A Normalista – Adolfo Caminha

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Capítulo I

João Manoel da Mata Gadelha, conhecido em Fortaleza por João
da Mata, habitava, há anos, no Trilho, uma casinhola de porta e janela,
cor d’açafrão, com a frente encardida pela fuligem das
locomotivas que diariamente cruzavam defronte, e donde se avistava a Estação
da linha férrea de Baturité. Era amanuense, amigado, e gostava
de jogar o víspora em família aos domingos. Nessa noite estavam
reunidas as pessoas do costume. Ao centro da sala, em torno d’uma mesa
coberta com um pano xadrez, à luz parca de um candieiro de louça
esfumado, em forma d’abat-jour, corriam os olhos sobre as velhas coleções
desbotadas, enquanto uma voz fina de mulher flauteava arrastando as sílabas
numa cadência morosa: Vin…te e quatro! Sessen…ta nove!… Cinqüen…ta
e seis!…

Havia um silêncio morno e concentrado em que se destacava o rolar abafado
das pedras no saquinho de baeta verde.

A sala era estreita, sem teto, chão de tijolo, com duas portas para
o interior da casa, paredes escorridas pedindo uma caiação geral.
À direita, defronte da janela, dormia um velho piano de aspecto pobre,
encimado por um espelho não menos gasto. O resto da mobília
compunha-se de algumas cadeiras, um sofá entre as duas portas do fundo,
a mesa do centro, e uma espécie de console, colocada à esquerda,
onde pousavam dos jarros com flores artificiais.

De onde em onde zunia o falsete do amanuense:

Quadra!… Ou caçoava: Os anos de Cristo! … Os óculos do
Padre Eterno!

Risadinhas explodiam a espaços, gostosas, indiscretas uma pilhéria
ricocheteava nos quatros ângulos da mesa.

É boa! É boa! fazia João da Mata erguendo a cabeça,
mostrando a dentuça.

Depois voltava o silêncio, e a voz fina de mulher continuava a cantar
os números solenemente.

Víspora! saltou de repente um rapazola d’óculos, bigodinho
fino, flor na botoeira do fraque de casimira clara.

Toda gente o conhecia era o Zuza, quintanista de direito, filho do coronel
Souza Nunes.

Podem conferir, disse erguendo-se, risonho segunda linha.

E estendeu o braço, passando o cartão para o amanuense.

Não desmarquem, não desmarquem, recomendou este espalmando
a mão. Pode Ter sido engano. Errare humanun est…

Houve um ligeiro sussurro de vozes e de caroços rolando sobre a mesa
com um surdo ruído de contas desfiada. Todos desfizeram as marcações.

Numa das extremidades sentava-se João da Mata, de paletó de
fazenda parda sobre a camisa de meia, costas para a rua.

À direita mexia-se uma senhora gorducha, de seus trinta anos, metida
num casaco frouxo de rendas, cabelos penteado em cocó, estampa insinuante,
bons dentes; era a mulher do amanuense, que passava por sua legítima
esposa não obstante as insinuações malévolas da
alcovitice vilã que entrevira escândalos na vida privada de D.
Terezinha. Contudo, era tida em conta de excelente dona de casa, honesta,
dizendo-se relacionada com as principais famílias de Fortaleza.

Ninguém ousava mesmo dirigir-lhe um gracejo de mau gosto, uma pilhéria
calculada. Inventava-se calúnias de populacho ¾ que se correspondia
ocultamente com o presidente da província. Ela, porém, gabava,
batendo no peito com orgulho, que tinha uma vida limpa, graças a Deus,;
que isso de patifarias não lhe entrava em casa, não, mas era
o mesmo. Estava ali o Janjão que não a deixava mentir.

Ao pé de D. Terezinha aprumava-se Maria do Carmo, afilhada de João,
uma rapariga muito nova, com um belo arzinho de noviça, moreno-clara,
olhos cor de azeitona, carnes rijas, e cuja atenção volvia-se
insistentemente para o Zuza.

As outras pessoas eram também da intimidade: o Loureiro, guarda-livros
da firma Carvalho & Cia., o Dr. Mendes, juiz municipal, mais a senhora,
a Lídia Campelo, filha da viúva Campelo, e o estudante. Às
vezes ia mais gente e o víspora prolongava-se até meia noite.

João da Mata era um sujeito esgrouviado, esguio e alto, carão
magro de tísico, com uma cor hepática denunciando vícios
de sangue, pouco cabelo, óculos escuros através dos quais boliam
dois olhos miúdos e vesgos. Usava pêra e bigode ralo caindo sobre
os beiços tesos como fios de arame; a testa ampla confundia-se com
a meia calva reluzente. Falava depressa, com um sotaque abemolado, gesticulando
bruscamente e, quando ria, punha em evidência a medonha dentuça
postiça. Noutros tempo, fora mestre-escola no sertão da província,
donde mudara-se para a capital por conveniências particulares. Era então
simplesmente o professor Gadelha, o terror dos estudantes de gramática.
O sertão foi-lhe aborrecendo; estava cansado de ensinar a meninos,
era preciso pela vida noutro meio mais vasto onde as suas qualidades, boas
ou más, fossem aquilatadas com justiça. Estava se perdendo,
se inutilizando, fossilizando-se, por assim dizer, entre um vigário
seboso e pernóstico e um delegado de polícia ignorante: “Não
era uma águia, Um Abílio Borges, um Macedo… mas reconhecia
que também não era burro. Até podia fazer figura em Fortaleza”.

E abalou com tanta felicidade que não tardou ser nomeado comissário
de socorros ao tempo da grande seca de 77, dois anos depois de sua chegada
à capital. Desde logo tornou-se conhecido, suas façanhas corriam
impressas nos pasquins domingueiros. D’uma feita escapou milagrosamente
de ser preso por crime de defloramento numa menor, criada do Dr. Morais da
Silva; d’outra feita apanhou de rebenque na cara por haver caluniado
um capitão d’infantaria propalando uma infâmia. Toda a
gente o conhecia muitíssimo bem, por sinal tinha uma cicatriz oblonga
e funda na têmpora esquerda, e não largava o mau veso de roer
o canto das unhas.

Depois da seca entregou-se de corpo e alma à política, à
intriguinha partidária, à rabulice, à cabala eleitoral,
à chicana. Toda vez que se anunciava um pleito, punha em jogo as mil
e uma sutilezas que só o seu espírito sagaz podia conceber.
Ninguém como ele sabia copiar uma chapa em letra firme e aprumada.
Aquilo a pena cantava no papel que nem o lápis d’um taquígrafo.
E que letra, que esplêndido talhe! Ninguém como ele sabia tirar
proveito d’uma vitória alcançada pelo partido. Discutia,
falava alto, berrava… impunha-se!

Extraordinário homem! diziam os chefes políticos; destes é
que nós precisamos, destes é que precisa o partido.

Mas João sabia vender caro o seu peixe. Fazia política por
uma espécie de ambição egoísta, visando sempre
tirar resultados positivos de suas artimanhas, embora com prejuízo
de alguém.

Dinheiro é o que ele queria, não lhe fossem falar em política
sem interesse pessoal.

“ Histórias, homem, histórias! Isso de patriotismo é
uma patranha, um rótulo falso! O que se quer é dinheiro, o santo
dinheirinho, a mamata. Qual pátria, qual nada! Patacoadas!” Ele,
João, trabalhava, lá isso era inegável: dava o seu voto,
cabalava, servia de testa de ferro, mas… tivessem paciência era mão
p’ra lá, mão p’ra cá. Porque argumentava
a política é uma especulação torpe como qualquer
outra, como a de comprara e vender couros de bode na praia, a mesmíssima
cousa; pois não é? P’ra tudo é preciso jeito, muito
jeitinho…

Agora, porém, andava meio retraído, dava o seu voto, calado,
e passe muito bem! A política só lhe trouxera enganos e inimigos.
Não estava mais para servir de degrau a figurão algum. Que se
fomentassem! É boa! Trabalhara que nem besta de carga para no fim das
contas ganhar o quê? Um pingue lugar de amanuense? Um miserável
emprego que se anda oferecendo por aí a qualquer vagabundo? Decididamente
não o pilhavam mais para a canga… Estava experimentado, meus senhores,
experimentadíssimo.

E agora, com efeito, ninguém o via mais nas redações,
entre os jornalistas da terra, a esbravejar contra os adversários,
nem nos cafés, quanto mais em dia de eleição, sentado,
como dantes, na sua cadeira de mesário, carrancudo, circunspecto, a
contar votos, a lavrar atas. Estava outro homem, completamente outro: amigo
de casa, vivendo p’ra si, com poucas amizades, metódico, econômico,
às voltas com sua atrabílis crônica, sem ambições,
sem dívidas.

A sua grande paixão, o seu fraco, era a Maria do Carmo, a menina dos
seus olhos, a afilhadinha; queria um bem extraordinário à rapariga
e tratava-a com um carinho languido de amante apaixonado no supremo grau do
amor incondicional. Criara-a desde pequena, era como se fosse pai, tinha direitos
sobre ela; podia mesmo beijá-la sem malícia, já se deixa
ver nas faces, na testa, nos braços e até, porque não?
na boca.

Às vezes, quando Maria voltava da Escola Normal, ele mandava-a sentar
na rede, a seu lado. A pequena guardava os livros, e lá ia, sem fazer
beiço, deitar-se com o padrinho, amarfanhando o rico vestidinho de
cretone passado a ferro pela manhã. Obedecia-lhe cegamente, nunca lhe
dissera uma palavra áspera; ao contrário eram carinhos, cafunés
no alto da cabeça. cócegas, histórias d’almas d’outro
mundo e gracinhas p’ra ele rir… Tinha sempre um sorriso fresco e luminoso
para “o seu padrinho”. E João da Mata sentia um bem estar
incomparável, uma delícia, um gosto inefável ante aquele
esplendido tipo de cearense morena, olhos cor de azeitona onde boiava uma
névoa de ingenuidade, cabelos compridos descendo até a altura
dos quadris, desmanchando-se em ondas de seda finíssima… Quantas
vezes, quantas? punha-se por traz dos grandes óculos escuros a olhá-la
como um pateta, sem que ela sequer percebesse a fixidez de seu olhar cheio
de desejo!

Maria estava-se pondo moça, entrava nos seus quinze anos, e o padrinho
a adorá-la cada vez mais!

João começou a inquietar-se com as freqüentes visitas
do Zuza. Por fim notara certas tendências do estudante para a pequena,
certo quebrar d’olhos, uma como insistência atrevida em dizer
as coisas por metáforas… Isso o incomodava, punha-lhe pruridos na
calva, enraivecia-o. Quanto ao Loureiro não havia risco, o guarda-livros
estava para se casar com a Campelinho, era um rapaz sério. Mas o senhor
Zuza?… Ali andava namoro, apostava. Tinha idéia de ter lido na Província
uns versos dedicados a M.C. e assinados por Z***. Naquela noite, sobretudo,
pareceu-lhe ver o mariola passar uma carta, um papel à Maria. Boas!
Era preciso por um termo ao descaramento, sob pena de ele, João, desmoralizar-se
no conceito da gente séria. Lá por ser filho do Sr. Coronel
Souza Nunes não fosse pensar que faria o que bem entendesse. Alto lá!
Tudo menos patifaria dentro de sua casa.

E enquanto ia enchendo os cartões automaticamente, sem olhar para
os números, pensava em Maria do Carmo, mordendo com desespero as guias
do bigodaço.

Quando o Zuza, todo gabola e amaneirado, vermelho do calor da luz, gritou
víspora numa voz triunfante e clara, João este quase atirando-lhe
com o cartão. Vieram-lhe desejos imoderados de estourar, de dar escândalo,
trêmulo, nervoso, a semicalva reluzente de suor.

Sim senhor, disse secamente devolvendo o cartão. Vamos à última…

E o jogo continuou. Fez-se novo silêncio. Agora era o Zuza, o futuro
bacharel, que cantava pausadamente, tirando as pedras com as pontas dos dedos
e colocando-as devagar, cauteloso.

Davam nove horas na Sé quando todos se ergueram. A Campelinho suplicou
mais uma partida, o Loureiro também foi de opinião que se jogasse
ainda uma vez, todos enfim, desejavam continuar, mas João da Mata opôs-se
tenazmente: que era tarde, tinha muito que escrever.

