A Lotação do Bonde – Adolfo Caminha

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Comédia em um ato

Por

França Júnior

PERSONAGENS

CAMILO CORREA, 26 anos
RAMIRO MARTINS, 50 anos
ELVIRA MARTINS, sua filha, 18 anos
JOAQUIM PIMENTA, 40 anos
JOSEFA PIMENTA, sua mulher, 25 anos
Tenentes do Diabo
– VITORINO
– GONZAGA
– ERNESTO
– CARNEIRO
– MAGALHÃES
UM CRIADO DO HOTEL

A cena passa-se no Hotel de Londres.

Época – Atualidade.

ATO ÚNICO

O teatro representa uma sala do Hotel de Londres no

Jardim Botânico

CENA I

VITORINO, ERNESTO, GONZAGA, MAGALHÃES e CARNEIRO (Que comem sentados
ao redor de uma mesa.)

VITORINO – Vivam os Tenentes do Diabo!

TODOS – Hip! Hip! Urrah!

ERNESTO – Tu gritas mais do que comes, meu caro amigo.

Toma o exemplo do Magalhães, que come sem gritar.

GONZAGA (Batendo no ombro de Magalhães.) – É um excelente garfo!

CARNEIRO (Levantando-se.) – Meus senhores, quem devora por este modo merece
a consideração e respeito de seus consócios. Eu proponho
que o Magalhães seja promovido a capitão do Diabo.

TODOS – Apoiado!

CARNEIRO – Não deve marcar passo em tenente quem ocupa sempre um lugar
de honra em nossos passeios, atacando com valor inexcedível as sopeiras
e as terrinas e realizando as mais bem combinadas operações
de queixo.

ERNESTO – É um Moltke!

CARNEIRO – Vejam: ele acaba de plantar o estandarte da vitória sobre
o esqueleto deste peru.

MAGALHÃES – Por falar em peru, passa-me aquele frango de cabidela.

VITORINO – Já não há mais.

MAGALHÃES (Batendo no prato.) – Garçom! Garçom! (Aparece
o criado.)

ERNESTO – Frango de cabidela a um. (O criado vai a sair.)

CARNEIRO (Chamando o criado.) – Venha cá, traga para quatro.

MAGALHÃES – Dizes muito bem: eu só, valho por quatro de vocês.
(O criado sai, volta depois com o prato pedido.)

CARNEIRO – Não contesto.

MAGALHÃES – E provo-o já.

VITORINO – Vejamos.

MAGALHÃES – Qual é o fim do nosso passeio hoje ao Jardim Botânico?

ERNESTO – Divertirmo-nos.

GONZAGA – Um pretexto para te ver comer.

MAGALHÃES – Não sejam modestos; estamos em família e
podemos dizer que nós, os Tenentes do Diabo, só de diabos temos
o nome quando, dominados pelos mais belos sentimentos, saímos pelas
ruas a implorar do generoso povo fluminense o óbolo da caridade em
favor dos desgraçados e oprimidos.

GONZAGA – Bonito, seu Magalhães.

MAGALHÃES – Não vimos aqui hoje esmolar para as vítimas
da epidemia de Buenos Aires? Pois bem, abram as sacolas e eu aposto aquele
frango de cabidela em como nenhum de vocês será capaz de realizar
até ao fim do dia o que eu tenho conseguido até agora.

ERNESTO (Tirando dinheiro do saco.) – Eu já arranjei dez cartões
de bondes.

VITORINO – Eu tenho mil e oitocentos.

MAGALHÃES – Eu lhes apresento dez de cinco e quatro cartões
da Ferry.

CARNEIRO – Decididamente eu expiraria de bom grado nos braços da epidemia
para deixar a viúva amparada por um protetor da tua ordem.

GONZAGA – À saúde do Magalhães.

VITORINO – Falemos em tese. Pela segunda vez – à saúde dos
Tenentes do Diabo, e há de ser cantada.

TODOS (Menos Magalhães que come durante o canto que se segue.) – Apoiado!

