caridade privada, sentimental, toda de espontaneidade. A caridade
devia ser disciplinada, e, por amor dos desprotegidos, regulamentada: por
isso queria o Asilo, o Recolhimento dos Desvalidos, onde os pobres, tendo
provado com bons documentos a sua miséria, tendo apresentado bons atestados
de moralidade, recebessem do Estado, sob a superintendência de homens
práticos e despidos de vãs piedades, um tecto contra a chuva
e um caldo contra a fome. O pobre devia viver ali, separado, isolado da sociedade,
e não ser admitido a vir perturbar com a expressão da sua face
magra e com a narração exagerada das suas necessidades, as ruas
da cidade. «Isole-se o pobre!» dizia ele um dia na Câmara
dos Deputados, sintetizando o seu magnífico projecto para a criação
dos Recolhimentos do Trabalho. O Estado forneceria grandes casarões,
com celas providas de uma enxerga, onde.13 seriam acolhidos os miseráveis.
Para conseguir a admissão, deveriam provar serem de maior idade, haverem
cumprido os seus deveres religiosos, não terem sido condenados pelos
tribunais (isto para evitar que operários de ideias subversivas que,
pela greve e pelo deboche, tramam a destruição do Estado, viessem,
em dia de miséria, pedir a esse mesmo Estado que os recolhesse). Deveriam
ainda provar a sobriedade dos seus costumes, nunca terem vivido amancebados
nem possuírem o hábito de praguejar e blasfemar. Reconhecidas
estas qualidades elevadas com documentos dos párocos, dos regedores,
etc., seria dada a cada miserável uma cela e uma ração
de caldo igual à que têm os presos.
Mas, dir-se-á, o Estado, então sustenta-os de graça?
Não, poderia exclamar triunfantemente o Conde, mostrando as
páginas admiráveis do seu regulamento, em que se estabelecia,
com um profundo sentimento dos deveres do cidadão para com a cidade,
que todo o pobre admitido seria forçado a uma considerável soma
de trabalho, segundo as suas aptidões. O mais útil parágrafo,
a meu ver, é aquele que determina que grupos de pobres sejam forçados
a calçar as ruas, colocar as canalizações de gás,
trabalhar em monumentos públicos, etc. Tais serviços, todos
em favor da Câmara Municipal, obrigá-la- iam a concorrer para
a despesa desta instituição, aliviando assim o Estado de uma
grande parte dos gastos.
Uma vez admitidos, os recolhidos perderiam o direito de sair a não
ser que provassem que iriam dali ser empregados, de tal sorte que não
lhes fosse possível recair nos acasos da miséria.
Em nenhuma legislação humana conheço instituição
tão justa, tão eficaz, tão profundamente cristã,
tão beneficamente social. E mesmo muito preferível ao Work-House
inglês: ali, o pobre conserva uma soma de independência que lhe
faz supor a existência de uma soma de direitos: considera-se ainda um
cidadão, tem pretensões ao respeito, à igualdade, à
consideração: desobedece, revolta-se, foge do Work-House, recai
no deboche, na fome, na desordem, no vício. Aqui, não: o pobre
fica prisioneiro da caridade! Perde o direito de ter fome. E as classes dirigentes,
tendo a certeza de que os seus pobres lá estão, bem aferrolhados,
com uma razoável enxerga e um caldo diário, podem dormir descansadas,
sem receio de perturbações da ordem ou de revoltas do pauperismo.
Infelizmente este projecto tão perfeito, de que todos os jornais
sérios falaram com palavras de comovida admiração, nunca
conseguiu passar nas Câmaras. Motivos mesquinhamente governamentais
impediram uma tão bela instituição de resolver o grande
problema da miséria, pois é com estas sábias medidas
que ela se arranca do seio da sociedade, e não com as vossas reformas
hipócritas, sofistas da revolução social! Foi esta instintiva
repulsão pela pobreza, pelas maneiras rudes, pelas instalações
incómodas, que impediu Alípio, desde que gozava na Quinta dos
Miguéis as vantagens da educação e os regalos da riqueza,
de visitar amiúde a casa modesta de seus pais. li porém uma
calúnia dizerse como o disseram certos panfletos indecorosos
que o Conde, já rico, já ministro, renegara a sua família.
É para mim uma honra, vir hoje, perante Portugal, explicar, destruir
esse erro voluntário e hostil.
Logo que o Conde entrou na Câmara, fez o seu casamento tão
rico e se estabeleceu em Lisboa, pensou sem demora em elevar paralelamente
a situação social de seu pai. Encontrou nele, porém,
exigências tais que tornaram impossível a realização
dos seus desejos. As negociações foram longas, muito delicadas,
muito secretas. Tenho nas mãos toda essa correspondência, e posso
dizer que nela o Conde mostra um tacto, uma prudência, uma previdência
geniais. Seu pai, ao princípio, desejou que o Conde lhe fornecesse
meios de abrir em Lisboa um grande estabelecimento de alfaiate. Isto era.14
naturalmente inaceitável. Como o Conde me disse muita vez, não
podia passar, com o correio de ministro atrás, pela rua onde reluzisse
a tabuleta «Abranhos, Alfaiate». Como conseguiria ele, na Câmara,
aniquilar um adversário que lhe poderia responder: «Tudo
isso é muito bonito, mas o pior é que o senhor seu pai me estragou
inteiramente este par de calças e roubou-me na fazenda! Era impossível
esta permanente tortura moral. E o pai do Conde tanto o compreendeu, que escreveu
(não cito textualmente, pois que nem a sua ortografia, nem a sua gramática
poderiam ter lugar num livro correcto): Se não queres que eu
possua um estabelecimento do ofício em que me criei, que é honrado
e me tem ajudado a viver, e à tua mãe, então o melhor
é que eu vá para a tua companhia, para tua casa, onde tua mãe,
que é tão económica e tão hábil nos arranjos,
pode ser uma governanta útil e poupar a tua mulher todos os incómodos
«dos azeites e vinagres». (Esta expressão é dele).
O Conde recusou com indignação. Realmente a exigência
é curiosa. Virem aquele homem e aquela mulher de Penafiel, com os hábitos,
os modos, as figuras, a fala de dois trabalhadores de Penafiel, viver numa
casa onde se recebia a fidalguia de Lisboa, os representantes dos Reis estrangeiros,
a flor da literatura, a Maioria! Absurdo! Se o Conde, como ele dizia, não
fosse um homem público, poderia sacrificar-se a essa companhia plebeia.
Mas como Estadista, a presença na sua casa daquele pai de feição
reles, a comer o arroz com a faca, a escabichar os dentes com as unhas, a
perguntar às senhoras então como vai essa bizarria?
com o seu catarro, cuja expectoração perpétua
era repulsiva, só serviria para diminuir a autoridade moral do Conde
e o prestígio do seu talento. Em nome dos interesses superiores do
Estado, devia repelir aquela proposta. Se um dia tivesse a jantar o Ministro
de Inglaterra ou de França, no momento de uma negociação
delicada e de alto interesse para Portugal, como poderia impressionar os diplomatas
estrangeiros, com o pai, ao lado, a tirar cera dos ouvidos? Foi por isso que
ele informou o pai de que só o receberia em sua casa, com a condição
de nunca aparecer aos jantares ou às soirées. O velho, decerto
mal aconselhado por intrigantes políticos, respondeu com uma carta
(que, pelas razões dadas, não cito textualmente) em que lhe
diz que, desde que o filho se envergonha de seu pai, todos os arranjos são
inúteis, e que cada um siga o seu caminho; eu (diz ele) não
posso, aos 55 anos, mudar os meus hábitos e o meu catarro: sou como
sou; não tenho as maneiras de um elegante, mas tenho a minha honra
e os meus sentimentos. Que meu filho jante na sala e me faça jantar
na cozinha, não! Continua a ser Abranhos deputado, que eu continuarei
a ser Abranhos alfaiate. Mas nem por isso deixo de ser tão homem de
bem como tu.
Homem de bem! Não o era decerto, dando, pela sua ingrata obstinação,
motivo a que se um dia se soubesse, como se soube, este incidente
o Conde fosse insultado na imprensa e escarnecido na Câmara!
Esta resposta do pai desgostou muito o Conde; mas com uma bondade quase sobre-humana,
escreveu-lhe novamente, remetendo-lhe 200$000 réis, e afiançando-lhe
que se algum dia, por falta de trabalho ou doença, se encontrasse em
necessidade, o avisasse logo, pois que, apesar da sua carta ofensiva, nunca
ele, como filho cristão, perderia o respeito que lhe devia! A esta
carta tão nobre, tão filial, o velho alfaiate respondeu devolvendo
a letra, nas dobras de um papel onde havia uma palavra única:
M….! Não transcrevo a palavra (que de resto a inteligência
dos que me lêem logo compreenderá) porque me respeito, e nunca
ponho nos meus livros essas obscenidades que se permitiu escrever o visionário
autor dos Miseráveis, esse épico enfático de uma democracia
estéril! M….! Essa palavra foi para o Conde o desgosto grave da sua
vida. Era evidente.15 que seu pai, perdendo o respeito próprio, propendia
para a obscenidade! Boa razão tivera ele, pois, em não o admitir
em sua casa, no convívio da sociedade mais raffinée de Portugal!
Deste incidente da vida do Conde, que mais direi que o não saiba o
País? É conhecido hoje (tanto o escândalo popularizou
o episódio) que, obstinando-se na sua ingratidão, o alfaiate
morreu pobre, sem nunca ter escrito a seu filho, que só o soube quando
o velho se tinha enterrado. Mas o Sr. Carvalhosa, o deputado da oposição
por Penafiel, com essa perfídia que inspira o despeito político,
apenas teve conhecimento de que o velho expirava na miséria, apressou-se
com pompa, com evidência, a ir-lhe a casa, levar-lhe um médico
e enterrá-lo à sua custa. Para quê? Para que se pudesse
imprimir nos jornais da oposição que o Sr.
Ministro deixara morrer o pai numa mansarda infecta e que fora o deputado
da oposição quem, por misericórdia, lhe chegara aos lábios
a última malga de caldo! Eu vi o Conde chorar na intimidade da sua
livraria. Lágrimas de raiva, que para outras não havia lugar.
Aquela morte isolada, obscura, silenciosa, numa miséria voluntária,
era a vingança do pai! Deixava-lhe aquela vergonha permanente.
Quem sabe mesmo se o alfaiate não teria combinado com a oposição
toda aquela lúgubre cena, a enxerga, a aparição do Carvalhosa,
a tumba de esmola! Ai, Zagalo disse-me o Conde abraçando-me
o maior erro da minha vida foi nascer de semelhante pai! E foi! Por
isso o Conde, na sua severa justiça, deixou que o corpo do alfaiate
repousasse na vala onde o levara a tumba de misericórdia.
Diante de Deus, como ele dizia, considerava-se filho de sua tia. E a ela,
filialmente, elevara aquele belo monumento onde o Anjo chora sobre uma coluna
truncada que sustenta um livro, símbolo da educação que
facultara ao Conde, e uma pequena bolsa, emblema da fortuna em terras que
por testamento lhe deixara.
Mas estas digressões necessárias (pois que, repito, eu não
conto na sua disposição cronológica os episódios
de tão ilustre existência, mas apenas dou, a traços largos,
as feições essenciais da sua fisionomia histórica) trouxeram-me
aos anos, não distantes, em que o Conde d’Abranhos viu, por assim dizer,
Portugal a seus pés.
Volte pois o leitor comigo a essa formosa estrada do Porto, onde, numa liteira,
acompanhado pelo procurador de sua tia, vai o nosso Alípio em direcção
a Coimbra.
Os sete anos que aí viveu foram serenos e graves.
Muitas vezes o Conde me disse que a Universidade lhe fizera uma impressão
profunda, não tanto como edifício ainda que seja imponente
aquele monumento no alto do monte, severo e isolado, como uma imutável
fortaleza de vetusta ciência mas sobretudo como Instituição.
Eu confesso não ser talvez competente para avaliar estas questões
de Ensino e de Educação. A pobreza de meus pais não me
permitiu a honra vantajosa de ser bacharel, mas tendo convivido com tantos
homens ilustres, eu sou como aquele antigo fabricante de ídolos, que,
à força de viver entre eles, guardava nas mãos e na túnica
alguma coisa do seu dourado. Além disso, neste assunto, como em todos,
sigo, por admiração muda e reconhecimento correcto, as ideias
e opiniões do Conde d’Abranhos.
A primeira vantagem da Universidade, como instituição social,
é a separação que se forma naturalmente entre estudantes
e futricas, entre os que apenas vivem de revolver ideias ou teorias e aqueles
que vivem do trabalho. Assim, o estudante fica para sempre penetrado desta
grande ideia social: que há duas classes uma que sabe, outra
que produz. A primeira, naturalmente, sendo o cérebro, governa; a segunda,
sendo a mão, opera, e veste, calça, nutre e paga a primeira.
Dois mundos como diz o nosso poeta Gavião que se
não podem confundir e que, vivendo à parte, com fins diferentes,
caminham paralelamente na civilização, um com o título
egrégio de Bacharel, outro com o nome emblemático de Futrica.
Bacharéis são os políticos, os oradores, os poetas, e,
por adopção tácita, os capitalistas, os banqueiros, os
altos negociadores.
Futricas são os carpinteiros, os trolhas, os cigarreiros, os alfaiates…
O Bacharel, tendo a consciência da sua superioridade intelectual, da
autoridade que ela lhe confere, dispõe do mundo; ao Futrica resta produzir,
pagar para que o Bacharel possa viver, e rezar ao Ser Divino para que proteja
o Bacharel.
O Bacharel, sendo o Espírito, deve impedir que o Futrica, que é
apenas a Matéria, aspire a viver como ele, a pensar como ele, e, sobretudo,
a governar como ele. Deve mantê-lo portanto no seu trabalho subalterno,
que é o seu destino providencial. E isto porque um sabe e o outro ignora.
Esta ideia de divisão em duas classes é salutar, porque assim,
educados nela, os que saem da Universidade não correm o perigo de serem
contaminados pela ideia contrária ideia absurda, ateia, destruidora
da harmonia universal de que o futrica pode saber tanto como sabe
o bacharel. Não, não pode: logo as inteligências são
desiguais, e assim fica destruído esse princípio pernicioso
da igualdade das inteligências, base funesta de um socialismo perverso.
Como pode realmente o homem que todo o dia trabalhou no seu tear, e à
noite, depois do caldo de couves, dormiu do sono brutal da fadiga física,
participar do governo da coisa pública como esse outro homem
que conhece as línguas, tem os princípios da Introdução
aos três remos, estudou o Direito Romano, se penetrou do Direito Canónico,
leu os poetas do século, discutiu as leis no Parlamento, fez administração
nas Secretarias? Irrisão? Outra vantagem da Universidade é a
organização dos seus estudos. O Conde considerava-a admirável
e a melhor garantia da Ideia Conservadora. E aqui copio textualmente o relatório
que acompanha o seu notável Projecto de Reforma do Ensino: «Têm
alguns espíritos ávidos de inovação, ainda que
no fundo sinceramente afeiçoados aos princípios conservadores,
sustentado que o sistema da Sebenta (como na sua jovial linguagem lhe chama
a mocidade estudiosa) é antiquado. Eu considero, porém, a Sebenta
como a mais admirável disciplina para os espíritos moços.
O estudante, habituando-se, durante cinco anos, a decorar todas as noites,
palavra por palavra, parágrafos que há quarenta anos permanecem
imutáveis, sem os criticar, sem os comentar, ganha o hábito
salutar de aceitar sem discussão e com obediência as ideias preconcebidas,
os princípios adoptados, os dogmas provados, as instituições
reconhecidas. Perde a funesta tendência que tanto mal produz
de querer indagar a razão das coisas, examinar a verdade dos
factos; perde, enfim, o hábito deplorável de exercer o livre-exame,
que não serve senão para ir fazer um processo científico
a venerandas instituições, que são a base da sociedade.
O livre-exame é o princípio da revolução. A ordem
o que é? A aceitação das ideias adoptadas. Se
se acostuma a mocidade a não receber nenhuma ideia dos seus mestres
sem verificar se é exacta, corre-se o perigo de a ver, mais tarde,
não aceitar nenhuma instituição do seu país sem
se certificar se é justa.
Teríamos então o espírito da revolução,
que termina pelas catástrofes sociais! Hoje, destruído o regime
absoluto, temos a feliz certeza de que a Carta liberal é justa, é
sábia, é útil, é sã. Que necessidade há
de a examinar, discutir, verificar, criticar, comparar, pôr em dúvida?
O hábito de decorar a Sebenta produz mais tarde o hábito de
aceitar a Carta. A Sebenta é a pedra angular da Carta! O Bacharel é
o gérmen do.Constitucional.» Conheço na filosofia contemporânea
sem mesmo exceptuar os livros dos Thiers, dos Guizots, dos Bastiats,
dos Pagès poucas páginas tão profundas. A frase
é tersa, viril, nobre, bem ponderada; a argumentação
é sã e cerrada, inexpugnável; a ideia tem a solenidade
severa de um dogma. Nobre página! E pensar que aquele que a escreveu
não escreverá outra, e repousa sob o pedestal da sua estátua,
com as mãos em cruz, na terra bruta! Não menos maravilhoso parecia
ao Conde o sistema das relações entre o estudante e o lente.
O hábito de depender absolutamente do lente, de se curvar servilmente
diante da sua austera figura, de obter por meio de empenhos que a sua severidade
se abrande, forma os espíritos no salutar respeito da autoridade. O
sentimento excessivo da dignidade pessoal leva ao amor exagerado da independência
civil. Cada um se torna por este modo o seu próprio dono, o seu chefe,
o seu Rei, o seu Deus. E a anarquia! Assim educado, durante cinco anos, a
curvar-se, a solicitar, a sorrir, a obedecer, a lisonjear, a suplicar, a depender,
o bacharel entra na vida pública disciplinado, e, em lugar de ser o
homem que quer tomar na vida o lugar que lhe convém (o que seria a
desorganização das posições sociais) vai humildemente
colocar-se, com um sorriso, no lugar, na fila, no cantinho que lhe marcam
os que governam. Assim se forma uma imperecível harmonia social.
O jovem Abranhos bem depressa mostrou, em Coimbra, o seu profundo amor da
Disciplina e da Ordem.
O lente de Direito Natural era então o velho Dr. Pascoal; já
muito míope, a sua veneranda ciência, os seus achaques, os seus
serviços de decano, inspiravam a todos os que admiram estes vetustos
sábios encanecidos nos comentários de vetustos compêndios,
uma admiração simpática.
Havia, porém, nesse curso (a recordação recente das
guerras civis de algum modo o explica) temperamentos rebeldes e perniciosos,
que, por o ancião pertencer a uma velha família Miguelista,
procuravam como dizia o Conde, achincalhar a prelecção. Foi
assim que uma ocasião, de repente, de entre os bancos, um morcego solta
o voo, e estonteado pela luz, esvoaça furiosamente, vai bater nos vidros,
vai bater nas paredes, vai bater, finalmente, no rosto venerável do
Dr. Pascoal. O velho grita, o archeiro corre… Mas, como diz o nosso grande
poeta, autor dos Cânticos do Céu: Quem sabe donde vem a aragem
fresca? Quem sabe donde vem o voo d’ave? Quem sabe de onde vinha o morcego?
No dia seguinte, tinha justamente o venerando doutor aberto a pauta
quando outro morcego, maior, mais negro, começa a esvoaçar furiosamente
pela aula! O respeitável Dr. Pascoal fechou a pauta, saiu da aula,
todo trémulo, todo branco…
Alípio, porém, vira o condiscípulo indigno que soltara
os morcegos, e ali mesmo, na geral, decidiu, por amor da disciplina violada
e do professorado ultrajado, acusá-lo ao decano. Mas como repugnava
ao seu carácter leal ir, de viva voz, a casa do Dr. Pascoal, denunciar
o condiscípulo, redigiu uma carta anónima com estas palavras:
O vilão que arrojou o morcego às faces de V. Ex.ª perturbou
o recinto escolar, é o nº 89! Era um certo Adriano Cravilho, que
posto que de uma inteligência notável e de.18 um temperamento
honesto tinha, como se diz em Coimbra, «o furor de fazer partidas».
Uma semana depois, condenado por um processo secreto e sumário, era
riscado da Universidade perpetuamente. O respeitável Dr. Pascoal, porém,
ficara tão reconhecido ao «anónimo» que lhe revelara
o autor do malefício, que costumava dizer no conselho da faculdade,
que, se soubesse quem era, «pespegava-lhe um accessit no fim do ano.
Porque enfim, colegas, livrou a aula de um malvado!» Estas palavras,
espalhadas, impressionaram Alípio. O seu acto apareceu-lhe revestido
de uma importância inesperada; examinando-o, descobria-lhe a nobreza,
via-o como um verdadeiro serviço feito à Ciência, à
Disciplina, à Ordem, ao princípio autoritário. E considerava
que se é justifi-cado o pudor que nos faz ocultar o serviço
feito a um amigo, há uma falsa modéstia em esconder um benefício
prestado à sociedade. Pode esquivar-se ao reconhecimento quem salva
um homem não quem salva um princípio! E dias antes dos
actos, dirigiu-se a casa do Dr. Pascoal, e escrevendo diante dele as palavras
textuais da carta anónima, convidou-o a comparar as letras, provando
ao venerável professor que era ele, Alípio Abranhos, quem prestara
aquele serviço tão marcante à Disciplina.
Pois faz favor de deixar o seu nome… faz favor de deixar o seu
nome exclamou o ancião, que estava na idade em que a memória
é como tela gasta, que, repuxada, se esgaça.
Alípio deixou o seu nome e no fim do ano recebia o 1º
accessit.
Teve ainda o 1º accessit no segundo ano ano em que ele, justamente,
dedicou a sua dissertação sobre o Direito das Gentes ao Dr.
Capelo, conhecido pela redundância dos seus períodos, com esta
dedicatória: «Ao Deus da Eloquência, Ex.mo Dr. Capelo,
of. d. c. Alípio Abranhos, discípulo deslumbrado».
Teve uma distinção no terceiro ano ano, exactamente,
em que (segundo vejo nas suas notas) a tia Amália lhe aumentou a mesada,
o que habilitou Alípio a fazer presentes delicados a D. Rosalinda Carreira,
que a calúnia então apontava como concubina do seu lente de
Direito Civil.
No quarto ano recebeu enfim o segundo prémio para o que concorreu
uma sabatina em que, argumentando com o lente, o sofista Dr. Abreu, e enleado
por um sofisma complexo, lhe lançou estas belas palavras: «não
sei o que hei-de responder; a luta é desigual: eu só tenho por
mim o estudo e V. Exª, tem o génio!» No quinto ano, ignoro
que recompensa recebeu a sua fecunda aplicação.
Estas honras, porém, não eram dadas unicamente ao seu talento:
eram, também o prémio da sua conduta moral. Nunca o moço
Alípio fora visto em conflitos com futricas ou em noitadas nos bilhares
da Baixa. O seu ódio à estroinice era tão grande, que,
para evitar a brutalidade burlesca do entrudo, refugiava-se em Celas, para
onde ia a pé, em deliciosas excursões pelas margens suaves do
Mondego. Não se pense, porém, que as severidades do estudo
tão justamente comparadas pelo nosso lírico a um vento esterilizador,
tinham ressequido no jovem Alípio as florescências naturais
do sentimento moço. Se eu não receasse afectar uma
forma preciosa, compará-lo-ia a um código dentre cujas folhas
saísse uma flor de amorperfeito.
Neste urso (nome pitoresco que se dá em Coimbra aos premiados, que,
absorvidos pelo estudo, se descuidam de cul-tivar as graças exteriores)
neste urso, havia um gamo se tomarmos o gamo como símbolo animal
das naturais vivacidades e das irreprimíveis simpatias.
Somente Alípio era destas naturezas prudentes que cuidadosamente
ocultam o que o Destino, o Acaso ou a Providência, lhes deu de mais
excessivo ou desregrado.
Todo o homem tem vícios, ou paixões, ou gostos perversos,
mas o seu dever é.19 escondê-los e mostrar-se apenas aos seus
semelhantes como um ser regrado e bem equilibrado. Era assim, por exemplo,
que apesar de gostar de genebra, Alípio nunca se entregava a esta inclinação
na publicidade brutal dos botequins ruidosos: aí, tomava regradamente
o seu copo de orchata. Mas, tendo assim cumprido o seu dever de homem, de
cidadão, de premiado, dando um exemplo severo de sábia sobriedade,
julgava poder, sem escrúpulos, depois de satisfeito o dever, satisfazer
a inclinação; e em casa, no seu quarto solitário, usava
com largueza da garrafa de genebra que guardava debaixo da cama, no caixote
da roupa suja.
Tocante exemplo de respeito pessoal e de submissão à decência!
A mesma discrição usava no que se refere aos sentimentos temos:
seria incapaz de ir com condiscípulos, «numa troça»,
a casa dessas Vénus vulgares que batem o lajedo com sapatos cambados
e cujo leito é como uma praça pública. Mas se a natureza,
nas suas iniludíveis exigências, que às vezes os eflúvios
da Primavera ou a preguiçosa e tépida atmosfera do Outono tornam
mais mordentes, o solicitasse, esperava pela noite, e, com sapatos de borracha
para que nem lhe ouvissem os passos, procurava as vielas mais retiradas, onde,
depois de ter pactuado com a paciente que lhe seria guardado absoluto segredo,
sacrificava com seriedade no altar de Vénus Afrodite.
Foi por essa discrição tão digna que ninguém
nem os seus companheiros souberam de um terno episódio
passado durante o seu quinto ano. Ele era então hóspede das
Barrosos, respeitáveis velhas onde estudantes encontravam carinhos
maternais por preços discretos. A servente, uma Júlia, tinha
18 anos, era virgem, e, segundo me confessou o Conde, a sua beleza delicada
e tocante fazia lembrar esses tipos de odaliscas que se encontram nos Keepsakes,
recostadas em coxins, à sombra de arcadas mouriscas, acariciando com
a ponta aguçada dos dedos ideais uma gazela familiar. Tanta beleza,
tão nobre, numa condição tão rasteira
a natureza compraz-se por vezes nestas irónicas antíteses
comoveram o coração de Alípio, e, uma noite em que a
servente dormia na sua água-furtada, o jovem quintanista atreveu-se
a subir, em pontas de pés, a admirar a forma delicada, mais bela na
sua camisa de estopa do que as Vénus que os artistas florentinos recostavam
em coxins de seda, com rouparias de damasco… Mas ao ranger perro da porta
a servente acordou: ia gritar, assustada, quando Alípio, tapando-lhe
a boca com a mão (sem a magoar contudo) rogou, na balbuciação
supli-cante do desejo: Mas ouve, filha, ouve primeiro o que te vou
dizer…
O que lhe disse? Quem sabe o que ao arvoredo diz o vento, o que dizem as
alegres águas correntes às relvas dos prados, o que diz o rouxinol
na sombra dos salgueiros, quando sobre a colina, serena e branca, se ergue
a Lua? Desde essa noite, Alípio não trocaria aquela água-furtada,
onde a caliça caía com a humidade, pelas salas de mármore
do Vaticano! Mas, admirável exemplo da seriedade do seu espírito,
mesmo ali, não esquecia o seu trabalho: levava os expositores, a sebenta,
os apontamentos, e, depois do primeiro transporte amoroso, enquanto, como
ave fatigada, a servente se aninhava na cova da enxerga, o nosso Alípio,
à luz de uma vela de sebo, ia estudando as mais altas questões
do Direito Penal até que o Desejo, ferrão despótico,
o arremessava de novo aos braços brancos que o sono enlanguescia. Delicioso
idílio! E quantas vezes, nos seus anos ilustres, quando ele fazia História,
decerto lhe volveriam à memória, como um trecho de mal lembrada
melodia, aqueles meses de Verão e de amor romântico, em que a
bela Júlia e o jovem Alípio, abafando as suas risadas, faziam
no quarto miserável, sob as telhas, a caça aos mosquitos nas
paredes e aos percevejos nas frinchas…
Ah! bem o têm dito os poetas: a mocidade, como o sol, tudo esbate
e envolve numa vaga névoa de ouro; e os mosquitos que se matam aos
vinte anos, numa alcova amada, parecem deliciosos àqueles, que, aos
quarenta, dormem sob cortinados de seda, sentindo na rua, junto à porta,
o passo respeitoso da sentinela protocolar! Quando Alípio, concluída
a formatura, deixou Coimbra, Júlia estava no terceiro mês da
sua gravidez. No entanto conservou-lhe sempre uma estima terna, até
que um companheiro, daí a tempos, lhe escreveu, dizendo que Júlia
fora expulsa da respeitável casa das Barrosos (como de resto era justo)
e que, achando-se sem emprego, formosa e com um filho a sustentar, se lançara
na prostituição.
Desde então o nosso grande Alípio só concebeu por ela
desprezo e repulsão porque naquele espírito nobre sempre
houvera o horror das miseráveis, que, esquecendo o que devem ao respeito
próprio à sociedade, à família, ao filho, vão
pedir ao indolente abandono do lupanar o pão que deveriam obter das
severas fadigas do trabalho. Recusou mesmo, com indignação,
a esmola que ela lhe mandara pedir, temendo que os pouco mil-réis que
lhe poderia remeter, fossem porventura, contribuir para enfeitar e arrebicar
uma nova sacerdotisa da Vénus das vielas. Tanto a esta alma severa
e forte repugnavam as moles condescendências e as vãs piedades!
Dois anos depois da sua formatura, encontrámos Alípio Abranhos
em Lisboa, numa casa da Rua do Ouro que faz esquina para o Rossio, e praticando
no escritório do famoso Dr. Vaz Correia.
O Conde nunca me deu pormenores minuciosos sobre estes primeiros anos de
Lisboa, nem encontro nas suas notas elementos pelos quais possa fazer deles
uma narração detalhada. O País tinha então atravessado
a grande crise social que e popularmente conhecida pelo nome da Maria da Fonte.
Não me proponho, neste estudo puramente íntimo, fazer crítica
histórica ou apreciar as consequências desta formidável
convulsão da nossa política portuguesa.
Uma vantagem, porém, e insisto nela porque se prende indirectamente
com a carreira política do Conde d’Abranhos tirámos
da Junta: e foi essa vantagem o ficar provada a impossibilidade em Portugal
de um desses ministérios à Polignac e à Cabral, que vão,
com uma obstinação altiva e brutal, contra as tendências
do espírito público e pretendem impor-se pela força em
lugar de conquistar pela habilidade. O povo é como um desses monstruosos
elefantes da Índia de que tenho ouvido contar: de uma pujança
indomável e de uma simplicidade risível, o mundo inteiro, pela
violência, não o pode obrigar a caminhar contra a sua vontade,
e uma criança, pela astúcia, obriga-o a fazer cabriolas grotescas.
O povo tem a força de um elemento e um regimento não lhe pode
impor uma ideia que um simples advogado hábil em declamação
lhe faz aceitar sem esforço. Isto eram verdades já velhas no
antigo mundo helénico. Os Polignacs, os Guizots, os Cabrais, são
portanto culpados, não de falta de civilização, mas de
falta de astúcia. Para que se há-de combater um monstro invencível,
quando é tão simples iludi-lo? Os Romances de Cavalaria dão-nos
uma alta lição política, quando nos pintam esses medonhos
gigantes que guardavam as entradas das pontes, sobre torrentes tenebrosas:
as lanças dos melhores cavaleiros, tentando forçar a passagem,
quebravam-se de encontro à pele coriácea dos temerosos brutos,
até ao dia em que um bravo Percival ou um Lancelote, flor de cavalaria,
lhe mandavam um anão pérfido e hábil em manhas, que adormecia
profundamente o colosso e os cavaleiros podiam, impunemente, trepar-lhe
sobre o ventre monstruoso, como sobre uma montanha inerte, e entrar no castelo
desejado onde os esperava um seio branco e os vinhos raros que vêm das
colinas de Inspruk.
Polignac, Guizot, Cabral, quebraram as lanças de encontro ao gigante;
ainda hoje.21 viveriam, e decerto estariam no castelo, coroados de rosas,
nos braços da Princesa, se, em lugar do heróico e vão
esforço, tivessem mandado adiante o anão, profundo em manhas.
Os políticos da geração moderna compreenderam e aceitaram
a grave lição da Maria da Fonte. O sistema da violência
foi abandonado como inútil, e começou, com êxito, o dúctil
método da habilidade.
O Conde d’Abranhos, com a sua alta intuição, sentiu que se
estava preparando uma nova política, que, condizendo com o seu temperamento,
seria o elemento natural em que a sua fortuna medraria como num terreno propício.
Ele bem sabia que o governo nada perdia do seu poder discricionário
mas que apenas o disfarçava. Em vez de bater uma forte patada
no país, clamando com força: Para aqui! Eu quero!
os governos democráticos conseguem tudo, com mais segurança
própria e toda a admiração da plebe, curvando a espinha
e dizendo com doçura: Por aqui, se fazem favor! Acreditem que
é o bom caminho! Tomemos um exemplo: o eleitor que não quer
votar com o Governo. Ei-lo, aí, junto da urna da oposição,
com o seu voto hostil na mão, inchado do seu direito. Se, para o obrigar
a votar com o Governo o empurrarem às coronhadas e às cacetadas,
o homem volta-se, puxa de uma pistola e aí temos a guerra civil.
Para que esta brutalidade obsoleta? Não o espanquem, mas, pelo contrário,
acompanhem-no ao café ou à taberna, conforme estejamos no campo
ou na cidade, paguem-lhe bebidas generosamente, perguntem-lhe pelos pequerruchos,
metamlhe uma placa de cinco tos-tões na mão e levem-no pelo
braço, de cigarro na boca, trauteando o Hino, até junto da urna
do Governo, vaso do Poder, taça da Felicidade! Tal é a tradição
humana, doce, civilizada, hábil, que faz com que se possa tiranizar
um País, com o aplauso do cidadão e em nome da Liberdade.