Uma só, meu padrinho, rogou Maria do Carmo tomando-lhe as duas mãos
e fitando-o com os seus magníficos olhos cor de azeitona.

O amanuense estremeceu. Agora era a própria afilhada, a Sra. D. Maria
do Carmo que lhe pedia com um sorriso extraordinário que jogassem!
E na sua imaginação acentuava-se a suspeita do namoro com o
estudante.

Curvou-se e proferiu um palavrão ao ouvido da rapariga. Estava desesperado,
não se continha.

Não senhora, por hoje basta de víspora!

Todos admiraram a súbita mudança na sua fisionomia a princípio
tão alegre.

A mulher do Dr. Mendes, muito afetada, acotovelou o marido e despediu-se
“até a primeira vista”.

Zuza foi o último a retirar-se, fitando em Maria um olhar embebido
de ternura.

A noite estava muito escura e calma. As estrelas tinham um brilho particular,
altas, minúsculas como cabeças d’alfinete em papel de
seda escuro. Ouvia-se distintamente, como por um tubo acústico, a toada
dos soldados rezando à Virgem da Conceição no quartel
de linha e o marulhar da praia distante. A rua do Trilho, deserta, com sua
iluminação incompleta, naqueles confins a cidade, parecia um
túnel subterrâneo. Fazia medo transitar ali a deshoras.

Assim que se foram os habitués do víspora, João da Mata
desabafou. Uma patifaria! O Sr. Zuza pretendia sem dúvida abusar da
sua confiança, plantar a desordem no seio da família, mas estava
muito enganado. Ali era casa de gente pobre e honesta. Estava muito enganadinho,
seu pelintra!

Mas eu sei quem é a culpada, acrescentou furioso; a culpada é
a Sra. D. Maria do Carmo, por que se atreve a olhar para ele!

Aquilo não podia continuar, o Sr. Zuza não lhe punha mais os
pés em casa sob o pretexto algum. Não se portava sério?
Pois então fora p’ra rua!

Estavam fazendo de sua casa um alcouce! A Sra. D. Lídia vinha namorar
o outro às suas barbas; já uma vez caíra-lhe porta dentro
uma imundície de carta anônima denunciando certos abusos.

E colérico, soprando o bigode, sacudindo os braços, esmurrando
a mesa, berrava, com os olhos na alcova onde sumira-se D. Terezinha.

Maria desaparecera pelo corredor e chorava debruçada sobre a mesa
do jantar, onde ardia uma vela de carnaúba.

Que sujeito! gania o amanuense. Pensa ele que não tem mais do que
enfronhar-se num fato de casimira clara, com uma flor no peito, com modos
de safardana, e zás! plantar-se na pequena, mas está muito enganado!
Aqui estou eu (e batia com força no peito ossudo) para impedir escândalos
em minha casa!

Debalde D. Terezinha aconselhava, aflita, que não desses escândalo,
que fosse dormir. “As paredes têm ouvidos, dizia ela dentro da
alcova. O moço era filho de gente graúda, e ele, Janjão,
um simples empregado público. Tivesse modos. Se houvesse má
intenção por parte do Zuza, ela, Teté, seria a primeira
a não consentir que ele pisasse o chão de sua casa. Mas, não
senhor, a gente deve pensar antes de fazer as cousas. P’ra que todo
aquele espalhafato, porque semelhante barulho”.

João da Mata, porém, estava fora de si, tinha a cabeça
a arder como uma brasa. Seu temperamento excessivamente irritável expandia-se
com desespero ao mesmo tempo que seu coração de homem gasto
sentia pela primeira vez um quer que era, uma agonia, uma sufocação
ante a possibilidade de um namoro entre o estudante e a afilhada. Não
era precisamente receio de que o Zuza pudesse iludir a rapariga desonrando
e atirando-a p’ra aí ao desprezo; era como revolta do instinto,
uma espécie de egoísmo animal que o torturava, acendendo-lhe
todas as cóleras, dominando-o, como se Maria fosse propriedade sua,
exclusivamente sua por direito inalienável. Via-a caída pelo
acadêmico, toda voltada para ele, amando-o talvez, preferindo-o a todos
os outros homens, entregando-se-lhe. E o que seria dele, João, depois?
Nem mais uma beijoca na boquinha rubra e pequenina, nem mais um abraço
ao voltar da escola, cansadinha, o rosto afogueado pelo calor; nem mais uns
cafunés, nem um sorriso daqueles que ela sempre tinha para o padrinho…
Isto é que o desesperava!

Desde a saída de Maria do colégio das Irmãs de Caridade
tinha se operado uma mudança admirável nos hábitos de
João da Mata. Ela já era para ele como uma filha; estava quase
moça, incomparavelmente mais bonita e fornida de carnes. Já
não era, que esperança! aquela Maria do Carmo da Imaculada Conceição,
toda santidade, magrinha, com uma cor esbranquiçada e mórbida
de cera velha, o olhar macilento, a falar sempre no Padre Reitor e na Superiora
e na Irmã Filomena e noutras pieguices. Uma tontinha a Maria naquele
tempo. Quando ia passar o domingo em casa, uma vez no mês, metia-se
para os fundos do quintal ou pelas camarinhas, muito calada, muito sonsa,
a ler a Imitação; não chegava à janela, não
aparecia às visitas, doida por voltar ao colégio. Aquilo punha
o padrinho de mau humor. Uma coisa assim fazia até vergonha a ele que
detestava tudo que cheirasse a sacristia. Porque João da Mata dizia-se
pensador livre; não acreditava em santos, e maldizia os padres. Jesus,
na sua opinião, era uma espécie de mito, uma como legenda mística
sem utilidade prática. Isso de colégios internos à guisa
de conventos não se acomodava com o seu temperamento. Também
fora professor, olé! e sabia muito bem o que isso era “um coito
de patifarias”. Queria a educação como nos colégios
da Europa, segundo vira em certo pedagogista, onde as meninas desenvolvem-se
física e moralmente como a rapaziada de calças, com uma rapidez
admirável, tornando-se por fim excelentes mães de família,
perfeitas donas de casa, sem a intervenção inquisitorial da
Irmã de Caridade. Não compreendia (tacanhez de espírito
embora) como pudesse instruir-se na prática da indispensável
da vida social uma criatura educada a toques de sineta, no silêncio
e na sensaboria de uma casa conventual entre paredes sombrias, com quadros
alegóricos das almas do purgatório e das penas do inferno; com
o mais lamentável desprezo de todas as prescrições higiênicas,
se ar nem luz, rezando noite e dia “ora pró nobis, ora pró
nobis”. Era da opinião do José Pereira da Província:
“Irmãs de Caridade foram feitas para os hospitais”. O diabo
é que no Ceará não havia colégios sérios.
A instrução pública estava reduzida a meia dúzia
de conventilhos: uma calamidade pior que a seca. O menino ou menina saía
da escola sabendo menos que dantes e mais instruído em hábitos
vergonhosos. As melhores famílias sacudiam as filhas Imaculada Conceição
como único recurso para não vê-las completamente ignorantes
e pervertidas. Afinal, para não contrariar o Mendonça, que queria
a filha para santa, metera Maria do Carmo no “convento”.

D. Terezinha participava das mesmas idéias de Janjão. Uma menina
inteligente como Maria devia educar-se no Rio de Janeiro ou num colégio
particular, mas um colégio onde ela pudesse aprender o “traquejo
social”. Pode ser que as Irmãs sejam umas mulheres virtuosíssimas
e castas, ma filha sua não punha os pés em colégio de
freiras…

João da Mata detestava a padraria. Dava-se apenas com um padre, o
cônego Feitosa, porque, dizia ele, era um sacerdote sem hipocrisia,
um padre como ele entendia que deviam ser todos os padres, asseado, inimigo
da batina, com afilhadas em casa… E porque não? Os padres são
fisicamente (e sublinhava a palavra), anatomicamente, fisiologicamente, homens
como os outros; têm coração, órgãos sexuais,
nervos como os outros homens. Portanto, assiste-lhes o mesmíssimo direito
de procriação, direito natural e até consagrado pela
Escritura. O contrário é contrafazer a natureza humana que,
afinal, não obedece a preceitos de castidade. D’aí, concluía
João, d’aí o desregramento das classes religiosas condenadas
a eterno celibato. O próprio Cristo dissera numa parábola cheia
de senso e experiência : “Crescei e multiplicai-vos”.

“Por amor de Deus” não lhe falassem em padres. A educação
moderna, a educação livre, sem intervenção da
batina eis o que ele queria e apregoava alto e bom som.

Havia meses que Maria do Carmo cursava a Escola Normal. Sua vida agora traduzia-se
em ler romances que pedia emprestados a Lídia, toda preocupada com
bailes, passeios, modas e tutti quanti… Ia à Escola todos os dias
vestidinha com simplicidade, muito limpa, mangas curtas evidenciando o meio
braço moreno e roliço, em cabelo, o guarda-sol de seda na mão,
por ali afora toc, toc, toc até a praça do Patrocínio,
como uma grande senhora independente.

Agora, sim, pensava o amanuense, Maria estava uma mocetona digna de figurar
em qualquer salão aristocrático.

A fama da normalista encheu depressa toda a capital. Não se compreendia
como uma simples retirante saída há pouco das Irmãs de
Caridade fosse tão bem feita de corpo, tão desenvolta e insinuante.
As outras normalistas tinham-lhe inveja e faziam pirraças. Nas reuniões
do Club Iracema era ela a preferida dos rapazes, todos a procuravam.

João da Mata inflava. Certo não a entregaria por preço
algum a qualquer rapazola como o filho do coronel Souza Nunes.

Entretanto o Zuza era um rapaz da moda. Montava a cavalo, fazia versos, assinava
a Gazeta Jurídica, freqüentava o palácio do presidente…

João conhecera-o uma noite no baile do Dr. Castro. Havia meses que
se achava em Fortaleza estudando o quinto ano de direito e gozando a sua fama
de rapaz rico. Às seis horas da tarde já lá estava no
Trilho, em casa do amanuense, queixando-se da monotonia da vida cearense e
gabando, com ares de fidalgo, a capital de Pernambuco. Ali, sim, a gente pode
viver, pode gozar. Muito progresso, muito divertimento: corridas de cavalos,
uma sociedade papa-fina muitíssimo bem educada, magníficos arrabaldes,
certo bom gosto nas toilettes, nos costumes, certas comodidades que ainda
não havia no Ceará.

Ao que parece o Sr. Zuza não gosta do Ceará… disse-lhe um
dia D. Terezinha.

Absolutamente não, minha senhora. Sou meio exigente em matéria
de civilização; isto me parece ainda uma terra de bugres…

De bugres!?

… Sim, uma terra em que só se fala nas secas e no preço da
carne verde, V. Excia. compreende, não pode corresponder às
expectativas d’um rapaz de certa ordem, por assim dizer educado na Veneza
Americana…

Deste modo o Sr. Zuza ofende os seus conterrâneos, os seus parentes.

Absolutamente não.

O que dizia é que o Recife está em um plano superior a Fortaleza.
Apenas estabelecia um paralelo.

João da Mata achava-o pedante, desequilibrado, tolo. “Não,
o Sr. Zuza não lhe punha mais os pés em casa por forma alguma!”
bradava naquela noite.

Maria continuava a chorar lá dentro, na sala de jantar, inconsolável,
triste, com um grande desgosto nalma. De repente ouviu a voz do padrinho que
a chamava. Ergueu-se com um movimento brusco e rápido, o lenço
nos olhos, soluçando devagar.

João quis saber onde estava “a carta que o Zuza lhe havia entregue”.
Botasse p’r’ali, já!

Trêmula, abafando a cólera que lhe oprimia a respiração,
Maria não podia falar.

Vamos, vamos!

Não tenho carta alguma, disse num acento doloroso.

João da Mata sentiu atar-se-lhe o fogo da concupiscência. Teve
ímpetos de tomar entre as mãos a cabeça da afilhada e
beijá-la, beijá-la sofregamente, com a fúria de um selvagem,
no pescoço, na boca, nos olhos… ímpetos de beijá-la
toda inteira, como um doido. Maria dominava-o, fazia-lhe perder a tramontana.

Então aquele bandido não lhe entregou uma carta por debaixo
da mesa, no víspora? Entregou, sim senhora, dê-m’a!

Não senhor, não me entregou coisa alguma, tornou a normalista,
sem levantar a cabeça, fungando.