CARNEIRO – Canto eu. (Canta.)

Em prazeres e folias
Corre a vida venturosa;
Este mundo desgraçado
E daquele que mais goza!

Eia, pois, rapaziada,
Toca a rir, toca a folgar,
Não devemos nesta vida
Duras penas suportar.

CORO (Com acompanhamento de copos.)

Em prazeres e folia
Corre a vida venturosa,
Este mundo desgraçado
E daquele que mais goza.

CARNEIRO –

Somos praças do diabo,
Mas a Deus idolatramos,
Pois as lágrimas da viúva
Com prazer nós enxugamos.

Eia, pois, rapaziada,
Das garrafas demos cabo;
Viva a tropa caridosa
Dos Tenentes do Diabo.

CORO –

Eia, pois, rapaziada,
Das garrafas demos cabo,
Viva a tropa caridosa,
Dos Tenentes do Diabo.

Todos – Bravo! Bravo!

CENA II

OS MESMOS e o CRIADO

CRIADO – Acaba de chegar um bonde. Quem quiser ir para a cidade, ande depressa,
antes que se complete a lotação.

CARNEIRO (Indo à janela. Todos deixam a mesa.) – Já não
há lugar; está cheio como a barriga do Magalhães! Ficaram
três famílias a ver navios, com umas caras tão desconsoladas…

VITORINO – Aproveitemos aquele grupo. A coleta ali deve ser rendosa.

Tonos – Vamos. (Saem, levando Magalhães um pão consigo.)

CENA III

0 CRIADO, CAMILO, ELVIRA e JOSEFA

CRIADO (Examinando a mesa.) – Irra! Se o tal sujeito fica aqui mais meia
hora, era capaz de devorar os guardanapos!

CAMILO (Entrando com Elvira e Josefa.) – Não se assustem, minhas senhoras,
Vossas Excelências têm a seu lado um cavalheiro.

ELVIRA (Aflita.) – A esta hora anda papai à minha procura. Como não
estará mamãe aflita! Logo no dia de seus anos!

CAMILO – Sossegue, minha senhora.

JOSEFA – E meu marido, minha Nossa Senhora das Candeias! Antes eu tivesse
ficado em Minas. Eu bem não queria vir ao Brasil.

CAMILO – Vossa Excelência é mineira?

JOSEFA – Sim, senhor; nasci na freguesia da Meia Pataca. CAMILO – É
por conseguinte meia pataqueira?

JOSEFA – No que tenho muita honra. Chamo-me Josefa Pimenta, estou casada
há dois meses com o Senhor Joaquim Pimenta que tem dois filhos do primeiro
matrimônio, chamados Cazuza Pimenta e Manduca Pimenta.

CAMILO (À parte.) – Safa! Que pimenteira! Esta família é
um molho!

ELVIRA – Onde estará, papai, meu Deus?!

CAMILO – Não imagina Vossa Excelência o favor com que bendigo
este feliz incidente.

CRIADO – Os senhores querem alguma coisa?

CAMILO – Vai-te embora, deixa-nos em paz. (O criado sai.)

CENA IV

OS MESMOS menos o CRIADO

CAMILO – Vou marcar na minha folhinha este venturoso domingo.

ELVIRA – E o senhor a gracejar em uma situação destas!

CAMILO – O que tem esta situação? Quer que chore? Não
estamos um ao lado do outro?

ELVIRA – O coração bem estava me dizendo que eu não
devia ir à cidade. Saio de casa a fim de comprar na rua do Ouvidor
um presente para dar à mamãe…

CAMILO – E quis a minha boa estrela que seu pai, ao chegar, às três
horas da tarde, na rua Gonçalves Dias, no meio da lufa-lufa do povo
que ali se apinha à espera de bondes, tomasse o carro do Jardim Botânico
pelo das Laranjeiras, que investisse para ele, que Vossa Excelência,
mais ligeira, alcançasse um lugar e que ele ficasse na plataforma,
sendo daí enxotado pelo urbano, por estar fora da lotação.
Nada mais natural. Vossa Excelência não deu por isso; o bonde
partiu e eis-me a seu lado, fruindo esta ventura que me esperava. (Vai à
janela.)

