Este Inferno de Amor – Almeida Garrett

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I – Introdução

Mal pensa o voluntário acadêmico, quando descendo rua de Sant’Ana
abaixo, o braço no armão da peça, e os olhos na alta
janela donde, entre o festivo azul e branco, lhe sorri constitucional beldade;
e ele vai misturando, no alvoroçado pensamento, conquistas bélicas
e amorosas, as damas que há de render e as guerrilhas que há
de espatifar, – e mais que tudo, as histórias que sobre isso se hão
de contar à noite no refeitório dos Grilos hoje, oh impiedade!
Convertido em casa de tripudio e bambochata de maganos estudantes –
mal pensa ele que terreno clássico vai pisando, por que veneráveis
padrões históricos vai passando sem os conhecer, que interessantíssima
cena romântica é essa em que, depois de tantos séculos,
novo e não menos interessante ator, lhe coube vir figurar.

Falte-te, é verdade, ó nobre e histórica rua de Sant’Ana,
falta-te já aquele teu respeitável e devoto arco, precioso monumento
da religião de nossos antepassados, e que, certo é, mais te
vedava a pouca luz do céu “material” que tuas augustas
dimensões deixam penetrar, mas era ele em sim mesmo, foco da espiritual
luz de devoção que ardia no bendito nicho consagrado à
gloriosa santa do teu nome.

Caíste pois tu, ó arco de Sant’Ana, como, em nossos tristes
e minguados dias, vai caindo quando aí há nobre e antigo às
mãos de inovadores plebeus, para quem nobiliarquias são quimeras,
e os veneráveis caracteres heráldicos de rei-d’armas-Portugal
língua morta e esquecida que nossa ignorância despreza, hieroglíficos
da terra dos Faraós antes de descoberta a inscrição Damieta!
– Assentaram os miseráveis reformadores que uma pouca de luz
mais e uma pouca de imundície menos, em rua já de si tão
escura e mal enxuta, era preferível à conservação
daquele monumento em todos os sentidos respeitável!

Com que “desapontamento” deste meu coração, depois
de tantos anos de ausência, não andei eu procurando, em vão!…
Na rua de Sant’Ana, uma das primeiras que a minha infância conheceu,
as góticas feições daquele arco?… E a alâmpada
que lhe ardia contínua, e os milagres de cera que lhe pendiam à
roda, e toda aquela associação de coisas que me trazia à
memória os felizes dias de minha descuidada meninice! – Meninice
que passou, sem mocidade, a esta tão trabalhosa, tão árida,
tão despegada virilidade, em que não tardam as cãs e
as rugas a visitar-me com mais precoce velhice ainda!

Ai, rua de Sant’Ana! Que é do teu arco e da tua festa, quando
se lhe armava aquele palanque com que ficava uma igreja improvisada, e um
coreto e um púlpito, aonde grasnava a música, berrava o frade,
e toda a vizinhança tinha um dia de folgar?… E muito se rezava e
muito se namorava e muito se comia, e todos iam para o céu –
Ora que o façam hoje!

Foi o célebre fracasso de José U que acabou com a devota festa
e com o meu querido arco também.

José U, para ilustração da presente história
seja dito, era um curioso figurão da minha terra, uma das notabilidades,
– como se dizia em França, e hoje por cá se diz também
já nos botequins – umas das notabilidades desta nobre e sempre
leal cidade. Insigne mestre de capela, trazia arrematadas todas as festas
e oragos menores do Porto e seus subúrbios, sem excetuar os três
São Joões rivais; a saber, São João o velho ou
o republicano, de Cedofeita, – São João o malhado, da Lapa –
São João o realista, do Bonfim.

Com efeito, São João que da fama de pedreiro se não
livra!… Não me faltava ver mais nada.

Era o Sr. José U homem bem apessoado, e de tal capacidade e rotundidade
nas formas posteriores, que, por elegante e popular metonímia, lhe
chamaram a parte pelo todo, e foi apelidado José U, ou José
outra coisa que a gravidade da minha história me não deixa por
aqui mais clara.

Andava, entre outras, de imemorial posse, na sua correição
e jurisdição harmônica, a parte música instrumental
e vocal da festa de Sant’Ana do arco. Corria o ano de 182…, Chegou
o dia da santa, armou-se o palanque, treparam os menestréis ao coreto,
saíram os padres detrás duma janela, principiou a missa cantada,
sobre garraio capucho ao púlpito, começa José U com a
sua gente o moteto de rigor… E eis senão quando, o travejamento de
toda aquela caranguejola que dá de si, rende, casca – e zás
por ali abaixo desanda tudo à rua. José U com o rolo de solfa
na mão – o cetro, o bastão de general Colcheia! Cai com
todo o peso do seu nome num rabecão já estatelado.

Foram dentro com tremendo som os tampos do bojudo instrumento; e foi tremendo
o diapasão que no violento contato se fez…

Em tal estado e posição ficou o bem-aventurado, que, à
primeira sensação de desgosto e terror geral, sucedeu o riso
e turbulenta cachinada. Acabou-se a festa da santa, poupou-se ao capuchio
muita berraria e muita sandice, e os festeiros jantaram mais cedo.

E assim terminou a última função da senhora Sant’Ana
do arco. E o arco foi demolido daí a pouco tempo para minha eterna
saudade e de todos os amadores e veneradores de arcos antigos e de semelhantes
preciosidades.

Fora fatídica, fora fatal ao bendito arco a agourenta queda de José
U!

II – A Conversa das Vizinhas

Pois bons quinhentos anos antes deste fatal acontecimento, fora esse arco
de Sant’Ana testemunha e próprio lugar de cena, da interessantíssima
história que vou relatar, e que extraí, com escrupulosa fidelidade,
do precioso manuscrito achado na livraria reservada do reverendo Prior dos
Grilos, a quem Deus perdoe não ter deixado na sua cela, quando fugiu,
nem uma caixa de doce, nem uma garrafa de vinho potável, nem gulosice
de nenhuma espécie, das que eram de esperar naquele devoto aposento,
e que bem contávamos achar nele os pobres estudantes quando ali chegamos
mortos de sede e de cansaço. Por mim, bem contente fiquei com esta
única parte do espólio que me coube, e – salvo o doce,
que a esse não perdoava eu – não tomaria outra, apesar
da legislação e prática então vigente, e que não
sei se ainda hoje vige e viça, mas conheço muita gente que viçou,
floreou e frutificou por ela e com ela. – Vamos adiante! Eu, se por
leis de guerra, não estou em boa posse do que assim houve e hoje dou
por meu na presente crônica, sincera e publicamente me acuso, e farei
plena restituição a quem competir. Não é costume
entre os nossos irmãos escrevedores de histórias, contos e semelhantes;
mas não importa.

Seriam dez horas da noite, horas mortas para aquela boas eras em que nossos
temporãos avoengos jantavam de dia às dez para as onze, e ceavam
quase com dia, ao por do sol. A noite era de luar, mas o estreito da rua e
a proximidade das muralhas da cidade, que então corriam pouco além
daquelas imediações, mal deixavam penetrar um baço reflexo
de seu clarão pela obscuridade permanente. Apenas a alâmpada
do arco dava tênue e raro vislumbre de claridade, tão frouxo
e tíbio que mal indicava o sítio em que jazia, mas em que nada
quebrava as trevas circunstantes. Era a estar horas e neste lugar, que de
uma gelosia à esquerda do arco surdiu uma voz baixa e como de quem
teme e deseja ao mesmo tempo que a ouçam. Dizia a voz:

_ Aninhas, mana, Aninhas!… – Menina, mana, ouves? Sou eu: ouves?

Cada uma dessas palavras era dita com grandes intervalos uma da outra, e
crescendo progressivamente de tem, por modo que a última já
se devia de ouvir sem dificuldade em pequena distância. Mas, se alguém
ouviu, ninguém respondeu.

Seguiu-se um bom minuto de silêncio.

Logo, da mesma gelosia donde pareceu sair a voz, saiu também uma mãozinha
delicada e alva que, de tão alva, resplandeceu com a pequena luz da
alâmpada que toda refletia sobre ela. A mãozinha bateu mansinho
nos vidros do arco, repetindo outra vez:

_ Aninhas, psiu! Ouves?

Não tardou a escutar-se o pé ante pé de quem acudia
àquele chamado; foi um vulto escuro e, ao parecer, feminino, que, pelo
postigo que da casa fronteira abria para o interior do arco, entrou daquele
modo cauteloso e sorrateiro. Encaminhou-se até ao extremo canto oposto,
onde o arco pegava com as casas da esquerda, e resvés com a janela
donde surdira a primeira voz.

Sentiu-se então algum rumor debaixo do arco, e um murmurar de voz
masculina que dizia:

_ Bem digo eu que a moça é um anjo! É a santa que lhe
vem falar: querem ver?

_ Mana, mana! Exclamou de cima do arco o vulto que aí tinha aparecido:
não ouviste uma voz de homem aqui por baixo?

_ Não. E, daqui onde eu estou, até lhe veria a sombra, se aí
estivesse alguém. Não tenhas medo: toda a vizinhança
dorme já; e, a não ser o bispo ou Pêro Cão, não
creio que ninguém mais vele em toda a cidade.

_ Logo te lembraram esses fariseus… Que a virgem Maria os confunda, mais
a senhora Sant’Ana!

_ Amém! E justiça Del-rei D. Pedro que sobre eles caia!

_ Ai Gertrudinhas! Que se Deus e seus santos me não valem, não
sei que será de mim. Justiça Del-rei D. Pedro, dizes tu. E donde
há de ela vir a esta terra, onde nem rei nem povo nunca puderam nada
contra seus tiranos e opressores?… El-rei, filha, tão longe, e tão
fora de eu nunca o poder ver… E os meus inimigos tão poderosos e
tão perto… El-rei D. Pedro! O caso que eles fazem dele, e o que lha
eles importa com sua justiça e suas leis! Eles sim!… Que nesta cidade
mais reis são eles que nenhum rei: dizem os traidores; e dizem-no e
fazem-no; e que outro rei farão, em vez dele, se lhe não catar
seus privilégios como já fizeram ao bisavô que se chamava…

_ Ao irmão de seu bisavô, queres dizer; el-rei D. Sancho.

_ Pois sim, será; que disso nada sei, nem sou lida e sabida como tu…
Também não tenho tio físico que traz anel no dedo e gualdrapa
na mula, e anda atrás de el-rei cos alforjes cheios de drogas. Cá
eu, sou a pobre mulher de um ourives, que não sei senão governar
a minha casa, deitar as minhas teias…

_ E ser o exemplo das mulheres honradas. Que assim foram todas, e já
estes clérigos de má morte, mais estes frades trapaceiros não
fariam o que fazem.

A resposta de Gertrudes produziu o seu efeito, abrandando o tem picado que
visivelmente transparecia na fala antecedente da que, já agora claro
se vê, era a sua íntima amiga, a boa Ana, Anicas, ou Aninhas,
como ela, pelo engraçado diminutivo minhoto, lhe chamava.

Tornou-lhe a sincera Ana com a primeira suavidade e mavioso acento:

_ Minha querida Gertrudinhas, olha que to digo hoje aqui, na presença
da senhora Sant’Ana que nos ouve… E eu que lhe acendo todos os dias
a sua alâmpada, que é legado de meu pai, que bem dito o deixou
no seu testamento, “que antes faltasse o unto no caldo de sua filha
única, do que o azeite na alâmpada do arco da Santa”. E
assim vê lá se eu lha acenderei todos os dias ou não!
E quando estou doente é meu marido… Coitado! O que será feito
dele? Quem no mandou ir lá para Lisboa, a troco de arrecadar essas
dívidas que Deus sabe se ele nunca as haverá? Mas para lá
foi, e por lá anda; e, com mal um ano da casada, eu cá fiquei
só, com o meu Fernando, que já diz “Pai”, a pobre
criança!… Mas nunca o pai lho ouviu dizer, nem Deus sabe se ouvirá!
Diz-me cá uma coisa negra no coração que não…

E as lágrimas, fio a fio, a correr pelas faces da pobre noiva, que
mais interessante e linda a faziam.

E deve de saber o leitor que ela era linda, como eu seguramente creio, e
em poucas linhas se verá por quê.

As lágrimas porém da boa Ana, com serem mui sentidas e sinceras,
não lhe interromperam o discurso nem por meio segundo; continuou logo:

_ Sim, sim; e bem no digo eu. Tenho coisa cá dentro que me agoura
grande mal a mim e aos meus: e não me vem senão daquele bispo,
que é a perdição e ruína desta cidade, ele e os
seus cônegos e os seus portageiros e os seus archeiros e toda essa gente
da Sé.

_ E mete na conta o reverendo padre Fr. João da Arrifana, que é
boa peça. Mas não há de ser assim, Aninhas, que Deus
nos há de acudir, e a justiça Del-rei D. Pedro.

_ E donde há de ela vir, menina? Não sabes que desde o interdito
grande e das excomunhões que houve nesta terra por causa do alvoroto
do povo contra a tirania do bispo D. Pedro, e que depois se acordou tudo com
el-rei e o papa, nunca mais as justiças Del-rei se quiseram meter com
a nossa terra, nem catar-nos foros, nem ser por nós, e nos deixaram
à mercê do bispo e da sua gente? Como há de el-rei D.
Pedro agora?…

_ Sei tudo isso, sei; mas olha que há de vir quando eles menos o esperarem,
com aquela espada na sua real mão, que Deus temperou para destruição
de tiranos e avexadores do povo.

_ Que cedo faça Deus esse milagre, Gertrudinhas. Senão, mal
estou; que ainda hoje aqui veio o almudeiro do bispo, aquele esconjurado leva-e-traz,
que de manhã rouba o povo na casinha da portagem e de tarde faz o ofício
do demônio tentador, a desinquietar quanto rapariga e mulher honesta
tem o Porto…

_ Para serviço e aumento da igreja de Deus!… Dizem eles.

_ Não, filha, quem tal bispo nos deu… Também!

_ Foi el-rei defunto que cá o pôs. No fim da sua vida faziam
dele quanto queriam, principalmente frades e clérigos e gente de guerra,
a quem parece que Deus deu este reino por seu… Deus não, que é
pecado tal dizer: deu-lho o demo por nossas culpas. Mas que te disse o almudeiro?

_ Esconjurado seja ele! Veio com os mesmos recados do costume: “Que
tivesse eu mais juízo e prudência; que fosse onde me diziam,
ou desse hora em que o bispo cá viesse; que não escorraçasse
a fortuna que à porta me batia… Que meu marido, se eu teimasse, nunca
mais o veria; que nas covas dos paços da Sé mo haviam de enterrar
vivo, donde sol nem lua veria, e pão e água comeria como um
forçado das galés Del-rei”. E trazia-me presentes de ricas
pedras e de ouro fino que me lançou no regaço, e teimou tanto
até que…

_ Até o que, menina?…

_ Que lhas arremessei à cara com quanta força tinha. E bem
arranhada lhe ficou: inda bem!

_ Inda bem, querida Aninhas! E o ladrão do almudeiro?…

_ Fez-se negro de raiva com o insulto; e, sem dizer palavra, começou
a ajuntar o que estava pelo chão, pérolas, ouro… Jóias
bem lindas eram elas! E meteu tudo nos golpes de saio, e foi-se sem mais Deus
te salve do que um sumido Tu mo pagarás, que ia rosnando pela escada
abaixo.

_ Tens razão para ter medo, filha; agora o vejo eu: mas ainda lhe
havemos de dar remédio.

_ Quem?

_ Eu… Nós, se Deus quiser; nós e a nossa boa fortuna.

_ Nós! Tu com dezesseis anos e eu com vinte, teu tio na corte, meu
marido em Lisboa, que havemos nós de fazer, mulheres, sós e
sem ninguém?

_ Sem ninguém!

_ Sem ninguém não, que aqui tenho a minha madrinha e padroeira,
a minha senhora Sant’Ana.

_ E eu o meu Vasco, que há de fazer o milagre sem ser santo.

_ O teu Vasco! Que se há de ele atrever contra o bispo cujo é?

_ Do bispo ele como eu sou do mouro de Granada. É estudante, mas não
quer ser clérigo; e, em tendo idade que lhe não possa pegar
o tio, há de ir para Salamanca.

_ As covas de Salamanca! Apelo eu, filha! Bruxo queres o moço?

_ Bruxo! Que bruxo é meu tio, que tantos anos lá esteve, e
saiu curando de toda a moléstia e enfermidade com suas drogas e mezinhas?
Que por isso anda na corte com el-rei D. Pedro que Deus guarde, e nunca d’ao
pé de si fora o quer, que outro físico o não trata!

_ E que há de fazer o teu Vasco no meu apertado caso?

_ Há de partir logo para onde está el-rei D. Pedro, e dar-lhe
de tudo parte, que nos valha com a sua justiça, e venha açoitar
este malvado bispo, e enforcar os seus cônegos, os seus frades e portageiros.

_ Bem simples sou eu; mas não sou tão simples como tu, Gertrudes.
Com que el-rei D. Pedro há de atender a duas pobres raparigas, e sobretudo
a uma do povo como eu, para castigar fidalgos e senhores que todo lo podem,
e sempre, desde que há sempre, fizeram o que quiseram? E clérigos
então! Se eu tal via na nossa terra, dizia que andava o mundo às
avessas.

_ Pois hás de ver, hás de ver! – replicou a entusiasta
Gertrudes, com um acento que nem a mais exaltada malhada ou setembrista dos
nossos dias saberia imitar – com uma firmeza e confiança que
a fariam admitir sem mais provas na república de… Em qualquer das
repúblicas com que nos mimoseia de vez em quando a polícia para
maior glória sua e descanso nosso.

_ Hás de ver – disse ela, – e antes de muito; que ainda há
Deus no céu, e justiça na terra; nem há de clamar em
vão tanto sangue que brada desses patíbulos, tanto suspiro que
sobe à presença divina desses calabouços, tanta lágrima
que se chora por essa terra com as violências e maldades dos nossos
algozes. Hás de ver el-rei D. Pedro nesta cidade, e os malvados a tremer
e a fugir diante dele; mas sem lhes valer fugir, que os há de alcançar
a espada de sua justiça.

_ São capazes de lhe resistir, filha, de lhe negar a obediência
que lhe devem, de se alevantar contra ele, e desnegá-lo de seu rei
e senhor que é.

_ São, são; e de o excomungar também, e apelida-lo de
herege ou mouro. Mas tanto pior para eles que mais cru será Pedro Cru
com quem assim o ofender.

_ Mas dizem que é tão brando e generoso, tão fácil
de perdoar a traidores!

_ É sim,é; mas quem perdoa também cansa; e ele já
tem cansado muitas vezes, nem há de esperar agora para mais cansar.

_ Deus te ouvira, querida Gertrudes; que eu muito medo tenho de ir parar
às covas dos paços do bispo, e nunca mais…

_ Não hás de, não. E agora vai-te deitar Aninhas, que
é tarde. Amanhã saberás boas novas, e que não
dormi no teu caso.

_ Adeus, Gertrudes, adeus, querida vizinha! Deus te pague as consolações
que me dás: que já tinha morrido de puro desalento sem ti, ou
algum mau anjo me tentaria a perder-me… Mas isso não! Isso nem sem
ti. Adeus!

_ Adeus!

E, pelo mesmo modo e caminho por que viera, se retirou a sincera Aninhas
para o interior de sua casa.

Gertrudes, apenas a viu entrar, tirou um lenço branco e acenou com
ele para debaixo do arco.

III – O Senhor Estudante

_ Gertrudes! – disse uma voz de homem, mal reluziu nas trevas o lenço
da linda entusiasta.

_ Vasco! – lhe responderam da gelosia.

_ Dorme teu pai? Temos ainda um instante para falar?

_ temos; e precisamos muito. Ouviste a minha conversa com Aninhas?

_ Ouvi.

_ Pois vai-te; e corre a bom correr. Não comas nem bebas, nem tua
cabeça descanses, até chegares a el-rei D. Pedro e lhe dizeres
o aperto em que estamos. Fala com meu tio: por ele entrarás logo a
el-rei. E vai-te, que nem mais uma fala te quero ouvir.

_ Gertrudes, Gertrudinhas, pois assim com esse desapego e desamor! Há
três dias que te não vejo, e há boas três horas
que aqui estou ao relento a esperar que essa interminável conferência
acabasse…

_ E nunca mais me verás se já, já não partes.

_ Vou, vou; e custe o que custar, morra eu na empresa, que lá diz
a copla:

Morrer por mi dama,

Morrer, morrerei;

Que viver sem ela

Eu viver não sei.

_ Boa escolheste a hora para versos e coplas, estudante!

_ Estudante, estudante,

Que ponte á aquela?

Minha dama bela

Por ela

Passeia;

E eu, longe dela,

Me estou mofinando

Nestes livros velhos,

Velhos, relhos.

Que os leiam francelhos,

Trebelhos;

Não eu que morro, que me estou finando,

Finando!

Finando e matando

Por quem de meu mal, meu mal vai zombando.

_ Ora acabaste de cantar? (à parte) E que linda voz que ele tem! (alto)
Em má hora acabaste! Pois vai já e corre.

_ Corro, corro; assim não corresse comigo a pena de te ver cada dia
mais ingrata e desabrida.

_ Requebros? Boa estou para tal!

_ Não estás não. A quem o dizes?… O diacho é
a moça. Não há senão obedecer-lhe…

Foi rosnando, e foi subindo a rua acima, andando e olhando para trás,
até que sentiu fechar-se a gelosia. Parou, afirmou-se, e dizendo –
“Foi-se deveras” – começou a caminhar mais depressa.

_ O diacho é a moça! – continuou depois o nosso estudante,
como quem atava, em solilóquio, o diálogo interrompido. –
Com aquela carinha de alfenim, aquela figurinha de alcorce, tem uma alma,
um coração naquele peito, que se fosse mister de uma Judite…
Mas cabeças de bispos não se cortam como as de capitães
e generais de exércitos. E então sua Reverência que toma
umas cautelas, expõe tais vigias em seus paços namorados, que
se a metade tivera o pobre lapuz de Holofernes, nunca judia o mandava em pecado
mortal para o outro mundo. Mas deixemo-nos de graças, e vamos ao que
é sério. Em boa estou eu metido. Se D. Pedro não é
o homem que dizem, a troco de uma moça de mais, cedo me vejo com uma
cabeça de menos. Quid nunc, Sr. Estudante? Uma moça de mais,
disse eu!… Gertrudes não é das que se contam assim num rol
de fieira em que muita gente entra. Se há filha de Eva por quem descende
de Adão deva arriscar a vida, é a minha Gertrudes. E o ódio
que eu tenho àquele maroto de Pêro Cão, e àquele
hipócrita daquele bispo!… Estou resolvido. A eles.

E com esta folha
Por minha dama lo juro,

Que não fica mouro vivo

Nem alcaide nesse muro.

_ Mude mouro em bispo, e fica certa a copla por mais que me digam.

Dizendo isto, e tirando meia espada, como para ver se a tinha pronta e corredia
na bainha, foi apressando o passo, no trepar em que ia pelas empinadas ruas
daquele íngreme bairro, que a essa hora ainda estavam solitárias
e quedas como o resto da cidade.

Deixa-lo seguir o seu caminho; não nos metamos a adivinhar o que se
ia revolvendo em seu pensamento em que tão opostas idéias combatiam…
Ele estudante, ele valido e protegido do bispo, seu senhor… Ele namorado,
ele querido de Gertrudinhas sua dama!… Deixa-lo, deixa-lo e transportemo-nos
nós, amigo leitor, para mui diverso, posto que não mui apartado
lugar. Façamos, com a rapidez com que em um teatro britânico
se faz, a nossa mutação de cena; e deixar gemer as unidades
de Aristóteles, que ninguém desta vez lhe acode.

Vamos, daqui da beira do rio, donde te estou escrevendo, leitor benévolo,
vamos pelas congostas acima, nome que (em parêntesis seja dito) bem
pouco tem de poético e romântico. Passemos o venerável
são Crispim, que tão solenemente desmentiu o dito do pagão
Horácio – ne suttor ultra crepidam – , e encomendando-nos de
passagem à sua benta e milagrosa sovela, deixando à direita
as hortas em que séculos depois se abriu a bela rua nova de São
João – tornemos a passar pelo nosso primeiro lugar de cena, saudemos,
de memória, a devota alâmpada que ardia no milagroso arco, e
tomemos Banharia acima.

Cá estamos junto á veneranda estátua do velho Porto
que, rodeado de assopradas tripas, olha, como de próprio trono, para
sobre os domínios de sua jurisdição. Não tinha
ainda, naquele tempo, iconoclástica brocha ousado assarapantar de vulgar
e rabujenta oca, nem arrebicar de crasso vermelhão aquele primor do
cinzel portuense, que então resplandecia em toda a nitidez do primitivo
granito. Cometamos pois o desculpável anacronismo, se o é, de
saudar o respeitável emblema da nossa ilustre cidade, e vamos direitinhos,
sem mais cumprimento nem mesura, aos paços da Sé, ou paços
do bispo, como hoje se diz e talvez então se dissesse já. Creio
que dizia. O precioso manuscrito donde tiro esta verdadeira história
lê “paços do bispo”: na sua fé vá como
ele quer.

E bem pudera eu agora, amigo leitor, fazer-te aqui pomposa resenha dos pergaminhos
que revolvi no cartório da nossa câmara, do censual do cabido
cuja letra quadrada soletrei, e dar-te mil outras provas de fácil erudição
com que te secaria de morte, sem nenhum proveito meu nem teu, e o que mais
é, da nossa história. Contenta-te pois, assim como eu me contento,
com a autoridade irrefragável do nosso manuscrito. E que se livre alguém
de o atacar, por que já temos apalavradas para uma tremenda defesa
as eruditas colunas de três jornais literários que ninguém
lê, e de outros tantos jornais políticos que todos lêem
– quando lhes faz conta.

Que não era o paço do bispo do Porto no tempo de el-rei D.
Pedro em que isto se passa, o que hoje é no tempo do duque D. Pedro
em que se conta, já o leitor está esperando ouvir. E mais esperará
ele decerto, que é uma descrição, em todas as regras
d’arte, do palácio como ele era, com uma sapiente dissertação
sobre os diversos gêneros de arquitetura gótica, a algum dos
quais forçosamente havia de pertencer – que é gótico
por força todo o palácio de romance ou novela antiga –
inda que o construíssem os Abencerrages de Granada ou el-rei a Almansor
de Vila-Nova. Mais em questão incidente sobre o florido e o misto,
e o canelado das colunas, o lavrado dos capitéis, e outras coisas de
igual interesse e aproveitamento…

Mas frustrada, por não dizer desapontada, já que tanto mo criticam,
ficará a esperança do amável leitor; porque eu, sem reparar
na arquitetura do paço episcopal, vou entrando por ele dentro, tão
sem cerimônia e com tanta pressa como por ele fora saiu o outro dia
o pobre bispo João, a quem saudades dos seus livros matarão
decerto… Coitado do pobre velho! E coitados dos pobres livros!…

Contentando-me pois de dizer que a residência pontifical da Sede portugalense
ainda conservava importantes restos da antiga fortaleza sueva que já
fora, e que bem lhe cumpria aos bispos manter pelo estado de guerra em que
há tantos anos andavam com o povo da sua boa cidade, subamos a escada,
entremos na sala vaga ou sala dos homens d’armas… E espreitemos àquela
porta donde se ouve um rumor de vozes abafado e indistinto.

IV – Os Paços do Bispo

A porta é no fim da câmara, uma tremenda porta de castanho já
quase negro e defumado, toda repregada de cravos de ferro de cabeça
pontiaguda, que a ouriçam como de espinhos, e lhe dão um aspecto
melancólico e terrível. E mais terrível a faz ainda a
atlética figura de um homem de armas, que a está guardando de
morrião na cabeça, e na mão a meia lança que diziam
ascuma ou azevã: valha a verdade!

Por sobre uns bancos rudemente lavrados de escultura sueva, ou mais bárbara
ainda, se é possível conceber coisa mais bárbara, jazem
meio dormidos, meio sopitos da pesada fadiga da ociosidade, os beneméritos
defensores do trono e do altar… Desse tempo – que são os mesmos
de agora – as saias pretas do prête ou padre, e os vermelhos saios
do saião-soldado. Mais, um ou dois frades garraios cuja pouca importância
os não deixava passar da antecâmara episcopal, e cuja estada
ali denotava o que hoje denota a presença de uma ordenança em
qualquer antecâmara ou portão; isto é, que se acha dentro
a importante personagem a quem está de ordens.

Rumor de passos à entrada… Quem será? É o nosso próprio
estudante de inda agora. Por aqui ele a estas horas! Vejamos o que faz.

De uma vista de olhos, Vasco percorreu todo o largo aposento; e, como quem
trilhava sítios conhecidos e costumados, foi direito à formidável
porta do topo da sala.

_ Boas noites vos dê Deus, Rui Vaz! – disse Vasco ao homem d’armas,
que, por esta saudação e pelo ar familiar com que ela foi recebida,
mostrava ser conhecido velho.

_ Bem vindo sejais, Sr. Vasco… E mais devia de dizer D. Vasco; mas não
tarda que vem.

_ Com essas coisas vindes sempre, Rui. E, por minha vida que não entendo
vossos meios dizeres e palavras surdas! Não falareis claro um dia,
homem?

_ Assim Deus fale à minha alma como eu falarei claro e alto, e boa
verdade, em havendo quem me solte a língua. Mas por ora está
mais seca e perra que essa negra porta.

Dizendo isso, apontou com um gesto significativo para a tremenda janua inferi
a que estava de guarda, benzeu-se, e continuou:

_ Mas não nos ouçam eles, Sr. Vasco! Estas não são
paredes para se lhes contarem segredos. Vindes cedo hoje.

_ Cedo demais sempre eu venho. Quem está cá?

_ Quem há de estar? Vosso tio Frei João, os outros amigos,
e aquele grande cachorro de Pêro Cão: os do costume, os do costume.

_ Posso entrar? Não há ordem nenhuma de novo?

_ Nenhuma.

_ Então adeus, Rui Vaz, que tenho pressa: vou-me lá dentro.

_ Olhai, Vasco, mancebo; quereis um conselho? Sabeis que sou vosso amigo
deveras, que vos tendes sempre dado bem com os meus avisos… Tomai o que
ora vos dou: não vades lá dentro.

_ Por quê?

_ Porque…

E deitando a mão ao estudante, chegou-o ao pé de si o archeiro;
e ao ouvido, abaixando a voz, continuou:

_ Porque se faz hoje ali alguma maldade muito grande… Adivinha-mo o coração,
leio-lho nas caras, que andam com um sorriso diabólico… E tão
aforismados todos! Alguma traça infernal andam tecendo.

_ Bem sei que andam; e por isso cá venho.

_ Vós!

_ Eu… Para lha desfazer.

_ Criança!

_ Nem tão criança que… Adeus, Rui Vaz: até logo, que
já volto.

E não esperou mais; e, deixando o bom do homem d’armas à
sua porta grande, foi-se, como quem sabia os cantos da casa, a uma portinha
pequena que estava meia encoberta a um lado, e que mal distinguiria da parede
quem não estivesse na posse e uso das petites entrées do paço
episcopal.

V – Vasco

Vasco tinha os seus dezenove anos, e há cinco que estava no Porto
– para cônego dizia o tio em cujo poder estava – para ir
depois a Salamanca e ser físico, dizia ele. O seu grande desejo, as
suas aspirações de glória eram vir a ser o sucessor daquele
tipo, como ele o cria, de toda a ciência humana, Mestre Simão,
o físico Del-rei.

A sotaina de Mestre Simão, as gualdrapas da mula de Mestre Simão…
E a sobrinha de Mestre Simão, a bela e espirituosa Gertrudinhas, eram
todos os seus enlevos.

_ Se eu chego a levar com a borla amarela, – dizia ele nos seus sonhos de
ambição – estou um homem estabelecido, caso com Gertrudinhas;
toma-me o tio para seu ajudante, deito logo mula com gualdrapa, ando atrás
Del-rei, porque ando atrás de Mestre Simão… E todos a perguntar
logo: Quem é este físico tão moço que vai no cortejo
Del-rei? – É Mestre Vasco, o sobrinho de Mestre Simão
que casou com a bela Gertrudinhas do arco de Sant’Ana…

Ora o tio – não este tio futuro, porém o tio presente
– deitava-lhe outras contas muito diversas: queria-o ordenado, e cônego
prebendado da santa Sé episcopal do Porto: e tinha suas boas razões
o tio.

Era este não menor pessoa e personagem que Fr. João da Arrifana,
um franciscano gordo, espadaúdo, pessoa de grande autoridade e influência
na ordem, e fora da ordem, não por suas letras, que eram gordas como
ele, mas por tretas, que tais as tinha e tantas que os cronistas modernos
da Seráfica lhe chamam o Passarola do século XIV.

Era além disso Fr. João da Arrifana… Mas não cansemos
o pincel a retratar nem este nem os outros importantes caracteres da nossa
história: deixemo-los daguerreotiparem-se aos olhos mesmos do leitor,
e à luz de seus próprios ditos e gestos, segundo lhos vamos
contando.

Do nosso estudante falemos um pouco mais. Estudante era ele; e quem dizia
estudante naquelas eras, quase que dizia clérigo, que andava pelo mesmo.
O seu trajar era meio da igreja, meio de secular, e participava da natureza
indecisa ainda de sua profissão. Mais forte em esgrimir, em manejar
a besta, em andar à gineta e em todos os exercícios de cavaleiro,
não lhe faltava todavia certa instrução, nem desaproveitara
inteiramente o tempo que assaz constrangido – confessemos a verdade
– tinha dado e continuava a dar à escola de Paio Guterres, o
arcediago de Oliveira, famoso escolar daqueles tempos, cujo valido era o diabrete
do rapaz, apesar de sua pouca e intermitente aplicação.

Digo intermitente, porque tinha semanas inteiras de ser o melhor estudante
e o mais aplicado de quantos entravam nos claustros da Sé, e ora queria
ser físico e ser doutor, ora ser cônego e até ser papa,
se possível fosse. Mas de repente dava-lhe a veneta e jurava por São
Barrabás que ou havia de ganhar as esporas de ouro e o cinto de cavaleiro,
ou então queria antes ser homem de ofício, burguês pançudo
e massudo – que assim melhor o deixariam casar com Gertrudinhas, que,
no fim de contas, era a única idéia fixa ou semifixa de seu
móbil espírito.

Como todos os caracteres veementes, em que o sentimento domina muito mais
que o pensamento, Vasco não andava senão pelos extremos. A sua
ambição saltava em ziguezague das dintições aristocráticas
para a ilustração literária, daí para a popularidade;
e tão depressa aspirava a ser conde ou rico-homem, bispo, físico
ou doutor, como a erguer-se em caudilho das turbas, tribuno de comunais, e
a abater com a foice revolucionária todas essas mesmas preeminências
que mais o seduziam.

Neste ponto da nossa história a mania dominante era, como disse, a
de ser físico, e obter assim a mão de Gertrudinhas. Mas Gertrudinhas
era sobretudo patriota, partidária Del-rei D. Pedro, inimiga portanto
do bispo; e o pobre Vasco, o melhor coração de rapaz que jamais
se viu entalado em tais apertos, era todo ele homem do bispo, seu dependente
e seu protegido.

Andava aflito o bom do mancebo, coitado!

Diziam que em seus apuros e dificuldades ele tinha sempre valedor seguro
em não sei que misteriosa proteção que sob diferentes
formas lhe aparecia.

O que quer que era, era da outra banda do rio, nos tortuosos becos de Gaia
que ele o ia buscar.

Mas quem, mas como, mas o que era?

Sigamos por agora ao interior dos paços episcopais, por onde ele se
sumiu.

VI – Palestra de Moral

Disse que o nosso estudante se sumira da antecâmara do bispo por uma
portinha escusa; mas não disse ainda onde essa portinha ia ter. Vamos
a isso. Entrou Vasco pela dita porta, fechou-a cautelosamente, e foi, em pés
de lã, por um corredor estreito e escuro, andando sem apalpar, como
homem que o conhecia de há muito, e parou ao pé de outra porta
de donde se ouviam distintamente vozes claras e como de quem ou não
resguardava o segredo, ou estava seguro de não ser ouvido.

Dizia uma delas:

_ Assim nos ajude nosso seráfico padre, e a abundância da colheita
nas comarcas do Sul de ânimo à caridade dos fiéis, para
nos chegar ao convento alguma coisa melhor que este vinho verde que por cá
temos, e que, a dizer a verdade, nem a minha goela franciscana pode com ele…

_ E que dizeis a este, meu padre?

E sentiu-se um som como de vinho que se emborca do pichel no copo.

_ Deste rara vez se bebe nos tinelos dos bispos, que são prelados
seculares e príncipes da igreja…Quanto mais no refeitório
de pobres frades! Mas, dizia eu que assim me acudisse aquela benção
do céu, como é verdade o que vos contava, meu santo e generoso
prelado. El-rei saiu de Coimbra há dois dias e vem caminho do Porto.

