Afonso Arinos
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Nos primeiros anos do século passado dá-se um fato de capital importância para o desenvolvimento da civilização brasileira. O Brasil, de administração secundária, passa a ser sede do Governo; de Colônia se transforma em Metrópole, entrando de chofre, sem luta, no estado de independência política. Qualquer crítica pessoal que se pretender fazer ao príncipe e rei d. João perde o interesse, diante da realidade poderosa do movimento progressista que a sua função governativa conduziu, se não mesmo promoveu. A estada da corte no Rio de Janeiro foi a origem de uma transformação profunda da civilização do Brasil:
Entre os primeiros atos do príncipe, ainda em escala na Bahia, há um de transcendente significação, que foi a extinção do monopólio português sobre o nosso comércio e a abertura dos portos ao tráfico internacional. Os desejos da Inglaterra neste sentido, expressos anteriormente visando favorecer a sua exportação, não surtiam efeito. O fechamento dos portos portugueses, com a invasão napoleônica, equivalia a suprimir os entrepostos de onde nos vinham as mercadorias européias, principalmente britânicas. Era fatal, pois, que o Brasil as viesse receber diretamente. A solução foi apressada por Silva Lisboa, espírito avançado da época, ledor de Adam Smith e partidário avisado da doutrina do liberalismo econômico. Atitude que, aliás, lhe mereceu o público reconhecimento do inglês John Mawe. O grande passo legislativo para o progresso material estava dado e vinha se juntar às conseqüências forçadas da mudança, para o nosso meio, dos mais altos instrumentos administrativos do Reino. Os resultados eram inevitáveis.
Comecemos por onde eles primeiro se fizeram visíveis: a cidade do Rio de Janeiro. De sede do Vice-Reinado, que já era, passaria a ser em breve a do Brasil-Reino, antes de se transformar em capital do Império. A população carioca que, como vimos, no termo do século XVIII pouco excedia de 40.000 habitantes, menor que a da Bahia, acusava, no recenseamento de 1821 (ano em que d. João VI deixa o Brasil), a cifra de mais de 110.000 almas. Quase que triplicou, por conseguinte. Estava definitivamente destronada a antiga capital do norte e não é preciso mais nada para marcar, num traço, o que foi para o Rio a presença da corte.
Exemplo vivo do rápido crescimento da cidade nos fornece uma página de Eschwege. Diz o cientista alemão que, quando fez a sua primeira viagem a Minas, em 1810, havia entre o Rio e Santa Cruz algumas localidades pequenas, espalhadas à beira da estrada. Destas localidades, enumera Mata Porcos e São Cristóvão. Mas em 1818 (quando publica a narrativa), observa em nota que a estrada tinha mudado muito, desde o tempo da sua primeira excursão. “Mata Porcos e São Cristóvão – diz Eschwege – cresceram tanto que formam quase um só correr de casas com a cidade e podem ser considerados como subúrbios do Rio”. O desenvolvimento da banda sul, nos arrabaldes de Catete, Botafogo e Laranjeiras, é consignado por Spix e Martius. As casas da cidade eram quase sempre de pedra, cobertas de telha. As antigas persianas coloniais estavam sendo abolidas e trocadas pelas novas janelas com vidros, embora lentamente. Só nisto vai um capítulo de história social.
O príncipe Maximiliano de Neuwied, chegado ao Rio em 1815, escreve também que a cidade mudara muito nos anos anteriores. Quase 20 mil portugueses tinham vindo com o rei e a abertura dos portos facilitava a entrada de súditos de todas as bandeiras. Ingleses, espanhóis e italianos eram muito numerosos. Os franceses estavam chegando em quantidade e, em menor número, havia também holandeses, suecos, dinamarqueses, russos. De tudo isto, afirma o príncipe, “resulta que os costumes do Brasil estão sendo alterados pelos da Europa. Melhoramentos de todo gênero foram introduzidos na capital. Ela perdeu muito da sua antiga originalidade: hoje está mais parecida com as cidades européias”. A única diferença, nota ainda o nosso ariano, era serem os negros e mulatos em maior número que os brancos
Spix e Martius, que aqui aportaram em 1817, fazem a mesma observação. A cidade do Rio não parecia capital de um novíssimo país de apenas três séculos. A influência da velha civilização da Europa tinha feito dela uma cidade européia. “As línguas, os costumes, a construção e o acúmulo dos produtos industriais de todas as partes do mundo dão ao Rio de Janeiro uma aparência européia”, anotam os escritores. A única coisa estranhável era a negrada e mulatada, visão surpreendente e desagradável. “A natureza primária e baixa dessa gentalha seminua fere o sentimento do europeu”, ajuntam os perturbados e ilustres viajantes.