Estavam em frente um do outro, ao pé da mesa. As portas da sala já
tinham-se fechado; ele com o paletó aberto mostrando a camisa-de-meia
cor de carne, o olhar fixo em Maria; ela com o seu vestidinho claro de chita,
cabelos penteados numa trança, acaçapada, submissa ante a cólera
rude do padrinho.

Pois bem, concluiu este moderando a voz. Tome sentido: vocemecê não
me aparece mais àquele cabrocha, está ouvindo?

E depois d’uma pausa, com ternura:

Vá dormir, ande…

Soprou o gás e foi deitar-se com a mulher, na alcova.

Pois não achas, Teté, dizia ele em camisa de dormir, aconchegado
a D. Terezinha na larga cama de jacarandá; não achas que é
um desaforo aquele patife vir à nossa casa para namorar?

Não, que tolice. O Zuza até é um rapaz sério…
Vem, coitado, porque nos estima…

É boa! fez João. Então vem porque nos estima, hein?
Esta cá me fica, Sra. D. Teté, esta cá me fica!

Homem, trate de suas hemorróidas que é melhor…

Ora, sabe que mais? Você é outra!

E deram-se as costas fazendo ranger a cama.

Com pouco ambos roncavam no discreto silêncio da alcova.

Sobre a cômoda, ao pé do oratório, ardia uma lamparina
de azeite.

Capítulo II

 

Foi numa tarde infinitamente calma de dezembro de 1877 que o capitão
Bernardino de Mendonça chegou a Fortaleza pela estrada nova de Mecejana,
depois de penosíssima viagem.

A seca dizimava populações inteiras nos sertão. Famílias
sucumbiam de fome e de peste, castigado por um sol de brasa. Centenas de foragidos,
arrastando os esqueletos seminus, cruzavam-se dia e noite no areial incandescente
dos caminhos abantesmas das desgraça gemendo preces ao Deus dos cristão,
numa voz rouquenha, quase soluçada. Era um horror de misérias
e aflições.

Bernardino de Mendonça foi dos últimos que abalaram do interior
da província para o litoral na pista dos socorros públicos.
Totalmente desiludido, quase arruinado, vendo todos os dias passarem pela
sua porta, em Campo Alegre, magotes de emigrantes andrajosos que batiam do
sertão num êxodo pungente, acossados pela necessidade, resolvera
também ir-se com a família para Fortaleza, embora mais tarde
fosse obrigado a procurar outros climas.

Era homem sadio, vigoroso, excessivamente trabalhador e dedicado. Contava
a esse tempo quarenta anos, nada mais nada menos, e dizia com soberba, gabando
o peito rijo, não se trocar por muito rapazola pimpão que aí
vive nas cidades grandes caindo de tédio e preguiça, cheio de
vícios secretos. Corria-lhe nas veias largas e azuis de matuto inteligente
puro e abundante sangue português. Nunca sofrera a mais leve dor de
cabeça. Conhecia a sífilis por ouvir falar. Casara muito moço,
imberbe ainda, aos dezesseis anos, com uma prima colateral, D. Eulália
de Mendonça Furtado, de uma família de Furtados da Telha. Até
então só tivera três filho, um dos quais, o mais velho,
chamado Lourenço, fora recrutado para o exército por peralta
incorrigível. Outro, o Casimiro, mais rude e também mais obediente,
vivia com os pais, era mesmo o vaqueiro de Mendonça, que descobrira
nele especial vocação para esse inglório trabalho de
andar atrás das boiadas ecô! ecô! metido em couros, chapinhando
açudes e lagoas, galopando à brida solta nas várzeas,
ao ar fresco das manhãs do norte, identificado por assim dizer, com
o mugir nostálgico e penoso do gado. Desde menino, o pai acostumara-o
à vida alegre do campo, e agora aí vinha também, Deus
o sabe, triste e apreensivo, caminho da capital cearense, no seu pedrês
choutão, escanchado entre dois grandes alforjes de farinha e carne
salgada.

Por último nascera Maria do Carmo, o último filho do Mendonça,
a caçula. Em 1877 completara seis anos, e para felicidade dos pais,
era uma criança verdadeiramente encantadora, com seu arzinho ingênuo
e meio de sertaneja. A cor, os olhos, os dentes, o cabelo tudo nela era um
encanto: olhos puxados para negros, dentes miudinhos e de um brancura de algodão
em rama, cabelos negros e luzidios como a asa da graúna moreno-clara.
Crescia sem outra educação a não ser a que lhe davam
os pais, de modo que, naquela idade, mal soletrava a Doutrina Cristã.

Mendonça abalara de Campo Alegre quando de todo lhe tinham fugido
as esperanças d’inverno seguro, depois de ter visto estrebuchar
a última rês no solo duro e estéril.

Todas as tardes, invariavelmente, da janela que dizia para o poente, ou em
pé na varanda, consultava o tempo, os horizontes cor de cinza, o céu
d’um azul diáfano de safira, procurando bispar na inclemência
da atmosfera imóvel a sombra fresca de uma nuvem, um indício
qualquer de chuva.

Surpreendia, às vezes, crivando a transparência do ar, revoadas
d’aves de arribação. Recolhia-se animado. Mas os dias
passavam quentes e seco.

Outras vezes, à noitinha, clarões rápidos e lívidos
abriam-se no poente como reflexos de luz elétrica; ouvia-se rolar a
trovoada muito ao longe. Mendonça punha-se a escutar calado, sentia
um como arrepio bom, e lá tornava a iludir-se alimentando, toda uma
noite, a doce esperança de ver pela manhã o solo úmido
e a rama brotando verde e pujante da “fornalha”. Mas qual! As
manhãs sucediam-se cada vez mais tépidas, sem pingo d’água,
uma aragem leve, de cemitério, arrepiando a folhagem do arvoredo. Um
céu muito alto, varrido, monótono, indecifrável como
um dogma.

E pouco a pouco aquele estado de coisas foi atuando forte no espírito
do sertanejo, como as vibrações d’um clarim que dá
sinal de marcha; pouco a pouco foi se convencendo que aquilo era uma situação
impossível em que ele não devia absolutamente permanecer.

Os açudes estorricavam mostrando os leitos gretados pelo sol, duros
como pedra, juritis encadeadas iam espapaçar ofegantes no chão,
defronte da casa; cascavéis chocalhavam no alpendre, ocultas, invisíveis,
e todas as coisas tinham um aspecto desolado e lúgubre que se comunicava
às criaturas.

Passava gente todo santo dia, a pé, de trouxa ao ombro, arrastando-se
pesadamente.

Uma vez, ele próprio, Mendonça, vira de perto a agonia lenta
de uma mulher asfixiada pela elefantíasis pernas inchadas, ventre inchado,
rosto inchado horrível.

Decididamente era tempo de arrumar também “os seus cacos”
e adeus, Campo Alegre, adeus, carnaubais rumorejantes; adeus, igrejinha branca!
Ir-se-ia fazer pela vida em qualquer parte, em Fortaleza, onde felizmente
contava amigos políticos, correligionários dedicados que certamente
lhe não recusariam uma acha de lenha, uma pouca d’água
fresca, um punhado de farinha… Demais era homem, graças a Deus, forte
como um novilho, tinha sangue nas veias trabalharia!

Ao mesmo tempo lembrava-se da “sua velha”, da Eulália,
que andava adoentada, com umas pontadas no coração, muito fraca
e cuja natureza talvez não resistisse às fadigas d’uma
viagem longa; pensava em Maria do Carmo, sua filha querida, a menina dos seus
olhos, tão nova ainda, e punha-se a meditar nos horrores da seca, nas
febres de mau caráter, na quase absoluta falta d’água,
com um desalento a aniquilar-lhe as forças, a dobrar-lhe a altivez
de forte. Depois tornava ao mesmo fio de idéias: não, aquele
inferno do sertão, com um raio de tempo medonho, seria talvez pior,
seria a sua desgraça. De si para si media, calculava meticulosamente
toda a gravidade da situação a que chegara. Não havia
outro recurso, outro jeito senão marchar para a capital, para onde
quer que fosse, como tantos outros infelizes empolgados pela miséria.
Iria, que remédio? bater à porta de um amigo, de um correligionário,
de um cristão. Lembrou-se então do “compadre João
da Mata”, padrinho de Maria.

Muito bom: iria ao compadre.

Arribaram de manhã, muito cedo, ao romper d’alva. Os cavalos,
magros e ruins, romperam num trote miúdo . Ao passarem defronte da
igrejinha do povoado, um pobre nicho todo fechado, com suas janelinhas por
pintar, solitário como uma coisa inútil, D. Eulália ciciou
uma oração, e os outros, Mendonça e Casimiro, descobriram-se
com respeito.

Entraram por uma estrada de areia que se prolongava indefinidamente, torcendo
e retorcendo-se em ziguezagues, ocultando-se aqui para brilhar lá adiante
por cima da floresta imóvel, como uma enorme serpente amarela dormindo
ao sol…

As pisadas dos animais abafavam-se na areia, e apequena caravana sumia-se
na distância…

Ao cabo de doze longos dias em que paravam para repousar à sombra
d’alguma árvore que ainda verdejava ou nalguma palhoça
abandonada, avistaram o campanário branco e alegre do Coração
de Jesus, direito e esguio, como o minarete de um templo muçulmano,
destacando na meia sombra crepuscular, esbatido pela irradiação
do sol que tombava glorioso ao fundo da tarde pardacenta.

Morria no ar calmo o dobre melancólico de um sino…

Flutuava um cheiro vago de cousas podres. Para as bandas do Pajeú
ardiam restos de fogueiras a extinguir-se.

Uma tarde infinitamente clama, essa…

Havia oito anos que isto fora, mas nos seus momentos de desânimo, Maria
do Carmo punha-se a relembrar toda essa tragédia de sua infância.
Olhava para o passado com a alma cheia de saudade, recordando, tim-tim por
tim-tim, como se estivesse lendo num livro, ninharias, minudências de
sua vida naqueles tempos em que ela, pobre e matutinha, via tudo cor de rosa
através do prisma límpido e imaculado de sua meninice. Transportava-se,
num vôo da imaginação, a Campo Alegre, e via-se, como
por um óculo de ver ao longe, ao lado da mamãe, costurando quieta
ou soletrando a Cartilha, ou na novena do Senhor do Bonfim, muito limpa, com
o seu vestidinho de chita que lhe dera o Sr. vigário. Lembrava-se do
papai, quando voltava do roçado,. de camisa e ceroula, chapéu
de palha de carnaúba, tostado, trigueiro do sol, contando histórias
de onças e maracajás…

Recapitulava mentalmente, com uma precisão cronológica, toda
a sua vida e ficava horas e horas em cisma, a pensar como se tivesse perdido
o juízo… Nas Irmãs de Caridade é que lhe sobrava tempo
para isso. Vinham-lhe à mente os episódios da viagem: uma grande
cobra cascavel que o papai matara ao pé d’uma árvore,
à faca; as dificuldades que encontraram no caminho; um ceguinho que
cantava na estrada sem ter o que comer…

Nunca mais lhe saíra da cabeça um retirante que ela vira estendido
no meio do caminho, sobre o areal quente , ao meio dia em ponto, morto, e
completamente nu, com os olhos já comidos pelos urubus, os intestinos
fora, devorado pelas varejeiras… Que feio aquilo!

Não era má, de resto, a sua vida agora, em casa dos padrinhos,
não era, mas se fosse possível tornar a ser criança,
renascer e viver outra vez em Campo Alegre…

No dia seguinte ao da chegada à capital, D. Eulália morrera
d’uma síncope cardíaca. Maria lembrava-se muito bem: a
mamãe fora para o cemitério na padiola da Santa Casa de Misericórdia,
toda de preto… Parecia vê-la ainda, com os olhos fundos, entreabertos,
mãos cruzadas sobre o peito, dentro do esquife…

Tempos depois vira-a em sonho, numa nuvem de incenso, cercada d’anjos
com um manto azul recamado de estrelas, subindo para o céu… Por sinal
acordou sobressaltada, chamando pela madrinha, encolhendo-se na rede, fria
de medo.

