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Maria Teresa Lobato & Fernandes Pereira Lopes
Encontravam-se as duas nos limites dos respectivos reinos, escondidas entre os carvalhos e os abetos que serviam de fronteira. Era um regalo vê-las juntas, como se este mundo fosse um só: a fada sempre vestida de cor-de-rosa, asas de tule a esvoaçar ao vento e uma varinha de condão que era a prova incontestável de que ela era realmente uma fada.
A bruxinha, essa vestia sempre de negro, uma túnica que quase lhe chegava aos pés e um chapéu de alto bico que, dada a sua tenra idade, lhe tombava para o lado, sem, porém, nunca lhe ter caído.
Cavalgava, não uma vassoura de piaçaba, mas um modelo mais recente, semi-a-jacto, que seus pais lhe haviam dado pelo seu último aniversário.
Saladina, a bruxa, e Gilda, a fada, voavam por entre as árvores sem lhes tocar, faziam piruetas de sobe-e-desce, e passavam tangentes às corujas e às andorinhas sem nunca, mas nunca, terem tido o menor acidente.
Quando, porém, chegou o dia de frequentarem as respectivas escolas, cada uma seguiu o seu caminho e o tempo para as brincadeiras acabou-se para tristeza de ambas. E nunca mais Saladina viu Gilda. E nunca mais Gilda viu Saladina.
Os anos foram passando, no calendário das bruxas e das fadas, que por acaso é o mesmo, até que um dia Saladina completou o décimo segundo ano e teve de escolher uma profissão: queria ser doutora, mas doutora-médica.
Os pais pasmaram com tamanha pretensão.
?Que bruxa és tu, minha filha! ? dizia o pai.
?Querer ser médica? ? interrogava-se a mãe.
?Mas, afinal, tu és uma bruxa ou uma fada? ? questionavam ambos.
Saladina estremeceu. Será que alguém tinha descoberto o seu segredo de há tantos anos? Que seria feito de Gilda? Não, não era possível. Além de tudo isso ela tinha a certeza que era uma bruxa de pele e osso e ninguém conseguiria demovê-la de seus intentos.
E assim foi. Entre o choro da mãe e o olhar reprovador do pai, lá seguiu para a Grande Escola de Medicina que ficava no reino dos humanos, pois no país das bruxas só havia a Escola Superior de Feitiços e de Magia.
Para trás ficou a túnica negra, o chapéu alto e a vassoura semi-a-jacto. Ficou também a mágoa não só da família, mas de toda a comunidade, que estas notícias espalham-se depressa e ferem a honra.
Sim, que as bruxas também têm honra! Depressa acabou Saladina o seu curso. Aluna brilhante, nunca reprovou nenhum ano e quando se viu com o diploma na mão, não cabia em si de felicidade. Só havia um problema: que fazer agora? Como iriam seus pais recebê-la? Quando bateu de mansinho à porta de sua casa, o nº 13 da Rua da Assombração, o seu coração de bruxa, pela primeira vez, fraquejou. E, apesar de a terem deixado entrar, logo sentiu que a sua atitude não fora perdoada.
?És a vergonha das bruxas! ? disse-lhe o pai. ? Mas és feitiço do meu feitiço. Podes ficar nesta casa, embora sejas pouco digna das teias de aranha que te cobrem a cama.
Foi neste ambiente que Saladina se aventurou a abrir o seu consultório. Tudo a rigor, como aprendera com os humanos. À entrada, um letreiro que dizia:
DRª SALADINA
Médica Para Todos Os Males
Pouca sorte tinha esta nossa amiguinha. Ninguém lhe batia à porta, nem ninguém lhe marcava uma consulta que fosse. Nem uma assistente conseguira arranjar.
Resolveu, então, na esperança de aparecer alguma emergência, mudar-se de vez para o seu consultório. Ali dormia, ali comia e ali ia espreitando pelas cortinas esfarrapadas da janela, na ânsia de que alguém necessitasse da sua prestimosa sabedoria.
Ora, uma bela noite de lua nova, estando Saladina a contemplar as constelações, apercebeu-se de grande alvoroço no céu. Luzes para aqui, luzes para acolá e um pó dourado que se espalhava por todo o lado. De repente começa a ouvir gritinhos de todas as bruxas e bruxos que deambulavam pela rua e que tombavam no chão como cerejas maduras.
Saladina não pensou duas vezes: toca a recolher os doentes no seu consultório. Os que ainda se conseguiam manter de pé, entravam a correr, tamanha era a sua aflição. Queriam lá saber se ela era a Drª Saladina! Só queriam cura para doença tão súbita e estranha.