Quantas vezes me disse o Conde ser este o segredo das Democracias Constitucionais:
«Eu, que sou governo, fraco mas hábil, dou aparentemente a Soberania
ao povo, que é forte e simples. Mas, como a falta de educação
o mantém na imbecilidade, e o adormecimento da consciência o
amolece na indiferença, faço-o exercer essa soberania em meu
proveito… E quanto ao seu proveito… adeus, ó compadre! Ponho-lhe
na mão uma espada; e ele, baboso, diz: eu sou a Força! Coloco-lhe
no regaço uma bolsa, e ele, inchado, afirma: eu sou a Fazenda! Ponho-lhe
diante do nariz um livro, e ele exclama, de papo: eu sou a Lei! Idiota! Não
vê que por trás dele, sou eu, astuto manejador de títeres,
quem move os cordéis que prendem a Espada, a Bolsa e o Livro!»
E eu que, durante quinze anos, vivi na honrosa intimidade do Conde d’Abranhos
e me penetrei nas suas ideias, estou tão crente desta verdade, que
dado um Chefe de Estado irresponsável, ministros e uma Câmara
electiva me comprometo, oh! leitores, a fazer governar esse grande
e velho reino da Taprobana pela Camila Pelada, do Beco dos Cavaletes! Como
procederei eu? Tomo a Pelada, enamoro dela o Chefe do Estado, o que é
fácil, hoje que o deboche tem as persuasões de uma religião
e os métodos de uma ciência. Dirigido por ela, o Chefe do Estado
escolhe os ministros, e os ministros, como no conto popular, convencem os
eleitores, que nomeiam os deputados, que os legalizem a eles, ministros, e
às suas fantasias, decretos, empréstimos e discursos! O povo,
satisfeito, afirma: Eu sou o dono! Eu, rio-me. A dona é a Camila
e se eu, por acaso, for o Serafim da Camila, sou eu, afinal, quem governa
a Taprobana, dentre os lençóis de uma alcova, no Beco dos Cavaletes!
Tudo isto o sentiu num relance o Conde, quando, depois da Maria da Fonte,
os ministérios da Força cederam o passo aos ministérios
da Astúcia. A Maria da Fonte foi.a introdução no Estado
de uma nova táctica social.
Entretanto, querendo vir à arena com todas as armas, o Conde preparava
a sua reputação literária, como redactor-chefe da Bandeira
Nacional, jornal de que, atendendo ao brilho que lhe deu a colaboração
de Alípio e à sua curta existência, eu poderia dizer,
parafraseando o conhecido verso de Malherbe sobre a rápida vida das
rosas que viveu o que vive um foguete, o espaço de um estalo
e de um clarão! A Bandeira Nacional era um destes muitos jornais, que
fundados sem capitais e não correspondendo a nenhuma necessidade intelectual,
têm na sociedade um lugar isolado e sem valor, arrastam uma vida difícil,
tendo que mendigar, aqui e além ou da oposição
ou do governo a esmola de um subsídio, e, quando este lhes
falta, se extin-guem por si mesmos no silêncio e na obscuridade.
Os fundadores da Bandeira, moços ambiciosos que rondavam em torno
das repartições do Estado, tinham encontrado um patrono num
homem político, alta figura de relevo na história Constitucional,
o conselheiro Gama Torres. A protecção que dispensava porém
à Bandeira este homem notável, era, como dizia finamente o Conde
platónica, toda platónica! Não lhe dava dinheiro,
porque, chefe de família, entendia, e muito bem, que a política
não deve sorver fortunas, mas, pelo contrário, produzi-las.
Não dava tão pouco ideias, porque, apesar da sua alta ilustração,
que o torna um dos nossos grandes contemporâneos, a sua prudência,
a sua reserva eram tais, que raras vezes se lhe tinha ouvido uma opinião
nítida.
Sabia-se que aquela fronte um pouco calva, de entradas largas, estava recheada
de ideias; somente conservava-as como um tesouro escondido. Era, por assim
dizer, um avaro intelectual. As suas ideias eram para si; no silêncio
do seu gabinete, agitava-as como o velho Grandet agitava o seu ouro, regalando-se
do seu brilho e da sua sonoridade. Mas se alguém entrava de repente,
aferrolhava tudo à pressa no cofre do cérebro, e a sua larga
testa, de entradas altas, não oferecia mais que uma fachada impenetrável
e monumental, que impressionava a todos e não aproveitava a ninguém.
Era alto, encorpado, e os seus olhos, azulados e redondos, tinham uma singular
falta de expressão e de intenção. Porém, todos
sabiam que por trás daquele olhar parado um mundo de ideias fermentava.
É curioso observar quantos homens públicos do nosso país
têm esta aparência apagada, vazia, vaga, abstracta, sonâmbula;
e, todavia, eu que pelo Conde fui admitido a conhecê-los, sei quanto
génio habita em segredo naquelas cabeças calvas ou cabeludas,
a que os superficiais, não lhes conhecendo as secretas riquezas, acham
um aspecto alvar. É que nós somos uma raça reservada,
inimiga da ostenta&ccedccedil;ão e das atitudes: ao inverso dos franceses,
que mal têm uma ponta de talento, tratam de o fazer brilhar, reluzir,
deslumbrar, nós, com vastidões de génio no interior,
desprezamos estas demonstrações vaidosas e guardamos para nós
mesmos as nossas riquezas intelectuais. Assim faz o árabe, que cerca
os seus jardins deliciosos e as suas habitações douradas de
um muro negro de pedra e lama, de modo que se julga ver uma cabana onde realmente
existe uma Alhambra! Mas não somos nós de raça árabe?
Por isso nunca o Conselheiro Gama Torres se dignou fazer à Bandeira
Nacional a esmola de uma ideia. Deu-lhe, porém, a protecção
do seu nome; dizia-se «a Bandeira do Gama Torres» e isto trazia
ao jornal uma autoridade imprevista.
Muitas vezes, segundo me contou o Conde, durante os meses de Estio em que
a política, refugiada na sombra das quintas ou na frescura das praias,
dormita, o redactor da Bandeira, sem assunto para o seu artigo de fundo, recorria
ao génio do Conselheiro, como um pobre envergonhado. Gama Torres, porém,
colocando-se no meio da casa, as pernas afastadas, o ventre saliente, as mãos
atrás das costas, fitava o soalho e.23 bamboleando o crânio fecundo,
murmurava surdamente: Ele há muitas questões!… Há
questões terríveis. Há a prostituição…
o pauperismo… Ele há muitas questões…
Mas, repito-o, era um avaro intelectual que não gostava de fazer
a esmola de uma ideia. Não o censuro, pois é sabido que ele
dava todo o seu tempo e todo o seu génio às grandes questões
sociais. Elas preocupavam-no tanto que era usual sempre que diante
dele se falava de assuntos políticos ouvi-lo murmurar soturnamente:
Ele há muitas questões! Questões terríveis:
o pauperismo, a prostituição! São grandes questões!
Questões terríveis! E pareciam com efeito terríveis essas
questões, de uma tenebrosidade de abismo, quando se via o olhar esgazeado
com que ele parecia contemplá-las mentalmente.
Pouco tempo antes da sua morte, lembro-me de o ter visto, uma noite, em
Casa do Conde, numa ocasião de crise ministerial, e nunca esquecerei
a terrível impressão que me deixou aquele grande homem, de pé
no meio da sala, esgazeando o olhar em redor e dizendo cavamente:
Os senhores podem crê-lo, nem tudo são chalaças; ele há
questões terríveis… A prostituição, o pauperismo,
o ultramontanismo… Questões terríveis.
E no silêncio apavorado que deixara aquela voz profética, em
que se sentia a ameaça de graves tormentas sociais rolando do fundo
do horizonte, aproximei-me instintivamente do Conde, como quem procura asilo
seguro.
Tal era o director da Bandeira. Devo acrescentar que os únicos artigos
que ele dava para o jornal anunciavam as suas jornadas para a Ericeira, ou
os partos frequentes de sua esposa, ou ainda os progressos da sua doença
de bexiga: artigos curtos, de resto, mas numa linguagem tersa, firme, grave,
em que se sentia o homem de Estado! A colaboração de Alípio
Abranhos na Bandeira Nacional veio dar ao jornal anémico um sangue
novo e vivo. Eu possuo precioso presente do Conde uma colecção
da Bandeira, ricamente encadernada, e muitas vezes, abrindo-a com vene-ração,
me repasto desses artigos, que, como prosa e como argumentação,
lançam na sombra os famigerados Girardins, os Sampaios tão preconizados.
Quereria transcrever alguns desses modelos de literatura jornalística,
mas a estreiteza deste estudo apenas me permite extractar um trecho, por onde
o leitor pressentirá o colosso, como Cuvier, por uma vértebra,
adivinhou o mastodonte.
O jornal, a quem o ministério desse período recusara, sem
razão, um honroso subsídio, fazia uma oposição
amarga. O ministro apresentara um projecto de reforma administrativa. Estas
reformas têm sido tão numerosas em Portugal tal é
o honroso esforço de todos os governos para um ideal melhor
que não posso precisar os princí-pios sobre que esta se baseava:
debalde tenho perguntado aos homens públicos que então a discutiram
e votaram: nenhum se recorda. Deduzo, porém, dos artigos da Bandeira,
que o seu espírito era centralizador. Foi então que Alípio
escreveu esse artigo, tanto mais admirável quanto é certo que
ele concordava inteiramente com os princípios defendidos na reforma.
Porém, jornalista de oposição, não duvidou fulminá-los
tal era a sua lealdade aos compromissos políticos.
Eis a conclusão desse trecho imortal: «…A centralização,
pois, chamando toda a vida política do país ao centro, à
capital, à cabeça da Nação, cria, por assim dizer,
um estado político pletórico e apopléctico, em que é
o centro que tem todo o sangue, todo o vigor, e as extremidades, onde não
chega a circulação necessária para que elas se conservem
num calor benéfico e saudável, arrefecem, e, em breve, definham,
ficando como organismos mortos, apenas ligados, para assim me exprimir, por
tendões artificiais, que o mais pequeno choque despedaça, o
que produz a situação anormal dum corpo que, por falta duma
vitalidade.24 que o mantenha intacto e compacto, se vê a cada momento
arriscado a perder membros essenciais, cuja falta lhe faz imediatamente sentir
a aproximação da morte, sendo já tarde para lhe insuflar
à pressa uma vida, que, de resto, apenas poderá ser artificial,
e que rapidamente se extinguiria, deixando, consequentemente, a gangrena moral
fazer a sua sinistra obra de destruição e de decomposição.
Que o saiba, pois, o Governo, que, em desprezo de todos os princípios
mais provados da Economia e do Direito, está à frente da nossa
entidade nacional: se a sua reforma for avante, arrisca-se a que o país
se decomponha socialmente e que a posteridade um dia, vendo o seu cadáver
à beira da estrada da civilização, diga, apontando com
horror para os loucos que têm nas mãos culpadas as rédeas
da governação: eis aí os assassinos!» Mostrem-me,
se a conhecem, em todo o jornalismo contemporâneo, uma página
igual! Como o período se desenrola em curvas lustrosas e fluentes,
seguindo na cadência melódica e quando o leitor, extático,
imagina que ele vai findar, ei-lo que se reergue e se arqueia, mais límpido
e mais fácil, para fechar num remate sonoro e magistral.
Assim, nas praias do mar Tirreno, se sucedem e se produzem umas das outras
as ondas de curvas moles em que os antigos viam as linhas harmónicas
de Vénus, mãe do Amor! Que imagem aquela, em que a posteridade,
à beira da estrada da civilização, depara com Portugal
exangue, fulminado pela apoplexia causada pelo excesso de sangue administrativo
no cérebro, e exclama: eis ai os assassinos!, mostrando faces
pálidas de estadistas que se encolhem na sombra! Não me admira
por isso, que, sempre que em Portugal se anuncia uma reforma administrativa,
este sublime artigo reapareça textualmente, palavra por palavra, nos
periódicos que por dever de partido combatem a centralização,
causando sempre a mesma impressão profunda.
Somente, com respeito o digo aos meus colegas da imprensa, é lamentável
que o reproduzam como obra original tanto mais que todos os letrados
lhe conhecem o autor, e até a Selecta para o curso de Português
do segundo ano dos liceus o coleccionou, como um modelo de estilo oratório
e jornalístico.
De resto, a facilidade do Conde era extraordinária. Prova-o bem uma
anedota, que me é referida por um sábio professor de economia
política, que ao tempo escrevia na Bandeira folhetins de muita imaginação.
Como disse, o governo tinha recusado um subsídio a esta folha (tanto
em Portugal é pertinaz a tradição cruel de esfomear o
Génio!) e a Bandeira rugia na oposição, quando o ministro
fez a nomeação de um certo Abranches (hoje personalidade esquecida),
nomeação considerada por toda a gente de bem como um favor torpe.
Havia de resto no caso uma complicação asquerosa de esposa cedida
à concupiscência de um estadista lúbrico.
Era uma magnífica ocasião «de escachar» o ministério,
e o nosso Alípio, imediatamente compôs um artigo que
o sábio professor que me relata a anedota compara às sátiras
de Juvenal e às verrinas clássicas de Cícero indignado.
O Governo, porém, que a essa hora sentira que era imperioso abafar
todo o protesto, calculou logo que o ataque mais violento lhe viria decerto
da Bandeira Nacional. Por isso viu-se, à meianoite, o gerente do jornal,
que fora chamado a casa do ministro, precipitar-se desvairado na redacção,
exclamando: O Governo dá a cheta! duzentos mil-réis
por mês! E correndo à janela, berrar com força para o
fundo do pátio, onde era a tipografia: Tio Marçal, suspenda
a tiragem! Traga cá acima a desanda! Temos cheta! E enquanto o tio
Marçal mandava desfazer a verrina, o nosso Alípio, tomando a
pena, improvisou outro artigo, louvando o despacho do Abranches que
o sábio.25 professor que me conta este notável incidente, compara,
pelo seu vigor, a sua lógica, a sua elevação moral e
a penetração dos seus argumentos, às defesas mais célebres
da história alguma coisa de semelhante a Lorde Brougham, defendendo,
na Câmara dos Pares de Inglaterra, a desolada princesa Carolina! Quando
um homem possui tais poderes intelectuais e faz deles um uso tão útil,
a sua carreira política está marcada, e, olhar para ele, é
como ver uma prolongação verdejante de altos arcos triunfais.
Mas tal é a tradicional ingratidão dos grandes
o Governo, depois de obter aquela defesa sublime do seu patrocinato torpe,
suspendeu imediatamente o subsídio, porque já então era
claro que a Bandeira, desamparada de assinantes em lhe faltando aquele
apoio, findaria a sua gloriosa marcha avante.
Na sua justa cólera, Alípio quis escrever um terceiro artigo
em que o caso Abranches fosse revelado na sua realidade abjecta. Mas era tarde:
passara um mês, a opinião desinteressarase do incidente, e o
Abranches, inamovivelmente instalado na sua sinecura, parecia indiferente
às cóleras da opinião ou à crítica dos
poderes públicos. A Bandeira, pois, despediu-se dos seus leitores num
artigo admirável em que Alípio exclama: «A Bandeira não
morre: enrola-se por um momento, em virtude de considerações
particulares, mas para se desfraldar ovante, um dia, cedo, e palpitar então
bem alto no parapeito da Civilização, a todos os ventos da Liberdade!
Desgostado com as lutas da imprensa por este indigno procedimento do ministério,
Alípio recomeçou a aplicar-se ao seu trabalho de advogado, sendo
mais assíduo ao escritório do famoso Dr. Vaz Correia, com quem
praticava. Vaz Correia, de quem Alípio celebrara muitas vezes na Bandeira
os triunfos forenses, tinha por Alípio uma consideração
a que se misturava tocantemente uma simpatia paternal. Quem não conheceu
de resto aí o Dr. Vaz Correia? Ele oferecia plenamente o tipo do rábula.
Que esta palavra não seja tomada no seu sentido grotesco: o Dr. Vaz
Correia era um resplandecente espelho de lealdade. Os seus olhinhos vivos
que espreitavam por cima dos óculos, a sua canta redonda e enrugada,
as duas repas de cabelo grisalho, espetadas como orelhas de diabo de cada
lado da calva, a alta gravata de seda preta às pintas, o colete de
xadrezinho, e o hábito de falar com as mãos atrás das
costas, tornando saliente a sua barriguinha próspera, são feições
dele bem conhecidas em Lisboa.
O que menos se conhecia era a sua grande bondade, que me faria dizer
se eu não odiasse as preciosidades de linguagem que naquele
Pegas havia um S. Cristóvão! E digo S.
Cristóvão, porque, entre toda a população santificada
do Reino dos Céus, este bom gigante, com a sua bonomia, a sua paciência,
o seu ar paterno, me parece um modelo amável de bondade terrestre.
Eu, na realidade, ignoro os actos de bondade do Dr. Vaz Correia. Devia-os
ter porém, e grandes: mas a sua história íntima é-me
desconhecida. Todavia, a avaliar pelo seu procedimento com Alípio,
justifica-se que eu o compare com S. Cristóvão, que, apoiado
ao seu pinheiro, ajudava os fracos e os fatigados a passar a torrente traiçoeira.
Uma crise, com efeito, estalara na vida serena de Alípio Abranhos.
Sua tia Amália, de cujas mesadas vivia e com cuja fortuna contava,
acabava, inesperadamente, de contrair segundas núpcias com um jovem
delegado de Amarante. Nem a idade, nem a obesidade (que lhe viera nos últimos
anos), nem o respeito dos próprios cabelos grisalhos a retiveram, e,
possuída de uma chama tardia mas exigente, trocou a delícia
toda moral de apoiar a ilustre carreira do sobrinho, pelos encantos baixamente
materiais de um esposo robusto. Foi para o futuro estadista um golpe severo.
Sua tia, é certo, não lhe suspendia presentemente a mesada:
mas a certeza da sua fortuna dissipava-se,.26 porque, não só
uma dama de paixões tão ardentes poderia, apesar da idade, ter
descendência, mas decerto, acorrentada à vontade do marido, veria
todas as suas posses passarem para os bolsos cio delegado e dos parentes esfomeados
que lhe cercavam as propriedades com olhos ávidos e cobiçosos.
Alípio teve dias de amargura: não era daqueles seres orgulhosos
que erguem alto a cabeça e crêem que podem apoderar-se da fortuna
pelo jogo simples das suas energias naturais. Pelo contrário, o nosso
Alípio era destes sábios espíritos que nunca se arriscam
na estrada da vida sem irem bem amparados da esquerda e da direita, sem alguém
que os alumie adiante, e alguém que por trás os proteja das
feras imprevistas.
Este desalento do seu espírito espalhava-se-lhe na expressão;
e o Dr. Vaz Correia, sabedor do caso, vendo-o dobrado sobre os autos como
«sobre o rio do destino», segundo a expressão bíblica,
perguntou-lhe um dia, do fundo da sua poltrona: O amigo conhece o
Desembargador Amado? Não conheço, senhor doutor. Isto
é, conheço de reputação, de vista, mas não
pessoalmente.
O doutor mergulhou sobre o papel selado, e, durante minutos, a sua longa
pena de pato fez prosa sábia. Por fim, recostando-se novamente na poltrona:
Então o amigo não conhece o Desembargador Amado?
Não conheço, senhor doutor. Isto é, repito, pelo menos
pessoalmente. Pessoa muito estimável, dizem.
O doutor anediou as duas repas grisalhas da calva, e depois de tossicar:
Pois se o amigo quer, eu levo-o a casa do Desembargador Amado, que
são amanhã os anos da filha. Conhece a filha? Não
conheço, senhor doutor. Isto é, do mesmo modo, não conheço
pessoalmente.
Boa moça! Muito galante disse respeitosamente
Alípio.
Este diálogo foi, poderia dizer-se, a origem do casamento do Conde
d’Abranhos, de que eu, segundo as notas do próprio Conde e os relatos
de testemunhas presenciais, quero dar uma narração detalhada.
O Sr. Desembargador Amado era de uma boa família do Norte e tivera
uma carreira singularmente fácil. Dizia-se dele: «aquele deixou-se
ir e chegou».
Sustentado pela vasta influência da parentela, fora com efeito levado,
sem abalos nem choques, numa ascensão gradual e confortável,
até à sua poltrona de damasco vermelho da Relação
de Lisboa. Aí se deixara cair com o peso da sua obesidade, e cruzando
as mãos sobre o estômago, começara a ruminar regaladamente.
Que de modo nenhum se creia que eu queira diminuir com azedume os méritos
deste varão obeso: quero somente mostrar a natureza, toda de indolência
e de egoísmo, do Desembargador Amado, ocupado em se nutrir com abundância,
atento exclusivamente ao jogo das suas funções, assustado se
a bexiga, ou o baço, ou o fígado denunciavam alterações,
sem ter coragem de se mexer do sofá durante noites inteiras, completamente
desinteressado dos homens e mesmo de Deus.
O nosso imortal José Estêvão, vendo-o um dia entrar
numa recepção em casa do chorado duque de Saldanha, exclamou,
designando-o com um verso conhecido de Juvenal: Aquele ventre que
ali vem, é o Amado! Era com efeito um ventre, que em certos dias da
semana punha sonolentamente os óculos, e assinava com a mão
papuda, onde os colegas lhe indicavam com o dedo; da sua ciência jurídica,
nada direi, para não envergonhar as paredes e os móveis deste.27
quarto onde escrevo; da sua honestidade, sei que a sua grande fortuna e as
suas pro-priedades de Azeitão o tornavam indiferente às tentações
do dinheiro: mas condenaria Jesus e absolveria o mau ladrão, se o peitassem
com um casal de patos bem gordos ou com um salmão fresco do Rio Minho.
Fazia, ao comer a sopa, um glou-glou nojento e repelente, e atirava para
o soalho os escarros que merecia na face. Tal era esta besta obesa. O Conde
detestava-o. E eu mesmo, apenas o respeito que lhe devia como sogro de S.
Exª, me impediu certa noite ainda tremo ao recordálo!
de lhe atirar estas mãos ao pescoço gordalhufo, e apertar-lho,
apertar-lho até que lhe pendesse, inchada e negra, aquela língua
onde a banalidade era mais usual que a saliva, e lhe saíssem das órbitas
aqueles olhos que só tinham fixado neste mundo com algum interesse
as postas de vitela de que se abarrotava.
Era uma noite que ele passara em casa do Conde. Desde o jantar, estirado
numa poltrona, só denunciando a sua presença por arrotos frequentes,
tinha dormido o sono bestial do seu enfartamento senil. Eu estava justamente
contando à Srª Condessa, que me escutava com interesse, uma deliciosa
anedota do Sr. D. João VI que lera nessa tarde quando ouvi,
do fundo da poltrona onde dormitava o Vitellius, estas palavras, naquela voz
espessa e brutal que era a repercussão sonora da sua inteligência:
Olá, senhor secretário, veja lá em baixo se já
vieram com a sege!…
Eu fiquei petrificado, com a lividez da cal. Mas a Srª Condessa que
sejam quais forem as suas culpas tinha delicadezas tocantes,
acudiu imediatamente.
Oh papá! E agitando a campainha, dirigiu-se ao João
que aparecera.
Veja se já está a carruagem do papá! Enquanto
fui secretário do Conde, tratei com Fidalgos, com Ministros, com Embaixadores,
com Augustos Personagens, e só recebi de S. Ex.ª e poderia
dizer de S.S. MM. e AA. aquela benévola consideração
que talvez as minhas aptidões justificassem, mas que eu recebia como
preciosa recompensa da minha dedicação. Mesmo junto dos degraus
do Trono, só encontrei bondade, e a mão que eu ia beijar na
humildade tradicional, apertava a minha com uma simpatia que me deixava na
alma impressões inesquecíveis.
Só aquela obesa carcaça se arrojou a tratar-me como um lacaio!
Morreu. Morreu da bexiga. Notou-se com admiração o fétido
que lhe saiu do corpo, depois de morto, e a decomposição muito
rápida das matérias serosas: isto talvez fosse a dissolução
do corpo; mas o cheiro asqueroso vinha da sua alma torpe que se soltava, dando
a exalação de uma latrina que se destapa.
O caixão em que o levaram pesava arrobas, e quando o embalsamaram
e lhe extraíram o cérebro, viram que não era mais volumoso
que o de um bacorinho recém-nascido. Na cavidade craniana meteram-lhe
um pedaço de esponja velha, decerto mais útil e tão inteligente
como o cérebro que substituía! Amortalharam-no na sua beca de
cetim, que não cobre agora um desembargador mais morto e mais
pútrido do que tinha coberto nos dias de sessão da Relação
de Lisboa. Levaramno ao Alto de S. João, ao passo de quatro éguas
cobertas de panos negros; e as quatro éguas agitavam a cabeça,
parecendo vaidosas do cadáver que arrastavam: foi o único orgulho
que inspirou jamais a companhia da sua pessoa. Ali apodrece aquele resto de
matéria mal organizada, que rebolou durante anos pela terra, sob o
nome desacreditado de Justiniano Sarmento Amado.
Este ventre segundo a frase de José Estêvão
era naturalmente um títere, um títere obeso nas mãos
de sua mulher: era ela quem lhe puxava as guitas da vontade. D. Laura Amado,
de aspecto, dava a impressão de uma régua: esguia, chata, erecta,.28
perpendicular, com o seu vestido de seda negra, parecia, não uma senhora,
vivendo num prédio à Estrela, mas uma criação
pitoresca do ilustre Dickens. Moralmente, tinha a mesma rigidez dura e inflexível,
o mesmo rectilíneo de régua. Era uma devota, de uma pontualidade
de máquina no cumprimento da sua devoção. Desde nova
até ao dia em que a levou uma benemérita escarlatina, rezou,
rezou imperturbavelmente, cronometricamente, com um tique-tique-tique, de
relógio.
Era dotada de uma língua feroz com que lacerava todas aquelas
porque raras vezes, decerto por pudor, se referia aos homens que não
exerciam uma devoção tão complicada, ou tinham os gozos,
os luxos, as paixões que lhe proibia o seu Deus, um Deus especial,
dela um Deus terrível, que vivia na Igreja de S. Domingos,
insaciável de louvores, pródigo de catástrofes, sempre
pronto a despedir, como raios, doenças mortais ou desgostos com as
criadas, e que era necessário abrandar constantemente com promessas,
missas, ladainhas e ofertas, porque o seu divino temperamento, de uma irritabilidade
fora do vulgar, o mantinha no desejo frenético de fazer mal.
O sacerdote particular deste Deus, o intérprete na terra das suas
vontades, era o padre Augusto, que morava numa casa de hóspedes às
Portas de Santo Antão, e de quem D. Laura recebia a direcção
espiritual, as ordens, os conselhos, as admoestações e as baforadas
do hálito impregnado de alho.
Pode parecer irrespeitosa esta apreciação da família
Amado, mas, para minha justificação, direi, que o Ex.mo Conde
a abominava. E todavia tanto a sua polidez era perfeita nunca
deixou de beijar respeitosamente a mão de sua devota sogra
mão magra, amarela e seca como um caranguejo, de longos dedos que ela
tinha sempre postos em atitude de reza, contra o peito, na igreja, sobre o
regaço, na sala, e em cima do prato, à mesa.
Desta devota, e do outro, do montão de gordura de que falei acima,
tinha nascido um anjo.
Que me perdoe a memória do Conde, mas D. Virgínia Sarmento
Amado, primeira Condessa d’Abranhos, era um anjo! Não ignoro os seus
erros: mas se, para os atenuar, não bastasse lembrar-me que há
1800 anos, Jesus de Nazaré defendeu das pedras farisaicas a pobre mulher
amorosa prostrada a seus pés, bastar-me-ia recordar a bondade de D.
Virgínia, a sua tocante delicadeza, o mimo das suas maneiras, aquela
necessidade de ver todos à volta dela confortáveis e contentes…
Era um anjo, tanto na sua alma, viva e toda espontânea, como nos seus
cabelos loiros, sempre um pouco desordenados, nos seus grandes olhos activos
e banhados num largo riso doce, no seu nariz tão fino, de um tom de
marfim, na sua figura delicada, patrícia, de movimentos de ave… Era
um anjo! Desta família, o pai foi magistrado condecorado, a mãe,
devota respeitada, e a filha segundo a lei e a moral corrente
criminosa repulsiva. Hoje, dormem os três no jazigo monumental do Alto
de S. João, e eu estou bem certo que esta opinião dos homens
não foi corroborada por Deus. A devota estimada está, não
o duvido, atravessada pelo espeto tradicional, que um diabo, por toda a Eternidade,
vai fazendo girar, para a assar ora de um lado ora do outro. O pai, magistrado
coberto de honras, impossível para ser de Deus, muito abjecto para
ser do Diabo, deve estar nesse lugar tenebroso, latrina da Eternidade, onde
os Vitellius torpes e os Amados pútridos chafur-dam para todo o sempre
numa massa líquida, feita dos excrementos dos homens e da baba das
feras.
E ela, a doce culpada, a loira condessa, parece-me vê-la, com um vestido
cândido, a palma verde na mão, os fios de ouro fino dos seus
cabelos soltos, banhada na luz paradisíaca e mística que sai
dos olhos de Deus.
Que não me acusem de ir, nestas apreciações, de encontro
à moral social, ou,.29 possuído de um orgulho sobre-humano,
de dar indiscretamente um conselho a Deus. O crime de Virgínia é
horroroso mas a sua pessoa era adorável. À que pecara
como ela, Cristo perdoou, e lavada a culpa pelo perdão divino
o que nos resta é uma deliciosa criança loira, daquele
loiro que um dia cantou em versos inolvidáveis o mavioso poeta das
Névoas: O ouro da tua trança Vaie os milhões dum avaro;
Não é pagar muito caro Morrer por a ter beijado!…
Este anjo fazia 18 anos na noite em que o Dr. Vaz Correia conduziu Alípio
à casa apalaçada do Desembargador Amado.
O Conde, que era supersticioso como Napoleão e Lamartine, contou-me
depois que entrara na sala com o pé esquerdo.
Preocupado com isto, quando se achou defronte de uma grande barriga que
um amplo colete branco vestia, em lugar de dizer «Sr. Desembargador»,
titubeou «Sr. Conselheiro», o que foi tão agradável
ao obeso magistrado, que, ao apresentar Alípio à sua seca e
hirta esposa, exclamou: É já colega do Vaz… Diz que
é um talentarrão!…
Isto fez má impressão na devota senhora, que, em todos os
homens novos e com talento, via invariavelmente inimigos da religião.
Mas o nosso Alípio desfez bem depressa esta impressão hostil,
afiançando a D. Laura, o que era de resto exacto, que sempre, antes
e depois dos actos em Coimbra, ia à Sé Nova, prostrar-se aos
pés da imagem de Nossa Senhora da Saúde, antes, a implorar a
sua mística influência nos lentes, depois, a agradecer humildemente
o nemine discrepante. E corroborou esta descrição da piedade
dos seus costumes, mostrando a gravidade das suas maneiras: em vez de procurar
a companhia das meninas, que, de boquinha ao lado e olhos doces, perturbam
a paz dos espíritos puros, foi de preferência juntar-se ao grupo
severo dos magistrados e sólidos negociantes. E isto fez dizer a D.
Laura que Alípio parecia ser «um moço de propósito».
A soirée era de resto animada; e pelo conhecimento que eu mais tarde
tive da famosa sala do Desembargador e das pessoas que habitualmente a frequentavam,
e pensando na influência que essa noite exerceu no destino do Conde
d’Abranhos, mais de uma vez me tenho entretido a reconstituir essa soirée,
com os seus personagens, os seus agrupamentos e a sua decoração.
Ali está, sob o retrato a óleo do Desembargador, o alto sofá
de damasco vermelho e as quatro poltronas empertigadas e sentenciosas em que
se sentam D. Laura e as duas ricas manas Vitorino, ambas magras, cor de cidra,
de nariz acavalado, bandós achatados, com enfeites pretos, todas de
uma tonalidade negra onde destaca o lenço branco, sustentado na mão
seca de cordoveias fortes, sobre o regaço. Muito liberais, seu irmão,
magistrado, fora enforcado no Porto no tempo de D. Miguel, e este incidente
patético, de que ainda falam, parece ter-lhes perpetuado a tristeza
na alma e a amarelidão na face.
Ali vejo também o velho Serrão, coronel reformado, com o seu
espesso bigode grisalho, aparado à tesoura, a calça cor de flor
de alecrim esticada pelas presilhas, ainda rijo, cheio de opiniões,
censurando com rancor as promoções do exército e acompanhando
uma filha, aquela magrinha de vestido de cassa com pintinhas, dentes maus
do abuso dos doces, omoplatas salientes sob o estofo transparente, e tendo,
a falar com os homens, a impertinência familiar de quem está
sempre a pensar nos seus vinte contos de réis de dote. Na sombra, quase
a um canto, lá está a pobre D. Joana Carneiro, triste e macerada,
com o seu cirro no estômago, muito lamentada por todos, que admiram
a sua resignação, apesar de lhe censurarem o mau hálito.
Junto ao piano, vejo ainda D. Amália Saraiva, cujos seios enormes
parecem dois pequenos odres; traz sempre sua filhinha, de 7 anos, a Julinha,
que durante toda a noite, muito sossegada, com o cabelo encaixando-lhe a canta
magra, folheia o volume ilustrado da Ásia Pitoresca, admirando pagodes
índios e selvagens seminus, até que a chamam para recitar: então,
no círculo admirador, sob o olhar ansioso da mãe, cujos odres
arfam de emoção, diz, numa vozinha fina e igual, como o correr
do fiozinho de água numa torneira estreita: Vai alta a Lua na mansão
da morte, Já meia-noite com vagar soou…
Ao fundo, junto à mesa do voltarete já armada, o Conselheiro
Andrade, atraído para ali pela paixão das cartas, vai fazendo
a sua paciência devagar, e explicando os seus contratempos de lavoura
ao amigo Torres Pato e a outro personagem taciturno, apenas conhecido pelo
nome de «o Doutor», que, muito apertado numa sobrecasaca azul,
só quebra o seu silêncio lúgubre para murmurar, com a
testa franzida numa grande concentração de espírito:
É notável! Homem, é notável! Mais além,
vejo ainda, de peito alto e penteado soberbo, a bela Luísa Fradinho,
casada há pouco com o Dr. Fradinho, advogado e publicista, que aparece
atrás, fincando no nariz a luneta de ouro ou retorcendo entre os dedos
finos a ponta das suíças de azeviche.