JOSEFA (Desce.) – Ah! Minha Nossa Senhora das Candeias, que lembrança
desgraçada teve aquele homem em querer por força vir visitar
hoje a comadre. O senhor não avalia em que assados me vi. Deram-me
tamanho futicão no vestido que descoseram-me todo o franzido, perdi
o chapéu, romperam-me o chale, estive entalada na porta do carro dois
minutos sem poder tomar respiração, puseram-me enfim mais arrepiada
do que uma galinha no choco. Sento-me furiosa, parte o bonde e quando procuro
pelo Senhor Pimenta…

CAMILO – Tinha ficado também, graças à lotação.

JOSEFA – O senhor não me explicará que história é
esta de lotação?

CAMILO – A lotação, minha senhora, é uma medida empregada
pela polícia, para que ninguém venha incomodado dentro dos bondes.

JOSEFA – Pois olhe, mais incomodada do que eu vim é impossível!
Lá na Meia Pataca não há lotação e a gente
anda como quer. Onde está meu marido? O senhor compreende, estou casada
com o Pimenta apenas há dois meses…

CAMILO – Devem ter tido uma lua de mel muito ardida.

ELVIRA – Leve-nos para a casa, senhor; iremos com esta senhora e eu explicarei
tudo a meu pal.

CAMILO – Tenha paciência; havemos de jantar juntos. Vou chamar o criado
e mandar preparar o que houver de mais esquisito. (Canta.)

Bem unidos
Jantaremos,
Quão felizes
Não seremos.

Teu talher
Junto do meu!
O meu rosto
Junto do teu!

Que ventura
Vou gozar!
Que mais posso
Desejar?

ELVIRA –

Minha mãe,
Pobre coitada,
Deve estar
Angustiada.

JOSEFA –

E o Pimenta
Lá ficou,
Sem saber
Aonde estou.

CAMILO –

Não se zangue,
Deixe estar,
Nós havemos
De o encontrar.

ELVIRA – (TODOS)

Minha mãe, etc…

JOSEFA – (TODOS)

E o Pimenta, etc…

CAMILO – (TODOS)

Não se zangue, etc…

CAMILO (Gritando para dentro.) – Garçom! Garçom!

ELVIRA – Vou partir sozinha no primeiro bonde.

CAMILO – Não consinto. (Aparece o criado.) Garçom, prepara
naquela sala um jantar para três.

JOSEFA (Para o criado.) – Oh! Seu garçom, o senhor podia me fazer
um obséquio? Estou toda descosida, se houvesse lá dentro uma
agulha…

CAMILO – Vá com ele, minha senhora, e fale lá dentro com a
madama, que há de encontrar tudo quanto precisa. (Saem Josefa e o criado.)

CENA V

CAMILO e ELVIRA

CAMILO – Estamos sós. Que ventura! Querida Elvira.

ELVIRA – Meu Deus! O senhor causa-me medo. Por que me olha assim?

CAMILO – Por que te olho assim?! Pergunta à brisa por que cicia medrosa
em noites estreladas no recatado turíbulo das flores; pergunta à
vaga por que desfaz-se na branca areia em alvos risos de espuma; ao humilde
passarinho por que exala saudosos trinos quando a aurora derrama róseos
prantos de luz sobre a campina verdejante; ao desgraçado por que sorri
em horas de esperança. Por que te olho assim?! E que eu bebo a vida
em teus olhos negros e quisera exalar o último suspiro aspirando a
teu lado o grato perfume dessas tranças de ébano.

ELVIRA – Mas o senhor nunca me falou por este modo.

CAMILO – Que querias que te dissesse se temos estado juntos apenas cinco
minutos e se o único consolo que me resta é passar todas as
tardes por tua casa e ver-te à janela?