Dias depois Mendonça embarcara para o norte. Ainda acabrunhado pelo
desgosto que lhe trouxera a morte quase repentina da mulher, manifestou a
João da Mata desejos d’ir tentar fortuna onde quer que fosse.
Não podia continuar no Ceará, viúvo e ocioso, de braças
cruzados, sem dinheiro, olhando para o tempo, decididamente não podia
continuar. Mas havia uma dificuldade a Maria. Se o compadre quisesse tomar
a menina, encarregar-se de sua educação, mediante uma mesada,
um pequeno auxílio…

O amanuense aceitou. Que fosse imediatamente para o norte. A vida no Ceará
não valia coisíssima alguma. O Pará, sim, aquilo é
que é terra de fartura e de dinheiro. Um homem trabalhador e honesto,
como o compadre, com uma pouca experiência, podia enricar da noite para
o dia. Os seringais, conhecia os seringais? eram uma mina da Califórnia.
Tantos fossem quantos voltavam recheados, de mão no bolso e cabeça
erguida. E o Ceará? Fome e miséria somente. Num mês morriam
três mil pessoas, eram mortos a dar com o pé, morria gente até
defronte do palácio do governo, uma lástima!

E acrescentou que o Ceará era boa terra para os políticos e
ricaços, que o pobre em Fortaleza, ainda que pesasse quilogramas d’honradez,
era sempre o pobre, maltratado, espezinhado, ridicularizado, perseguido, enquanto
que o indivíduo mais ou menos endinheirado podia contar amplamente,
largamente (e abria os braços) com a simpatia geral;: tinha ingresso
em todos os salões, em toda a parte, até no “santuário
da família”, fosse ele, embora, um patife, um grandíssimo
canalha. Usava chapéu alto e gravata branca? Tinha um título
de bacharel? Não fizesse cerimônia, podia entrar onde quisesse.
¾ “Uma terra de famintos, seu compadre! Fome, miséria
e patifaria era o que se via”. Com a Maria do Carmo não tivesse
cuidado; ele, João da Mata, havia de tratá-la como filha, não
lhe faltaria nada; teria para ela todas as carícias, todos os afagos
de um pai. Mendonça podia mesmo demorar o tempo que quisesse no Pará,
anos séculos… a menina ficava em casa de gente séria, pobre,
é verdade, mas honrada.

Daí a dias, um domingo
de muito sol e muito vento, realizou-se o embarque do capitão Mendonça
e Casimiro.

Os conselhos de João calaram muito forte no ânimo forte e resoluto
do sertanejo, cuja confiança no compadre era ilimitada. Sabia-o conhecido
em quase todo o Ceará, estimado mesmo por pessoas de bem, admirava-lhe
muito o “coração generoso” e democrata, por tal
forma que João se lhe afigurou o único homem capaz de concorrer
para a felicidade de sua filha reflexões nascida da boa-fé e
da inexperiência da vida social, que enchiam de íntima e doce
consolação a alma ingênua e simples do sertanejo.

Mendonça conhecia Fortaleza superficialmente; suas viagens à
capital tinham sido raríssimas; viera vezes contadas a negócios.
Sabia os homens propensos aos mal, por mais duma vez ele próprio fora
vítima da ingratidão e indivíduos que se diziam seus
amigos e a quem fizera grandes benefícios; porém, a vida ruidosa
e dissoluta das capitais, esse tumultuar quotidiano de virtudes fingidas e
vícios inconfessáveis, esse tropel de paixões desencontradas,
isso que constitui, por assim dizer, a maior felicidade do gênero humano,
esse acervo de mentiras galantes e torpezas dissimuladas, esse cortiço
de vespas que se denomina sociedade, desconhecia-o ele e nem sequer imaginava.
Lá, no seu tranqüilo recanto de Campo Alegre, onde só de
longe em longe chegava o eco da vida elegante, ouvira falar em mulheres que
traiam maridos, filhos que assassinavam os pais, incestos de irmãos,
homens que negociavam com a própria honra… e tudo isso parecia-lhe
simples “invenção das gazetas”, romances de sensação
que ele ruminava devagar e esquecia depressa.

“É uma grande alma aquele Mendonça!” admiravam
os amigos.

E era-o.

Resolvera como que recomeçar a vida, esquecer o passado, recuperar
o tempo perdido, trabalhando como um mouro, entregando-se ao labor com todas
suas forças, dia e noite, sem descanso, nas florestas do Pará.

E lá se fora barra fora, mais o Casimiro, na proa d’um vapor
brasileiro, honrado e obscuro, no meio de dezenas de emigrantes que, como
ele, iam fazer pela vida até… sabiam lá!…

Antes de embarcar teve cuidados maternais para a filha. Comprou peças
de chita, rendas, fitas, bugigangas, fantasias, tudo escolhido, tudo bom,
e uma maleta americana. Chamou-a à parte, beijou-a na testa e disse-lhe
com os olhos cheios d’água e a voz trêmula “que o
papai havia de voltar se Deus quisesse, que ela fosse boa e obediente aos
padrinhos, que estudasse, estudasse muito, porque era feio uma mulher ignorante,
e, finalmente, que não esquecesse rezar por alma da mamãe…”

Maria lembrava-se de tudo.

Depois ela ficara sozinha em companhia dos padrinhos.

Nesse tempo moravam na rua de Baixo. Tinha-se mudado tudo: morrera-lhe a
mãe, morrera-lhe o pai d’uma febre, no alto Purus. O Casimiro,
ninguém dava notícia d’ele, nunca mais voltara…O Lourenço,
esse, ela não conhecia andava no sul feito soldado. Estava só,
por assim dizer, numa casa alheia. E, contudo, podia dizer que não
tinha tristezas, uma ou outra vez é que se punha a pensar no passado,

Depois que saíra da Imaculada Conceição a vida não
lhe era de todo má. Ora estava no piano, ensaiando trechos de música
em voga, ora saía a passear com a Lídia Campelo, de quem era
muito amiga, amiga de escola, ora lia romances… Ultimamente a Lídia
dera-lhe a ler O Primo Basílio, recomendando muito cuidado: “que
era um livro obsceno”, lesse escondido e havia de gostar muito. “Imagina
um sujeito bilontra, uma espécie de José Pereira, sabes? o José
Pereira da Província, sempre muito bem vestido, pastinhas, monóculo…”

Não contes, atalhou Maria, tomando o livro ¾ quero eu mesmo
ler… Gostaste?

Mas muito! Que linguagem, que observação, que rigor de crítica!…
Tem um defeito é escabroso demais.

Onde foste tu descobrir esta maravilha, criatura?

É da mamãe. Vi-o na estante, peguei, li-o.

Maria folheou ao acaso aquela obra prima, disposta a devorá-la. E,
com efeito, leu-a de fio a pavio, página por página, linha por
linha, palavra por palavra, devagar, demoradamente.

Uma noite, o padrinho quase a surpreendeu no quarto, deitada, com o romance
aberto, à luz d’uma vela. Porque ela só lia o Primo Basílio
à noite, no seu misterioso quartinho no meio da casa pegado à
sala de jantar.

Que regalo todas aquelas cenas da vida burguesa! Toda aquela complicada história
do Paraíso!… A primeira entrevista de Basílio com Luiza causou-lhe
uma sensação estranha, uma extraordinária superexcitação
nervosa; sentiu um como formigueiro nas pernas, titlações em
certas partes do corpo, prurido no bico dos seios púberes; o coração
batia-lhe apressado, uma nuvem atravessou-lhe os olhos… Terminou a leitura
cansada, como se tivesse acabado de um gozo infinito… E veio-lhe à
mente o Zuza; se pudesse ter uma entrevista com o Zuza e fazer de Luiza…

Até aquela data só lera romances de José de Alencar,
por uma espécie de bairrismo mal entendido, e a Consciência de
Heitor Mallot publicado em folhetins na Província. A leitura do Primo
Basílio despertou-lhe um interesse extraordinário.

“Aquilo é que é um romance. A gente parece que está
vendo as cousas, que está sentindo…”

Não compreendera bem certas passagens, pensou em consultar a Lídia;
sim a Campelinho devia saber a história da champagne passada num beijo
para a boca de Luiza. Que porcaria! E assim também a tal “sensação
nova!” que Basílio ensinara à amante… não podia
ser cousa muito asseada…

Terminada a leitura do último capítulo, Maria sentiu que não
fossem dois volumes, três mesmo, muitos volumes… Gostara imensamente!

No dia seguinte, antes de ir à Escola Normal, Maria teve uma entrevista
secreta com a amiga no quintal da viúva Campelo, que morava defronte
do amanuense.

A Campelinho tinha acabado de banhar-se e estava arranjando umas flores para
a Nossa Senhora do Oratório. Da saleta de jantar via-se o quintalzinho,
cercado d’estacas, estreito e comprido, com ateiras e um renque de manjericões
ao fundo, perto da cacimba. Uma pitombeira colossal arrastava os galhos sobre
o telhado. O chão úmido da chuva que caíra à noite,
porejava uma frescura comunicativa e boa.

Lídia estava à fresca, de cabelos soltos sobre a toalha felpuda
aberta nos ombros, quando Maria apareceu.

Boa vida, hein? saudou esta. E logo triunfante: Acabei o Primo Basílio!

Que tal?

Magnífico, sublime! Olha, vem cá…

E dando o braço à outra, dirigiu-se para o “banheiro”,
uma espécie de arapuca de palha seca de coqueiro, acaçapada,
medonha, sem a mínima comodidade e para onde se entrava por uma portinhola
de tábua mal segura.

Uma vez ali, sentadas ambas num caixote que fora de sabão, única
mobília do “banheiro!, Maria sacou fora o Primo Basílio,
cuidadosamente embrulhado numa folha da Província. Queria que a Lídia
explicasse uma passagem muito difusa, quase impenetrável à sua
inteligência.

É isto, menina, que eu não pude compreender bem. E, abrindo
o livro leu: “… e ele (Basílio) quis-lhe ensinar então
a verdadeira maneira de beber champagne. Talvez ela não soubesse!…
Como é? perguntou Luiza tomando o copo. Não é com o copo!
Horror! Ninguém que se preza bebe champagne por um copo. O copo é
bom para o Colares… Tomou um gole de champagne e num beijo passou-o para
a boca dela. Luiz riu…”, etc., etc.

Como explicas tu isso?

Tola! fez a Campelinho. Uma coisa tão simples… Toma-se um gole de
champagne ou de outro qualquer líquido, junta-se boca à boca,
assim… E juntou a ação às palavras.

… e pronto! bebe-se pela boca um do outro. Tão simples…

E que prazer há nisso?

Sei lá, menina! tornou a outra com um gesto de nojo, cuspindo. Pode
lá haver gosto.

Depois, as duas curvadas sobre o livro, unidas, coxa a coxa, braço
a braço, passaram à “sensação nova”.

Lídia apressou-se a dizer que as “mulheres do mundo” é
que sabem essas coisas… Quanto a ela não conhecia outra sensação
além dos beijos na boca, às escondidas, fora os abracinhos fortes
e demorados peito a peito, isto mesmo, com pessoas do coração…
Contou então que o seu primeiro namorado, um estudante do Liceu, um
fedelho, tentara certa vez… Concluiu baixinho ao ouvido de Maria, com receio
de que alguém as estivesse observando.

E consentistes?

Qual! Dei-lhe com um não ¾ na cara, e o tolo nunca mais me
fez festas.

Leram ainda alguns trechos do romance, rindo, cochichando, acotovelando-se
e depressa a conversação tomou rumo diverso recaindo sobre o
Zuza e o Loureiro.

A propósito, perguntou Maria, curiosa, pretendes mesmo casar com o
guarda-livros?

Porque não? fez a outra erguendo-se. Muito breve tenho homem! Decididamente
este não me escapa, tenho-o seguro… Vai todas as noites à
nossa casa, como vês, está caidinho. A mamãe já
não repara, deixa-se ficar com o d’ela…

Com o d’ela? inquiriu Maria com surpresa, muito admirada

Apanhada em flagrante indiscrição, Lídia confessou,
muito em segredo, que uma noite encontrara D. Amanda na alcova com o Batista
da Feira Nova, um negociante…

Capítulo III

Maria tomava sentido, recalcando a curiosidade que lhe espiaçava o
espírito. Calou-se para não ser indiscreta, e, depois de uma
pausa em que folheava maquinalmente o romance:

Dize uma coisa, Lídia: tu amas deveras o Loureiro?

Que pergunta, criatura! Certamente que sim. Ele então tem uma paixa
doida por mim! Bebe-me com o olhar e me come de beijos. É na boca,
no pescoço, na orelha, nos olhos, na nuca… Nunca vi gostar tanto
de beijos! E é preciso que se note, conhecemo-nos há três
meses! E o teu Zuza?