D. Luísa é, nas soirées do Desembargador, a bella,
a sereia. O coronel, o conselheiro, os magistrados admiram os seus soberbos
olhos, o seu corpo de estátua, as suas toilettes de enxoval; diz-se
baixo que inspirou uma paixão a um Augusto Personagem; os seus movimentos,
os seus olhares, os seus gestos, são seguidos por olhos vorazes de
velhas que a criticam, sob a vaga sensação da influência
que deve ter nos homens aquela soberba criatura de cor de pele tão
brilhante: uma, acha que ela ri atabalhoadamente e com coquetismo; outra,
que arruína o marido em vestidos; e quando ao fim da noite o Dr. Fradinho
lhe diz: «são horas, filha, vai-te agasalhar» todos,
o coronel, o conselheiro, as damas, a doente do estômago, os seguem
com os olhos, com um pensamento involuntário ao leito conjugal, onde
decerto se vão recolher.
Ao canto do sofá, no seu lugar consagrado, lá vejo também,
de grande casaco negro e volta branca, com a face gorda, grave, trigueira,
muito barbeada, o reverendo padre Augusto.
Junto da janela, a adorável Virgínia e as duas amigas, as
filhas do Conselheiro Andrade, cochicham vivamente, com as cabecinhas muito
juntas.
E ao pé da mesa do voltarete, numa poltrona, enfartado e obtuso,
dormita o obeso Amado.
Tal devia ser então uma soirée em casa do Desembargador; e
naquele meio um tanto incaracterístico, a figura aprumada do jovem
redactor da Bandeira, seria, decerto, de vivo destaque.
Alípio era então, digo-o afoitamente, um formoso moço:
de elevada estatura, bem proporcionado, a testa larga e alta como a ideia
que abrigava, os ombros sólidos de quem pode, sem esforço, sustentar
um mundo, o olhar azulado, penetrante, preparado pela natureza para sondar,
nas suas mais longínquas consequências, as altas resoluções
políticas um desses olhares que atravessam e exploram num breve
relance todo um.31 problema complicado a barba aloirada, em colar,
como nesse tempo era ainda a moda, e se vê no retrato do imortal Garrett
tal era, aos 26 anos, o futuro Conde d’Abranhos. E posso dizer que
não foi sem desapontamento (que me perdoem este expressivo galicismo)
que Virgínia, as Andrades, e, ouso afirmá-lo, a bela Fradinho,
viram aquele esbelto moço afastar-se da sua companhia graciosa, para
ir, pausado e grave, conversar com o conselheiro, o coronel e o amigo Torres
Pato.
Aconteceu mesmo que ao chá, quando Alípio já
então o excessivo calor de uma sala lhe dava opressões asmáticas
se aproximava da janela, notou que a bela Fradinho conservava na mão
a sua chícara vazia. Imediatamente, como um verdadeiro Noronha, muito
homem de sala, muito homem de corte, Alípio apressou-se a tomar-lha
da mão, depositando-a sobre o piano. D. Luísa agradeceu, e logo
com grande volubilidade: Creio ter visto V. Exª na galeria da
Câmara dos Deputados.
Eu frequento com regularidade as sessões da Câmara,
minha senhora foi a resposta grave do redactor da Bandeira.
E como havia junto da bela Fradinho uma poltrona vazia, sentou-se respeitosamente,
e bem depressa a conversa, dirigida pela inteligente senhora, tomou um tom
elevado e crítico.
Falavam de oradores ilustres, dos folhetins notáveis da Revolução,
de poetas e de Arte quando Alípio percebeu com terror que as
matronas, o coronel, o conselheiro, D. Laura e as duas colegiais, tinham os
olhos cravados naquele diálogo isolado. Afastou-se logo um pouco, endireitando-se
na poltrona; mas isto só tornava mais saliente a gesticulação
animada da bela Fradinho! Então, aterrado de suspeitas possíveis,
Alípio ergueu-se bruscamente. Para ele nada existia mais sagrado que
a Família, e esses assaltos à honra conjugal, que a sociedade,
culpadamente, complacentemente admite e até idealiza, considerava-os,
como muitas vezes mo afirmou, o cúmulo da torpeza, sobretudo tratando-se
de senhoras que, pela sua posição social, muito observadas,
não podem trazer ao sedutor senão desgostos e embaraços
na sua existência, além de darem um exemplo funesto às
classes subalternas.
Foi sempre fiel a este severo princípio. É certo que o acusaram
de ter relações culpadas com a mulher de um tal Bento, correeiro
nas Portas de Santo Antão, mas este caso é inteiramente diferente.
O correeiro era tão insensível à honra do seu lar, que
consentia que sua mulher fosse visitar diariamente uma tia que ele
sabia ter falecido havia meses. Além disso, pela sua posição
modesta, esta ligação nunca poderia ser posta em evidência
nem andar nas conversas da cidade, não correndo assim o risco de ser
uma lição perniciosa para a mocidade.
Por estas considerações que ele pesou conscienciosamente
antes de se entregar a actos libidinosos com a mulher do correeiro
Alípio julgou poder, sem risco para a ordem social e sem prejuízo
para a sua carreira, permitir-se este gozo oculto.
De resto, ele compensou com nobreza a injúria moral que fizera ao
correeiro, pois que, quando este artífice faliu, Alípio, então
deputado, proporcionou-lhe uma proveitosa situação numa repartição
do Estado.
Foi, pois, sob a influência destes altos princípios que ele
se arrancou com dignidade à conversa cativante da bela Fradinho, indo
mesmo dizer ao marido, que, de perna traçada, fumava na saleta próxima:
Acabo de ter uma conversa muito filosófica com sua Ex.ma esposa,
e raras vezes tenho visto uma senhora tão instruída… Discutimos
Vítor Hugo…
Ah, ah! Sim, é apreciadora! … E eu não lhe proíbo
esse gostinho, porque sou do meu século e entendo que uma mulher, para
fazer figura na sociedade, deve ter o seu bocado de literatura e o seu vernizinho
de filosofia.
Tem V. Exª muita razão…
Mas tinha-se feito na sala um silêncio e havia em todos os rostos
um riso mudo de.32 aprovação complacente. Dirigida por D. Amália,
de seios cheios como dois odres, Julinha estava no meio da sala, amarelinha,
esguia, de membrozinhos moles e olheiras fundas, e da sua boquinha aberta
como o bico de um pintainho que espera um grão de milho, saía
uma vozinha trémula que dizia: É noite, o astro saudoso Rompe
a custo o plúmbeo céu; Tolda-lhe o rosto formoso Alvacento,
húmido véu…
Esta precoce menina foi depois D. Júlia de Mendonça, esposa
do meu chorado amigo Carlos Luís de Mendonça, hábil taquígrafo
da Câmara dos Deputados. Não correspondeu, porém, a sua
vida de mulher ao seu delicado sentimento de criança, pois, como é
sabido, esquecendo o que devia a si própria, a Carlos Luís e
à Sociedade, foi encontrada, na própria alcova conjugal, nos
braços plebeus de um Alfredo, galã do Ginásio. E era
tal a sua perversidade estes pormenores não são indiscretos,
pois que os dois esposos repousam no cemitério dos Prazeres
que tirava da gaveta do seu esposo as melhores camisas e as ceroulas mais
finas, com que presenteava o abjecto comediante, que a seduzira pelos cabelos
encaracolados e os olhos langorosos de trovador de balada. Ah! bem mal pagou
os desvelos de sua mãe, que a educou no culto de tudo o que é
fino e delicado, ensinando-lhe, de pequena, os poemas dos nossos melhores
líricos, cercandolhe a mocidade de exemplos tão elevados.
Os cândidos lírios que tinham sido semeados naquela alma refloresceram
mais tarde em venenosas plantas! Aos sete anos, porém, era um pequenino
anjo, dotado de extraordinária memória: e nada mais doce do
que o meigo langor dos seus olhos, quando dizia, apertando as mãos
contra o peitinho, onde decerto já se rosavam os dois frutos gémeos
do seio: Meiga Lua, os teus segredos Onde os deixaste ficar? Deixaste-os nos
arvoredos Das praias d’além do mar? E mesmo o nosso Alípio,
impressionado pela revelação de uma alma tão sensível
num corpo tão franzino, não pôde conter uma exclamação:
Bravo à Julinha! Há-de ser uma mulher de grande ilustração!
Bravo, bravo! E Julinha, devorada de beijos, passava dos lindos braços
cheios de rendas da bela Fradinho, para os joelhos do respeitável coronel,
que lhe dizia: Ah! sua pequena, essa cachimónia é que
eu queria para a minha Catarina… Mas aquilo para versos é uma tumba…
Pois é grande prenda, coronel…
É grande prenda para a sociedade, Srª D. Vitorina…
Mas a rapariga nunca teve memória, e eu nunca quis puxar por ela, porque
é delicada, e filha única.
Tem razão, coronel.
Parece-me que tenho, Srª D. Vitorina.
Foi então que Alípio, que voltara para a saleta onde os homens
fumavam, viu, com espanto, o Dr. Fradinho aproximar-se dele, pedir-lhe em
nome das senhoras que recitasse «alguma coisa» ao piano, e, sem
quase lhe dar tempo a colocar no parapeito da janela o charuto meio fumado,
arrastá-lo para a sala, exclamando: Aqui o trago à força!
… E agora é obrigá-lo! Debalde Alípio expôs que
a seriedade dos seus trabalhos não lhe facultara nunca a oportunidade
de decorar as poesias sublimes dos Garretts ou dos Castilhos… Não
aceitaram a desculpa. Custava a compreender, realmente, que um bacharel formado
não soubesse alguma poesia bonita, de mais tendo, durante anos, dirigido
com tanta eloquência a Bandeira Nacional! Não, as senhoras não
lhe perdoavam. Ali estava a D. Luísa ao piano, com o pezinho no pedal
dos graves! Era necessário ser complacente! Era dia de anos
e de folia como disse padre Augusto.
Alípio via, em redor, rostos abertos num riso de admiração
antecipada, e parecendo-lhe que os olhos de D. Virgínia, cujos cabelos
loiros o tinham impressionado, se fixavam nele com uma suplicação
quase tocante, apoderou-se das costas de uma cadeira, e depois de passar o
lenço sobre os beiços, disse com gravidade: Eu obedeço
a V. Ex.as . Somente devo dizer que não sou recitador. E apenas por
comprazer… Em Coimbra, às vezes, por brincadeira, recitava, mas,
realmente, não tenho nenhuma poesia estudada… Enfim, vou dizer Ciúmes
do Céu, do nosso chorado Gomes Guiães.
A bela Fradinho feriu o teclado, e Alípio começou estes formosos
versos, que um acompanhamento doce, gemente e triste, acentuava deliciosamente:
Recordas-te, Elvira, dessa praia triste Onde passeámos, uma noite,
sós? O luar brilhava sobre o mar quieto, E tu murmuravas, a tremer-te
a voz: Para que levantas, sem cessar, poeta, A fronte, e contemplas a Lua
sem véu? Não vês tu, poeta, dentro dos meus olhos, Segredos
mais fundos que os que tem o céu? Mas os Ciúmes do Céu
são bem conhecidos. Não há em todo Lamartine um canto
mais desolado e mais filosófico. Elvira queixa-se que os olhos do poeta
se elevem constantemente, explorando os céus, indo procurar, lá
longe, o ideal, quando ele está ali perto, num olhar do ser que o adora.
Mas o poeta explica a sua alma: encontra nas grandes alturas, a que se eleva,
um gozo divino que nunca encontraria na terra. E Elvira, toda zelosa de que
haja no Universo alguma coisa que o poeta lhe prefira, mesmo o Céu,
mesmo a divina face de Deus, promete fazer-lhe conhecer um gozo maior que
lhe fará esquecer o mistério insondável que o atrai:
«Sou tua!» exclama, unindo os seus lábios aos dele num
beijo infindável. E o poeta, recordando esse momento, em que a sua
alma conheceu o êxtase supremo, exclama, torturado pela saudade: Vento
que murmuras, onde estão os ecos, O timbre divino dessa meiga voz?
Onde estão, rochedos, os ais magoados, Tristes, que soltámos
nessa noite sós? Sobre a areia branca reclinaste o corpo, Eu prendi-te
a cinta na mão palpitante…
E um beijo infinito desfez-se na aragem, Rosa desfolhada na brisa distante!
Mas nesse momento, erguendo casualmente os olhos para a porta da sala, o nosso
Alípio viu com espanto o Dr. Vaz Correia, em bicos de pés, que
lhe fazia com os olhos, com os beiços, acenos impacientes que pareciam
significar: Não! não! Cuidado! Então?…
Mas D. Luísa bateu uma nota grave e Alípio, atarantado, começou
a seguinte estrofe: Que divinos beijos, que soluços brandos, Que momento
doce, que ideal anseio…
A Lua de prata, no azul suspensa, Inundava a curva branca do teu seio.
Seio d’alabastro, cor d’espuma, Luminoso, quente, palpitante e meu!
E que me faria esquecer o mundo, Renegar a crença, proclamar-me ateu!
Vaz Correia então não se conteve: lançou no silêncio
pesado a sua grossa tosse catarrosa; e quando Alípio, naturalmente,
ergueu a vista para ele, como de resto todos os presentes, viu-o mudo, hirto,
apopléctico, cravando-lhe um olhar chamejante. Mas, levado pelo ritmo
da música, Alípio, enfiado, teve de continuar: Não mais
os meus olhos quero erguer a Deus…
A voz seca e dura de D. Laura cortou a recitação:
Virgínia! Vá lá para dentro! Vá lá para
dentro, menina, que isto não é para senhoras! E Alípio,
aterrado, reconheceu que tinha provocado um escândalo.
Com a sua penetração maravilhosa, compreendeu logo que só
se poderia salvar se conseguisse improvisar algumas estrofes, em que o poeta,
findo o seu reprovável delírio, repelisse a sedução
da carne representada por Elvira, e voltasse a orgulhosa fronte para o Céu,
vivo espelho da alma. Isto daria decerto uma formosa intenção
moral ao canto lúbrico…
Mas Alípio não era poeta! Como ele me disse depois, teria
dado, naquele momento, todos os seus trabalhos, a sua soberba dissertação
académica, os seus maravilhosos artigos políticos, para ter
a potência imaginativa de um Hugo ou de um Garrett, e improvisar um
fecho profundamente religioso, que imediatamente lhe conciliasse aquelas honradas
senhoras! Mas, na impossibilidade de o fazer, embrulhou versos, saltou estrofes,
e apressado, concluiu: Não te esqueças nunca desse instante,
Elvira, E o que me dizias, a tremer-te a voz, E o luar de prata, que inundava
a praia Onde nos amámos, uma noite, sós.
Calou-se. Vozes discretas disseram, aqui e além: Muito bonito!
muito bem! E coberto de suores frios, Alípio enfiava para a saleta,
quando Vaz Correia lhe travou do braço, rosnando com uma voz apopléctica:
Fê-la bonita! Limpe a mão à parede! Está
tudo perdido… Fez escândalo grosso!.
Ó senhor doutor, mas…
Tudo pela água abaixo! Um homem de bom-senso, um premiado!
Pôs-se a recitar dessas indecências! A mãe está
como uma fera! Tudo perdido!… escute V. Exª…
Não escuto nada. Lavo daí as minhas mãos. O
senhor imagina que se encontra todos os dias uma rapariga bem-educada, e bonita,
com doze mil cruzados de renda?
Quem? Que quer V. Exª dizer? Quero dizer que o trouxe aqui para agradar
à pequena, à mãe, ao pai, ao padre Augusto, às
Vitorinos e que o senhor, como um simplório, escandaliza as Vitorinos,
o padre Augusto, o pai, a mãe e a pequena! Limpe a mão à
parede, e… chafurde no atoleiro!
V. Exª é severo…
Severo? O senhor chama-me severo? O senhor acha de bom-senso, pôr-se
no meio de uma sala a dizer obscenidades? É uma poesia…
É uma obscenidade! Eu não sabia… E uma poesia conhecida…
Recita-se em toda a parte.
Isto aqui não é toda a parte. Isto aqui é a casa da
D. Laura e do padre Augusto.
Aqui recita-se o Agnus Dei e a ladainha… E em dias de festa, em dia de
anos, por excepção, a pequena, por galantaria, recita a Lua
de Londres!…
Vou pedir desculpa à Srª D. Laura disse Alípio com decisão.
Lavo daí as minhas mãos respondeu o doutor friamente.
E Alípio, imediatamente, com aquela enérgica decisão
que mais tarde, nas crises políticas, tantas vezes lhe deu o triunfo,
dirigiu-se para o sofá de damasco vermelho, onde D. Laura, erecta,
pálida, o nariz mais longo, o recebeu de olhos chamejantes.
Minha senhora, eu venho dar uma explicação a V. Exª.
E uma indecência, senhor doutor… vir a uma família…
Eu rogo a V. Exª o favor de um momento, um momento só. V. Exª
é muito cristã para me condenar sem me ouvir. Direi só
a V. Exª crê V. Exª que eu viria a uma casa, a casa de V.
Exª, que eu respeito, que sempre respeitei como uma das senhoras mais
virtuosas de Lisboa, um modelo de qualidades cristãs, um anjo de caridade,
uma mãe exemplar que eu viria de caso pensado afrontar os princípios
mais sagrados princípios que são os meus? V. Exª responda
a isto. Eu peço a V. Exª que responda a isto.
Foi justamente por isso, Sr. Alípio, que me escandalizei…
Que V. Exª considere. Pedem-me para recitar. Para ser agradável…
D. Casimira Vitorino, que estava ao lado, hirta, sinistra e enrugada, interrompeu:
Escusava, para ser agradável, de se pôr a dizer porcarias.
O Srª D. Casimira, ó minhas senhoras, por quem são! V.
Ex.as bem vêem… Os Ciúmes do Céu, são uma poesia
conhecida, considerada pela melhor crítica como uma magnífica
peça lírica… Refiro-me à forma. O assunto, confesso,
é torpe, é infame… Mas, quando se recita, é para se
apreciar a forma. E como uma música ao ouvido… Eu não sei
outra poesia de cor…
Não me lembrei, de repente, daquela abjecta cena no areal… Depois,
levado pelo fogo da declamação… Mas acreditem V. Ex.as que
compreendo a sua desaprovação, acuso-me, quero-me mal por a
ter recitado como além disso se recita em casas muito respeitáveis…
Mas confesso que o assunto é torpe… V. Exª não me conhecem
mas o Dr. Vaz Correia conhece os meus princípios morais, o meu horror
à devassidão, a minha indignação com todos os
casos de infidelidade conjugal, enfim, as minhas convicções.
Apelo para ele…
E sem esperar a resposta, curvando-se profundamente, afastou-se, atravessou
a sala, indo encalhar junto da mesa do voltarete.
Frescalhotes, os versos disse-lhe o Conselheiro Andrade.
Alípio acudiu: Oh! Sr. Conselheiro, nem me fale nisso! Que desgosto…
Eu não imaginei…
Qual história! Eu, não me pareceu bem por causa das pequenas,
mas cá por mim, gosto de versinhos picantes… Lembra-se do Bocage?
Sete vezes amor voltou, é… O quê, três matadores? O amigo
Torres, o senhor muda-lhes as cores, com certeza! No entanto Alípio,
da mesa do voltarete, seguia os movimentos do padre Augusto; vira-o erguer-se
pesadamente da cadeira, ir fazer uma cócega no pescoço da Julinha;
depois, com as mãos por baixo das abas do casaco, fazendo-as saltar,
conversar, curvado, com a bela Fradinho: finalmente, devagar, ir para a Saleta
dos Fumistas. Alípio precipitou-se logo, e dirigindo-se vivamente a
ele: Ó Sr. Padre Augusto, eu, sem ter a honra de conhecer V. Exª,
venho pedir-lhe um favor. V.
Exª é um sacerdote de grande ilustração, de grande
virtude, de grande eloquência, e deve compreender a minha situação.
Eu, pediram-me para recitar…
O padre Augusto que conservava uma das mãos com o cigarro por trás
das costas, disse, raspando o queixo com a outra: Homem, ele não é
lá por dizer… Mas olhe que os versos são de arrepiar… Eu
estava a vê-los diante de mim, no areal, a mulher deitada, o homem…
Ó senhor doutor!…
Mas V. Exª sabe o que é poesia: questão de imaginação,
de exageração! Mas é que realmente está a gente
a vê-los. È que se me não tira o quadro dos olhos! A mulher
toda desapertada… Foi um desgosto para a Srª D. Laura. E se V. Exª
soubesse com que cuidado, com que recato tem sido educada a Virgininha. E
a primeira que ela ouve… É a primeira e é de mão-cheia!
Pois Sr. Padre Augusto, V. Exª é um sacerdote, e eu, acredite,
tenho pelo clero o respeito mais profundo. Verdadeiramente, curvo-me diante
de V. Exª porque tem experiência, e sei que virtude, que saber,
que dedicação se escondem debaixo de uma batina modesta… E
realmente o que eu desejo é que V. Exª seja verdadeiramente um
sacerdote cristão. Isto é, que restabeleça a harmonia
e que dissipe a irritação da Srª D. Laura. Eu já
lhe expliquei, já lhe supliquei… Mas fi-lo a tartamudear… A sua
virtude inspira-me um respeito! Desejo que V. Exª a convença de
que eu, foi na minha boa fé, na minha inocência, por estupidez
aí está o que foi por estupidez, sem reparar, que comecei a
recitar… E aqui lho digo em segredo, suprimi várias estrofes, as
piores! Lembrei-me a tempo… V. Exª faça-me isto. Não
Lhe ofereço a minha dedicação, porque ela lhe é
inútil; mas se, como advogado, como jornalista, como homem, como crente,
puder um dia ser-lhe prestável, é dizer: aqui, Alípio!
e Alípio lá estará, ao pé de V. Exª.
Ó senhor, muito obrigado, muito obrigado! Não é para
tanto. Deixe estar que eu falarei a D.
Laura. Eu falarei. Há-de se arranjar… Há-de ficar tudo em
paz.
Agradeço muito a V. Exª disse Alípio; e ia a retirar-se
quando a voz do padre Augusto o chamou com um psiu! discreto.
Alípio voltou-se, e o padre, levando-o para o vão de uma janela:
Desculpe a curiosidade. Mas eu, nestas coisas de literatura, sou curioso.
Sou apreciador.
Gosto de bons versos… quando são bons! E baixando a voz: Vamos
lá a ver como são as tais quadras…
Quais? As que suprimi? Sim, as que suprimiu.
Ah, deliciosas! E, complacente, o nosso Alípio recitou ao ouvido
do padre Augusto estas estrofes de um ardente erotismo lírico: Fria,
me dizias! Fria, tu, mulher? Mas esses teus braços que s’estorcem,
loucos, Esse frágil corpo que o delírio agita, Dessa ardente
boca os gemidos roucos? Porque balbucias no delírio, diz? Porque desfaleces,
adorada amante? Oh! dá-me os teus lábios, oh, invoca a morte…
Que morrer é doce neste doce instante! O padre Augusto coçou
vivamente a cabeça: Hum! E o que eu dizia, é estar a vê-los.
É que os estou a ver! Pois é uma bela poesia… E lá
direi a D. Laura: tudo se acomoda, tudo se acomoda… Bela poesia! Durante
o resto da noite a atitude de Alípio foi reservada e prudente. Passou-a
junto da mesa do voltarete, em silêncio, seguindo com uma atenção
grave o interessante movimento das vazas. Mas, como me confessou mais tarde,
«tinha a cabeça em fogo». As palavras do Dr.
Vaz Correia voltavam-lhe constantemente à memória, tocando
a rebate e alvoroçando-lhe a imaginação: «Eu trouxe-o
aqui para agradar à mãe e à pequena! E parecia-lhe então
que no seu futuro, que ultimamente se carregara, apareciam, aqui e além,
como abertas reluzentes, clarões entrevistos de felicidades possíveis!
Doze mil cruzados de renda! E o Desembargador, com aquela obesidade, mórbida,
D. Laura, com aquela amarelidão artrítica, não podiam
decerto, coitados, durar muito… Os cabelos de Virgínia eram na realidade
deliciosos… E uma cadeira em S. Bento tornar-se-ia decerto acessível
a quem dispusesse de uma renda de doze mil cru-zados. Excelente casa aquela:
mobília sólida e útil, boas pratas, bom piano! E o seu
desejo de agradar à família, aos amigos, era tão intenso,
que, tendo o Conselheiro (que perdia) falado com irritação em
«calistos», o nosso prudente Alípio levantou-se sem ruído,
afastando-se discretamente.
A sua soirée fora até ali singularmente infeliz: querendo
ser amável com a bela Fradinho, vira nos olhares indignados das senhoras
que se suspeitava das suas intenções; desejando dar à
sociedade o gozo de uma bela poesia bem recitada, ofendia os sentimentos pudicos
de D.
Laura; pensando lisonjear o Conselheiro pelo prazer que manifestava em o
ver jogar, encalistava-o! Então, para não chocar nenhuma susceptibilidade,
para não ferir nenhuma conveniência como um homem que numa loja
de bric-à-brac não se move, com medo de partir alguma peça
cara o nosso Alípio refugiou-se no vão de uma janela, e ali
ficou, entre as cortinas, solitário, imóvel. Esse isolamento
voluntário, porém, foi-lhe a breve trecho amplamente compensado:
quando examinava, através da vidraça, o céu que se toldava,
um ruge-ruge de seda correu sobre a esteira da sala, e voltando-se, pôde
ver D. Virgínia que passava, e que lhe deu um longo olhar, um olhar
de muda repreensão, como se ela também lhe quisesse dizer: Para
que levantas, sem cessar, poeta, A fronte e contemplas a Lua sem véu?
Não vês tu, poeta, dentro dos meus olhos, Segredos mais fundos
que os que tem o céu? Foi grande a sua tentação de entrar
na sala, de falar com ela. Reteve-o, porém, o receio da indignação
de D. Laura, quando visse o homem que recitava versos lúbricos em conversa
íntima com sua filha.
Por isso, e porque eram onze horas, foi despedir-se de D. Laura; e qual
não foi a sua comoção quando a ouviu, com uma voz que,
agora, era quase branda e amiga, dizer-lhe: Quando quiser, senhor doutor,
esta casa está às suas ordens. Teremos muito gosto em o ver…
Ao pé dela, padre Augusto sorria e o nosso Alípio compreendeu
que era à diplomática intervenção do honrado sacerdote
que ele devia aquela benevolência inesperada.
Que influência ele tinha, o reverendo! Tudo em D. Laura mudara: a
voz, o olhar, e até a mão que, agora, lhe pareceu menos hirta,
mais quente, mais humana.
E ao descer, abafando-se cuidadosamente no seu cachené, perguntou
ao criado que o acompanhava: Sabe-me dizer onde mora o Sr. Padre Augusto?
Às portas de Santo Antão, 36, segundo, meu senhor. Em casa da
Gervásio.
E daí a dois dias, como havia em casa da Adelaide Gervásio
um quarto devoluto, Alípio tomava-o e passava a ser o companheiro,
o confidente e o amigo do benévolo sacerdote.
Muitas vezes me disse o Conde, anos depois, que esta convivência com
o padre Augusto lhe fora extremamente instrutiva, porque o esclarecera definitivamente
sobre os costumes íntimos dos senhores eclesiásticos, e destruíra
muitos prejuízos que uma tradição injusta formou em volta
do clero, em hostilidade aos excessos dos frades. Assim se convenceu que é
absolutamente infundada a reputação que têm S. Ex.as de
costumes lúbricos. «Durante dezoito meses que vivi com o padre
Augusto, Zagalinho, nem por palavras, nem por olhares, nem por obras, o vi
desviar-se da regra imposta pelos votos. Um modelo de castidade, Zagalinho!
Um modelão! Ele mesmo, pelos seus olhos, se certificara desta verdade.
O seu quarto e o do padre Augusto eram separados por um tabique, onde outrora
houvera uma comunicação sem porta. Esta abertura, para isolar
os dois quartos, fora depois tapada com uma simples lona coberta de papel
pintado, onde um pequeno rasgão triangular permitia a Alípio
mergulhar um olho observador no interior do quarto do reverendo. Conseguiu
assim verificar que este homem inteligente poderia ser comparado (se tal comparação
não fosse ofensiva da sua qualidade de sacerdote cristão) ao
profeta do Islã, de quem as legendas do deserto celebram os costumes
simples e o amor das ocupações domésticas. O reverendo
sacerdote, ele próprio, passajava as suas meias, cosia as suas voltas
e limpava a batina com benzina; vivia arrumando, espanejando o quarto, e todos
os dias polia o seu candeeiro de latão, com uma dissolução
de ácido oxálico que ele mesmo ia comprar à Farmácia
Azevedo. Pendurado defronte da janela, tinha um canário de que tratava
com cuidados femininos. À noite, ao recolher, dispunha sobre a mesa
um covilhete de marmelada, uma garrafa de Porto (de que D. Laura o tinha sempre
bem provido) e com satisfação e método, tomava a sua
ceia, tendo defronte o breviário aberto que ia lendo. Alípio
nunca o viu tomar mais de meio cálice de Porto, aos pequenos goles,
que conservava um momento na boca, saboreando-lhe o aroma, e que engolia com
um estalo plácido. Depois, despia-se, dobrava a roupa com método
minucioso e daí a pouco ressonava com estridor. Vida de um santo! Uma
tarde de grande calma, em meados de Agosto, a engomadeira da casa, depois
de levar a roupa a Alípio, entrou no quarto do padre Augusto. Era uma
formosa rapariga. Alípio imediatamente correu a aplicar o olho ao rasgão
da lona, a observar o que faria o eclesiástico, só no quarto
com a engomadeira, naquela tarde de Verão em que a casa estava solitária
e calada. Padre Augusto dormitava na sua poltrona, com o lenço de seda
sobre o rosto, as pernas estendidas, as mãos sobre o ventre. Alípio
julgava.39 que passaria ao menos os dedos pelo queixo da rapariga, que lhe
beliscaria o braço apetitoso. Pois não: ergueu a ponta do lenço,
e vendo com o olho meio fechado que era a engomadeira, continuou a sua sesta
plácida! Excesso de quebreira, dir-se-á. Não, porque
daí a pouco Alípio ouviu-lhe dizer por baixo do lenço:
Ó menina, que não esqueça o par de peúgas que
ficou da outra vez.
Tão grande era a sua indiferença às tentações
do amor! Era, além disso, sóbrio o que destrói inteiramente
a conhecida e lendária gula canónica e não de todo hostil
às profanidades da arte, pois que, sempre que o homem do realejo fazia,
ao cair das tardes de Verão, o seu giro no bairro, padre Augusto propunha
entre os hóspedes da D. Adelaide uma subscrição de cinco-réis
por cabeça, para mandar tocar ao italiano as peças escolhidas
da Norma, que ele escutava com deleite.
O fraco deste santo era o alho; gostava dele cru: esfregava com alho o gume
da faca, o miolo do pão, o fundo do prato, e dizia sempre depois desta
operação: Muito estomacal, caros companheiros, muito estomacal…
Não era um fanático; nunca a sua conversação
recaía sobre «questões religiosas». Quando se falava
diante dele do progresso das ideias revolucionárias, não se
exaltava, mas, coçando o queixo, dizia: Pois será o que quiserem,
caros companheiros, será o que quiserem. Mas lembrem-se das palavras
de Cristo: «Não prevalecerão contra ele as portas do Inferno;
a barca de Pedro não se submergirá!» E se ouvia algum
dos companheiros um certo Azevedo do Ministério do Reino, sobretudo,
proferir impiedades ou achincalhar os dogmas, o bom sacerdote sorria: Tudo
isso é muito bom enquanto se tem saúde, amigo Azevedo. Mas quando
vem a velhice, e as doenças, e o final… Eh! Eh! O amigo verá
como se chega às boas ideias. Verá como ainda me manda chamar!
Não, que a Eternidade é coisa séria! Tal era este santo
homem. As suas ocupações eram simples: de manhã, dizer
missa em S.
Domingos; durante o resto do dia, salvar a alma de D. Laura.
Nem gula, nem lubricidade, nem ambição. Os três Inimigos
da alma, da Cartilha, os três sinistros colegas Mundo, Diabo e Carne
que de braço dado rondam em volta da humanidade, à caça
das almas indefesas, ou nunca ousaram aproximar-se deste varão impecável,
ou, se o fizeram, foram vergonhosamente escorraçados, como ratos se
me permitem a comparação surpreendidos sobre um velho pedaço
de queijo.
A admiração que ele inspirou a Alípio foi grande e
duradoira.
Muitas vezes ouvi o Conde afirmar, quando se agitavam as grandes questões
do Clero, do Ultramontanismo: Não, não… Não é
tanto assim! O Clero é extremamente virtuoso. Olhe, um padre conheço
eu, o padre Augusto, que foi meu companheiro nas Portas de Santo Antão…
Uma vez…
E era certo então vir alguma deliciosa anedota, em que as virtudes
do padre Augusto resplandeciam, como jóias fulgurantes delicadamente
engastadas.
E julgando todos os eclesiásticos, de todo o Universo, por este sacerdote
que conhecera na mocidade tanto o seu espírito prático amava
as opiniões a posteriori e fundadas na experiência o Conde nunca
concebeu o clero senão como uma classe cheia de virtudes, passajando
meias, indiferente às engomadeiras e cheia de benevolência pelas
fraquezas humanas.