_ Sabemos o contrário, venerável irmão, por cartas que
de lá nos mandaram ainda hoje: el-rei saiu a montear, tomou o caminho
do campo, e não virá por agora à nossa boa cidade. Mas
que viesse… Pouco se me dava.

_ Inda assim!

_ Pouco se me dava por ele e pelo seu poder. Tão senhor sou em meu
feudo como ele em seu reino. Mas verdade seja, melhor é que se deixe
estar lá. É assaz mexeriqueiro o nosso senhor e rei e intrometido
em vidas alheias… E este rapaz, este Vasco dá-me que entender. Não
sei o que ele traz na cabeça; mas boa coisa não é. Já
não folga nem brinca tanto, nem quer ir ao monte, nem me estafa quantos
cavalos tenho, como dantes fazia… Esta maldita bruxa de Gaia… Se ela lhe
terá dito? Mas é impossível. Bem mal fiz não a
queimar numa boa fogueira…

_ Vós, senhor, faríeis queimar a bruxa de Gaia?

_ E por que não? Se não fora aquele excomungado de Paio Guterres…
Mas tenho medo dele, confesso. Se foi o hipócrita quem me perdeu o
rapaz? Ah! Que se tal venho a crer…

_ Vasco não sabe nada, senhor: descansai e deixai o mancebo comigo.

_ Sois o meu braço direito, Fr. João. O esquerdo é este
gentil pagem, meu almudeiro. Olá, Pêro Cão, está
tudo pronto, homem? Fiel e zeloso rafeiro, entra esta noite no redil a ovelha
bravia e alfeira que recusa nossos pastorais afagos e cuidados?

_ Tudo está pronto, meu senhor: e vão sendo horas.

_ Então, primeiro a obrigação que a devoção.

Ouviu-se rumor e tropeada, como de umas poucas de pessoas que ao mesmo tempo
se levantam e põem em movimento. Vasco não esperou mais; provavelmente
tinha escutado quanto queria: bateu três pancadas à porta por
certo modo misterioso que parecia de sinal dado. Imediatamente cessou o reboliço,
e uma voz sobressaltada exclamou:

_ Oh! É Vasco.

E abriu-se a porta. Vasco entrou.

_ Seja bem-vindo o Sr. Estudante! Já cuidava que o não veríamos
hoje. Faz-se desejado nesta casa o nosso futuro cônego.

E caminhou para ele o bispo, que assim dizia, com uma expressão de
contentamento em todo o rosto, que bem mostrava a particular afeição
que lhe tinha.

Vasco, segundo usam de fazer rapazes estragados do mimo, deu pouca atenção
àquelas demonstrações; e, sem responder à alta
personagem eclesiástica que assim se dignava festeja-lo, nem fazer
caso dos que o rodeavam, chegando-se à mesa:

_ Oh! A ceia foi esplêndida hoje. Se estarão quentes ainda,
que se comam, estes pastéis?

E sentou-se, sem mais cerimônia, em uma das ponderosas cadeiras que
estavam à roda da mesa; e começou a tasquinhar naquelas preciosas
tortas e covilhetes de picado que ainda hoje são a glória dos
pasteleiros da “cidade eterna”, e cuja veneranda origem, por esta
mui verídica história se vem agora a descobrir, foi nada menos
que de invenção episcopal.

Bem o desconfiava eu: que tão bom bocado – e realmente é
uma das melhores e mais saborosas gulosinas que nesta boa terra de Portugal
se comem! – devia de ter sido inventada pela sapiência culinária
de algum grande homem dos bons tempos da monarquia.

Aqui se hão de rir decerto os nossos estrangeirados, estes viajantes
do Palais Royal que diante das vidraças de Mme. Chevet estiveram embasbacados
a papar moscas, jurando que não havia mais Índia que aquela…
mas, feito o juramento, iam jantar por vinte soldos um arlequim requentado
de segunda mão…

Pois saibam, meus desdenhosos e elegantes senhores, que eu já comi
jantares feitos por M. Pigeon, o Paracelso de Restauração, que,
por sua maravilhosa alquimia, dominou bons seis anos o mundo, de entre os
fogões de M. De Villele. Tive sem, a honra de adorar no seu ocaso essa
estrela flamejante da gastronomia e da política: admirei o novo Watel,
maior e melhor diplomático do que o antigo… E todavia não
esteve no poder da sua arte fazer-me esquecer os caseiros e modestos pastéis
da minha terra…

Está-me parecendo que sou um grande pateta.

Tornemos à nossa história.

O moço comia desenfastiadamente como naquela feliz idade se come;
e o bispo, com o riso na boca e nos olhos, o contemplava em grande complacência.

_ Abusais um tanto, Vasco – disse um frade gordo e vermelho que não
parecia ver a familiaridade do mancebo com a mesma indulgência excessiva:
– abusais um tanto, Vasco, das bondades do nosso santo prelado para convosco.

_ À vossa saúde, tio Fr. João!

E, com duas gargalaçadas do pichel no copo, o encheu a derramar: daí,
empinou o possante vaso a mais de meio, e, dando aquele estalido com a língua
no céu da boca, que os ingleses, por mui feliz onomatopéia,
chamam smak, disse pausadamente o Sr. Estudante:

_ Bom vinho! Se o haverá tão maduro e tão cereal em
Salamanca?

_ Não quero ouvir falar mais em Salamanca – atalhou o bispo
de mau humor. – Não irás lá, por minha vida! Que
nem eu nem teu tio damos licença. Para um bom e honrado cônego
te queremos… que não é para sangrador de mulas e vilões,
quem vem do teu sangue.

_ Ah! Com que assim venho eu de um sangue que?… E os rapazes do coro aqui
na Sé que me motejam de filho das ervas… de um que se não
sabe de donde veio! Bem: saibamos pois, quem é a minha grande fidalga
pessoa.

O bispo, que visivelmente se deixara levar da paixão a dizer mais
do que queria, cuidou em se retirar com melhor ordem do que avançara:

_ Bem sabeis que vos sofro muitas demasias, Vasco; e que de mim fazeis quanto
quereis… Menos numa coisa será: estais para clérigo, clérigo
sereis, e cônego prebendado na nossa santa Sé, com a mercê
de Deus. Levareis vida folgada e solta, que felizmente já lá
vai o tempo da igreja militante… e ainda bem! Nós os de hoje somos
de triunfante. É a vontade de vosso tio Fr. João a quem vossa
mãe à hora da morte vos encomendou, Vasco… e é a minha,
porque vosso pai foi um nobre senhor de Riba Dão… o maior amigo que
nunca tive… lá ficou em Tarifa das lançadas dos mouros…
e… e…

_ E tudo será assim. Mas, senhor meu tio, e senhor meu bispo, o caso
é que eu estou guapamente ceado; e agora, tenho uns mancebos, meus
particulares amigos e matalotes, que moram para Val-de-Amores, guapos companheiros
que estão à minha espera para irmos de além Douro esperar
as rolas bem cedo nos pinhais… E eu não tenho nem maravedi que levar
na bolsa, nem cavalo que me leve a mim. E se não hei de pensar mais
em Salamanca, ao menos…

_ Pêro Cão, dai três doblas a este mau filho, já
que assim o querem não sei que maus feitiços que me ele deu…
E dizei que lhe aparelhem os estribeiros aquele alazão que me mandou
de Cuenca meu venerável irmão. É a mais linda estampa
e os mais seguros quatro pés de cavalo que quero que haja em toda a
Espanha.

_ Jube, domine, benedicere! – disse em tom e corda coral, o maganão
de Vasco, pondo as mãos e inclinando-se ao prelado com ridícula
gravidade, como clérigo em coro antes de ir cantar sua lição.

_ Birbante!

_ viva o meu santo prelado! E venha a benção, que já
não falta mais nada. E dois trincos para Salamanca e para as suas covas,
que não há mais alquimia que esta. Seráfico tio, encomendo-me
às vossas penitentes orações. E vós vinde Pêro
Cão, que não posso aguardar mais: vamos.

_ Que cavalos são aqueles?

Que além ouço relinchar?

Vossos são, dom cavaleiro,

Que se enfadam de esperar.

E com esta cantarola, partiu empurrando diante de si a mal-azada figura de
Pêro Cão, o almudeiro do bispo, que também cumulava as
duas altas dignidades e carregos de seu mordomo ostensivo e de seu mercúrio
secreto.

Pêro Cão ria contrafeito, que não queria bem ao rapaz;
mas voltava a desdentada boca para o bispo, para que ele o visse rir… Rir
daquele alvar riso mau dos tolos velhacos – que é o mais detestável
riso que há na natureza.

P pouco austero prelado, esse ria de gosto e deveras; e seguindo com os olhos
o mancebo:

_ Dá-lhe rédea ao alazão, rapaz, e não o piques,
que é de sangue generoso, não sofre castigo. E espera, Vasco,
filho: que te dêem da armaria a melhor besta de garrucha que lá
houver… a própria com que eu fui às caçadas Del-rei
quando…

Mas já o não ouvia o rapaz, que se fora correndo, se bem correra,
com Pêro Cão agarrado, e como quem não podia sofrer mais
delongas.

_ Bem se vê o sangue que tem! Montear e cavalgar é o seu deleite.
Havemos de fazer dele um bom cônego… E agora, amigos e fiéis
meus, cada qual aa seus cuidados!… Inda bem que o rapaz teve esta vontadinha
de se ir ao monte tão a propósito e de feição:
escusamos de o ter por aqui nesta conjuntura…

_ Parece-me, se me dais liberdade, que o deixais senhorear-se demais de vossa
afeição, e que lhe não podereis ir à mão
quando quiserdes.

_ Não tenhais medo; a raça é boa, e há de acudir
por quem é. Asperezas, nem ele as suportava nem as podíamos
nós ter com ele. Cuidais que é possível fingir com aquela
criança? Conhece-nos por dentro e por fora… Intus et in cute: creio
eu que é o latim da sentença, se ainda bem em lembra do meu
pobre latim… Boas noites, reverendo irmão. Amanhã conversaremos
mais de espaço.

VII – O Alazão

Com suas doblas na algibeira, boas doblas de D. Pedro, que era o melhor
e mais leal dinheiro de ouro que nesta terra se cunhou até aos tempos
verdadeiramente dourados das dobras e dobrões de D. João V,
chegou Vasco às cavalharices episcopais acompanhado do relutante Pêro
Cão:

_ Onde está, aonde está ele, este querido alazão?

E sem esperar resposta, foi, por entre muares e cavalares, procurando o apetecido
e gabado ginete que lhe tardava de sentir já entre os joelhos a devorar
com ele o espaço…

_ Ei-lo aqui, ei-lo aqui!… – E deitou-se aos peitos do generoso animal
que parecia entender e responder aos afagos do mancebo, relinchando com simpática
inteligência, como por esse magnetismo animal que estabelece aquela
inexplicável, mas inquestionável correspondência entre
as afinidades de duas naturezas semelhantes.

Atrevidos, generosos ambos, atuados ambos pelo vago desejo de se lançar
ao incomensurável espaço, imprudentes, desprevenidos, o jovem
cavaleiro e o jovem cavalo sentiam que eram feitos um para o outro, que a
um e a outro os chamava o palpitante interesse de correr impensadas aventuras.

Selaram, embridaram o cavalo, que os cavaleriços pasmavam de ver tão
manso. Vasco ficou de um pulo sobre ele, tão consubstanciadas as duas
formas e naturezas como se as duas partes de um antigo centauro, que estivessem
divididas, se tornassem a reunir para viveram sua vida natural e primitiva.

Partiram trotando largo e seguro por aqueles despenhadeiros escorregadios
e mal calçados que nossos avós, de tão bom contento,
tinham a indulgência de chamar ruas.

Vasco tomou pelo arco da Vandoma, onde os Gascos e seu bispo Nonego colocaram
a milagrosa imagem da Virgem, proteção e armas de nossa cidade;
veio sair ao que hoje é de São Sebastião, e daí
outra vez rua de Sant’Ana abaixo. Parou junto desse arco, viu erguer-se
logo um postigo de gelosia, e ouviu que lhe diziam em voz baixa mas clara:

_ Bem. Correr sempre! Agora nem mais palavra.

E viu um lenço branco que lhe acenava. O lenço deixou-se cair:
colheu-o no ar, beijou-o com devoção, e o meteu nas pregas do
seio. A gelosia fechou-se, e ele partiu.

Já chegava à porta da cidade, que àquela hora se não
abriria decerto a qualquer outro: mas a quem vinha dos paços da Sé,
montado naquela rica e bem conhecida estampa de cavalo, ao sobrinho do mestre
Fr. João de Arrifana, o valido do bispo, quem lhe havia de duvidar
de coisa alguma? Abriram-lhe a porta, foram-lhe acordar barqueiros que o passassem
de além Douro…

Vasco ficou só na praia, aguardando que viessem passa-lo à
outra margem do rio: os pés na areia úmida, os olhos fitos na
corrente do Douro que murmurava, encostado ao seu alazão tão
imóvel como ele, e que ambos pareciam meditar. Triste e melancólica
era a atitude do nosso estudante tristes e melancólicas as suas meditações.
Onde ia ele? Que ia ele fazer? Qual seria o resultado destas perigosas aventuras
em que, rindo e folgando, se começara a enredar, de que não
podia desprender-se já agora, que o levavam em seu remoinho rápido,
irresistível a não sei que abismos que nunca sondara, que nem
imaginara – que se lhe abriam tremendamente agora para o tragar talvez,
para devorar quem sabe, talvez o que lhe é mais caro, o que mais junto
está e deve estar de seu coração?

Este cego amor pela bela Gertrudes, este exaltado entusiasmo pela causa dos
comunais, que é a dela – e a dele também – este
ódio que tem aos opressores da sua terra, e a oculta voz do coração
que ao mesmo tempo lhe clama por aquele mau bispo e mau senhor, que para ele
Vasco é todavia a bondade, a indulgência mesma, sempre, sempre,
e sem jamais se desmentir!…

Como há de a singeleza de um coração jovem e não
calejado ainda pelo trilhar das injustiças do mundo, meter-se a conciliar,
a abrigar dentro do mesmo peito afetos e sentimentos tão opostos? Virá
o tempo, virão os desenganos, virão as perfídias do amor,
as traições da amizade e as brutais lições do
egoísmo universal, virão todos e tolherão essa alma,
que não será já a imagem do Criador que a formou –
senão o disforme e aleijado espírito de mau demônio que
a contorceu.

Virão: mas não vieram ainda. Vasco está na sua primeira
tortura. Agora o sentaram no potro; inda não começaram bem os
algozes o seu ofício…

_ Quem é lá? – bradou Vasco a um vulto que se encaminhava
para ele dentre umas casinhas térreas junto à muralha.

_ Sou eu , Vasco.

_ Vós aqui, Rui Vaz! Inda agora vos deixei de sentinela no paço!

_ Achei um bom camarada que lá ficasse por mim; e eu vim a toda a
pressa para vos encontrar, que não partísseis sem vos eu dizer…

_ O que?

_ Que bem sei onde ides. Tratado está entre os nossos que fosseis;
e lá onde ides achareis novas nossas. Mas, senhor, Vasco, mancebo,
não vos ponhais a caminho para Grijó sem falar primeiro com
ela.

_ Ela! Quem?

_ Quem há de ser? A bruxa de Gaia.

_ Tal não farei. Tenho jurado que não hei de parar nem repousar
sem cumprir o que prometi. A Grijó hei de ir primeiro; depois…

_ Depois?… Seja. À volta de Grijó, entrai na capela de são
Marcos, e lá encontrareis quem vos diga o que ora não posso
eu aqui.

_ Será assim, e…

Mas nisto chegaram os barqueiros; Rui Vaz desapareceu como uma sombra, e
Vasco entrou com o seu alazão no saveiro que os transportou ao burgo
novo.

E tudo listo que levamos contado, e achar-se o nosso estudante nas praias
de Vila-Nova, e daí galopando a toda a brida para o alto agora dito
da Bandeira, tudo isso foi obra de poucos quartos de hora. Ainda era noite,
noite deveras e escura fechada, quando chegava a esse alto hoje tão
célebre por nossas sanguinosas lutas civis.

Deixa-lo ir seu caminho, o senhor estudante: caminho que eu fiz tantas vezes,
em muito menos generosas cavalgaduras e me mais moderada andadura, quando,
morto de saudades pelo meu pátrio Douro, ia choitando no proverbial
macho de arrieiro para as doces margens do Mondego que tento praguejava este
ingrato coração, como se em toda a minha vida neste mundo eu
houvesse nunca de ter dias mais felizes do que tantos, tantos que ali passei
na inocente e descuidada seguridade da vida de estudante.

VIII – Parlamento, Discussão

Deixemo-lo pois ir o senhor estudante; e voltemos nós com a nossa
história ao sítio donde ela começou e aonde está
o foco, o interesse todo desta mui verídica narração.

Soavam talvez ainda na rua de Sant’Ana, e por baixo de seu bendito
arco, as estridentes patadas do alazão episcopal que tão folgado
ia descendo com o leve peso de seu jovem cavaleiro, quando um vulto, dois
vultos, depois três, seis – eram já bem doze ou quinze,
– começaram a surdir das várias ruas e vielas que ali iam dar:
vinham, manso e manso, como ladrões que espreitam ocasião de
chegar sem ser vistos, ao prazo dado de sua noturna empresa, que de antemão
e com todo o artifício fora traçada.

Vinham tão rebuçados todos em longas capas escuras, que nas
espessas trevas da noite era quase impossível distinguir o movimento
sorrateiro com que se mexiam. Juntaram-se a pouca distância do arco;
e, trocando certo sinal que manifestamente viera pactuado, disse então
uma voz:

_ Estão todos?

_ Todos, Pêro Cão.

_ Leva rumor! Aqui não há Pêro nem Paio. Quem traz gazua?

_ Eu: e ainda vem quente da lima, por sinal. E mais, escaldei os dedos a
forja-la.

_ Não te enfades; é a amostra do pano de Belzebu. Melhor to
fará ele quando te pingar a consciência, ferreiro de maldição…

_ Quando eu para lá for… E não digo que não… À
boa companhia em que ando. E às boas bulas que hei de levar da Sé
e dos seus paços…

_ Não te calarás, excomungado?

_ E quem há de excomungar a mim?… Estou vendo que será o
nosso bispo.

Aqui houve gargalhada geral, que mal se abafava nas capas dos embuçados:
tão popular foi a observação que a excitou.

Pêro Cão – já está visto que era ele, e
os outros, portageiros e esbirros menores, que eram o resto da infame caterva
que ali se reunia – fizeram todos, como por simultâneo impulso,
um psiu!… Que foi assoviando surdamente pela rua abaixo. Seguiu-se breve
calada.

_ Leva rumor agora! – disse Pêro Cão – logo no paço,
e depois da fazenda feita, devisaremos dessas coisas todas; e cada um dirá,
qual mais e melhor, o que tiver que dizer. Lá está um odre dos
que ontem chegaram de dízima, almudado por mim à consciência
– bem o heis de crer – para aguçar a língua ao que
a tiver mais romba. Agora vamos ao que temos que fazer, que são horas,
e o… o… o pastor está impaciente pela ovelha. Avança, meus
rafeiros!

_ Pastor, pastor… E quem é lobo então?

_ Que te vai a ti se é lobo ou pastor, contanto que te ele pague?

_ Isso paga ele como um senhor que é.

_ E guapo senhor!

_ Lembra-me uma coisa Pêro Cão…

_ Já te disse que aqui não há Pêro nem Pelaio.

_ Sim, a coisa é arriscada. Quando amanhã se souber em toda
a cidade do Porto o vilão feito que esta noite se vai fazer ao pé
do arco de Sant’Ana… Estou vendo que há de haver duas opiniões
sobre saber quem fez o tal feito. Não há de ser logo uma voz
só entre maiores e comunais: Aquilo só Pêro Cão,
só o danado de Pêro Cão.

_ Pela Senhora da Silva, que é maior santa e está em mais alto
lugar do que esta Sant’Ana – com quem agora não quero nada
pela má vizinhança que lhe vamos fazer!… E por quantos santos
de vulto e de roca, em osso e em pau, quantos tem a bendita igreja da Sé!…
Que esta faca de mato vai pela boca dentro do primeiro que deitar por ela
fora o meu nome.

Ninguém tugiu nem mugiu; sabiam que Pêro Cão era homem
de palavra… E de obra também.

Mas o rezingueiro. Com quem andava o diálogo que vamos contando, sempre
tornou daí a pouco:

_ Pois não se fala mais em nome tão melindroso. Não
quero ter que descoser com a tua faca de mato… Nem tu quererás…
Nem tu hás de ter muita vontade também de afazer conhecimento
com esta choupa, que é forjada, temperada e amolada por minha mão…
E não nas costumo fazer das que torcem o fio no melhor peito d’armas
de Milão, ou búfalo pespontado de Veneza… Vá! Deixemos
isso. O que eu queria saber era: se quando nós, bons populares, que
em má hora leve Belzebu como se fôramos fidalgos!… Quando nós,
desastrados populares, vendemos a nossa alma a teu senhor… E ao diabo, que
tudo foi no mesmo escrito, e ambos lá o tem para nos fazerem pagar
cada um a seu tempo… Quero eu saber se quando assim lhes vendemos a alma
para apoquentarmos e roubarmos o povo nas casinhas da portagem, se também
ficamos obrigados a andar, por noite velha, pelas casas de nosso parceiros
e comunais da mesma terra, a roubar-lhes mulheres e as filhas para serviços
do mesmo diabo, ou do mesmo…

_ Não batais mais nesse ferro, ferreiro: bem sei onde queres ir ter.
Este serviço é de fora parte, e tem seu soldo e comedorias que
vão com ele. Não tenhas dúvidas. Compramos-te a alma
mais caro do que ela vale. Medo tenho eu que o diabo me não dê
quitação por tamanha paga.

O rezingueiro resmungou, disse não sei que meias palavras sobre a
sua consciência, sobre a razão que tinham os populares descontentes,
e o que devia fazer qualquer burguês e homem honrado que quisesse salvar
sua lama e arrepender-se.

Pêro Cão, hábil político e homem quase parlamentar,
viu que a discussão se ia tornando séria demais, e podia desmoralizar
a maioria. Meteu o caso à bulha com o vulgar ridículo de uma
torpe blasfêmia; e, por esta tão sabida e tão imoral estratégia,
despegou do sério aquelas almas grosseiras: almas como as há
sempre em todas as categorias da sociedade, capazes de rir e mofar no meio
das maiores atrocidades.

Em mui semelhantes discussões, preparatórias de não
menores infâmias, outros parlamentos, sem ser o do arco de Sant’Ana
do Porto, tem visto levantar-se um truão homem de estado a aconselhar,
com vileza e crueldade, os maiores flagicios, dizendo sandios gracejos e torcendo-se
em visagens de bobo para fazer rir, nos solenes momentos de angústia
pública, outros cúmplices tão grosseiros e vendidos como
os de Pêro Cão há quatrocentos anos.

Pêro viu, nos compridos e forçados risos dos nobres colegas
a quem falava, que tinha conseguido o seu fim parlamentar; e, aproveitando
o momento favorável e supremo, fechou a discussão, resumiu os
votos, e disse:

_ Vamos a isto, que é tempo de obrar, não de falar. Vós
(e separou seis da sua quadrilha) ide por detrás da cassa, não
se nos escape daí a ovelha. Nós aqui, calados e quedos como
marcos de estrada. Dá cá a chave.

Tomou a chave, embuçou-se mais apertado: e dali a dez ou doze minutos
de medonho silêncio, meteu a gazua na porta da casa que pegava com ele
da esquerda… A porta abriu-se… E Pêro Cão subiu, com mais
dois, pela escada acima, deixando o resto de sentinela e reforço à
porta.

IX – Motim e Assuada

Amanheceu o dia seguinte, belo e puro como um dia de abril que era; o toldo
de névoa, que a madrugada costuma estender sobre o Douro, tinha levantado
mais cedo. Desde o nascer do sol, as mais escuras e tristonhas vielas do Porto
se inundavam de claridade. A nossa rua de Sant’Ana não foi das
últimas que, em sua estreita e cava sinuosidade, viram penetrar a luz
aviventadora daquele dia. Seriam sete horas da manhã: os postigos da
gelosia à direita do arco da santa já por vezes se tinham agitado,
já os vivos e ardentes olhos da animada Gertrudes foram vistos fixar-se
com ansiedade nas janelas ainda fechadas da casa fronteira.

Gertrudes está inquieta, não sabe bem porque: dá-lhe
que entender, hoje mais que nunca, o silêncio daquela casa, que todavia
não é das mais temporãs a dar sinais de movimento e de
vida exterior logo de manhã. Ana bem se ergue cedo, com a aurora, de
seu viúvo e desconsolado leito; mas lida muitas horas no interior da
casa para satisfazer a seus tantos cuidados domésticos, primeiro que
apareça às duas queridas vizinhas que sempre lhe tem valido,
a boa santa que a protege e a boa amiga que a conforta.

Mas dão sete, mas dão oito, mas são quase nove horas…
E as janelas de Aninhas não se movem. A impaciência, os temores
de Gertrudes sobem de ponto… alguma coisa sucedeu… E é preciso
saber o que foi.

O honrado Martim Rodrigues, honesto e pançudo caldeireiro da rua de
Sant’Ana, pai da nossa Gertrudes, tipo e vera efígie de um abastado
burguês desta burguesíssima cidade, saíra, há muito,
para as casas do conselho, onde ocupava a primeira cadeira curul como digno
juiz da terra que era. Gertrudes está só. A velha dona que,
desde que seu pai enviuvara, lhe fazia companhia e a ajudava na labutação
da casa, saíra para a missa das almas ainda lusco-fusco, e numa série
de missas, jaculatórias, novenas e trezenas que trazia prometidas e
em bom caminho andado de satisfazer, se tinha ficado pelas capelas da Sé,
onde está São Gonçalo e São Tiago, e a Senhora
da Silva, e a Senhora do Ó, com vários outros santos todos de
sua particular devoção; com o que, se lhe costumava ir a manhã
até às dez horas pelo menos: hora a que ela ainda não
começa para a dorminhoca progênie que hoje vive.

Gertrudes não pode esperar mais: desce, a correr, aquelas precipitosas
escadas de que ainda há tantos modelos-monstros na nossa boa terra,
e vem à lójia onde os oficiais e aprendizes de seu pai martelavam,
em sonora dissonância, os arames roxos e amarelos que são a glória
e o timbre… timbre que bem retinia!… de mestre Martim Rodrigues.

Gertrudes era a valida, a admiração e o amor de todos os ciclopes
da rua de Sant’Ana e da vizinha Banharia. Os de seu pai adoravam-na.
Boa, oficiosa para todos, impunha-se-lhes, de mais a mais, por um certo ar
de superioridade, e para assim dizer (perdoem-me a aristocracia da frase)
de fidalguia natura, que é a mais rara, a mais preciosa e a mais verdadeira,
posto que não tenha assentamento na casa nem ande nos livros da mordomia-mor.

Pararam os martelos suspensos no ar, cessou a infernal música dos
caldeireiros de mestre Martim, apenas viram as roupas brancas, e a quase mais
branca mão de sua linda filha acenar-lhes silêncio.

_ Quem viu hoje entrar ou sair alguém da porta aqui defronte? Ninguém
sentiu por aí rumor ainda hoje?

_ Da porta defronte? Da casa do ourives?

_ Sim.

_ Ele… hoje… Eu parece-me… A gente não reparou. Mas é
verdade… que ainda está tudo fechado.

_ Vá já um ver, bata à porta, empurre-a… entre já
por força…

Não foi um, foram os marteladores todos. E Gertrudes, à porta
da sua lójia, aguardava, em expectação ansiosa, o resultado
da diligência.

Bateram: nada. Martelaram com seus amotinadores martelos: nada.

_ Arrombem essa porta! – bradou Gertrudes.

Não foi preciso repetir a ordem: o ferrolho era fraco ou estava mal
corrido: a porta foi dentro com pequeno esforço.

Dali a dois segundos, um dos cic2lopes abria a janela do primeiro piso, e
com uma cara espantadiça e esgazeada, com uma verdadeira “cara
de caso” , disse para baixo:

_ Cá não está ninguém.

_ Ninguém!… Repetiu a aterrada Gertrudes. – Bem mo adivinhava
o coração… Ah pobre Aninhas! Levaram-na, levaram-na os malditos…

E atravessou a rua, e entrou na casa da sua amiga, e correu-a de baixo a
cima num instante. No primeiro piso não viu ninguém… subiu
ao segundo. Com que espetáculo foram dar os olhos da boa Gertrudes!

Uma criancinha de dois anos, ainda nua, e como quem tinha saído por
seu pé do berço em que dormira, brincava descuidadamente com
um gato valido. Que parecia adivinhar o abandono do inocente, e, com o redobrar
dos saltos e folguedos, querer entretê-lo que se não carpisse.

Gertrudes tomou a criança nos braços, envolveu-a à pressa
em algumas roupas que achou à mão, e disse para a sua gente:

_ Um fique a tomar conta nesta casa; outros vão já chamar meu
pai. Oh Aninhas, Aninhas! – E não pode conter mais as lágrimas.

_ Mas que foi isto senhora?

_ Que foi? O que havia de ser? Não conheceis vós Pêro
Cão?

_ Ah! Pêro Cão, Pêro Cão… O excomungado bem rondava
por aqui estes dias atrás. Foi o desalmado do bispo que a mandou furtar:
querem ver? Não foi outra coisa. Foi, foi: nem há mais que ver,
nem que dizer.

_ Oh vergonha para a nossa rua!

_ Para a nossa cidade!

_ Para esta terra toda!

_ Isto não há de ficar assim.

_ Não, não!

_ A eles, aos cães, aos Pêro Cães! E aos cônegos,
aos bispos, aos portageiros e malsins, e a toda esta cambada de Belzebu!

_ Por menos entramos nós há dez anos nos paços do bispo
e lhe matamos dois maus criados seus.

_ Aqui Del-rei, aqui Del-rei, que furtaram a mulher de Afonso de Campanha,
a boa Aninhas, a honrada Aninhas!

Um vai buscar o mais sonoro arame que achou na lójia, e a golpes repetidos
de martelo começa de soar um rebate tão tangido e tão
apressurado, que, de mistura com os gritos, exclamações e imprecações
dos companheiros, em breve juntou ao pé do arco da gloriosa Sant’Ana
a mais tremenda emeute – alvoroço de populares que ainda se vira
desde as guerras do príncipe D. Pedro com seu pai, ou do último
levante em que o povo se desenganara a fazer justiça por suas mãos
no bispo seu senhor e excomungador.

Gertrudes tinha voltado para casa com o desvalido filho da sua amiga nos
braços. E mostrando-o da janela ao povo, concitava aquele generoso
entusiasmo que a indignação contra os atos de prepotência
excita sempre nas classes menos corrompidas da sociedade… A que chamam as
ínfimas: e o são decerto na ordem da vilania, e do egoísmo
sem paixões, porque todo é interesses…

O povo ia-se juntando, e uns contavam aos outros o estranho sucesso, e a
indignação crescia com o recordar as tantas torpezas e abominações
que se tinham feito e sofrido neste últimos tempos… E vinham as queixas
dos tributos, e o tão geral quanto desigual das vexações,
e tudo o que, nas breves horas da ascendência popular, costuma vir sempre
à colação, porque o instinto diz aos perpetuamente oprimidos
que é preciso aproveitar a hora da vingança e do castigo, que
a opressão dura séculos, e a liberdade é de instantes.

A maior parte das crueldades e injustiças demagógicas –
não menos crueldades nem menos injustiças contudo – explicam-se
por esta teoria do terrível instinto dos povos, que os não engana,
posto que os desvaire.

X – Os Legítimos Representantes

No mais alto da efervescência e do tumulto, chegava à sua boa
rua de Sant’Ana mestre Martim Rodrigues, acompanhado de seu colega e
alter-ego, o segundo juiz popular. Eram os dois que no dia de São João
antecedente, na forma da concordata ou sentença que servia de foral
à cidade, tinham sido escolhidos pelo bispo dentre os oito eleitos
do povo.

Os bons e prudentes magistrados resolveram enfim vir ver e prover ao que
acontecia.

_ Viva o nosso juiz! – rompeu de toda a multidão: que é
outro instinto da multidão ter sempre alguém a quem aclamar
e vitoriar… embora o apedrejem depois.

Os dois colegas passaram gravemente por entre as alas de povo, que se dilatou
pela estreita rua abaixo, a fazer-lhes praça, e entraram em casa de
Martim Rodrigues para ouvirem e consultarem do caso maduramente.

_ Ainda bem que chegastes, senhor pai! Era uma vergonha: todo esse povo aí
junto a bradar por justiça, e o seu juiz sem lhe aparecer!

_ Praz-me de vos ouvir, filha: sois atilada e apertinente. Mas tomai tento,
Gertrudes, que sois minha filha, e não de qualquer do povo! A filha
de um oficial do conselho, dum cidadão a quem os seus comunais entregaram
o cuidado e a guarda de seus foros e liberdades, não há de falar
assim soltamente. O povo brada?… Deixa-lo bradar.

_ Deixa-lo bradar, meu pai!

_ Quero dizer: o povo não pode bradar nem deve bradar; nós
é que somos os seus bradadores.

O venerável colega de mestre Martim deu um meditabundo sinal de assentimento,
meneando sua municipal e respeitável cabeça.

Esta teoria constitucional, que se considerava eminentemente conservativa
no século XIV, seria hoje havida por completamente demagógica
e subversiva, considerado o imenso adiantamento das luzes, os progressos de
civilização que temos feito, e os hábitos de liberdade
que ultimamente havemos adquirido…

_ Mas se os ferem a eles, senhor, se nos ferem a nós todos, meu pai,
esperaremos, para nos queixar, que?…

_ Que em virtude dos poderes que nos confiaram, e dos direitos que em nós
renunciaram todos por eleição de alguns poucos, nós sintamos
o seu mal, nos doamos por eles… e meditemos, em nossa sabedoria e pausadamente,
a queixa que se deve fazer.

_ Oh senhor meu pai! E se este inocente ali morresse ao desamparo, quem lhe
havia de acudir, com toda essa prudência tão pausada?

E mostrava-lhe a entusiasta oradora de Gertrudes, o inocente que tinha nos
braços e que, com os olhos fitos nos dela, parecia implora-la como
seu único refúgio e proteção.

_ Cujo filho é esse, Gertrudes? É um querubim! Vede-mo bem,
compadre Gil Eanes. De quem é tão lindo garção,
Gertrudes?

_ Ai! O querubim da minha alma! – Exclamou dali outra voz muito conhecida
na casa, mas que não conhece ainda o amável leitor. Não
era menos nem de menor pessoa que da tia Briolanja Gomes, a boa dona da nossa
Gertrudes, que voltava enfim das suas devoções.

_ Ai! O querubim da minha alma! – repetiu ela. – Não o
conheceis, mestre Martim Rodrigues? Olha quem! E a perguntar cujo é!
Cujo há de ser o anjo do céu, rico Serafim da tribuna do Deus
menino! Cujo há de ser, homem, senão daquela santa em corpo
e alma, digna afilhada da mais santa madrinha que tem o céu, depois
da Virgem Nossa Senhora… E não desmerecendo na bem-aventurada senhora
Santa Isabel, mãe do Batista, que a própria Virgem a foi visitar
a sua casa, e ambas com os seus benditos ventres para cada hora… Que o precursor
se pôs de joelhos (lá diz o Evangelho) dentro das entranhas de
sua benta mãe, e disse: “eu te adoro e te arreverencio, porque
és o Verbo: Verbum caro fato es…”

_ Oh! Mulher, oh! Mulher, por quantos santos há no céu, e na
Sé, calai-vos já em nome de Deus, que me mata e ensurdece, e
falta o fôlego… De ouvir o fôlego que tendes. Que criança
é esta, Gertrudes?

_ É filha de Aninhas, da triste mulher do ourives ali defronte.

_ Ah! E então como dizem que esta noite?… Não pode ser. Já
lá foram a casa da vizinha?

_ Não haviam de ir? Foram, e o que lá se achou de coisa viva,
foi este inocente sozinho e desamparado, e o gato branco de Aninhas que folgava
com ele.

_ Então é verdade?

_ É verdade, sim, meu pai. E foi ele, foi ele: voou meter as mãos
no fogo por que foi ele, o infame, aquele amaldiçoado de Deus, que,
em nome de Deus, nos anda deitando bênçãos pelas ruas,
como se… e Jesus!… Não houvesse raio de Deus para estes malvados,
nem…

_ Gertrudes, Gertrudes, lembra-te o que ainda agora te disse, filha. Bom
é ser a gente boa, bom é sentir as injúrias do próximo…
Mas primeiro está a prudência, filha, que senhores e prelados
podem muito.

_ Oh meu pai, quem quer viver no temor e respeito dos maiorais, não
devia aceitar o carrego de punir e zelar pelos pequenos!