O namoro de Maria com o filho do coronel Souza Nunes estava em começo.
A falar a verdade, ela gostava de Zuza e casaria se ele quisesse, mas até
aquela data ainda não se tinham comunicado. Conheciam-se nada mais.

Nessas confabulações íntimas com a amiga, Maria, que
começava a compreender a vida tal como ela é na sociedade, fingia-se
ingênua, tolinha, expediente que usava sempre que desejava saber a opinião
de Lídia sobre isto ou sobre aquilo.

A princípio evitava conversar em amores, corando a qualquer palavra
mais livre ou a qualquer fato menos sérios que lhe contavam as colegas
de estudo. Agora, porém, ouvia tudo com interesse, procurando inteirar-se
dos acontecimentos, sem acanhamento, sem receio. Pouco a pouco foi perdendo
antigos retraimentos que trouxera da Imaculada Conceição. A
convivência com as outras normalistas transformara-lhe os hábitos
e as idéias. A Lídia principalmente era a sua confidente mais
chegada. Quase sempre estavam juntas em casa, na Escola, nos passeios, em
toda parte onde se encontravam, de braços dados, aos cochichos. Havia
entre elas um comércio contínuo de carinhos, de afagos e de
segredos. Gabavam-se mutuamente, tinham quase os mesmos hábitos, vestiam-se
pelos mesmos moldes, como duas irmãs.

Lídia Campelo tinha então vinte anos. era uma rapariga alta,
fausse-maigree e bem feita de corpo.

A razão por que ainda não se casara ninguém ignorava,
toda a gente sabia é que a filha da viúva Campelo, por via do
atavismo, puxava à mãe. Não havia na cidade rapazola
mais ou menos elegante, caixeiro de loja de modas que não se gabasse
de a ter beijado. Tinha fama de grande namoradeira, exímia em negócios
de amor. O próprio João da Mata não gostava muito daquela
amizade com Maria. Mais de uma vez dissera a D. Terezinha as suas desconfianças,
os seus escrúpulos, os seus receios com relação a essa
intimidade da afilhada com a Lídia: “Não consentisse a
rapariga ir à casa da outra. Antes prevenir que curar”.

Havia mesmo quem ousasse afirmar que a Campelinho “já não
era moça”

Da viúva diziam-se horrores: “aquilo era casa aberta…”
Tantos fossem, quantos ela recebia com um risinho se vergonha, arregaçando
os beiços. A filha seguia o mesmo caminho.

O certo, porém, é que o procedimento de D. Amanda não
escandalizava a sociedade. Vivia na sua modesta casinha do Trilho, muito concentrada,
sem amigas, num respeitoso isolamento, saindo à rua poucas vezes na
companhia da filha, não freqüentando os bailes nem o Passeio Público,
e muito menos as igrejas: vivia a seu modo, comodamente, do minguado montepio
de seu defunto marido.

“Uma mulher honesta!” protestava o Loureiro. Infâmias era
o que diziam da pobre senhora, infâmias que caiam por terra, ante o
indefectível procedimento de Da. Amanda!

E acrescentava, convicto:

Tal mãe, tal flha!

O velho mostrador da sala de jantar deu meia noite, uma hora, e Maria do
Carmo ainda estava acordada, a pensar no Zuza, arquitetando frases para responder
ao futuro bacharel em ciências jurídicas. Porque o estudante,
como sugeriu o amanuense, achara meio de comunicar-se com a rapariga, atirando-lhe
uma cartinha por baixo da mesa, quando jogavam o víspora.

Era a primeira vez que Zuza lhe escrevia numa letra caligráfica, de
mulher, miudinha, igual e redonda. Ao apanhar o envelope, com um movimento
disfarçado, Maria sentiu o sangue afluir todo para o rosto, como se
todo o mundo a tivesse surpreendido em flagrante às barbas do padrinho.
Ela mesmo, depois, admirou sua coragem, ela que nunca desrespeitara o amanuense,
temendo-o como a seu pai. Não pôde reprimir um susto, ficou fria,
com os olhos baixos, sem prestar atenção ao jogo. Pareceu-lhe
ver através dos óculos escuros do padrinho um lampejo de cólera
concentrada. Tremia com o papel na mão, sem saber o que fizesse. Mas
o víspora continuava animado e ela pode cautelosamente guardar o objeto
querido, pretextando sede e levantado-se para beber água no interior
da casa. Guardou-o nem guardado, no fundo de uma caixinha de fitas, sem ler,
e voltou imediatamente ao seu lugar com um alívio, muito lépida.

Quando o amanuense entro a esbravejar contra o Zuza, esmurrando a mesa, batendo
portas, colérico, medonho, Maria ficou lívida! Tá, tá,
tá, tá, ia tudo águas abaixo, o seu crime ia ser descoberto,
não havia fugir. Estava irremediavelmente perdida! Enfiou pelo corredor
com as mãos na cabeça, aflita. Decididamente o padrinho ia expulsá-la
de casa… seu primeiro ímpeto foi voltar, atirar-se aos pés
de João da Mata e pedir-lhe, suplicar-lhe por amor de Deus, por quem
era, que a perdoasse, que fora uma fraqueza, uma criancice… Isto, porém,
seria complicar a situação, confessar-se culpada, entregar-se
à cólera do amanuense. E ao sentar-se à mesa de jantar
foi acometida por uma convulsão de choro mudo, com a cabeça
entre as mãos, cotovelos fincados na mesa, olhos fixos na luz moribunda
da velinha de carnaúba.

O padrinho berrou, jurou acabar com a “bandalheira”, disse horrores
do Zuza, e, afinal, que felicidade para a rapariga! foi se deitar com a mulher.
Maria suspirou forte como se lhe tivessem tirado um grande peso do coração;
e agora, só no seu quarto, lia e relia a carta do acadêmico,
muito à fresca, sentindo um bem estar na sua rede de varandas, branca
e sarapintada de encarnado.

Fazia calor.

Maria costumava dormir com a vela acesa, numa palmatória de flandres.
Noutro quarto, defronte, ressonava a cozinheira, uma retirante velha, chamada
Mariana, e, no corredor, o Sultão abanava as orelhas sacudindo as pulgas.
De quando em quando havia um barulho d’asas na sala de jantar: era a
sabiá debatendo-se na gaiola, assombrada.

Agora, sim, Maria estava só, completamente só, podia ler à
vontade, uma, duas, três… quantas vezes quisesse, a carta do Zuza.
Nada como a noite para os namorados! Era só quando ela gozava a sua
liberdade, à noite, no seu quarto, em camisa, fazendo o que bem entendesse…

“Minha senhora”, dizia o futuro bacharel muito respeitoso. “Tomo
a liberdade de me dirigir a V. Excia. confiado na sua infinita bondade, nessa
bondade que se revela em seus esplêndidos olhos de madona e na brandura
meiga de sua voz cujo timbre faz-me lembrar toda a melodia d’uma harpa
eólia tangida por mãos de serafins… Tomo esta liberdade para
dizer-lhe simplesmente que a amo! e que este amor só podia ser inspirado
pela incomparável luz do seu olhas e pela música sentimental
de sua voz… Amo-a deveras… Só me resta esperar que V. Excia. aceite
este amor como tributo sincero de um coração avassalado por
sua beleza encantadora, e então serei o mais feliz dos homens.

De V. Excia. adm. e escravo

José de Souza Nunes

Isto numa letrinha microscópica, indecifrável quase.

Maria esteve meditando muito tempo sobre a resposta que devia dar ao estudante,
com os olhos na parede onde esbatia a sombra da rede ao comprido. Para não
responder ficava-lhe mal, era uma falta de consideração. Devia
responder fosse o que fosse. E, nessa dúvida, lia e relia a carta numa
inquietação que lhe tirava o sono. Realmente! começava
cedo a sua carreira amorosa e começava com um aspirante a bacharel!
Seria verdade aquilo ou o rapaz queria divertir-se à sua custa? O Zuza
parecia-lhe um bom moço, muito bem educado, incapaz de seduzir uma
rapariga honesta, de costumes irrepreensíveis, refratária a
pagodeiras. Às vezes, porém, tinha cara de pedante com os seus
óculos d’ouro, com a sua flor na botoeira, dizendo que dê,
dê-me você isto, faça você aquilo, ora sebo!

Maria implicava com certos modos do rapaz.

É verdade que tinha fortuna, era filho d’um homem de bem, d’um
coronel… Mas….

E lá vinha o mas e a dúvida não se desfazia.

Imaginava-se ao lado do Zuza, numa casinha muito bem mobiliada, com cortinas
de cretone na sala de jantar e um viveiro de pássaros, ele, de chambre
e gorro, sentado na escrivaninha a fazer versos, feliz, despreocupado; ela
com um robe-de-chambre todo branco, fitinha na frente d’alto a baixo,
cabelo solto, a ler o último romance à moda, recostada na espreguiçadeira,
sem filhos… Que vida!

Ao mesmo tempo lembrava-se de que o Zuza podia lhe sair um marido muito besta
e casmurro, cuidando somente da papelada de autos e requerimentos, um advogado
com escritório e tabuleta à porta para fazer…

nada! Ela, por outro lado, a cuidar dos filhos, muito besuntada, da sala
para a cozinha numa azáfama de burguesinha reles. Boas!

E não assentava idéias, a mente que nem um rodopio, fantasiando
situações disparatadas, coisas impossíveis.

Leu outra vez a carta, analisando-a palavra por palavra, repetindo as frases
a meia voz. Aquela linguagem alambicada e dengosa, quis-lhe parecer tosca
demais para ter saído do punho d’um estudante de direito. Que
idiota! pensava; comparar seus olhos com olhos de madona e sua voz com uma
harpa eólia! E, num arrebatamento, levantou-se e guardou a carta na
caixinha de fitas. “ Qual olhos de madona!”” Qual harpa
eólia, qual nada seu besta!”

Daí a pouco também ressonava com a respiração
leve como uma carícia.

O dia seguinte era domingo. Todos em casa do amanuense acordaram muito bem
dispostos. Havia missa cantada na Sé. Espocavam foguetes e replicavam
sinos. Meninos apregoavam numa voz cantada a Matraca a 40 réis! um
jornaleco imundo que falava da vida alheia e que por duas vezes trouxera sujidades
contra João da Mata. Maria do Carmo quis ver o que dizia a Matraca,
apesar do padrinho ter proibido expressamente a entrada do pasquim em sua
casa. Ali só lhe entrava a Província, dissera ele; isso mesmo
porque o José Pereira não exigia pagamento de assinatura. O
mais era uma súcia de papéis nojentos que só serviam
para … Maria deu um pulo até a casa da viúva Campelo e aí
pode comprar a Matraca. O padrinho estava no banho. O Namoro do Trilho de
Ferro! gritavam os vendedores. Maria teve um palpite. Certo aquilo era com
ela. Que felicidade o padrinho estar no banho! Pagou ao menino pedindo-lhe
pelo amor de Deus que não gritasse mais o Namoro do Trilho de Ferro.
Abriu o jornal ansiosa. Que horror! Havia com efeito uma piada sobre ela e
o Zuza. Mais que depressa correu a mostrar a Lídia.

Estás vendo, menina? Lê isto aqui. E apontou com o dedo.

Eram uns versos de pé de viola que contavam o recente namoro do Zuza:

A normalista do Trilho

ex-irmã de caridade

está caída pelo filho

d’um titular da cidade

O rapazola é galante

e usa flor na botoeira

D. Juan feito estudante

a namorar uma freira…

Eis porque, caros leitores,

eu digo como o Bahia:

Falem baixo, minhas flores

Senão… a chubata chia!…

………………………………………………………………………………………………………………

Lídia achou graça na versalhada. Ela também já
saíra na Matraca.

Um desaforo, não achas? perguntou a normalista indignada.

Que se há de fazer, minha filha? Ninguém está livre
destas coisas no Ceará moleque. Não se pode conversar com um
rapaz, porque não faltam alcoviteiros. Olha, eu aposto em como isto
que aqui está saiu da cachola do Guedes.

Que Guedes?

Ó mulher, o Guedes, um do Correio… Dizem até que está
feito redator principal da Matraca.

E que mal fiz eu a este Guedes que nem sequer me conhece?