Poucos dias depois da sua instalação na casa de hóspedes
de D. Adelaide, a intimidade de Alípio com o padre Augusto era tão
completa, que à noite, depois de deitados, ainda conversavam através
do tabique. O assunto nunca variava: os Amados, as virtudes de D.
Laura, as prendas de D. Virgínia, as capacidades do Desembargador,
os méritos da Ana cozinheira de tal sorte que ao fim de uma semana
Alípio conhecia os Amados, os seus hábitos, os seus fracos,
as suas propriedades, os seus gostos, as suas ideias, melhor do que se, com
a sua própria imaginação, os tivesse concebido e descrito
nas folhas manuscritas de um romance.
Foi deste modo que ele veio a esclarecer qual o tipo de marido que D. Laura
desejava para sua filha. Esse tipo não demonstrava ambições
desordenadas: um bacharel, de costumes honestos, com uma carreira começada,
temente a Deus, sem tísicos na família, observando os jejuns,
económico, caseiro e pontual à missa.
Alípio, com uma grande humildade, interrogou-se, sondou-se, folheou-se
como quem folheia um livro, e achou que correspondia exactamente ao tipo de
D. Laura. Estou certo de que, se encontrasse em si condições
divergentes se se reconhecesse inclinado à frequentação
dos bilhares, ou fraco diante da beleza, ou se algum seu parente tivesse deitado
sangue pela boca, estou certo (pois conheci bem aquele carácter rectilíneo
e rígido), de que ele se teria considerado indigno de ser o marido
da loira Virgínia. Mas como nenhuma destas circunstâncias objectáveis
concorria nele, Alípio não hesitou, e, habilmente, deixou ver
ao padre Augusto que ali, do outro lado do tabique, existia um bacharel com
todas as qualidades de saúde, de fé, de moral e de dis-ciplina
que D. Laura exigia do futuro marido de sua filha Virgínia, loira como
os loiros trigos, segundo a formosa expressão do poeta.
Padre Augusto, de resto, reconhecia-o; e a sua simpatia crescia por aquele
moço que não blasfemava, o acompanhava no seu passeio higiénico
ao comprido do Cais do Sodré, que o tinha presenteado com duas formosas
navalhas de barba, e que, uma noite em que ele estava sofrendo de um defluxo
terrível, lhe pusera um sinapismo de mostarda com cuidados e carinhos
de enfermeira. De tal sorte que esse moço exemplar, benévolo,
doce, instruído, se tornara a preocupação dominante do
bom sacerdote; e mal chegava a casa do Desembargador, ainda antes de se servir
a sopa, padre Augusto, puxando o guardanapo para o pescoço, encetava
o assunto querido: Alípio! Todavia, D. Laura podia verificar por si
mesma as qualidades de Alípio ou pelo menos aquela que mais a interessava:
a sua devoção. Na missa das nove, em S. Domingos, no Lausperene,
no Santíssimo, no Mês de Maria, ela podia ver aquele bacharel
impecável, ora de joelhos, devorando as orações do seu
ripanço, ora de pé, a cabeça caída numa meditação
grave, ora estático, contemplando a edificante cintilação
dos altares. Nunca os seus olhos se distraíam, solicitados por algum
chapéu mais alto em que se destacasse a cor viva de um ramalhete, ou
por qualquer ruge-ruge de folhos de seda. Não. Ali estava, sério,
compenetrado, circunspecto, reverente. À saída, ao passar por
D. Laura, uma cortesia respeitosa; e depois, taque-taquetaque, no seu caminho,
com o seu livro debaixo do braço, os olhos nas pedras da calçada.
É um modelo dizia um dia D. Laura. Um rapaz assim é que dá
gosto a uma mãe.
Estas palavras, repetidas à noite pelo padre Augusto, mostraram a
Alípio que ele podia enfim, com honestidade, fazer ao sacerdote a confidência
do seu sentimento e da sua ambição.
Fê-lo com palavras dignas, graves, elevadas… Desde que vira D. Virgínia,
amava-a. Amava-a, menos pela sua beleza que era grande, que era cativante
do que pelas qualidades morais que ela não podia deixar de ter, sendo
«filha de tal mãe». Não se atrevera, ao princípio,
a dizer-lho a ele, padre Augusto; não o conhecendo bem, poderia suspeitar
que, pobre bacharel, ele apenas aspirasse ao dote da senhora. Mas agora o
padre Augusto conhecia-o, não é verdade? Estava bem certo do
seu desinteresse, do seu desprendimento de todas as ambições
de dinheiro não é verdade? Julgava então poder desabafar
no seio de um amigo sincero! Amava a Srª D. Virgínia! Mas uma
coisa pedia.41 ao padre Augusto uma coisa lhe pedia, ali, como amigo, como
companheiro que não dissesse nada às senhoras! Se ele tivesse
urna posição social, uma sólida fortuna em terras, um
título de fidalguia deste reino, então, decerto, não
hesitaria em revelar o alto anelo do seu coração! Mas estava
apenas no começo da sua carreira, infelizmente. Por modéstia,
por dignidade, por circunspecção, devia calar-se… E todavia,
sentia em si energias, delicadezas, todas as condições para
fazer feliz, bem feliz, uma menina… Sabia o padre Augusto o que ele desejaria?
Casar com ela, ter uma pequenina casa em Campolide, ilustrar-se na carreira
do foro, viver com conforto, e ter um velho amigo respeitável que viesse
todos os dias comer a sopa com intimidade e fazer a sua partida de voltarete…
Um amigo como o padre Augusto… Que se ele casasse, o padre Augusto não
havia de ficar a viver ali, no quarto estreito da Adelaide Gervásio,
com janela para as pedras do saguão! Havia de viver com eles, ter o
seu talher à mesa, a sua roupa branca bem tratada, o seu caldo de galinha
à noite, os carinhos de uma família… Mas enfim, tudo aquilo
eram sonhos…
Daí a dias, ao sair da Igreja de S. Domingos, Virgínia que,
como me afirmou o Conde mais tarde, tinha, em rapariga, o hábito de
escutar às portas ao ver Alípio, corou prodigiosamente.
Na semana seguinte, Alípio recebeu do padre Augusto um convite verbal
para ir passar a noite com os Amados. Aceitou. Foi uma soirée íntima
grave, um pouco silenciosa, edificante. Alípio falou da sua excelente
tia, da sua caridade e da caridade dos Noronhas. Contou a maravilha de um
velho, ao pé de Penafiel, que vivia havia vinte anos em estado de graça;
narrou anedotas piedosas de Fr. Bartolomeu dos Mártires; provou como
todos os países protestantes a Inglaterra, a Alemanha, a Suécia
iam numa decadência progressiva e fatal; voltou as páginas da
Prece à Virgem que Virgínia tocou com mimo ao piano, e fez,
com padre Augusto, o voltarete do Sr. Desembargador.
E, quando recolhia com o sacerdote às portas de Santo Antão,
teve o gozo de lhe ouvir estas palavras memoráveis: Não há
que ver, o amigo deu no goto às senhoras! E todos aprovamos. Isto é,
o nosso Desembargador é que parece um bocado renitente…
Se a Srª D. Laura quiser… Isto é, se o padre Augusto quiser!…
Não digo que não. Estimam-me na família… Vão
muito pelo que eu digo… Mas às vezes o nosso Desembargador tem birras!
Tinha começado a chuviscar, e para que o padre Augusto, tão
sujeito a defluxos, se não constipasse, o nosso Alípio, sempre
bom, sempre afectuoso, tomou generosamente uma tipóia.
As birras do obeso e obtuso Amado eram realmente singulares. Sem razão,
de repente, embirrava. E era então como o obstáculo bruto, inerte,
material, de um enorme pedregulho numa estrada. Era uma resistência
passiva e espessa: as bochechas tornavam-se-lhe mais balofas, as pálpebras
papudas mais pesadas, e sem dar razões, rosnava surdamente: Não
estou pelos autos… Não vai… Não me calha.
E causava indignação e horror, sentir aquela massa bestial
e adiposa, atravancando obstinadamente o caminho! O Dr. Vaz Correia, que todas
as manhãs pedia a Alípio que lhe fizesse o relato do estado
do negócio, tinha-o avisado: E cuidado com esse animal! Se ele começa
a dizer que não calha, acabou-se. Você esbarra e não há-de
ir para diante.
Como conseguiu Alípio desvanecer a resistência inerte e espessa
do Desembargador? Não possuo documentos em que possa basear uma narração
anedótica fidedigna. Sei apenas que ao fim de três meses Alípio
ia então todas as quintas e.42 domingos a casa dos Amados o Desembargador,
segundo a expressão pitoresca do Dr. Vaz Correia, começou a
«derreter». Já dizia: Não é mau rapaz…
Começa a calhar-me! Pude averiguar que o nosso fino Alípio lhe
dera uma receita para fazer chá de erva cidreira, que aliviava o Desembargador
nas suas digestões monstruosas. No dia dos seus anos, publicou na Semana
uma leve biografia, em que, num grandioso estilo à Plutarco, a integridade
do Desembargador era comparada à dos Sénecas e dos Catões.
Por fim teve ocasião de lhe prestar um serviço resplandecente,
que muito deve ter contribuído para o «derretimento» do
Desembargador.
A história foi-me assim contada: no escritório do Dr. Vaz
Correia praticava, havia anos, um certo Dr. Pimentel, moço estimável,
mas que, segundo a expressão moderna, «tinha telha».
Era um mancebo franzino melancólico, de grande nariz e lunetas de
ouro, que passava horas em silêncio, catando um a um os pêlos
do bigode.
Excessivamente metódico, sempre, antes de sair, lavava cuidadosamente
os bicos das penas de pato, para que não se estragassem. Tinha sobre
a mesa pequenas caixas feitas de cartas de jogar, com dísticos em letra
gótica que lhes designavam a serventia: caixa das penas, caixa da borracha,
caixa do limpa-penas, caixa das obreias, etc. Era tão escrupuloso das
coisas que lhe pertenciam, que fazia no alto dos seus lápis uma larga
incisão onde escrevia o seu nome.
Tinha casado novo e quando se referia a sua mulher, dizia sempre: a minha
senhora. Fora ela que lhe bordara a almofada de veludo verde sobre que se
sentava. Esta almofada era para ele objecto de uma veneração
supersticiosa: antes de se sentar, espanejava-a cuidadosamente, e ao levantar-se,
quando saía, cobria-a religiosamente com um pedaço de cassa.
O seu terror Constante era que, na sua ausência, alguém se sentasse
sobre a almofada de sua senhora; por isso, tinha preparado um letreiro que
colava com uma obreia às costas da cadeira e onde se lia, escrito a
tinta azul: «Pede-se que se respeite esta cadeira, que é do Dr.
Pimentel». Isto, porém, incitava indivíduos facetos a
sentarem-se com ferocidade sobre a almofada sagrada, e por vezes, ao entrar
subitamente no escritório, o Dr. Pimentel ficava petrificado, vendo
um corpanzil profano repoltreado sobre os veludos que sua senhora, com as
suas próprias mãos, bordara amorosamente! Tais irreverências,
para ele, eram crimes, e, com uma estrita ideia de justiça penal e
a perversidade natural aos hipocondríacos, inventou uma desforra medonha:
arranjou um prego, muito agudo, de cabeça muito chata, que colocava
sobre a almofada de bico para o ar, de modo que se algum jocoso ousasse profanar
a sua almofada, o horrível prego penetrava-lhe na carne, sendo assim
o delito imediatamente seguido da penalidade. Não revelou a ninguém
esta perfídia, nem sequer destruiu o aviso escrito a tinta azul, como
se, para gozar melhor a vingança, quisesse facilitar a ofensa.
Foi por esse tempo que uma manhã em que o Dr. Pimentel saíra,
o Desembargador Amado apareceu inesperadamente no escritório: tinha
uma demanda com um vizinho, proprietário de Campolide, e vinha falar
com o Dr. Vaz Correia, que nesse momento trovejava na Boa Hora.
Alípio, apenas avistou na porta o ventre enorme do Desembargador,
precipitou-se a tirar-lhe o chapéu das mãos, a perguntar-lhe
pelas senhoras; ofereceu-se mesmo para ir à Boa Hora buscar o Dr. Vaz
Correia.
Nada de incómodos disse Amado eu espero. Que, com este calor, até
não se me dá de descansar…
Quer V. Exª um copo de orchata? (o Dr. Vaz Correia tinha sempre, na
saleta de dentro, uma caixa de orchata fresca, nos meses de Verão).
Pois venha de lá a orchata. Vai de refresco. Alípio entrara
na saleta e preparava.43 a bebida quando um berro medonho vindo do escritório
atroou a casa! Correu, aterrado. De pé, junto à poltrona do
Dr. Pimentel, lívido, os olhos esgazeados, a boca aberta, exalando
mugidos de dor, o Desembargador apertava nas duas mãos abertas as suas
rotundidades posteriores! Que foi, Sr. Desembargador, que foi? Enterrou-se-me
uma coisa! O escrevente que acudira, pálido, aos mugidos do magistrado,
teve um grito de horror: Deve ser o prego do Sr. Dr. Pimentel! E desapareceu,
aterrado decerto das consequências de tão grande crime.
Sem perder o sangue-frio, o nosso Alípio puxou o ferido para junto
da janela, acocorou-se, levantou as abas do casaco, e logo descobriu a cabeça
amarela de um prego reluzindo sobre a calça preta de S. Exª, cravado
na carne.
O Desembargador, quase desmaiado, com camarinhas de suor frio na testa,
não queria que Alípio arrancasse o prego: ouvira dizer que uma
faca, um punhal, um ferro que se arrancam de uma ferida, causam imediatamente
a morte pela hemorragia. E com gemidos roucos, pedia um médico.
Mas o escrevente desapareceu cobardemente Alípio estava só
no escritório. Então, com uma decisão brusca, como as
que se contam de Dupuytren, de Nélaton, dos grandes operadores clássicos,
Alípio puxou vivamente o prego. O Desembargador deu um mugido terrível,
e Alípio, sustentando-o, amparando-o nos braços, levou-o até
à poltrona amiga do Dr. Vaz Correia.
S. Exª, porém, arquejava de dor. Parecia-lhe que tinha ali uma
brasa, sentia o sangue empapar-lhe a ceroula… Queria um médico.
Então, num relance, Alípio sentiu que tinha ali, ferido, necessitando
auxílio, um magistrado, um proprietário, um cristão,
um semelhante, o pai de Virgínia, e com uma voz repassada de cuidado
e de solicitude: Não se assuste, Sr. Desembargador. Não é
nada… Venha V. Exª comigo…
E amparando-o sempre, levou-o consigo a um quarto desabitado, que era a
cozinha daquele primeiro andar: aí havia um lavatório e uma
esponja dependurada na parede por um barbante.
Com cuidado, tirou o casaco ao Desembargador, desabotoou-lhe com respeito
as calças, as ceroulas de linho, e acocorando-se, examinou a parte
ferida de onde corria um fio de sangue breve, como um pedacinho de retrós
vermelho.
É muito fundo? gemeu o magistrado.
Uma bagatela, Sr. Desembargador, uma arranhadura.
Limpou com a toalha o breve fio de sangue; encheu a bacia de água
fresca, tomou a esponja e pedindo ao respeitável magistrado que se
agachasse, ele mesmo, Alípio Abranhos, da casa dos Noronhas, esponjou
com amor a nádega obesa de S. Exª! Que alívio! roncava
o magistrado, respirando com esforço.
Fresquinho, hem, Sr. Desembargador? E esponjava solícito, tomava
mais água na cova da mão, chapinhava a carne mole.
Melhor, Sr. Desembargador? Mais aliviado, amigo, mais aliviado…
Depois, com uma toalha limpa, secou a pele, repuxou a camisa, apertou as
ceroulas de S. Exª, que o deixava fazer, com os braços moles,
as pálpebras mórbidas, bufando, a face lívida, toda banhada
de suores dolorosos.
Depois, deu-lhe um copo de orchata, acomodou-o no canapé, e agarrando
no chapéu, correu a buscar uma tipóia.
Ele mesmo o acompanhou a casa recomendando ao cocheiro que fosse devagar,.44
para que os solavancos não irritassem a parte ferida.
O Desembargador esteve uma semana no leito: e ao médico que o vinha
ver, ao padre Augusto, a D. Laura, a Virgínia, a todos os amigos da
casa, repetia: Aquilo foi o meu Anjo salvador! Referia-se a Alípio,
que, dois meses depois, numa manhã de Outubro, casava com D. Virgínia
Sarmento Amado, encantadora herdeira de doze mil cruzados de renda.
Foram passar a lua de mel para a casa de Campolide. Porém, deste
período de felicidade profunda, nada deve escrever a minha pena. A
alcova nupcial tem o augusto recato de um templo, e à sua porta o anjo
dos amores delicados vela com as asas abertas, o olhar risonho, e o dedo sobre
os lábios.
Deixemos, pois, este par enamorado passear sob os murmurosos arvoredos da
quinta, ao rítmico som das águas que cantam nas bacias de mármore
e vejamos o que a essa hora se passava na terra.
Para qualquer nação que volvamos os nossos olhos, vemos, sob
a aparente tranquilidade, fazer-se uma muda transformação interior.
É este realmente o momento em que se preparam os factos que deram
à história do século XIX o seu carácter grandioso.
Ali vemos, no pequeno Estado da Prússia, um militar com cara de freire
velho, sob um capacete de forma bárbara, preparar ocultamente, por
desconhecidos processos científicos, a destruição infalível
dos antigos exércitos, comandados pelos métodos antigos da inspiração
e da bravura; e ao lado, um grosso diplomata de cachaço de touro, tão
seguro de si como se tivesse na mão o dado de ferro do destino, tramando
apoderar-se da Europa Central, dilatando o pequeno Estado do Brandeburgo até
às proporções de um Império Germânico, e
soprando um esguio Hohenzollern devoto, até lhe dar a corpulência
heróica de um César gótico.
Na Itália, vemos a sinistra matilha republicana e mazinista, a que
se aliou, ai! uma dinastia gloriosa alucinada de ambição, arremessar-se,
aos clamores fanfarrões de um Garibaldi, contra o trono de S. Pedro
onde um velho sublime ora imperturbavelmente, e aos que lhe arrancam a posse
de algumas léguas de terra, responde pela voz de um concílio,
apoderandose do domínio ilimitado da alma universal.
Na Espanha, vemos generais despeitados e insensatos, sôfregos de honras,
tramar contra o princípio de que emanam e o trono que lhes dá
significação; e decerto veremos mais tarde as paixões
plebeias, soltas por eles do garrote providencial que as mantinha, precipitarem-se
através da nação espanhola, destruindo tudo sem discernimento,
como touros devastadores à solta numa horta bem plantada.
Olhemos para a Inglaterra, esse disforme império artificial, maior
que nenhum império clássico, feito de continentes distantes
ligados entre si por fios telegráficos que pousam no fundo dos mares.
Essa imensa mole mal equilibrada ameaça a cada momento dessoldar-se,
aqui e além, na Índia, na África, na Oceânia; uma
oligarquia, mais orgu-lhosa do seu domínio universal que o patriciato
romano, mal a pode manter unida pelo ferro e pelo ouro; e no entanto a revolução
social, com um movimento preciso, compassado, geométrico, automático,
vai preparando o fim dessa oligarquia obsoleta e a dissolução
do imenso Império balofo.
Na Rússia autocrática, a só vontade de um homem, do
Homem, do Czar, realiza com uma palavra o que a América do Norte só
pode conseguir dispendendo milhares de milhões e regando o solo de
sangue: na Rússia e na América os escravos são livres.
No império, uma assinatura consegue o que na república só
pode alcançar-se com uma guerra civil profunda lição
que nos dá o poder social concentrado nas mãos de um eleito.
Voltemos, enfim, os olhos para a França a Mater-Gália: nunca
mais alta a vimos, gloriosa e firme resplandecendo sob os Napoleões.
Nunca a sua homogeneidade pareceu mais sólida e o seu messianismo mais
penetrante. Paris reedificado, arejado, verdejante, rectilíneo, resplandece.
As suas modas são por um momento dogmas, como as suas filosofias: dela
o mundo recebe com devoção a Crinoline e o Positivismo. A tra-dição
galante das classes fidalgas permanece tão inalterável, que
um descendente dos La Trémouille, que tinham precedência sobre
o Rei, paga por 25000 cruzados as botinas de cetim com que M.lle Cora Pearl
se estreia no teatro.
O formoso desdém gaulês que inspirava calembours aos que subiam
à guilhotina, conserva-se tão brilhante que, na suave praia
de Biarritz, coronéis elegantes, ouvindo o Sr. de Bismark desenvolver
os seus planos, murmuram com graça: «Que idiota!» A salutar
influência religiosa penetra por tal forma a vida social, que, mesmo
nas figuras de cotillon, as marcas mais delicadas representam mitrazinhas
episcopais e pequenos báculos de chocolate.
A galantaria francesa está tão rediviva, que um letrado da
Academia não hesita em assinar os seus escritos: Merimée, bobo
de S. M. a Imperatriz. O luxo, que promove a prosperidade industrial, é
tão refinado, que custam contos de réis as robes de chambre
do Sr. Duque de Morny e a dívida de uma virtuosa dama, à sua
costureira de roupa branca, ultrapassa a soma fabulosa de noventa e seis mil
cruzados! Formoso espectáculo de um país próspero! direis.
Ai! Ai de nós! Nesta formosa harmonia se percebem sintomas sinistros:
já o imortal Cousin jaz no seu leito de dor, com a sua doença
de fígado; já um Thiers ousa condenar a soberba expedição
do México; já o espírito frondista das salas aplaude
os epigramas de um Prévost-Paradol e os boulevards riem quando um garoto,
Rocheforte, injuria a cuia de S. M. a Imperatriz; e, suprema dor, já
César, devorado pela doença pertinaz, passa os seus dias em
banhos de sal, a pálpebra mórbida, o pulso, que um dia salvara
a ordem e a sociedade, abandonado entre os dedos do especialista Ricord. E
no entanto, de um rochedo do mar da Mancha, um personagem lendário,
um S. Paulo romântico da Santa Democracia, tão extraordinário
de génio e tão alucinado de orgulho que se confunde a si mesmo
com Deus e se crê no segredo da Natureza, escreve Os Miseráveis,
As Contemplações, A Lenda dos Séculos, e profetisa, em
atitudes teatrais, a monstruosa desforra da plebe e uma vaga fraternidade
dos homens reconciliados.
Tal é a Europa enquanto o nosso Alípio murmura ao ouvido de
Virgínia aquelas palavras eternas que há três mil anos
saem dos lábios dos amantes.
E agora volvamos os olhos para Portugal. Em Portugal, nessa época,
não vejo que se passe coisa alguma, a não ser que o Ministério
Cardoso Torres acaba de declarar que o seu programa será: Ordem, Moralidade
e Economia.
É pois nesta serena e calma unidade nacional que Alípio Abranhos
aparece e entra a passos largos nos umbrais da História.
A maneira como Alípio Abranhos foi eleito deputado, parece inteiramente
providencial. O ministério Cardoso Torres tinha, como é sabido
dos que conhecem a história política dessa época, dissolvido
as câmaras. O ministério antecedente, denominado Ministério
Bexigoso (de cinco ministros, coincidência singular, três eram
picados das bexigas) não caíra segundo os métodos parlamentares:
aluíra, sumira-se. Em plena maioria, sem razão, sem discussão,
de repente, desaparecera caso singular, depois, muitas vezes repetido, e comparável
à conhecida catástrofe da corveta Saragoça. A Saragoça,
num dia delicioso de Junho, num mar tão calmo como uma larga taça
de leite, sem borrasca, sem vento, caiu no fundo do mar. O casco, parece,
estava tão podre que se dissolveu como açúcar numa xícara
de chá. Um indivíduo que.46 estava na esplanada vendo-a dar
uma curva magnífica sob um sol resplandecente, abaixara-se para apertar
um atilho do sapato, e, ao erguer-se, não viu mais a corveta: sondou
ansiosamente com o óculo o horizonte azul-ferrete; olhou aflito em
redor, pela praia; mesmo, num gesto grotesco mas muito naturalmente instintivo,
apalpou sofregamente as algibeiras: nada! O mar brilhava sereno, azul, imóvel,
coberto de sol.
O Ministério Bexigoso acabou como a corveta Saragoça. O novo
ministério foi portanto tirado do mesmo grupo da maioria e, consequentemente,
dissolveu as câmaras, precaução exagerada, porque os chefes
da maioria afirmavam ao ilustre Dr. Cardoso que dariam ao novo governo se
ele, como o governo anterior, fosse pela Ordem, pela Moralidade e pela Economia
um apoio eficaz e homogéneo.
Razões facilmente compreensíveis determinaram o Dr. Cardoso
Torres a persistir na dissolução tanto mais quanto no primeiro
Conselho de Ministros, o Dr. Cardoso e os seus colegas, conferindo a lista
de parentes, amigos e notabilidades que desejavam fazer entrar na Câmara,
reconheceram que necessitavam de vinte e três círculos, e que
havia apenas, presentemente, quatro vagaturas. E como, além disso,
esses vinte e três indivíduos eram geralmente homens de ilustração,
de respeitabilidade, de boas letras e de fortuna, a dissolução
era justa.
S. M. concedeu-a o que produziu aquele artigo célebre do Estandarte,
jornal do Governo dos Bexigosos, que ameaçava S. M. com a sorte de
Luís XVI ou de Carlos I exactamente oito dias depois do artigo em que
o mesmo jornal comparava S. M., pelas virtudes, a Tito, pela justiça,
a S. Luís, e pelo respeito da Constituição, à
Rainha Vitória! A resposta do Globo, jornal do Dr. Cardoso Torres,
foi enérgica: dizia que só se podia responder com um chicote
a um jornalista que ameaçava com o cadafalso S. M., que, pelas virtudes,
estava muito acima de S. Luís, e, pelo respeito da Constituição,
era incomparavelmente superior a Sua Graciosa Majestade a Rainha Vitória
eloquente artigo, e que apareceu exactamente quinze dias depois de outro,
violento, em que, então na oposição, o redactor do Globo,
inspirado pelo Dr. Cardoso, dava claramente a entender que o fim provável
de S. M. seria a guilhotina de Luís XVI, ou pelo menos o cadafalso
de Carlos I! Pondo em relevo estes factos, eu não quero por forma alguma
insinuar que haja na imprensa política falta de sinceridade, de lógica
ou de dignidade. Quero apenas fazer sentir a perniciosa influência da
ambição e da paixão em espíritos cultos. Creio,
porém, que S. M., ao ver-se alternadamente destinado, pelo mesmo jornal,
ao cadafalso de Luís XVI ou à canonização de S.
Luís, decerto não experimentaria nem terror, nem vaidade, pois
que nenhuma destas ameaças representavam o desejo íntimo do
jornalista, mas eram apenas a explosão de uma cólera biliosa
ou de um reconhecimento enternecido, e, muitas vezes mesmo, uma manobra útil
na táctica da vida pública.
Um dos círculos menos disputados era, nessa ocasião, o de
Freixo de Espada à Cinta.
Propunha-se como deputado da oposição um obscuro Gervásio
Maldonado, proprietário local, com uma parentela larga na terra, interesses
de lavoura, etc., e o governo Cardoso Torres combatia-o, apresentando na lista
governamental, como candidato por Freixo de Espada à Cinta, o moço
bacharel Artur Gavião, filho do presidente do Banco Nacional, que o
pai, cansado da sua dissipação, queria forçar, pelos
deveres que lhe imporia S. Bento isto é o Parlamento a uma vida disciplinada,
sóbria e útil.
Conta-se que o Sr. Alexandre Herculano, a este respeito, dissera, com aquele
espírito misantropo que a sua voz ríspida acentuava de um relevo
amargo: Se o Gavião queria morigerar o rapaz, devia-o conservar no
bordel, e não o mandar para o Parlamento! Mas o que eu penso do Sr.
Alexandre Herculano, dos seus ditos, da sua.47 misantropia, da sua moral e
das suas letras, escrevê-lo-ei um dia, desassombradamente.
O Sr. Artur Gavião (que tão desgraçadamente morreu
depois afogado ao pé de Caxias), era pois o candidato governamental
por Freixo de Espada à Cinta, quando Joaquim Osório Teixeira,
ministro da Justiça, declarou, com decisão, que era sim-plesmente
uma afronta ao Bom-Senso, à Câmara e à Dignidade do Governo,
nomear por Freixo de Espada à Cinta um indivíduo que, às
quatro horas da tarde, descia o Chiado, numa tipóia, com meretrizes
andaluzas, inteiramente embriagado.
Gavião pai, mais tarde, afirmava que esta oposição
do ministro da Justiça não era inspirada por puros motivos de
moralidade pública, mas constituía a vingança pessoal
de uma antiga humilhação, caso complicado de letras a três
meses, etc., etc… como ele acrescentava com uma reticência maligna.
O Presidente do Conselho, porém, amigo do Gavião, e desejando
conservar ao Governo aquele sólido apoio do Capital e da Propriedade,
insistia na candidatura do libertino Artur.
Um dia, contudo, Joaquim Osório Teixeira declarou que faria dessa
candidatura uma questão pessoal, que ele não podia autorizar
o patrocinato legal do deboche, e que, se o Colega Cardoso insistisse, ele,
Joaquim Teixeira, trotaria para Sintra a pôr a sua demissão nas
mãos de S. M.
Cardoso, receando o conflito, riscou sem mais observações
da lista governamental o nome do jovial libertino.
À noite, porém, em casa, ao chá, exprimiu com azedume
o seu embaraço: não só descontentava o Gavião
pai um colosso mas aí ficava o círculo de Freixo de Espada à
Cinta vazio, viúvo…
Homem acudiu imediatamente o Dr. Vaz Correia, velho amigo da casa parece-me
que tenho exactamente o que lhe convém: o Alípio Abranhos! Cardoso
Torres não o conhecia pessoalmente. Vaz Correia, porém demonstrou-lhe
com abundância eloquente as vantagens da escolha: como família,
Alípio era um Noronha; como ilustração, um premiado;
como posição de fortuna, era genro do Amado; como experiência
política, fora redactor da Bandeira, formado na prudente escola do
taciturno e profundo Conselheiro Gama Torres; como maneiras um fidalgo; como
lealdade um Baiardo! E Cardoso, apontando-lhe imediatamente no livro de notas
que trazia sempre consigo, o nome, a idade, a morada e os prémios,
retomou a sua xícara de chá, dizendo: Pois mande-mo cá.
Metemo-lo por Freixo! As eleições realizaram-se daí a
três semanas e o ministério teve uma maioria compacta, sólida,
homogénea.
Os jornais da oposição, é certo, afirmaram que, como
corrupção, tricas, violências, peitas, influências
obscenas, não só continuavam a tradição obsoleta
dos Cabrais, mas ofereciam a evidência dolorosa da nossa decadência
social! O Estandarte dizia: «E imenso como torpeza; mas nós aplaudimos,
porque um ministério que assim procede, inspira, ipso facto, um nojo
genérico. Este governo não há-de cair porque não
é um edifício. Tem que sair com benzina, porque é uma
nódoa!» O Progresso Social afirmava: «somos o escárnio
da Europa!» A Nacionalidade informava com chiste: «Está
averiguado que a maior parte das urnas tinham fundos falsos: nada admira o
expediente, vindo de um ministério de pelotiqueiros» aludindo
maliciosamente ao ministro das Obras Públicas, cuja perícia
em fazer habilidades com cartas era geralmente estimada e muito apreciada
na socie-dade.
Mas o Globo, jornal do Governo, teve esta saída resplandecente: «O
Estandarte,.48 jornal dos Bexigosos, escreve no seu artigo de ontem: «O
governo não há-de cair porque não é um edifício.
Tem que sair com benzina porque é uma nódoa!» Este plagiato
é torpe: aquela frase foi escrita por nós, ipsis verbis, no
nº 1214 deste jornal, na ocasião em que os Bexigosos elegeram
a câmara passada».
Ambos os partidos se consideravam reciprocamente uma nódoa e se queriam
suprimir com benzina! Ah, quando se compenetrará a Imprensa da elevação
do seu sacerdócio? A única eleição que nunca foi
vituperada nos jornais da oposição foi a de Freixo. Com efeito
Alípio Abranhos, logo que soube da sua nomeação, prevendo
os uivos da minoria, correu as redacções, onde, do tempo da
sua colaboração na Bandeira, conservara ligações
afectuosas, e foi dizendo, aqui e além, com uma notável habilidade
política: Vocês compreendem. Eu venho por Freixo. Venho pelo
Governo… Mas eu não me liguei, não me comprometi. Estou na
expectativa. Vocês compreendem…
Compreenderam, creio e a Nacionalidade escreveu mesmo: «o melhor resultado
destas eleições, foi mandar à Câmara o nosso antigo
condiscípulo, o Ex.mo Alípio Abranhos, esposo da formosa filha
do digno Desembargador Amado, e que já nos bancos da Universidade era
justamente reputado pelos seus dotes notáveis de orador».
Eu conservo religiosamente a carta que Alípio Abranhos escreveu ao
Dr. Cardoso Torres, agradecendo a sua eleição. Considero-a sinceramente
um modelo epistolar; ela pode realmente sofrer comparação com
todas as cartas históricas sem exceptuar a célebre carta do
Dr. Samuel Johnson ao Conde de Chesterfield. Eis esse notável monu-mento
de estilo: Ex.mo Sr.
Vindo expressar a V. Exª o meu reconhecimento imorredouro pela maneira
espontânea como V. Exª me abriu de par em par as portas da vida
pública, eu não julgo necessário produzir bem alto a
afirmação da minha profunda adesão ao Governo. O ministério
a que V. Ex.0 preside representa o que há de mais elevado como inteligência,
de mais completo como ciência de administração, de mais
estrito como moral, e de mais genuíno como elemento conservador. Não
há quase mérito em que um homem que só deseja para o
seu pais instrução, administração proba, moral
e ordem dê o seu apoio incondicional e absoluto a quem tão alto
garante a prosperidade pública.