As teorias sociais de mestre Martim Rodrigues e de seu digno colega caíram
diante desta singular argumentação da cândida Gertrudes.
Como quase todas as teorias sofisticadas do nosso tempo, e de todos os tempos,
elas são feitas à semelhança do gigante assírio:
uma pedra, lançada da funda do inocente que peleja em lisura e verdade
diante de Deus, as prosta mortas e estateladas no chão.

Os dois graves senadores calaram-se: não sabiam, não tinham
que responder.

E Martim Rodrigues bendisse a palradora língua de Briolanja que o
veio tirar de apertos com a sua perpétua serra-madeira-de-carpinteira,
que, em a deixando, era de nunca mais acabar.

_ Ai! Filha, apelo eu! Pelo que vejo e vos ouço, quer-me parecer que
também vós… Ai! Nome de Deus! Jesus venha à minha alma!…
Vai-te para as areias gordas, tentação de mau demônio
praguento!… Também vós, Gertrudinhas! Ele era o que faltava.
Não ouvirei eu ora mais com estes ouvidos pecadores que a terra há
de comer!… E na capela seja da Senhora da Silva, e ali fique eu quieta e
descansada, sem que me toquem nem cabelo da cabeça até o dia
da ressureição da carne em que lhes farei figas a todos os demos
tentadores… Eu e tu, filha, e mestre Martim Também, e todos nós,
todos os remidos daquele sangue que é sangue, e é vida eterna,
amém Jesus!… Mas tal me não direis vós, filha Gertrudes;
não me digais tal, que já estive para esgadanhar a cara a um
excomungado de um aprendiz de caldeireiro… Ou latoeiro seria, que é
mais ruim raça aquela… Os nossos caldeireiros são gente de
outra criação e mais brandura. Pois não me quês
dizer o maldito… Abrenúncio de Satanás! Vai-te para as profundezas
de tua terra maldita!… Pois não me quis dizer que era… Ai Senhor!…
Que era coisa do paço…

_ E daí é, tia Briolanja, em mal que pese a Deus… Que Satan&aacutaacute;s
folgará, por mais que o praguejeis vós aí. Esta noite
teve ela folgança e festança de missa nova… Antes velha; que
o desamparado de Deus bem velho é já para se meter com raparigas
da sorte e primor da minha Aninhas… Ai pobre Aninhas!

_ Pois sempre ele será verdade? Ai terra que me não cobres,
ai ouvidos que vos não fechais para tal não ouvir, ai olhos
que não cegais para tal não ver! Santo Deus de Israel, que deve
de estar perto do dia de Juízo! Aninhas… Aninhas, a filhada da minha
senhora Sant’Ana, que lhe acendia a alâmpada todas as noites,
que lhe rezava todos os dias!… Aninhas, aquele anjo de lindeza e de bondade!…
Ai, o que há de ser de nós pecadoras! Ai, mestre Martim Rodrigues,
que amanhã são capazes de me vir buscar a mim também!…

Com toda a sua oficial gravidade, eno meio da sua grande entalação,
mestre Martim não teve em si que se não risse; a seriedade do
colega desmanchou-se a acompanha-lo na mesma risada; e a própria Gertrudes
mal pode apertar os sues pudibundos beiços de donzela para não
soltar uma boa gargalhada com os receios da tímida Briolanja.

XI – Votos! Votos!

Mas já nestas desultórias conversações se tinha
passado muito tempo, tanto tempo como leva uma daquelas proverbiais questões
de ordem de São Bento, que engolem o espaço sem tocar na matéria…
E o ministério pede votos, votos! E acabou-se. Resolveu-se tudo sem
se decidir nada.

A diferença esteve agora em que desta vez quem pediu os votos foi…
o povo; coisa que ele raramente faz, mas quando o faz, tem que se lhe diga…

A émeute tinha esperado pacientemente que os magistrados consultassem,
à sua vontade e puridade, do negócio que a todos interessava.
Mas esperou, esperou; e não vendo resolução, enfadou-se.

_ Aos paços da Sé, aos paços da Sé! E o nosso
juiz que nos venha capitanear, como é de sua honra e obrigação.

_ Aos paços da Sé!

_ Queremos que nos entreguem Aninhas, e já.

_ Já, sem mais detença.

_ E Pêro Cão para o enforcarmos numa figueira de Judas.

_ Não: no arco da portagem.

_ Ah! Ah! Ah!

_ Bem dito! E com a breca todas as portagens e portageiros.

_ Não queremos mais portagem, nem dízima.

_ Não queremos.

_ Não queremos pagar mais.

_ Nada! Não se paga aqui mais nada: não queremos.

_ Os cônegos que trabalhem, se querem comer.

_ E o bispo que vá para Roma, a ver se o padre santo lhe pode dar
absolvição, que o não queremos nós cá.

_ Os burgueses do Porto querem bispo com temor de Deus e amor do seu povo.

_ El-rei que nos dê outro.

_ Ainda que seja preto como o bom de D. Soleima que D Afonso Henriques deu
aos de Coimbra.

_ E mais, foi bem bom bispo o negro: dizem.

_ Está bem de ver: bispo negro, missa branca.

_ Ah! Ah! Ah!

_ Este é branco, e diz missa negra.

_ Como negra tem a alma, o cão.

_ Cão de bispo! Tu e teu Pêro Cão hoje o pagarão.

_ A ele! Vamos a ele!

E os caldeireiros batiam nos arames estridentes seu infernal rebate. A algazarra,
a vozeria, as risadas ferozes e descompostas, a alegria terrível da
multidão que se prepara para o festim da carnagem… O profundo revolver
das tremendas iras populares, formava tudo medonha consonância: era
uma seqüência infernal cantada pelas vozes discordantes dos demônios…
Os dies irae que se há de entoar no abismo à véspera
do terrível dia do Juízo final.

_ Que lhe diremos, que lhe faremos nós? – dizia, titubeando,
o aterrado Martim Rodrigues para o outro conscrito do senado portuense.

_ Que assosseguem, que esperem; que nós vamos ao paço, e veremos…
E faremos por que sejam desagravados.

_ Sim, sim; esse é aviso de acerto e de prudência.

_ Por que lho não ides vós dizer, compadre Gil Eanes, vós
que sois o mais bem falante homem da comuna?

_ eu compadre! Eu, verdade seja, devia ter sobre esta desatentada gente a
influência que os meus serviços, os meus… Ide vós porém,
ide que eu…

_ Vós tendes medo.

_ Não é medo, é que nestas ocasiões de distúrbio…

Sorriu-se, e chegou à janela o honesto Martim, e começou perorando
às virtuosas massas como homem que não sabia bem o que dizia,
nem por que, nem a quem. O que ela sabia bem era o que fazia… Que era coisa
nenhuma.

Enfim lá lhe foi acudindo a musa, e por entre as anfractuosidades
oratórias, como de um secretário de Estado defendendo as verbas
do orçamento que ele bem sabe que se comem, mas não sabe quem,
nem para que, lá foi conseguindo o digno magistrado fazer entender
às turbas que ia descer abaixo, tomar informações…
E que, se preciso fosse, iria ao paço.

_ Pois abaixo, abaixo, e vamos! – respondeu a vozeria das turbas.

E os dois varões senatórios desceram as escadas de Martim Rodrigues
com a mesma vontade e apetite com que subiriam as da forca.

XII – Os Cônegos

Enquanto, desde a primeira manhã, se iam passando estas coisas junto
ao memorável arco de Sant’Ana, onde o forte braço popular
se levantava em convulsiva energia, apesar da tibieza, da prudência,
ou da fraqueza dos magistrados e escolhidos defensores… outras mui diversas
e extraordinárias cenas se passavam entre os representantes da oligarquia
eclesiástica a quem, para salvação de sua alma, a boa
rainha D. Tareja tinha entregue para todo o sempre a muito nobre e sempre
leal cidade do Porto.

De uma das altas grimpas do antigo templo, o sino tocava preguiçosamente
a laudes: e os cônegos, mal descansados do primeiro trabalho das matinas,
que os havia despertado antes d’alva, acudiam mais preguiçosamente
ainda às segundas preces do dia.

_ Se não fosse o rabujento do ponteiro – dizia um cônego
moço com um bocejo que lhe abriu a boca até as orelhas: – má
hora que eu viesse aqui hoje outra vez! E o nosso bispo a dormir regaladamente
nas suas almofadas de pluma, enquanto a gente…

_ Deixai-o, deixai-o: não lhe queirais o descanso que ele hoje há
de ter – tornava um pobre velho capitular que ai arrastando, com quanta
pressa podia, o trambolho de uma perna reumática.

_ Pois que! Permitirá Deus enfim que alguma vez lhe cheguem os incômodos
deste mundo! Que sabeis vós dele, vós que tudo sabeis, arcediago
Paio Guterres?

_ Não sei nada, não sei nada, Afonso Peres. O que for soará,
o que for soará. Vamos que hoje é dia de São Marcos,
e o caminho da procissão tem de ser comprido.

_ Se virá o bispo à mais antiga e mais respeitável festividade
da nossa igreja?

_ Pois não há de vir, homem? Dia de São Marcos, do fundador
desta nossa igreja portugalense – que foi o santo evangelista – deixai
falar de Basílios e Basileus, e da sua Sé de Miragaia. Miragaia
era um triste burgo, quando já Gaia era cidade romana, e nela foi nossa
primeira Sé. Por memória disso lá vamos hoje além
do rio à capela do santo onde essa era. Vedes vós? E ali incensamos
o bom povo da antiga Cale e lhe dizemos: “Boa gente, boa gente.”

_ Assim será. Mas boa gente os de Gaia e Vila-Nova que são
os inimigos naturais da nossa santa Sé, e nos roubam meio rio pelo
menos!

_ Deixai isso, deixai.

_ Deixo, deixo; mas é heresia pensar o contrário. Lá
estão as bulas no censual. Vamos adiante. Bem sei que homem sois, a
indulgência cristã em pessoa, meu bom Paio Guterres. Mal vos
escolheram para nosso vigário e penitenciário: sereis um passa-culpas…

_ Folguemos com o que é folgar, mancebo!… Dizei-me cá: se
nos terão posto um jantar que se coma, a boa gente da banda de além,
ou se teremos de ir escorregando por esse Codeçal abaixo, passar o
rio, visitar o bom São Marcos em jejum, cantar-lhe o Boa gente, boa
gente, e se ainda em cima nos darão jantar de azevias e caramujos os
mestres barqueiros de Gaia, que hão de guardar para si o sável,
o capatão…

_ Capazes são eles disso e de mais. Não sabeis as figas que
nos fazem os pescadores da outra banda, que não são sujeitos
ao foral da cidade? – Mas vede lá: no paço ainda tudo
fechado!

_ Deixai o paço, homem, e vamos à sacristia, que já
dão as últimas badaladas do sino.

E soavam com efeito as últimas badaladas naquele dom-dom expirante
e prolongado, que é como o derradeiro e moribundo arranco de bronze
na agonia da momentânea vida que lhe imprimiu o movimento.

XIII – Frade e Soldado

Eram em verdade sete horas bem dadas, e não se ouvia, nem via rumor
de vida na parte alta ou nobre dos paços da Sé. Cavalheriços
e estribeiros pensavam mulas e ginetes no largo alpendre; as vastas cozinhas
recendiam com o cheiro confortativo da suculenta comezaina que volteava no
espeto, ou palpitava no fervedouro das amplas marmitas. Mas nem Pêro
Cão aparecera ainda para fazer conduzir o substancial almoço
ao refeitório privado do pouco abstinente príncipe da igreja,
nem antes disso se atreveria ninguém a servir no tinelo comum o inferior,mas
não menos substancial, alimento dos fâmulos e clérigos
de seu estado.

Dois franciscanos chegavam à porta do palácio; um, gordo, anafado
e vermelhão, com um sorriso malicioso e contento que lhe brincava nas
roscas da barba e das bochechas; o outro, cabisbaixo e humilde, verdadeiro
tipo de leigarraz estúpido e servil: é Frei João da Arrifana
e o seu companheiro. Desbarretaram-se moços e escudeiros ao valido
e amigo íntimo do prelado.

_ A paz de Deus convosco, rapazes! Já por aqui apareceu hoje Pêro
Cão, o nosso digno mordomo?

_ Inda ninguém lhe viu hoje a cara bendita, nosso padre. – O
focinho excomungado – emendou, à parte, o estribeiro que respondera.

Fr. João impeliu, com o possante galgar das robustas pernas, a enorme
barriga pela escada acima, aparentemente sem grande esforço nem canseira.
Era a mais desembaraçada e valente gordura que ainda se desenvolveu
debaixo do burel seráfico: não havia ali banha nem toucinho;
era tudo músculo tuchado, de febra elástica, potente e cheia
de vida: há gorduras assim, Pichéis da Bairrada e cansatras
de Lamego tinham muita parte na construção daquela sólida
e bem arcada máquina que podia servir de modelo ao Hércules
Farnésio.

Seguia-o a custo seu mais leve e desembaraçado companheiro.

Chegaram à antecâmara, agora sé e sem mais habitantes
que o nosso antigo conhecido Rui Vaz o archeiro. Este tinha arrumado a ascuma
a um canto, e passeava a largas passadas diante da ponderosa e repregada porta
de castanho, murmurando entre dentes o que mais tinha sabor e jeito de juras
e imprecações que das rezas devotas da manhã.

Fr. João não ouvia, ou fez que não ouvia, o praguejar
do archeiro, e disse com suavidade franciscana:

_ Paz seja nesta casa, e a bênção de nosso padre São
Francisco a todos os morantes nela… mui particularmente ao nosso bom Rui
Vaz…

_ Paz nesta casa? Seja; e em quem a pode ter aqui. Amém. Nanja eu;
que Satanás seja à minha alma, se desta hora já me não
vou daqui para onde nunca mais me apareçam frades nem clérigos,
nem… nem o próprio Satanás na figura deles. Amém, e
re-amém para sempre!

_ Que ruim bicho vos mordeu, Rui Vaz? Maus trasgos há nesta santa
casa?

_ Santa!

_ Ou duendes malignos que voa andaram de noite com a cabeça às
voltas? Precisais bento.

_ Bento preciso; e a excomunhão levantada com boas varas de marmelo
e estola preta… E água da pia qu’o farte, ao demo que eu tenho
em mim! Tenho, tenho!

_ Abrenúncio, homem!

_ dizei, dizei; e vade-retro, vai-te para as profundezas!… a ver se me
sai Belzebu desta casa.

_ Pois que sucedeu, homem? Falai já, que me tendes em susto.

_ Em susto vós, mestre Fr. João! Ele pode ser… Deus fale
à minha alma!… Ele pode ser que vós não saibais nem
sejais parte nas malezas do inferno que por aqui vão… Ah excomungado
Pêro Cão! No focinho daquele maldito alão negro anda a
maldade toda: não duvido. Ora sabei, padre Fr. João, que eu
bem no supunha, bem no esperava; mas parecia-me impossível, sempre
me parecia impossível que viesse a acontecer. Pois aconteceu… e foi
esta noite.

O frade mudou de cor e de tom: e como homem que deseja e teme saber, mas
quase que sabe já, a novidade que lhe vão dar, disse:

_ Então o que sucedeu esta noite?

_ Que a trouxeram ai em braços, presa e com mordaças na boca…
Jesus, senhor Deus! E para que? A coitada não via nem sentia, vinha
desmaiada dos tratos dos fariseus.

_ Quais fariseus homem? Estais sonhando, Rui Vaz.

_ Fariseus! Mais fariseus que os dos fogaréus na procissão
de quinta-feira maior. Oh santo Cristo! E lá a levaram a pobre da Aninhas…

_ Aninhas!

_ Sim, Aninhas, a mulher de Afonso de Campanha, a Aninhas do Arco de Sant’Ana.

_ Ah! Prenderam uma mulher, pelo que vejo. Ao aljube a levariam. Não
admira: há tantas mulheres más nesta terra em dias de hoje…

_ Má aquela, mestre Fr. João? Tão boa fora a minha alma!
– Por não dizer a tua, frade maldito!

A última parte da jaculatória foi dita em à parte, que,
segundo é sabido e aceito, fica em segredo entre o ator que o diz e
os espectadores que o ouvem; e não pode ouvir ninguém mais esteja
em cena… Tirado o ponto no seu buraco.

Fr. João respondeu pois à primeira parte da fala antecedente
como bom ator que não ouviu o à parte, e conforme as leis cênicas:

_ Ora vamos ver o que isso é, Rui Vaz. Deus o fará pelo melhor.

_ E o diabo, cujo és, te ampare! – disse o bom do archeiro nas
costas do frade, que penetrou, sem mais cerimônia, nos secretos penetrais
do Dalai-Lama tripeiro.

XIV – O Gabinete de sua Excelência

Deixemos o honesto Rui Vaz exalar em inúteis imprecações
a sua santa cólera, e sigamos Padre Mestre Arrifana ao refeitório
particular onde entrou, e daí a outra câmara, e outra, até
chegar à própria parte do gabinete que nós diremos em
frase vulgar, e traduzindo na língua corrente de hoje, o gabinete particular
de sua excelência.

A um toque simbólico, e dado por mão de iniciado que penetra
em recinto defeso a profanos, respondeu de dentro um voz conhecida:

_ Entrai, Fr. João, entrai.

Fr. João entrou.

O bispo, em toda a majestade de seus hábitos pontifícios, estava
diante dele.

Sobre o longo manto de púrpura, que arrastava no pavimento sua cauda
imensa, assentava a muraça de arminhos quase reais. A cruz de pedraria
resplandecente que lhe ornava o peito, as luvas bordadas, o anel brilhante,
o barrete na mão, tudo indicava que o príncipe da igreja se
preparava a ir aparecer como tal, em todas as pompas do sólio, diante
do seu povo.

Fr. João pasmava e mirava o bispo dos pés à cabeça,
como homem que lhe custa a crer o que vê, e se não atreve a dizer
o que sente.

O prelado sorriu com um ar digno e reservado:

_ Diriam que nunca nos viste em nossos hábitos episcopais, Mestre
Fr. João, ao espanto com que nos estais contemplando. E todavia, venerável
irmão, este é o nosso mais próprio vestir, segundo a
apostólica missão que temos do divino Pastor e de seu vigário
na terra, por cuja mercê temos o báculo e o anel para reger e
governar, não por investidura profana de nenhum poder secular que não
reconhecemos, e havemos por vazio e nenhum em quanto a nós e à
nossa autoridade é tocante.

_ Certamente, certamente…

_ E assim vamos hoje à nossa festa e ladainhas de São Marcos,
e apareceremos, na plenitude da suprema autoridade eclesiástica, ao
nosso bom povo, que há muito não vê o seu pastor revestido
assim das insígnias desta autoridade que não tem superior na
terra, se não é a santa cadeira de Pedro em Roma, diante da
qual nos inclinamos, e a outro poder não…

Mal proferira o orgulhoso e ultramontano prelado estas últimas palavras,
ouviu-se um confuso, mas tremendo som de muitos brados que estalou de repente
– e tornava, e recrescia, e se aproximava, e não parecia já
muito longe.

Era o poder popular que proclamava, na rua de Sant’Ana, a sua curta
sempre, mas terrível e incontrastável investidura.

_ Que será isto?…

_ Motim do povo? Não pode ser. Porque?… Só se… Agora o
saberemos, que sinto os passos de Pêro Cão. – Saí
vós, André Furtado – continuou o bispo para o camareiro
que o vestira: – deixa-nos em paz, que não preciso mais de vós
aqui. Os archeiros que estejam prontos; e os fâmulos que vão
avisar o nosso que nos venha buscar segundo é teúdo.

Ficaram sós um momento o bispo e o frade; e os olhos com que se olharam,
as perguntas e respostas que naquele só olhar se deram e fizeram em
menos dum momento… Não há língua que as descreva.

Pêro Cão entrou logo.

O terror, o susto, um reflexo das angustiadas desesperações
do inferno crispava medonhamente as ignóbeis feições
do almudeiro.

_ O povo… – exclamou Pêro Cão – o povo!

_ Que tem o povo?

_ Está… está levantado.

_ Por que? Que lhes fizeram?… Alguma das vossas, Pêro Cão…

_ Das minhas, senhor!

_ Das vossas. Pois que outra coisa amotinaria este leal, paciente e bom povo
da nossa cidade, se não for alguma vexação nova que lhe
vós fizeste? Apertais demais, muito demais às vezes, o torniquete
fiscal, meu pobre Pêro. Os pescadores queixam-se, as regateiras ralham,
até já os flamengos furtam ao peso dos queijos com medo da portagem…
Olhai, Pêro Cão, mugis-me muito a vaca, muito demais… E eu
não quero sangue no tarro.

_ Senhor, senhor!… Eu mujo a vaca… E os flamengos… E o tarro com sangue!…
Sangue! E o meu sangue é o que eles querem, os desmandados, o ruim
populacho que aí se está a juntar mais basto do que bando de
sardinhas em Ovar. Mas fale Deus à minha alma… Ou o diabo, cuja ela
é já agora… Dai-me perdão que não sei o que
digo.

_ Não sabeis, não.

_ Não sei, não sei; é verdade: mas sei que não
é a sisa nem a dízima, nem a portagem que amotinou aí
esse povo agora. É que souberam… É que adivinharam… Ou o
diabo, que me ajudou, lho disse…

_ O que Pêro Cão?

_ O que eu fiz esta noite por vossa ordem.

_ Ah! – disse o bispo, e olhou para Fr. João, que se fez verde,
vermelho, amarelo, negro… Um arco íris vacilante e cambiante de todas
as cores do medo.

Segui-se um silêncio breve mas profundo.

Um estampido de brados, mais feroz e mais perto já, detonou no ar
como trovão de tempestade que se aproxima.

_ Onde está a mal-aventurada? – balbuciou Fr. João –
Pode ser que ainda tenhamos tempo de…

O bispo revestiu-se de uma gravidade tão serena que espantou e confundiu
os seus trêmulos agentes e conselheiros; e respondeu friamente:

_ A mulher que fizemos conduzir a noite passada ao nosso aljube, por boas
e fundadas razões que para isso houvemos, veio esta manhã a
perguntas, e está na câmara particular do nosso despacho. Dali
voltará para onde veio. Tomai as chaves, Fr. João, e tornai
essa mulher às enxovias, donde não sairá senão
quando à nossa justiça prouver. Ireis pela passagem secreta.

_ Justiça! Justiça! Justiça Del-rei D. Pedro!

_ E a do povo!

_ Morra Pêro Cão!

_ Aninhas, Aninhas!

_ Ao diabo portagens e portageiros!

_ O nosso foral, o foral da sentença de são Jorge!

_ Que dizem eles?

_ Bradam por…

_ Por el-rei?… Coitados!… E por essa párvoa sentença que
lá deram no mosteiro de são Jorge e que meus antecessores tiveram
a fraqueza de aceitar?… O ra pois: é um negócio de poucos
maravedis que depressa se pode compor. Ide vós, Fr. João, e
fazei como vos hei dito. Pêro Cão, os meus archeiros, os meus
clérigos. Que venham e me sigam; o reverendo cabido há de estar
à porta.

XV – “ Ecce Sacerdos Magnus”

O bispo saiu: na imediata câmara estava a família e séqüito
episcopal. O caudatário tomou a longa cauda de púrpura no braço;
e o prelado marchou alto e direito pela longa fieira de câmaras e salões
da vasta residência. Mudos e pasmados seguiam os clérigos; os
archeiros caminhavam adiante. Assim desceram gravemente a escada, e pararam
no vestíbulo da porta principal.

Um espetáculo grandioso se oferecia naquele momento à vista
em o pequeno largo, ou plaçuela, que fecham dum lado o frontispício
da antiga Sé, à sua esquerda os paços do bispo, defronte
da catedral as pequenas casas, ocupadas provavelmente então, assim
como hoje, por vários membros do seu clero, e à direita o elevado
terraço donde descem as escadarias que levam a São Sebastião
e a todo o segundo socalco, para assim dizer, da antiga e empinada cidade,
cujas ruas e casas direis que se precipitaram desde o alto pináculo
da sé até onde é a Porta Nobre e últimas abas
do monte ao pé do rio.

O espetáculo era verdadeiramente grandioso e magnífico, e digno
dos pincéis de Cláudio Coelho ou de outro grande eternizador
das fastuosas grandezas do culto.

À porta do bispo os archeiros, tendo tomado a dianteira do cortejo,
formavam duas alas cerradas que se estendiam numa curva quase diagonal, e
iam tocar nos degraus do adro da Sé. O prelado, em toda a altivez e
suntuosa grandeza da púrpura, a frente alta, a grande estatura direita,
era rodeado de seus clérigos e ovençais, de um imenso acompanhamento
secular e eclesiástico. Da igreja, ao som estridente e solene do órgão,
saía o majestoso clamor da antífona: Ecce sacerdos magnus secundum
ordinem Melchisedech. E o cabido, presidido pelo deão com o bento hissope
na destra, desfilava em longa e grave coluna, com seus capelos roxos e mantos
pretos, arrastando as longas caudas pelas lajes sepulcrais do adro.

O deão chegava ao pé do bispo, e inclinava-se a beijar-lhe
o anel antes de lhe entregar o hissope, quando pela pequena rua que vem dos
antigos paços do conselho desembocar defronte da porta principal da
Sé um tropel imenso de passos, de gritos, de tinir de armas, um estupendo
charivari de caldeiras e de toda a sorte de vasos de arame, rebentou descompassadamente
no pequeno largo… E logo um golpe de muitos centenares de homens do povo,
de regateiras da Foz, de padeiras de Avintes e de Valongo, correndo e vozeando
com estupenda grita:

_ Justiça, justiça Del-rei D. Pedro!

_ O nosso foral!… Queremos o nosso foral! A sentença de São
Jorge!

_ Aninhas, Aninhas!

_ Morra Pêro Cão!

Todos estes brados que aqui explicamos distintamente, soavam confusos no
ar, e tão implicados como, se é licita a expressão, as
emaranhadas madeixas de uma trança de fúria – como as
diversas línguas de uma mesma flama que só se farpam na extremidade,
mas sobem em um corpo aos ares.

Os cônegos recuaram em desordem: o deão largou o hissope bento
no meio do chão… Quis erguer-se… Caiu de joelhos diante do bispo,
e ficou, como um deus egípcio, sentado sobre os próprios talares;
mas, em vez de colocar gravemente as mãos nos joelhos, como o seu tipo
hieroglífico, ficaram-lhe esbandalhadas para trás e pendentes.
Os archeiros desordenadamente romperam a forma; tal houve que largou a ascuma
e fugiu para o sagrado da Sé…

O bispo ficou impassível, ereto, grande e quieto, no meio do alvoroto
e desmaio geral!

A torrente da plebe enfurecida parou, involuntariamente respeitosa, diante
daquela impassibilidade.

Fez-se um grande silêncio.

Os populares olharam uns para os outros inquietos: a vista direita e segura
do bispo fascinava-os. Foi um alívio verem chegar os seus magistrados
que, impelidos pela multidão, não tinham enfim remédio
senão aparecer na presença do bispo.

_ Mestre Martim Rodrigues, mestre Martim Rodrigues! O nosso juiz, o nosso
juiz!

_ Mestre Martim Rodrigues que fale por nós!

Os doutos edis portugalenses desbarretados, coçando a cabeça,
metendo as mãos pelo barrete e o barrete pelas mangas… e, olho no
povo, olho no bispo, olho no chão, não sabiam o que fazer de
si, muito menos o que dizer.

Estavam no que a moderna língua de hoje diz, “uma falsa posição”;
em que se não pode estar muito tempo, e de que o mais acanhado e lerdo
procura sair quanto antes e seja como for, porque enfim não é
posição em que se esteja.

Os padres conscritos caminhavam para o prelado em passo desmanchado e lento:
e, sem saber mais nem melhor que fazer, ajoelharam… O bispo estendeu tranqüilamente
a mão e ofereceu o anel ao devoto ósculo municipal.

Todavia os órgãos legítimos da opinião popular
não davam o mais leve ronquido… E não era falta de fole! Assaz
lhe tinha assoprado às orelhas o bradar do povo justamente enfurecido.

Um sorriso quase perceptível mas de expressão imensa… Vislumbrou
rapidamente nas feições do altivo príncipe da igreja.

_ Erguei-vos! – disse o bispo com afetada complacência, – erguei-vos,
senhores juízes. O que quer, o que deseja esta boa gente em cujo nome
me parece que vindes?

_ Trazidos… Obrigados por eles, senhor bispo – acudiu ansiosamente
Martim Rodrigues, e repetiu Gil Eanes com não menos ânsia.

_ Bem, bem: para falardes por eles e procurar por suas coisas, vos nomeou
e elegeu este bom povo. É vossa obrigação faze-lo. Praz-me
de os ver guardar e usar tão bom termo. O que se pretende de nós,
e que quer o nosso povo, senhor juiz?

_ Saberá vossa ilustre reverência, que este povo está…
Está amotinado…

_ Não vejo eu isso, homem. Antes bem pacíficos e quedos os
vejo, aguardando que ponhais vós por eles seu pleito, e exponhais o
agravo… se é que o tem…

_ Senhor, começou isto com a má vontade que há na terra
contra um oficial vosso, senhor…

_ Pêro Cão? Sei que agravou o povo. Há de ser castigado:
merece-o. Tem feito demasias na portagem, e abusado de nossa autoridade, que
é toda paternall, e menos de senhor para vassalos, que de pastor que
somos e queremos ser para nossas ovelhas. Justiça será feita
no vilão.

_ Viva o nosso bispo! Gritou uma voz.

_ Viva o nosso bispo! Responderam umas cem vozes talvez.

Mas um sussurro duvidoso e dubitativo fez eco a esta primeira expressão
de reviramento… Da reação que, nas grandes crises, tantas
vezes desanda de repente do clímax da irritação popular
para os mais opostos e inesperáveis sentimentos.

O bispo continuou:

_ Disto ficai certos; e segurai-o. Em nosso nome, a esta boa gente. Mas,
vedes, o nosso espera: e temos de ir longe, como sabeis, com as ladainhas
à igreja do evangelista. Voltai pela sesta, e falaremos. – Vamos,
meus reverendos irmãos. Porteiro da maça, guiai o préstito.
Archeiros, fazei o vosso ofício.

E o porteiro levantou a maça, e marchou; os archeiros, fazei o vosso
ofício.

E o porteiro levantou a maça, e marchou; os archeiros, já mais
compostos, arredaram com tento a multidão, que cedeu sem violência:
e o bispo precedido do seu cabido caminhou a passo grave mas seguro para a
porta da catedral. Os sinos tangeram, o órgão levantou a sua
voz solene… E as abobadas antigas do vasto templo ecoaram de novo com o
– Ecce sacerdos magnus secundum ordinem Melchisedech.

XVI – As Ladainhas

E o povo e a sua tremenda fúria e o seu poder irresistível
e formidável?

Parecia ter-se evaporado tudo com a primeira e terrível explosão
de brados em que o tumulto se declarara. Ouvia-se apenas um murmurar disperso
aqui e ali por alguns grupos. No geral, uns pasmavam sem dizer nada, outros
destomavam pelas portas laterais para entrar na Sé; o maior número
estava imóvel, sem ação. Caíra naquele estado
paralítico que sucede às grandes irritações. Não
se podia dizer dissipado, mas era quebrado o tumulto.

De repente uma voz aguda e estridente rompeu da multidão:

_ Aninhas, Aninhas!

Um rufar de caldeiras e de arames de toda aa sorte, tim,tim,tim, respondeu
com infernal dissonância àquele grito agudo: a assuada recobrou
toda a vida febril e temulenta de sua primeira nascença

Brados, uivos, imprecações, clamores e gritos espantosos deram
fé que o braço popular, entorpecido um momento pelo magnetismo
da autoridade e sangue frio do bispo, tornava a levantar-se mais irritado
e tremendo.

Tudo isso foi obra de um instante. E o bispo, alerta sempre e sem perder
a compostura do ânimo e do corpo, viu o perigo em que estava, apressou
o passo, deu ordens rapidamente aos seus, e entrou na igreja. Ao mesmo tempo
as portas da sé e as do paço se fecharam sobre o povo.

Mestre Martim Rodrigues e seus dignos colegas tinham entrado com o préstito
na igreja.

O povo ficou só, único senhor e possuidor do pequeno largo
da Sé, e de o estrurgir com seus clamores e berreiros à vontade.

O povo gritava e bradava, e fazia uma bulha insuportável: o motim
renascia e recrudescia… de repente a janela de alta empena e vidros multicores
que está sobre a porta principal, e olha, como em todas as catedrais
antigas, para o ocidente, abriu-se de par em par: Martim Rodrigues e o seu
colega, enfiados, trêmulos, os olhos esgazeados, apareceram no grande
balcão de donde se publicavam e liam ao povo as bulas, indulgências,
excomunhões e todos os grandes atos do poder eclesiástico e
civil que na nossa terra do Porto era um quase e indistinto, como todos sabem.

_ Silêncio! – bradou uma voz sobre todas as outras dentre a multidão.
– Silêncio! Ouçamos o que diz o nosso juiz.

Fez-se profundo silêncio nas turbas.

Gil Eanes deu sinal que ia falar. O povo assustou-se e tremeu com a ameaça
daquela avalancha de palavras que o esperava. O nobre orador, segundo hoje
se chama ao maior vilão ruim e mais ludroso calça de couro que
se atreve a abrir a boca diante de gente, o nobre orador disse:

_ Meus bons amigos e honrados compatriotas…

_ Bom, bom! Isso é outro modo de falar.

_ Ah, ah! Já nos tratam de honrados…

_ Silêncio! Ouçam.

Tornou-se a fazer grande silêncio.

_ Ouvi-me, bom povo, e sabereis grandes coisas, amigos. O nosso venerável
prelado e pastor, o nosso senhor e bispo…

_ Barrabás, Barrabás!

_ Não sou, meus amigos, não sou. Escutai-me.

_ Pedras ao traidor! Acabemos com o Judas que nos vendeu!

_ Ouvi-me, ouvi-me, por Deus que está no céu, e ficareis satisfeitos.

_ Ouçam, ouçam.

_ O nosso bispo e o nosso cabido tem de ir hoje a São Marcos de além
do douro.

_ Não, não enquanto justiça não for feita.

_ Não: São Marcos é pelo povo.

_ Grande santo São Marcos evangelista! Nós estamos pela lei
de Deus; queremos que se cumpra a lei de Deus. E justiça Del-rei D.
Pedro nos valha!… Que antes São Marcos fique sem festa nem procissão,
do que lha façam em pecado mortal esses iscariotes.

_ Justiça tereis, boa gente: ouvide. Pêro Cão!

_ Enforcado Pêro cão!

_ Morra, Pêro cão!

_ Morra, morra!

_ Não morra: queremos come-lo vivo.

_ Vivo não; é muito duro.

_ Assado e de molho de vilão, o vilão!… Como el-rei comeu
o coellho…

_ O coelho que lhe matou a amiga.

_ Dobra a língua, bruto: a mulher.

_ Pois a mulher: seja. Contanto que o cão vá pelo caminho do
coelho.

_ O cão atrás do coelho é razão natural.

_ Ah! Ah! Ah! Ah!

_ Tem razão, bem dito. Venha o cão, morra o cão!

_ Morra Pêro Cão!

_ Morra, morra.

O aturdido orador do alto da sua tribuna emparvecia de susto e confusão.
Martim Rodrigues, que não estava muito melhor, mas que, porquanto não
era tão papelão como ele, não perdia tão completamente
a tramontana, Martim Rodrigues deu-lhe ânimo o excesso do medo, empurrou
da varanda o estonteado colega, e bradou agitado da mesma agitação
que o rodeava:

_ Seja feito como quereis. Pêro Cão é um enredador, um
tredor. O nosso bom prelado o manda entregar nas vossas mãos para que
façais nele segundo a vossa vontade.

_ Viva o nosso bispo, e morra Pêro Cão!

Outra vez se abrandava o tumulto; e outra vez surdiu, dentre as turbas quase
aquietadas, a mesma voz estridente e magnética:

_ E Aninhas, Aninhas!

Começava-se a irritar de novo a sanha popular; Martim Rodrigues perdeu
de novo a cabeça. Como homem que não sabe o que há de
responder, e que vê todavia a necessidade de um resposta peremptória,
olhava para todos os lados, engolia em seco, fazia gesto de quem ia falar…
Mas ficava.

Em que pararia esta pasmosa cena do povo portuense com os seus magistrados,
não é possível imagina-lo: grandes desgraças iam
acontecer talvez se, ao pé das rotundas e apatetadas figuras de Martim
Rodrigues e de seu colega não fosse visto aparecer ao mesmo balcão
o homem mais popular e o mais respeitado clérigo que havia na cidade
por aqueles tempos. Era um ancião venerando, um daqueles raros homens
que, no meio da maior corrução a Providência conserva
sempre no mundo para que se não apague nunca de todo na terra a crença
na virtude e a fé no poder do céu. Paio Guterres, o arcediago
de Oliveira, vigário e penitenciário do bispado, verdadeiro
ministro do altar, devoto sem hipocrisia, austero com suavidade, grave sem
fasto, era honrado de todos, do próprio bispo que o detestava, do povo
que o amava.