ELVIRA – No que tem feito muito mal, porque a vizinhança tem hoje
as vistas em cima de nós e segundo me consta já tenho sido até
assunto de conversação no açougue da esquina.

CAMILO – O que devo fazer então? Queres que não passe mais
por tua porta?

ELVIRA – Não digo isso… Mas o senhor bem sabe que quando as coisas
chegam a um certo ponto… Por que ainda não falou com papai?

CAMILO – Mas se eu não conheço teu pai, nem nunca o vi, como
hei de sem mais nem menos, sem uma apresentação sequer, entrar-lhe
pela casa adentro, e pedir-lhe a tua mão?

ELVIRA – Eu já lhe contei tudo.

CAMILO – Deveras? Então teu pai me conhece?

ELVIRA – Não o conhece pessoalmente, mas creia que tem as melhores
informações a seu respeito!

CAMILO – E quem lhas deu?

ELVIRA – Esta sua criada.

CAMILO – Oh! Quanto sou feliz! Dou-te minha palavra que amanhã envergarei
a casaca preta, calçarei um par de luvas brancas e… (Gritam de dentro:
– Vivam os Tenentes do Diabo!).

ELVIRA – O que é isto?

CAMILO – Esconda-se depressa ali.

ELVIRA – Não; vou-me embora.

CENA VI

OS MESMOS, VITORINO, ERNESTO, GONZAGA, MAGALHÃES e CARNEIRO (Que vêm
de dentro cantarolando.)

E viva o Zé Pereira
Pois que a ninguém faz mal,
Viva a bebedeira
No dia de Carnaval, etc.

CAMILO – Esconda-se, minha senhora.

CARNEIRO – Oh! Cá está o Camilo. (Vendo Elvira no momento em
que esta entra para a esquerda baixa.) Olé, temos contrabando?

CAMILO – Por favor, deixem-me só.

GONZAGA (Rindo-se.) – O mitra tinha conquista; por isso é que não
quis se incorporar à troça.

VITORINO (Para Camilo.) – És um tenente degenerado.

CARNEIRO – Meus senhores, eu sou o homem da justiça. Assim como há
pouco tive a honra de vos propor que o Magalhães fosse promovido a
capitão do diabo pelo muito que tem trabalhado em prol da barriga,
proponho agora que demos baixa quanto antes no Camilo e que se mencione este
acontecimento em ordem do dia.

Toros – Apoiado! Apoiado!

CAMILO – Pois sim, dêem-me baixa, reformem-me, tirem-me o título
de barão de Kikiriqui com que me agraciaram, mas deixem-me só,
pelo amor de Deus. (Entra para a direita.)

CARNEIRO (Gritando para a direita.) – Queremos ver esta conquista.

TODOS – Ah! Ah! Ah!

MAGALHÃES (Tirando uma nota do saco.) – Meus senhores, uma nota de
dez mil réis arrancada com argumentos irresistíveis da carteira
de um usurário!

CENA VII

VITORINO, ERNESTO, GONZAGA, MAGALHÃES,

CARNEIRO e RAMIRO

RAMIRO (Entrando com um queijo embrulhado e diversos embrulhos sobraçados.)
– Boa tarde, meus senhores. Os senhores não viram por aqui uma menina
de vestido branco, nariz aquilino, cabelos crespos, um pequeno sinal na face
direita.

CARNEIRO – Baixota, gordota, bonitota? Não vimos, não, senhor.

RAMIRO – Deixem-se de caçoadas, que eu falo sério. Quem é
o dono da casa?

CARNEIRO (Olhando para o queijo.) – Quer que lhe alivie deste peso?

RAMIRO – Mas com os diabos isto é para desesperar!

MAGALHÃES – Meu caro amigo, chegou a propósito.

RAMIRO – Acaso sabe onde ela está? Oh! Diga-me, senhor, pelo amor
de Deus, onde está ela?

MAGALHÃES – Ela quem?