Página admirável de compreensão e solidariedade humana, a propósito dos escravos pretos, é a escrita pelo reverendo Walsh, chegado ao Brasil em 1828, como capelão da embaixada de Strangford. Walsh também acentua o enorme crescimento do Rio de Janeiro, desde a vinda da corte. Mostra como a velha cidade, cujos limites iam somente da rua Direita ao campo de Santana, se expandia agora até Botafogo, de um lado, e São Cristóvão do outro, por várias milhas, o que dava ao conjunto uma área equivalente às que tinham as maiores capitais da Europa. Eram incríveis as transformações recentes, presenciadas por muitos que ainda viviam. Pântanos aterrados, areais convertidos em bairros residenciais, trilhas silvestres transformadas em ruas bonitas, como a de Matacavalos.
Não somente cresceu a cidade como também foi provida de edifícios públicos e particulares, dotados de estilo arquitetônico mais apurado, graças à presença do arquiteto Grandjean de Montigny, elemento integrante da missão artística francesa aqui chegada em 1816. Foram planejadas por Montigny, que já tinha certa notoriedade européia quando aportou no Rio, várias construções, das quais infelizmente muito poucas subsistem. Entre elas, o edifício da Escola de Belas Artes, inaugurado em 1826, depois Tesouro e recentemente demolido, mas de cuja fachada o S.P.H.A.N. preservou uma bela parte; a primeira e a segunda Praça do Comércio, aquela ainda existente, e a segunda já demolida, que se situava mais ou menos onde hoje se encontra o Banco do Brasil.
Muito maior teria sido a influência do Montigny se não encontrasse o obstáculo de arraigados preconceitos no povo e na administração. Aliás, é indubitável que a missão francesa, contratada para agir num plano cultural muito elevado e num meio que mal saía da inércia e do atraso coloniais, era tentativa temporã, incapaz de produzir o que dela se chegou a esperar.
Não se suponha, também, que os melhoramentos introduzidos pela presença da corte tenham modificado profundamente o aspecto geral da cidade, no sentido urbanístico ou mesmo higiênico. Pode-se dizer que o Rio cresceu muito mais do que melhorou. Alguns edifícios monumentais, isolados, se construíram; mas já os havia desde antes, como os conventos e igrejas. E algumas casas particulares modernas e higiênicas não influíam no sistema geral de habitação do povo, que continuava, e cada vez em maior quantidade, a viver acumulado nas alcovas das casinhas térreas, em ruas estreitas e escuras. O calçamento era mau, a iluminação péssima e o estado sanitário não podia ser bom. Aliás o Rio é, como cidade higiênica e moderna, uma realização republicana.
Os mesmos Spix e Martius, que comparam a construção do Rio com a das cidades do Velho Mundo, são os primeiros a observar que a arquitetura era aqui muito descuidada e que se aproximava da dos velhos quarteirões de Lisboa. Observação que concorda com outra de Walsh. Aqui e ali se derrubavam abas de morros, fazendo-as saltar com explosões de pólvora, para alinhar e arranjar ruas. Mas pensamos que a verdadeira definição para o Rio do Brasil-Reino é a que acima demora: uma cidade que cresceu muito e progrediu pouco.
O arejamento da mentalidade colonial é que se tornou inevitável. Aberto o interior à visita de comerciantes e cientistas estrangeiros, coisa que antes não se dava, a curiosidade européia pelo Brasil pôde se satisfazer na leitura de observações outras que não as de apressados viajantes que não transpunham a fímibria do litoral.
Ingleses como Mawe, Luccock ou Koster; franceses como Saint-Hilaire ou Tollenare; germânicos como Eschwege, o príncipe Maximiliano, Spix, Martius e Pohl viajaram pelo Brasil antes da independência e publicaram livros (alguns saídos um pouco mais tarde) que despertaram curiosidade pelo reino americano. Também muito contribuiu para o conhecimento do Brasil o corpo diplomático estrangeiro, que aqui se fixou com a corte. Para termos idéia do interesse europeu, basta lembrar a frase de Maximiliano de Neuwied, cujo livro é de 1821, que diz ser desnecessário fazer uma descrição do Rio de Janeiro, tão freqüentes tinham sido elas nos últimos tempos. Naturalmente, a evolução do modo colonial de pensar e de sentir resultou da vinda da corte, mas num país da vastidão do Brasil as suas conseqüências não podiam ser rápidas. Num ligeiro passar de olhos, veremos que o Brasil da Independência, do ponto de vista da civilização, não diferiu muito do Brasil do fim do século XVIII, com exceção, está claro, da cidade do Rio.
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