Apenas apareceu no balcão Paio Guterres, foi saudado por uma aclamação
geral e entusiástica da multidão.

_ Meus filhos, sossegai, e ouvi-me.

Não se ouviu o menor sussurro. Ele continuou:

_ Aninhas, foi presa esta noite… à minha ordem.

Um rumor de espanto e de indizível assombro soou por toda aquela multidão.

_ Sim, à minha ordem. Está acusada de graves culpas… Deus
permitirá que falsamente.

_ Falso! … É falso. Aninhas é uma santa.

_ É, é uma santa, Aninhas.

_ Será: assim o espero. E hoje mesmo há de ser absolvida e
posta em liberdade se assim for. Tende confiança em mim. Seu feito
está em meu poder; sou eu que o hei de julgar. E eu… Responda da
sua pessoa.

_ Ah! Então…

_ Ide, meus filhos: sossegai. São horas de sair a nossa procissão.
Mostrai-vos bons cristãos e tementes a Deus; deixai-nos cumprir com
os preceitos da igreja. Retirai-vos, meus filhos, com a benção
de Deus.

_ E a vossa. Queremos a vossa benção.

_ Em nome do senhor de toda a justiça, do premiador e castigador eterno,
do que julga os povos e reis, do que morreu por todos nós, e não
mais por uns do que por outros! Meus filhos, eu vos abençôo:
ide em paz.

A força de uma voz respeitada, no meio da efervescência popular,
é um dos contínuos milagres que atestam o poder de Deus, e justificam
da sua glória.

O tumulto sossegou e dissipou-se.

Dali a pouco as portas da catedral estavam abertas, e a procissão
saía gravemente, entoando as ladainhas e preces públicas. O
bispo, em todo o esplendor da pompa católica, seguia no coice da procissão.
A mitra resplandecente carregava-lhe nas altivas rugas da testa; o braço
parecia agitado de leve tremor quando se abordava no báculo de ouro;
mas o pé caminhava firme, e os olhos iam serenos no livro do cantor
que o precedia.

Tomaram para a porta do Sol, desceram o íngreme Codeçal abaixo,
e chegaram à escura margem do rio, cantando, rezando e invocando os
mártires e os apóstolos, os confessores e as virgens que rogassem
por nós!

XVII – A Procissão

Nestes prosaicos e minguados tempos em que nós vivemos, sabe Deus
o que lhe custa à excelentíssima câmara municipal de Lisboa
a ir a casa de Santo Antônio no seu dia, e à ilustríssima
câmara municipal de Coimbra a ir pela festa da Rainha-Santa visitar
a sua padroeira de além da ponte. O código administrativo não
beatificou mais santos que Santa Urna, e os espíritos fortes do conselho
são iconoclastas decididos, que fazem guerra a todas as velhas superstições
daquelas desgraçadas e vergonhosas eras em que Portugal estava tão
atrasado que apenas descobria a Índia, circunavegava e civilizava a
África, povoava a América, escrevia as Décadas de barros,
compunha os “Lusídas” de Camões, edificava Belém,
e fazia outras soezes ninharias do mesmo jaez.

Pobre Portugal velho e relho, que não tinha agiotas nem lordes do
tesouro, nem pontes pênsis nem garantias pênsis, nem barões,
nem pedreiros-livres, e eras o escárnio da Europa que hoje pasma de
te ver correr como um caranguejo por essa estrada da civilização
fora!

Dancemos a polca, e via o progresso!

Inda assim: o progresso do nosso regresso, como diz aquele grande e coruscante
orador nosso, cuja eloqüência, de parêntesis seja dito, também
dança a polca.

Dançar, dançavam os cônegos do Porto, ainda em tempo
de minha avó que o viu, e mo contava quando eu era pequeno: dançavam
sim diante do altar de São Gonçalo no seu dia. E era uma devota
dança hierática, segundo agora se diz em grego – que nós
demos furiosamente em falar grego desde que o não sabemos. Que mandávamos
os Teives e os Gouveias ensina-lo a Paris, falávamos português.

Pois dançavam é certo, dançavam os cônegos do
Porto diante de São Gonçalo de Amarante, em trinta préstitos
e procissões em que iam a muitos oragos e festas de vários santos
e santas. E assim mesmo iam os outros cabidos e colegiadas do reino, que hoje
nem ao coro vão; e mais, não tem nem sequer o código
administrativo a que se apegar.

Entre as muitas festas processionais da nossa boa sé – me dizia
um beneficiado velho que andou comigo ao colo, e era a mais santa a1lma de
beneficiado que ainda houve – foi talvez a primeira a de são
Marcos evangelista que os de Gaia ou Cale pretendiam ser o fundador da santa
igreja potugalense, em oposição aos de Miragaia, que a queriam
fundado por são Basileu na sua freguesia de São Pedro estra-muros.

Já na minha infância porém, e quando o meu velho beneficiado
me enriquecia o espírito e a memória com estas tão interessantes
e romanescas arqueologias, já a procissão das ladainhas de São
Marcos não passava de São João-novo, e dali de ao pé
da ermidinha da Esperança é que os cônegos, incensando
para Gaia, cantavam o Boa gente, boa gente! Antífona em vulgar de que
nunca pude saber a explicação nem pelo meu beneficiado nem por
nenhum outro cronista oral ou escrito, dos muitos que tenho consultado.

O caso é que a cerimônia ainda assim se praticava em nossos
dias, e que em eras mais remotas a procissão passava, como a descrevi,
de além do douro, a ia à própria capelinha do santo cujas
ruínas ainda hoje estão a meia encosta das ribanceiras de Gaia.

E devia ser razão bem ponderosa a que obrigava bispo e cônegos,
os senhores da terra do Porto, a passar o rio, e a visitar essa gente de Gaia
e Vila-nova que lhes não obedeciam nem pagavam tributo, e que, fortes
da proteção real, lhes faziam acintes com a sua pesca livre,
o seu comércio franco, e até com o monopólio do sal que
tantas vezes lhes dava el-rei só para apoquentar os vassalos e homens
do bispo, que eram todos os da cidade.

Fosse ela qual fosse a tal razão, e durasse a prática desde
quando e até quando durasse, que o não sabemos ao certo; o certo
é, e o sabemos, que ainda durava no tempo desta nossa história,
pois aí vai chegando à margem do rio a solene procissão
das ladainhas, e ressoando pelos cavos alcantis que lhe emparedam os precipitosos
caudais, o sublime e plangente responsar do coro:

Ut nos exaudias!

Te rogamus, Audi nos!

Uma flotilha de saveiros com seus toldos embandeirados e ornados de festões
de flores, seus conveses juncados de espadanas, está prolongada com
a praia, e recebe a procissão a seu bordo.

As ladainhas não pararam, o canto não cessou: acompanha-o agora
o remar certo e compassado dos barqueiros cujas vozes, roucas mas afinadas,
se juntavam também ao clamor geral do coro, e bradavam com ele:

Te rogamus, Audi nos!

É impossível imaginar espetáculo mais solene e grandioso,
do que esse que então ofereciam as águas e as margens do douro.

Toda a divina poesia da religião e da natureza, todo o pitoresco dos
costumes feudais, toda a animação dos grandes ajuntamentos populares,
se reuniam e se harmonizavam nesse quadro.

Um sol de primavera batia a prumo sobre águas, rochas e verduras.
O ar estava sereno e tépido, o céu azul e transparente, a água
corria mansa; de um lado e outro do rio a população da cidade
e da vila, prolongada pelo brancos areais que se espelhavam com o sol, contemplava
em religioso silêncio a marítima procissão que, em longa
diagonal, ia cruzando o rio quase como se o descesse, pois é considerável
a distância que vai donde hoje é a Porta Nobre, em que embarcara,
até o desembarcadouro de Gaia onde foi ter.

Rio acima, as várzeas de Campanha, de Ramalde e de Avintes resplandeciam
com as esmeraldas da jovem primavera; para a banda da Foz os ceiceirais de
Val-de-Amores descaíam sobre a água como se ainda estivessem
acoitando os traidores e vingativos barcos Del-rei Ramiro quando veio desde
Galiza em busca da mulher que lhe tinha o mouro, porque ele tinha a irmã.

Esse Val-de-amores, que depois foi Val-de-Piedade quando os Capuchos aí
fizeram seu convento e o beatificaram com o devoto nome que ainda tem –
hoje… Oh triste, tristes tempos nossos! É Val de tanoeiros ou Val
não sei de que, porque lhe fizeram da igreja um armazém, e da
cerca tão viçosa e tão fresca. Algum mau campo de milho
talvez.

Eu, ainda me lembra, e era bem pequenos, das tardes da trezena do santo em
que aquela linda cerca parecia o jardim de Kesington ou o das Tulherias, de
povoada que se fazia pelas mais belas e elegantes damas da cidade, por um
concurso imenso de todas as classes e idades: naqueles treze dias o Val-de-Piedade
tornava a ser o Val-de-Amores.

Seria o melhor passeio público que o Porto podia ter, e rivalizaria
com os primeiros do mundo, se nisso o tivessem convertido. Venderam tudo por
não sei quantos mil réis, mas poucos – e em títulos
azuis, havia de ser.

Ex digito gigas: ninguém faz melhor a sua transição
do antigo para o novo estado social, do que nós a fizemos. Juízo,
gosto, proveito, tudo se juntou.

Tornemos à nossa história.

A procissão cantava:

Exaudi nos, domine!

E os saveiros abicavam nas praias de Gaia. Desembarcando e cantando prosseguiam
nas ladainhas; e assim foram subindo até o principio da encosta que
leva ao castelo, e onde a igreja ou ermida do santo era situada.

Todo o povo da vila e suas vizinhanças acompanhava, como em triunfo,
e recebia quase como homenagem à sua independência, a visita
do senhor bispo e do senhor cabido, tão senhores do outro dado do Douro
– ali hóspedes, respeitados sem por seu caráter sagrado
de eclesiásticos, mas sem autoridade nem poder civil de nenhuma espécie.

E contudo ajoelhavam, e o bispo abençoava; e o clero prosseguia cantando
e o povo respondendo aos versos da ladainha… A religião do Crucificado
á a religião da liberdade e da tolerância, não
faz partido com nenhuns ódios e discórdias civis: os que dizem
racca a seu irmão desobedecem aos preceitos do Cristo.

Via-se porém nas fisionomias dos vilnoveses não sei que expressão
mais altiva do que o costume, mais animada – ao que parecia –
pela consciência de sua liberdade e independência. Olhavam para
o bispo com certo ar, seguiam os cônegos com tal desgarre, respondiam
às preces com uma voz tão segura e folgada, que um amigo de
semelhanças clássicas não duvidaria compara-los aos jovens
e altivos concidadãos do filho de Réia Sílvia recebendo
nos infantes muros de Roma uma procissão de sacerdotes albaneses que
lhe trouxesse, em vassalagem, e para futuro paládio de sua grandeza,
a cativa imagem de Vesta que já não tem que fazer em Alba-Longa.

A clerezia do Porto eram os albani patres, Gaia afetava as soberbas de alta
moenia Romae.

Perdoai-me porém, ó veneráveis irmãos românticos,
perdoai-me, que eu prometo não tornar a fazer a mais leve alusão
às proscritas reminiscências do meu pobre velho latim…

Mas havia sem, havia o que quer que fosse extraordinário, que animava
os independentes populares de Gaia e Vila-Nova. Eles seguiam todavia quietos
e devotos a procissão; a assim chegaram todos à capela do santo
onde entraram.

O bispo subiu ao seu trono; à volta dele, em círculo, os cônegos;
e logo começou a missa com que se ia concluir a festa e rogações
daquele dia.

Chegava já a missa ao ofertório, e a congregação
de joelhos e inclinada comunicava devotamente no augusto mistério do
Sacrifício que nos regenerou e fez livres, quando um mancebo elegantemente
vestido mas todo coberto de pó, a afadigado ainda, ao que parecia,
de caminhar longo e pressuroso, entrava, com algum disfarce, na igreja. Deitou
um relance de olhos percrutador pela variada multidão que ali se juntara,
e foi ajoelhar-se a um canto da igreja, detrás de dois homens de madura
idade, cujo modo e trajo os inculcava pertencentes a uma como meia gradação
entre burgueses e homens da plebe.

É essa espécie que os modernos Rabelais designam hoje pela
tão característica denominação – l’épicier:
espécie rara dantes, mas que atualmente constitui a maioria das grandes
cidades, dos grandes focos de população civilizada.

Mole como a sua manteiga, estúpido como os seus macarrões,
pateta como os seus chouriços, e rançoso como o toucinho que
vende, o merceeiro – l’épicier – é o tipo
dessa bastarda aristocracia da plebe que se propagou e cresceu tão
numerosa, e cuja missão política é unicamente engolir
as petas de todas as proclamações, dar consumo às sandices
das gazetas dos governos, acreditar no sistema que felizmente nos rege, e
por luminárias nos dias de gala.

Quando eram poucos, tinham a energia e as grandes aspirações
de todas as classes que precisam viver fortemente para viverem, porque se
não fiam na bruta segurança do número.

O recém-chegado ajoelhou, benzeu-se, e depois de breve oração,
que provavelmente foi mental porque lhe não boliam os beiços,
com a ponta da vara que trazia na mão, tocou levemente no ombro de
um dos dois homens que lhe ficavam adiante. O homem voltou-se rapidamente,
e encarando com o mancebo que assim o interpelava, exclamou em voz baixa:

_ Oh! Vós aqui!… Já?

_ Bem tarde me parece Amim. Vinde: saiamos para fora, que temos que falar.

_ Deixai acabar a missa.

_ Não: já. Viva Deus! Que entre a hóstia e o cálice,
na própria presença d’Aquele que está no altar,
te quisera eu dizer o que tenho a dizer-te… Mas não pode ser; vem.

_ Vamos. Meu irmão também?

_ Teu irmão?… Eu sei? Não tenho fé em teu irmão.
Ele não era?…

_ Era sim; e eu também, por meus pecados. Pouco melhor que ele. Acudiu-nos
Deus a ambos. Agora podeis falar diante dele como diante de mim.

_ Pois que venha.

Esta conversação breve, rápida, cochichada a ouvido
e ouvido, não foi percebida de ninguém mais na igreja. Os dois
populares e o jovem cavaleiro saíram, sem ser vistos, por uma porta
lateral.

É tão fino e perspicaz o amável leitor, que, estou certo,
já adivinhou quem era o mancebo…

Era sim, senhor, era o nosso estudante, o nosso Vasco. Os dois populares
é que não adivinhou seguramente quem seriam.

Tenha a bondade de ler o seguinte, e lá lho diremos.

XVIII – Coalização

O mancebo caminhava silencioso adiante; no mesmo silêncio o seguiam
os dois companheiros. De rua em rua, se aquilo são ruas – antes
de beco em beco, ou mais exatamente de socalco em socalco, iam saltando pelos
informes gradins do pouco esplêndido anfiteatro em que se encastela
o triste lugarejo de Gaia.

Chegavam ao pé da romanesca fonte Del-rei Ramiro que, em seu gárrulo
correr, vai ainda repetindo o palrear incessante da faladora Peronela, quando
ali vinha do castelo buscar água para sua ama – e tardava, tardava,
pela trela que dava, enquanto a infusa enchia e a senhora esperava… deixá-la
esperar.

Passam essa fonte tão celebrada na tradição popular,
passam a antiga casa que o povo apelida também de “Paço
Del-rei Ramiro”, mas que visivelmente é uma construção
do décimo quarto século, e que talvez fosse naquele tempo a
residência dos ciosos reis de Portugal quando ali vinham quase ocultamente
– aforrados, diria um purista – conspirar com o povo contra os
bispos seus senhores. Conspiração permanente por mais de quatro
séculos que os reis foram demagogos, porque precisavam do povo, para
resistir primeiro, para destruir depois, a aristocracia eclesiástica
e secular que tantos os pejava.

É comparativamente moderna a desinteligência dos reis com os
povos. Foi necessária muita má fé, muita traição
de coroados tribunos para desenganar o pobre do povo que tantos anos combateu
por eles e quase só para eles, cuidando que para si combatia.

Depois da vitória, o leão fez a partilha do costume; e ainda
em cima pos-se a devorar o sendeiro que o auxiliara…

Sendeiro que briga com um leão, mas que se deixa albardar depois como
quem é…

Vasco, o nosso estudante, pois não há mister de mais mistérios
– e perdoem-me o “mister” que aqui veio mais pela graça
da aliteração do que por outra coisa: tão safado e sáfaro
o trazem por aí os periódicos e os dramatistas, que ninguém
já pode com ele! – Vasco, digo, o nosso estudante, tomou por
uma estreita viela à esquerda da fonte; e, a poucos passos nela andados,
entrou por uma porta baixa e aberta de que pendia tristemente o escuro e emblemático
ramo de pinheiro.

Os outros dois entraram após ele.

Era uma taberna de pescadores, de marujos e azeméis. A taberna estava
só, as estreitas e mal compostas mesas desertas. Sentaram-se os três
a uma delas.

_ Um pixel do melhor! – disse Vasco.

E uma velha, com mais traça de bruxa que de taberneira, ergueu, da
baixa lareira onde estava acocorada, a mal-azada cabeça, e tornou logo
a descair no que podia ser sono ou letargo.

_ Um pixel, bruxa excomungada! Não ouves?

_ Bruxa, bruxa!… Já ouve bruxas em Gaia, que era a terra delas e
sempre o foi. Hoje não há bruxas que valham, onde estão
benzedeiras e rezandeiras que todo lo levam e todo lo comem… Má eira
as colha!.. Que bruxas? Hum!

Rosnando assim, vinha a bruxa, arrastando-se nos decrépitos tamancos
(leia “socos” no mais alatinado dialeto portuense) e chegando
aonde estavam sentados os três, estacou de repente. Com olhos que não
pareciam já feitos para over da vista exterior, se pôs a contempla-los
numa atitude de indefinível expressão.

Disseras de um cadáver que reconhece um vivo… De um esqueleto em
cuja caveira se iluminasse de repente o vazio das órbitas descarnadas
para vos olhar e saudar.

Os três homens estavam fascinados; a velha parecia ter o poder de fixar
sobre todos três ao mesmo tempo, e com igual e não dividido alcance,
aqueles olhos tão mortos… E tão vivos.

Um sorriso infernal correu mais para um lado, e sem as desfranzir, as asquerosas
rugas daquela boca sumida: e a velha disse:

_ Com que são hoje as ladainhas de Marcos evangelista? Devem de ser.
E bem as canta quem as canta. São os cônegos na Sé. Dizei-me
vós a mim quem é.

E riu-se, riu-se de bruxa: uma risada tossida e para dentro, destas que fazem
arrepiar e estremecer.

Daí, com uma pieira rouca e desafinada, se pos a cantar, ou antes,
a regougar estas trovas de má mente e mau esconjuro, que lhe saíam
trepidando dos beiços como espuma de feitiços que fervem nem
lar maldito em caldeirão de três pés, manco, rachado e
al lume de figueira verde.

O bispo com sua bispança,

Bem lhe praz fazer folgança,

Mais os padres de Santa Maria,

E mais a raposa que fia.

Bem fia a raposa, bem ela fiava,

Rezava a Senhora, rezava e cantava:

Caiu a raposa no laço que armava.

Foi o raposinho

Que aventou o ninho.

Entraram os lobos… Eles hão de entrar

Oh, se hão de entrar!

E o bispo, a raposa e o seu raposinho,

Tudo há de dançar.

Dançar, dançar, meu São Gonçalinho!

Bebei do meu vinho.

E com uns saltos trôpegos como de dança de entrevados, a velha
bailava em cadência com o seu arrepiado cantar. Parou de repente, fitou
os olhos no mancebo e, soltando uma longa gargalhada infernal, virou-lhe as
costas. Arrastando, arrastando. Foi buscar um bom pixel de mais canada, encheu-o
de vinho, e voltou a por-lho sobre a mesa.

O três pasmavam e não diziam palavra, ainda fascinados do estranho
olhar, do mais estranho cantar, e das arrastadas evoluções da
dança da bruxa.

Ela tornou para o seu canto na lareira, acocorou-se, e descaiu a cabeça
no mesmo letargo ou sonolência de que tão extraordinariamente
despertara.

_ A que má cova de Satanás nos trouxestes, mancebo? –
disse um dos três por fim,. – Peçonha terá este
vinho, por mais que me digam.

_ Tem, tem, e da pior, que é verde como agraço, o cão
– respondeu Vasco depois de vazar a meio um daqueles imensos copos minhotos
que fariam espanto e meteriam respeito até à mesma bíbula
pregênie britânica. E continuou logo: – como um cão, o
maldito! E para quem está costumado a fazer penitência no tinelo
de certo prelado apostólico…

_ À porta Santa de Roma farei eu penitência sete anos… sete
anos e um dia bem contados, se com tal me perdoasse Deus o mal-amassado pão
que lá comi, o agro vinho que lá bebi, o próprio ar empestado
que lá respirei…

_ Não haveis mister de ir a Roma, que perto tendes a absolvição.
Esta noite resgatareis a alma se quiserdes.

_ Esta noite?

_ Sim. As ordens que trago são para que esta noite se levante tudo,
a acabemos por uma vez com a insuportável tirania que nos oprime e
nos desonra. El-rei está em… Podemos falar seguramente aqui?

_ Se não receais a bruxa… Mas dela bem sabemos que nada há
de temer!… Cá por nós dois…

_ Teu irmão largou com efeito o serviço do diabo e do almudeiro?

_ O almudeiro não, não o largou de todo – respondeu o
terceiro interlocutor que até ali estivera em profundo silêncio:
– não o largou de todo, não, que ainda tem de ajustar com ele
um resto de contas. O almudeiro almuda bem, mas precisa aferido. E há
de ser pela minha mão: não cedo esse encargo a ninguém.

_ Bem está. Pois agora sabei ambos… Mas que se não diga por
enquanto na cidade… Sabei que el-rei veio aforrado ao mosteiro de Grijó,
que aí está desde esta madrugada, e daí saírá
à boca da noite para entrar no Porto sem ser visto. É preciso
que nós seguremos as portas com tempo, e primeiro que todo a Sé,
que é o mais forte de toda a cidade. De que ânimo está
o povo?

_ De se pagar por suas mãos, que é o único pagamento
seguro que tem.

_ E que farão os nosso juízes e vereadores?

_ O costume: dar divas a quem vencer.

_ Estareis vós de vigia no paço esta noite, Rui Vaz?

_ Por quem tomais vós, senhor Vasco? Eu era homem do bispo, servia-o
com lealdade; pesava-me na consciência, é certo, mas servia-o,
porque fé e lealdade estão primeiro que tudo… Desde hoje não
sou homem seu, nem como seu pão, nem bebo seu vinho; posso fazer-lhe
guerra por conta Del-rei, e do povo cujo sou, e por minha conta também,
e mais… Mais de uma outra pessoa, senhor Vasco…

_ Falastes com Gertrudes, vós? Falastes com ela, Rui, meu amigo?

_ Falei sim: e não há falar com aquele anjo que se a gente
não sinta virar para melhor, como de dentro para fora. Aqui tendes
a meu irmão Garcia Vaz que ela converteu também.

_ A ti! Pois também a ti! – disse o estudante voltando-se para
o ex-portageiro.. Ex-cabo de polícia traduziríamos hoje… Esperemos
em Deus para salvação da sua alma e bom fim da nossa história
que a verdadeira tradução seja ex-tratandte.

_ A mim, sim senhor, – respondeu ele; – a mim, que de a ouvir falar ao povo
com aquele inocentinho nos braço… O filho da pobre Aninhas que eu
ajudei a … E o mais culpado de todos fui eu, porque já o coração
me dizia que o era antes de fazer o que fiz. Era, era. O coração
bem me dizia que, em vez de dar a Pêro Cão a gazua que lhe forjei
para ele abrir a porta, com esta choupa lhe devia eu ter aberto a barriga
a ele… Saísse o que saísse… Que não havia de sair
coisa boa. Mas é verdade que de a ouvir falar ao povo com aquele inocente
nos braços, e dizer-lhe o que lhe Lea disse, toda esta alma se me voltou;
jurei por quantas juras há, más e boas, que o mal que lhe eu
fiz, alguém mo havia de pagar.

_ Pois bem homem! Agora o mal está feito e o que devemos tratar é
do remédio. Paio Guterres é certo que respondeu por Aninhas?

_ Certo: ouvi-lho dizer eu diante do povo todo; e daí seguros estamos
que lhe não pode suceder nenhum mal. Mas…

_ Mas – Interrompeu Garcia Vaz – também o bispo prometeu
que nos entregava Pêro Cão para o enforcamos, e ele ainda está
dentro do paço, rindo e zombando dos gritos do povo… Que por fim
é povo, não sabe senão gritar.

Vasco ficou pensativo e abstrato, sem dar atenção ao que diziam
os dois irmãos, que continuaram a conversar entre si pelo mesmo teor.
Ele permanecia como fechado dentro de suas meditações.

Passado algum tempo, levantou-se da mesa de repente e disse:

_ Parti já: quero as portas da cidade seguras. A Sé fica por
minha conta.

_ Vós, Vasco! Vós, senhor, fareis essa… Essa?…

_ Essa traição: é o que queres dizer. Farei. E sei o
que faço.

_ Não sabeis não, mancebo. Oh senhor Vasco, eu pesa-me na consciência…
É verdade que jurei não vo-lo dizer, mas agora, mas nesta ocasião…

_ Não vos pese, nem pese nada, amigo. Sei tudo, e sei o que faço,
sobretudo. Parti já ambos sem mais detença. E o povo que não
assossegue nem durma no seu caso. Povo que dorme, tirania que desperta. El-rei
é por nós, mas não basta: os grandes não são
pelo pequenos senão enquanto os pequenos podem. Adeus! Parti já.
Eu não tardo no mesmo caminho.

_ E vós?… Já falastes com ela, vós?

_ com a velha? Com esta velha que cuida que é bruxa? Deixai-a por
minha conta, que a conheço de há muito, e sei… que nenhum
perigo corremos com ela.

_ Bem o sei, mas…

_ Ide n’hora boa, ide já, ide.

_ Vou. E ela virá?

_ Virá.

O ex-archeiro e o ex-portageiro saíram enfim.

Mas Rui, o nosso antigo amigo, tornou logo atrás, como apertado de
um escrúpulo interior que não podia vencer, e baixo ao ouvido
de Vasco, lhe disse:

_ Lembrai-vos do que ontem à noite vos disse naquela negra sala de
armas do paço?

_ Lembro, sim.

_ Sabeis, Vasco, filho, mancebo?… O bispo… Bom bispo não pe ele…
Mas sabeis vós tudo… Tudo o que lhe deveis?

_ Ide em paz, honrado homem; ide e deixai-me, que tudo sei.

_ E apesar disso?…

_ E apesar disso, e por isso mesmo… Deus será juiz entre nós,
Rui Vaz. Ide, que se faz tarde.

O archeiro encarou o mancebo como quem lhe queria ler a lama no semblante.
Vasco sorriu com um sorriso misterioso e descorado que se não deixou
interpretar.

_ Adeus! – disse o homem do povo; – senhores lá o sabem e o
entendem. Tendes sangue e criação para tudo, mancebo. Mas olhai
que o que Deus mandou, mandou-o para todos.

_ Assim é, meu amigo, ide.

_ Vou, vou, e a Sua vontade seja feita sobre tudo! Falai bem com a bruxa;
que vos diga, que vos ponha em claro…

Vasco já não ouviu estas últimas palavras: passeava
a largas passadas no chão desigual e úmido da taberna, que não
era senão terra batida. Rui Vaz saiu sem o ele ver, nem interromper
seu distraído e agitado passeio.

As puas verdes e resinosas das folhas de pinheiro que juncavam o chão,
rangiam melancolicamente debaixo dos pés do mancebo; e por alguns minutos
não se ouviu naquela desolada estância mais som que este triste
som. Via-se, nas expressivas e caracterizadas feições do jovem
que o seu espírito e o seu coração lutavam alguma luta
tremenda; mas tudo se passava lá dentro, não veio nem um suspiro
à flor dos lábios.

Que tempo seria, não sei; mas foi muito tempo que se passou assim.

De repente Vasco foi-se à porta da rua, fechou-a, e levantando a tranca
enorme que atrás lhe jazia, atravessou-a e firmou-a nos grosseiros
encaixes que para isso estavam esburacados nos informes alizares de bruto
granito. Daí, às apalpadelas, porque a casa ficou quase às
escuras, caminhou para a larga e enfumada lareira onde ardia um resto de tronção
de pinheiro, e de donde agora faiscavam, mais do que ele, os olhos da velha
que parecia ter acordado de seu habitual letargo. Os olhos da velha luziam,
luziam como carvões acesos… O mancebo caminhava lento mas certo para
aquela luz terrível… A velha ergueu-se em pé, direita, alta
e forte, como se o asqueroso sapo que ainda agora se arrastava disforme pelo
torpe lodo daquele chão, subitamente se transformasse nem dos gênios
maus da miraculosa lâmpada de Aladim.

XIX – Tornemos ao Arco

Dez anos esteve Cervantes para fazer trasladar e por em ordem os manuscritos
de Cide Hamet Benengeli, e nos dar enfim a última parte da história
do Cavaleiro da Mancha. Eu não te fiz esperar senão cinco, leitor
amigo e benévolo, por este segundo e derradeiro tomo do bendito arco
de Sant’Ana. E tive de fazer eu tudo, eu só por minha mão,
decifar a enrevezada letra do códice dos Grilos, que, entre palavras
safadas, linhas inteiras ilegíveis, folhas rotas e outras dificuldades
semelhantes, me deu mais que fazer do que um verdadeiro palimpsesto.

Não tive neste intervalo, é verdade que não tive, quem
me fizesse uma segunda parte sub-reptícia e caluniosa, como lhe fizeram
ao pobre de Miguel de Cervantes, que o obrigou a dar tantas satisfações,
e a torcer até o rumo de sua história. Mas críticos e
censores não me faltaram, pragas e praguentos me vieram de toda a parte;
e chegaram a acusar-me de quixotismo, que sonhei gigantes em moinhos de vento
para ter com quem brigar, e degolei exércitos de inocentes cordeiros
como se foram a pugnaz mourisma Del-rei Almançor, o de arregaçado
braço.

E tudo isto por que leitor amigo? Porque ameacei com a ponta do azorrague
Del-rei D. Pedro as pretenções absurdas e anti-evangélicas
de certos agiotas do catolicismo que abusaram da boa fé da presente
geração e pretenderam granjear em proveito seu, de suas pessoas,
o espírito mais religioso da época.

Há cinco anos chamaram-me visionário. Que dizem hoje, senhores
censores? Vejam a Inglaterra, onde, à sombra de puseysmo e de outras
formas de transição e transação, o catolicismo
entrava já nas mais fortes cidadelas da fé luterana, vejam como
por lá se tem abusado, e como o governo se começa a arrepender
de sua tolerância. Vejam na Itália como se está suicidando
o papado, e pregando-se urbi et orbi o cisma, a heresia, a dispersão
da Igreja universal. Vejam enfim, na nossa pequena e pobre terra, a ignorância,
a crápula, a simonia, o servilismo político andar desonrando
a estola e a mitra, entregando-as ao desprezo e ao ódio popular.

E com tudo isto, querem dominar, e são ferozes e atraiçoados
inimigos da Liberdade, que, filha do Evangelho, só pode e só
há de sustentar o Evangelho; que, tendendo à universalidade,
como a Igreja, é a sua mais poderosa auxiliar, a sua única verdadeira
esperança na terra. Porque hoje, se não há Dioclecianos
perseguidores nem Julianos apóstatas, também não há
Constantinos protetores. Os príncipes querem para si: tomara o trono
que lhe acudisse o altar, quanto mais ampara-lo ele! A Igreja, quem lhe resta
é a Liberdade; é pela Liberdade que se há de cumprir
a promessa divina de que não prevalecerão contra ela as portas
do inferno.

Dizia o meu amigo R.: “Tu não chegas a imprimir nunca o segundo
volume do Arco” – Imprimo, imprimo, respondi eu, em me chegando
outra vez a mostarda ao nariz com estes padrecas ingratos. Valemos-lhe nós,
nós os rapazes do meu tempo, que entramos a pregar a favor deles, em
economia política deste século e a filosofia do século
passado. Ambas os proscreviam; todos os homens graves e sérios de quarenta
anos para cima, votavam por elas: a rapaziada é que se meteu no meio
e não deixou. Vem eles depois e voltam-se contra nós porque
julgam que já nos não precisam… Agora o veremos.

Inda assim, meia dúzia de padrecas soezes, um que outro bispo ignorante
e depravado não são o Clero nem a Igreja. Por esta somos nós
como sempre fomos e seremos. Aos maus sacerdotes havemos de pendura-los do
Arco abaixo. Que preguem daí os seus sermões para os gaiatos
se rirem; que excomunguem daí os que não crêem nos milagres
que eles inventam; e os que forem acadêmicos que escrevam daí
as suas memórias. Não lhes damos outro castigo nem queremos
outro divertimento para nós.

Aí os deixo pendurados como ex-votos de cera, com serem bem sebentos
alguns deles.

E nós vamos leitor amigo, em busca do nosso estudante, do nosso Vasco.
Vamos ver o que ele faz metido há tanto tempo naquela taberna de Gaia,
só, ali fechado com aquela bruxa tão feia. E vamos saber de
Aninhas e da sua amiga Gertrudes. E se a bernarda dos caldeireiros gorou ou
foi por diante, e conseguiu aclamar o Senatus Popilusque Portucallensis sobre
as ruínas do trono episcopal. Se a seráfica pança de
F. João da Arrifana ou o municipal abdômen de mestre Martim Rodrigues,
metidos cada qual em sua cuia da balança, conseguiram restabelecer
o equilíbrio do estado, fazer reinar, com o braço e baraço
de Pêro Cão, a “ordem de Varsóvia” naquela
inquieta terra do Porto. Se no meio disso, veio el-rei D. Pedro e se comeu
a polpa da ostra, dando a metade da casca a cada um dos litigantes. Vamos
ver tudo isso, que é tempo.

E, sem mais preâmbulo, amigo leitor, entremos no âmago da história,
que agora te vou contar muito direitinha e enfiada desde o principio do seguinte,
para o qual te peço que voltes a folha.

XX – A Bruxa de Gaia

Deixamos o nosso Vasco na presença da velha bruxa que se erguera do
seu letargo e crescia diante dele como um espectro tremendo.

_ Estamos sós, Guiomar – disse o mancebo com voz que queria
ser firme, mas que vibrava descompassadamente para não tremer.

_ Enfim! – respondeu a velha.

_ Enfim! Há muito que temo e desejo esta hora – tornou o mancebo
– há muito que luto entre a necessidade e o terror de te ouvir,
Guiomar, de ouvir o tremendo segredo que não sei se adivinhei já…
Que Deus queira, oh! Faça Deus em sua misericórdia que eu não
adivinhasse!

_ Palavras de homem! Bem, mancebo! Essas são palavras de homem, as
primeiras que te ouvem promunciar estes ouvidos que latejam com a surdez da
velhice e da enfermidade, e onde só retinem claros e distintos os sons
que pronunciam os teus beiços, Vasco. Porque eu morri para tudo e para
todos, menos para ti, menos para ti que és… és…

_ O que sou eu?

_ Hoje és um homem: o teu falar é de homem. Ontem eras uma
criança. Que revolução se fez no teu espírito!
Bendito seja Deus que me deixou ver este dia. Mas vi-o, ouço-te e vejo-te.
Inda bem! Estás um homem. Acabaram-se as levezas e as leviandades de
rapaz, entraste sério na vida. Já me não importa morrer.
Nem morrerei, não… (que-lo Deus assim, bem o sei) enquanto o meu
filho, o filho de meu coração…

_ Mulher, mulher, e sou eu teu filho? Sou eu esse filho por quem tanto tens
padecido e chorado, por quem tens levado essa vida de martírios, incrível
de abnegação e paciência que me tens contado? Prova-mo,
prova-mo, e não hesito mais um instante, fecharei os olhos e correrei
cegamente aonde me mandas.

_ Oh filho, filho, quem, se não fora mãe, faria o que eu tenho
feito, sofreria o que eu tenho sofrido?

Vasco deu um profundo suspiro, os olhos que levantou para o céu, ao
arranca-lo do íntimo peito, lhe descaíram desanimadamente no
chão tristes e mortais.