RAMIRO – Minha filha, que perdeu-se em um bonde e que a esta hora vaga pela
cidade, sem uma bengala que a proteja. Eis aí em que deu a medida da
polícia. Chuche, seu Ramiro! Não há nada como morar fora
da cidade, dizem todos. Pois não, é ótimo! Vai um cidadão
para casa, carregado como uma carroça de trastes, leva muitos trambolhões,
pontapés e socos, para escalar um bonde; quando julga-se aboletado,
empurram-no da plataforma, porque a lotação está completa
e lá se vai um pai sem uma filha, uma família sem chefe… Isto
é para fazer perder a cabeça!

MAGALHÃES (Mostrando o saco.) – Em todo o caso foi a Providência
que aqui o trouxe para praticar uma boa ação.

RAMIRO – O que quer o senhor com este saco?

MAGALHÃES – Uma esmola para as vítimas da epidemia de Buenos
Aires.

RAMIRO – Sim, senhor; dou a esmola; mas fique sabendo que no Rio de Janeiro
há uma epidemia maior do que todas as que possam assolar o universo.

MAGALHÃES – Qual é, meu caro senhor?

RAMIRO – A epidemia da caridade. Há uma chuva de gafanhotos na China,
o Brasil, que tem grandes interesses no Celeste Império, trata logo
de minorar os sofrimentos dos sectários de Confúcio. Arvora-se
uma comissão com o respectivo presidente, que sai pelas ruas a esmolar.
Livre-se então quem puder. Amigos, conhecidos, desconhecidos, todos,
ninguém escapa, todos hão de concorrer com o seu óbolo
para o saco: em outro tempo dois vinténs era o óbolo do remediado;
a praga dos cartões, porém, matou o cobre, e quando nos apresentam
uma sacola, lá se vão de pancada dois tostões. A caridade,
esse sentimento rei, que o Cristo depositou no santuário da nossa consciência,
tornou-se uma virtude oficial. Esmolam arregimentados, com murças,
insígnias, nas portas dos templos, dos teatros, do passeio, nas cancelas
do Jóquei Clube, por toda a parte, enfim, onde a filantropia fique
bem patente. O Evangelho diz que a mão direita não deve saber
o que dá a esquerda. O que a mão direita dá, entre nós,
não só o sabe a esquerda, como um terceiro, que se coloca entre
o rico e o pobre como procurador deste. Um filantropo quer comemorar o nascimento
de um filho ou o aniversário natalício da mulher, liberta o
ventre de uma escrava de oitenta anos, e manda publicar logo em todas as folhas
diárias: "Ato de filantropia. O Sr. Fulano dos Anzóis Carapuça,
querendo solenizar o dia, etc., etc., libertou o ventre de sua escrava Quitéria."
Atos como este não se comentam. Outros libertam ventres, que ainda
podem dar frutos e vivem desconhecidos na sociedade.

MAGALHÃES – Pois bem, meu amigo, proteste, mas pague.

RAMIRO – Já lhe disse que dou a esmola. O que desejo é que
os senhores, mancebos em cujos peitos pulsam os mais generosos sentimentos,
se convençam de que vão no meio em todo este negócio,
como eu. As honras, as condecorações, os agradecimentos oficiais
e as tetéias, são para os graúdos, ao passo que para
os pequenos há a consolação de voltarem-se para o céu
e exclamarem – Meu Deus, vós sois testemunha de que eu fiz o bem pelo
bem. Aqui tem dez tostões.

MAGALHÃES – Obrigado. Falou como um Demóstenes.

RAMIRO (Canta.)

Nesta terra caridosa
Os pequenos e miúdos,
Servem todos, sem exceção,
De degrau para os graúdos.

Muito tolo é quem trabalha
Para os grandes elevar,
Que no dia da ascensão
Pontapés há de tomar.

Eles são grandes gigantes,
Nós pequenos pigmeus;
Eles sábios e ilustrados,
Nós camelos e sandeus.

Nesta terra caridosa
Os pequenos e miúdos,
Servem todos, sem exceção,
De degrau para os graúdos.