Eu te digo. O Guedes andou a querer me namorar. Chegou a escrever-me uma
carta muito errada e piegas, pedindo uma entrevista… Que fiz eu? Ri-me muito
das asneiras do bicho, trocei-o a valer e mandei-o pastar bem… Ora o Guedes
sabe que nós somos muito amigas e talvez queira vingar-se indiretamente.
Aí está o que é menina. Manda-o plantar couves e rasga
essa baboseira, que isto não vale nada.

Não val’ nada, mas toda a gente lê e acredita, é
o que é.

Sabem lá qual é a “normalista do Trilho!”

A propósito Maria contou a ocorrência da véspera, a carta
do Zuza, a cólera do padrinho, muito vexada.

Estavam à janela, em pé, frente a frente, D. Amanda andava
para os fundos da casa a mourejar. No fim da rua, do lado da Estrada de Ferro,
uma locomotiva fazia manobras, chiando, a deitar vapor fora. Chegou até
a frente da casa da viúva, soltou um guincho rápido e voltou
estralejando sobre os trilhos.

… E os sinos a repicarem na Sé e girândolas de foguetes estourando
no ar. Chegavam espaçados sons de música que o vento trazia.

Não sei si deva responder, disse Maria dando a carta à amiga.
Ele com certeza vem hoje para o víspora…

De forma que tens um compromisso a satisfazer…

Compromisso?

Sim, porque quem cala consente. Aceitaste a carta, agora é responder.
Diz-lhe que o amas também e que desde já o consideras teu noivo.
Nisso de amor quanto mais depressa melhor. Eu pelo menos o entendo assim.
Queres que eu faço a minuta?

Eu, escrever para um homem?

Tola! Que crime há nisso? Eles não escrevem para nós?
Olha, tolinha, não sejas criança. O homem foi feito para a mulher
e a mulher para o homem.

Mas…

Não tem mas nem meio mas. Decide-te a namorar o rapaz e deixa-te de
meninices. Tu é que tens a lucrar. O Zuza tem fortuna, está
a formar-se e com mais um ano pode ser teu marido e fazer-te muito feliz.

O que é que esperas de teu padrinho, um sujeito estúpido e
usurário como um urso? Já não tens pai nem mãe,
e ele já fala em tirar-te da Escola. É muito homem para botar-te
a cozinhar. Não sejas tola!…

Lídia interrompeu-se para cumprimentar um cavaleiro que passava. Era
o Zuza montado numa alazão reluzente ao sol, de cauda aparada e arreios
de prata. O estudante trajava flanela e meias botas de polimento, chapéu
castor desabado, uma grande rosa branca no peito, luva, rebenque, muito vistoso
com seus óculos de ouro e seu bigodinho retorcido para cima.

Fazia o costumado passeio matinal e lembrara-se de passar à porta
do amanuense. Cumprimentou rasgadamente a Campelinho. Maria ocultou-se envergonhada
atrás do postigo olhando por entre as gretas.

Adorável! fez Lídia. E tu ainda queres mais, hein, minha tola?

Como sentia não ser ela a querida do Zuza! Ambos com vinte anos de
idade, encarando a vida por um mesmo prisma: passeios a cavalo, toilletes
de verão e d’inverno, como nos figurinos, com chácara
no Benfica, um phaetom para virem à cidade, vacas de leite… um maná!…

Tinha o seu Loureiro, mas o guarda-livros parecia-lhe muito casmurro, muito
indiferente a essas cousas de bom gosto, aos requintes da vida aristocrática
que ela ambicionava tanto. Queria-o mais por um capricho, porque não
encontrava outro homem em melhores condições que desejasse casar
com ela. Sabia de sua má fama e agarrava-se ao Loureiro como a uma
tábua de salvação. Tudo menos ficar para tia. Verdade,
verdade, o Loureiro não era um sujeito ignorante pobre que lhe fizesse
vergonha; mas não tinha certo aprumo, certa elegância ao trajar;
aferrava-se à calça e ao colete branco, invariavelmente, e ninguém
o demovia daquele velho hábito. Entretanto possuía seu cabedal
em casas e apólices da dívida pública. Ao passo que o
outro, o Zuza, sabia empregar seu dinheiro divertindo-se, trajando bem, passeando
como um príncipe. Uma simples questão de temperamento.

Atira-te minha tola. Aproveita enquanto o Braz é tesoureiro…

Que queres tu que eu faça?

Escreve logo essa carta e faze com eu: marca o dia do casamento. Assim é
que se faz. Quem pensa não casa, lá diz o ditado, e é
muito certo.

A voz de D. Terezinha chamou Maria do outro lado da rua. Era hora do almoço.
O amanuense estava apressado porque tinha de ir à praia ao embarque
do conselheiro Castro e Silva que seguia para o Rio de Janeiro.

João da Mata almoçou às carreiras, como quem vai tomar
o trem, e abalou, enfiando-se no inseparável e já velho chapéu
chile.

Seriam onze horas pouco mais ou menos. Um mormação de fornalha
abafava os transeuntes que desciam e subiam a rua de Baixo a pé, esbaforidos.

No porto havia grande lufa-lufa de gente que embarcava e desembarcava simultaneamente,
bracejando, falando alto. A maré d’enchente crispada pela ventania
de sudoeste, num contínuo vaivém, alagava o areal seco e faiscante.
Muita gente ao embarque do Conselheiro. Curiosos de todas as classes, trabalhadores
aduaneiros de jaqueta azul, guardas d’Alfândega e oficiais de
descarga com ar autoritário, de fardeta e boné, marinheiros
da Capitania, confundiam-se numa promiscuidade interessante. Jangadeiros arregaçados
até aos joelhos, chapéu de palha de carnaúba, mostrando
o peito robusto e cabeludo, iam armando a vela às jangadas. A cada
fluxo do mar havia gritos e assobios. Um alvoroço! Jangadas iam e vinham
em direção ao nacional que tombava como um ébrio aproado
ao vento. Apenas quatro navios mercantes fundeados e uma canhoneira argentina.
Reluzia em caracteres garrafais, pintadinhos de fresco na popa d’uma
barca italiana “Civita Vecchia”.

O vapor apitou pedindo mala. Era uma maçada ir à bordo com
a maré cheia e um vento como aquele. Demais o sol estava de rachar.

Um carro parou à porta da Escola de Aprendizes de Marinheiros: era
o Conselheiro, metido numa sobrecasaca muito comprida, cheio de atenções.
Já o esperavam os amigos receosos de que o vapor suspendesse sem “o
homem”.

A música da Polícia, formada à porta do quartel, gaguejou
o Hino Nacional e o Conselheiro, cheio de si, cortejando à direita
e à esquerda, muito ancho, seguiu a tomar o escaler d’Alfândega.

Pílulas! fez João da Mata limpando a testa. Não vale
a pena a gente se sacrificar com um calor d’este!

Lá adiante encontrou o Loureiro que vinha de despachar uma fatura
no Trapiche, muito apressado com sua calça branca lustrosa de gome
sem uma dobra.

Por ali?

É verdade, tinha ido a negócio.

Que há de novo? tornou o Loureiro.

Nada. Vou aqui ao embarque do Conselheiro.

Hás de ganhar muito com isto…

Que queres, filho? A política, a política…

Qual política, homem! Com um solão deste não havia quem
me fizesse ir a embarque de filho d mãe nenhum.

Uma lufada de poeira redemoinhou a dois passos dos interlocutores derrubando
bruscamente o chapéu da amanuense, pondo-lhe a calava à mostra.

Com os diabos! vociferou João da Mata abaixando-se mais que depressa
para apanhar seu chile que rodava sobre as abas numa disparada vertiginosa
por ali fora.

Fiau! Fiau! Pega! pega! prorrompeu a garotada numa vaia estrepitosa de gritos
e assobios.

Canalha! resmungava o homem, enquanto o Loureiro escafedia-se daquela situação
grotesca, sacudindo com a ponta dos dedos a poeira do paletó, muito
calmo.

O conselheiro tinha chegado ao Trapiche com o seu préstito oficioso
de amigos.

O amanuense encavacou deveras “ Diabos levem conselheiros e tudo!”
dizia ele mal humorado, piscando os olhos desesperadamente por trás
dos óculos escuros, cobrindo a calva com um lenço para não
constipar. E dali mesmo voltou à casa, maldizendo-se por haver deixado
os seus cômodos por uma estopada inútil d’aquela.

Dava meio-dia. À porta do Quartel de Linha um soldado soprava a todo
pulmão num corneta muito bem areada.

João da Mata caminhava devagar, automático, como quem vai com
uma idéia fixa. Que seca! Podia muito bem estar em casa àquela
hora, metido na sua camisola fresca, de papo para o ar na rede, ao conchego
morno da afilhada, saboreando-lhe o cheiro bom das carnes; entretanto ali
vinha ofegante como um boi e suado como dois burros, todo emporcalhado da
poeira, furioso. Não lhe contassem para outra. Já tinha pensado
mesmo em abandonar para sempre a política. Pílulas! Mal lhe
chegava o tempo para pensar na Maria do Carmo, naquela deliciosa boquinha
fresca e rosada, boa para a gente levar a vida inteira a beijar…

O Zuza tinha lhe acordado o instinto; receava agora que a menina se deixasse
levar pelas gabolices do estudante e então lá se iam os seus
belos projetos águas abaixo.

Nunca se preocupara tanto com Maria do Carmo. Desde que o Zuza começou
a freqüentar a rua do Trilho não lhe saia mais da cabeça
a afilhada. A própria D. Terezinha por vezes tinha estranhado seus
modos para com a menina.

Achava a Teté uma mulher gasta: queria uma rapariga nova e fresca,
cheirando a leite, sem pecados torpes, a quem ele pudesse ensinar certos segredos
do amor, ocultamente, sem que ninguém soubesse… Estava farto do “amor
conjugal”. Nunca experimentara o contato aveludado do corpo de uma mulher
educada, virgem das impurezas do século. E quem melhor do que Maria
do Carmo, uma normalista exemplar e recatada, poderia satisfazer os caprichos
de seu temperamento impetuoso? Era sua afilhada, mas, adeus! não havia
ente ele e a menina o menor grau de consangüinidade, portanto, não
podia haver crime nas suas intenções… Si Maria houvesse de
cair nas garras de algum bacharelete safado, fosse ele, João da Mata,
o primeiro a abrir caminho.

Demais, argumentava de si para si, podia arranjar tudo sem que ninguém
soubesse. O segredo ficaria entre ele e a afilhada, inviolável como
a sepultura de um santo…

E ia parafusando um meio simples e natural de conquistar o coração
de Maria. Toda a questão era de oportunidade.

Àquela hora a normalista arrastava ao piano a valsa Minha esperança,
cuja cadência punha uma monotonia irritante na quietação
morna da rua do Trilho.

Capítulo IV

O futuro bacharel em leis, ou simplesmente o Zuza, como era conhecido em
Fortaleza o filho do coronel Souza Nunes, passava uma vida regalada, usufruindo
largamente a fortuna do pai avaliada em cerca e cem contos de réis.
O coronel franqueava a burra ao filho com uma generosidade verdadeiramente
paternal. Queria-o assim mesmo com todas as suas manias aristocráticas
e afidalgadas, com os seus gestos elegantes, arrostando grandeza e bom gosto,
tal qual o presidente da província de quem se dizia amigo.

“Cada qual com seu igual”, doutrinava o coronel. O que não
admitia é que o filho se metesse com gente de laia ruim, que ele, coronel,
nunca descera de sua dignidade para tirar o chapéu ou apertar a mão
a indivíduos que não tivessem uma posição social
definida. Aprendera isso em pequeno com o pai, o finado desembargador Souza
Nunes, homem de costumes severos que sabia dar aos filhos uma educação
esmerada, quase principesca. O Zuza, dizia ele, não era mais do que
uma vergôntea digna desse belo tronco genealógico dos legítimos
Souza Nunes, tão nobres quanto respeitados no Ceará.

Era um orgulho para o coronel ver o filho passar a cavalo com o presidente,
alvo de olhar bisbilhoteiro do mulherio elegante em trajes de montaria, roupa
de flanela, botas, chapéu mole desabado.

O Zuza dava-se muito com o presidente, que também pertencia a uma
alta linhagem de fidalgos de São Paulo e fora educado na Europa; um
rapagão alegre, amador de cavalos de raça, ilustrado e amigo
de mulheres.