_ Tua mãe sou, Vasco. Destas entranhas nascestes, estes peitos te
criaram. Olha, olha bem para mim, filho, que para tua mãe olhas! Não
te de asco esta miséria, não tenhas vergonha destes farrapos.
Eram ricas telas, eram sedas e ouro, eram finas holandas as que me vestiam
quando tu vieste ao mundo, filho. E nenhuma dama da corte, das mais soberbas
e preciosas, as vestia assim; nem houve infante de Portugal ou Castela que
fosse envolvido em tão ricos panos em seu berço, como tu foste,
meu Vasco, meu só amor e minha vida, porque outros não os tive,
outra vida não a gozei, outro amor não cri nem o quis. Deu-me
o demônio em má hora a um homem… a um monstro que me perdeu…
Mas não o amei, santo Deus! Não; nem me amou ele. Duas vezes
me reputariam a infame e perdida que sou, se o meu coração tivesse
sido cúmplice nas vilezas de meu corpo e na desonra de meu nome. Ai
filho! A minha pobreza não é falta de ouro, nem a minha velhice
sobejidão de anos. Terás ouvido nomear o sábio e opulento
rabi de Leiria, Abraão Zacuto. Sua filha sou; e tu és neto do
mais rico e venerado homem que houve nas nossas Espanhas pela ciência
do grande Avicena, que ele igualou, se não excedeu e aperfeiçoou
em muitos pontos. Reis e príncipes lhe requeriam por grande favor sua
amizade; e derramavam a seus pés tesouros e mercês para obterem
uma visita, uma palavra do grande homem…

_ Judeu sou então?

_ És hebreu por tua mãe: do mais nobre sangue de minha tribo:
nobreza já velha e incontestada quando os avós desses fidalguetes
que aí vão tão soberbos de seus brasões de há
três dias, desse que mais presumem de seu puro sangue godo – seus
avós selvagens e brutos andavam meios nus pelas matas e tremedais da
Alemanha, comendo estreme a glande de suas enzinhas, devorando crua a carne
de seus cavalos, e adorando um cepo ou uma pedra por seu deus. Nobres os miseráveis!
Fidalgos, filhos de algo, de alguém! De quem? O derradeiro da minha
tribo tem mais nobre sangue que os seus reis.

_ Mas eles reinam, e nós servimos.

_ Nós fingimos servir. Mas reinamos sobre eles pela inteligência,
pela indústria, pela riqueza do saber e pela riqueza do haver. A quem
vem pedir o ouro que desperdiçam por sua indolência, e por mesquinho
orgulho não sabem granjear nem fazer produzir? A nós, aos nossos
negociantes. Eles tem a força bruta, porque brutos são: nós
a que a domina, a da ciência, a da riqueza, que em séculos e
séculos por vir não passará tão cedo para eles
que a desconhecem e a desprezam. Assim fora a da beleza! Mas oh! A da beleza…
Essa no-la roubam eles, e se apossam dela misturando-se com a nossa raça
abençoada… Que, onde vires fuzilar uns olhos, brilhar um rosto, onde
vires graça, gentileza e garbo entre as mulheres dessa gente, crê
que aí anda sangue nosso, ou de nossos irmãos por Ismael, os
mouros que eles perseguem como nos perseguem a nós. O que vale um homem,
uma mulher de Espanha, pelo que tem de árabe o vale, ou lhe venha do
mouro ou do judeu. E eles dizem – mouro! E – judeu! Com desdém
e desprezo, os monstros, os bárbaros… Que ódio tenho a esta
gente vil! Ódio, cegueira de rancor profundo, imenso, que todo concentrei
sobre uma cabeça votada, execranda, em que hei de descarrega-lo como
golpe de raio que a aniquile, e desparza suas torpes cinzas pela superfície
das terras. Que passe o viajante e diga: “Já o não vi”.
Que o peregrino pergunte: “Onde está ele?” E ninguém
lhe saiba responder.

_ Mas esse homem que tanto odeias e em quem concentraste todo o teu rancor
à raça cristã, por que é que o detestas? E por
que estou eu em seu poder? Como me deixaste criar a seu bafo? Por que sou
eu de sua religião? Por que adoro nos altares em que ele ministra?
Como me deixaste crer no Deus que é seu Deus, viver em sua lei que
para mim é santa? Enfim para que deixaste fazer de mim o homem que
hoje sou, se tão diferente, tão estranho me querias, se tão
outro me precisavam as tuas vinganças?

_ Assim te queria, e assim te preciso. Como és, devias ser. O neto
de Abraão Zacuto, manejando as drogas e os simples, podia, servindo
uma obscura vingança, meter nas veias do cruel algoz de tua mãe
os mais sutis e enfeitiçados venenos da Frigia. Mas para essa vingança
bastava eu, se ela me bastasse a mim. Não a quis. Quero-a nobre, alta
e clara, de perpétua desonra e ignomínia para o criminoso, de
ostentosa reparação para a vítima. Um nobre infanção,
como eles dizem, um jovem fidalgo, segundo a crença deles, vestido
assim, assim colocado no mundo, é o que devia ser o meu filho para
me vingar. E assim és, e assim me vingarás. Por esse homem me
veio todo o mal, toda a desonra: por suas infâmias e violências
fui obrigada a fugir da casa de meus pais; a dar-me por morta para que eles
não morressem de vergonha sabendo-me viva; a esmolar pelas portas o
pão da miséria; a servir, como escrava, nos mais baixos e vis
misteres; a separar-me de ti, de ti, meu filho, minha única vida e
meu só amor; a ter de seguir-te disfarçada nestes farrapos;
a ver-te de longe sem ousar mostrar-me, tremendo sempre que me descobrissem
como se eu fora a maior criminosa da terra. Filho, filho, dezoito anos padeci
o que ainda ninguém padeceu; e dezoito anos tenho vivido a suspirar,
tremendo, por este dia em que te abro meus braços descarnados e te
suplico, filho, filho de minhas entranhas, um primeiro – mas que seja
o derradeiro – abraço… Ao! Um abraço a tua mãe…

A bruxa, a torpe e asquerosa velha desaparecera: uma mulher bela ainda, no
vigor da idade, que não podia passar muito de quarenta anos, descarnada
mas fortemente constituída, um perfil de Agar no deserto, os olhos
rutilantes, a boca entreaberta, os dentes alvíssimos, a figura ereta
e nobre – tal estava a mãe de Vasco, a mãe que o reclamava,
que o atraía, o fascinava, e em cujos braços o mancebo se lançou
clamando:

_ Mãe, mãe! Oh! Tu és minha mãe, porque eu te
quero e o meu coração vai para ti, mãe.

Abraçaram-se, abraçaram-se num longo e estreito abraço.

O céu tinha-se toldado no entanto, a pouca luz que havia na obscura
estância desaparecera, o fogo na lareira amortecia.Só os relâmpagos
da trovoada, que bramia nos ares, metiam, de vez em quando, por uma estreita
fresta de alto, uns clarões amarelos que deixavam depois ainda mais
cerradas as trevas feias que ali reinavam. Sem vento, a chuva caía
perpendicular, teimosa, esparralhada, sobre o teto mal-escoante da casa, por
onde, em pouco, se infiltrava, e caía pinga a pinga, avivando aqui
e ali o verde lustroso das ramas de pinheiro que tapeçavam o chão.

XXI – E Meu Pai?

Foi longo o abraço, estreito e longo, acompanhado dos soluços
e das lágrimas da pobre mãe, que enfim o tinha li para si todo
aquele filho, que o chamava pelo querido nome de filho e se revolvia à
vontade na fartura dessas almejadas delícias que ainda lhe parecia
impossível serem todas suas.

Não estavam secos os olhos de Vasco, nem batia menos apressado o seu
coração; mas nele não era, não podia ser único
e exclusivo o sentimento que dominava o da mãe. Tantos pensamentos,
tantas recordações encontradas lho combatiam. Aquela mulher
era sua mãe: não o duvidava já. Durante anos a vira,
a sentira como a sua sombra que por toda a parte o seguia. Em suas pequenas
dificuldades da vida de mancebo, ela de repente, e como se bastara o pensamento
para a chamar, ela lhe aparecia pronta sempre e fosse onde fosse com o aviso
importante, com a informação necessária, com o dinheiro
desejado. De onde e como o havia ela? Não sabe. Mas desde o primeiro
dia que, pequenino ainda, fora à escola de Paio Guterres, o bom arcediago
de Oliveira, lhe aparecera essa velha, e o acariciara, e lhe dera sempre bonitos,
prendas, quando ele queria e desejava, recomendando-lhe muito o segredo, que
o rapaz guardava de todos escrupulosamente. Queria muito à velha, mas
tinha medo e terror dela ao mesmo tempo, porque ela tinha fama de bruxa, era
a “Bruxa de Gaia” que todos lhe chamavam: o nome de Guiomar, se
esse era o seu deveras, até poucos lho sabiam. Sua mãe será,
sua mãe é; não o duvida pois já agora. Fizeram-lhe
sempre mistério de seu nascimento os que o criaram; mais fácil
lhe foi portanto aceitar esta explicação que achava eco nas
simpatias de sua alma, na poderosa voz de seu sangue… Sangue que é
judeu… Todos os preconceitos da educação se lhe rebelavam
com a idéia. E sofre, e pesa-lhe da mãe que achou… Mas ela
quer-lhe, ela ama-o tanto!… Ela é tão feliz de lhe chamar
filho!

Que ódio porém tem essa mulher ao bispo que o criou, e como
a filho o trata também? Ódio que a seu jovem coração
tem sempre querido fazer passar por quantos modos pode, mas em vão
sempre. Os erros, os vícios, os crimes do prelado, bem os conhece e
os detesta Vasco, mas a ele não pode. Entusiasta na causa popular,
que é a da sua Gertrudes, quisera ser o tribuno audaz, o valente caudilho
que à frente do povo do Porto triunfasse da tirania sacerdotal, estabelecesse
o livre regime da “comuna” na sua querida terra do Porto. Para
isso andava em negociações e conspirações com
burgueses e populares, para isso tinha ido ter com el-rei e se fizera homem
seu. Se com isso se contentassem as vinganças da mãe, estava
pronto a dar sangue e vida por elas. O senhorio, o domínio, o direito
e poder de oprimir e fazer mal, não hesitava, era justo, era nobre
querer tira-lo a esse mau bispo. Mas tocar em um cabelo de sua cabeça…
Jamais. Nem o ódio da mãe, nem o empenho da amante, nem o recente
desacato de Aninhas – de que já Rui Vaz o informara – nada
podia faze-lo detestar o homem que para ele, só para ele, sempre fora
bom, generoso, indulgente, carinhoso como um pai.

Chegara a pensar alguma vez se com efeito seria ele seu pai e que lho encobrissem.
Mas porque era tão comum naqueles tempos terem e manterem publicamente
seus filhos os mais respeitados dignitários eclesiásticos, era
tão vulgar e recebido esse costume, que se não podia crer do
pouco austero bispo do Porto, – o que furtava, sem cerimônia nem escrúpulo,
as mulheres e as filhas aos seus burgueses – lhe desse agora para estar
com esses recatos e hipocrisias a respeito de um filho de dezoito anos, que
antes de ser bispo, quando ainda secular e cavaleiro, podia ter havido, porque
há menos que isso tinha entrado em ordens e fora sagrado bispo.

Que lhe era ele pois? Por que assim lhe queria, e por que assim o detestava
a mulher que era sua mãe, e que tamanhas injúrias dizia ter
dele?

Esses mistérios confundiam, estas considerações lhe
andavam de tropel no espírito; e agora, passada a primeira explosão
do afeto filial, o tinham insensivelmente feito cair nem abatimento de tristeza
que mal podia dissimular.

Estavam mãe e filho sentados nem escabelo ao pé do lar; a mãe
sem tirar os olhos dele, ele com os olhos no lume quase apagado, e nas cinzas
brancas raiadas de algum brasido tênue que ainda avermelhava por entre
elas.

O tremendo estampido de um trovão que pareceu estalar sobre o teto
mesmo da casa, o tirou daquela distração.

_ Que tempestade vai no céu, minha mãe!

_ Maiores me tem esbravejado no coração, filho. Ah! Tu não
sabes!…

_ E tu vives neste pardeiro, nestas ruínas?!

_ Vivo. Há quatro anos, desde que me foi impossível habitar
dentro dos muros da cidade, para aqui vim; e aqui faço o vil mister
de taberneira… E outro mais vil ainda, o de espia Del-rei.

_ Como! Pois el-rei?…

_ Aqui tem vindo aforrado, disfarçado muitas vezes, para saber o que
vai pela cidade e pelo Brusgo-novo. Àquelas toscas bancas se tem sentado
muita vez, comido da faneca frita, bebido do mau vinho que aqui se aquartilha.
Aí tem ajustado suas contas com os estanqueiros do sal, que o roubam,
como ele rouba o povo.

_ El-rei D. Pedro, roubar o povo!

_ E o bispo que ele quer defraudar, mas é o povo quem o paga. Entre
senhores, a disputa sempre é sobre quem há de receber; pagar
nunca é nenhum deles, senão só o povo.

_ Ah! E querem que me eu enrede em suas disputas! Que nos destruamos por
suas questões! Que me importa a mim?…

_ Importa-me a mim. Faremos como eles: cobriremos com a capa do público
interesse o nosso privado empenho. El-rei invoca a liberdade do povo, e são
as suas próprias ganâncias que granjeia. O povo invoca o nome
do príncipe, mas não é senão o amor do lucro que
o move. Nós invocaremos tudo o que eles quiserem, contanto que me vingue
que seja atroz e infame o castigo desse malvado…

_ Educou-me, minha mãe! – interrompeu o mancebo com irresistível
ímpeto que lhe vinha de dentro da alma – manteve-me por seu tantos
anos, tratou-me como a filho!

_ Filho! – exclamou a bruxa trêmula e roxa de cólera:
– filho a ti!

_ Como a filho, sim, e como tal me quer – respondeu Vasco tranqüilamente
com aquela serenidade que domina de alto e quebra o ímpeto das mais
furiosas paixões.

Guiomar acovardou-se diante dela, abandonou as exclamações,
e se deitou a persuadir em tom moderado e quieto.

_ Não o creias – disse ela – meu filho. Esse homem é
aleijado do coração; não ama senão os seus vícios.

_ Devo-lhe muito.

_ Nada lhe deves. Nós somos os credores ainda.

_ Foi meu pai quem à hora da morte me encomendou a seu cuidado. Em
vez dele está.

_ Teu pai… Ah!

_ E quem era ele, meu pai? Por lá não me dizem senão
que era um nobre senhor de Riba Dão que acabou em Tarifa pelejando
com os mouros; mas o seu nome nunca o ouvi. Já desconfiei se seria
aquele irmão do bispo que lá morreu nessa batalha… Tu calas,
e pões os olhos no chão!… Por que não queres, por que
não hás de dizer o nome de seu pai a teu filho?

_ Para que queres tu sabe-lo, o nome de teu pai? Os meus lábios não
podem proferi-lo: estão selados por um juramento terrível, filho!…
Assim era, como te dizem: nobre, rico, poderoso, senhor e cavaleiro era teu
pai… Porém foi mais poderoso que ele o bispo, a sua ambição,
a sua maldade. Ela me fez a desgraçada que estás vendo; da opulência
e da grandeza me precipitou na miséria e na ignomínia. Teu berço
de ouro foi embalado no opróbrio e na infâmia. Tua infância
tão bela de que eu não gozei… Ah! De que me privaram com indignas
ameaças e temores – foi entregue a estranhos… E eu consenti,
meu Deus! Eu quase que agradeci ao monstro que te arrancasse de meus braços;
tal foi a sua aleivosia, tais os medos que me meteu! Levaram-te, deram-te
a frades e a clérigos para viveres em obscura dependência, tu,
aonde devias mandar e ser senhor, e…

Guiomar tinha ferido a corda sensível no coração do
filho. A ambição, que estava no fundo, ferveu e transbordou.
Levantou-se alto e grande, e exclamou com entusiasmo:

_ Tens razão, minha mãe: eu não nasci para esta vida.
A cavalo rodeado de minhas lanças, ou em meu castelo defendido por
meus homens de armas aí é o meu lugar. Para clérigo não
sou: ao diabo o latim! Não quero ser cônego. E também
já não quero tão pouco ser físico; as gualdrapas
da mula de mestre Simão andam muito baixas para mim. Quero pendão
e caldeira e gente da minha beira. E um cavalo que salte, e que me leve à
guerra. Queimados sejam os livros, e malditas sejam as horas que tenho perdido
a aturar aquele secante de Paio Guterres!

_ Que te fez ele, filho, o santo homem?

_ Latim e mais latim, solfas de clérigos, e todas as suas crendices
e pequices, quem teve a habilidade de mas meter na cabeça senão
ele? Santo é: só o que me ele tem aturado! Mas é que
eu também, a outro não lho sofria. Se não fora aquela
bondade, aquela paciência de anjo de arcediago, parece-me que nem ler
saberia.

Um suave sorriso, uma expressão de ternura quase Angélica iluminou
as duras feições de Guiomar; parou-lhe o faiscar dos olhos,
e se lhe converteu em raiar sereno de luz branda e pura, doce como de manhã
de abril. E também orvalhada como ela, porque lhe caíam, fio
e fio, as lágrimas belas: lágrimas que vem do contentamento
da alma, que a gratidão, que os mais puros afetos de nossa natureza
fazem correr de um manancial abençoado. Quando cora assim a mulher,
é um anjo que chora.

_ Vasco – disse a mãe, com aquele acento que vem do coração,
e que vai direito ao coração: – Vasco, meu filho, não
cuidei que já tivesse lágrimas senão para ti –
ou para as chorar de raiva nos paroxismos do meu ódio; mas a bondade
desse homem fê-las rebentar nestes olhos secos. Foi a vara do profeta
que feriu a pedra árida do deserto. Nem tu sabes tudo o que é
de bom e santo esse homem de Deus. Ele era o anjo bom de tua mãe, filho…
e eu perdi-o por culpa do outro demônio… Esse devia ser teu pai. Mas
o fatal inimigo de minha vida… Oh! E é então Paio Guterres
quem sempre te ensina?

_ Sim, com o mesmo amor sempre, a mesma paciência.

_ Homem admirável! E o bispo sabe, consente que tu vivas tanto com
ele?

_ O bispo não gosta dele; mas tem-lhe respeito e medo, porque o arcediago
é dos nossos, o homem mais benquisto do povo, e o mais poderosa pela
influência que tem na cidade. E daí, sabe que eu me não
sujeitava a outro, porque ele é o confessor de Gertrudes…

_ Gertrudes! Quem é Gertrudes?

_ Quem é Gertrudes! (A outra corda no coração do mancebo
que vibrava.) Quem é Gertrudes! Mas é a minha Gertrudes. A flor
de quantas donzelas tem o Porto, a Gertrudinhas do Arco… E ai, meus pecados!
A propósito do Arco, a pobre Aninhas que me esqueci dela, e do que
a Gertrudes tanto me encomendou que voltasse cedo e lhe levasse resposta do
que passava com el-rei! E eu aqui posto sem tal pensar! Vou-me embora, vou-me,
Guiomar. Perdoa, minha mãe; mas se soubesses, a pobre Aninhas o que
lhe sucedeu!

_ Sei tudo; e que o povo está indignado e ansioso de vingança.
Deves ir; é tempo que vás, filho. Que o Deus de Sansão
e de Gedeão cinja os teus rins com a espada vingadora! Eu tomarei em
minhas mãos o cutelo de Judite; e na hora do castigo eu tirarei do
saco a cabeça de Holofernes e a mostrarei ao povo.

_ Mãe, mãe – exclamou o mancebo horrorizado: – mas que
queres tu que eu faça, que esperas tu de mim?

_ O que vais fazer: vingar-me, vingar-nos.

_ Sim, eu prometi a el-rei que lhe faria abrir, esta noite, as portas da
cidade e que o castelo de sé ficava por nossa conta. Já não
sei se fiz bem ou mal, já não quero sabe-lo: prometi, hei de
cumpri-lo. Sejam os seus motivos quais forem, el-rei protege as nossas liberdades,
o povo é por ele, e os homens do Porto querem ser homens seus, não
do bispo. Esses dois, que daqui foram agora, vão dar aviso a todos
os de nossa facção, que não são poucos na cidade.
O popular não precisa muito excitado porque o jugo destes padres é
insuportável; a sua corrução descarada nem já
toma o trabalho de ser hipócrita; é um opróbrio sofre-la.
Sem escrúpulo me ponho da parte dos oprimidos. Fiz-me homem de lê-rei,
que por seu me tomou; sirvo-o a ele e aos meus comunais. Tudo isto faço,
tudo isto farei; mas levantar eu a mão para!… Oh! Jamais. E este
Fr. João, este Fr. João de Arrifana, diz-me, tio é meu
esse frade? Tio por onde? Irmão teu?

_ Não me é nada, filho; mas não lhe quero mal. Nunca
mo fez a mim, e tamlavez algum bem, pode ser.

_ Pois será irmão de meu pai? E serão estes por fim
os grandes segredos de minha progênie, que venho da nobre estirpe dos
Arrifanas, de algum moço de mulas ou recoveiro mourisco?

_ Oxalá, filho, que o teu sangue não fora do que eles chamam
tão nobre!… Fr. João da Arrifana não te é nada
tão pouco. Criou-te de pequeno mas… Saberás tudo, meu filho,
quando for tempo.

Vasco já não estava em si: excitado, contrariado pelas reticências
e mistérios que lhe faziam, exclamou com grande impaciência:

_ O meu nome, o meu nome, Guiomar… O nome de meu pai! Quero sabe-lo. Se
tu és em verdade minha mãe, se me tens esse amor que dizes,
o nome de meu pai, revela-mo. Guardarei o segredo que quiseres: mas sabe-lo
hei de… Ou então…

_ Vasco – lhe respondeu a mãe, abraçando-o com ternura
e fazendo-lhe mil carícias: – Vasco, tu estás um homem: e eu
renasci, recobrei a vida, e a força e a vontade de viver, desde que
te vi tal: mas só de ontem és homem, filho; e eu há dezoito
anos que sou mãe. Há dezoito anos que não existo senão
por ti e para ti: vê se terei pensado no que te convém. Não
é hoje ainda, não chegou ainda a hora em que deves conhecer
a nobre, nobilíssima origem de teu sangue segundo os cristãos.

_ Pois bem: fica-te com os teus segredos, eu ficarei com a minhas dúvidas,
com os meus pressentimentos. E busca outro instrumento para as tuas vinganças,
porque eu…

_ Tu…

_ Eu sou o pobre estudante Vasco, sem família, sem nome… Sem mais
proteção nem arrimo neste mundo do que a desse homem que me
tem servido de pai. E fosse ele o maior criminoso da terra… É meu
pai…

Guiomar saltou de um pulo a pés juntos para o ar, como se lhe caísse
de repente uma formidável descarga elétrica. Seu rosto moreno,
cujas feições pronunciadas resplandeciam inda agora de um sangue
rico e cheio de vida, descomposto subitamente, pálido, amarelo como
o de uma defunta, tremia de todos os músculos, e se desencaixava medonhamente,
como se a tomasse um repentino ataque de cólera asiática.

_ Que tens tu? Bradou Vasco aterrado e cheio de espanto.

_ Nada – respondeu ela com voz sepulcral.

Depois, falando só consigo, pronunciando com os lábios lívidos
os pensamentos que lhe davam pesadelo na alma, começou a murmurar como
em tom de prece ou de esconjuro:

_ Os filhos de Deus tomaram para si mulheres dentre as filhas dos homens…
Sara, filha de Raquel, sete maridos lhe matou o demônio Asmodeu que
se namorou da sua beleza… Por que não há de morrer ele, e
viver eu?… Meu não foi o pecado, e minha só tem sido a penitência…
Eu tomei tédio à vida… E resignei-me a ela, poupei-a para
chegar a ver o meu filho, para chegar a ver este dia em que os meus braços
se enlaçassem nos seus braços, os meus beijos se confundissem
com os seus beijos, e que eu apertasse a sua cabeça a este seio e lhe
dissesse: Filho, vem, vê a miséria de tua mãe, vê
a sua vergonha e o se opróbrio. Vê como, tantos anos, foram cuspidas
estas faces, escarnecidas estas rugas de sua precoce velhice. Arrastada, corrida,
apedrejada tua mãe de bruxa, de judia, de prostituta, de velha torpe
e infame!… Vê tudo isto, filho, vê-o escrito nesta cara que
dessecou ao vento das injúrias, neste corpo que mirrou com os açoites
do vilipêndio… Vê-o, meu filho, e vinga-me, vinga tua mãe,
filho!…

_ Serás vingada! – exclamou Vasco arrebatado, dominado pela
poderosa influência da bruxa. – Serás vingada. Oh! Eu to
juro, mãe. Serás, minha mãe, vingada. Minha infeliz,
minha pobre mãe, eu hei de vingar-te. E é ele, ele só
o autor das tuas desgraças?

_ Ele só – respondeu Guiomar resplandecente já de esperança
e de júbilo.

_ E meu pai, que te abandonou que te traiu!… Como foi, dize-me, e que parte
teve nisso o teu inimigo, o homem que?…

_ Dele me vem tudo, dele só. Não me perguntes como, não
me obrigues a quebrar o tremendo juramento que dei por Jeová e pelos
livros de sua lei. Que morra a morte ele, que o seu nome fique desonrado e
infame! Que lhe cuspam na face como a mim me cuspiram! Que assim como eu fui
açoitada… Fui; Vasco, tua mãe, filho, foi açoitada
pela mão do algoz em público patíbulo… Por bruxa, por
meretriz, por mulher de enredos e de infâmias… E esperava-me a fogueira
se ma não envolvesse nestes andrajos, se me não chagasse o corpo
com estas úlceras asquerosas, e me não arrastasse de porta em
porta, de adro em adro de seus templos, fazendo a idolatria de me ajoelhar
diante de suas imagens, de rezar suas rezas, e de passar pelos dedos estas
ridículas constas de invenção maometana que a supertição
dos cristãos adotou… Porque tudo quanto é supertição
adotam de todas as religiões – nem o seu culto é mais
do que a remendada mistura dos vários cultos da terra.

_ Basta mãe; eu vou. El-rei D. Pedro entrará esta noite na
cidade. E tu minha mãe, tu serás vingada! Eu to juro.

_ Que Deus arme de força a tua mão direita, e ponha em tua
alma a cólera de suas vinganças! Porque em verdade, filho, tu
só podes, e tu só deves ser o instrumento de suas iras, e o
braço de sua justiça. Toma, aqui tens ouro, meu filho: gasta,
despende, desperdiça, que é teu. Sem ouro não se faz
nada no mundo: e tu farás o que quiseres porque tens milhões.

A velha agachou-se, a abrindo um esconderijo que tinha ao pé da lareira,
sacou muitas bolsas cheias de dinheiro, com que lhe foi estofando o saio,
o corpo do tabardo, e todo ele o recoseu em ouro.

_ Outro abraço, meu filho, e vai. A trovoada passou, apenas chove
miúdo e pouco. Esta noite eu serei contigo e te abençoarei,
porque tu és bom e forte como a vara de boa estirpe.

XXII – Conspiração e Programa

Vasco abraçou a mãe, deixou-se abraçar, beijar e amimar
por ela, e saiu enfim da embruxada taberna. O tempo já estava limpo
e quase sereno. Foi-se o jovem estudante a uma espécie de arribana
que pegava com o grosseiro e primitivo estabelecimento – ou antes fazia
parte dele, porque ali recolhiam os almocreves as suas récuas –
a tirou para a rua o impaciente alazão, que pasmado da vilã
hospedagem que lhe deram, se devorava de ânsia mal sofrida por voltar
às nobres estrebarias de palácio. Falou-lhe Vasco, o generoso
e inteligente animal, conhece-lhe a voz, sossegou e amansou logo. Obediente,
humilde, mal sentiu a mão na crina e o pé no estribo, se abaixou
como dromedário para receber a carga. A trote firme, e admirável
de certeza, foi descendo as íngremes ladeiras de Gaia, sem que as pedras
que saltavam, os seixos que rolavam por aqueles despenhadeiros, o fizessem
vacilar de um pé, escorregar de uma mão.

Em breves minutos estavam em baixo, à margem do rio. Apeou-se o cavaleiro,
e tomando da rédea o cavalo, o fez entrar, sem receio nem sobressalto,
para o primeiro saveiro que ali achou. Cruzaram as negras correntes do Douro,
desembarcaram à Porta Nobre, e, cavalgando outra vez o mancebo, tomou
para as alturas da Sé.

O povo quieto, mas animado ainda, andava aos magotes por aquelas Cangostas,
Banharia e rua dos Caldeireiros. Vasco, popular e benquisto apesar de suas
intimidades no paço, ia tranqüilo pelo meio deles, desbarretando-se
aos mais velhos sinais daquela benevolência e quase entusiasmo que as
classes inferiores tem sempre por quem as corteja e considera sem se familiarizar
com elas; por quem no seu ar e nos seus modos, não parece dizer-lhes,
como os nossos modernos demagogos: “Eu sou tão bom, tão
liberal, que desço até vós”; – mas antes: “Não
vivo convosco, porque a nossa educação, as nossas idéias
da vida são muito diferentes. Mas convosco sou de alma e coração,
de braço e de cabeça, porque vosso irmão sou diante de
Deus e do Evangelho, das leis da natureza e das leis da razão”.

Além disto os dois irmãos, Rui Vaz e Garcia Vaz, tinham precedido
o nosso estudante na sua volta para a cidade, e não tinham perdido
o seu tempo. Poucas horas lhes haviam bastado para dar à agitada e
confusa efervescência do povo a direção que eles queriam,
e que os outros aceitavam com ânsia e entusiasmo.

Há um vazio sempre, um oco de incerteza em todas as comoções
populares, de que é fácil aproveitar-se qualquer com mediana
habilidade, uma vez que esteja de sangue frio, e lhe lance a tempo um nome,
uma palavra, uma frase, seja qual for. E não importa a idéia;
o que se quer é o símbolo. Da coisa simbolizada não é
tempo de tratar agora, não há sossego para a examinar: depois
veremos. Toma-se a palavra, o nome, a bandeirola – um chapéu
de três ventos que seja, como o outro dia sucedeu em França –
e vai-se para diante.

Fica, é verdade, o direito salvo para chorar depois o erro, lamentar
a precipitação do momento, e conspirar cada um contra a sua
própria obra; mas é tudo o que fica.

E não obstante isso, assim se fez sempre, assim se há de sempre
fazer: porque o povo nunca se excita fortemente pelo bom do que há
de vir, senão pelo mau e insuportável do que é.

Por outras palavras: nenhum demagogo fez nunca uma revolução
com os seus programas, por mais artigos que eles tenham; todas as fazem os
governos, todas as concita o poder por seus abusos e insolências.

Nem o tremendo brado das iras de uma nação diz nunca, senão:
“Destruam”. A sentença de seu tribunal sem recurso é
sempre: “Morra”.

Mas quem há de viver depois? – porque alguém e alguma
coisa é preciso que viva; o que se há de edificar sobre essa
destruição? – porque ruínas não se habitam.
Aí começa o ofício do demagogo: e Deus lhe perdoe, que
rara vez começa, e mais rara vez acaba em bem!

Ora os dois irmãos Vaz, como eu ia dizendo, tão ardentes e
zelosos agora na causa da liberdade e dos agravos populares, quanto o tinham
sido antes em defender os direitos e os tortos do bispo, cujos eram, meteram-se
cada um por seu lado, entre os grupos dos artesãos e dos burgueses;
e pouco a pouco tinham ido dando direção àquela imensa
força, a que só ela faltava, aplicando aquele vapor, que se
desperdiçava em gritarias e exclamações, à tremenda
máquina da revolução que iam fazer trabalhar.

Dizia-lhe Garcia Vaz em ar de confidência, com a lástima nos
olhos, e a compunção na voz:

_ Que nem eles sabiam todo o mau que o bispo era, as atrocidades que fazia,
as novas tiranias que meditava. Que era necessário acudir com o remédio
e já. Mas que o povo precisava de proteção, de chefes,
e que só el-rei podia dar-lhos. Que para fazer justiça inteira
e crua, como tantas maldades careciam, só D. Pedro, o justiceiro e
o cru, que tanto 1lhe dava mandar enforcar ou queimar um bispo, como a qualquer
servo ou malato que lho merecesse. Que para as excomunhões e interditos
de Roma, ele rei lá se haveria com eles, que podia.

_ Mas nós queremos matar o bispo por nossas mãos – respondiam
os populares: – que nos violenta as filhas e nos rouba as mulheres. Queremos
enforca-lo com as tripas de Pêro Cão seu alcoviteiro: e faremos
bispo o arcediago de Oliveira, que é um santo homem que nos não
há de roubar nem excomungar. Vamos buscar Paio Guterres, o nosso arcediago.
Vamos!…

_ Paio Guterres – tornava o agitador – é um santo velho
de quem não havereis mais do que sermões e pregações,
palavras de paz e de misericórdia. Não é ele que nunca
se há de por à vossa frente, que puxe pela espada e vos capitaneie
para ir contra o paço, e tomar aquelas torres da Sé, tão
fortes como as de um castelo roqueiro. Nada! Precisamos de um homem moço
e resoluto, que seja homem de el-rei e homem do povo, mas bastante senhor
para se por à nossa frente, ir buscar o estendarte da Virgem aos paços
do conselho, e marchar com ele adiante de nós. E a falar a verdade,
nesta terra onde não há fidalgos, que o foral os não
deixa morar cá, não temos senão um homem para isto, que
é… é o nosso estudante.

_ Qual estudante?

_ Um que foi todo do bispo como eu fui, e que hoje o detesta como eu o detesto.

_ Mas quem?

_ A flor do mancebos, a jóia dos escolares, o noivo da nossa Gertrudinhas.

_ Vasco!

_ Esse é.

_ O sobrinho de Fr. João da Arrifana!

_ O próprio.

_ Mas se ele é do bispo!…

_ De Satanás quisera ele antes ser. Mas é de el-rei: de el-rei
é, maus amigos. E sabei um grande segredo…

Chegaram-se todos para Garcia Vaz, que, em tom misterioso de secretário
de Estado comunicando gravemente uma frioleira à papalva reunião
da sua maioria parlamentar, lhes disse:

_ Sabei, honrados amigos, que o nosso Vasco esteve hoje com el-rei o qual
veio aforrado a Grijó para lhe falar.

_ El-rei em Grijó! – exclamaram todos em alto brado.

_ Psiu! Que deitam tudo a perder. Está sim, mas chiu! E não
lhes digo mais nada, se me não juram todos de guardar segredo.

_ Juramos.

_ Bem. Agora não o digam a ninguém.

_ Eu só o digo à mulher, que lá essa…

_ Eu só se for a meu compadre Bonifácio.

_ Eu…

_ Bonito modo de guardar segredo e juramento! Digo-lhes que deitam tudo a
perder assim.

_ É verdade; é verdade; é preciso guardar o segredo.
E até quando, Garcia Vaz? A gente também não pode…

_ Até esta noite à meia noite.

_ Vasco é o nosso homem – continuou o orador das turbas: – ele
é quem nos traz as ordens de lê-rei, de cuja própria boca
as recebeu. Daqui a pouco , em sendo noite bem fechada, que se arme cada um
com as melhores armas que tiver, e aqui ao pé do Arco nos juntaremos
para ir aos paços do conselho buscar a nossa bandeira. Lá falaremos
e acordaremos no que se há de fazer.

_ Eu cá a minha coisa é que morra o bispo, e que nada de sisas
nem de portagens.

_ Eu não é tanto por isso; mas que Gil Eanes não seja
mais juiz; que é um asno e um tratante.

_ Pois eu não senhor, eu o que quero é que…

_ Para lá, para lá, meus amigos: agora nada mais. Silêncio!
E trate cada qual de se preparar para esta noite.

Assim interrompeu Garcia Vaz a torrente de programas que já começava
a formar-se, que prometia engrossar, e que em breve se despenharia, como a
catarata de Niagara, por cima da intentada revolução, deixando
talvez incólume, debaixo da imensa curva de sua projeção,
aquelas mesmas coisas que mais pretendia, mais desejava, e porventura mais
devera destruir.

O programa é coisa muito antiga, já vêem, não
é pecha dos nossos dias.

Ora pois, se assim fazia Garcia Vaz por um lado, outro tanto fazia seu mano
Rui por outro lado. De maneira que, quando o nosso Vasco assomou pelas agora
tão concorridas ruas da Banharia e de Sant’Ana, não encontrou
senão rostos amigos, sinais de inteligência, um como entusiasmo
comprimido que não rompia em vivas porque não era ainda tempo,
mas que os dava já com os olhos e com a expressão da fisionomia.

Vasco bem percebia o que andava no ar, e posto que o amor-próprio
lhe folgava – como era natural na sua idade, e na virginal ignorância
em que ainda estava das coisas políticas – todavia sua alma escolhida
e superior sentia aquela invencível melancolia que deixam todos os
triunfos deste mundo, sejam eles do fórum ou da academia, da tribuna
ou do salão.

Vanitas vanitatum, et omnia vanitas!

Vasco não sabia isso, nem o sabe ninguém antes de experimenta-lo;
mas sentia-o, pressentia-o, adivinhava-o. Fatal privilégio das organizações
belas e elevadas, que em tudo, até neste funesto adivinhar, tão
caro pagam sua tão mal invejada superioridade sobre o vulgar dos homens!