Quero contudo expressar a V. Ex.0 a minha dedicação particular
para com a pessoa de V. Exª e rogar-lhe que me dê o mais depressa
possível ocasião de publicamente lha patentear não porque
me pese esta honrosa dívida de gratidão, mas porque me consumo
no desejo de dar publicamente um testemunho da minha admiração
pelas altas qualidades políticas e individuais de V. Exª.
De V. Exª, etc.
ALÍPIO ABRANHOS.
Esta carta deu ocasião a que se estabelecesse nas regiões
políticas um útil e nobre princípio, que muito tem concorrido
para manter perante o país o prestígio dos homens públicos.
Quando, três meses depois de a ter escrito, Alípio Abranhos
passou para os bancos da oposição e pronunciou aquele notável
discurso em que provou claramente ao país que o Governo Cardoso Torres
não possuía nem inteligência, nem ciência, nem.49
ordem, nem economia, nem moralidade, Cardoso Torres, num condenável
impulso de vingança mesquinha, quis tornar pública a carta que
eu respeitosamente citei.
Não havia decerto nada de desagradável para Alípio
Abranhos na publicação dessa eloquente página de prosa,
mas tal publicidade, autorizada por tal individualidade, equivalia a desconhecer
o salutar princípio do segredo da correspondência privada, em
matéria política.
Por isso, em defesa do princípio, Alípio Abranhos intimou
Cardoso Torres a que não publicasse a sua carta.
As negociações foram longas e muito delicadas. Mas em presença
da opinião de vários membros do Governo, de numerosos membros
da maioria, de jornalistas e notabilidades de todos os credos políticos,
ficou estabelecido que uma carta particular não sofria publicação;
que tal regra, a desprezar-se, estabeleceria um pernicioso sistema de vinganças
e de represálias; que, nesse caso, muitas cartas, que por motivos óbvios
convinha guardar nas secretarias, apareceriam a público; e finalmente
que era do interesse de todos os partidos e indispensável à
sua consideração pública, que nunca vissem a luz da publicidade
documentos privados, isto em obediência àquela sábia regra
política, tão pitorescamente formulada por Napoleão I:
«é necessário que a roupa suja seja sempre lavada em família!»
Temos pois Alípio Abranhos deputado por Freixo de Espada à Cinta.
A sua surpresa, ao ver-se subitamente e inesperadamente instalado numa cadeira
em S. Bento, foi na realidade deliciosa.
Decerto, contava entrar um dia na vida pública, onde logicamente
o chamavam o seu talento e os seus estudos, mas não esperava que fosse
tão cedo, apenas chegado da quinta de Campolide e das pieguices da
lua de mel. Podia pois dizer com orgulho que não fora a intriga, a
corrupção, a pressão que lhe davam a posse daquele círculo,
que se tinha aberto de par em par ao seu talento dominador. Ele, de facto,
conhecia tão pouco Freixo de Espada à Cinta, que lhe sucedeu
dizer no agradecimento que dirigiu aos seus eleitores: «Um dia, meus
amigos, irei visitar a vossa bela província do Minho, que eu apenas
conheço incompletamente, e espero então, ó freixenses,
apertar a vossa mão honrada de verdadeiros liberais e de verdadeiros
portugueses!» Ora é bem sabido que Freixo de Espada à
Cinta não é no Minho: é em Trás-os- Montes.
Porém, este natural equívoco de que ele mesmo mais tarde se
ria com bonomia é a prova mais decisiva de que Alípio Abranhos
foi eleito deputado, não por ter «intrigado» num círculo,
mas pela simples evidência do seu formoso talento.
De resto, apenas abertas as Câmaras, tendo-se informado com cuidado
dos nomes das pessoas influentes de Freixo de Espada à Cinta, a todas
escreveu, oferecendo a sua influência, os serviços da sua eloquência
e a sua casa.
E foi infatigável: cartas de empenho, recomendações
para examinadores, Cruzes de Cristo, empregos subalternos, licenças
para visitar Monserrate, tudo deu prodigamente, espontaneamente aos freixenses.
Nenhuma solicitação vinda de Freixo era descuidada.
Mesmo um jovem poeta, filho de um influente, que viera implorar a sua protecção
teve o orgulho de ver o seu drama Vingança de um Rival representado
em D. Maria, ainda que sofreu no fim o desgosto de uma pateada memorável.
Alípio, porém, consolou-o, empregandoo imediatamente na repartição
das Contribuições indirectas.
No primeiro ano em que eu exerci as funções de seu secretário
particular, muitas vezes notei, à mesa, ou à noite na sala,
indivíduos silenciosos que se sentavam com timidez na borda das cadeiras,
se levantavam sempre que o Conde lhes passava rente, e tinham nas fisionomias
e nos fraques o quer que fosse de insólito: eram freixenses que vinham
à Capital e ali encontravam uma hospitalidade benévola, e que,
de volta à sua.montanha, celebravam o poder do deputado e a sua grande
afabilidade. Naturalmente, logo que o Conde foi nomeado Par do Reino, esta
benevolência sistemática findou, e ele, segundo a sua engraçada
expressão, «livrou-se para sempre daquela horda de carrapatos!»
Como já disse, a sua nomeação causou a Alípio
Abranhos uma viva alegria. Mais tarde, a Condessa contou-me que, poucos dias
depois da eleição, o surpreendera, uma manhã, diante
do espelho, vestido com a sua farda nova de deputado e exclamando: Peço
a palavra, Sr. Presidente! Ordem! Ordem! Apoiado! Não seremos nós
que desertaremos a bandeira do progresso! A Srª Condessa, na sua simplicidade
de mulher, ria deste incidente. Mas a mim comoveu-me e fez-me pensar em Demóstenes,
ensaiando, junto do mar, as suas apóstrofes sublimes aos tiranos.
Toda a família, de resto, gozava prodigiosamente este triunfo inesperado.
Sua tia mesmo escreveu-lhe uma longa carta que tenho diante de mim em que
a sua ternura divagava nos ziguezagues, da grossa letra de ganchos. Pedia-lhe
que nunca se esquecesse de que a ela devia «a grande posição
que tinha» e prometia visitá-lo com seu marido, «não
só para ver as belezas da Capital, mas para te admirar agora que estás
no poleiro!» Até D. Laura, tão desinteressada das coisas
da terra, lia o extracto das sessões nos jornais, gozando de ver impresso
o nome do genro, e o padre Augusto, apesar da sua habitual pacatez, ia agora
todas as noites ao Martinho, para surpreender, no brouha-ha das conversas,
os elogios dados a Alípio Abranhos. D. Virgínia, essa frequentava
assiduamente a galeria da Câmara, até ao dia em que o estado
adiantado da sua gravidez não lhe permitiu, como ela dizia, «mostrar-se
decentemente em público».
Contudo, Alípio conservava na Câmara um silêncio discreto.
Eu poderia dizer, parafraseando um dito histórico, que não estava
embatucado, mas sim concentrado. No entanto, preparavase: ia-se penetrando
dos hábitos parlamentares, estudava o regulamento, o mecanismo legislativo,
as tricas; por assim dizer, aguçava devagar e com prudência as
finas lâminas do espírito loquaz. Formava então a sua
biblioteca de homem de Estado: munira-se dos discursos de Mirabeau, de Berryer,
de Lamartine, de Guizot; adquiriu o útil dicionário de conversação;
estudou aturadamente as instituições da Bélgica; mas,
sobretudo, frequentava, escutava os velhos parlamentares, os venerandos práticos
da política constitucional. Como Aquiles, recolhido na sua tenda, Alípio
Abranhos forjava as suas armas para a batalha.
A sua estreia, isto é, a primeira palavra que soltou na Câmara,
foi singularmente admirada.
Não foi propriamente um discurso: apenas um. curto aparte. Mas, como
num gole de água se contém um mundo de organismos, num aparte
pode existir toda uma revolução.
Temos um exemplo clássico, desta verdade política, na sessão
da Convenção que precedeu a queda de Robespierre: o sinistro
e seco ditador, na tribuna, sente de repente a voz perturbarse- lhe, sumir-se-lhe…
É o sangue de Danton que te sufoca! grita-lhe Lemaillet.
O estremecimento, o grito de apoio que corre nas galerias a esta lúgubre
apóstrofe, prova que Robespierre está bem abandonado pela França,
que chegou enfim o glorioso Termidor! O aparte do nosso Alípio não
teve decerto esta ênfase trágica, porque não se tratava,
felizmente, de abater um tirano. Era simplesmente a discussão da resposta
ao discurso da Coroa: falava o obeso Sr. Gomos Barreto, da minoria, afecto
aos Bexigosos, que, o rosto incandescente, o punho alto, atacava o ministério
Cardoso Torres em períodos brutais.
Quem sois? Para onde ides? exclamava ele. O que representais vós
no país?.Onde estão as vossas medidas, os vossos benefícios?
Ninguém vos conhece! Éreis uma minoria obscura e intrigante
(ordem! ordem!). Intrigante, Sr. Presidente, uma minoria intrigante e tortuosa!
De repente, vejo-vos aí, nessas cadeiras amadas do poder… Tenho o
direito de vos perguntar: como vos chamais, que fazeis aí? Como entrastes
vós para aqui? Vós sois o ministério que entrou para
o poder com uma gazua! Mas nesse momento Alípio ergue-se e brada: E
vós sois o ministério que se sumiu daqui por um alçapão!
Então, a esta rancorosa alusão ao modo como o gabinete dos Bexigosos
tinha desaparecido do poder, à maneira da corveta Saragoça,
uma enorme hilaridade sacode as ilhargas da Câmara, das galerias, dos
estenógrafos… uma hilaridade imensa, como aquela que o velho Homero
põe na boca dos Deuses e que fazia tremer as colunas de cristal do
Olimpo. Bravos roucos saem impetuosamente das galerias negrejantes de gente.
E o presidente, o honrado Dr. Antão Carneiro, escarlate de jovialidade
contida, fungando pelo nariz frouxos de riso mal comprimidos, repica furiosamente
a campainha…
São os do alçapão! São os do alçapão!
ruge com júbilo a maioria.
As lunetas de Gomes Barreto caíram; bagas de suor cobrem-lhe a testa
cor de cidra, e, aniquilado, engolindo ainda alguns períodos confusos,
rola da tribuna com a inércia de uma pedra desequilibrada! Todos os
jornais, na manhã seguinte, citavam o dito, e Alípio Abranhos
entrou na popularidade.
Gozou ele este triunfo? Não. Muitas vezes mo disse mais tarde: aquele
dito saíra-lhe da boca inesperadamente, involuntariamente, como um
ataque de tosse, como um arroto! Não o pudera conter. O que ele estava
preparando, desde o começo do discurso de Gomes Barreto, era esta bela
frase: «Nós chamamo-nos o Progresso e vamos para a Liberdade!»
E infelizmente saíra-lhe este dito, pitoresco sim, mas baixamente popular.
Alípio Abranhos teve assim o desgosto de passar durante algum tempo
por «um grande
chalaceador».
As orelhas abrasaram-se-lhe de vergonha quando, nessa noite, o padre Augusto
lhe veio dizer que no Martinho era voz geral que «para chalaça
não havia outro!» Quisera estrear-se, mostrando a profundeza
de um filósofo, e faziam-lhe a reputação de um folhetinista…
Teve rancor ao seu aparte. Negá-lo era impossível: lá
vinha ao outro dia no Diário das Câmaras, com esta indicação
do movimento (imensa hilaridade).
Teve então de sofrer um martírio mudo, grotesco, de receber
parabéns por uma façanha que o vexava. O Cardoso Torres dissera-lhe:
É disso que se quer! E disso que se quer! Vejo que o amigo
é homem de pilhéria. E matá-los com dichotes ….
Que agonia! E pior ainda foi quando sua tia lhe escreveu, dizendo que em
Amarante, em casa das Neves e das Cunhas, «se tinha falado muito da
pilhéria que ele dissera na Câmara, que fizera rir toda Lisboa»
e que a opinião de todos era que devia ser muito temido, «por
causa das chalaças que soltava». Isto era odioso para um espírito
elevado como o de Alípio Abranhos.
Então a sua atitude tornou-se cautelosa. Para destruir aquela falsa,
grotesca fama de «chalaceador», assombreou, sublinhou a sua natural
seriedade. Tornou bem patente que aquele dito era, nos seus hábitos
intelectuais, uma extravagância isolada. Conversava com prudência,
evitando tudo o que pudesse ser tomado como «gracejo», «saída»
ou «pilhéria». A sua atitude na Câmara era como a
afirmação exterior da gra-vidade dos seus pensamentos: conservava-se
erecto, com os braços cruzados, a testa franzida, pensativo. E um dia
que Cardoso Torres lhe disse: O amigo recolheu-se ao silêncio.
Atire-lhes outro epigrama, homem! Não os deixe…
espicace-os! Alípio respondeu, despeitado: Quando eu combater
a oposição, Sr. Cardoso Torres, há-de ser com a lógica
não com a pilhéria! Pois sim, mas olhe que o
ridículo é uma grande arma.
Não a sei manejar, Sr. Cardoso Torres.
Histórias! … O amigo tem graça… E utilizá-la.
Alípio Abranhos tomou rancor a este cavalheiro, e eu posso mesmo,
com afoiteza, datar desta entrevista a sua resolução de se separar
do ministério Cardoso Torres.
Entretanto ele compreendia que a maneira eficaz e digna de mostrar à
Câmara e ao país a verdadeira feição do seu talento
sério, era pronunciar um grande discurso de eloquência grave:
preparou-se então com fervor para a sua verdadeira estreia.
Os projectos pueris nesse momento em discussão, não lhe davam
a oportunidade de fazer uma oração elevada. Eram medidas subalternas
estradas, um projecto de caminho de ferro, legislação
para as colónias uma série de trabalhos monótonos,
em que se comprazia o espírito mesquinhamente prático de Cardoso
Torres, e que a maioria votava, distraída, desinteressada, perante
as galerias vazias.
Esperava-se, porém, uma Reforma da Instrução, e Alípio
Abranhos decidiu fazer nessa ocasião a sua «estreia de estadista».
A composição deste discurso célebre foi feita no meio
de preocupações graves de família.
Chegava Março e com ele o nono mês de gravidez de D. Virgínia
Abranhos. D. Laura instalarase em casa do genro para se achar mais perto da
filha no momento do transe. Uma bela moça de Campolide, a futura ama,
já estava em casa, e toda a noite ardiam lamparinas propiciatórias
junto de santos especiais.
Entretanto, no seu escritório, Alípio Abranhos, cercado de
autores, compunha o seu discurso.
A Condessa, mais tarde, muitas vezes me confessou quanto a afectava, no
meio dos seus terrores pois estava certa de que morreria ver
de repente, às onze horas, à meia-noite, o marido entrar-lhe
pelo quarto, de chinelos e robe de chambre, o olhar brilhante, e ler-lhe algum
período magnífico que acabava de produzir. Com a roupa sobre
o queixo, a face um pouco inchada, que lhe repuxava a pele em torno dos olhos,
escutava, olhando a sombra grotesca, de grande nariz, que o perfil de Alípio
projectava sobre a parede, e aterrava-se pensando que o menino ou
a menina pudesse nascer com aquele nariz descomunal, fora de toda
a proporção, de tromba, medonho! Enfim o dia chegou. Nessa manhã
D. Virgínia tinha sentido de madrugada algumas dores, e isto causou
entre D. Laura e Alípio uma pequena altercação ao almoço.
A velha devota não compreendia que Alípio Abranhos fosse à
Câmara nesse dia, quando sua mulher estava numa crise tão grave
e na proximidade de um perigo possível.
Mas, minha senhora, eu estou inscrito para falar…
Não há falas nem discursos! O seu dever é estar
aqui, a animar a pequena… O seu lugar hoje é em casa! Primeiro que
tudo estão os deveres que tem para com sua mulher.
Alípio Abranhos aniquilou-a com esta nobre frase: Se tenho
grandes deveres para com minha mulher, não os tenho menores para com
o meu país.
E para terminar o incidente, acrescentou para o criado: José,
vá-me buscar uma tipóia. Fechada! Tomara, logo ao erguer-se,
duas gemadas para clarear a voz, fortificá-la, e queria.53 evitar o
frio dessa áspera manhã de Março. O tempo, com efeito,
inquietava-o: havia um sudoeste brusco no ar enevoado, e ele receava que a
chuva afastasse o público da galeria.
Choveu, infelizmente, a torrentes; e Alípio teve o desgosto de ver,
ao chegar a S. Bento, que não só a Câmara era menos numerosa
do que habitualmente, mas que os bancos das galerias estavam quase desertos.
Os deputados que tinham vindo a pé e traziam as botas encharcadas
e os joelhos húmidos passeavam nos corredores; ruidosamente a chuva
fustigava a clarabóia. E Alípio não pôde deixar
de pensar com despeito, que havia da parte de Deus uma certa ingratidão,
fazendo tão chuvosa essa manhã memorável, em que ele
vinha à Câmara defender o sagrado princípio da educação
religiosa.
Tem a palavra o Sr. Alípio Abranhos disse enfim,
na sua voz um pouco fanhosa, o presidente, Dr. Antão Carneiro.
Muitas vezes o Conde me confessou que sentiu nesse momento uma agonia: o
estômago contraía-se-lhe, e receou um momento que uma súbita
dor de ventre o obrigasse a correr à latrina situação
medonha ou que, de repente, se lhe varresse da memória todo
o discurso, que, havia três noites, declamava sucessivamente no silêncio
do seu escritório.
Felizmente para o país, nem a memória nem a entranha o traíram…
e Alípio Abranhos, nessa fria manhã de Março, fez o primeiro
discurso da sua fecunda e grandiosa carreira política.
Este discurso é bem conhecido.2 Alguns dos seus melhores trechos
estão transcritos na Selecta para uso dos alunos do 3º ano de
português.
O Conde conservou sempre por este primeiro trabalho uma predilecção
parcial. Ele é, com efeito, apesar do liberalismo exagerado que o caracteriza
e que mais tarde a experiência, o poder, os anos, o conhecimento
dos homens devia tão cabalmente diminuir a obra literariamente
mais bem trabalhada do Conde.
Esse exagero liberal, é, porém, facilmente explicável.
Não só, então, ainda moço, o seu espírito,
apesar de grave e reflectido, era susceptível de um certo entusiasmo,
mas também o discurso, composto sob a influência de recentes
leituras de Mirabeau e de Lamartine, tomara naturalmente a ampla retórica
liberal que domina as orações desses mestres. Esse excessivo
espírito de liberalismo pode-se dizer que é puramente reflexivo:
assemelhando-se tanto à eloquência desses inspiradores, o discurso
conservou alguma coisa das suas doutrinas. Que é, porém, genuinamente
de Alípio Abranhos, atestam-no o estilo, o colorido, o período.
Quem não conhece essa formosa imagem sobre o envenenamento das fontes
públicas, comparado ao envenenamento das nascentes do espírito?
Que formoso quadro aquele em que descreve o «sombrio vulto de Filipe
II» no Escorial! Com que vigor pinta a poesia dos tempos cavalheirescos
da Meia Idade! Que página aquela em que descreve a invasão dos
Bárbaros e «o cavalo de Atua que, onde pousa a pata, faz secar
a erva dos prados!» Que sublime apóstrofe arremessada a Tibério!
Que traços de um pitoresco histórico nossa imagem sobre o «sombrio
jesuíta, aqui metendo na mão de Ravaillac o punhal regicida,
além aperrando a clavina que há-de fazer em estilhaços
os vidros do coche de D. José I, depois vertendo na taça de
vinho de Chipre que o Papa Clemente leva aos lábios, o veneno negro
dos Bórgias!» Que períodos repassados de lágrimas
sobre o cadafalso de Luís XVI! Que grandeza épica, descrevendo,
através da Europa «o galope triunfante do cavalo branco de Napoleão!»
Poderia dizer-se que tudo isto nem sempre vinha a propósito; poderia
dizer-se mesmo, como o conhecido litigante ao advogado loquaz: «Não
se trata de Roma, de Cartago, nem da destruição de Babilónia:
trata-se do meu sobrinho. Fale do meu sobrinho!» Mas a isto deverse-
ia responder: «Então reclamai para sempre a supressão
da Poesia, da Eloquência e do Génio!» Cada uma destas grandes
imagens, destinadas a enriquecer o pecúlio nacional da oratória
clássica, era seguida de um estalar entusiasta de «bravos!»,
de «sublimes!» A voz, muito admirada, tinha uma plenitude metálica
e sonora e ia, nas suas ondulações vibrantes, como ondas triunfantes
que banham os rochedos da praia, bater os renques de peitos dilatados e extáticos.
O gesto foi considerado perfeito, ainda que as frequentes punhadas no rebordo
da tribuna, dando um som oco de pau, pareceram demasiadamente impetuosas.
E Alípio, que subira à tribuna «simples Alípio
Abranhos» era, quando desceu, «o nosso inspirado Alípio
Abranhos!» Muitas vezes este adjectivo, ou outros paralelos
«o nosso espirituoso, o nosso fértil» são
todo o proveito de uma vida de labor e de produção. Quantos
dão tudo o que contém o cérebro, até à
última gota, ficando depois, para sempre, com o aspecto grotesco e
triste de um limão espremido cuja recompensa é, ao fim
de tanto esforço doloroso, uma sinecurazinha numa repartição
do Estado e um adjectivo adiante do nome! Mas, para Alípio Abranhos,
a recompensa não se limitou a um adjectivo, e esse discurso foi o começo
da sua prodigiosa carreira.
Ao entrar em casa, ainda vibrante das emoções da Câmara,
esperava-o outra alegria, mais grave, mais íntima: era pai! Era pai
desde as três horas da tarde! Foi sua sogra que lho veio anunciar ao
alto da escada, num grito: E o senhor até a estas horas por
fora! Está tudo acabado! E um menino! E com a maior felicidade! …
É um menino! O seu vivo retrato! Não descreverei a cena tocante
e doce que se passou no quarto da parturiente, porque a ela não assisti.
Não quero, como esses biógrafos de antigos reis e estadistas,
que descrevem os gestos e as palavras de cenas passadas em outros séculos,
introduzir o elemento imaginativo, o romance, neste trabalho histórico.
Mas todos nós podemos conceber a emoção desse pai, saído
apenas de um triunfo social para vir gozar inesperadamente um triunfo doméstico,
no mesmo dia orador consagrado e pai venturoso.
Dizem-me que Alípio Abranhos, acabrunhado de uma felicidade muito
forte, se deixou cair numa poltrona com os olhos banhados de lágrimas,
o filho nos braços, envolto nas suas faixas brancas, e murmurou:
Isto é um dia histórico… isto é um dia histórico!
Passou-se então dos dois lados da cama onde D. Virgínia, branca
como as rendas da fronha, sorria de um vago sorriso exausto uma tocante
troca de impressões exaltadas. Alípio contava o seu discurso
e D. Laura o parto.
A Câmara ergueu-se como um só homem, e eram bravos,
eram berros! As primeiras dores foram terríveis, não
é verdade, filha? Estava agarrada ao meu braço, que até
tenho a certeza que me deixou uma nódoa negra.
Coitadinha! Mas o melhor foi quando eu desci; os apertos de mão,
os abraços…
Abraços merece ela, que se portou com muita coragem! E a
criança, que saiu como por uma porta aberta…
Ao canto do quarto, o novo ser, tenra vergôntea da casa dos Noronhas,
indo dos braços da parteira para os braços da ama, chorava baixinho,
com um som de boneca a que se aperta o estômago, nas suas primeiras
contrariedades humanas.
Nesse mesmo dia, «em atenção à coincidência
do seu nascimento e do triunfo do.papá», como disse o padre Augusto,
foi decidido que o menino se chamasse Carlos Benvindo.
Durante o período legislativo desse ano, Alípio Abranhos fez
ainda dois discursos, um, sobre política colonial, outro, sobre o projecto
do Caminho de Ferro de Leste. Este último é sobremodo eloquente:
poder-se-ia chamar a Ode ao Caminho de Ferro.
Nunca o utilitário modo de comunicação foi descrito
com tal colorido, com tal vigor de imaginação: «Vede-lo
exclama o orador esse monstro de ferro, soltando das narinas
turbilhões de fumo, semelhante ao Leviatã da fábula!
(bravo! bravo!) Vede-lo, atravessando como um relâmpago os mais áridos
terrenos: e que maravilhoso espectáculo se nos oferece então:
ao contrário do cavalo de Atua, cuja pata fazia secar a erva dos prados,
por onde passa este novo cavalo de fogo (bravo! bravo!) brotam as searas,
cobrem-se as colinas de vinha, (muito bem! muito bem!) penduram-se os rebanhos
nas encostas verdejantes dos montes, murmuram os ribeiros nas azinhagas, ondulam
as searas (muito bem!) e o jovial lavrador lá vai, satisfeito e alegre,
cantando as deliciosas canções do campo, junto à esposa
fiel, coroada das mimosas flores dos prados! (Bravo! Bravo! Sensação!).
Encerradas as sessões, Alípio Abranhos, sua esposa e o tenro
Benvindo partiram para Campolide, onde iam passar o Verão.
Foram três meses de concentração, de íntima felicidade.
Tinham passado ali, havia um ano, a sua lua de mel, e a sombra de cada árvore,
cada moita de flores, possuíam para eles o valor de uma recordação
deliciosa: a quinta tornara-se-lhes como uma vasta confidente simpática;
era com orgulho que lhe levavam o tenro Bibi, rabujando nos braços
da ama, como o fruto vivo do amor que ela protegera.
Mas nem por isso Alípio Abranhos ficou inactivo. Trabalhou muito
e ali escreveu trechos, imagens, perorações de futuros discursos.
Foi ali também que ele tomou, passeando à tarde na bela alameda
de loureiros, como costumava, devagar, com as mãos atrás das
costas, a resolução importante que devia ter na sua carreira
uma influência tão grave.
O ministério Cardoso Torres, ao fim da última sessão
parlamentar, estava gasto. Esta expressão a que eu chamaria, se me
não contivesse o respeito, a «gíria constitucional»,
refere-se a um fenómeno venerável e repetido, que eu nunca com-preendi
bem, apesar das explicações benévolas que me foram dadas
por conservadores, republicanos e cépticos.
Há ministérios que se gastam. E todavia, esses ministérios,
como os outros, administram o tesouro com honestidade, fazem o expediente
das secretarias com suficiente regularidade, mantêm no país uma
ordem benéfica, não oprimem nem a imprensa nem a consciência,
são respeitosos para com o Chefe de Estado, acompanham com dignidade,
ao Alto de S. João, todos os defuntos ilustres, falam nas Câmaras
com honrosa correcção, são na vida privada cidadãos
estimáveis, e no entanto ao fim de alguns meses desta rotina
honesta, pacata e higiénica gastam-se.
Gastam-se porquê? Compreende-se que um ministério que luta
com dificuldades, que se coloca ao través da opinião pública,
se gaste, como ao través de um frágil estacado que uma corrente
hostil incessantemente bate. Compreende-se ainda que um governo criado especialmente
para resolver certas questões sociais ou políticas, se torne
desnecessário, desde que as tenha resolvido, e fique como o zângão
que fecundou a abelha e é daí em diante um inútil.
Mas quando se não dá nenhuma destas hipóteses, quando
os ministros não foram trazidos do seio da sua família para
resolver questões sociais, ou porque as não haja, ou
porque seja um princípio tacitamente estabelecido deixá-las
sem resolução quando,.56 em lugar de se esforçarem
contra a larga corrente da opinião, os ministros lhe bolam regaladamente
no dorso, não compreendo como um ministério se possa gastar.
Um dia pedi respeitosamente ao Conde d’Abranhos a explicação
da palavra e do fenómeno, e S. Exª, o que raras vezes sucedia,
deu uma resposta vaga, tortuosa, reticente: É uma coisa que
se sente no ar. É um não sei quê… Sente-se que a situação
está gasta…
Não me permitiu o respeito que insistisse, mas, no fundo do meu entendimento,
guardo um secreto terror por este fenómeno incompreensível!
O ministério Cardoso Torres estava portanto gasto. Calculava-se que
ele pudesse talvez sobreviver durante grande parte da próxima sessão,
mas, para o fim de Abril, devia desaparecer subitamente, como tinham desaparecido
os Bexigosos e a corveta Saragoça! O Partido Nacional retomaria então
o poder, e Alípio Abranhos que, agora, era Governo, Influência,
Força, Lei, passaria a ser o deputado loquaz de uma oposição
estéril, pois que ninguém acreditava que os Reformadores
a que pertencia Cardoso Torres tendo subido ao poder por um acaso,
vissem esse acaso repetir-se. Os Reformadores eram pois, na frase clássica,
«um partido sem futuro». O próximo ministério Nacional
havia de colar-se às cadeiras do poder durante anos. E poderia, durante
anos, Alípio Abranhos ver as suas faculdades, o seu génio, gastarem-se
na retó-rica hostil e rancorosa da oposição? Além
disso o seu círculo de Freixo não era ainda um círculo
certo. Durante esses curtos meses de sessão, Alípio não
tivera tempo de prender definitivamente, pela gratidão, pelo interesse,
pela lisonja, pelos serviços prestados, os influentes de Freixo. Se
os Nacionais dissolvessem a Câmara, quem sabe se Alípio Abranhos
não se veria empurrado involuntariamente para as doçuras da
vida íntima, fazendo biribi no beicinho do Bibi, sob as sombras de
Campolide, enquanto outros, sem a sua eloquência nem os seus estudos,
trotariam para Belém, repoltreando-se nas almofadas do poder? Decerto
tinha deveres para com Cardoso Torres: fora ele que o nomeara deputado, que
lhe abrira as portas da vida pública, que o fizera… Mas, por outro
lado, tinha deveres maiores para consigo mesmo, para com a sua carreira, o
seu nome, e, sobretudo, para com o tenro Bibi.
Não devia ele tornar-se grande no seu país, para um dia poder
apoiar a carreira do Bibi? Tinha ainda deveres para com Virgínia, a
quem pesava a obscuridade social, e que, como uma verdadeira portuguesa, ansiava
por fazer a sua grande mesura de corte diante de SS. MM.
Tinha enfim deveres para com o país, ao qual não podia negar
os serviços do seu alto entendimento! Estas considerações
pesou-as bem Alípio Abranhos, nessas horas da tarde em que passeava
solitário na alameda de loureiros; e quando em princípios de
Novembro voltou para Lisboa, tinha decidido, no segredo da sua alma, passar-se
com as suas armas de eloquência e a sua bagagem de saber para o campo
inimigo. Ia fazer-se oposição! Esta resolução
não a revelou a ninguém, nem à sua esposa
mas durante meses preparou o grande discurso em que explicaria, como ele disse,
«as razões de Estado que me fazem passar destas bancadas estéreis
(e designava a maioria) para aqueles bancos fecundos!» (e mostrava a
oposição).
Muitas vezes este grande acto político foi chamado uma «indecente
traição». Nada mais absurdo. Pergunto eu: que é
trair? É abandonar os ideais que se serviram, e passar, sem razão,
para o serviço de ideais opostos que até aí se combatiam!
Isto é normalmente, materialmente, uma traição.
Mas havia entre os Reformadores e os Nacionais ideais opostos? Abandonava
Alípio Abranhos ideias queridas, para ir, por interesses grosseiros,
defender ideias.57 detestadas? Não.
As ideias que servia entre os Reformadores, ia servi-las entre os Nacionais.
Em Religião, que eram os Reformadores? Católicos, Apostólicos,
Romanos. E os Nacionais? Idem.
Em Política, o que eram os Rei armadores? Conservadores constitucionais.
E os Nacionais? Idem.
Não tinham ambos o mesmo amor pela dinastia? O mesmo.
Não eram ambos sustentáculos dedicados da propriedade?
Dedicadíssimos.
Não desejavam ambos a estrita aplicação da Constituição,
só da Constituição, de toda a Constituição?
Desejavam-na ambos, ardentemente.
Não eram ambos centralizadores? Eram.
Não estavam ambos firmes na manutenção de um exército
permanente? Firmíssimos, ambos.
Não tinham ambos um nobre rancor aos princípios revolucionários?
Um rancor nobilíssimo.
E em questões de Instrução, de Imprensa, de Polícia,
não tinham ambos as mesmas óptimas ideias? Absolutamente as
mesmas.
Não eram ambos patriotas? Fanaticamente! Então? Pode-se
dizer que Alípio Abranhos, indo dos Reformadores para os Nacionais,
traía as suas ideias? Não! Certamente não! Mas, dir-se-á,
traiu o seu amigo Cardoso Torres.
Distingamos: Em Cardoso Torres há o homem e o político. Trair
o homem, seria, por exemplo, (ainda que tal suposição me faz
tremer de horror) pôr mão libidinosa no seio respeitável
de D.
Josefa Cardoso Torres. Alípio Abranhos fê-lo? O vosso silêncio
grave é a melhor resposta! Mas traiu o político, direis. Vejamos:
que é um político? E um ser que simboliza um complexo de ideias:
só se pode traí-lo, traindo as ideias que ele representa. Ora
eu provei suficientemente que Alípio Abranhos não traiu
nem em Religião, nem em Moral, nem em Economia Política, nem
em Administração, nem em Pedagogia as ideias representadas
pelo Ex.mo Cardoso Torres.
Onde está pois a traição? Dizei-o. Ah! esses olhares
no chão, essa expressão consternada, provam sobejamente que
nada tendes a responder aos meus argumentos impecáveis! Passou pois
para a oposição o nosso grande Alípio, e com que prodigiosa
impressão esse passo foi recebido no país, di-lo a História
Constitucional.