Mas onde estará minha filha? Elvira, anjo de candura, onde paras?
Olá de dentro?

CARNEIRO (Olhando para o fundo.) – Lá está um grande grupo.
A ele, rapaziada! (Saem todos correndo.)

CENA VIII

RAMIRO e depois JOAQUIM PIMENTA

RAMIRO – O sangue sobe-me à cabeça, eu vou ter um ataque.

PIMENTA (Entrando a toda pressa pelo fundo.) – O senhor não viu por
aqui uma moça de vestido branco?…

RAMIRO – Diga, fale, senhor, onde é que a viu? Nariz aquilino, cabelos
crespos…

PIMENTA – Não, senhor; nariz chato, cabelo corrido e acode pelo nome
de Josefa.

RAMIRO – Ora bolas! Então não é ela.

PIMENTA – De quem é que o senhor fala então?

RAMIRO – De minha filha, que perdeu-se em um bonde, desgraçado!

PIMENTA – E eu falo de minha mulher, que sumiu-se também em um carro
que veio para o Jardim Botânico. Que dia, meu prezado senhor! Minha
mulher perdida e eu com este furioso galo na testa. E quer saber por que foi
tudo isto? Por causa da lotação.

RAMIRO – E não sabe também o senhor que, por causa da lotação,
acho-me agora aqui, com estes embrulhos, e este queijo londrino, que devia
figurar a esta hora no banquete dos anos de minha mulher, que todos os convidados
lá estão à minha espera e que minha filha anda por aí
exposta às chufas do primeiro valdevinos?

PIMENTA – E minha mulher? Uma criatura inocente e angélica, nascida
na freguesia da Meia Pataca, uma tontinha que nunca veio à corte e
que será capaz de aceitar o braço do primeiro bigorrilhas que
lhe queira ir mostrar o peixe-boi do Fialho. Eu vinha para as Laranjeiras
e ela veio parar para estes lados.

RAMIRO – Justamente como eu.

PIMENTA – Quando investi para o carro e procurei ganhar o estribo um malvado
arruma-me tamanho soco que caí sobre as pedras, fazendo este galo na
testa.

RAMIRO – Não é exato. Conte o caso como o caso foi. O senhor,
ao subir para o estribo, escorregou; neste escorregão segurou-se à
aba da sobrecasaca de um indivíduo, procurando arrastá-lo também
na queda.

PIMENTA – Como sabe o senhor isto?

RAMIRO – Porque foi este seu criado quem teve a honra de dar-lhe o soco.

PIMENTA – E o senhor diz-me em face semelhante coisa?

RAMIRO – Ora, vamos lá; quer brigar?

PIMENTA – Há de dar-me uma satisfação em público.

RAMIRO – Dou-lhas todas que quiser; pago-lhe até o curativo do galo;
mas lembre-se que estamos empenhados em uma causa comum, para a qual devem
convergir presentemente todos os nossos esforços.

PIMENTA – Sim, um soco em um cidadão! Não é nada. É
sabido que sou influência na Meia Pataca…

RAMIRO – Diga antes – influência de meia-pataca, como são todas
as de aldeia.

PIMENTA – Não me falte ao respeito, senhor.

RAMIRO – Perdão, não me fiz bem compreender; eu queria dizer
influência apatacada, que é a verdadeira influência.

PIMENTA – Aceito a explicação. Ora, sendo eu conhecido na freguesia
pelo meu apego a todos os governos, necessariamente a Reforma há de
aproveitar este incidente para um boato.

RAMIRO – Deixemo-nos de questões ociosas. Quer ou não achar
sua mulher?

PIMENTA – E para que fim vim eu cá?

RAMIRO – Então vamos para o jardim; o senhor procura por um lado e
eu por outro. Os sinais de minha filha são os seguintes:

vestido branco, nariz aquilino, cabelos crespos e pretos. E clara.

PIMENTA – Aí vão os da minha mulher: cara larga, nariz chato,
falta de um queixal, está um pouco indefluxada e traz uma liga verde.