Saladina teve necessidade de se concentrar. Sim, porque havia já algum tempo que não praticava. Curou as feridas que viu, ligou os entorses como muito bem aprendera e esperou que os doentes
acordassem. Nada. Não acontecia nada. Então Saladina, sem perceber como, ergueu os braços e começou a praguejar:
Afasta-te pó de fada, Renego teu perfume já.
Xô, xô, penugem de tule, Abracadabra, já está!
Como por magia, todos acordaram. Quando se aperceberam de quem os tinha salvo, nem queriam acreditar. Muito a medo, lá foram agradecendo à doutora-médica. E envergonhados, saíam fazendo vénias, sem ousar voltar as costas! Nos jornais do dia seguinte, a nossa amiga era figura de destaque.
Que tinha sido corajosa enfrentando aquela epidemia misteriosa. Que até os bruxos mágicos haviam recorrido aos seus serviços.
E nos televisores a notícia repetia-se constantemente, em emissões de última hora.
Quem não entendia muito bem este fenómeno era a própria Saladina, que ainda hoje está para saber como lhe foram sair tais palavras da boca.
O que ela também não sabe é que, naquele dia, os Serviços Secretos do Reino das Bruxas tinham registado uma invasão do seu espaço aéreo por um pelotão de fadas, comandado por Gilda, mais conhecida no meio da espionagem por Agente Secreto Zero-Zero-Pó-Dourado.
Claro está que este facto não veio nos jornais e permaneceu
fechado a setenta chaves no cofre dos segredos da bruxa reinante.
Quando passarem por aquela rua além, aquela logo ali acima, se estiverem atentos, poderão ver a fila de clientes que Saladina tem à porta do consultório.
E talvez, com um pouco de sorte, consigam vislumbrar um vulto cor-de-rosa que esvoaça levemente sobre o edifício para não ser detectado pelos radares do reino.
Quem poderá ser? Pois se virem tudo isto, não se assustem. É que, bem perto de nós, há o Reino das Bruxas e o Reino das Fadas. E só não os vê quem não quer, ou quem tem coração de pedra.
A Bailarina de Degas
Para a Sara e para a Ana, minhas bailarinas de Degas.
A casa era grande e tinha um jardim. Para lá do jardim ficava o bosque de árvores imensas que se estendiam até não poderem ser mais vistas, por entre caminhos traçados sob as folhas do Outono.
Telma adorava passear-se pelo bosque. Corria pelos caminhos, inventava outros atalhos e tentava passos de dança, braços ondulando ao sabor de melodias imaginadas.
Ser bailarina era um sonho só seu. Desde que descobrira, na biblioteca, um livro com reproduções de quadros célebres, e, nas suas páginas, umas pinturas de bailarinas, a ideia que até então lhe passara vagamente em seus pensamentos tornou-se numa vontade constante, doentia.
Por isso se dividia Telma entre os passeios pelo bosque e as visitas à biblioteca.
As grandes prateleiras repletas de livros tinham-na assustado, no início.
Alguns deles eram antigos e cheiravam a pó. Outros eram mais novos e as suas capas despertavam a curiosidade da menina, que, por não saber ainda ler bem, se entretinha a olhar as figuras e a tentar descobrir o que estava lá dentro.
Foi numa tarde chuvosa de Novembro que Telma descobriu o livro das bailarinas. Na grande capa colorida, um nome que ela soletrou: D-e-g-a-s.
Telma soube, anos mais tarde, que tinha sido um grande pintor francês, do séc. XIX e que o seu nome se pronunciava como se a letra e tivesse um acento circunflexo. Na altura, não queria a menina saber daquele nome, que nada lhe dizia. Só queria ver as figuras e mais figuras e a todas despia com os olhos ávidos de cor, de movimento e de sinfonias cada vez mais triunfais.
Esperava a hora da sesta. Fingia que dormia. E em passos de algodão escondia-se na biblioteca, entre a porta envidraçada que dava para o bosque e o grande reposteiro de veludo carmesim.
De todos os quadros, o que mais a fascinava era um que tinha o Edições ArcosOnline.com, Histórias Que Acabam Aqui 23 título de Bailarina com ramo de flores.
Telma entrava então naquele cenário e juntava-se ao corpo de baile. Vestia o fato em tons de amarelo esbatido, saia de tule querendo voar, sapatinhos de ponta cor de rosa e um ramo de flores na mão, o aroma do campo no ar quieto daquela sala.
E Telma bailava, bailava, esvoaçava pelo meio das outras bailarinas, tentando imitar os passos que elas davam, erguendo-se na ponta dos pés até mais não poder, até a dor ser mais forte que a vontade.