Vasco ia triste e pensativo; e o generoso alazão parecia ressentir
o estado de ânimo do seu cavaleiro, balançando as orelhas baixas
e caídas, enquanto subia, a passo lento e grave, a tortuosa rua de
Sant’Ana.

Iam quase chegando ao Arco, quando um estribeiro do bispo, montado em poderosa
mula, vinha trotando largo e rasgado na mesma direção. Conheceu-o
Vasco ao passar por pé dele, e fazendo-o parar, saltou do cavalo e
lhe atirou com as rédeas:

_ Leva-o às cavalhariças; e que o pensem bem, que o precisa.

O estribeiro seguiu seu caminho, levando de rédea o alazão;
e Vasco entrou em casa da nossa boa Gertrudinhas, de quem te confesso, amigo
leitor, que já tenho saudades. Se te sucederá a ti o mesmo?

A ser assim, perto estamos todos de as matar, as tais saudades, porque no
seguinte vamos entrar em sua casa também nós, ou para falar
mais corretamente, na de seu pai, mestre Martim Rodrigues, caldeireiro de
seu ofício, juiz e magistrado municipal da muito nobre, sempre leal
e invicta cidade do Porto, à qual eu fiz dar e confirmar todos esses
títulos, eu que copio esta crônica do Ms. Dos Grilos.

Fiz sim, em um decreto por mim lavrado no mais retumbante estilo de proclamação
patriótica, reta pronúncia e frase de brasão. Nesse decreto,
que o meu amigo M. P. Propôs à régia aprovação,
e a obteve, lhe reformamos as Armas, lhe demos a insígnia da Torre-e-Espada,
lhe colocamos, em escudo de honra, no meio, o Coração de D.Pedro…
Mas dizem os barões do Porto que nem um nem outro honramos a memória
de D.Pedro, que somos demagogos e não sei que mais…

Os barões da minha querida terra parece-me que são como os
mais barões de Portugal e ilhas adjacentes: convém a saber…

Isto é, são barões, e tudo está dito.

XXIII – Gertrudes

Era já o fim da tarde quando o Sr. Vasco subia as precipitosas escadas
de mestre Martim, e batia as palmas junto à porta do primeiro andar.
Uma voz bem conhecida, cujo trêmulo trilo, uma vez ouvido, nunca mais
esquecia, perguntou de dentro:

_ Em nome de Deus, amém! _ Quem está aí, e a quem é
que procura?

_ De paz é – respondeu o nosso estudante.

_ Paz, paz… Bom dia de paz vai este em que tudo é guerra, alvoroto
e perdição; em que se roubam as mulheres a seus marido, às
próprias barbas da senhora Sant’Ana e do seu arco milagroso;
em que o popular anda tão mexido e altanado, que Deus nos acuda!

_ Tia Briolanja, sou eu.

_ Sou eu… e tia Briolanja!… E tão requebrado que ele fala! ?Má
hora, que me eu deixe enganar de teus requebros, meliante, quem quer que tu
sejas. A boa porta vens bater. Olha quem, eu! Uma casa de duas donzelas…
Pois não? E seu pai fora! Que lá estão nas casas do conselho
todos ainda, e lá lhe foi seu jantar a mestre Martim, coitado! Que
bem pouco lhe havia de prestar com tantos cuidados que lhe ca&iiacute;ram em
cima. Jantar, jantar… E pelo que estou vendo, lá lhe tem de ir a
ceia também…

_ Mas, tia Briolanja, abri-me por quem sois, que preciso falar com Gertrudinhas.

_ Nem Gertrudinhas fala agora a ninguém, nem Briolanja lhe abre a
porta. Estamos em câmara, salvando a pátria; talvez nem dormir
venhamos a casa; não falamos a ninguém.

_ Mas por isso mesmo, tia Briolanja, por isso mesmo é que é
preciso que eu fale já com Gertrudes. Olhai que sou Vasco.

Mas a velha, surda a rogos e expostulações, surda de seu natural,
e mais surda ainda do palrear incessante com que a si mesma se aturdia os
ouvidos, a velha Briolanja, doida com a idéia de que a viessem roubar
a ela… – E aqui aplicará talvez algum maganão o verso
de Bocage:

Doida por vê-lo, e doida por não vê-lo;

Isto é, doida com o susto de que sim e de que não lhe sucedesse
a fatal aventura – a velha, digo eu, não queria abrir, não
reconhecia a voz de Vasco. O mancebo, despeitado e impaciente, já estava
resolvido a empregar os meios extremosl, quando Gertrudes, que no andar de
cima pensava e acalentava o filho de Aninhas, adivinhando-lhe o coração
que aquele parlamentar de Briolanja podia ser com o seu estudante, desceu
rapidamente a escada interior, e chegando-se à velha:

_ E Jesus, Briolanja! Com que medo estais, mulher! Irei eu à porta,
que me não temo, seja de quem for.

_ Menina, menina, que estais perdida! São eles, menina, gente do popular
que anda por aí de porta em porta roubando matronas e donzelas, fazendo
mil desacordos e desaguisados para porem depois boca… Deus me perdoe, que
não quero dizer em quem. Não abra, menina…

Mas Gertrudes já tinha destrancado a porta, corrido o ferrolho, e
já Vasco estava de um pulo dentro da casa, e nos braços quase
da linda caldeireira, quando a velha, persignando-se, e repetindo jaculatórias
e abrenúncios, tratava ainda de defender a cidadela… Que já
era tomada.

Quando digo “tomada”, inda assim, entenda o conspícuo
leitor que quero falar das obras exteriores; porque Gertrudinhas era moça
de brio e honra; e o que não é mais decerto, mas faz talvez
mais ao caso, Vasco soletrava ainda o inocente a-be-ce dos seus primeiros
amores.

Os dois já não viam nem ouviam senão um ou outro.

_ Vasco!

_ Gertrudes!

_ Quanto me tardaste!

_ Sim?

_ E o que por cá tem ido desde que partiste!

_ Já tudo sei.

_ E o remédio?

_ Esta noite.

_ Esta noite! Mas aninhas ainda está em poder do bispo…

_ Que lhe não tocará num cabelo de sua cabeça.

_ Por que?

_ Porque a meteu no aljube; e no aljube quem governa é Paio Guterres,
que responde por ela.

_ Ai! Não a dou por segura nem assim: o bispo não tem respeito
a nada, e Pêro Cão tem unhas e garras de vivo demônio que
é, para a sacar pelas mesmas grades do aljube.

_ Descansa; nenhum mal lhe sucederá desta vez. E nunca mais, se as
coisas correrem como eu espero. Ouve.

E começaram a cochichar baixinho numa longa conferência, em
que, de vez em quando, lá surdia mais alto uma palavras que outra.
Gertrudes principalmente, que era mulher, filha e amante, não podi
já conter a voz que se não levantasse:

_ E meu pai, se lhe sucede alguma coisa! E tu… ai! Tu, Vasco, se nesses
tumultos… Toma vem cuidado nele e em ti. Jesus! Se te atraiçoa essa
gente? Atraiçoar, não; não são dados a isso. Mas
são tão sujeitos a desanimar, os populares, e a variar de intento.
Tem toda a mesma inconstância de que nos acusam a nós mulheres…
Mas reparo numa coisa, Vasco: estás triste, pensativo, tão fora
do teu natural! Que tens tu?

_ Não sou feliz, Gertrudes.

_ Por que?

_ Oh! Não. Duvidaria antes do sol que me alumia, da terra que me sustém.

_ E dantes dizias tu que eras tão feliz só com essa segurança!
Davas-te por tão venturoso só na idéia de te livrares
do poder de Fr. João e do bispo, para não seres cônego,
e para que meu pai consentisse… Ai Vasco! Agora que tu tens a el-rei por
ti, e a meu tio, e que tudo nos corre como nunca nos atrevemos a imagina-lo,
agora estás tu triste, agora me dizes que não és feliz!

_ E para maior desgraça, nem te posso contar minhas tristezas, nem
te posso dizer… ao menos por agora, não posso.

Ambos puseram os olhos no chão, ambos caíram no desanimado
silêncio da melancolia, que tão fácil se comunica de um
coração ao outro, entre dois que se amam.

Por que estará triste, que segredos tem ele para mim? – Dizei-me,
leitoras belas, se não há neste só pensamento com que
fazer pensativos os mais levianos e adoidados dezesseis anos; descorar as
faces de Hebe; por jaças de feia tristeza na mais alegre esmeralda,
névoas de melancolia na mais risonha safira que se engastem em pestanas
de ouro ou de castanho.

A nossa Gertrudes porém não era loira nem castanha, não
eram de safira nem de esmeralda os seus belos olhos, senão tristemente
negros, negros e longos, como uma longa noite de inverno, tristes como ela,
sujeitos, como ela, a variar de uma intensa e inquieta vivacidade, para a
languidez da moleza que a alterna.

Não vão agora pensar por isto que era morena a minha Gertrudes.
Eu não sou forte em morenas; professo a regra de que – mulher
branca, e homem preto… Enfim, Gertrudes era alva e fina, negra de olhos
e negra de cabelos; e pudera chamar-se Isaura, Matilde, Urraca ou Mumadona
se vivesse em um castelo com ameias e ponte levadiça, porque tinha
fidalguia no corpo, no rosto e na alma para mais do que isso. Chamou-se porém
Gertrudinhas, e morava na rua de Sant’Ana, nasceu burguesa porque assim
tinha de ser. Não é minha culpa. Todos os dias se vêem
maiores desacertos do que este por este mundo.

Já disse lorde Byron que a verdade era muito mais estranha que a ficção.
E é. Sei de princesas fregonas que tresandam á lójia
de mercearia, e tenho visto silfas aéreas balançar-se vaporosamente
num balcão de quinto andar perto de céu.

A aristocracia – não falo aqui do nosso sexo feio, senão
do belo somente – a aristocracia era uma instituição admirável,
se houvesse todos os anos um júri seleto e imparcial para regular quem
havia de entrar para ela e sair dela. Peço para ser vogal do júri…
Mas declaro desde já que não voto em gordas, nem tolas, nem
beatas – mas devotas sim – nem as donzelonas que afetam quinze
anos, nem as invejosas, nem nas mexeriqueiras, nem nas que vão ao banho
de calcinhas e josézinho curto… Nem nas que polcam depois dos trinta
bem feitos, nas que cantam a Saloia, que lêem o Visconde de Arlincourt
ou versos de… Alto! De versos não falo por causa daquele telhado
de vidro que todos sabem.

Pobre da minha Gertrudes! Que ali está tão triste, e triste
o seu Vasco… E eu a entreter-me em semelhantes frioleiras sem lhe acudir!
Bem pudera o sábio Artemidoro, supremo juiz dos andantes historiadores,
castigar-me severamente pelo mau croniqueiro que sou, que abandono meus heróis
em meio de suas aventuras e me vou flanar por essa perpétua feira das
vaidades humanas que tanto me diverte.

Tristes estavam os dois, e nem falavam, nem se olhavam, nem sei se muito
pensavam; mas sentiam doer-lhes a alma daquela dor surda e mole que mói,
mói e não mata – ou se chega a matar, é já
tão depois, que nem se sabe de que morreu esse que dela morre. E os
médicos dizem: “moléstias do coração!”
ou: “apoplexia fulminante no cérebro, no bofe!” –
Morreu de penas, Dr. Tirteafuera, morreu de pesares, Dr. Sangrado , morreu
de aflições e desgostos, Dr. Sintaxe; mas vós não
pescais disso, não curais disso; e a metade dos que morrem, mal da
alma os mata, não do corpo.

Gertrudes, como mulher que era, e com mais elasticidade de ânimo portanto,
foi a primeira que sacudiu fortemente o seu espírito daquele torpor
doloroso, e levantando-se em pé, disse:

_ Vasco, vai, que são horas. Salvas Aninhas e tomo cuidado em meu
pai.

_ Gertrudes, adeus! – disse o estudante ainda melancólico e
pensativo. Mas com a súbita revulsão de espírito, que
é tão fácil e pronta naquelas idades, e tão natural
era a seu gênio alegre, e ao temperamento saltitante de seus nervos,
já da porta onde estava com a mão no ferrolho, voltou atrás,
e sorrindo-lhe os olhos, desanuviada a face, exclamou:

_ Gertrudes, isto são bruxas más que andam entre nós.
Leve a breca feitiços e maus olhados, cachopa! E dois trincos para
o demo das tristezas, que eu não posso viver sem ti, e sem te ver risonha
e alegre como um céu aberto!

_ Meu Vasco!

_ Minha Gertrudes!

_ Querido!

_ Sabes tu, Gertrudes da minha alma, que me tomara eu ver outra vez o descuidado
e insignificante estudantinho que eu era? Que me pesa a minha importante pessoa?
Que reis e bispos, senhores e comunais, todos eles juntos não valem
a pena de se cortar a gente o coração, viver fora de si, e correr
após de fantasmas, a qual mais vão, mais falso, mais enganador?
Se a glória é assim, se a grandeza não é mais
que isto…

_ Querido Vasco, tens razão: mas é da honra da nossa terra
que se trata, da sua liberdade, de salvar uma inocente da vergonha e do opróbrio.
Desafrontar os oprimidos, castigar o orgulho dos opressores, esta é
a glória que não pode ser falsa nem vã. Ânimo,
Vasco, e a eles!

_ A eles me vou, a eles me vou!

E saltando e pulando, e rindo e folgando, pela escada abaixo se foi cantando:

E com esta boa folha,

Por minha dama o juro,

Que não fica mouro vivo

Nem alcaide nesse muro.

Vasco, todo inteiro o nosso estudante Vasco, reverdeceu e reanimou naquele
instante, e se foi voando nas descuidadas asas de sua feliz juventude.

Gertrudes foi à janela para o ver sair e lhe dizer ainda mais um adeus
com os olhos, vê-lo voltar a esquina, e daí outro adeus ainda…
o último: port-scriptum de longa carta de amores, que esperdiçou
páginas e páginas inutilmente… – peço perdão,
minhas senhoras, inutilmente não, mas em repetir e repisar o já
sabido e ressabido – e aproveita agora o derradeiro cantinho do papel
para dizer, o que mais queria, o que só queria dizer, e não
disse, em todo o estirado corpo do imenso e recruzado cartapácio.

XXIV – Briolanja

Admirado estarás, leitor benévolo, se, com a atenção
que ela merece, tens seguido o fio de minha interessante história,
admirado e pasmado deves estar de que no precedente diálogo, assaz
prolixo e demorado como foi, não viesse intrometer-se nunca terceiro
interlocutor, achando-se aí presente em própria pessoa não
menos poderosa e palrante criatura do que tia Briolanja Gomes, o vocabulário
ambulante, a verdadeira prosódia do bairro e de toda a cidade de Porto.
Mas o fato é que aí estava, que não dormia, e que, pela
primeira vez, nos sessenta e sete anos de sua palrada existência, consentiu
em estar em cena como pessoa muda.

Muda! Como? Impossível. A terra segue a sua rotação
ordinária, giram os astros em sua órbita prefixa, os rios correm
para o mar, em coisa alguma se transtornou a ordem da natureza, as imortais
leis do universo continuam a rege-lo:é inexplicável, impossível
a mudez de Briolanja Gomes. Briolanja Gomes respira, Briolanja Gomes fala:
a sua língua, os seus lábios, todo o seu aparelho parlatório
não podem existir sem funcionar.

É assim era. Com uma enorme almofada de renda no colo, encruzada no
estrada ao canto da casa, discriminando bilro de bilro, pregando alfinete
contra alfinete, Briolanja fazia renda e rezava:rezava sua interminável
série de rezas e jaculatórias, que só ela sabia tantas,
tão variadas, e tão eficazes também – porque as
havia em seu receituários para todos os casos emergentes, para todos
os santos possíveis, para todos os dias do ano, e para todas as horas
de cada dia de cada ano.

Naquela espécie de órgão-de-berbeira, havia registros
e cilindros para tudo, nem ele podia cessar jamais, senão parando-lhe
a manivela por que cessasse a vida.

Briolanja pois vivia e rezava:e o que ela rezava agora era um longo e potente
esconjuro contra bruxas, feiticeiras, maus olhados e quebrantos, floreado
de seu latim de abrenúncios e vade-retros, não sem algumas pinceladas
de grego também em Kyrie Eleisons, Christe Eleisons, Ágios e
theos, e outros helenismos de breviário, que a douta Briolanja pronunciava
de modo que nem Oxford nem Cambridge são capazes de mais arrepiar a
língua de Homero e de Virgílio.

Não tardou Gertrudes em reparar no que nós mesmos estamos reparando,
leitor amigo, porque apenas voltou da janela e deu com os olhos na sua dona:

­_ Aí estáveis vós, Briolanja?…e sem ninguém
vos ouvir a fala! Que sucederia neste mundo?

_ Não falo eu, filha? Não, não falo!…mas com quem
devo e posso e mister é que eu fale. Que nos entrou quebranto em casa;
e, ou eu não sou quem sou, nem sei o que sei, ou a poder que eu possa,
o hei de desfazer. E já ele vai talhado, que esse moço…outro
saiu daqui agora do que entrou.

_ Que quereis dizer?

_ Que Vasco, de donde quer que vinha, vinha quebrantado de mau olhar que
lhe deram. Renego eu de bruxas e de seus feitiços! São Bento
as tolha por maus aranhiços peçonhentos que são, e más
teias que tecem! Amém! Mas o rapaz viu a bruxa, isso viu ele; e chupado
vinha delas como das carochas. Kyrie Eleison! Deus fale à minha alma!…
Vai-te e não tornes, e no tornar te afundas. Olha o inimigo o que havia
de enredar! Se lho conhecerá Fr. João da Arrifana, que o benza
e vareje logo com boas varas bentas que lhe sacudam o demo bem sacudido!

_ Jesus, Briolanja, que dizeis? Embruxado o meu pobre Vasco!

_ Embruxado vinha; sou eu que vo-lo digo: na cara lho conheci mal que entrou,
e no olhar despartido que trzia.Não são meus olhos que em tal
se enganem; e por isso lhe pus logo o remédio, que as moí e
as ralei aqui as excomungadas.

_ A quem moestes vós, mulher?

_As bruxas, filha, as bruxas, que as martelei a bom martelar. Pudera não!
Com três da cova de São Patrício de Irlanda, três
do buraco de são Tiago de Compostela, três da Santa Casa Do Loreto,
são nove esconjuros que lhe arrumei, a qual mais for te. Vede-me a
cara com que se ele daqui foi, e dizei-me se era a mesma com que entrou.

_Verdade é que ele…

_ Outro foi, melhor foi. E se em chegando a casa, Fr. João lhe cumprir
com o que deve, grande mal não haverá,porque o rapaz é
bom e temente a Deus. Só aquele bem mau sestro que tem, é que…

­_ Tem mau sestro! Qual, mulher?

_ Aquela cisma de querer ir às covas de Salamanca. Ai menina! Tirai-lho
da cabeça, que é tentação visível de bruxaria,
e mostra jeito para as más artes do demônio.

_ Briolanja, Briolanja!…_ exclamou de repente Gertrudes, interrompendo-a:
que ruído é este? Tanto tropel de povo! Que teremos agora? Ai;
se… Mas já!…

Era na verdade tremendo o estampido que subtamente estalou e foi ecoando
pela sinuosa rua, com um rebôo de vozes, de aclamações
tumultuárias, que faziam tremer os velhos edifícios.

Acudiram ambas à janela.O tumulto era grande; mas distintamente se
ouvia, por entre o confuso alarido das gentes, um brado quase regular de:

_Viva o nosso capitão! Este queremos, e não outro.

Depois outras vozes, que também pareciam concertadas, gritavam:

_ O estendarte da Virgem, o nosso estendarte que o tome ele!

_ Vamos busca-lo. Vamos tirá-lo aquele potrosos dos juízes,
aqueles capões sem honra nem vergonha!

_ Que beijaram a mão do bispo!…

_Em vez de o emprazar para que nos fizesse justiça.

_ Abaixo com eles, e viva o nosso capitão!

_ Viva el-rei D. Pedro!

_ Viva, viva, viva!

Aqui os vivas foram estrondosos e furibundos. Bem se via que eram dados a
quem tinha poder para os aceitar e retribuir.

Depois dos vivas, os morras:é do ritual.

_ Morra Pero Cão!

_ Morra.

_ E o bispo enforcado.

_ com a cabeça para baixo, por causa dos santos óleos.

_ Isso, rapazes. Respeito à santa madre Igreja,não tocar na
cabeça do bispo, que é sagrada.

_ No pescoço, sim. Ah, ah,ah!

Ia crescendo o tumulto, e iam-se ouvindo mais claros e distintos os brados
da multidão, porque ela se ia aproximando do Arco da Senhora Sant’Ana,
onde parece que todo o movimento daquele dia tinha de concentrar-se: como
se a santa, ofendida pelo inaudito desacato que ali se tinha cometido, ali
quisesse ver rebentar os tremendos efeitos de sua justa indignação.

_ Ao Arco! _ bradou uma voz de estendor_ AO Arco da santa! Ali o haveremos
de alevantar e jurar por nosso caudilho e capitão.

_ Ao Arco! _ respondeu a multidão.

E os arames estridentes dos caldeireiros, que de novo se tinham insurgido,
retiniram desacordemente; as padeiras de Avintes e de Valongo traçaram
as capas e bateram os socos. E os gaiatos, raça heteróclita
de todos os tempos e de todos os países, uivavam, assoviavam e tripudiavam,adiante,atrás,
em derredor da bernarda, suas delícias.

A chusma, entalada nas estreitas ruas por onde vinha, redobrava de ímpeto
e refervia no aperto; como rio caudaloso que,oprimido em acanhado leito de
rochedos, muge e brada turbulento, apressurando sua corrente para o plaino,
onde possa espreguiçar as águas à vontade, e folgar desafrontado
com as areias da campina.

XXV – Revolução

No intervalo se sossego ou de reflexão que a revolta tinha tido desde
que se aquietara às portas da Sé com as promessas de Paio Guterres,
era bem visível agora que ela se tinha estado organizável uma
revolta_ e que se tinha convertido em revolução.

Nascida, como todas as revoluções verdadeiras e conscienciosas,
de uma forte, legítima e justa indignação popular, nascida
sem parteiras nem comadres, pelo mero e espontâneo impulso da natureza,
_ tinham depois tido tempo as ditas comadres e parteiras de a pensar e enfaixar
a seu modo.Não tinha mais força agora do que quando nascera;
bem visto, menor seria talvez. Mas então sem objeto distinto, sem direção
bem aplicada, as suas forças originais derramavam-se e perdiam-se como
as de um grande rio no areal que o serve. Agora, por menores que fossem, vinham
concentradas e dirigidas a um ponto dado, o poder de sua presença era
imenso, capaz de mover montanhas.

Os irmãos Vaz tinham trabalhado bem; o nome de el-rei valia muito,
as suas promessas eram formais e poistivas; enfim, repito, a revolta estava
feita revolução.

Já a mesma marcha e compostura da multidão mostrava outro aspecto;
os gritos e aclamações tinham certo regulamento; e as próprias
vozes do arame agitador, que de manhã retiniam cada uma para seu lado,
se misturavam, sem tom nem som, sem compasso nem harmonia, com o vozear do
povo, agora tinham seu tal ou qual concertante, tocavam mais fortes nos cheios,
nos coros, mais piano quando, para assim dizer, acompanhavam alguma jaculatória
revolucionária de poucas vozes; e faziam enfim silêncio, tinham
seus compassos de espera, quando algum orador popular executava um solo que
devia ser bem distintamente ouvido.

À frente do tumulto marchava uma espécie de São Cristóvão,
homem alto e menbrudo, de grenha embaraçada e ruiva, as mangas da camisa
arregaçadas e manchadas de sangue, nu de braços e pernas, e
o cutelo pendente ao lado. Es te era Brás Marchante, o carniceiro e
fressureiro de ao pé da Sé, que levava hasteada em alto poste
a cabeça ensangüentada de um enorme dogue ou cão de fila,
coroada de uma mitra de cartão bastante bem feita, e daí flutuando
em guisa de pendão, muitas varas de assopradas tripas, antigo símbolo
de alcunha e de glória, de chacota e de presunção, para
a nossa boa terra. O meio horrível, meio burlesco, estendarte, vinha
rodeado de uma multidão de gaiatos, que eram como os tiples daquele
coro infernal, as requintas daquela orquestra diabólica: todos eles,
uns ganiam outros uivavam, outros ladravam e latiam, e logo dirigiam mil injúrias,
chufas e vitupérios à mitrada cabeça do dogue. Alguns
eram ditos graciosos, não flatos de espírito, e que mereciam
nozes e confeitos em um triunfo romano; outros, pragas horríveis que
faziam arrepiar as carnes. De vez em quando a solta massa desta ladainha de
chufas e maldições se reunia e concentrava numa trova, grosseira
sim mas feita de arte, e que bem mostrava não ser inteiramente espontânea
aquela demonstração popular, senão que já tinha
sua direção e contra-regra.

Ei-la aqui a trova – ou o hino para falar em língua revolucionária
moderna:

Béu, béu, béu! Tira o chapéu,

Que aqui vai dom Pêro Cão!

Hão, hão, hão! Só canzarrão!

Tão ladrão é o bispo como o Pêro Cão.

Cain, cain, cain!

Diz-lhe o bispo assim:

_ Por que ganes tu, meu fiel mastim?

São os caldeireiros que vem sobre mim.

_ Deixa-os, deixa-os, Pêro Cão.

Disse o bispo ao mau ladrão:

Que eu te deito esta benção,

E te faço bispo cão.

Se eu sou bispo barregão,

Bispo mouro e mau cristão,

Que importa que o seja um cão?

Hão,hão, hão!

Bispo temos barregão:

Que importa que o seja um cão?

Béu, béu, béu! Tira o chapéu,

Que aqui vem dom Pêro Cão!

Hão, hão, hão, só canzarrão!

Tão ladrão é o bispo como o Pêro Cão.

E aqui um martelar de arames e latões capaz de encher as medidas,
de saciar a sede deste metais, bem pouco preciosos, que devora as entranhas
do nosso amigo Meyerbeer, cujo tímpano escaldado e gretado creio que
nem já o carrilhão de Mafra era capaz de fazer vibrar.

Atrás dos gaiatos, cantores destas loas, marchavam, como de razão,
os menestréis caldeireiros. Estes, como digo, acompanhavam e fundamentavam
com seus instrumentos a música vocal da revolta.

Bem sabes, amigo leitor, que nós não fazemos revoluções,
contra-revoluções ou coisa que o valha, sem hino. Somos uma
nação harmônica, essencialmente harmônica, harmônica
a ponto que, tanto mais se acha tudo em desarmonia e desacordo entre nós,
tanto mais precisamos de nos mover ao compasso de patrióticas cadências.

Nenhum povo do mundo se pode gabar de possuir tão rica e vasta coleção
de hinos patrióticos; tão belos todos, tão originais,
tão excitantes, que dariam inveja ao próprio Tirteu, ao demagogo
Alceu, e cujas palavras – não somenos das notas – deviam
passar à posteridade gravadas nas nádegas das sereias do Passeio
público de Lisboa, ou na fachada do teatro Agrião, ou embrechadas
– que mais seguro era ainda – pela mais be]la das belas artes
Eusébias, no mosaico do Rocio. Seja onde for, mas quero vê-las
consubstanciadas, associadas por qualquer modo, a um dos grandes monumentos
de arte contemporânea que hão de imortalizar o século
dos nossos Péricles.

Seguia-se a trubamulta do povo armado; uns de cota e celada, outros só
de morrião. Foice este, lança aquele, espada estoutro; de aqui
alabarda, de além vinha a escuma ou azevã.

Barbeiro houve que, sem esperar três séculos por D. Quixote,
tinha descoberto que a sua bacia era o elmo de Mambrino, e a encaixara na
cabeça. Tal taberneiro levava no mesmo sítio um funil; panelas
muita gente. Havia um sem-número de tachos servindo de rodelas. O tipo
caldeireiro da revolta dominava e predominava em tudo visivelmente. No meio
deste labirinto de gente armada, mal armada de suas armas exteriores, fortemente
armada da energia interna de sua alma, do seu rancor, e para dizer toda a
verdade, da imensa justiça de sua causa – claramente se distinguia
um grupo mais saliente e luzido que os outros todos, pela formalidade e elegância
do traje em uns, pela regularidade da armadura me outros. Era quase toda a
companhia dos alabardeiros do bispo, que Rui Vaz e Garcia Vaz tinham feito
desertar para as fileiras populares.

E à frente destes iam os dois irmãos, levando entre si um mancebo
guapamente vestido, mas de um traja meio de galã meio de clérigo,
o traje de um elegante escolar daqueles tempo – traduzamos em língua
de hoje: um estudante leão.

Para logo o conheceu Gertrudes, que estava vendo passar tudo isto da sua
janela, e um grande susto a tomou ao ver realizado o concerto de seus planos:
como sempre sucede aos maiores entusiastas quando, chegado o momento decisivo,
vêem, no perigo até ali buscado e desejado, aqueles a quem mais
querem.

Também não tardou a reconhece-lo Briolanja; e acelerando nos
dedos o movimento das contas, quase sem interrupção das ave-marias
e padre-nossos que ao mesmo tempo rosnava, aia misturando ralhos e rezas,
como era seu modo.

_ Que estais no céu, santificado… Não no disse eu, menina?
Seja o vosso nome… Ele é, Vasco!… Venha a nós o vosso reino…
Gertrudinhas, filha… Seja feita a vossa vontade… Fr. João da Arrifana
que o não benzeu… Assim na terra como no céu… Pobre rapaz!
Cair no poder dessa gente?… Gloria patri et filio… Ai filho, quem te há
de tirar das mãos desses fariseus!…

E assim continuou em seus parêntesis a tia Briolanja, sem quebrar o
fio da coroa que rezava, nem deixar as coisas dês-te mundo, que tão
fortemente a preocupavam sempre, ape­sar do outro.

Estava a rua toda apinhada de gente. Defronte do arco e para o lado de que
está o altar da Santa, os archeiros fize­ram alto e conseguiram
arredar a espessura da multidão.

Rui Vaz correu o ferrolho da porta de Aninhas, e subiu com Vasco ao primeiro
andar, chegou à janela com êle, e fazendo daí rostrum
ou tribuna de suas arengas:

— Aqui — bradou — aqui, meus amigos, diante deste ben­dito
arco, na presença da santa mãe da mãe de Deus, aqui onde
o agravo foi feito, aqui juremos a vingança dele, e aqui demos preito
e homenagem ao caudilho que escolher­mos para nos dirigir e capitanear.

— Bem, bem! isto é falar.

— Bons amigos e vizinhos, juremos obedecer-lhe em tudo e por tudo.

— Isso agora muito é — disse uma voz resmungona dentre
as turbas.

— Em tudo, em tudo! — clamou a multidão entusiasmada e
sem saber o que clamava.

Enquanto ele fôr por nós — continuou o dos escrúpu­los;
— e tratar da nossa fazenda como cumprir…

— Está visto: pudera!

— E se não, não.

— E se não, não.

— Alto lá — acudiu Rui Vaz, que viu começar a sacudi­rem-se
pelos ares as ressoantes bexigas da doidice popular:

— Alto lá! Se já começam as desconfianças
e ciúmes que sempre danaram e perderam quanto é do povo, e por
fim o entregam fraco, dividido e exausto, em mãos dos poderosos, que
não precisam mais trabalho para dominar sôbre nós, senão
esperar-lhe a vez, que nunca vem tarde… Então deixemo-nos disto.
Péro Cão que nos roube quanto quiser, o bispo que nos leve quantas
mulheres e filhas se lhe anto­lharem… Aninhas que se deixe estar no
paço ou no al­jube ou onde quer que está.., E Afonso de
Companhã que se los coma com pan, como diz o castelhano… Ou que os
doure e os traga por fora do barrete, como fazem senhores quando el-rei lhos
prega… Cada um por si e Deus por todos. Quem lhe comer que se coce; e a
quem lhe arma­rem a testa, que marre onde quiser e em quem quiser; que
eu, por mim, já me não quero meter em danças que hão
de acabar em certo baile de três paus que eu sei, e Pêro Cão
batendo o compasso no meu cachaço, para mais sabor lhe dar.

Um murmúrio geral de descontentamento correu pela multidão.

— Nada, meus amigos — continuou o singelo orador, sin­gelo,
mas arteiro ou artista bastante para conhecer o efeito que tinha produzido:
— Nada, nada, aqui não há senão pe­gar ou largar.
Precisamos de quem nos acaudilhe nesta ar­riscada empresa em que nos metemos.
Os nossos juizes e vereadores são os que sabeis. Fidalgos nâo
os queremos, nem aqui os há. Os nossos não são para isso.
Sabeis o que esta tarde vos disse?… O segredo?…

— É verdade, o segredo. Que vem ai…

— Quem é que vem, quem é que vem?

— Silêncio! que ainda não deu meia-noite.

Mas de ouvido em ouvido, e no maior segredo. foi passan­do a grande nova
de que el-rei D. Pedro estava em Grijó, e de que aquela noite entraria
disfarçado na cidade, se o povo se apoderasse do castelo da Sé.

— Pois bem — continuou Rui Vaz: — minha tenção
era que escolhêssemos um mancebo capaz, amigo de el-rei, com ânimo
e coração para se pôr à nossa frente, e puxar pela
espada ou pela língua, segundo for mister. Mas corno o não querem…

— Queremos, queremos.

— Pois, se o quereis, e se ele nos há de guiar e governar enquanto
durar esta pendência, é preciso que tenha poder, e que lhe obedeçamos
todos. Juramos, ou não juramos obe­decer-lhe?

— Juramos, sim, juramos.

— E que por dá cá aquela palha, porque se foi assim ou
se foi assado, não havemos de entrar em questões e parlamen­tos,
e a esgrimir de língua e de parola, quando é preciso es­grimir
coa espada?

— Sim, também juramos. Tem razão Rui Vaz! Viva o nosso
capitão!

Qual outro Marco Antônio, Rui Vaz vinha preparado pa­ra esta cena
da investidura. Mais feliz porem ou mais prudente que o romano orador, ele
não ofendeu, com o símbolo do poder que queria conferir, a ciosa
majestade das turbas soberanas. Sacou de um pano, em que a trazia envolta,
uma formidável espada de cavaleiro, cingiu-a à cintura de Vasco,
desembainhou-a depois, pôs-lha na mão; e inclinan­do-se como
quem lhe fazia preito disse para ele:

— Tomai esta espada, senhor Vasco, e jurai pela sua benta cruz, pela
Virgem padroeira da nossa cidade, e pela bem-aventurada Sant’Ana que
nos ouve, jurai de vingar nossa afronta e de punir por nossos direitos.

O que neste momento passava pelo ânimo de Vasco, não é
fácil dizê-lo: tantos eram e tanto se lhe atropelavam os pensamentos
encontrados de seu espírito! Gertrudes porem, Gertrudes que estava
defronte, cujos olhos animados, cuja fisionomia resplandecente diziam o quanto
ela triunfava naquela ovação popular do seu amante — Gertrudes
domi­nava tudo, seu amor vencia todo outro sentimento.

Ver-se ele, estudantinho sem nome ainda, elevado de re­pente a tanta
autoridade e poder na presença daquela mes­ma cujos olhos mais
queria brilhar! – – – Esta grande rea­lidade têm os fátuos
sonhos da ambição; este é verdadeiro e certo gozo que
vale bem a pena descontar depois por dias e anos de cruéis desapontamentos.

O nosso estudante sentiu por todo o seu corpo aquele es­tremeção
nervoso que dá a faísca elétrica da ambição,
quando é a nobreza, quando é a poesia dos sentimentos elevados
que sobre nós a descarrega. Os olhos ardentes, o rosto afo­gueado,
o coração batendo-lhe forte na arca do peito, levan­tou
o braço da espada e erguendo-a acima da cabeça, pro­nunciou
com voz sonora e vibrante:

— Que me ouça Deus e me ajude! Assim juro aqui, on­de a
nossa cidade foi desonrada e insultada, diante da santa imagem que nos ouve…
Aqui onde está o melhor de meu coração, e onde eu quisera
ter mil vidas para asselar com elas a minha fé e o meu juramento —
juro que hei de levar a cabo esta empresa, desafrontar os nossos vizinhos
e amigos, vingar a nossa injúria, e restituir a liberdade ao povo opri­mido­.

O gesto, o som de voz, o ar inspirado e comovido do jo­vem orador —
mais ainda que as suas palavras — entusiasma­ram a multidão.
Uma torrente de vivas, de aplausos furio­sos rebentou do seio das turbas,
e foi a solene aceitação do juramento com que o tomaram por
seu caudilho e capitão.

— Agora ácasa do conselho! — disse Rui Vaz. — Vamos
buscar o nosso pendão, o estendarte da Virgem.

— Vamos! — bradaram todos.

— E de caminho, — disse um daqueles salvadores da pátria
que nunca faltam para dar alvitres infames quando lhes pa­rece que o podem
fazer sem risco de suas pessoas: — de ca­minho deitaremos das janelas
abaixo os nossos potrosos juizes.