Foi no discurso de resposta ao Discurso da Coroa que se viu Alípio
Abranhos subir à tribuna, e com palavras comovidas, dizer que a sua
consciência, os seus princípios, o seu patriotismo, forçavam-no
a separar-se de amigos «cujo estandarte segui» exclamava
«enquanto julguei que eles levavam o País à conquista
do Progresso mas de quem me separo com dor, ainda que com firmeza,
no dia em que vejo que eles impelem a minha Pátria, esta Pátria
que eu amo mais do que amei minha mãe para os abismos e para
a ruína!» (Bravo! Bravo!) Com um grande tacto político,
Alípio Abranhos nunca disse claramente, nesse discurso magistral, os
factos que lhe provavam que o Ex.mo Cardoso Torres fosse arrastando Portugal
aos Abismos; mas os apoiados unânimes, os bravos frenéticos da
oposição, mostravam-lhe que, ainda que ele, por respeito aos
seus antigos camaradas, calasse esses factos, a oposição os
compreendia absolutamente.
Assim, que grande ovação quando Alípio Abranhos traçou
o inspirado quadro do estado do País sob a administração
Cardoso Torres: «Olhai em redor, e vede este formoso torrão de
Portugal, que vós jurastes, nas mãos de El-Rei defender e fazer.58
prosperar; olhai e dizei-me se sois dignos de estar nesses bancos uma hora
mais: por toda a parte o esbanjamento da fazenda pública, por toda
a parte o patrocinato primando o mérito; a escola, essa fonte pública,
seca de instrução; as férteis campinas, desoladas; as
estradas que prometestes, cobertas dos pedregulhos e das lamas da incúria;
as cadeias, esses depósitos do mal, trasbordando; e o pobre camponês,
que sucumbe ao peso dos impostos, regando com lágrimas o grão
escasso que lhe dá um solo desolado!» (Bravo! Bravo!). E os ministros,
nos seus bancos, com os braços frouxos, a cabeça pendente, sentindo
retumbar-lhes aos ouvidos aquela voz, igual a outra que na Antiguidade, do
fundo dos ares apostrofara Caim, pareciam contemplar, aterrados, a visão
pavorosa da Pátria arruinada! A sensação foi prodigiosa.
Nessa noite, quando, deitado no seu sofá exausto do seu grande feito
oratório, Alípio se reconfortava na placidez do chá doméstico,
recebeu uma carta do Conselheiro Guedes Navarro, chefe da oposição
Nacional, em que lhe dizia, depois de outras considerações:
«Como discurso, poucos conheço iguais em Mirabeau ou em Lamartine.
E para o partido Nacional uma honra, não só ter recebido nas
suas fileiras um homem do seu valor, mas ter dado ocasião a que pronunciasse
um discurso de tal elevação. Já não é somente
para cumprir o nosso pacto, que lhe será guardada uma pasta na formação
de um ministério Nacional. Essa pasta não é, d’ora em
diante, a recompensa da sua adesão: é uma necessidade de existência
para o partido Nacional, que terá em V. Exª, de futuro, o seu
Mirabeau conservador.» Donde se deduz, de resto, que Alípio Abranhos,
com um grande alcance político e uma profunda experiência dos
homens, não dera aquele passo sem primeiro ter garantidos todos os
meios de penetrar no poder, e prestar ao País aqueles altos serviços
que lhe estava preparando o seu génio político.
O desespero do governo e da maioria teve um raro carácter de alucinação.
Alípio Abranhos passou a ser o infame, o canalha. Nessa mesma noite
toda a sua vida foi explorada, rebuscada como uma velha algibeira, na esperança
de se encontrar algum escândalo esquecido. Disse-se que fora o amante
da velha Madame Gato, que tinha um prostíbulo no Arco do Bandeira;
espalhou-se que era filho de um sapateiro de Penafiel, muitas vezes condenado
por ladrão; afirmou-se que vivia em desavenças contínuas
com sua mulher e que os vizinhos ouviam de noite os gritos das lutas conjugais;
contou-se que o velho Dr. Vaz Correia lhe dera pontapés no escritório,
por o ter encontrado a falsificar um documento; murmurou-se que era dado em
Coimbra a deboches contra a natureza.
Dos artigos dos jornais nem falarei, para não concorrer a desacreditar
mais ainda, perante o público, uma instituição a que
implicitamente pertenço.
Sentia-se que a sessão seguinte seria, na frase consagrada, «tempestuosa».
Com efeito, as galerias trasbordavam de gente: todos os amigos que outrora
pertenciam às soirées do Desembargador Amado, e que, agora,
começavam a frequentar a casa dos Abranhos, lá estavam. Esperava-se
que em presença das recriminações, que não podiam
deixar de se produzir da parte da maioria indignada, Alípio Abranhos
pronunciaria outro discurso, no qual o orador se mostrasse, na frase que ouvi
a não sei que personagem: «Demóstenes multiplicado por
três!» Lá estava o coronel Serrão, que idolatrava
Alípio, descarregando olhadelas ferozes como cutiladas sobre os «cachorros
da maioria!» Lá estava o Conselheiro Andrade, que acompanhava
D. Virgínia e a bela Fradinho; lá estava o sobrinho da pobre
D. Joana Carneiro, em bicos de pés, na última bancada, e à
frente, mais sombrio, mais meditativo, o Doutor.
Antes da ordem do dia, um deputado de estatura hercúlea e de voz
de roncão, pediu a palavra.
Era o famoso Gorjão, e a sua presença na tribuna, onde ele
subiu, se plantou, fazendo reluzir sob as sobrancelhas espessas um olhar coruscante,
revelou suficientemente o plano infame da maioria. Eu classifico este plano
com uma palavra: tentativa de assassinato.
O famoso Gorjão representava no partido dos Rei armadores, a que
ele de resto sempre pertenceu, o papel que desempenhava nas redacções
dos jornais parisienses da Restauração o espadachim, tão
poderosamente descrito por Balzac. O espadachim era ordinariamente um antigo
oficial da Guarda Imperial, que a Restauração reformara, e que,
levado à miséria pelo absinto, o tabaco e as fêmeas, alugava
a força do seu pulso e a sua destreza à espada a algum jornal
de combate. De olho avinhado, voz catarrosa, bigode erriçado, grande
casaco debruado de astracã abotoado até ao pescoço, cabelo
à escovinha, chapéu ao lado, este personagem temeroso passava
o seu dia na antessala de uma redacção, queimando o cachimbo
de espuma, repastando-se nos jornais de histórias de crimes e de roubos,
e esperando que pessoas ofendidas subissem as escadas, a pedir a explicação
de um artigo muito insultante ou de uma calúnia muito directa. E se
algum desgraçado aparecia, o feroz indivíduo erguia a sua enorme
estatura, escarrava grosso no chão, e perguntava com voz agressiva
e o olho raiado de sangue: As suas armas? Os seus padrinhos? As ordens!
E, ou o ofendido recuava diante da medonha aparição deste cão
de fila ou, ao outro dia, recebia, através de uma entranha
essencial, a lâmina infalível da sua espada.
Gorjão era, entre os Reformadores, o espadachim do partido. Ele foi,
durante vinte anos, neste país, o papão! A sua barba negra era
feroz, e quando descia o Chiado com o chapéu sobre o olho, fazendo
sibilar a bengala, um terror invencível contraía o coração
dos cidadãos… A sua biografia, desde Coimbra, era uma lenda pavorosa
de cabeças partidas, queixos esmigalhados, tremendos heroísmos
de pulso. Quando entrava num café, toda a gente se curvava palidamente
sobre o periódico ou o copo de genebra, evitando ser notado por ele
pois se dizia que o seu olhar era imediatamente seguido do seu murro.
O Marrare, então florescente, era o antro desta fera. Quando ele morreu
de um catarro de bexiga, Lisboa sentiu um alívio suave e as costas
dos cidadãos endireitaram-se, porque já não as ameaçava
de alto a bengala do Gorjão.
A intenção perversa da maioria era, pois, clara: Gorjão,
da tribuna, injuriava Alípio; Alípio, bravo, retorquia com irritação;
e Gorjão, nos corredores, esmagava Alípio a murros, ou, ao outro
dia, nas terras da Pólvora, varava-o com uma espadeirada! Parece hoje
provado que tal plano fora resolvido numa reunião da maioria: vergonha
eterna! Não procederia de outro modo uma conjuração de
zulos, agachados ferozmente entre o alto tojo africano, no Kraal de Cettivayo!
Este grosso brutamontes entrara para S. Bento para assassinar a Eloquência,
o Patriotismo e o Génio, na pessoa de Alípio Abranhos! Ainda
bem que te matou, fera, um providencial catarro de bexiga: a tua bengala não
mais oprime os homens livres, e eu posso impunemente, e com regozijo, escarrar-te
sobre a sepultura já que o haver-te escarrado na face ter-me-ia
sido impossível, por ser, como sou, de constituição delicada!
Com efeito, as fauces do cão de fila abriram-se, e durante uma hora
ladrou a injúria; e como ele tinha (meu Deus, sejamos justos com todo
o mundo!) uma certa habilidade de prosa, uma experiência astuta da perfídia
parlamentar, não o fez claramente, o que lhe atrairia sobre o dorso
as severidades do Regulamento. Não pronunciou o nome de Alípio.
Falou apenas do traidor, do apóstata, e sob esta designação
vilmente vaga, rugiu, com punhadas de atleta, a sua verrina estudada. O desgraçado,
porém, participava, como todos os da sua corpulência, da clássica
estupidez.dos colossos: não contava com a finura, a habilidade, o génio
de Alípio.
Com efeito, o nosso herói deu-lhe uma lição severa:
todo o tempo que o Roldão da Baixa trovejou, Alípio, curvado,
rufava tranquilamente com os dedos sobre a sua pasta de verniz.
E quando, entre os aplausos da maioria alucinada, o medonho Gorjão
terminou, lançando uma apóstrofe «aos cobardes que sob
a injúria, em lugar de erguer a cabeça em desafio, rufam, agachados,
sobre as mesas» Alípio, que todos esperavam ver pular para a
tribuna, tomou serenamente o Diário do Governo, e pôs-se a folheá-lo
com pla-cidez.
Dos bancos da maioria saíram vozes: Que nojo! Que abjecção!
Mas o grande homem, pálido, sim, de emoção reprimida,
mas sereno na aparência, continuou imperturbável a folhear o
Diário do Governo. Assim o plano da maioria falhava. Alípio
Abranhos, provocado, insultado, caluniado, lia o Diário do Governo!
Esperando provocar-lhe uma cólera fatal, produziam-lhe apenas uma serenidade
sublime! Daqui, uma raiva desordenada e outro orador da maioria, o Sr. Albino
Peixoto, subir à tribuna: depois do Roldão trovejante, era Simão
de Nântua, o melífluo.
Este personagem, com efeito, pela face redondinha e jovial, de óculos
de ouro, por todo o seu serzinho barrigudo, pela untuosidade vaga das suas
palavras, pela sua plácida polidez, assemelhava-se ao amável
filantropo, cheio de provérbios e de virtude, de que fala o livro querido
onde aprendemos a soletrar.
O seu discurso foi a repetição das mesmas injúrias,
mas em voz suave e chorosa. Os vitupérios que o outro rugira, este
lagrimejou-os. Era, de resto, pessoa de uma proverbial pacatez: havia nos
seus movimentos a hesitante timidez de um míope que perdeu os óculos;
caminhava na vida como na rua, com extremo cuidado, evitando pisar um calo
ou uma susceptibilidade.
Em consequência da sua autoridade intelectual (e não, como
vilmente se disse, porque deste não tinha medo), Alípio decidiu
responder-lhe.
O silêncio que se fez na Câmara quando Alípio Abranhos
se ergueu e pediu a palavra, foi um daqueles clássicos silêncios
muito conhecidos e estimados em retórica «que precedem
as tempestades».
Começou por dizer que se erguia para responder ao Sr. Albino Peixoto
e só ao Sr. Albino Peixoto acrescentando estas palavras
tão admiradas, tão dignas de ficarem clássicas (ainda
que se disse depois perfidamente que ele as imitara de Guizot): Pode
o ilustre deputado acumular as calúnias, elas não chegarão
à altura do meu desprezo! Peixoto ergueu-se de um jacto, e erecto palidíssimo:
O ilustre deputado insinua que eu sou um caluniador?…
Ordem! Ordem! Resposta admirável de Alípio Abranhos:
Eu não quero insinuar que o ilustre deputado é um caluniador.
Eu só afirmei, e claramente, que o ilustre deputado acumulou calúnias!
Ordem! Ordem! Leio no extracto da sessão esta infecta interrupção
de Gorjão: Não responda, Peixoto! Para os cobardes,
só o escarro ou o chicote…
Alípio Abranhos não se dignou responder-lhe.
Mas o pacífico Peixoto, que decerto a maioria excitava, exclamou
lívido: O desprezo de um homem de bem poderia magoar-me, o
desprezo de um traidor.só me regozija! Triunfante réplica de
Alípio Abranhos: Traidores são os que vendem a sua pena
e fazem de um jornal um prostíbulo! Esta alusão a certos factos
lamentáveis da carreira jornalística de Albino Peixoto, produziu
uma tormenta que eu encontro assim descrita no Diário das Câmaras:
(Sensação prolongada.
Diversas interrupções que não chegam à mesa
dos taquígrafos. Os senhores deputados, de pé, em grande confusão,
trocam palavras coléricas. O Sr. Presidente, não podendo fazer-se
escutar, suspende a sessão).
O que me resta contar é doloroso. Nos corredores da Câmara,
Alípio Abranhos é subitamente interpelado pelo Dr. Albino Peixoto,
que se lança de entre um grupo da maioria, e lhe grita: Retire
as palavras que disse, senhor! Alípio, prudente, balbuciou:
Mas colega… mas caro colega…
Retire as palavras, canalha! rugiu Peixoto.
Alípio (como ele me disse depois) ia talvez, por amor da dignidade
parlamentar, retirá-las, quando Gorjão, intervindo bruscamente,
trovejou: Não retira nada! Entre cavalheiros, estas questões
de honra não se tratam assim. Não retira nada! Venha daí,
Peixoto…
Arrastou o Dr. Peixoto e, daí a pouco, voltava acompanhado de um
certo Sequeira, que depois morreu em África, e dirigindo-se a Alípio
Abranhos: Preciso fazer-lhe uma comunicação séria.
Tenha a bondade de nos acompanhar ao gabinete A da Comissão de Fazenda.
Alípio seguiu-o, e, com ele, todos os seus amigos, na expectativa
excitante de um conflito inesperado. Porém entraram sós no gabinete
A da Comissão de Fazenda e aí Gorjão, que retomara o
seu ar pomposo, declarou: Vimos aqui numa missão de honra.
O nosso amigo, Dr. Albino Peixoto, reclama uma satisfação. V.
Exª chamou-lhe vendido…
Mas primeiro tinha-me ele chamado…
V. Exª chamou-lhe vendido! O que ele tinha chamado a V. Exª
é-nos perfeitamente indiferente. V. Exª chamou-lhe vendido, e,
ou V. Exª, quando se abrir de novo a sessão dá explicações…
Eu estou pronto a dar explicações… (Ouço
daqui estas palavras precipitadas de Alípio Abranhos, que, com os seus
altos princípios de civilização, tinha o horror dos conflitos
de força).
Perfeitamente. As explicações são estas: V.
Exª sobe à tribuna e diz: «Declaro que, quando disse que
o meu amigo Albino Peixoto era um vendido, menti, e que tenho as provas mais
evidentes da sua probidade impecável!» Então os
senhores querem que eu diga publicamente que menti?…
Não querendo dar esta explicação, tenha a bondade
de nos dizer a que horas poderemos encontrar dois amigos seus, para regular
as condições do combate…
Do combate?… Mas, queridos colegas, ponham-se no meu lugar…
A estas palavras tão cordiais, tão conciliadoras, o brutal
Gorjão respondeu: No seu lugar qualquer de nós tinha
há muito tempo marcado a hora e as armas! V. Exª que diz?
Ao menos quero consultar alguns amigos…
Consulte V. Exª os seus amigos.
Consultou, com efeito, dois amigos mas, infelizmente, escolheu aqueles
que.eram menos próprios para promover uma solução humana,
sensata e cristã. Não os mencionarei, porque vivem ainda e ocupam
altas situações no Estado. Chamarei a um A e ao outro B.
A, fidalgo de alto porte, recebera das tradições da sua raça,
um pouco deteriorada, o preconceito clássico do ponto de honra. B,
moço estimável, valente, caçador, possuía uma
única especialidade: a sua destreza à pistola e ao sabre. Ambos,
em questões de honra, tinham a manter uma reputação de
seriedade e de valor. De resto, tanto um como o outro, perfeitos cavalheiros,
mas, infelizmente, muito predispostos, por índole, a soluções
violentas.
Estes dois amigos opinaram, com a unanimidade de um coro antigo, que aceitar
tal exigência, era aceitar, implicitamente, uma humilhação
infamante. Um homem que se declara mentiroso, fecha diante de si as portas
da Sociedade, da Vida Pública e dos seus conhecidos. O Sr.
Abranhos passaria daí por diante a ser um cobarde estabelecido. O
medo seria a sua profissão. Tornar-se-ia o homem que se pode insultar
sem perigo. B disse-lhe mesmo brutalmente: Um homem que comete no
começo da sua vida pública uma tal cobardia, torna-se, mais
tarde ou mais cedo, um armazém de pancada! Mostre que é homem
e ninguém o torna a insultar.
Que se podia responder a isto? Havia, sob o ponto de vista social, alguma
verdade naquelas frases triviais. Alípio Abranhos ou tinha de ceder
às regras absurdas, obsoletas, monstruosas que regulam a sociedade,
ou tinha de abandonar essa sociedade e a carreira que um dia lhe daria o delicioso
prazer de a dominar.
Mas a ideia de se colocar diante de uma espada desembainhada ou de uma pistola
aperrada! Teve, um momento, o desejo furioso de fugir com D. Virgínia,
com o Bibi, para um canto ignorado da terra, e aí, vil mas intacto,
sem elogios nos jornais, mas com todos os membros no corpo, gozar egoistamente
o amor, a paternidade, o repouso, a natureza, o conforto…
Mas consentiria Virgínia em ser a esposa do cobarde Alípio?
Não seria cruel condenar Bibi a ser o filho do abjecto Abranhos? Que
diriam os jornais? Que diria o coronel Serrão? Que risadas no Marrare!
Esta ideia torturava-o. E foi com grande dignidade que respondeu a A e a B:
Eu não tenho medo, os amigos bem o sabem. A minha questão
é de princípios. Sou um homem de progresso, e repugna-me esse
meio de salvar a honra, à maneira da Idade Média! Mas enfim,
a sociedade é a sociedade… Vão-se entender com a fera do Gorjão.
Espero-os em casa… Mas prudência, lembrem-se que tenho família.
As negociações foram longas, muito delicadas. Infelizmente,
parece que desde a primeira palavra entre as testemunhas, ficou assente a
priori, como base natural da argumentação, que «haveria
duelo», e, às 8 horas da noite, Alípio recebeu no seu
escritório os seus amigos A e B, que lhe anunciaram em voz baixa que
ele, Alípio Abranhos, se batia à espada, às sete da manhã,
na Cruz Quebrada, e que os do Peixoto lhe deixavam a ele, Abranhos, a escolha
do cirurgião que melhor lhe conviesse.
Um cirurgião! exclamou Alípio, juntando as
mãos, atónito.
E necessário um cirurgião, para o caso de ser preciso,
por exemplo, ligar uma artéria. Enfim, é sempre indispensável
um cirurgião…
Alípio curvou-se, calado. Há, em certos silêncios humanos,
em certo humano vergar de ombros, uma ironia feroz, que deve fazer corar o
destino, envergonhado da sua tirania… Alípio Abranhos ficou só
no escritório, prostrado sobre o canapé tendo diante
de si a visão nítida de um corpo retalhado a golpes de espada,
que uma viúva pranteia, esguedelhada.
A voz do padre Augusto que, como costumava, dizia algum inocente gracejo
à Joana, (bonita criada que eu ainda conheci) tirou-o deste legítimo
torpor, e de repente, como um pássaro que subitamente atravessa uma
sala aberta, uma ideia de um engenho subtil atravessou-lhe o espírito.
Abriu a porta, chamou o padre, e com uma gravidade que fez arregalar de
terror os olhos do bom eclesiástico, murmurou: Padre Augusto,
vou-lhe confiar um grande segredo… Um segredo tremendo, que há-de
ficar consigo.
O padre, aterrado, balbuciou: É em confissão? E segredo
de confissão? Não! exclamou logo Alípio.
Pelo amor de Deus! Nem por sombras o considere segredo de confissão.
Que tolice! Credo! Isso estragava tudo… Fique bem entendido que não
é segredo de confissão… Mas é um segredo que lhe confio:
bato-me amanhã em duelo! Caramba! exclamou o respeitável
sacerdote, caindo de chofre no canapé.
Então Alípio, sentando-se junto dele, contou-lhe a história
do seu duelo. E terminou dizendo: Se eu lhe digo tudo isto é
para que seja o amigo que amanhã, se houver desgraça, console
a Virgininha. E agora adeus, que tenho papéis a pôr em ordem…
Mas guarde o segredo, que pode a coisa chegar aos ouvidos da polícia
e transtorna-se tudo.
O sacerdote queria objectar, pregar, parabolar mas Alípio,
suave e firme, empurrando-o pelos ombros: É uma coisa decidida.
Adeus. E agora veja lá, padre Augusto, não o vá dizer…
Que a polícia, se o sabe, impede a coisa… Adeus. E amanhã,
às sete, na Cruz Quebrada. Não se esqueça às
sete e guarde-me o segredo, amigo.
Padre Augusto foi ao cabide do corredor, agarrou o chapéu, e precipitou-se
pela escada, como uma pedra que rola.
Ao outro dia, às sete da manhã uma manhã clara,
fria e seca quando Alípio com as suas testemunhas chegavam
ao sítio aprazado, o Regedor de Belém e seis cabos de polícia,
desembocando com fúria de trás de um maciço de árvores,
apoderaram-se dos sete cavalheiros (incluindo o respeitável Teles,
cirurgião)! Foram postos em liberdade às dez horas, de sorte
que D. Virgínia soube por seu marido do perigo que ele correra, e da
intervenção providencial, que lho salvara. O seu orgulho foi
grande. Alípio tomou para ela as proporções de um d’Artagnan,
de um Conde de Monte Cristo! E a sua ternura, os seus afagos, a sua admiração,
estavam dando a Alípio momentos deliciosos, quando a Joana lhe veio
dizer que os Srs. A e B, desejavam absolutamente falarlhe e esperavam na sala.
Há-de ser para o almoço… Há sempre um almoço…
Não, não era para este fim honesto: era para lhe dizer
para que A lhe dissesse secamente, sem se sentar, com as mãos nos bolsos
das calças, fazendo tilintar nervosamente um molho de chaves:
Está provado temos a prova evidente que a polícia
foi avisada por um amigo desta casa… Isto é uma brincadeira torpe.
Nem as testemunhas do Peixoto, nem nós, somos pessoas com quem se brinque
torpemente. O duelo que não pôde ter lugar hoje, há-de
ter lugar amanhã, no Lumiar. Se a polícia aparecer de novo,
o que não é natural, agora que ela está desprevenida,
ficaremos cientes que o mesmo amigo desta casa a avisou, e nesse caso nós
todos nos consideraremos ofendidos, e V. Exª terá de se bater
por ordem de número, com o amigo Gorjão, o amigo Sequeira, o
amigo B, este criado de V. Exª, e depois, com o Peixotinho! Cinco duelos
em lugar de um! Mas eu dou a minha palavra de honra… Eu não
tenho culpa… É um assassinato!.
Temos a honra de desejar a V. Exª muito boas tardes. Aqui estaremos
amanhã, às sete. E a mesma tipóia, o cocheiro é
seguro… E o Pintado. Não se incomode V. Exª… Criado de V.
Exª…
Alípio, só no escritório, teve um grito de revolta:
Aí está o que é um homem de bem meter-se com
espadachins! Se ele tivesse posto este negócio nas mãos prudentes
do Conselheiro Andrade ou do Fradinho, por exemplo, a solução
decerto teria sido outra, toda honrosa, toda amigável; mas entregara-a
a dois personagens sôfregos de publicidade, pedantes do ponto de honra
e ali estava agora, empurrado fatalmente para diante de uma espada
nua! Que se passou na alma deste grande homem, nessa noite de agonia? Mal
sabiam os que passavam, à saída de S. Carlos, pelo Largo do
Quintela, que ali, no segundo andar, por trás de uma janela iluminada,
havia um Horto, uma hora do Jardim das Oliveiras.
Quantas sensações, ideias, imaginações, se revolveram
naquele vasto e complicado cérebro de estadista. Ele revelou-me algumas
dessas torturas em detalhe. Ao princípio tentou correr a casa do Petit,
e pedir-lhe que lhe ensinasse um bote-secreto, desses de que lera nos romances,
que se aprendem em Itália e que inspiram terror nas salas de esgrima.
Pensou em fazer o seu testamento, mas pareceu-lhe um mau agoiro lúgubre.
Desejou então que houvesse uma revolução, ou um incêndio
que devorasse metade da cidade, uma catástrofe social, e ficava a olhar,
desesperadamente, para a tenebrosa pacatez do Largo do Quintela. Lembrouse
com prazer, com esperança, que o Peixotinho sofria de um aneurisma…
Quis rezar, mas distraía-se: permanentemente, via a mesma visão
da véspera um corpo traspassado de estocadas, e uma viúva,
desgrenhada, soluçando.
Que desespero! E ainda nessa tarde estava tão seguro, já com
todo o perigo passado, saboreando as felicitações do seu fácil
heroísmo, descansado para sempre, e agora ali se via outra vez, recaído
nas agonias da incerteza e nos terrores da Eternidade…
Enfim, ao outro dia, depois de um sono agitado, uma carruagem que parou
à porta despertouo.
Dissera na véspera a D. Virgínia que havia, com efeito um
almoço de amigos no Farol da Guia, e que deviam sair cedo; e tão
persuadida ela ficara, que apenas murmurou, meio a dormir, voltando-se para
a parede: Tem cautela… Não faças excessos, sabes que
te dá a dor…
Aludia a certos espasmos nervosos de que ele sofria no estômago.
Partiram. A manhã, muito fria, estava nublada e parda. A e B, justo
é dizê-lo, que na véspera se tinham mostrado tão
secos, tão cortantes, representavam agora com uma solicitude tocante
o seu papel de padrinhos. Enquanto a caleche batia e parecia a Alípio
Abranhos que uma tal velocidade era um exagero irritante davam-lhe
conselhos práticos, tirados da própria experiência e adequados
aos conhecimentos elementares que Alípio Abranhos tinha da esgrima:
que se não descobrisse muito; a ponta da espada sempre diante
dos olhos do adversário; que nunca recuasse e a sua solicitude
era tão grande, que apagaram os charutos matinais, vendo que o fumo
enjoava Alípio. O grande orador, no entanto, como ele me revelou mais
tarde, sentia uma lassitude extrema, o desejo mórbido de um sono profundo,
de anos, em que nada o perturbasse, nem os despeitos do Peixotinho, nem as
crises do Estado, nem a piedade dos seus amigos. Por vezes uma casa, ou uma
esquina de rua, recordavam-lhe outras épocas de felicidade tranquila,
em que a morte lhe aparecia como uma hipótese distante. A morte!…
Maldição! Ia agora talvez para ela, ao trote exagerado, estupidamente
exagerado,.65 daquela magra parelha de praça… Lamentou então
as coisas boas da vida os jantarzinhos em família, as carícias
de Virgínia, o seu quarto em casa das Barrosos, em Coimbra, e os folhados
de cocó, de que gostava tanto! Mas, temendo que o seu silêncio
pudesse ser tomado como a prostração do medo, começou
a falar com os seus amigos de política com uma prodigiosa lucidez e
segundo me afirmou depois um destes cavalheiros num tom em
que se sentia uma solenidade de testamento.
Chegaram enfim, e viram logo, ao pé de uma árvore magra, o
grupo do Peixotinho e dos padrinhos, tagarelando jovialmente.
Depois das saudações tradicionais, os quatro cavalheiros,
reunidos ao pé da árvore, falaram baixo, marcaram o terreno,
desembrulharam as espadas e colocaram os adversários nos seus lugares,
com uma vivacidade muda, que parecia a Alípio Abranhos comparável,
segundo o que lera, aos preparativos rápidos e taciturnos dos carrascos
sobre o cadafalso.
Apenas colocado, Alípio sentiu com terror tomá-lo um vago
enjoo: ou fosse o balanço da tipóia ou o ar frio da madrugada,
o estômago, segundo a frase popular, «embrulhava-se-lhe».
Quando lhe deram a sua espada, um suor frio banhou-lhe a testa; uma debilidade
esvaía-lhe os rins… Desejou vivamente uma cama, um encosto, mas vendo
que o Peixotinho o fixava por trás dos óculos de ouro, resolveu
ser heróico e plantou-se firmemente sobre o solo, erecto, esperando
o sinal.
A, bateu as palmas e então, subitamente, viram Alípio
esgazear os olhos, abrir a boca e apoiando-se fortemente sobre a espada, debruçado
sobre ela, vomitar, vomitar longamente, primeiro resíduos mal digeridos
de comida, depois uma baba gelatinosa, e finalmente, com anseios roucos, fezes
esverdeadas! A, sustentava-o pelos ombros; B, amparava-lhe a cabeça,
e o grande orador, entre os puxões dos vómitos, murmurava com
os lábios babados: É do estômago! … É
um bocado… de indigestão! Todos viram bem que «era do estômago»
e ninguém duvidou do seu valor.
Peixoto, porém esquecendo toda a delicadeza, disse alto, com desdém,
voltando-se para os seus padrinhos: Eu esperarei… Deixá-lo
vomitar… Que vomite, que vomite! Tanto desprezo indignou Alípio:
endireitou-se, pálido, e tomando o ferro, balbuciou: Estou
bem, estou melhor… vamos a isto! E com uma patada na terra mole, ergueu
alto a espada.
O Conde contou-me depois que mal tivera consciência da luta; vira
os dois longos clarões das lâminas lustrosas, e subitamente sentiu
na orelha uma frialdade fina, penetrante. Recuou com um berro: Estou
ferido! Estou ferido na orelha! O cirurgião correu e a serenidade
penetrou longamente, largamente a alma de Alípio, quando o ouviu declarar:
Não é nada; é um golpezito. Com adesivo está
pronto em três dias! A honra foi, no cerimonial do estilo, declarada
satisfeita; os dois adversários que, segundo dizia a acta, se tinham
batido como leões, apertaram-se as mãos, chamando-se Excelências,
e Alípio voltou para Lisboa com os seus padrinhos, na tipóia,
tapando a orelha com o lenço.
Tal foi este combate histórico.
Os jornais da oposição celebraram o orador que sustentava
as suas ideias com a espada e derramava por elas o sangue da sua orelha. D.
Virgínia sentiu todo o seu amor.66 flamejar mais alto e mais forte,
por este homem que lhe parecia superior aos Roldões e aos Oliveiros.
Os jornais do Governo, esses sim, falaram com escárnio dos vómitos
do orador, mas foram bem depressa reduzidos ao silêncio pelos jornais
da oposição, que lembraram que anos antes, o Ministro das Obras
Públicas, batendo-se em duelo, não vomitara, mas tivera um tão
vergonhoso contratempo intestinal, que fora necessário conduzi-lo a
uma venda próxima, onde, durante horas, o prostrado estadista circulou
lividamente de um banco da cozinha para um recanto do pátio, como sob
a influência dissolvente de óleo de rícino tomado sem
discernimento! Como, porém, nem a intempestiva indigestão de
Alípio Abranhos, nem o desastroso relaxamento do Sr. Ministro das Obras
Públicas foram exarados nas actas, o público considerou estas
insinuações como meras tácticas de discussão política
e a coragem de Alípio ficou estabelecida em bases duradoiras. Mais
tarde o Conde tinha mesmo uma certa vaidade neste duelo, a que ele chamava
o seu «baptismo de sangue». Pelo menos deveu-lhe um resultado
estimável: depois dessa gota de sangue, os comentários irritantes
sobre a sua passagem para a oposição foram respeitosamente suprimidos.
Foi por este tempo se me não enganam os documentos que possuo
que se começou a organizar em torno de Alípio Abranhos
um grupo fiel de amigos íntimos, a que se chamou maliciosamente a coterie
Abranhos ou a panelinha Abranhos, mas que eu depois designei num folhetim
do Globo geralmente estimado, com o nome mais respeitoso e mais justo de «Salão
de S. Exª». Não se creia, porém, que eu digo o Salão
de S. Exª como diria o salão de M.me Récamier, o salão
de M.me de Girardin, ou o salão de M.me Adolphe Adam, ou ainda, numa
ordem mais efémera e mais boémia, o salão de M.me Troubetskoï;
estes salões são uma pura instituição parisiense,
que Londres, Viena, Roma, Madrid, Berlim, copiam, dando-lhe a feição
particular da raça, das maneiras e da preocupação nacional.
Tudo difere, por exemplo, entre um salão de Berlim e um salão
de Roma, desde a decoração das salas até às figuras
familiares e características. Num salão berlinense, tudo é
duro, estreito, hirto, fortemente destacado, desde a cor viva dos papéis
ou das sedas baratas, até à forte iluminação de
um gás económico, que dá o mesmo tom áspero ao
loiro seco dos cabelos das mulheres e à figura regrada do oficial de
Estado-Maior.
Pelo contrário, num salão de Roma, tudo é discreto,
de meias-tintas, sóbrio, desde a decoração dos mármores
plácidos, dos doirados leves, da luz aristocrática dos candelabros,
até à palidez dos rostos, ao frufru subtil das caudas dos cardeais
e ao murmúrio brando do italiano, falado por vozes discretas e delicadas.
Não falo por experiência própria. A minha posição
subalterna na sociedade nunca me permitiu viajar ou penetrar nesses recintos
augustos, mas uma pessoa eminente da minha família, meu bom tio Julião,
touriste bem conhecido, tem-me esclarecido sobre estas formas luxuosas das
civilizações superiores.