As revelações da Matraca sobre o namoro do Trilho de Ferro
deram que falar à cidade inteira. Nas rodas de calçada o fato
propalou-se imediatamente à guisa d’escândalo. A princípio
ninguém sabia ao certo qual era a tal “normalista ex-irmã
de caridade”. Que havia de ser a Lídia Campelo afirmavam uns.
Mas a Campelinho nunca fora religiosa, quanto mais freira. Afinal sempre se
veio a verdade e espalhou-se logo que a afilhada de João da Mata estava
com um namoro pulha mais o estudante. Não era a Lídia mas dava
no mesmo, dizia-se: ambas estudavam na mesma escola, eram dignas uma da outra.

E toda gente dizia sua pilhéria, atirava seu conceito à boca
pequena, com risadinhas sublinhadas pilhérias e conceitos que chegavam
até aos ouvidos do coronel Souza Nunes, percucientes, incisivos como
ferroadas de maribondos. “ Não era possível, pensava ele.
O Zuza era incapaz de semelhante criancice; um rapaz de certa categoria não
se deixa iludir por uma simples normalista sem eira nem beira, uma rapariga
sem juízo, filha de pais incógnitos, educada em casa d’amanuense
reles. Quem, o Zuza? Pois não viam logo a monstruosidade do absurdo?
Era uma calúnia levantada a seu filho. Que esta! Não faltava
mais nada senão ver o nome do rapaz em letra redonda estampado na Matraca,
um jornaleco imundo como uma cloaca!”

Morava na rua Formosa, numa casa assobradada e vistosa com frontaria d’azulejos,
varandas, e dois ananazes de louça no alto da cimalha, à velha
moda portuguesa.

O coronel gostava de passar bem, de “fazer figura”, e, até
certo ponto, revelava uma natureza delicada que não era indiferente
ao aspecto exterior das coisas; sabia mesmo aquilatar objetos de arte, escolher
bric-à-bracs.

Ninguém o excedia. Era o que se pode chamar “um homem de bons
costumes”, um pouco orgulhosos e d’uma susceptibilidade à
toda a prova em matéria de dignidade pessoal: irrepreensível
e caprichoso na intimidade doméstica como na vida pública.

Fazia gosto a sala de visitas, forrada a papel-veludo, claro com ramagens
cinzenta, mobiliada com inexcedível graça, sem ostentação,
sem luxo, mas onde se notava logo certa correção no arranjo
dos móveis, na colocação dos quadros, na limpidez dos
cristais.

Ao fundo, entre as duas portas altas e esguias que diziam para o interior
da casa, ficava o piano, um Pleyel novo, muito lustroso, sempre mudo, sobre
o qual assentavam estatuetas de biscuit. À direita, descansando sobre
grandes pregos dourados, o retrato a óleo do coronel com sua barba
em ponta, olhava para o piano, muito sério, em simetria com o da a
esposa.

O corredor da entrada separava a sala de visitas do gabinete do Zuza, que
ficava à esquerda.

“Não faltava mais nada!” repetia mentalmente o coronel
estendido na espreguiçadeira de lona, pernas trançadas, defronte
da varanda, aparando as unhas.

Em casa usava calças brancas , paletó de seda amarelo e sapatos
de entrada baixa com flores no rosto de lã.

Era hora do almoço, o Zuza não devia tardar. Ia falar-lhe decididamente;
aquela história do namoro não lhe cheirava bem. Talvez o filho
tivesse mesmo a estroinice pueril de desfrutar a rapariga.

Daí a pouco entrou o estudante Vinha muito jovial, cantarolando o
Bocácio:

Si acaso algum de nós

tiver por sina atróz

mulher que se não cale

que a toda hora fale…

E repetia muito alegre:

Trá, lá, lá, lá…

Vens, muito alegre, hein, meu filho? interrompeu o coronel da sala.

Zuza tinha entrado para o gabinete e começava a despir-se

Ah! meu pai estava aí?

E logo…

Trago uma novidade.

Vejamos…

Vou a Baturité com o presidente.

Ainda bem, ainda bem, fez o coronel num tom desusado, sem erguer a cabeça.

Como ainda bem? inquiriu o estudante aproximando-se.

Apenas trocava o fraque por um paletó de brim branco.

Porque… porque… Eu precisava mesmo falar-te. Ora dize uma coisa: leste
o último número da Matraca?

Zuza franziu o sobrolhos desconfiado, com um risinho seco. ¾ “Não
tinha lido a Matraca, não. Um jornaleco imoral que andava por aí?
Não, não tinha lido. Por que?

Que história é uma de namoro no Trilho de Ferros? Fala-se em
ti, no teu nome, numa normalista…

Cresceu o assombro do rapaz.

Eu!?… Meu pai está gracejando…

Juro-te que não. Mas olha, quem diz é a Matraca e alguém
afirmou-o particularmente que a rua está cheia…

E esta! fez o Zuza cruzando os braços admirado. Pois o meu pai não
vê logo que isto é um gracejo de mau gosto, um canalhismo de
província?

O que é certo é que não te fica bem a brincadeira.

Absolutamente não, e eu preciso saber quem é o autor do pasquim…

A criada anunciou que o almoço estava na mesa.

… Sim, continuou Zuza, vou informar-me, preciso saber…

Eis aí porque fazes bem indo passar uns dias em Baturité.

E polindo as unhas, o coronel dirigiu-se para a sala de jantar, grave como
um apóstolo do bem, enquanto o filho ia desabafando suas cóleras
contra a sociedade cearense.

“Uma sociedade que lê a Matraca e gosta!”

No outro dia, com efeito, o futuro bacharel seguia no expresso para Baturité
em companhia do Dr. Castro, presidente do Ceará.

Lia-se na Província:

“Segue amanhã, pela manhã, com destino a Baturité,
a fim de visitar a importante fábrica Proença, O Exmo. Sr. Presidente
da Província. Acompanham o ilustre amigo do Ceará os nossos
distintos amigos e correligionários Srs. Dr. José de Souza Nunes
e José Pereira nosso colega de redação. S. Excia. pretende
demorar-se alguns dias naquela cidade”.

Maria do Carmo leu com surpresa a notícia da Província e não
pode conter um gesto de despeito. Era desse modo que o Sr. Zuza estava doido
por ela! Ir-se embora sem ao menos lhe comunicar! Nem sequer deixava um bilhetinho,
um cartão com duas palavras, duas somente! Que custava escrever num
pedaço de papel ¾ Vou e volto ?

Zangara-se deveras, atirando a folha para um lado, trombuda, furiosa.

Estava tudo acabado, não falaria mais no Zuza, não lhe escrevia;
que fosse bugiar! Moças havia muitas no Ceará: que procurasse
uma lá a seu jeito e ela por sua vez trataria de arranjar noivo, mas
noivo para casar, noivo sério, noivo de bem!

Entretanto, Maria não tinha feito reparo na despedida do Zuza, um
soneto endecassílabo, com sílabas de mais num versos e de menos
noutros. Adeus ¾ era o título e vinha na terceira página
da Província. Depois é que viu, porque a Lídia mostrou-lhe.

Já estavas fazendo mau juízo do rapaz, hein? disse a Campelinho.

Certamente, confirmou Maria. Nem ao menos teve a lembrança de me avisar!

Como querias tu que ele avisasse se ainda não lhe respondeste a carta?

Maria esteve pensando com o jornal na mão, lendo e relendo os versos,
e, meio arrufada, meio risonha:

Embora! O dever dele era me participar. O homem é que faz tudo…

E na manhã seguinte, muito cedo, pulou da rede e foi no bico dos pés,
embrulhada no lençol, ver passar o trem através da vidraça.

A locomotiva disparou numa rapidez crescente, soltando rolos de fumo e fagulhas
que pareciam uma irrisão aos olhos da normalista. A sineta, num badalar
contínuo, acordava os moradores do Trilho, àquela hora, ainda
nos lençóis.

Maria viu passar a enfiada de vagões estralejando sobre os trilhos
e esteve muito tempo em pé ouvindo sino longínquo da locomotiva,
que ia, como uma coisa doida, sertão a dentro! Começou então
a sentir-se só, teve vontade de abrir num choro histérico como
si lhe houvessem feito uma grande injustiça. Voltou para a tepidez
do seu quarto e lá deixou-se ficar até sair o sol, com um peso
no coração, encolhida na rede, sem ânimo para levantar-se,
desejando um quer que era vago e extraordinário que lhe punha arrepios
intermitentes na pele. Que bom se o Zuza estivesse ali com ela, na mesma rede,
corpo a corpo, aquecendo-a com seu calor… Aquela hora onde estaria ele?
Talvez em Arronches…; não, já devia ter chegado a Mondubi…
Imaginava-o metido num comprido guarda-pó de brim pardo, tomando leite
fresco na estação ao lado do presidente, tirando do bolso da
calça um maço de notas de banco, muito amável, rindo…
Depois o trem apitava. Havia um movimento rápido de gente que embarcava
às pressas, e… lá ia outra vez por aqueles descampados fora,
caminho da serra que se via ao longe, rente com as nuvens, como aquelas cadeias
colossais de montanhas onde há gelos eternos e que na geografia tem
o nome de Alpes…

De repente, lembrou-se:

“E se o trem desencarilhasse?…” Ia adormecendo quando lhe veio
à mente esta idéia. Sentou-se na rede, esfregando os olhos como
se tivesse acordado de um pesadelo. “ Se o trem desencarilhasse o presidente
morreria também…”

… Teve um consolo. Não, o trem havia de chegar em paz com todos
os passageiros. Espreguiçou-se toda com estalinhos de juntas e, maquinalmente,
deixou escapar um ai! ai! muito lânguido e prolongado.

Lá fora recomeçava a labuta cotidiana. A criada puxava água
da cacimba; o cargueiro d’água potável enchia os potes;
cegos cantavam na rua uma lenga-lenga maçante, pedindo esmola numa
voz chorada ; vendedores ambulantes ofereciam cajus… Havia um ruído
matinal de cidade grande que desperta.

Nesse dia Maria do Carmo não foi à Escola Normal: que estava
incomodada com uma enxaqueca muito forte.

João da Mata tomou-lhe o pulso, mandou que mostrasse a língua,
muito solícito, com cuidados de pais: “Não era nada, uma
defluxeira.” E largou-se para a Repartição, palitando
os dentes.

A Lídia, essa tinha liberdade plena em casa da mãe, ia à
escola quando queria e, se lhe convinha, lá não punha os pés.
Deixou-se ficar também com a Maria. Tinham muito que conversar.

Que saudades, hein? começou a Campelinho.

Estavam sós, na sala do amanuense. D. Terezinha tinha ido à
casa da viúva mostrar um corte de fazenda que o Janjão lhe comprara.

Maria, derreada na cadeira de balanço, fechou o volume que estivera
lendo, e com um bocejo: “É verdade, o diabo do rapaz não
lhe saía da lembrança. Nem um castigo… Mas estava muito desgostada
da vida, já andavam inventando histórias, calúnias”.

Não te importes, minha tola. Ora! ora! ora!… Isso a gente faz ouvidos
de mercador e vai para adiante. A vida é esta, e tola é quem
se ilude.

Não, Lídia, as coisas não são como tu pensas;
No Ceará basta um rapaz ir duas vezes à casa de uma moça
para que se diga logo que o namoro está feio, que é um escândalo,
e nós é que somos prejudicadas. “Ah! porque já
não é mais moça, porque é uma sem-vergonha”.
é o que dizem…

Pois olha, esta aqui há-de namorar até não poder mais.
Queres que te diga uma coisa? Isso de casamento é uma cantilena…

E, num assomo de despeito, a Campelinho lembrou mulheres casadas que tinham
amantes e que viviam muito bem na sociedade; citou a mulher do Dr. Mendes,
juiz municipal. Estava ali uma que fora encontrada aos beijos com José
Pereira da Província, em pleno Passeio Público! Quem não
sabia? Ninguém! Entretanto freqüentava as melhores famílias
da capital era a Sra. D. Amélia! Queria outro exemplo!

E abaixando a voz:

Aqui mesmo em casa o tens, minha tola. Ninguém ignora neste mundo
que D. Terezinha é amigada com teu padrinho. E tudo é assim,
querida Maria. A canalha fala de invejam invejosos é o que não
faltam nesta terra,

Maria prestava atenção, silenciosa.