— Quem foi esse que falou? — bradou Vasco: — quero ver-lhe
a cara, e que saia bem a claro com a sua infâmia.

— Este foi, — disseram três robustos caldeireiros que para
logo filaram e sacaram a terreiro a ingoiada e mal roupida figura de um alfaiate
remendão que todos conheciam por viver das migalhas do tinelo do bispo,
e por ser quem mais se curvava a caía de ambos os joelhos no chão
para receber a apostólica bênção quando o despótico
prelado sucedia de passar. Também logo ali se soube — o que é
que se não sabe neste mundo! — que morava numas casinhas de Rio­-de-Vila
que lhe dava a caridade de mestre Martim, um dos tais juizes por ele condenados
á Rocha Tarpéia, a troco de um mau chapeirão que alguma
vez lhe fazia, de algum fer­ragoulo velho que por acaso lhe consertava.

— Que me desarmem esse mau homem — disse Vasco —e mo prendam.
O povo não quer tais defensores.

— Bem dito! E viva o nosso capitão!

Se todos os chefes populares soubessem e ousassem repri­mir assim os
aduladores das más paixões, os sicofantas do povo — que
os há nas praças como nos paços, e onde quer que está
o poder, estão eles — há muito que o despotismo nãoexistia
na terra. Bem nasce em todos os climas a se­mente da liberdade; mas desde
que lhe germinam as folhas seminais, há de haver um Washington que
a monde, a am­pare, ou os espinhos são tantos logo, tantos os cardos
e abro­lhos, que a afogam.

Gertrudes, a nossa entusiasta Gertrudes, calam-lhe as lá­grimas
de satisfação ao ver como o seu Vasco sabia usar ge­neroso
de um poder de que tãonatural é sempre abusar-se.

Sorriu-se para ela o amante, e fazendo-lhe um sinal de adeus que só
dos dois foi percebido, alçou a voz para as turbas e clamou:

— Marchemos, amigos. Ordem! e que não haja desman­do, nem
se faça desaguisado a ninguém.

— Viva, viva! Marchemos! — respondeu a multidão entu­siasmada.

Vasco desceu rapidamente a escada da casa de Aninhas; qual foi a sua admiração,
ao chegar à porta da rua, de en­contrar ali aparelhado e pronto,
o seu nobre, o seu querido alazão que ainda há pouco entregara
ao palafreneiro do bis­po, e que tãolonge estava de o tornar a
ver tãocedo!

Não foi por certo maior a alegria de Palmeirim ou de Amadis, ou do
próprio Florismarte de Hircânia, quando, ao sair de longo encantamento,
ao desembocar de alguma ca­verna de leões, de algum antro de ogres
polifemos, davam com seus queridos ginetes que tinham deixado dali umas duas
ou três mil léguas, e agora lhes apareciam selados, em­bridados
e prontos, batendo o pé de contentamento, e sacu­dindo as flutuantes
clinas com o prazer de tornarem ver seus donos.— Como aqui, meu nobre
alazão! — dizia Vasco amiman­do-o, correndo-lhe a mão
pelo asseado colo: — meu destemi­do, meu valente! Quem te tornou
a minhas mãos em tãoboa hora e quando mais te desejava e te
preciso?

— Eu, que o não deixei levar para o paço — respondeu
Garcia Vaz. — Pudera! Em tempo de guerra, cavalos são muniçôes
e bastimento de guerra, não se deixam passar para o inimigo. O nosso
capitão não nos havia de comandar a pé; e outro potro
como este não o há em toda a cidade, nem talvez em toda a comarca
de Entre-Douro-e-Minho. Sabe­mos da afeição que lhe tendes…
E assim, boa presa! —Largue-lhe as rédeas, tia.

Vasco, enlevado em mirar o seu querido alazão, não havia até
ali atentado no estranho pagem em que lhe tinha a ré­dea. Era uma
velha muito velha, mais velha que o seu recosido mantéu, encolhida,
corcovada, e com a cabeça to­da envolvida num capuz enorme cuja
extremidade lhe caía pelas costas, como capuz de dó; e ela atordoada
num cajado retorcido e enverrugado como ela; uma verdadeira bruxa em pele
e osso — não possodizer em carne, porque a não tinha.

— Sim, sim — regougou a velha: — as rédeas lhe largo
e em bem as solto a quem tão bem as sabe tomar e governar! Benza-o
Deus! E que gentil moço que ele é, o nosso capi­tão!

Mal tinha dito a velha as primeiras palavras, que já o bom do estudante,
suspenso, tomado como de um assombra­mento repentino, punha nela os olhos
espantados, e nem já o alazão, nem mais nada já via de
quanto o cercava.

— Tomai, tomai as rédeas — disse a velha com uma certa
inflexão significativa na voz, que o advertiu de pôr tento em
si: — tomai, e cavalgai, que são horas.

Ninguém mais percebeu esta inteligência que passava en­tre
a velha mendiga e o caudilho da revolta. Ele caiu em si com efeito, montou
rapidamente a cavalo, e tomando a frente de seu pouco ordenado exército,
se pôs em marcha para as antigas casas do Senado portugalense.

— Bendito sejas e bendito vás, — ficou murmurando a velha
— que assim enches de luz e de alegria os olhos da mãe que te
criou!

E sumindo-se entre a multidão, e por alguma viela bem esconsa se escapou,
não sei por onde nem para donde, que ninguém mais a tornou a
ver.

XXVI – E Aninhas?

E Aninhas? E a pobre Aninhas que está no aljube? Que é feito
dela, senhor historiador? Deixa-se assim por tanto tempo nas asquerosas enxovias
de uma prisão a uma bela ra­pariga tão interessante, tãoboa,
a amiga da nossa Gertrudes, a Helena enfim desta Tróia, por cujo roubo
arde já ainvicta cidade nas labaredas da revolta, da guerra civil quase?
E passam-se s e s — a qual mais peque­no, é verdade, mas
são muitos — sem nos dizer o descuidado cronista o que é
feito dela?

Contesto, amigo leitor: a culpa não é minha. Cervantes não
podia ser responsável dos descuidos e lapsos de Cid Ha­mete Benengeli.
Se Dulcinéia está mal-encantada, e tãodepressa a vemos
trotando na sua burra pelos campos de To­boso, como passeando com suas
donzelas nos deliciosos jar­dins da Cova de Montezinos; se o nosso amigo
Sancho apa­rece aqui montado no seu ruço, que duas páginas
antes lhe subtraira tão sutilmente dentre os calções
o honrado Ginez de Passamonte — é o cronista mouro, não
o seu ortodoxo editor, quem tem a culpa desses lapsos.

O mesmo me sucede a mim com esta verídica história do meu Arco.
Traduzo umas vezes, copio outras, segundo a vetustade da linguagem o pede,
no precioso Ms. que tive a fortuna de achar. E se alguma reflexão ou
ponderação mi­nha lhe ajunto em forma de glosa, nunca me
meti a alterar a ordem da história, e sigo fielmente o douto Grilo
a quem devemos estas incomparáveis memórias que tanto ilustram
e engrandecem a nossa cidade e a história do senado e povo portucalense.

Tenha pois paciência a bela Aninhas; por ela e com ela a tenha o leitor
benévolo, que antes de corrermos os ferro­lhos e de abrirmos os
cadeados do aljube episcopal, temos de subir outra vez as escadas do paço,
de atravessar suas longas salas, e de tornar a entrar naquele misterioso e
reca­tado gabinete onde, pouco há, vimos revestir-se da púrpura
e arminhos, adornar-se de todas as fastosas insígnias da au­toridade
eclesiástica e feudal o arrogante senhor da nossa terra.

Antes que, nas vizinhas ruas de Sant’Ana e Banharia, se passassem os
estrepitosos acontecimentos que nestes últimos s foram relatados, tinha
acabado em Gala, na antiga capela de São Marcos, da outra banda do
rio, a solenidade religiosa do dia: e cônegos, capelães, cantores,
ministros su­periores e inferiores, cada qual como pôde, e fora
de toda a forma de procissão, como é de uso, tinham voltado
para a cidade. Nem esperaram pelo costumado jantar que as au­toridades
do Burgo-novo eram teúdas de dar, senão por foro escrito, ao
menos por usança e vêzo antigo: jantar que lhes valia os três
dutos de turíbulo e a jaculatória de Boa gente, boa gente que
na primeira parte desta história menciona­mos, e que ainda em nossos
dias se davam e rezavam, como aí refiro. Pois desta vez a boa gente
de Vila-nova ou Burgo­-novo, lá se comeria as suas fanecas e azevias,
porque nem um menino do côro, nem o maceiro do cabido lhe quis fazer
honra ao seu jantar das ladainhas: tão assaralhopados anda­vam
todos, e tanta pressa tinham de vir meter-se em suas casas.

O bispo fora dos primeiros a retirar-se. Cavalgando sua mula branca, de rica
gualdrapa de veludo carmesim com passamanes e franjas de ouro, acompanhado
de seu alcaide-mor que trazia à direita, seguido de muitos ovençais,
fami­liares as mais pessoas de seu trem e estado secular, todos ar­mados
— e ele com todos— entrara senhor temido e podero­so na sua
boa cidade do Porto, de donde, há pouco, saíra pastor de povos
e apostólico prelado. Passou o rio na sua grande barca, dita a “barca
da Sé”, subiu até o paço, deu ordem ao alcaide-mor
para que tivesse tudo em armas e em som de guerra, mas caladamente e que o
não suspeitassem na cidade; e ele tornou para o seu gabinete.

— Que me chamem Fr. João, que me avisem em voltando Vasco, e
por agora que me deixem só. Ficai vós, Pêro Cão.

Assim disse o bispo, entrando para o seu gabinete: e as­sim fizeram todos
como ele disse.

Só está o príncipe da igreja. Só com o seu primeiro
mi­nistro, e esperando o seu principal conselheiro, O prelado parece alegre
e de bom ânimo, Pêro Cão menos triste que esta manhã.
Talvez ainda na face patibular do ministro, se possa divisar uma tentativa
de sorriso; amarelo sempre, é verdade, e torcido de ruim torcer…
Mas não entravam de outros sorrisos naquela cara.

— Com que, — disse o amo, reclinando-se a gosto no alto espaldar
de sua cadeira confortável. . . tão confortável quan­to
cadeira o podia ser no décimo quarto século. — Com que,
estás melhor, Pêro Cão, com menos medo?

— Agora vamos andando: a arraia-miúda sossegou. Mas esteve danada!

— Se lhe tinhas mordido tu!

— Morderia, morderia: mas se fui eu que os danei, al­guém
me danou a mim primeiro.

— Não desatines, Pêro. Estás por saber ainda que
há ali­márias ferozes e cervais, de tão ruim sangue
e tão perversos humores, que, sem que a baba de outro nenhum animal
as toque, com sua própria maldade enraivecem e se danam?

__ Hum!

— Hum! Isso mesmo: rosnas como dogue velho e comi­do de tua má
rabuge peçonhenta. Eu, é verdade, que te di­go: “Fila!”
e tu filas: cão és, para isso te comprei. Mas não te
digo: “Rasga, fere, despedaça!” como tu fazes. Por tua
conta e risco o fazes, à lei da tua má e perversa natureza que
nunca pude domar nem ensinar. E olha que disse:

“por tua conta e risco’. Risco disse, Pêro Cão;
e desejo que saibas que eu te não torno a livrar das garras do povo,
como hoje fiz. Para outra vez lá te avirás com eles. Que te
en­forquem à sua guisa e que me deixem.

— Enforcar!

— Enforcar. Pois que pensas tu, homem? Entre esse pescoço e
a corda de esparto há uma atração tão visível
e poderosa, que, mais dia menos dia, Pêro, não te vejo outro
remédio senão ires bailar onde tens feito bailar a tantos.

— Tendes um modo de gracejar!… E quando estais de bom humor, dizeis
coisas que de verdade fazem rir a gente!

E riu… Pêro Cão riu. Mas que riso! Se a boca do in­ferno
rir, como eu espero e creio, quando por ela entrarem certos maganões
que nós sabemos, há de ser assim que ela há de rir.

— Não gracejo — tornou o bispo, — falo sério
e de muitas veras. Faze por ter amigos no povo, porque se eles me vem outra
vez pedir essa feia cabeça. ela é tão feia, Pêro,
que te juro…

— Para me eu fazer amigos no povo… é a coisa mais fá­cil
que há.

— Como assim?

— É fazer-me eu inimigo de.

— De quem?

— Inimigo vosso.

— Ah!

— Como fez Rui Vaz e seu irmão Garcia Vaz, que fugiram do paço,
como sabeis, e se desquitaram de homens vossos; e não queria senão
que vísseis as palminhas em que os traz o povo por essa cidade.

— Os traidores! — exclamou o bispo, levantando-se e pas­eando
a grandes passos a cólera que o fazia saltar. — Os traidores!…
Olho neles, meu Pêro Cão. E em sendo tem­po, e que eu te
diga: “Fila”

— Não filarei.

— Como? não filarás!

— Hum!

— Ah! também tu?…

— Eu não quero ser enforcado.

— Não? Pois o teu querer faz pouco ao caso: porque se­ja
o povo que te pendure, como Judas, no cano de algu­ma figueira; ou eu
que te mande balouçar em certa árvore seca de três paus
— a coisa não faz muita diferença para ti, creio eu. E
de um modo ou de outro, a doença de que hás de morrer, já
a sabes tu. Assenta a tua alma nisso, deixa-a nas mãos do demo, cuja
é desde que nasceste; e vamos a outro conto.

Pêro Cão tornou a sorrir de seu verdadeiro sorriso de en­forcado:
por modo que lhe quadrou o dilema do bispo, e o deixou tranquilo, O prelado
fixou nele seu olho perscru­tador, e sentando-se outra vez mais sossegado,
disse:

— Toma esta chave, abre aquela porta, e vai, pela pas­sagem oculta
que sabes, às enxovias do aljube.

— E a quem quereis que?… — tornou o monstro, esbu­galhando-se-lhe
os olhos de hiena, e completando a reticên­cia com um acionado horrível
que significava estrangular; o sonho constante, o ideal sempre desejado de
sua negra vida.

— A ninguém, magarefe — respondeu o bispo assustado:

— A ninguém! E sobre tua cabeça, que te não atrevas
a tocar um só cabelo da sua.

— Ah! já entendo, — tornou o canibal, adoçando
— que adoçar! — numa expressão de malicia crapulosa
os enrija­dos músculos daquela cara de leopardo: — Já
entendo. — E piscou obscenamente um olho injetado de sangue que fazia
mal ver assim. Oh! antes vê-lo arder com a sanha da car­nificina,
do que amolgar e derreter-se asquerosamente na torpe e brutal lascívia
que aí chameja agora… — Já enten­do: quereis que
a traga com boas palavras, que lhe diga…

— Não quero que lhe digas nada, senão que mando eu que
venha à minha presença.

— E se não quiser por bem, já se sabe…

— Nada de violências, dogue! Nem são precisas. Virá
logo: sei que o deseja.

— Ah! ah! se tendes um jeito, uma lábia para as levar…

— Silêncio, bufão, e andar.

A má besta descaiu o focinho e a orelha com esta rebuta­da do
dono; e levantando o pano-de-rás no sítio que ele bem conhecia,
abriu a porta secreta e desapareceu nas trevas da obscura escada de caracol
que levava aos subterrâneos do pa­ço, às enxovias
do aljube e aos outros criptos episcopais, só dele sabidos e de seu
amo, que a ninguém mais confiava aquela chave nem revelava os negros
mistérios que ela fe­chava.

XXVII – Pecados Velhos

Só ficou o bispo, só com seus maus — e por que não
tam­bém com algum de seus bons pensamentos? Rara é a alma
perdida que, na solidão e longe do olho do mundo, não sen­te,
quando menos, picar-lhe o remorso numa asa do cora­ção,
e dizer-lhe: Que fazes!… — ou: Que fizeste!… O remorso é
o bom pensamento dos maus; é o último dom que à despedida
nos deixa, quando se vê obrigado a desamparar-nos, o anjo que desde
o berço tomou conta de nossa vida. E jamais o instinto, o desejo do
bem se chega a apagar de todo no homem: é o fogo santo que até
o derradeiro ins­tante o alimenta. Se amortiça com a cinza das
maldades, se não vemos a sua luz com o negrume dos vícios, ele
lá está contudo sempre vivo no fundo do coração.
Um sopro que de longe lhe dê o anjo que de nós fugiu, e que do
céu nos contempla com lágrimas de dó e de entranhável
piedade. um sopro só basta para o reanimar e avivar.

Oh! e na solidão é que mais sentimos o sopro celeste avi­var
a santa luz de nossa alma. Pena do mal feito, temor do mal que se intenta
fazer, saudades da perdida inocência, fastio dos tristes gozos do vício,
travor amargo dos crimino­sas deleites, suaves recordações
da infância, lembranças dos conselhos paternos… E vós,
mais que tudo, queridas memórias da mãe que nos teve nos braços,
o que sois vós todos, pensamentos que acudis nas horas da solidão?
Oh! que sois senão o lampejar que se anima, o luzir que se revive da
ce­leste luz do Bem que Deus pôs inextinguível em nossa alma?

Este homem, que desonra o augusto caráter de sacerdote e de prelado,
que enxovalha a mitra do apostolado evangé­lico nas torpezas de
Babilônia, e com a mesma mão com que toma, no cálice,
o sangue de Cristo para o beber no altar, empunha a taça das prostituições
do Egito, para a sorver nas temulentas orgias dos lupanares — este homem
sagrado ao pé da cruz no alto do Calvário, e que desceu aos
vales de Sodoma e Gomorra, a banhar-se no lago de betume arden­te, queimando
em suas mãos excomungadas o óleo santo com que o ungiram em
pontífice do Crucificado, este gran­de criminal, este pecador escandaloso
não era contudo um monstro: era una homem perdido do vício,
cego do poder, corruto pela riqueza, gafo da má lepra que, naqueles
tem­pos de soltura e prepotências lavrava tão geral pelos
pode­rosos da terra, seculares e eclesiásticos, a lepra era a mesma.
Piores foram depois os Bórgias, e sentaram-se na cadeira de São
Pedro: a Sé portucalense não chegou a ver, como a ro­mana,
Nero e Heliogabalo com a cruz ao peito, a mitra —ou a tiara —
na cabeça, e os fiéis prostrados aos seus pés.

Não. E desta mesma devassidão que tanto nos escanda­liza,
e ainda hoje faz execrar a memória deste mau bispo, raros, raríssimos
exemplos houve na nossa terra. O que se­rá daqui em diante não
sei, desde que o episcopado se tornou eletivo — dizem as revelações
do mano Licurgo — o conclave noturno, e que os cardeais dele são
o irmão terrível, e os irmãos mais ou menos vigilantes
que têm o exclusivo de velar pela salvação e salvatério
da Igreja e do Estado. Não sei, não sei; e não sou eu
que o digo, são eles. Mas se esta­mos condenados a ter bispos feitos
assim, que vão Suas Ex­celências Reverendíssimas pregar
aos peixinhos do mano Afonso de Albuquerque, porque as homílias deles
acho que será pecado mortal ouvi-las a gente.

Pois, nem mau homem sequer era aquele mau bispo; per­doem-me dizê-lo,
mas com o próprio demo se deve ser justo.

Sua mocidade leviana e solta tinha-se passado nos campos tumultuosos e indisciplinados
da guerra civil, palestra a mais desmoralizadora de quantas há. A opressão,
a violên­cia, o latrocínio e o homicídio são
virtudes às vêzes, no cre­do faccioso, são ações
indiferentes, quando menos, se pratica­das contra os do partido contrário.
Vizinhos, amigos, pa­rentes que sejam, quanto mais perto de nosso coração
está a vitima, tanto mais se exalta por virtude o crime, porque mais
desnatural é.

Vem depois o descanso da paz — que não é descanso, mas
o cansaço da guerra — e são os homens criados nessa escola
os que têm de ir exercer os cargos todos da república, sentar-se
nas cadeiras curuis do senado, julgar nos tribunais, mi­nistrar nos altares…
Santo Deus!

Tal fora feito este bispo, só porque da facção dominante,
filho de uma família poderosa, e ele menos ignorante que o resto de
sua ilustre família. Elevaram-no ao episcopado as intrigas dos nobres,
tão onipotentes então como as dos merceeiros hoje. A cruz que
trazia ao peito, não a tinha porém no coração.
O Evangelho, que lhe puseram às cos­tas, não lhe pesava
porque o não entendia nem o sentia. Acreditava piedosamente que nascera
para mandar e gastar, os povos para servir e pagar. A el-rei, seu senhor susera­no,
estava pronto a servir com tantas lanças e bestas, quantas lhe eram
devidas: em nada mais se julgava teúdo de obedecer-lhe, ele, príncipe
da Igreja, e só dependente do papa. De suas devassidões e orgias
brutais, tinha um pe­queno, um tal qual remorso, porque enfim era eclesiásti­co,
era prelado: mas bestialmente pensava que uma absol­vição
de Fr. João da Arrifana, ou de outro frade seu cúm­plice
nas mesmas torpezas, bastava para o remir desses pecadilhos, porque enfim,
enfim, não eram condessas nem ricas-donas as que ele tinha roubado
— seduzido ou compra­do pela maior parte… Violência não
a fizera a nenhuma.

Oh! sim fizera… E com vil traição, com pérfida aleivo­sia!…
Uma vez, há muito, e não era bispo ainda, mas sim­ples cavaleiro,
soldado, comandando uma partida de faci­norosos, com o título de
aventureiros, ou de voluntários, ou do que quer que então se
chamava a essa peste. Eram uns bons patriotas (estilo de todos os tempos)
que pelos verdes campos de entre Lis e Lena, faziam a guerra, em nome de el-rei,
e contra o infante, mas por sua própria conta deles, contra os porcos,
as galinhas, as vacas e as searas dos lavradores.

Uma noite escura, que não havia lua nem estrelas no céu, iam
soltos e em grande algazarra pela campina e perto já dos antigos pinhais
que por ali entestam. Senão quando, ao chegar-se mais a eles, foram
cair numa emboscada de homens do infante — outros que tais facinorosos
como eles — que os destroçaram e retalharam sem dó nem
piedade, e que, tendo feito o seu feito, fugiram. Quase toda a alca­téia
ou guerrilha, do que hoje é bispo, ficou estendida de­baixo dos
pinheiros; os poucos escapos deitaram a bom cor­rer para bem longe; e
entre os mortos e moribundos ficou o próprio capitão. Estava
ele ainda com vidas mas já quase sem alento, e derramando de muitas
e largas feridas o últi­mo sangue das veias golpeadas. Vinha alvorecendo
a ma­nhã que ele já não via, e despontando detrás
das colinas o sol que não tornaria a alumiá-lo, se àquele
tempo ali não passasse um homem ancião de longas barbas e longas
ves­tes, calva a fronte, mas coberta de uma touca alva e alaran­jada
que bem denunciava sua origem oriental. Abordoava­-se num bordão
branco, trazia pendentes ao peito uns rolos de pergaminho, e à cinta
uma larga bolsa de couro em que tiniam redomas, utensílios de vidro
e de metal, ao que pa­recia.

Voltava o velho de uma aldeia perto, onde fora acudir a um seu parente que
se morria de febres malignas, e recolhia agora aos subúrbios de Leiria,
sua ordinária residência. Pa­rou ao ver aqueles homens mortos
à beira do pinhal; e se parecia um levita venerável no trajo
e ademã, um velho dou­tor da lei — o seu coração
era o do samaritano caritativo; porque não pensou, não hesitou,
nem se pôs a rezar, senão que, um por um, se foi percorrendo
aqueles mutilados cadá­veres, ou que tais pareciam, a ver se algum
podia salvar ain­da, administrando-lhe o vinho e o óleo da parábola
do Evan­gelho — em que ele não cria porque era israelita
o velho,sincero e estrênuo professor da lei antiga.

Tudo achou morto; só vivia ainda o cavaleiro, mas pró­ximo
a finar-se de exausto e abandonado. Conheceu po­rém o velho que
havia esperança e remédio possível, tirou da sua bolsa
fios e bálsamos com que lhe pensou as feridas:depois um elixir milagroso
de que lhe deu algumas gotas a beber; e reanimado assim, o levou consigo,
meio de rastos, meio às costas, porque mais não podia o velho.

E felizmente que não morava longe: era à outra beira do pinhal,
perto dos muros de Leiria, nuns barracões baixos, sem aparência
alguma exterior, mas que por dentro tinham mais cômodo e conforto, mais
luxo, mais elegância e rique­za, respiravam mais civilização
e mais gosto do que nenhum palácio de rei cristão em toda a
península das Espanhas.

Saíram a recebê-lo seus criados e família que o estavam
es­perando e que de longe o viram vir. Veio a velha Sara, sua esposa,
e Ester a sua querida, a sua única e adorada filha. Quando o viram
assim curvado sob o enorme peso daquele homem meio morto, vestido de ferro,
e ambos escorrendo em sangue:

_ Bendito seja o Deus de Abraão! — exclamou Sara: —porque
tu não vens assim, amado de aninha alma, senão por­que algum
bom anjo te deparou a ocasião de fazeres bem a teus irmãos.
Salvaste esse homem da morte?

— Ainda não; mas espero.

— Já nisto lho tinham tomado os criados em braços, e
o le­vavam para o melhor quarto da casa senão esperar ordens do
amo: era sabido e costumado aquilo. O velho acompanhou o moribundo, e o viu
deitar na cama, e ajudou a colocá-lo na posição mais
conveniente, e de novo e com mais tento lhe visitou e pensou melhor as feridas,
duas das quais pare­ciam mortais.

Mas a Caridade é uma virtude que não desacompanham jamais suas
duas irmãs, a Fé que dá o ânimo, e a Esperan­ça
que alenta o coração.

— Veremos, veremos ao levantar do aparelho. Deus nos acudirá.

E o ancião e a sua velha esposa e a sua jovem filha entre si repartiram
logo as horas da vigia em que haviam de reve­zar-se junto ao leito do
homem… E nenhum sabia, e ne­nhum perguntou que homem era.

Em poucas horas se declarou uma febre tremenda, e o ve­lho desanimou.
Assustou-se, digo. não desanimou; mas as­sustou-se muito. Junto
ao leito do infeliz que, de olhos fe­chados, prostrados exânime,
apenas soltava uns gemidos sur­dos e abafados — ele com a mão
no pulso do enfermo, e os olhos ora no rosto que lhe afilava, ora no livro
que folheava inquieto, parecia disputar com a morte que lho queria rou­bar,
e afugentá-la com o poder sobrenatural da ciência, com a fé
ardente da religião.

E venceu o velho; venceu ao cabo de horas e horas, de dias e de noites de
susto e de incessante desvelo, em que um só instante não deixou
o doente, ministrando ele por sua mão os vários remédios
que ia aplicando; e ora a mulher, ora a filha o ajudavam. que de seu lado
não saíram. De­clarou-se uma crise subitamente, a febre
cedeu, e o mori­bundo escapou à morte.

Abraão Zacuto, que este era o nome do velhos prostrou a sua face por
terra; Sara e Ester se prostraram ao pé dele, e juntos clamaram:

— Bendito seja o senhor nosso Deus, porque salvou o ho­mem estrangeiro,
e deu glória e honra à casa de seus servos!

Passam dias, semanas, as feridas vão-se fechando, as dores acalmando-se;
e quase não havia já no enfermo outro mal senão uma debilidade
extrema. E Abraão disse a Ester:

— Filha, o nosso hóspede está curado. Eu tenho de ir
a Granada, porque os nossos irmãos precisam de mim ali. Tu velarás
nele, e dirigirás sua convalescença, que há de ser longa
e difícil. Tua mãe precisa descanso, porque os seus dias são
muitos e o seu corpo está débil e enfraquecido. Adeus, e que
o Senhor te abençoe!

O velho partiu, e Ester ficou à cabeceira do enfermo.

XXVIII – Mais Pecados

As horas do dia são longas para quem jaz prostrado num leito de dores.
Mais longas as da noite que ali se velam. Que seria do cavaleiro se não
fosse a companhia de Ester?

E ela era bela, de uma beleza toda judaica, toda árabe. A figura alta
e esbelta, as formas severas, sem moleza nenhuma nos contornos, o rosto oval,
a tez morena, os olhos negros, faiscantes, a testa breve, mas perfeitamente
desenhada, os sobrolhos um tanto juntos, o cabelo, preto, fino — fino
de uma fartura e formosura surpreendente. Uma túnica alvís­sima
de linho orlada e cingida de cramesim era o seu trajo habitual e único.

Imaginem esta visão arrebatadora entrando a cada instan­te no
quarto do convalescente, volteando nele para mil coi­sas, dando-lhe os
remédios, os alimentos, trazendo-lhe ora flores para lhe refrescar
o olfato, lendo-lhe ora para o dis­trair, outras vezes cantando-lhe daquelas
cantigas simples e magoadas, quais lhas ensinara sua mãe, e a sua mãe
a dela, e assim, de geração em geração, tinham
vindo desde séculos remotíssimos; ecos perdidos das velhas memórias
daquela pátria para sempre perdida, daquela Sion santa de que o Is­raelita
foi expulso, e que terá de chorar em perpétuo exílio
até à consumação dos tempos.

O cavaleiro bebia a longos tragos neste filtro que o em­briagava, e lhe
tinha em contínua excitação os sentidos que ia recobrando
com a saúde. Ester não o percebia, nem lho dizia ele. Seus olhos
fuzilavam de desejos; e os dela fica­vam tranquilos e inocentes como se
aquele homem que ali estava fosse seu irmão. Algumas noites, que lhe
ele parecia mais agitado, não queria descansar ela, nem deixá-lo
entregue à vigilância, todavia bem cuidadosa, dos servos; mandava
pôr no chão uma camilha, e ali se recostava vestida para lhe
acudir, a suas horas bem certas, com as bebidas cal­mantes que o pai deixara
prescritas.

Foi numa dessas noites que ele pareceu mais agitado do que nunca, e que ela
mais quis velá-lo. A noite era de calma, o dia tinha sido afadigado,
pesava no ar uma eletrici­dade opressora… Ester caiu em profundo sono.

E sonhou, sonhou — era uma opressão, um pesadelo!… Depois
uma dor agudíssima… misturada de inexplicáveis deleites…

Ester despertou fatigada, moída, meia morta. Veio a razão,
veio a reflexão, o instinto, veio a recordação confusa
do que lera e mal entendera nos livros de seu pai… Pouco a pouco rompeu
e se fez em seu espírito um clarão medonho, alumiou todas as
misteriosas sensações dessa noite. Santo Deus!

Era dia claro. A desgraçada não disse uma palavra, não
deitou um volver de olhos para o cavaleiro, que dormia tran­quilamente
em seu leito. Concentrou em si aquela dor in­finita, aquele opróbrio
sem nome.

Saiu do quarto, e foi dizer a Sara:

— Minha mãe, eu estou doente, e o estrangeiro não tem
já nada. Deixai-me ir deitar; e despedi-o, se vos praz.

Naquele dia saiu o futuro sacerdote de Cristo da desonra­da casa do médico
israelita. E desde aquele dia Ester nunca mais riu nem folgou nem viveu como
dantes. Enferma do corpo, a razão fugindo-lhe a espaços, não
sabia a mãe que lhe fizesse; e Abraão tardava em voltar de Granada,
tardava e não acabava de chegar.

Passaram muitos meses. Ester ia a pior; Sara escreveu ao marido que voltasse,
que viesse salvar sua filha que lhes morria. EIe cortou por tudo, partiu logo
e veio, trazido por aquele amor que não tem igual na natureza. Mas,
à véspera de sua chegada, Ester desapareceu de casa, e nunca
mais puderam saber dela.

Dias depois Abraão Zacuto dormia com seus pais, e Sara junto a seu
marido para sempre.

Um parente arredado, mas único que aí havia, tomou con­ta
dos imensos bens e riquezas da família, como curador da ausente. Era
esse um honrado judeu que administrou a he­rança com fidelidade
e consciência, que não queria acredi­tar na morte de Ester,
e que protestou que havia de esperar por ela enquanto não tivesse plena
certeza de que era fa­lecida.

A morte de Zacuto foi sentida por toda a parte, e até sin­ceramente
chorada na corte de Afonso IV. Queria-lhe el-rei de simpatia e de obrigação;
e poucos ali havia que lhe não devessem muito: a saúde que lhes
ele recobrara, os di­nheiros que lhes emprestara. Mas a morte de que morrera,
ninguém na sabia.

Ao chegar à corte aquela nova, um fidalgo dos que aí andavam
pareceu mais impressionado com ela do que nenhum; e mais que nenhum perguntava,
queria saber a causa de tão inesperada e sentida morte. A corte estava
em Coimbra, ele montou uma noite a cavalo e tomou o caminho de Lei­ria,
só, sem escudeiro nem homens de armas, e ia triste, pen­sativo,
carregado de profunda melancolia. E contudo esse era o mais leviano e descuidado
de quantos calçavam esporas de ouro e cingiam cinto de cavaleiro naquela
corte.

Sete dias andou por lá; mas a Leiria não chegou. E di­zem
que, pouco além de Condeixa, pernoitando em casa de um lavrador abastado,
por nome Gil Guterres, que ai tinha suas granjearias — dera com uma
mulher meia morta num palheiro, onde por caridade lhe haviam dado pousada;
que se doera de seu desamparo e a tratara com desvelo, mas que fechado com
ela estivera toda a noite e todo o dia seguinte, sem consentir que ninguém
mais lá entrasse. Ao cabo do outro dia houve longa e animada conversação
entre o cava­leiro e o filho da casa, Paio Guterres, moço de prol
e grande escolar, isto é, grande estudante, a quem todos queriam mui­to
por ali. E dessa conversação veio a sair que a mulher do palheiro
foi transportada para uma casinha mui linda que ficava na encosta do outeiro,
muito para lá da igreja, ao pé dos sicômoros e quase à
beira do regato. A casa era do filho, que lha tinha dado o pai, para ele ali
fazer sua estu­daria, e ter seus livros, por onde lhe chamavam a "estudaria
da Granja”.

O cavaleiro voltou para a corte; e a pobre mulher ficou na Estudaria, só
ela, com uma criancinha linda como um anjo, que em pouco tempo cresceu em
força e em graças, e era o amor e o encanto de toda a gente.
Quando digo “a pobre mulher”, é de lástima e dó
que tenho de a ver tão só, tão triste e desconsolada
sempre; que pobreza era o úni­co mal que ela não tinha.
O seu trajar era singelo e de pe­sado luto; mas não havia galas
nem riquezas que se não es­perdiçassem no berço e
no vestir de seu filho. Filho de rei nunca teve tais mantilhas. E demais,
ela dava — dava tudo e a todos quantos necessitavam e lhe pediam, dava
com mãos largas, perdidas, como quem não deitava conta ao dinheiro
ou lhe não sabia o valor.

Parentes, amigos, nem visitas nenhumas parecia não nas ter. Em dois
anos que ali morou, só duas vezes lá foi um judeu velho que
vinha das bandas de Leiria; e esse ia e vi­nha, não parava. Também
uma ou duas vezes por semana ia passar meia hora com ela o dono da casinha,
o estudante Paio Guterres, que lhe tomara grande afeição —
outros di­ziam que a conhecia de há muito. Fosse como fosse, ele
ia vê-la de quando em quando, como digo, levava-lhe brincos e gulosices
para o pequeno, chorava com ela de seus males que parecia conhecer, folgava
com a criança que ambos amavam ternamente, e ele quase tanto como a
mãe. E assim se pas­sava aquela vida isolada, e como apagada do
mundo, senão só que acesa à animadora luz do amor maternal
por cuja virtude únicamente existia.

Passaram, como digo, dois anos assim; mas ao cabo deles, sendo já
falecido Gil Guterres, e seu filho ausente por negó­cio a que fora
a Lisboa, uma noite feia e negra de dezembro. que chovia, fuzilava, e o vento
gemia e bradava nos pinhais que metia susto, apareceu à porta da Estudaria
o mesmo ca­valeiro da outra vez. Não lhe queriam abrir, ele arrombou
a porta e entrou. E no outro dia foram achar a boa mulher desmaiada no chão;
a criança faltava; e durante um mês de febre e delírio,
ninguém pensou que a mãe escapasse.

Trataram-na com muito amor e caridade as criadas da granja que para lá
foram, e que sabiam quanto seu amo lhe queria. E a doente recobrou a saúde
do corpo: a do espíri­to não lhe voltou nunca mais de todo.
E tanto que, apesar da maior vigilância, um dia desapareceu; e por mais
que a buscaram, não tornou a haver novas dela.