Em Lisboa, porém, o Salão não existe. Não me
compete estudar aqui as razões desta deficiência: enuncio somente
o facto; portanto, quando digo o Salão do Conde d’Abranhos, quero designar
uma reunião pacata e íntima, onde se toma um chá bem
servido, se abre uma mesa de voltarete, se toca uma valsa conhecida e se fala
no preço dos géneros ou nos «podres» das famílias.
As soirées do Conde d’Abranhos eram desta estimável espécie.
Não havia cerimonial nem aparato: às dez horas vinha o chá
com torradas e bolachas de água e sal; às vezes duas senhoras
enlaçadas valsavam graciosamente; não poucas vezes eu fui chamado
a recitar alguma poesia dos nossos grandes líricos; e os homens graves
repousavam dos cuidados do Estado num pacato voltarete a Vintém.
Insisto nestes detalhes, para destruir a errada opinião (que tende
a introduzir-se na.História Contemporânea) de que o Sal&atiatilde;o
Abranhos era uma caverna política. Não nego decerto que por
vezes se não falasse dos negócios públicos, e que, quando
o Ex.mo Conde era ministro, as personalidades eminentes da maioria não
viessem tomar sem cerimónia a sua chávena de chá. Posso,
porém, afirmar, que nunca nestas pacatas soirées se decidiram
ou se combinaram os grandes movimentos da política, como sucede nos
salões estrangeiros, onde, segundo me tem contado meu bom tio Julião,
se tramam, por trás dos leques, golpes de Estado e se decidem os destinos
da Pátria entre duas vazas de whist! Os íntimos dos Abranhos,
eram, na sua quase totalidade, os antigos familiares do Desembargador Amado.
Era o coronel Serrão sempre o primeiro a chegar, bufando
alto, de aspecto feroz e coração bondoso, sempre com sua filha
Catarina, magra e estonteada, de grande cuja, os dentes maus do abuso dos
doces, as omoplatas salientes sob o corpete do vestido atabalhoado. Nunca
simpatizei com esta família.
Era a excelente D. Joana Carneiro, cujo cirro no estômago alastrava,
inspirando geral compaixão, sempre triste, trazendo todas as noites
a narração dos sintomas crescentes da sua doença. Acompanhava-a,
amiúde, um sobrinho, marialva de calça justa e jaquetão
cingido, grande frequentador do Café Central, com voz rouca da noitada
da véspera, e sempre acanhado de se encontrar naquela sala, entre senhoras,
num lugar onde nem havia fadistas, nem pilecas, nem meios litros. Sua tia,
inquieta do futuro, procurava afincadamente colocá-lo numa repartição
do Estado.
Era ainda a enorme D. Amália Saraiva, a que também já
me referi neste trabalho: os seios fenomenais desta senhora, que se iam desenvolvendo
progressivamente com os anos, pareciam dois mundos. Quando desapertasse o
vestido fortemente espartilhado que os continha, o trasbordar daquelas duas
prodigiosas massas de tecido celular devia ser um espectáculo pavoroso
e grandioso! Viúva de um homem que prestara vagos serviços ao
Estado, reclamava agora com pertinácia uma justa pensão. Vinha
geralmente com sua delicada filha, a tocante Julinha, adorável pela
fidelidade e graça juvenil com que recitava A Lua de Londres e outras
maravilhas da literatura pátria.
Não devo esquecer o Conselheiro Andrade, agora frequentador assíduo
do Salão Abranhos, pequeno, aprumado, escarolado, com o seu perfil
de jurista, as suicinhas brancas, o ar próspero. Proprietário
abastado do Ribatejo, continuava a dar toda a sua atenção à
agricultura, e, como agora escrevia artigos profundos no Arquivo Rural, este
lado literário da sua personalidade estabeleceu entre nós uma
simpatia, que, vindo de um homem tão opulento, é ainda uma das
honras da minha carreira.
Infalível, também, era o Doutor, aquele cavalheiro estimável,
mas de aspecto lúgubre, que todos apenas conheciam por este nome: o
Doutor. Sempre vestido de preto, sempre de luvas, amarelo como uma cidra,
persistia na sua mudez taciturna; porém, continuava a escutar com uma
atenção intensa, a testa franzida, piscando vivamente os olhos,
como num profundo trabalho cerebral. Respeitador fervente das instituições,
das personalidades oficiais, ninguém sabia ainda onde ele vivia, nem
de que vivia: mas precipitava-se com tanta veneração (porque
era homem de sociedade) a tomar as xícaras vazias das mãos das
senhoras, dizia com tanta convicção, na sua voz cavernosa, «tem
V. Exª carradas de razão»; que era geralmente considerado
como um excelente moço.
Mas a maior animação daquelas soirées era dada, como
outrora em casa do Desembargador, pelos nossos conhecidos Fradinhos. O Dr.
Fradinho, que teve depois uma tão gloriosa carreira, não passava
então de um modesto advogado. Possuía, porém, uma certa
fortuna, e com as suas lunetas de ouro e o farto bigode, era na verdade um
belo homem. Nada encantava nele todavia como a vivacidade da conversa; não,
em boa.68 verdade, que eu jamais lhe ouvisse expor uma ideia original ou um
dito faiscante: mas era fecundo e verboso. Ninguém conhecia melhor
a nossa legislação, e sobretudo a da Bélgica, o seu país
favorito. Era além disso activo, ambicioso, dúctil, e a sua
admiração, a sua dedicação por Alípio Abranhos,
davam o traço dominante do seu carácter.
Alípio Abranhos teve assim o desgosto de passar durante algum tempo
por «um grande
chalaceador».
As orelhas abrasaram-se-lhe de vergonha quando, nessa noite, o padre Augusto
lhe veio dizer que no Martinho era voz geral que «para chalaça
não havia outro!» Quisera estrear-se, mostrando a profundeza
de um filósofo, e faziam-lhe a reputação de um folhetinista…
Teve rancor ao seu aparte. Negá-lo era impossível: lá
vinha ao outro dia no Diário das Câmaras, com esta indicação
do movimento (imensa hilaridade).
Teve então de sofrer um martírio mudo, grotesco, de receber
parabéns por uma façanha que o vexava. O Cardoso Torres dissera-lhe:
É disso que se quer! E disso que se quer! Vejo que o amigo
é homem de pilhéria. E matá-los com dichotes ….
Que agonia! E pior ainda foi quando sua tia lhe escreveu, dizendo que em
Amarante, em casa das Neves e das Cunhas, «se tinha falado muito da
pilhéria que ele dissera na Câmara, que fizera rir toda Lisboa»
e que a opinião de todos era que devia ser muito temido, «por
causa das chalaças que soltava». Isto era odioso para um espírito
elevado como o de Alípio Abranhos.
Então a sua atitude tornou-se cautelosa. Para destruir aquela falsa,
grotesca fama de «chalaceador», assombreou, sublinhou a sua natural
seriedade. Tornou bem patente que aquele dito era, nos seus hábitos
intelectuais, uma extravagância isolada. Conversava com prudência,
evitando tudo o que pudesse ser tomado como «gracejo», «saída»
ou «pilhéria». A sua atitude na Câmara era como a
afirmação exterior da gra-vidade dos seus pensamentos: conservava-se
erecto, com os braços cruzados, a testa franzida, pensativo. E um dia
que Cardoso Torres lhe disse: O amigo recolheu-se ao silêncio.
Atire-lhes outro epigrama, homem! Não os deixe…
espicace-os! Alípio respondeu, despeitado: Quando eu combater
a oposição, Sr. Cardoso Torres, há-de ser com a lógica
não com a pilhéria! Pois sim, mas olhe que o
ridículo é uma grande arma.
Não a sei manejar, Sr. Cardoso Torres.
Histórias! … O amigo tem graça… E utilizá-la.
Alípio Abranhos tomou rancor a este cavalheiro, e eu posso mesmo,
com afoiteza, datar desta entrevista a sua resolução de se separar
do ministério Cardoso Torres.
Entretanto ele compreendia que a maneira eficaz e digna de mostrar à
Câmara e ao país a verdadeira feição do seu talento
sério, era pronunciar um grande discurso de eloquência grave:
preparou-se então com fervor para a sua verdadeira estreia.
Os projectos pueris nesse momento em discussão, não lhe davam
a oportunidade de fazer uma oração elevada. Eram medidas subalternas
estradas, um projecto de caminho de ferro, legislação
para as colónias uma série de trabalhos monótonos,
em que se comprazia o espírito mesquinhamente prático de Cardoso
Torres, e que a maioria votava, distraída, desinteressada, perante
as galerias vazias.
Esperava-se, porém, uma Reforma da Instrução, e Alípio
Abranhos decidiu fazer nessa ocasião a sua «estreia de estadista».
A composição deste discurso célebre foi feita no meio
de preocupações graves de família.
Chegava Março e com ele o nono mês de gravidez de D. Virgínia
Abranhos. D. Laura instalarase em casa do genro para se achar mais perto da
filha no momento do transe. Uma bela moça de Campolide, a futura ama,
já estava em casa, e toda a noite ardiam lamparinas propiciatórias
junto de santos especiais.
Entretanto, no seu escritório, Alípio Abranhos, cercado de
autores, compunha o seu discurso.
A Condessa, mais tarde, muitas vezes me confessou quanto a afectava, no
meio dos seus terrores pois estava certa de que morreria ver
de repente, às onze horas, à meia-noite, o marido entrar-lhe
pelo quarto, de chinelos e robe de chambre, o olhar brilhante, e ler-lhe algum
período magnífico que acabava de produzir. Com a roupa sobre
o queixo, a face um pouco inchada, que lhe repuxava a pele em torno dos olhos,
escutava, olhando a sombra grotesca, de grande nariz, que o perfil de Alípio
projectava sobre a parede, e aterrava-se pensando que o menino ou
a menina pudesse nascer com aquele nariz descomunal, fora de toda
a proporção, de tromba, medonho! Enfim o dia chegou. Nessa manhã
D. Virgínia tinha sentido de madrugada algumas dores, e isto causou
entre D. Laura e Alípio uma pequena altercação ao almoço.
A velha devota não compreendia que Alípio Abranhos fosse à
Câmara nesse dia, quando sua mulher estava numa crise tão grave
e na proximidade de um perigo possível.
Mas, minha senhora, eu estou inscrito para falar…
Não há falas nem discursos! O seu dever é estar
aqui, a animar a pequena… O seu lugar hoje é em casa! Primeiro que
tudo estão os deveres que tem para com sua mulher.
Alípio Abranhos aniquilou-a com esta nobre frase: Se tenho
grandes deveres para com minha mulher, não os tenho menores para com
o meu país.
E para terminar o incidente, acrescentou para o criado: José,
vá-me buscar uma tipóia. Fechada! Tomara, logo ao erguer-se,
duas gemadas para clarear a voz, fortificá-la, e queria.53 evitar o
frio dessa áspera manhã de Março. O tempo, com efeito,
inquietava-o: havia um sudoeste brusco no ar enevoado, e ele receava que a
chuva afastasse o público da galeria.
Choveu, infelizmente, a torrentes; e Alípio teve o desgosto de ver,
ao chegar a S. Bento, que não só a Câmara era menos numerosa
do que habitualmente, mas que os bancos das galerias estavam quase desertos.
Os deputados que tinham vindo a pé e traziam as botas encharcadas
e os joelhos húmidos passeavam nos corredores; ruidosamente a chuva
fustigava a clarabóia. E Alípio não pôde deixar
de pensar com despeito, que havia da parte de Deus uma certa ingratidão,
fazendo tão chuvosa essa manhã memorável, em que ele
vinha à Câmara defender o sagrado princípio da educação
religiosa.
Tem a palavra o Sr. Alípio Abranhos disse enfim,
na sua voz um pouco fanhosa, o presidente, Dr. Antão Carneiro.
Muitas vezes o Conde me confessou que sentiu nesse momento uma agonia: o
estômago contraía-se-lhe, e receou um momento que uma súbita
dor de ventre o obrigasse a correr à latrina situação
medonha ou que, de repente, se lhe varresse da memória todo
o discurso, que, havia três noites, declamava sucessivamente no silêncio
do seu escritório.
Felizmente para o país, nem a memória nem a entranha o traíram…
e Alípio Abranhos, nessa fria manhã de Março, fez o primeiro
discurso da sua fecunda e grandiosa carreira política.
Este discurso é bem conhecido.2 Alguns dos seus melhores trechos
estão transcritos na Selecta para uso dos alunos do 3º ano de
português.
O Conde conservou sempre por este primeiro trabalho uma predilecção
parcial. Ele é, com efeito, apesar do liberalismo exagerado que o caracteriza
e que mais tarde a experiência, o poder, os anos, o conhecimento
dos homens devia tão cabalmente diminuir a obra literariamente
mais bem trabalhada do Conde.
Esse exagero liberal, é, porém, facilmente explicável.
Não só, então, ainda moço, o seu espírito,
apesar de grave e reflectido, era susceptível de um certo entusiasmo,
mas também o discurso, composto sob a influência de recentes
leituras de Mirabeau e de Lamartine, tomara naturalmente a ampla retórica
liberal que domina as orações desses mestres. Esse excessivo
espírito de liberalismo pode-se dizer que é puramente reflexivo:
assemelhando-se tanto à eloquência desses inspiradores, o discurso
conservou alguma coisa das suas doutrinas. Que é, porém, genuinamente
de Alípio Abranhos, atestam-no o estilo, o colorido, o período.
Quem não conhece essa formosa imagem sobre o envenenamento das fontes
públicas, comparado ao envenenamento das nascentes do espírito?
Que formoso quadro aquele em que descreve o «sombrio vulto de Filipe
II» no Escorial! Com que vigor pinta a poesia dos tempos cavalheirescos
da Meia Idade! Que página aquela em que descreve a invasão dos
Bárbaros e «o cavalo de Atua que, onde pousa a pata, faz secar
a erva dos prados!» Que sublime apóstrofe arremessada a Tibério!
Que traços de um pitoresco histórico nossa imagem sobre o «sombrio
jesuíta, aqui metendo na mão de Ravaillac o punhal regicida,
além aperrando a clavina que há-de fazer em estilhaços
os vidros do coche de D. José I, depois vertendo na taça de
vinho de Chipre que o Papa Clemente leva aos lábios, o veneno negro
dos Bórgias!» Que períodos repassados de lágrimas
sobre o cadafalso de Luís XVI! Que grandeza épica, descrevendo,
através da Europa «o galope triunfante do cavalo branco de Napoleão!»
Poderia dizer-se que tudo isto nem sempre vinha a propósito; poderia
dizer-se mesmo, como o conhecido litigante ao advogado loquaz: «Não
se trata de Roma, de Cartago, nem da destruição de Babilónia:
trata-se do meu sobrinho. Fale do meu sobrinho!» Mas a isto deverse-
ia responder: «Então reclamai para sempre a supressão
da Poesia, da Eloquência e do Génio!» Cada uma destas grandes
imagens, destinadas a enriquecer o pecúlio nacional da oratória
clássica, era seguida de um estalar entusiasta de «bravos!»,
de «sublimes!» A voz, muito admirada, tinha uma plenitude metálica
e sonora e ia, nas suas ondulações vibrantes, como ondas triunfantes
que banham os rochedos da praia, bater os renques de peitos dilatados e extáticos.
O gesto foi considerado perfeito, ainda que as frequentes punhadas no rebordo
da tribuna, dando um som oco de pau, pareceram demasiadamente impetuosas.
E Alípio, que subira à tribuna «simples Alípio
Abranhos» era, quando desceu, «o nosso inspirado Alípio
Abranhos!» Muitas vezes este adjectivo, ou outros paralelos
«o nosso espirituoso, o nosso fértil» são
todo o proveito de uma vida de labor e de produção. Quantos
dão tudo o que contém o cérebro, até à
última gota, ficando depois, para sempre, com o aspecto grotesco e
triste de um limão espremido cuja recompensa é, ao fim
de tanto esforço doloroso, uma sinecurazinha numa repartição
do Estado e um adjectivo adiante do nome! Mas, para Alípio Abranhos,
a recompensa não se limitou a um adjectivo, e esse discurso foi o começo
da sua prodigiosa carreira.
Ao entrar em casa, ainda vibrante das emoções da Câmara,
esperava-o outra alegria, mais grave, mais íntima: era pai! Era pai
desde as três horas da tarde! Foi sua sogra que lho veio anunciar ao
alto da escada, num grito: E o senhor até a estas horas por
fora! Está tudo acabado! E um menino! E com a maior felicidade! …
É um menino! O seu vivo retrato! Não descreverei a cena tocante
e doce que se passou no quarto da parturiente, porque a ela não assisti.
Não quero, como esses biógrafos de antigos reis e estadistas,
que descrevem os gestos e as palavras de cenas passadas em outros séculos,
introduzir o elemento imaginativo, o romance, neste trabalho histórico.
Mas todos nós podemos conceber a emoção desse pai, saído
apenas de um triunfo social para vir gozar inesperadamente um triunfo doméstico,
no mesmo dia orador consagrado e pai venturoso.
Dizem-me que Alípio Abranhos, acabrunhado de uma felicidade muito
forte, se deixou cair numa poltrona com os olhos banhados de lágrimas,
o filho nos braços, envolto nas suas faixas brancas, e murmurou:
Isto é um dia histórico… isto é um dia histórico!
Passou-se então dos dois lados da cama onde D. Virgínia, branca
como as rendas da fronha, sorria de um vago sorriso exausto uma tocante
troca de impressões exaltadas. Alípio contava o seu discurso
e D. Laura o parto.
A Câmara ergueu-se como um só homem, e eram bravos,
eram berros! As primeiras dores foram terríveis, não
é verdade, filha? Estava agarrada ao meu braço, que até
tenho a certeza que me deixou uma nódoa negra.
Coitadinha! Mas o melhor foi quando eu desci; os apertos de mão,
os abraços…
Abraços merece ela, que se portou com muita coragem! E a
criança, que saiu como por uma porta aberta…
Ao canto do quarto, o novo ser, tenra vergôntea da casa dos Noronhas,
indo dos braços da parteira para os braços da ama, chorava baixinho,
com um som de boneca a que se aperta o estômago, nas suas primeiras
contrariedades humanas.
Nesse mesmo dia, «em atenção à coincidência
do seu nascimento e do triunfo do.papá», como disse o padre Augusto,
foi decidido que o menino se chamasse Carlos Benvindo.
Durante o período legislativo desse ano, Alípio Abranhos fez
ainda dois discursos, um, sobre política colonial, outro, sobre o projecto
do Caminho de Ferro de Leste. Este último é sobremodo eloquente:
poder-se-ia chamar a Ode ao Caminho de Ferro.
Nunca o utilitário modo de comunicação foi descrito
com tal colorido, com tal vigor de imaginação: «Vede-lo
exclama o orador esse monstro de ferro, soltando das narinas
turbilhões de fumo, semelhante ao Leviatã da fábula!
(bravo! bravo!) Vede-lo, atravessando como um relâmpago os mais áridos
terrenos: e que maravilhoso espectáculo se nos oferece então:
ao contrário do cavalo de Atua, cuja pata fazia secar a erva dos prados,
por onde passa este novo cavalo de fogo (bravo! bravo!) brotam as searas,
cobrem-se as colinas de vinha, (muito bem! muito bem!) penduram-se os rebanhos
nas encostas verdejantes dos montes, murmuram os ribeiros nas azinhagas, ondulam
as searas (muito bem!) e o jovial lavrador lá vai, satisfeito e alegre,
cantando as deliciosas canções do campo, junto à esposa
fiel, coroada das mimosas flores dos prados! (Bravo! Bravo! Sensação!).
Encerradas as sessões, Alípio Abranhos, sua esposa e o tenro
Benvindo partiram para Campolide, onde iam passar o Verão.
Foram três meses de concentração, de íntima felicidade.
Tinham passado ali, havia um ano, a sua lua de mel, e a sombra de cada árvore,
cada moita de flores, possuíam para eles o valor de uma recordação
deliciosa: a quinta tornara-se-lhes como uma vasta confidente simpática;
era com orgulho que lhe levavam o tenro Bibi, rabujando nos braços
da ama, como o fruto vivo do amor que ela protegera.
Mas nem por isso Alípio Abranhos ficou inactivo. Trabalhou muito
e ali escreveu trechos, imagens, perorações de futuros discursos.
Foi ali também que ele tomou, passeando à tarde na bela alameda
de loureiros, como costumava, devagar, com as mãos atrás das
costas, a resolução importante que devia ter na sua carreira
uma influência tão grave.
O ministério Cardoso Torres, ao fim da última sessão
parlamentar, estava gasto. Esta expressão a que eu chamaria, se me
não contivesse o respeito, a «gíria constitucional»,
refere-se a um fenómeno venerável e repetido, que eu nunca com-preendi
bem, apesar das explicações benévolas que me foram dadas
por conservadores, republicanos e cépticos.
Há ministérios que se gastam. E todavia, esses ministérios,
como os outros, administram o tesouro com honestidade, fazem o expediente
das secretarias com suficiente regularidade, mantêm no país uma
ordem benéfica, não oprimem nem a imprensa nem a consciência,
são respeitosos para com o Chefe de Estado, acompanham com dignidade,
ao Alto de S. João, todos os defuntos ilustres, falam nas Câmaras
com honrosa correcção, são na vida privada cidadãos
estimáveis, e no entanto ao fim de alguns meses desta rotina
honesta, pacata e higiénica gastam-se.
Gastam-se porquê? Compreende-se que um ministério que luta
com dificuldades, que se coloca ao través da opinião pública,
se gaste, como ao través de um frágil estacado que uma corrente
hostil incessantemente bate. Compreende-se ainda que um governo criado especialmente
para resolver certas questões sociais ou políticas, se torne
desnecessário, desde que as tenha resolvido, e fique como o zângão
que fecundou a abelha e é daí em diante um inútil.
Mas quando se não dá nenhuma destas hipóteses, quando
os ministros não foram trazidos do seio da sua família para
resolver questões sociais, ou porque as não haja, ou
porque seja um princípio tacitamente estabelecido deixá-las
sem resolução quando,.56 em lugar de se esforçarem
contra a larga corrente da opinião, os ministros lhe bolam regaladamente
no dorso, não compreendo como um ministério se possa gastar.
Um dia pedi respeitosamente ao Conde d’Abranhos a explicação
da palavra e do fenómeno, e S. Exª, o que raras vezes sucedia,
deu uma resposta vaga, tortuosa, reticente: É uma coisa que
se sente no ar. É um não sei quê… Sente-se que a situação
está gasta…
Não me permitiu o respeito que insistisse, mas, no fundo do meu entendimento,
guardo um secreto terror por este fenómeno incompreensível!
O ministério Cardoso Torres estava portanto gasto. Calculava-se que
ele pudesse talvez sobreviver durante grande parte da próxima sessão,
mas, para o fim de Abril, devia desaparecer subitamente, como tinham desaparecido
os Bexigosos e a corveta Saragoça! O Partido Nacional retomaria então
o poder, e Alípio Abranhos que, agora, era Governo, Influência,
Força, Lei, passaria a ser o deputado loquaz de uma oposição
estéril, pois que ninguém acreditava que os Reformadores
a que pertencia Cardoso Torres tendo subido ao poder por um acaso,
vissem esse acaso repetir-se. Os Reformadores eram pois, na frase clássica,
«um partido sem futuro». O próximo ministério Nacional
havia de colar-se às cadeiras do poder durante anos. E poderia, durante
anos, Alípio Abranhos ver as suas faculdades, o seu génio, gastarem-se
na retó-rica hostil e rancorosa da oposição? Além
disso o seu círculo de Freixo não era ainda um círculo
certo. Durante esses curtos meses de sessão, Alípio não
tivera tempo de prender definitivamente, pela gratidão, pelo interesse,
pela lisonja, pelos serviços prestados, os influentes de Freixo. Se
os Nacionais dissolvessem a Câmara, quem sabe se Alípio Abranhos
não se veria empurrado involuntariamente para as doçuras da
vida íntima, fazendo biribi no beicinho do Bibi, sob as sombras de
Campolide, enquanto outros, sem a sua eloquência nem os seus estudos,
trotariam para Belém, repoltreando-se nas almofadas do poder? Decerto
tinha deveres para com Cardoso Torres: fora ele que o nomeara deputado, que
lhe abrira as portas da vida pública, que o fizera… Mas, por outro
lado, tinha deveres maiores para consigo mesmo, para com a sua carreira, o
seu nome, e, sobretudo, para com o tenro Bibi.
Não devia ele tornar-se grande no seu país, para um dia poder
apoiar a carreira do Bibi? Tinha ainda deveres para com Virgínia, a
quem pesava a obscuridade social, e que, como uma verdadeira portuguesa, ansiava
por fazer a sua grande mesura de corte diante de SS. MM.
Tinha enfim deveres para com o país, ao qual não podia negar
os serviços do seu alto entendimento! Estas considerações
pesou-as bem Alípio Abranhos, nessas horas da tarde em que passeava
solitário na alameda de loureiros; e quando em princípios de
Novembro voltou para Lisboa, tinha decidido, no segredo da sua alma, passar-se
com as suas armas de eloquência e a sua bagagem de saber para o campo
inimigo. Ia fazer-se oposição! Esta resolução
não a revelou a ninguém, nem à sua esposa
mas durante meses preparou o grande discurso em que explicaria, como ele disse,
«as razões de Estado que me fazem passar destas bancadas estéreis
(e designava a maioria) para aqueles bancos fecundos!» (e mostrava a
oposição).
Muitas vezes este grande acto político foi chamado uma «indecente
traição». Nada mais absurdo. Pergunto eu: que é
trair? É abandonar os ideais que se serviram, e passar, sem razão,
para o serviço de ideais opostos que até aí se combatiam!
Isto é normalmente, materialmente, uma traição.
Mas havia entre os Reformadores e os Nacionais ideais opostos? Abandonava
Alípio Abranhos ideias queridas, para ir, por interesses grosseiros,
defender ideias.57 detestadas? Não.
As ideias que servia entre os Reformadores, ia servi-las entre os Nacionais.
Em Religião, que eram os Reformadores? Católicos, Apostólicos,
Romanos. E os Nacionais? Idem.
Em Política, o que eram os Rei armadores? Conservadores constitucionais.
E os Nacionais? Idem.
Não tinham ambos o mesmo amor pela dinastia? O mesmo.
Não eram ambos sustentáculos dedicados da propriedade?
Dedicadíssimos.
Não desejavam ambos a estrita aplicação da Constituição,
só da Constituição, de toda a Constituição?
Desejavam-na ambos, ardentemente.
Não eram ambos centralizadores? Eram.
Não estavam ambos firmes na manutenção de um exército
permanente? Firmíssimos, ambos.
Não tinham ambos um nobre rancor aos princípios revolucionários?
Um rancor nobilíssimo.
E em questões de Instrução, de Imprensa, de Polícia,
não tinham ambos as mesmas óptimas ideias? Absolutamente as
mesmas.
Não eram ambos patriotas? Fanaticamente! Então? Pode-se
dizer que Alípio Abranhos, indo dos Reformadores para os Nacionais,
traía as suas ideias? Não! Certamente não! Mas, dir-se-á,
traiu o seu amigo Cardoso Torres.
Distingamos: Em Cardoso Torres há o homem e o político. Trair
o homem, seria, por exemplo, (ainda que tal suposição me faz
tremer de horror) pôr mão libidinosa no seio respeitável
de D.
Josefa Cardoso Torres. Alípio Abranhos fê-lo? O vosso silêncio
grave é a melhor resposta! Mas traiu o político, direis. Vejamos:
que é um político? E um ser que simboliza um complexo de ideias:
só se pode traí-lo, traindo as ideias que ele representa. Ora
eu provei suficientemente que Alípio Abranhos não traiu
nem em Religião, nem em Moral, nem em Economia Política, nem
em Administração, nem em Pedagogia as ideias representadas
pelo Ex.mo Cardoso Torres.
Onde está pois a traição? Dizei-o. Ah! esses olhares
no chão, essa expressão consternada, provam sobejamente que
nada tendes a responder aos meus argumentos impecáveis! Passou pois
para a oposição o nosso grande Alípio, e com que prodigiosa
impressão esse passo foi recebido no país, di-lo a História
Constitucional.
Foi no discurso de resposta ao Discurso da Coroa que se viu Alípio
Abranhos subir à tribuna, e com palavras comovidas, dizer que a sua
consciência, os seus princípios, o seu patriotismo, forçavam-no
a separar-se de amigos «cujo estandarte segui» exclamava
«enquanto julguei que eles levavam o País à conquista
do Progresso mas de quem me separo com dor, ainda que com firmeza,
no dia em que vejo que eles impelem a minha Pátria, esta Pátria
que eu amo mais do que amei minha mãe para os abismos e para
a ruína!» (Bravo! Bravo!) Com um grande tacto político,
Alípio Abranhos nunca disse claramente, nesse discurso magistral, os
factos que lhe provavam que o Ex.mo Cardoso Torres fosse arrastando Portugal
aos Abismos; mas os apoiados unânimes, os bravos frenéticos da
oposição, mostravam-lhe que, ainda que ele, por respeito aos
seus antigos camaradas, calasse esses factos, a oposição os
compreendia absolutamente.
Assim, que grande ovação quando Alípio Abranhos traçou
o inspirado quadro do estado do País sob a administração
Cardoso Torres: «Olhai em redor, e vede este formoso torrão de
Portugal, que vós jurastes, nas mãos de El-Rei defender e fazer.58
prosperar; olhai e dizei-me se sois dignos de estar nesses bancos uma hora
mais: por toda a parte o esbanjamento da fazenda pública, por toda
a parte o patrocinato primando o mérito; a escola, essa fonte pública,
seca de instrução; as férteis campinas, desoladas; as
estradas que prometestes, cobertas dos pedregulhos e das lamas da incúria;
as cadeias, esses depósitos do mal, trasbordando; e o pobre camponês,
que sucumbe ao peso dos impostos, regando com lágrimas o grão
escasso que lhe dá um solo desolado!» (Bravo! Bravo!). E os ministros,
nos seus bancos, com os braços frouxos, a cabeça pendente, sentindo
retumbar-lhes aos ouvidos aquela voz, igual a outra que na Antiguidade, do
fundo dos ares apostrofara Caim, pareciam contemplar, aterrados, a visão
pavorosa da Pátria arruinada! A sensação foi prodigiosa.
Nessa noite, quando, deitado no seu sofá exausto do seu grande feito
oratório, Alípio se reconfortava na placidez do chá doméstico,
recebeu uma carta do Conselheiro Guedes Navarro, chefe da oposição
Nacional, em que lhe dizia, depois de outras considerações:
«Como discurso, poucos conheço iguais em Mirabeau ou em Lamartine.
E para o partido Nacional uma honra, não só ter recebido nas
suas fileiras um homem do seu valor, mas ter dado ocasião a que pronunciasse
um discurso de tal elevação. Já não é somente
para cumprir o nosso pacto, que lhe será guardada uma pasta na formação
de um ministério Nacional. Essa pasta não é, d’ora em
diante, a recompensa da sua adesão: é uma necessidade de existência
para o partido Nacional, que terá em V. Exª, de futuro, o seu
Mirabeau conservador.» Donde se deduz, de resto, que Alípio Abranhos,
com um grande alcance político e uma profunda experiência dos
homens, não dera aquele passo sem primeiro ter garantidos todos os
meios de penetrar no poder, e prestar ao País aqueles altos serviços
que lhe estava preparando o seu génio político.
O desespero do governo e da maioria teve um raro carácter de alucinação.
Alípio Abranhos passou a ser o infame, o canalha. Nessa mesma noite
toda a sua vida foi explorada, rebuscada como uma velha algibeira, na esperança
de se encontrar algum escândalo esquecido. Disse-se que fora o amante
da velha Madame Gato, que tinha um prostíbulo no Arco do Bandeira;
espalhou-se que era filho de um sapateiro de Penafiel, muitas vezes condenado
por ladrão; afirmou-se que vivia em desavenças contínuas
com sua mulher e que os vizinhos ouviam de noite os gritos das lutas conjugais;
contou-se que o velho Dr. Vaz Correia lhe dera pontapés no escritório,
por o ter encontrado a falsificar um documento; murmurou-se que era dado em
Coimbra a deboches contra a natureza.
Dos artigos dos jornais nem falarei, para não concorrer a desacreditar
mais ainda, perante o público, uma instituição a que
implicitamente pertenço.
Sentia-se que a sessão seguinte seria, na frase consagrada, «tempestuosa».
Com efeito, as galerias trasbordavam de gente: todos os amigos que outrora
pertenciam às soirées do Desembargador Amado, e que, agora,
começavam a frequentar a casa dos Abranhos, lá estavam. Esperava-se
que em presença das recriminações, que não podiam
deixar de se produzir da parte da maioria indignada, Alípio Abranhos
pronunciaria outro discurso, no qual o orador se mostrasse, na frase que ouvi
a não sei que personagem: «Demóstenes multiplicado por
três!» Lá estava o coronel Serrão, que idolatrava
Alípio, descarregando olhadelas ferozes como cutiladas sobre os «cachorros
da maioria!» Lá estava o Conselheiro Andrade, que acompanhava
D. Virgínia e a bela Fradinho; lá estava o sobrinho da pobre
D. Joana Carneiro, em bicos de pés, na última bancada, e à
frente, mais sombrio, mais meditativo, o Doutor.
Antes da ordem do dia, um deputado de estatura hercúlea e de voz
de roncão, pediu a palavra.
Era o famoso Gorjão, e a sua presença na tribuna, onde ele
subiu, se plantou, fazendo reluzir sob as sobrancelhas espessas um olhar coruscante,
revelou suficientemente o plano infame da maioria. Eu classifico este plano
com uma palavra: tentativa de assassinato.