RAMIRO – Muito bem; vamos embora. (Canta.)

Ao Jardim sem mais demora,
Vamos ambos procurar,
O senhor a cara esposa,
Eu a vida do meu lar.

PIMENTA –

Oxalá que as encontremos,
No que não tenho esperança,
Procuremos as tontinhas
Que a noite já se avança.

RAMIRO –

Ao Jardim sem mais demora,
Vamos, etc., etc.,

PIMENTA –

Oxalá que as encontremos,
No que, etc., etc.

PIMENTA – Vamos! (Sai sem chapéu, com Ramiro, pelo fundo.)

CENA IX

CAMILO, JOSEFA e depois PIMENTA

JOSEFA – O senhor disse que nos levava para casa, logo que acabássemos
de jantar.

CAMILO (À parte.) – Que sarna! (Alto.) É verdade, mas eu não
sei onde a senhora mora.

JOSEFA – É na rua… (Procurando lembrar-se.) Uma rua muito suja.

CAMILO – No Rio de Janeiro não há rua que seja limpa. Já
vê que estamos na mesma.

JOSEFA – Rua de…

PIMENTA (Entrando para procurar o chapéu; à parte.) – Olá!
Minha mulher com um sujeito! Ui! Que picada no galo!

JOSEFA – Rua de…

PIMENTA (A parte.) – Está lhe ensinando a casa.

JOSEFA – Eu vou perguntar à mocinha; ela há de saber. (Entra
pela direita.)

CENA X

CAMILO e PIMENTA

(Pimenta dirige-se a Camilo e contempla-o com raiva, abanando a cabeça,
pequena pausa.)

CAMILO (À parte.) – O que quererá este sujeito?

PIMENTA – Conhece-me? Sabe quem eu sou?

CAMILO – Não tenho essa honra.

PIMENTA – Ponha o seu chapéu e vamos à polícia.

CAMILO – À polícia?!

PIMENTA – Ande, senhor.

CAMILO – Ora, vá pentear macacos.

PIMENTA – Ah! Miserável, pensavas que poderias abusar impunemente
da posição de uma moça que é surpreendida em um
bonde, sozinha, inerme, sem defesa…

CAMILO (À parte.) – Com os diabos! É o pai de Elvira!

PIMENTA – Vai já me pagar.

CAMILO – Estou pronto a reparar tudo, senhor.

PIMENTA – A reparar tudo! Então ela cometeu uma falta?! Ai! Meu Deus!
Quero ar! Quero ar!

CAMILO – Sossegue, senhor.

PIMENTA – Estou com a vista escura! Segure-me. (Desmaia nos braços
de Camilo.)

CAMILO (Gritando.) – Garçom? Garçom? (Aparece o criado.) Leva
este senhor para dentro. (O criado leva Pimenta para a esquerda.) Estou perdido!

CENA XI

CAMILO e JOSEFA

JOSEFA – Já sei: é na rua de São Diogo.

CAMILO (Passeando apressado.) – Está bom, minha senhora; faça-lhe
bom proveito.

JOSEFA – Vamos já, antes que anoiteça.

CAMILO – Pode ir sozinha, eu não a acompanho.

JOSEFA – Não me acompanha?! (Chorando.) Ai! Meu Deus! O que será
de mim?

CAMILO – Grita para ai.

JOSEFA (Chorando.) – O senhor é um homem sem entranhas.

CAMILO – Melhor.

JOSEFA (Chorando.) – Não se condói da posição
de uma pobre desgraçada… Pois bem, eu ficarei aqui, e meu marido
há de achar-me. (Entra para a direita.)

CENA XII

CAMILO e depois ELVIRA

CAMILO – Que os diabos te carreguem. E então o que me dizem a uma
entaladela destas?

ELVIRA – Vamos embora, senhor.

CAMILO – Elvira, está tudo perdido!

ELVIRA – Tudo perdido?! Não o compreendo!

CAMILO – Não podemos sair daqui sem um grande escândalo!