No fim do espectáculo, agradecia ao público que só ela via e que só a ela aplaudia.
Depois, quando se apanhava de novo no bosque, erguia-se quanto podia nas pontas dos seus sapatos de cetim e largava o sonho que escondia no peito. E imaginava-se pintura em movimento num quadro de Degas.
Ainda hoje ninguém entende, naquela casa, por que razão fugia Telma tanto para o bosque.
Também ninguém nunca entendeu o que fazia, no quarto de Telma, um grande ramo de flores campestres, eternamente frescas, pousado sobre a sua mesa de cabeceira.
Nem um par de sapatos de bailarina que pendia, em laços de cetim esbatidos pelo tempo, da cabeceira de sua cama.
Hélix, o Caracol
Quando se nasce caracol nunca se pode prever o destino.
Uns passeiam-se languidamente pelos campos de verde-primavera, outros pelos jardins-do-alheio e outros são caracóis-de-cidade, o que faz com que sobrevivam mais a custo já se vê.
Hélix era um caracol-de-província. Terra pequena, mas farta de jardins e de quintais que até dava gosto morder.
E foi bem no meio de um canteiro cercado de buxo que o nosso amigo nasceu.
Ninguém sabe bem como, mas a verdade é que, um belo dia de sol, lá estava Hélix, pela primeira vez na sua vida, entre dois pequenos pés de jarros, a deitar os corninhos à brisa da manhã.
Espera-me uma bela vida, pensou Hélix, não deve haver nada como esta luz quente para me aquecer a casa.
Mas quando umas nuvens escuras foram entrando pela manhã e o ar ameaçou uns pinguitos de chuva, corninhos para dentro, que ele não era flor e não precisava de rega.
Dormiu todo esse dia. Pudera, não é a Edições ArcosOnline.com, Histórias Que Acabam Aqui 25 toda a hora que se nasce. Já muito fizera ele aventurando-se a espreitar o mundo.
E a vida de Hélix foi prosseguindo à volta disto: ora espreitava o sol, ora fugia da chuva. A sua única distracção era a figura humana mais pequena lá de casa, duas tranças a escorrer pelos ombros, saia plissada, sapato de verniz acabado de estrear, que volta e meia parava à sua frente, aninhava-se à espera não se sabia de quê, e cantava uma lenga-lenga que, aos ouvidos de um caracol, soava assim: Tu itica, tu incói, Tem cóninhos como um bói, Lagarato num é tu, Fomiguinha tamém não.
Que bichinho será tu? Eu sou um cacarói! Verdade, verdadinha, Hélix não achava piada nenhuma àquilo.
Mas desde que aquela criatura minúscula não o incomodasse nem o calcasse, tudo bem, que cantasse o que lhe desse na real gana.
E como os caracóis não sabem o que são dias, nem meses, nem anos, o nosso amigo lá foi contando muitos sóis e muitas chuvas, que só ouvia de dentro da sua casota, muito encolhidinho.
Não era mundano nem se dava a conversas. Queria lá saber se as rosas tinham florido, se as ameixoeiras estavam carregadinhas de frutos vermelhos. Se os jarros onde morava tinham tido um destino fatal quando foram precisos para enfeitar uma sala lá de casa. Queria lá ele saber o nome dos pássaros que debicavam à sua volta e por todo o
jardim, enchendo o ar com melodias que os ouvidos de Hélix não conseguiam descodificar. Queria lá ele saber.
Ele nascera só, pois só viveria. E aquele canteiro chegava e sobejava. Conhecer mais mundo, para quê? Mas o destino tem destas coisas. Numa bela tarde de Dezembro, quando Hélix se preparava para ver que tal estava o tempo do lado de fora da sua mansão, viu cair do céu umas pérolas muito pequenas, da cor mais pura que ele alguma vez vira.
Eram leves como o esvoaçar das borboletas. Gelavam-lhe as antenas e permaneciam no chão, como que a querer chamá-lo.
Admirou-se. Nunca na sua longa vida tal fenómeno vira. E extasiou-se de tal maneira, que se esqueceu de recolher os corninhos e de se fechar a sete chaves em sua guarita.
Como a vida é bela, pensava Hélix.
E os pensamentos iam fluindo cada vez com mais lentidão.
Que felizardo que eu sou. Pois estão a ver que o céu veio visitar-me? Que as nuvens desceram das alturas só para me cumprimentar? E sem dar por isso, enquanto olhava os cristais de água, com aqueles olhos que só os caracóis possuem, Hélix adormeceu, penetrou no sono mais doce que uma vida de nuvens pode dar… E nunca mais acordou.
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