O famoso Gorjão representava no partido dos Rei armadores, a que
ele de resto sempre pertenceu, o papel que desempenhava nas redacções
dos jornais parisienses da Restauração o espadachim, tão
poderosamente descrito por Balzac. O espadachim era ordinariamente um antigo
oficial da Guarda Imperial, que a Restauração reformara, e que,
levado à miséria pelo absinto, o tabaco e as fêmeas, alugava
a força do seu pulso e a sua destreza à espada a algum jornal
de combate. De olho avinhado, voz catarrosa, bigode erriçado, grande
casaco debruado de astracã abotoado até ao pescoço, cabelo
à escovinha, chapéu ao lado, este personagem temeroso passava
o seu dia na antessala de uma redacção, queimando o cachimbo
de espuma, repastando-se nos jornais de histórias de crimes e de roubos,
e esperando que pessoas ofendidas subissem as escadas, a pedir a explicação
de um artigo muito insultante ou de uma calúnia muito directa. E se
algum desgraçado aparecia, o feroz indivíduo erguia a sua enorme
estatura, escarrava grosso no chão, e perguntava com voz agressiva
e o olho raiado de sangue: As suas armas? Os seus padrinhos? As ordens!
E, ou o ofendido recuava diante da medonha aparição deste cão
de fila ou, ao outro dia, recebia, através de uma entranha
essencial, a lâmina infalível da sua espada.
Gorjão era, entre os Reformadores, o espadachim do partido. Ele foi,
durante vinte anos, neste país, o papão! A sua barba negra era
feroz, e quando descia o Chiado com o chapéu sobre o olho, fazendo
sibilar a bengala, um terror invencível contraía o coração
dos cidadãos… A sua biografia, desde Coimbra, era uma lenda pavorosa
de cabeças partidas, queixos esmigalhados, tremendos heroísmos
de pulso. Quando entrava num café, toda a gente se curvava palidamente
sobre o periódico ou o copo de genebra, evitando ser notado por ele
pois se dizia que o seu olhar era imediatamente seguido do seu murro.
O Marrare, então florescente, era o antro desta fera. Quando ele morreu
de um catarro de bexiga, Lisboa sentiu um alívio suave e as costas
dos cidadãos endireitaram-se, porque já não as ameaçava
de alto a bengala do Gorjão.
A intenção perversa da maioria era, pois, clara: Gorjão,
da tribuna, injuriava Alípio; Alípio, bravo, retorquia com irritação;
e Gorjão, nos corredores, esmagava Alípio a murros, ou, ao outro
dia, nas terras da Pólvora, varava-o com uma espadeirada! Parece hoje
provado que tal plano fora resolvido numa reunião da maioria: vergonha
eterna! Não procederia de outro modo uma conjuração de
zulos, agachados ferozmente entre o alto tojo africano, no Kraal de Cettivayo!
Este grosso brutamontes entrara para S. Bento para assassinar a Eloquência,
o Patriotismo e o Génio, na pessoa de Alípio Abranhos! Ainda
bem que te matou, fera, um providencial catarro de bexiga: a tua bengala não
mais oprime os homens livres, e eu posso impunemente, e com regozijo, escarrar-te
sobre a sepultura já que o haver-te escarrado na face ter-me-ia
sido impossível, por ser, como sou, de constituição delicada!
Com efeito, as fauces do cão de fila abriram-se, e durante uma hora
ladrou a injúria; e como ele tinha (meu Deus, sejamos justos com todo
o mundo!) uma certa habilidade de prosa, uma experiência astuta da perfídia
parlamentar, não o fez claramente, o que lhe atrairia sobre o dorso
as severidades do Regulamento. Não pronunciou o nome de Alípio.
Falou apenas do traidor, do apóstata, e sob esta designação
vilmente vaga, rugiu, com punhadas de atleta, a sua verrina estudada. O desgraçado,
porém, participava, como todos os da sua corpulência, da clássica
estupidez.dos colossos: não contava com a finura, a habilidade, o génio
de Alípio.
Com efeito, o nosso herói deu-lhe uma lição severa:
todo o tempo que o Roldão da Baixa trovejou, Alípio, curvado,
rufava tranquilamente com os dedos sobre a sua pasta de verniz.
E quando, entre os aplausos da maioria alucinada, o medonho Gorjão
terminou, lançando uma apóstrofe «aos cobardes que sob
a injúria, em lugar de erguer a cabeça em desafio, rufam, agachados,
sobre as mesas» Alípio, que todos esperavam ver pular para a
tribuna, tomou serenamente o Diário do Governo, e pôs-se a folheá-lo
com pla-cidez.
Dos bancos da maioria saíram vozes: Que nojo! Que abjecção!
Mas o grande homem, pálido, sim, de emoção reprimida,
mas sereno na aparência, continuou imperturbável a folhear o
Diário do Governo. Assim o plano da maioria falhava. Alípio
Abranhos, provocado, insultado, caluniado, lia o Diário do Governo!
Esperando provocar-lhe uma cólera fatal, produziam-lhe apenas uma serenidade
sublime! Daqui, uma raiva desordenada e outro orador da maioria, o Sr. Albino
Peixoto, subir à tribuna: depois do Roldão trovejante, era Simão
de Nântua, o melífluo.
Este personagem, com efeito, pela face redondinha e jovial, de óculos
de ouro, por todo o seu serzinho barrigudo, pela untuosidade vaga das suas
palavras, pela sua plácida polidez, assemelhava-se ao amável
filantropo, cheio de provérbios e de virtude, de que fala o livro querido
onde aprendemos a soletrar.
O seu discurso foi a repetição das mesmas injúrias,
mas em voz suave e chorosa. Os vitupérios que o outro rugira, este
lagrimejou-os. Era, de resto, pessoa de uma proverbial pacatez: havia nos
seus movimentos a hesitante timidez de um míope que perdeu os óculos;
caminhava na vida como na rua, com extremo cuidado, evitando pisar um calo
ou uma susceptibilidade.
Em consequência da sua autoridade intelectual (e não, como
vilmente se disse, porque deste não tinha medo), Alípio decidiu
responder-lhe.
O silêncio que se fez na Câmara quando Alípio Abranhos
se ergueu e pediu a palavra, foi um daqueles clássicos silêncios
muito conhecidos e estimados em retórica «que precedem
as tempestades».
Começou por dizer que se erguia para responder ao Sr. Albino Peixoto
e só ao Sr. Albino Peixoto acrescentando estas palavras
tão admiradas, tão dignas de ficarem clássicas (ainda
que se disse depois perfidamente que ele as imitara de Guizot): Pode
o ilustre deputado acumular as calúnias, elas não chegarão
à altura do meu desprezo! Peixoto ergueu-se de um jacto, e erecto palidíssimo:
O ilustre deputado insinua que eu sou um caluniador?…
Ordem! Ordem! Resposta admirável de Alípio Abranhos:
Eu não quero insinuar que o ilustre deputado é um caluniador.
Eu só afirmei, e claramente, que o ilustre deputado acumulou calúnias!
Ordem! Ordem! Leio no extracto da sessão esta infecta interrupção
de Gorjão: Não responda, Peixoto! Para os cobardes,
só o escarro ou o chicote…
Alípio Abranhos não se dignou responder-lhe.
Mas o pacífico Peixoto, que decerto a maioria excitava, exclamou
lívido: O desprezo de um homem de bem poderia magoar-me, o
desprezo de um traidor.só me regozija! Triunfante réplica de
Alípio Abranhos: Traidores são os que vendem a sua pena
e fazem de um jornal um prostíbulo! Esta alusão a certos factos
lamentáveis da carreira jornalística de Albino Peixoto, produziu
uma tormenta que eu encontro assim descrita no Diário das Câmaras:
(Sensação prolongada.
Diversas interrupções que não chegam à mesa
dos taquígrafos. Os senhores deputados, de pé, em grande confusão,
trocam palavras coléricas. O Sr. Presidente, não podendo fazer-se
escutar, suspende a sessão).
O que me resta contar é doloroso. Nos corredores da Câmara,
Alípio Abranhos é subitamente interpelado pelo Dr. Albino Peixoto,
que se lança de entre um grupo da maioria, e lhe grita: Retire
as palavras que disse, senhor! Alípio, prudente, balbuciou:
Mas colega… mas caro colega…
Retire as palavras, canalha! rugiu Peixoto.
Alípio (como ele me disse depois) ia talvez, por amor da dignidade
parlamentar, retirá-las, quando Gorjão, intervindo bruscamente,
trovejou: Não retira nada! Entre cavalheiros, estas questões
de honra não se tratam assim. Não retira nada! Venha daí,
Peixoto…
Arrastou o Dr. Peixoto e, daí a pouco, voltava acompanhado de um
certo Sequeira, que depois morreu em África, e dirigindo-se a Alípio
Abranhos: Preciso fazer-lhe uma comunicação séria.
Tenha a bondade de nos acompanhar ao gabinete A da Comissão de Fazenda.
Alípio seguiu-o, e, com ele, todos os seus amigos, na expectativa
excitante de um conflito inesperado. Porém entraram sós no gabinete
A da Comissão de Fazenda e aí Gorjão, que retomara o
seu ar pomposo, declarou: Vimos aqui numa missão de honra.
O nosso amigo, Dr. Albino Peixoto, reclama uma satisfação. V.
Exª chamou-lhe vendido…
Mas primeiro tinha-me ele chamado…
V. Exª chamou-lhe vendido! O que ele tinha chamado a V. Exª
é-nos perfeitamente indiferente. V. Exª chamou-lhe vendido, e,
ou V. Exª, quando se abrir de novo a sessão dá explicações…
Eu estou pronto a dar explicações… (Ouço
daqui estas palavras precipitadas de Alípio Abranhos, que, com os seus
altos princípios de civilização, tinha o horror dos conflitos
de força).
Perfeitamente. As explicações são estas: V.
Exª sobe à tribuna e diz: «Declaro que, quando disse que
o meu amigo Albino Peixoto era um vendido, menti, e que tenho as provas mais
evidentes da sua probidade impecável!» Então os
senhores querem que eu diga publicamente que menti?…
Não querendo dar esta explicação, tenha a bondade
de nos dizer a que horas poderemos encontrar dois amigos seus, para regular
as condições do combate…
Do combate?… Mas, queridos colegas, ponham-se no meu lugar…
A estas palavras tão cordiais, tão conciliadoras, o brutal
Gorjão respondeu: No seu lugar qualquer de nós tinha
há muito tempo marcado a hora e as armas! V. Exª que diz?
Ao menos quero consultar alguns amigos…
Consulte V. Exª os seus amigos.
Consultou, com efeito, dois amigos mas, infelizmente, escolheu aqueles
que.eram menos próprios para promover uma solução humana,
sensata e cristã. Não os mencionarei, porque vivem ainda e ocupam
altas situações no Estado. Chamarei a um A e ao outro B.
A, fidalgo de alto porte, recebera das tradições da sua raça,
um pouco deteriorada, o preconceito clássico do ponto de honra. B,
moço estimável, valente, caçador, possuía uma
única especialidade: a sua destreza à pistola e ao sabre. Ambos,
em questões de honra, tinham a manter uma reputação de
seriedade e de valor. De resto, tanto um como o outro, perfeitos cavalheiros,
mas, infelizmente, muito predispostos, por índole, a soluções
violentas.
Estes dois amigos opinaram, com a unanimidade de um coro antigo, que aceitar
tal exigência, era aceitar, implicitamente, uma humilhação
infamante. Um homem que se declara mentiroso, fecha diante de si as portas
da Sociedade, da Vida Pública e dos seus conhecidos. O Sr.
Abranhos passaria daí por diante a ser um cobarde estabelecido. O
medo seria a sua profissão. Tornar-se-ia o homem que se pode insultar
sem perigo. B disse-lhe mesmo brutalmente: Um homem que comete no
começo da sua vida pública uma tal cobardia, torna-se, mais
tarde ou mais cedo, um armazém de pancada! Mostre que é homem
e ninguém o torna a insultar.
Que se podia responder a isto? Havia, sob o ponto de vista social, alguma
verdade naquelas frases triviais. Alípio Abranhos ou tinha de ceder
às regras absurdas, obsoletas, monstruosas que regulam a sociedade,
ou tinha de abandonar essa sociedade e a carreira que um dia lhe daria o delicioso
prazer de a dominar.
Mas a ideia de se colocar diante de uma espada desembainhada ou de uma pistola
aperrada! Teve, um momento, o desejo furioso de fugir com D. Virgínia,
com o Bibi, para um canto ignorado da terra, e aí, vil mas intacto,
sem elogios nos jornais, mas com todos os membros no corpo, gozar egoistamente
o amor, a paternidade, o repouso, a natureza, o conforto…
Mas consentiria Virgínia em ser a esposa do cobarde Alípio?
Não seria cruel condenar Bibi a ser o filho do abjecto Abranhos? Que
diriam os jornais? Que diria o coronel Serrão? Que risadas no Marrare!
Esta ideia torturava-o. E foi com grande dignidade que respondeu a A e a B:
Eu não tenho medo, os amigos bem o sabem. A minha questão
é de princípios. Sou um homem de progresso, e repugna-me esse
meio de salvar a honra, à maneira da Idade Média! Mas enfim,
a sociedade é a sociedade… Vão-se entender com a fera do Gorjão.
Espero-os em casa… Mas prudência, lembrem-se que tenho família.
As negociações foram longas, muito delicadas. Infelizmente,
parece que desde a primeira palavra entre as testemunhas, ficou assente a
priori, como base natural da argumentação, que «haveria
duelo», e, às 8 horas da noite, Alípio recebeu no seu
escritório os seus amigos A e B, que lhe anunciaram em voz baixa que
ele, Alípio Abranhos, se batia à espada, às sete da manhã,
na Cruz Quebrada, e que os do Peixoto lhe deixavam a ele, Abranhos, a escolha
do cirurgião que melhor lhe conviesse.
Um cirurgião! exclamou Alípio, juntando as
mãos, atónito.
E necessário um cirurgião, para o caso de ser preciso,
por exemplo, ligar uma artéria. Enfim, é sempre indispensável
um cirurgião…
Alípio curvou-se, calado. Há, em certos silêncios humanos,
em certo humano vergar de ombros, uma ironia feroz, que deve fazer corar o
destino, envergonhado da sua tirania… Alípio Abranhos ficou só
no escritório, prostrado sobre o canapé tendo diante
de si a visão nítida de um corpo retalhado a golpes de espada,
que uma viúva pranteia, esguedelhada.
A voz do padre Augusto que, como costumava, dizia algum inocente gracejo
à Joana, (bonita criada que eu ainda conheci) tirou-o deste legítimo
torpor, e de repente, como um pássaro que subitamente atravessa uma
sala aberta, uma ideia de um engenho subtil atravessou-lhe o espírito.
Abriu a porta, chamou o padre, e com uma gravidade que fez arregalar de
terror os olhos do bom eclesiástico, murmurou: Padre Augusto,
vou-lhe confiar um grande segredo… Um segredo tremendo, que há-de
ficar consigo.
O padre, aterrado, balbuciou: É em confissão? E segredo
de confissão? Não! exclamou logo Alípio.
Pelo amor de Deus! Nem por sombras o considere segredo de confissão.
Que tolice! Credo! Isso estragava tudo… Fique bem entendido que não
é segredo de confissão… Mas é um segredo que lhe confio:
bato-me amanhã em duelo! Caramba! exclamou o respeitável
sacerdote, caindo de chofre no canapé.
Então Alípio, sentando-se junto dele, contou-lhe a história
do seu duelo. E terminou dizendo: Se eu lhe digo tudo isto é
para que seja o amigo que amanhã, se houver desgraça, console
a Virgininha. E agora adeus, que tenho papéis a pôr em ordem…
Mas guarde o segredo, que pode a coisa chegar aos ouvidos da polícia
e transtorna-se tudo.
O sacerdote queria objectar, pregar, parabolar mas Alípio,
suave e firme, empurrando-o pelos ombros: É uma coisa decidida.
Adeus. E agora veja lá, padre Augusto, não o vá dizer…
Que a polícia, se o sabe, impede a coisa… Adeus. E amanhã,
às sete, na Cruz Quebrada. Não se esqueça às
sete e guarde-me o segredo, amigo.
Padre Augusto foi ao cabide do corredor, agarrou o chapéu, e precipitou-se
pela escada, como uma pedra que rola.
Ao outro dia, às sete da manhã uma manhã clara,
fria e seca quando Alípio com as suas testemunhas chegavam
ao sítio aprazado, o Regedor de Belém e seis cabos de polícia,
desembocando com fúria de trás de um maciço de árvores,
apoderaram-se dos sete cavalheiros (incluindo o respeitável Teles,
cirurgião)! Foram postos em liberdade às dez horas, de sorte
que D. Virgínia soube por seu marido do perigo que ele correra, e da
intervenção providencial, que lho salvara. O seu orgulho foi
grande. Alípio tomou para ela as proporções de um d’Artagnan,
de um Conde de Monte Cristo! E a sua ternura, os seus afagos, a sua admiração,
estavam dando a Alípio momentos deliciosos, quando a Joana lhe veio
dizer que os Srs. A e B, desejavam absolutamente falarlhe e esperavam na sala.
Há-de ser para o almoço… Há sempre um almoço…
Não, não era para este fim honesto: era para lhe dizer
para que A lhe dissesse secamente, sem se sentar, com as mãos nos bolsos
das calças, fazendo tilintar nervosamente um molho de chaves:
Está provado temos a prova evidente que a polícia
foi avisada por um amigo desta casa… Isto é uma brincadeira torpe.
Nem as testemunhas do Peixoto, nem nós, somos pessoas com quem se brinque
torpemente. O duelo que não pôde ter lugar hoje, há-de
ter lugar amanhã, no Lumiar. Se a polícia aparecer de novo,
o que não é natural, agora que ela está desprevenida,
ficaremos cientes que o mesmo amigo desta casa a avisou, e nesse caso nós
todos nos consideraremos ofendidos, e V. Exª terá de se bater
por ordem de número, com o amigo Gorjão, o amigo Sequeira, o
amigo B, este criado de V. Exª, e depois, com o Peixotinho! Cinco duelos
em lugar de um! Mas eu dou a minha palavra de honra… Eu não
tenho culpa… É um assassinato!.
Temos a honra de desejar a V. Exª muito boas tardes. Aqui estaremos
amanhã, às sete. E a mesma tipóia, o cocheiro é
seguro… E o Pintado. Não se incomode V. Exª… Criado de V.
Exª…
Alípio, só no escritório, teve um grito de revolta:
Aí está o que é um homem de bem meter-se com
espadachins! Se ele tivesse posto este negócio nas mãos prudentes
do Conselheiro Andrade ou do Fradinho, por exemplo, a solução
decerto teria sido outra, toda honrosa, toda amigável; mas entregara-a
a dois personagens sôfregos de publicidade, pedantes do ponto de honra
e ali estava agora, empurrado fatalmente para diante de uma espada
nua! Que se passou na alma deste grande homem, nessa noite de agonia? Mal
sabiam os que passavam, à saída de S. Carlos, pelo Largo do
Quintela, que ali, no segundo andar, por trás de uma janela iluminada,
havia um Horto, uma hora do Jardim das Oliveiras.
Quantas sensações, ideias, imaginações, se revolveram
naquele vasto e complicado cérebro de estadista. Ele revelou-me algumas
dessas torturas em detalhe. Ao princípio tentou correr a casa do Petit,
e pedir-lhe que lhe ensinasse um bote-secreto, desses de que lera nos romances,
que se aprendem em Itália e que inspiram terror nas salas de esgrima.
Pensou em fazer o seu testamento, mas pareceu-lhe um mau agoiro lúgubre.
Desejou então que houvesse uma revolução, ou um incêndio
que devorasse metade da cidade, uma catástrofe social, e ficava a olhar,
desesperadamente, para a tenebrosa pacatez do Largo do Quintela. Lembrouse
com prazer, com esperança, que o Peixotinho sofria de um aneurisma…
Quis rezar, mas distraía-se: permanentemente, via a mesma visão
da véspera um corpo traspassado de estocadas, e uma viúva,
desgrenhada, soluçando.
Que desespero! E ainda nessa tarde estava tão seguro, já com
todo o perigo passado, saboreando as felicitações do seu fácil
heroísmo, descansado para sempre, e agora ali se via outra vez, recaído
nas agonias da incerteza e nos terrores da Eternidade…
Enfim, ao outro dia, depois de um sono agitado, uma carruagem que parou
à porta despertouo.
Dissera na véspera a D. Virgínia que havia, com efeito um
almoço de amigos no Farol da Guia, e que deviam sair cedo; e tão
persuadida ela ficara, que apenas murmurou, meio a dormir, voltando-se para
a parede: Tem cautela… Não faças excessos, sabes que
te dá a dor…
Aludia a certos espasmos nervosos de que ele sofria no estômago.
Partiram. A manhã, muito fria, estava nublada e parda. A e B, justo
é dizê-lo, que na véspera se tinham mostrado tão
secos, tão cortantes, representavam agora com uma solicitude tocante
o seu papel de padrinhos. Enquanto a caleche batia e parecia a Alípio
Abranhos que uma tal velocidade era um exagero irritante davam-lhe
conselhos práticos, tirados da própria experiência e adequados
aos conhecimentos elementares que Alípio Abranhos tinha da esgrima:
que se não descobrisse muito; a ponta da espada sempre diante
dos olhos do adversário; que nunca recuasse e a sua solicitude
era tão grande, que apagaram os charutos matinais, vendo que o fumo
enjoava Alípio. O grande orador, no entanto, como ele me revelou mais
tarde, sentia uma lassitude extrema, o desejo mórbido de um sono profundo,
de anos, em que nada o perturbasse, nem os despeitos do Peixotinho, nem as
crises do Estado, nem a piedade dos seus amigos. Por vezes uma casa, ou uma
esquina de rua, recordavam-lhe outras épocas de felicidade tranquila,
em que a morte lhe aparecia como uma hipótese distante. A morte!…
Maldição! Ia agora talvez para ela, ao trote exagerado, estupidamente
exagerado,.65 daquela magra parelha de praça… Lamentou então
as coisas boas da vida os jantarzinhos em família, as carícias
de Virgínia, o seu quarto em casa das Barrosos, em Coimbra, e os folhados
de cocó, de que gostava tanto! Mas, temendo que o seu silêncio
pudesse ser tomado como a prostração do medo, começou
a falar com os seus amigos de política com uma prodigiosa lucidez e
segundo me afirmou depois um destes cavalheiros num tom em
que se sentia uma solenidade de testamento.
Chegaram enfim, e viram logo, ao pé de uma árvore magra, o
grupo do Peixotinho e dos padrinhos, tagarelando jovialmente.
Depois das saudações tradicionais, os quatro cavalheiros,
reunidos ao pé da árvore, falaram baixo, marcaram o terreno,
desembrulharam as espadas e colocaram os adversários nos seus lugares,
com uma vivacidade muda, que parecia a Alípio Abranhos comparável,
segundo o que lera, aos preparativos rápidos e taciturnos dos carrascos
sobre o cadafalso.
Apenas colocado, Alípio sentiu com terror tomá-lo um vago
enjoo: ou fosse o balanço da tipóia ou o ar frio da madrugada,
o estômago, segundo a frase popular, «embrulhava-se-lhe».
Quando lhe deram a sua espada, um suor frio banhou-lhe a testa; uma debilidade
esvaía-lhe os rins… Desejou vivamente uma cama, um encosto, mas vendo
que o Peixotinho o fixava por trás dos óculos de ouro, resolveu
ser heróico e plantou-se firmemente sobre o solo, erecto, esperando
o sinal.
A, bateu as palmas e então, subitamente, viram Alípio
esgazear os olhos, abrir a boca e apoiando-se fortemente sobre a espada, debruçado
sobre ela, vomitar, vomitar longamente, primeiro resíduos mal digeridos
de comida, depois uma baba gelatinosa, e finalmente, com anseios roucos, fezes
esverdeadas! A, sustentava-o pelos ombros; B, amparava-lhe a cabeça,
e o grande orador, entre os puxões dos vómitos, murmurava com
os lábios babados: É do estômago! … É
um bocado… de indigestão! Todos viram bem que «era do estômago»
e ninguém duvidou do seu valor.
Peixoto, porém esquecendo toda a delicadeza, disse alto, com desdém,
voltando-se para os seus padrinhos: Eu esperarei… Deixá-lo
vomitar… Que vomite, que vomite! Tanto desprezo indignou Alípio:
endireitou-se, pálido, e tomando o ferro, balbuciou: Estou
bem, estou melhor… vamos a isto! E com uma patada na terra mole, ergueu
alto a espada.
O Conde contou-me depois que mal tivera consciência da luta; vira
os dois longos clarões das lâminas lustrosas, e subitamente sentiu
na orelha uma frialdade fina, penetrante. Recuou com um berro: Estou
ferido! Estou ferido na orelha! O cirurgião correu e a serenidade
penetrou longamente, largamente a alma de Alípio, quando o ouviu declarar:
Não é nada; é um golpezito. Com adesivo está
pronto em três dias! A honra foi, no cerimonial do estilo, declarada
satisfeita; os dois adversários que, segundo dizia a acta, se tinham
batido como leões, apertaram-se as mãos, chamando-se Excelências,
e Alípio voltou para Lisboa com os seus padrinhos, na tipóia,
tapando a orelha com o lenço.
Tal foi este combate histórico.
Os jornais da oposição celebraram o orador que sustentava
as suas ideias com a espada e derramava por elas o sangue da sua orelha. D.
Virgínia sentiu todo o seu amor.66 flamejar mais alto e mais forte,
por este homem que lhe parecia superior aos Roldões e aos Oliveiros.
Os jornais do Governo, esses sim, falaram com escárnio dos vómitos
do orador, mas foram bem depressa reduzidos ao silêncio pelos jornais
da oposição, que lembraram que anos antes, o Ministro das Obras
Públicas, batendo-se em duelo, não vomitara, mas tivera um tão
vergonhoso contratempo intestinal, que fora necessário conduzi-lo a
uma venda próxima, onde, durante horas, o prostrado estadista circulou
lividamente de um banco da cozinha para um recanto do pátio, como sob
a influência dissolvente de óleo de rícino tomado sem
discernimento! Como, porém, nem a intempestiva indigestão de
Alípio Abranhos, nem o desastroso relaxamento do Sr. Ministro das Obras
Públicas foram exarados nas actas, o público considerou estas
insinuações como meras tácticas de discussão política
e a coragem de Alípio ficou estabelecida em bases duradoiras. Mais
tarde o Conde tinha mesmo uma certa vaidade neste duelo, a que ele chamava
o seu «baptismo de sangue». Pelo menos deveu-lhe um resultado
estimável: depois dessa gota de sangue, os comentários irritantes
sobre a sua passagem para a oposição foram respeitosamente suprimidos.
Foi por este tempo se me não enganam os documentos que possuo
que se começou a organizar em torno de Alípio Abranhos
um grupo fiel de amigos íntimos, a que se chamou maliciosamente a coterie
Abranhos ou a panelinha Abranhos, mas que eu depois designei num folhetim
do Globo geralmente estimado, com o nome mais respeitoso e mais justo de «Salão
de S. Exª». Não se creia, porém, que eu digo o Salão
de S. Exª como diria o salão de M.me Récamier, o salão
de M.me de Girardin, ou o salão de M.me Adolphe Adam, ou ainda, numa
ordem mais efémera e mais boémia, o salão de M.me Troubetskoï;
estes salões são uma pura instituição parisiense,
que Londres, Viena, Roma, Madrid, Berlim, copiam, dando-lhe a feição
particular da raça, das maneiras e da preocupação nacional.
Tudo difere, por exemplo, entre um salão de Berlim e um salão
de Roma, desde a decoração das salas até às figuras
familiares e características. Num salão berlinense, tudo é
duro, estreito, hirto, fortemente destacado, desde a cor viva dos papéis
ou das sedas baratas, até à forte iluminação de
um gás económico, que dá o mesmo tom áspero ao
loiro seco dos cabelos das mulheres e à figura regrada do oficial de
Estado-Maior.
Pelo contrário, num salão de Roma, tudo é discreto,
de meias-tintas, sóbrio, desde a decoração dos mármores
plácidos, dos doirados leves, da luz aristocrática dos candelabros,
até à palidez dos rostos, ao frufru subtil das caudas dos cardeais
e ao murmúrio brando do italiano, falado por vozes discretas e delicadas.
Não falo por experiência própria. A minha posição
subalterna na sociedade nunca me permitiu viajar ou penetrar nesses recintos
augustos, mas uma pessoa eminente da minha família, meu bom tio Julião,
touriste bem conhecido, tem-me esclarecido sobre estas formas luxuosas das
civilizações superiores.
Em Lisboa, porém, o Salão não existe. Não me
compete estudar aqui as razões desta deficiência: enuncio somente
o facto; portanto, quando digo o Salão do Conde d’Abranhos, quero designar
uma reunião pacata e íntima, onde se toma um chá bem
servido, se abre uma mesa de voltarete, se toca uma valsa conhecida e se fala
no preço dos géneros ou nos «podres» das famílias.
As soirées do Conde d’Abranhos eram desta estimável espécie.
Não havia cerimonial nem aparato: às dez horas vinha o chá
com torradas e bolachas de água e sal; às vezes duas senhoras
enlaçadas valsavam graciosamente; não poucas vezes eu fui chamado
a recitar alguma poesia dos nossos grandes líricos; e os homens graves
repousavam dos cuidados do Estado num pacato voltarete a Vintém.
Insisto nestes detalhes, para destruir a errada opinião (que tende
a introduzir-se na.História Contemporânea) de que o Salão
Abranhos era uma caverna política. Não nego decerto que por
vezes se não falasse dos negócios públicos, e que, quando
o Ex.mo Conde era ministro, as personalidades eminentes da maioria não
viessem tomar sem cerimónia a sua chávena de chá. Posso,
porém, afirmar, que nunca nestas pacatas soirées se decidiram
ou se combinaram os grandes movimentos da política, como sucede nos
salões estrangeiros, onde, segundo me tem contado meu bom tio Julião,
se tramam, por trás dos leques, golpes de Estado e se decidem os destinos
da Pátria entre duas vazas de whist! Os íntimos dos Abranhos,
eram, na sua quase totalidade, os antigos familiares do Desembargador Amado.
Era o coronel Serrão sempre o primeiro a chegar, bufando
alto, de aspecto feroz e coração bondoso, sempre com sua filha
Catarina, magra e estonteada, de grande cuja, os dentes maus do abuso dos
doces, as omoplatas salientes sob o corpete do vestido atabalhoado. Nunca
simpatizei com esta família.
Era a excelente D. Joana Carneiro, cujo cirro no estômago alastrava,
inspirando geral compaixão, sempre triste, trazendo todas as noites
a narração dos sintomas crescentes da sua doença. Acompanhava-a,
amiúde, um sobrinho, marialva de calça justa e jaquetão
cingido, grande frequentador do Café Central, com voz rouca da noitada
da véspera, e sempre acanhado de se encontrar naquela sala, entre senhoras,
num lugar onde nem havia fadistas, nem pilecas, nem meios litros. Sua tia,
inquieta do futuro, procurava afincadamente colocá-lo numa repartição
do Estado.
Era ainda a enorme D. Amália Saraiva, a que também já
me referi neste trabalho: os seios fenomenais desta senhora, que se iam desenvolvendo
progressivamente com os anos, pareciam dois mundos. Quando desapertasse o
vestido fortemente espartilhado que os continha, o trasbordar daquelas duas
prodigiosas massas de tecido celular devia ser um espectáculo pavoroso
e grandioso! Viúva de um homem que prestara vagos serviços ao
Estado, reclamava agora com pertinácia uma justa pensão. Vinha
geralmente com sua delicada filha, a tocante Julinha, adorável pela
fidelidade e graça juvenil com que recitava A Lua de Londres e outras
maravilhas da literatura pátria.
Não devo esquecer o Conselheiro Andrade, agora frequentador assíduo
do Salão Abranhos, pequeno, aprumado, escarolado, com o seu perfil
de jurista, as suicinhas brancas, o ar próspero. Proprietário
abastado do Ribatejo, continuava a dar toda a sua atenção à
agricultura, e, como agora escrevia artigos profundos no Arquivo Rural, este
lado literário da sua personalidade estabeleceu entre nós uma
simpatia, que, vindo de um homem tão opulento, é ainda uma das
honras da minha carreira.
Infalível, também, era o Doutor, aquele cavalheiro estimável,
mas de aspecto lúgubre, que todos apenas conheciam por este nome: o
Doutor. Sempre vestido de preto, sempre de luvas, amarelo como uma cidra,
persistia na sua mudez taciturna; porém, continuava a escutar com uma
atenção intensa, a testa franzida, piscando vivamente os olhos,
como num profundo trabalho cerebral. Respeitador fervente das instituições,
das personalidades oficiais, ninguém sabia ainda onde ele vivia, nem
de que vivia: mas precipitava-se com tanta veneração (porque
era homem de sociedade) a tomar as xícaras vazias das mãos das
senhoras, dizia com tanta convicção, na sua voz cavernosa, «tem
V. Exª carradas de razão»; que era geralmente considerado
como um excelente moço.
Final
Mas a maior animação daquelas soirées era dada, como
outrora em casa do Desembargador, pelos nossos conhecidos Fradinhos. O Dr.
Fradinho, que teve depois uma tão gloriosa carreira, não passava
então de um modesto advogado. Possuía, porém, uma certa
fortuna, e com as suas lunetas de ouro e o farto bigode, era na verdade um
belo homem. Nada encantava nele todavia como a vivacidade da conversa; não,
em boa.68 verdade, que eu jamais lhe ouvisse expor uma ideia original ou um
dito faiscante: mas era fecundo e verboso. Ninguém conhecia melhor
a nossa legislação, e sobretudo a da Bélgica, o seu país
favorito. Era além disso activo, ambicioso, dúctil, e a sua
admiração, a sua dedicação por Alípio Abranhos,
davam o traço dominante do seu carácter.
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