Disseram, daí a tempos, que para as bandas do Porto fora vista em
trajos de mendiga. E até não faltou quem jurasse que se tinha
feito bruxa, e que por tal a mandara queimar o senhor bispo do Porto; mas
que lhe perdoaram por fim, e se contentaram de a açoitar no pelourinho.
Também ou­tros disseram que ela sempre fora judia ou moura ou coisa
assim, e mulher má e de ruins artes, e que por isso lhe tira­ram
o filho, em donde se volvera louca, de mau olhado e feiticeira. Tudo diziam
da pobre mulher desde que ela desa­pareceu dali. Mas Paio Guterres, quando
soube de tais mur­murações, fez uma fala ao povo e lhe protestou
que a mu­lher da Estudaria era uma santa, e mártir de piores tiranos
que o miramulim de Marrocos. E daí, ninguém mais falou dela,
porque Paio Guterres, esse é que era um santo verda­deiro, de bom,
de sábio, de temente a Deus; tanto que, dai a pouco se ordenou e se
fez grande pregador, e que o fize­ram arcediago de Oliveira, no Porto,
em mal que pesasse ao bispo que por então veio a ser; o qual bispo
lhe tinha muito má sanha e pior vontade; mas, não se sabe por
que, também lhe tinha medo.

Ora o tal senhor bispo, quem havia de ele ser? O mesmo dito cavaleiro que
aquela noite descobriu a mulher meia morta no palheiro da granja, que tão
caridosamente a so­correra e salvara de morrer, a ela e ao filho que trazia
em seu ventre, e que dois anos depois — caso estranho e inex­plicável!
— lhe roubara esse mesmo filho, e fora causa de que a pobre mulher perdesse
a razão, ou se perdesse na má vida que ora diziam que tinha.

Fosse ele como fosse, o que era certo e sabido é que esse cavaleiro
nunca mais foi o que dantes era. Pesado, triste, melancólico e como
possesso de um negro pensamento que o avexava, nem as festas nem as batalhas
o viram mais. Ti­nha estudado em criança os rudimentos das ciências
daquele

tempo com os monges de Alcobaça; deu-se agora de novo aos livros e
abandonou todo o trato e exercícios de cavaleiro.

Seria vocação divina? Seria remorso de algum mau feito que
o pungia para melhor vida? — Mas ele não era nem mais austero
em seus costumes, nem mais temperado em seus apetites. Desgostoso da vida
parecia, — disposto a emendá­-la, não.

Sem embargo disso, pensaram seus parentes que ali esta­va um bom bispo
para a santa Sé portucalense, porque ele tinha deixado as armas, afetava
querer seguir as letras, era seu parente, e enfim porque o bispado do Porto,
pingue, de muita dignidade e poder, era mais próprio para um senhor
que condescendia em se fazer clérigo, do que para algum fra­de
vilão que pretendesse ser bispo por suas doutorices e san­tidades
— de pouco preço em vilões a quem nada custam.

Assim o entenderam os do conselho de el-rei; e ou o en­tendessem ou não,
assim o aconselharam a el-rei. E o fidal­go, até ali pobre cavaleiro
de poucas lanças, foi feito grande senhor, poderoso e rico, bispo do
Porto — que é dizer tudo nadou na opulência e se fartou
de mandar, de satisfazer suas vontades e apetites.

Era feliz então? Não era. No âmago daquele coração
ti­nha-se cravado um espinho agudo, que lho mordia inces­sante, que
por acessos o desesperava e o fazia mais mau, mais sobranceiro, mais déspota
e cruel do que ele por natureza era.

Na solidão sobretudo, quando o não via ninguém senão
a sua consciência, aquele espinho era farpão envenenado que lhe
dilacerava as entranhas com uma dor que oh!… Deve ser a pior dor da vida
e mil vezes mais acerba que a da morte.

Demos graças ao anjo protetor da nossa existência os que temos
a fortuna de não conhecer essa dor.

XXIX – Pobre Aninhas

Num dos seus mais horríveis, mais tenebrosos momentos estava agora
o poderoso bispo do Porto, esperando que o al­goz de Pêro Cão
lhe trouxesse a infeliz vítima de seus em­botados apetites.

Lançaria sobre ele do céu, neste feio momento, um derra­deiro
olhar de compaixão, o fugido anjo de sua guarda? Veria na mão
do Eterno cheia a medida das maldades desse homem, e lhe doeria não
clamar um último brado à sua consciência? Devia de ser
assim, porque o remorso, o re­morso hoje mais salutar, menos acerbo, porém
mais pun­gente que nunca, lhe estava recortando na memória as feições
daquele homem velho de alvas barbas que o salvara da morte, que o levara às
costas moribundo para sua casa, que o velara noite e dia, que o entregara
a sua filha. Sua filha tão bela!… De uma beleza estranha… Mas tão
subli­me, tão espiritual, tão pouco para ter excitado nele
o bruto apetite da sensualidade! Apetite infame, e com que infa me vilania
satisfeito!

Oh! e aquela mulher que embalava uma criança tão linda num
berço dourado!… E a quem ele tirou o filho, e o criou, e logo lhe
tomou tanto amor, que era o único ser, o único objeto nesta
vida que ele soubera e pudera amar!.

Arrasaram-se-lhe os olhos com este pensamento, levantou-se inquieto, abriu
a porta que dava para as salas exteriores, chamou por seus fâmulos,
um depois do outro, e a todos e a cada qual perguntou sobressaltado:

— Vasco, Vasco? Não o viram voltar ainda? Tornem-me a chamar
Fr. João, perguntem-lhe se sabe dele. Vão-me à ribeira
saber se há novas de Vasco. Que monte um estribeiro a cavalo, que siga
para os altos de além Douro, e que se informe de uns caçadores.
Oh! e o alazão!… Que desacerto deixá-lo ir naquele potro…
Quem

montou já aí o alazão? Ninguém, estou vendo.
É que ninguém mais se atreve com ele. E o alazão conhece-o:
é um nobre animal!… E Vasco é cavaleiro para ele.

E mais sossegado com esta reflexão, veio-lhe o arrependi­mento
de ter dito tanto, de ter mostrado tanto interêsse. E despediu os fâmulos,
e tornou a encerrar-se em seu gabinete.

Aparentemente estava tranquilo agora, mas o ânimo re­volvia-se-lhe
de sobressalto em sobressalto.

— Se lhe sucede alguma ao rapaz? Se me tomam vingan­ça nele
os excomungados burgueses? Oh! mas não se atre­vem. Malditas mulheres!
E que me importa a mim com a tal Aninhas? Uma sensaborona, uma D. Lagrimosa
sem sal nem graça! Mas os tontos fizeram tanto, excitaram-me por tal
modo os ditos soezes desse vulgacho de tendeiros, tanto me irritou hoje essa
canalha com suas altanarias, e tanto farão ainda, estou vendo, que
me hão de parecer divinos os olhos pretos da tal Aninhas do Arco…
Mas a pobre rapa­riga que culpa tem?… Pois não! Dó dela
agora! Era o que faltava. A honesta dama que me diz a mim que não,
sem dúvida porque esta farta de dizer que sim a algum aprendiz do marido…
algum desses que ai andaram na as suada desta manhã. Pois voto a Satanás.

Nisto bateram com tento à porta secreta detrás da tapeçaria;
e o bispo respondeu com impaciência:

— Entre!

Pêro Cão entrou sorrindo de seu infernal sorriso, e pondo­-se
a um lado, afastou com muito acatamento o pano-de-ras, e se inclinou —
que nem sumilher de cortina a príncipe — a uma pálida
e desgrenhada figura de mulher que vinha de­trás dele.

Era Aninhas.

Quanto se pode imaginar de gracioso, de molemente fe­minino e suave,
tudo isso era Aninhas. As feições pouco pronunciadas de seu
rosto, as formas arredondadas mas débeis de seu corpo alto, fino, e
dobradiço como uma vergôn­tea de primavera, tudo nela caracterizava
aquela debilidade quase infantina, aquela dependência, aquela fraqueza,
que são a maior força de um sexo nascido para obedecer e ser
guiado, mas que é ele quem manda e governa — quando quer, quando
sabe.., quando a mulher é verdadeira mu­lher, e de seu próprio
desvalimento tira o valor imenso que tem.

Naquele estado agora, no desalinho do seu trajo, no susto que a descora,
na aflição que a perturba, Aninhas está mais bela ainda.
O gênero de sua beleza é dos que se não trans­tornam
com estas ânsias mortais: antes nelas se apura, se afina a suave, e
por assim dizer, lenta fascinação de seus en­cantos. O cabelo
castanho ondeado caia-lhe desentrançado e longo pelas espáduas
mal cobertas de uma túnica de bran­co e de roxo vivo, que era o
seu único vestido. Os olhos pardos, grandes, lustrosos, mas sem muita
vivacidade, pare­ciam mais os de uma virgem consagrada ao altar. Ninguém
pediria paixão àqueles olhos, eles não tinham senão
pieda­de, indulgência, uma expressão de bondade que vinha
da al­ma. Branca era, mas como é branca a prata fosca: um branco
puro sem brilho.

Beleza para a cobiçar a grave, a pesada, a calculada sen­sualidade
de um turco. A quem lhe nascem os desejos na alma, a quem não sabe
gozar, sentir, senão porque se lhe resolve, se lhe reflete nos órgãos
da vida o que lhe vem lá do intimo do pensamento — a esses não
creio que os pudesse inflamar muito.

— Senhor, — disse Aninhas, cruzando quase devotamente os braços
sobre o seio branco e sereno: — Senhor, vim a vosso mandado; e venho
mais tranquila agora, porque as últimas palavras que esta manhã
vos ouvi foram quase de paz e de esperança. Que vos mantenha Deus assim,
e me deixeis ir para o meu filhinho, que bem sei que está seguro e
a bom recado… Mas falto-lhe eu, senhor! Vós não sa­beis
o que é faltar a mãe a seu filho. A pobre criança é
capaz de morrer de saudades.

— Retira-te, Pêro Cão.

Foi-se a besta feroz, deitando de esguelha, à saída, uns olhos
de riso incrédulo à pobre suplicante, uns olhos de grosseira
obscenidade que diziam: — Ora basta de pieguices!

O bispo, sentado, com a testa nas mãos, e os cotovelos sobre uma banca
diante de si, não parecia ouvir, e decerto não podia ver Aninhas.
Estiveram assim algum tempo, sem mais fazer nem dizer.

— Não me respondeis, senhor? — insistiu a desgraçada.

— Calai-vos, mulher: eu não creio uma sílaba de quanto
dizeis. Para que é tanta palavra? O que quereis de mim? Ouro, jóias,
riquezas, galanices? Tereis tudo isso. E que mais? Ah! sim: vosso marido…
Afonso de?… Afonso de Campanhã creio que se chama — dar-lhe-ei
um bom em­prego. Fá-lo-emos nosso almudeiro, se tanto é
preciso. Pê­ro Cão é um bruto, compromete a minha
autoridade, e…

— Senhor, eu não quero nada, senão que me solteis, que
me deixeis ir livre para meu filho, cuidar da minha casa. E rezarei por vós
à bendita santa, minha padroeira…

Com um gesto de soberano enfado e fastio, o prelado le­vantou o rosto
das mãos, e pondo na súplice Aninhas uns olhos ainda mal-assombrados
dos dolorosos pensamentos que o tinham estado consumindo:

— Ah!… — disse: — És bonita com efeito. És,
és bonita deveras. Não se fez para burgueses râncios tão
fina flor de formosura. É que te não vi bem esta manhã.
. – és bo­nita.

— Senhor!

— Eu gosto de ti, e te farei quanto quiseres. Sabes? Mas assenta o
coração numa coisa: que hás de ser minha, e que sem isso,
não sais daqui. Toda a burguesia e populares do Porto que se armem
para te vir buscar, el-rei D. Pedro que venha em pessoa pôr-me cerco
a meu castelo… Jurei-o, ju­rei-o a este demônio negro que trago
em meu peito… Por­que o trago, Aninhas; um demônio negro, implacável,
que me destrói as entranhas.. ­

— Misericórdia, meu Deus! — bradou a desgraçada
arro­jando-se de joelhos diante do indigno pontífice: — Miseri­córdia,
piedade, meu senhor. Oh! deixai-me ir, deixai-me ir, e Deus vos perdoará,
e vos livrará desse mau demônio que dizeis. Fazei esta boa ação
e vereis. Alguma coisa bem mal feita faríeis, que deu poder ao inimigo
para vos ator­mentar. Ponde-o fora de vós assim.

— Cala-te, mulher, que não sabes o que dizes; cala-te, que me
exasperas ainda mais recordando-me… ah!

Aninhas chorava, a as suas lágrimas aflitas, mas serenas como a inocência
de sua alma, calam aos pés do bispo e lhos regavam abundantemente.
EIe parecia amolgar-se-lhe o coração: levantou-lhe a cara, e
se pôs a contemplar aque­las feições tão suaves,
banhadas naquele pranto tão sentido, e tão mais lindas, tanto
mais interessantes assim.

— Que bela és! Que bela estás! Não posso renunciar
a ti; bem o vês, Aninhas. É impossível. E para quê?
Para que venha outro…

— Outro, senhor, outro! Em que vos mereço que me afronteis assim?
O meu pobre Afonso mais justiça me faz: bem sabe ele…

— Sabe, sabe, o que todos os maridos sabem, Mas que seja ele esse portento
de nunca vista felicidade conjugal… e que até hoje… vamos! que
até hoje mais ninguém tocas­se num tesouro tão difícil
de guardar, achas tu que ele, por ser marido, deixa de ser outro para mim?
E eu hei de ser tão parvo? Ora vamos, Aninhas, juízo!

— Senhor, — disse a atribulada inocente, pondo as mãos
como se fora fazer alguma devota oração a um santo: —
eu vos prometo e dou solene palavra que, se me deixais ir livre e sem mancha…
Oh! sim, deixai-me, senhor, e eu vos pro­meto — ainda que não
sei se é pecado o que vos prometo — mas prometo que me votarei
a Deus e à bem-aventurada Sant’Ana do meu Arco, e viverei até
o último dia de minha vida, não como mulher casada — pobre
de meu Afonso coi­tado! mas enfim — não como mulher casada,
senão como se me emparedara viva, e tão só para servir
a Deus, e nada mais haver com o mundo!

— Estás louca, mulher!

— Não estou, senhor. Juro…

— Não jures sandices. Vamos, levanta-te.

— Não me levanto enquanto me não prometerdes. ..

— Pois levanta-te daí dos meus pés… Não te quero
aí, mulher, anjo ou demônio ou o que quer que tu sejas, le­vanta-te:
não te quero aí… não é aí o teu lugar…
Levanta-te, ou nada prometo.

Aninhas levantou-se. O seu ar composto e virginal… Por que não virginal?
Não chamou Virgilio infelix virgo à outra que disso não
tinha nem?… E a minha Aninhas, quanto é na alma e no coração
— o mais raro e difícil de achar — pura e inteiramente
estava como baixara do céu a este mundo trazida pela mão do
seu anjo da guarda. Di­go e redigo, o seu ar composto e virginal impunha
ao bispo, acanhava-o. Aquela promessa de se votar a Deus, coisa co­mum
nesses tempos; aquela idéia de se emparedar uma ra­pariga tão
bonita, tão inocente, como se fora uma velha feia e pecadora —
o que todos os dias se via — rompeu-lhe a crus­ta viciosa e endurecida
em que trazia envolto o coração, e entrou-lhe pela febra sã,
viva e sensível que ficara lá dentro, e que, tanto mais desafeita
de sentir, mais profundamente sentia agora.

Olhou para ela com os olhos quase enternecidos, quase paternais, e por momentos
lhe esteve a escapar da boca: —Vai-te, anjo, vai-te em paz; e que por
amor teu, por tua in­tercessão me perdoe Deus a mim!

Mas o demônio — o tal demônio negro de que era possessa
a sua alma, que lha destorcia e arredava de todo bom pen­samento, o demônio
vencido aqui, foi chamar a batalha para terreno mais de sua vantagem. Tocou-lhe
no orgulho, no amor-próprio e o feriu com uma recordação
que Ihos pungia no mais vivo.

— Mas é verdade, — disse o bispo, ferido subitamente da
idéia diabólica: — Tu, esta manhã, não me
falavas assim. Eram violências, eram brados, eram desconcertos que me
ir­ritavam, me exasperavam, e me fizeram jurar que nem an­jos nem
demônios te haviam de tirar de meu poder. Como é que tu soubeste,
como adivinhaste que esse artifício agora era mais poderoso comigo?

— Artifícios eu, senhor!

— Pois não seja artifício. Mas tu mudaste de tom, de
modos; e alguém to insinuou… Oh, oh! já caio em quem foi.
Aqui anda São Paio Guterres, o meu bem-aventurado,. o meu beatificado
penitenciário.

— É verdade, senhor, que é um santo, um homem de Deus,
e que as suas devotas práticas me consolaram e ani­maram naqueles
cárceres tão medonhos.

— Ah, sim?… O hipócrita, o impostor é que te ensi­nou
essa cantilena? Pois voto ao diabo, cujo sou já agora,. Que…

E remetendo à indefesa vítima, a tomou de repelão nos
vigorosos braços, e ia levá-la…

De repente o pano-de-rás estremeceu, e se arredou com o empuxar violento
da porta secreta que se abriu de par em par; um clérigo velho, curvado
e macilento entrou no ga­binete do bispo, e deitando-lhe as mãos
às mãos, conseguiu, pelo inesperado do ataque, vencer a força
com que as aper­tava, e desprender Aninhas, que desatinada, confusa, espa­vorida,
deitou a fugir para o fundo do aposento, e se foi esconder, como uma criança,
detrás de umas cortinas onde havia um grande Crucifixo, com o qual
se abraçou choran­do de alegria a pobre — e dizendo: —
Milagre, meu Deus!

E por que não seria milagre aquele? Não é grande sacri­fício
para a razão humana acreditar na interferência divina, quando
a Providência aparece tanto a tempo a proteger o desvalido e a salvá-lo
da brutalidade do poder.

Toda a Torre do Tombo fica desafiada em peso para me disputar a autenticidade
deste milagre da minha crônica.

O bispo tremulo de cólera e despeito, apenas pôde bal­buciar:

— Vós aqui… vós aqui!… Que atrevimento é este?

— O do vigário e penitenciário desta diocese, senhor
bis­po, que entrou no aljube quando acabavam de lhe roubar um preso seu,
que suspeitou, que adivinhou quem Iho rou­bava, e veio por esses obscuros
subterrâneos…

— Vós! vós só! Impossível. Alguém
vos encaminhou por esse labirinto em que eu mesmo talvez me perderia.. . Quem
foi o traidor? dizei-mo.

— Bem sabeis que eu não sou homem de traições,
que me não sei servir de traidores.

— Não há senão Pêro Cão que saiba…
ou a bruxa… Foi a bruxa? Dizei.

— Bruxas, eu!

— Aquela mulher que… Ah, morte de minha vida! Vós e ela, Paio
Guterres, jurastes perder-me: bem o sei. Mas eu juro que hoje daqui não
haveis de sair, e que…

— Podeis acabar hoje o que há alguns anos começastes.
Eu não tenho senão quarenta e bem vedes que me pesa o dobro
nesta cabeça. Que mãos me quebraram, me curva­ram, me trouxeram
à decrepitude tão cedo, vós o sabeis. E pouco vos custará
agora extinguir um resto de vida que está por tão pouco. Mas
enquanto o não fizerdes, eu hei de…

— Que fareis vós?

— Lutar com o meu prelado para lhe tirar das mãos esta vítima,
para o salvar.

— A mim me quereis vós salvar! E de quê?

— De maiores perigos do que pensais.

— Deixai-me com os meus perigos.

— E de novos remorsos… Também quereis que vos dei­xem
com eles? Não tendes já bastante nos que tendes?

— Paio Guterres, — disse o bispo, começando a abater-lhe
e espuma da cólera: — vós sabeis toda a fatal história
da minha vida, tivestes não pequena parte nela; e permite Deus que
eu seja obrigado a aturar a vossa presença na minha ca­tedral,
no meu palácio, como a de um remorso vivo e ex­cruciante que me
persegue sem cessar. Mas que não abuseis da permissão divina,
ou juro a Anás e a Caifás…

— Não jureis tanto, senhor bispo: lembrai-vos que juras­tes,
pelos mais tremendos juramentos e imprecações, na mi­nha
pobre Estudaria da granja, a uma infeliz mulher que se finava, jurastes de
lhe restituir o seu filho…

— Arcediago, essa mulher era uma judia; e eu sou maldito de Deus porque
a conheci.

— Era judia, sim, como foram muitos santos patriarcas que nós
cristãos veneramos e invocamos. Era judia ela, e seu santo pai que
vos salvou da morte, e sua boa mãe que velou á vossa cabeceira,
e que ambos morreram de pura má­goa de a perderem… Era judia,
oh sim! mas um anjo, uma criatura celeste e sublime. Eu, que a conheci, que
a admirei, que a amei e adorei nela a mais perfeita criatura que ainda me
apareceu na terra, eu cuidei de morrer quan­do a vi perdida, arrastada
por vós na infâmia e na vileza. Não morri de pesar porque
me acudiu Deus. Não morri às vossas mãos quando vo-lo
exprobrei com tanta veemência, naquela fatal noite da granja, porque…
porque também Deus vos acudiu a vós e vos livrou de mais esse
crime… E eu voltei-me a Ele, e para o santo ministério de seus altares
a que me consagrei. Mas vós, senhor, para que seguistes vós
a mesma vereda com tão outros fins e com tão outro pro­pósito?
Oh! vós sois meu senhor, meu superior e meu pre­lado: mas perdoai-me
que vos fale assim; relevai-me, que é por vós, é por
honra deste altar em que ambos ministramos, eu humilde presbítero,
vós príncipe da igreja e sucessor dos apóstolos, mas
ambos servimos o mesmo Deus, ambos no mesmo altar tomamos em nossas mãos
o seu corpo e o seu sangue… Oh, senhor, senhor, acudi, que ainda é
tempo, acudi por vós, salvai-vos, e salvai-nos a todos de um grande
escândalo, de uma perdição horrível. Entregai-me
esta po­bre mulher, deixai-me que a vá restituir ao povo e cumprir
a promessa que esta manhã lhe fiz na vossa catedral, no tem­plo
do Senhor, na presença de Deus, onde tomei o seu santo nome em vão,
e menti… menti por vós, por vos salvar de um desacato e acudir por
vossa honra, pela do episcopado e da igreja… menti… oh! fazei que não
seja inútil o meu pecado, que me eu glorie nele. Oh! que em memória
da­quela infeliz que não podeis ter esquecido… Impossível…
que em sua memória façais este sacrifício de vossa vaidade
— que outro não pode ser. Deixai-me ir reparar o mal feito; que
eu possa ir dizer a essa gente inquieta: O vosso bispo é incapaz das
infâmias que lhe atribuem. Ani­nhas ai está livre e pura.
Eu velei e eu velarei por ela e por sua honra.

O bispo vacilou, seus melhores instintos tomavam-no de cima. Razão,
sentimento, o próprio interesse, tudo peleja­va pelo bom arcediago.
Sua eloquência, toda de alma e coração, dobrou o orgulho
do altivo prelado — que outras paixões não as havia a
debelar ali.

— Paio Guterres, — disse ele — vós sois um virtuoso
clérigo, e um honrado homem. Abracemo-nos, arcediago, e… perdoai-me.

O cônego ajoelhou sufocado em lágrimas:

— É a vossos pés, senhor, que me eu hei de prostrar;
vós que tendes de perdoar-me, porque sois meu senhor e meu prelado.

XXX -O dito por não dito

O bispo estava com os braços abertos para o seu vigário; uma
lágrima, esquecida há tantos anos naqueles olhos que desaprenderam
de chorar, tremia-lhe entre as pálpebras se­cas e desacostumadas.

E o bom do arcediago, sem se levantar dos pés do seu su­perior,
pelos joelhos o abraçava, regando-lhos do copioso pranto de sua alegria,
na satisfação jubilosa de sua santa alma.

É quadro para enternecer anjos e converter demônios ver a humildade
da virtude prostrada aos pés do orgulhoso criminoso, que por fim não
pode mais senão deixar-se vencer e dominar por ela.

— Abraçai-me e perdoai-mel — clamava o bispo: —
Oh perdoai-me! E que Deus se compadeça de mim, e por vossa intercessão
me perdoe também, homem santo e virtuoso!

— Ele sim, Ele sim, — respondia o arcediago: — nós
somos pecadores ambos; mas Ele vos bendirá, senhor, porque vos vencestes
a vós mesmo e triunfastes de vosso maior inimigo.

Neste momento, neste próprio momento um clamor furio­so e destemperado
rebentou do lado dos paços do conselho e dentre o confuso estampido
das vozes se discriminaram lo­go os gritos de:

— Morra Pêro Cão!… Pêro Cão, e o cão
do bispo!

— Viva el-rei D. Pedro! Viva o nosso capitão!

— Venha o nosso pendão!… O pendão da Virgem!

— Liberdade, liberdade!… Abaixo com todos estes cães?

Os braços abertos do bispo estacaram; seu corpo, que se inclinava
na deferência e na compunção, ressurgiu alto e se retesou
duro e firme. Esses brados refizeram de repente ne­le o “homem velho”
e lhe retemperaram o coração na primi­tiva dureza de seu
mau natural.

Paio Guterres caiu de bruços no chão e soluçou amarga­mente:

— Meu Deus, meu Deus! é tarde, Senhor… e a vossa ho­ra
não espera por ninguém.

— Ouvis? — clamou o bispo, roxo e pálido de despeito,
mas a voz segura e mordente de amarga ironia: — ouvis, se­nhor arcediago
de Oliveira? São os vossos amigos. Ide pa­ra eles, bom clérigo.
Tirai a máscara da santidade, arrojai a garnacha e ide tomar o chuço
dos amotinados, cujo sois. Mas dirigi melhor essa canalha desatentada, porque,
se os tendes mandado vir dez minutos depois, a vossa obra de traição
estava feita, e essa mulher… Que a venham buscar agora, vós ou eles
… vós com vossas hipocrisias, eles com suas insolências: que
eu voto a São Judas Iscariote… hão de levá-la feita
em postas.

Uma gargalhada diabólica, seca, fria, uma verdadeira gar­galhada
de bruxas retiniu (de entre os panos-de-rás, pare­cia) por todo
o aposento.

— Ah! — disse o bispo, e correu a casa toda com os olhos turbados.
E não viu ninguém.

— Onde está ela, essa maldita?

Paio Guterres levantou-se, e, os braços cruzados sobre o peito, os
olhos tristemente postos no céu, não ouvia, senão em
rumor vago, as desatinadas palavras do bispo- Mas quando o sentiu, depois
de recobrado da primeira surpresa, ir direito onde Aninhas ainda há
pouco se escondera como uma criança, toda a energia de sua alma acordou,
e segu­rando-o pelas vestes pontificias, com um brado que não pa­recia
ser o de sua débil voz:

— Que fazeis, homem perdido? Tremei!

O bispo tremeu com efeito, porque a voz de Paio Guterres parecia a trombeta
de um anjo repetindo as cóleras do Se­nhor que o mandou à
terra. O arcediago, deitando a mão às cortinas, correu-as, e
patenteou aos olhos do indigno pre­lado o que era para fazer ajoelhar
impios e bater nos peitos à própria incredulidade.

Cravada numa alta cruz negra e sem mais ornatos, estava a imagem do Cristo,
de grandeza natural, não perfeita se­gundo a arte, mas devota e
impressiva imagem que tinha não sei quê de divino e de augusto,
e refletia a imensa pie­dade do Deus de misericórdias que vem morrer
pelos ho­mens. Aos pés da cruz, não a Madalena arrependida
que se debulha no pranto de seus remorsos, mas uma pobre criatu­ra, bela,
simples, e sem pecados para os chorar, mas que transida de medo se abraça
com o santo sinal da Redenção e põe sua última
esperança no amparo do Salvador.

Era Aninhas que ali se acoitara, que ali acabava de dar graças a Deus
por ver apiedado o seu perseguidor, que ali se encastelara agora de novo como
em cidadela inexpugná­vel, quando outra vez o ouviu jurar a sua
ruína:

_ Pontífice de Jesus Cristo! — bradou o arcediago: — ou­sareis
arrancá-la dali?

O bispo devia de ter dentro de si naquela hora o demônio negro que
ele dizia, porque tremeu como o demônio treme da cruz. Mas depressa
se recobrou, e sacudindo de si a dé­bil compulsão do arcediago,
assim como de sua alma todo o temor salutar de Deus:

— Basta — disse — de hipocrisias e de jogos de crianças.
Esta mulher não sai daqui; e vós saí quanto antes, senhor
arcediago. Assim vo-lo ordeno, eu vosso bispo e senhor vosso. Parti.

E chegando à porta que dava para as salas de fora, cha­mou alto:

— Olá, Pêro Cão!

O dogue apareceu. Mas não ria agora. Tão lívido e ver­de-negro
como esta manhã, trêmulo de raiva e de susto pe­los brados
que ouvia, vinha como rafeiro apedrejado che­gando-se para o dono que
o chamava.

— Tirai-me daí essa mulher, e levai-a aos cárceres reserva­dos
do subterrâneo. Não ao aljube: entendeis?

Pêro Cão deu um ronquido surdo de inteligência.

— Para igual sítio vos devia mandar a vós, senhor arce­diago;
mas…

O clérigo inclinou-se e não respondeu mais. O bispo sem olhar
para ele nem para ninguém, saiu do aposento, e to­mou para a sala
de armas onde estavam muitos dos seus ho­mens e oficiais de sua casa e
Estado. E Aninhas, depois de uma última fervorosa oração
àquela bendita imagem que, dizia ela, a salvara, tomando a bênção
de Paio Guterres, que lhe recomendou de ter bom ânimo e confiança
em Deus, se-
guiu resignadamente o seu carcereiro para a profundez das masmorras episcopais.

O pobre arcediago, desanimado, aterrado, meditando sobre as calamidades que
de tão perto via já cair sobre aquela casa de maldição,
sacudiu suas sandálias do pó infecto que ali se calcava —
desse lixo de torpezas em que tão inútilmente fora enxovalhar-se.
E levantou o pano-de-rás, e foi pela mesma escada dos sub­terrâneos…
fie só, como? Quem lhe dá o fio desse la­birinto?

Alguém ali havia escondido, que o tornou pela mão e lhe disse
baixo:
— Sou eu vinde.

Quem era? Seria a bruxa da seca gargalhada de inda agora? Quem era ela, que
fazia ali, que lhe importava?…

A história não diz senão que a dita bruxa, ou não
bruxa, levou muito diretamente o arcediago até ao seu aljube; seu porque
ele era, como já disse, o penitenciário e o viagário
do bispado. Dali sairam logo os dois: mas para onde foram não se sabe…
por agora ao menos.

Deixá-los ir; e vamos nós ver o que fazia no entanto a revolta.

XXXI – “SENATUS POPULUSQUE PORTUCALLENSIS”

Não longe das feudais torres da Sé e de seus paços,
esta­vam, como tantas vezes temos indicado, os do conselho: aí
desde manhã a vereação se tinha reunido no que hoje diría­mos
“sessão permanente”. O estado agitado da população,
o receio de a ver romper de novo em aberta revolta, conser­vava ali reunidos,
vigilantes e consultando da salvação da pátria, os veneráveis
membros do senado portucalense.

Ao reverso, porém, do senado de Roma, este é que tinha abandonado
a plebe e feito o seu Aventino no monte da Sé. E por mais penas, nem
lhe apareceu um Valério Publícola que soubesse salvar a pátria
com um conto da carochinha, restabelecer com um apólogo a harmonia
entre os poderes do Estado. E quando aparecesse, tinha de lhe suar o topete
ao Publícola tripeiro para arranjar uma história que fosse bem
o reverso daqueloutra; pois não eram agora os braços e as pernas
que recusavam trabalhar para o ventre; senão que trabalhar e muito
trabalhar queriam, mas por sua con­ta e risco, e sem lhes importar, em
coisa alguma, com a sua municipal e senatória barriga, porquanto era
ela barriga quem os tinha abandonado, deixando a bernarda à solta nas
ruas, e indo-se fechar e barricadar eles senadores nos pa­ços do
conselho.

Estavam porém ali; e consultando e deliberando estavam. Mas o resultado
de todas as suas consultações e deliberações tinha
sido aquele tão legítimo, tão clássico e proverbial
por­tuguês de: AMANHÃ VEREMOS.

Assente e aceite este grande ultimatum da política portu­guesa,
que mais há que fazer? Os ministros adormecem nos seus gabinetes dourados,
os senadores nas suas curuis de marfim, e os próprio tribunos —
quando os há — roncam nos seus escanos de pinho, porque tudo
está dito e tudo está feito. Boas noites, amada pátria,
e até amanhã.

Muitas vezes chega a dita manhã, o ministro almoça, me­te-se
na sege de aluguel, vai para a sua secretaria mui tran­quilamente, seguido
do seu lictor posterior, que choita mi­nisterialmente no rocim oficial
detrás do currículo excelen­tíssimo, — chega
ao Terreiro do Paço e acha a bernarda acampada ali com outros ministros
já feitos, que lhe tiram a pasta de baixo do braço, e lhe dão
dois pontapés no tra­seiro — sem lhe acudir nem o lictor
do chimplim, porque imediatamente o abandonou e se foi postar detrás
da outra sege de aluguel do outro ministro.

O senador, como ordinariamente vai a pé, sempre encon­tra no caminho
alguma alma benfazeja que lhe diga: “Es­conda-se, olhe que o prendem”.
E ele some-se na trapeira, e apela para o seu fiel amanhã, que lhe
é muitas vezes in­fidelíssimo, e não chega tão
cedo.

Quanto ao tribuno, esse resta-lhe acusar os outros de traidores e de patetas,
e ir tramar outra revolução para a tornar a perder.

­Amanhã, santo amanhã de Portugal, que bons sonos dei­xas
dormir à gente! Que nos importa a nós que as outras nações
andem porque aproveitam o dia de hoje, se nós, por ti, dormimos e somos
felizes como uns lazarones sem cuidados!

O senado portuense estava pois firme nestes bons prin­cípios.
E demais, como durante a procissão das ladainhas. e muitas horas depois
ainda, a revolução cochichava somen­te pelas esquinas, pelas
tendas e pelas tabernas, não gritava nem fazia ressoar os anárquicos
arames dos terríveis caldei­reiros, naturalmente se tinha ido aquietando
a solicitude dos padres conscritos, e adormecendo a sua vigilância.

Referem até alguns cronistas, porém somente como boato a que
se não pode dar crédito implícito, que sentindo-se exaus­tos
de deliberar — e o deliberar é verdade que exaure —quando
foi ali pela tarde, tinham mandado vir da próxima bodega um alentado
prato de saborosas tripas, e que em honra da invicta cidade o tinham alojado
todo em seus capacíssimos abdômens, diluindo a espessa e glutinosa
decocção em sendos pichéis de vinho maduro. O que de
tal modo acabou de serenar em seus ânimos os cuidados da re­pública,
que, inclinando as veneráveis frentes sobre a banca da vereação,
ou recostando para trás as respeitáveis nucas ao espaldar das
curuis, unanimemente e sem discrepância de um só voto….adormeceram.

Reinava a santa paz — e se afinavam em deliciosa harmo­nia os compassados
roncos dos nossos padres conscritos. Des­de o assoviado falsete de Rubini,
até ao baixo azabumba­do da Lablache, todos os sons ali se ouviam
e se harmoni­zavam em melodia e consonância.

Em poucas horas se declarou uma febre tremenda, e o ve­lho desanimou.
Assustou-se, digo. não desanimou; mas as­sustou-se muito. Junto
ao leito do infeliz que, de olhos fe­chados, prostrados exânime,
apenas soltava uns gemidos sur­dos e abafados — ele com a mão
no pulso do enfermo, e os olhos ora no rosto que lhe afilava, ora no livro
que folheava inquieto, parecia disputar com a morte que lho queria rou­bar,
e afugentá-la com o poder sobrenatural da ciência, com a fé
ardente da religião.

E venceu o velho; venceu ao cabo de horas e horas, de dias e de noites de
susto e de incessante desvelo, em que um só instante não deixou
o doente, ministrando ele por sua mão os vários remédios
que ia aplicando; e ora a mulher, ora a filha o ajudavam. que de seu lado
não saíram. De­clarou-se uma crise subitamente, a febre
cedeu, e o mori­bundo escapou à morte.

Abraão Zacuto, que este era o nome do velhos prostrou a sua face por
terra; Sara e Ester se prostraram ao pé dele, e juntos clamaram:

— Bendito seja o senhor nosso Deus, porque salvou o ho­mem estrangeiro,
e deu glória e honra à casa de seus servos!

Passam dias, semanas, as feridas vão-se fechando, as dores acalmando-se;
e quase não havia já no enfermo outro mal senão uma debilidade
extrema. E Abraão disse a Ester:

— Filha, o nosso hóspede está curado. Eu tenho de ir
a Granada, porque os nossos irmãos precisam de mim ali. Tu velarás
nele, e dirigirás sua convalescença, que há de ser longa
e difícil. Tua mãe precisa descanso, porque os seus dias são
muitos e o seu corpo está débil e enfraquecido. Adeus, e que
o Senhor te abençoe!

O velho partiu, e Ester ficou à cabeceira do enfermo.

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