ELVIRA – E é o senhor que me falava ainda há pouco por aquele
modo, que me vem agora dizer…

CAMILO – É por isso mesmo.

ELVIRA – Compreendo finalmente os seus planos. Tenho em meu poder uma donzela
fraca e indefesa, disse com os seus botões, uma tolinha que teve a
ingenuidade de declarar-me que me amava. Pois bem, vou abusar da posição
que me deu a minha boa estrela e divertir-me à custa da infeliz.

CAMILO – Mas, Elvira…

ELVIRA – Deixe-me, vou partir já, em companhia daquela senhora. Os
nossos amores estão acabados.

CENA XIII

OS MESMOS, RAMIRO e depois PIMENTA

RAMIRO (Entrando pelo fundo, à parte.) – Onde se meteria aquele palerma?
(Deparando com Elvira.) Ah! Elvira! Elvira! Minha filha!

CAMILO (À parte.) – Sua filha?!

RAMIRO – Deixa-me abraçar-te; segura neste queijo. (Dá o queijo,
deparando com Camilo.) Quem é este homem?

PIMENTA (Entrando.) – Ah! Ainda está aí! Vamos para a polícia,
senhor.

RAMIRO – Para a polícia?! Por quê?

PIMENTA – Vêem este libertino?! É o sedutor de minha mulher.

ELVIRA (Indo abraçar-se com Ramiro.) – Meu pai, defenda-me.

CAMILO – Mas que diabo de mulher foi que eu seduzi? Eu pensava que o senhor
fosse o pai desta menina.

RAMIRO – Então o negócio é com minha filha?

CAMILO (À parte.) – Que embrulhada, meu Deus!

CENA XIV

OS MESMOS e JOSEFA

JOSEFA – Estou pronta. (Deparando com Pimenta.) Pimenta! Foi o céu
quem te trouxe aqui!

CAMILO – Ah! Esta é que é a sua mulher? Ah! Ah! Ah!

PIMENTA – E o senhor ainda ri-se?

CAMILO – Pois não quer que me ria? Ah! Ah! Ah!

PIMENTA – Que desaforo!

CAMILO – Não precisa ter o incômodo de me levar à polícia.
Dona Elvira explicar-lhe-á tudo.

PIMENTA – Como sabe o senhor o nome de minha filha?

ELVIRA – Papai, é o Senhor Camilo, aquele moço de quem lhe
tenho falado por diversas vezes e que passa todas as tardes lá por
casa.

RAMIRO – E vieste parar sozinha no Jardim Botânico com um namorado?!

CAMILO – É verdade; porém um namorado respeitador e das melhores
intenções, que aguardava solícito uma ocasião
para pedir-lhe este anjo em casamento.

RAMIRO – Mas isto não é um sonho?

ELVIRA – E eu quero, papai.

RAMIRO (Com alegria.) – E eu também, minha filha!

PIMENTA (Para Josefa.) – Não hás de embarcar mais em bondes.

RAMIRO – Pois minhas filhas hão de andar doravante somente em bondes
e oxalá que todas se percam como esta. Bendita lotação!
Vou dar um abraço na polícia.

CENA XV

OS MESMOS, VITORINO, GONZAGA, CARNEIRO,

MAGALHÃES e ERNESTO

TODOS (Os tenentes.) – Vivam os Tenentes do Diabo!

CARNEIRO (Vendo Pimenta.) – Lá está um que ainda não
deu nada.

RAMIRO (Com alegria.) – Cheguem para cá todas as bolsas, estou radiante
de felicidade. (Dá dinheiro em todas as bolsas)

Levem também este queijo e façam-no figurar em um tombola.
(Dá-o a Carneiro.)

(A orquestra preludia o canto final, Ramiro dispõe-se a cantar.)

CENA XVI

OS MESMOS e o CRIADO

CRIADO – Chegou um bonde da cidade. (Saem todos correndo, com atropelo, pelo
fundo.)

(Cai o pano.)

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