Então, disse ela por fim, achas que devo continuar o namoro?

Que dúvida, mulher! Eu é porque já tenho o meu. Assim
mesmo…

Maria sentiu uma pontinha de ciúmes roçar-lhe o coração.
Disfarçou com um risinho seco.

Eu estive pensando, disse, caso o Zuza me pregue um taboca…

Nada mais simples: prega-lhe outra casando com o primeiro bilontra que aparecer.
Amor com amor se paga…

Não, falemos sério…

Que queres tu que se diga? Eu cá não costumo enganar ninguém.
Sou muito franca pão, pão, queijo, queijo…

Dão licença? disse uma voz fora, na rua.

Era Da. Amélia, mulher do Dr. Mendes.

Maria foi abrir a rótula.

Oh! por ali?…

É verdade, meninas, venho morta de calor. Uf! que solão, que
solão!

Lídia, muito expedita e pronta, ajudou a desatar o véu e tirar
as luvas.

Como estava a Teté? perguntou Da. Amélia muito afogueada, tirando
o chapéu defronte do espelho. Da. Amanda ia bem? E sentando-se:

Já sei que não foram hoje à escola… Boa vida! Não
há como ser moça. Pois, meninas, venho duma seca. Fui ali à
casa da costureira experimentar o meu vestido de cetim…

Isso é que é boa vida, disse a Campelinho: passeios, vestidos…

Maria tinha ido chamar a madrinha, que era um pulo.

Qual passeios! Quem tem filhos pode lá passear?

D. Terezinha não se fez esperar. Entrou sacudindo os quadris, bamboleando-se
toda.

Ora viva! disse atirando-se nos braços de Da. Amélia. Como
vai, como tem passado? Que milagre!

Agora todas falavam a um tempo, rindo, gabando-se.

Sabem quem esteve ontem conosco? O Zuza. Diz que volta sábado de Baturité.
Gabou muito a Maria: que é uma cearense distinta, muito prendada, chique
a valer, um horror! Ao que parece temos casório…

Qual casório! fez Maria com um rubor nas faces. Invenções…

Não havia de ser contra minha vontade, disse D. Terezinha . Seria
até uma felicidade. Deus o permita…

Falaram de modas.

D. Terezinha alardeou o seu rico vestido de cetim, que a viúva Campelo
achara de muito bom gosto.

D. Amélia queixou-se do marido: um homem sem gosto, um mosca-morta,
muito desleixado, com venetas de doido. Ela até já se aborrecia,
porque o Mendes tinha o mau costume de beber aguardente; às vezes chegava
tropeçando, com a língua pegada, sem poder falar. Vestidos ela
via-os de ano em ano. Um indiferente, o Mendes. Sofria de uma erisipela na
perna direita que o proibia de trabalhar meses inteiros…

Pois olha, disse D. Terezinha, o meu faz-me as vontades, mesmo porque eu
não sou mulher de muitos me-deixes. Todos os meses é p’r’ali
um vestido. Diabo é quem os poupa! Também, minha filha, dou-lhe
toda a liberdade, fora e dentro de casa. Felizmente não tenho queixa
dele.

Lídia pediu a D. Amélia que tocasse alguma coisa, a Juanita,
que era a valsa da moda.

A propósito D. Amélia perguntou se já tinham ido ao
teatro. Que fossem, que fossem. O grupo lírico da Naghel estava fazendo
sucesso. A Bellegrandi era um mulherão capaz de arrebatar uma platéia
inteira! Que modos, que requebros! Domingo ia a Juanita pela última
vez em benefício da Aliverti. Que fossem. Era uma opereta interessantíssima,
por sinal tinha sido representada cem vezes na Corte! A beneficiada ia fazer
o papel de Juanita.

Eu é para que tenho jeito, atalhou a Campelinho, é para o teatro.
Deve ser uma vida tão cheia de sensações a das atrizes…
Vestem-se de todas as formas, recebem presentes ricos, jóias, anéis
de brilhante… são aplaudidas e ainda por cima ganham dinheiro à
ufa. Eu já disse à mamãe, mas ela não quer por
coisa alguma, diz que é uma vida imoral… Tolice! Há tanta
gente boa nos teatros… A última vez que fui ao circo fiquei encantada
pela Estrela do Mar.

É o que você pensa, menina, disse D. Amélia. Essas pobres
mulheres fazem um ror de sacrifícios… Sabe Deus quanto lhes custa
uma noite de espetáculo! Acabam quase sempre miseráveis, coitadas,
nalgum quarto d’hotel, a esmolas. Enquanto são moças ainda,
ainda encontram quem lhes estenda a mão, porém, depois, morrem
p’r’aí em qualquer pocilga, sem um real para a mortalha.
Tibis, menina, nem se lembre de tal coisa!

Maria, a um canto do sofá, pensava no estudante, perdida num labirinto
de reflexões, com uma languidez no olhar vago. O Zuza preocupava-a
como um sonho d’ouro. Começava a sentir o que nunca sentira por
homem algum, certo desejo de ter um marido a quem pudesse entregar-se corpo
e alma, certa sentimentalidade sem causa positiva, uma como abstração
do resto da humanidade… “E quando Da. Amélia, sentando-se ao
piano, começou a tocar a Juanita, veio-lhe um vago e esquisito desejo
de ir-se pelo mundo fora nos braços do “seu” Zuza, rodopiando
numa valsa entontecedora até cansar… Via-se nos braços dele,
arquejando ao compasso da música, quase sem tocar o chão, voando
quase leve com um floco d’algodão, como uma pena, como uma coisa
ideal aérea… E lembrava-se do padrinho. Ah! o padrinho queria tanto
mal ao Zuza… D’ora avante ia agradar muito a João, tratá-lo
com mais carinho, dar-lhe muitos cafunés, fazer-lhe todas as vontades,
adulá-lo, a fim de que ele não ralhasse por causa do estudante.
Que tola não ter escrito logo ao Zuza, àquele Zuza que era agora
a quantidade constante dos seus cálculos, a preocupação
única de seu espírito, o seu alter ego.

Sim, porque, de resto, ela não havia de ser nenhuma freira que ficasse
p’r’aí solteirona, sempre casta como uma vestal.

A Lídia tinha razão a mulher fez-se para o homem e o homem
para a mulher. Era sempre melhor aceitar a cartada que se lhe oferecia do
que entregar-se aí a qualquer caixeiro do armarinho, a qualquer lojista
usurário e safado. Ao menos o Zuza tinha dinheiro e posição,
era um rapaz conceituado. Comparava-se com Lídia e sentia-se outra,
muito outra, noiva de um moço elegante, estimada, querida por todos.
Ninguém se lembraria, depois, de sua origem humilde, todo mundo a respeitaria
como esposa do Sr. Dr. José de Souza Nunes! Começava mesmo a
sentir uma grande afeição pelo Zuza.

As últimas notas do piano produziram-lhe uma comoçãozinha,
uma ponta de saudade sincera, um arrepio na epiderme. E. levantando-se muito
desconfiada, foi juntar-se às outras que palravam por quantas juntas
tinham.

A voz da Campelinho timbrava muito fina e metálica, traduzindo todo
um temperamento nervoso e irrequieto.

Acharam deliciosa a valsa da Juanita. Maria também deu o seu parecer:
que era linda, que ia ensaiá-la. Falavam alto, numa intimidade de amigas
velhas, sem pensar nas horas que iam passando rapidamente.

Fazia sombra na calçada. Pela janela aberta entrava uma poeira sutil
que punha uma camada muito tênue e pardacenta no verniz gasto dos móveis.
Vinha lá de dentro, d’envolta com o fumaceiro da cozinha, um
cheiro gorduroso e excitante de guisados.

Deram três horas.

Jesus! fez D. Amélia, erguendo-se admirada. Três horas! Vou-me
chegando, meninas.

Agora fique para o jantar, solicitou D. Terezinha. Nada de cerimônias,
o Janjão não tarda, é comida de pobre, mas sempre se
passa…

Ora fique, Jesus!

Não, Tetezinha de minh’alma, não posso, o Mendes me espera.
aquilo é um estouvado. Vim somente para pedir um favorzinho, mas é
segredo…

Oh! filha…

Entraram as duas para a sala de jantar. A Mendes pediu água, e, dando
estalinhos com a língua, acariciando a mão de D. Terezinha,
disse muito baixo, quase ao ouvido, engrossando a voz, que precisava de dez
mil réis para pagar a costureira e vinha pedir-lhos até o fim
do mês. A Teté não imaginava: tinha em casa o essencial
para a feira do dia seguinte! O Mendes pouco se importava que houvesse ou
não dinheiro… Tivesse paciência , sim? Pagava sem falta, no
fim do mês.

Disse que os meninos andavam descalços, que as despesas eram muito
grandes, alegou o preço da carne… Um horror! Não se podia
num tempo d’aquele comer com pouco dinheiro. Não sobrava nem
para um vestido.

Também estava muito “quebrada”, disse D. Terezinha compungida.
O Janjão tinha feito um ror de despesas naquele mês; dava graças
a Deus quando lhe vinha um dinheirinho do Pará, de rendas… Só
ao velho Teixeira, um que emprestava dinheiro a juros, deviam duzentos mil
réis. Em todo caso sempre ia ver se arranjava p’ra cinco mil
réis. Era um instantinho…

Foi depressa à alcova, abriu com estrondo a gaveta da cômoda
e d’aí a pouco voltou com uma nota de 5$000, muito velha e ruça,
quase em frangalhos, que entregou à outra. Era só o que tinha
para servi-la.

Muito obrigada, minha santa, não sabe quanto lhe agradeço…
No fim do mês sem falta.

E, guardando o dinheiro na velha bolsinha de couro da Rússia:

Agora deixe-me ir.

Por que não fica p’ra jantar? insistiu D. Terezinha. O Janjão
está chegando, mande um recadinho ao Dr. Mendes.

Qual filha, não posso. O Mendes é muito enjoado: fica para
outra vez, sim?

Beijaram-se depressa e a mulher do juiz municipal retirou-se com o seu passo
miudinho, arrepanhando o vestido.

Apareçam, hein? disse da rua. Amor com amor se paga…

E desapareceu, como um foguete na esquina.

Às quatro horas entrou o amanuense com a papelada debaixo do braço,
muito suado, assobiando a Mascote.

A Campelinho tinha se escapulido: que eram horas de jantar.

Maria do Carmo sentara-se ao piano e ensaiava a Juanita.

D. Terezinha, essa andava para dentro, às voltas com a cozinheira,
provando as panelas, ralhando.

João apenas sacudiu os papeis sobre o sofá foi direto à
afilhada.

A santa está tocando Juanita? Que mimo, Jesus! Como se pode ser bonita
assim?

E sem dar tempo a Maria defender-se, pôs-lhe um grande beijo na face.
A normalista sentiu um braseiro no rosto ao contato da barba espinhenta do
amanuense, e um bafo insuportável de álcool tomou-lhe as narinas.
Era a primeira vez, depois que saíra da Imaculada Conceição,
que o padrinho lhe beijava m cheio na face. O amanuense tinha se aproximado
devagarinho, de mão p’ra trás, e, de repente tomando-lhe
a cabeça entre as mãos fedorentas a cigarro, beijou-a perto
da orelha, continuando cinicamente a assobiar.

Ela apenas pode dizer ”Padrinho!” agarrando-se à cadeira
de mola. Ficou muito séria a limpar o rosto com a manga do casaco.
Ah! mas dentro, nas profundezas de sua alma, teve um ódio imenso àquele
homem nojento que abusava de sua autoridade sobre ela para beijá-la!
Fosse outro, ela teria correspondido com uma bofetada na cara… Mas, que
fazer? Era seu padrinho, quase seu pai, devia aturá-lo, tinha a obrigação
de submeter-se, porque estava em sua casa, comia de seus pirões, e
o papai lhe pedira muito que o respeitasse. A princípio até
o estimava, não o achava mau completamente, agora, porém, que
uma espécie de instinto irresistível a impelia para o Zuza,
agora que o estudante ocupava um lugar no seu coração enchendo-o
quase, o padrinho ia-se-lhe tornando repugnante e desprezível. Não
podia chegar-se a ele, vê-lo de perto, encará-lo frente a frente,
sem um profundo e oculto frenesi. Um homem que não cuidava dos dentes,
que não se banhava, um bêbedo!

Esteve folheando o livro de músicas automaticamente, sem se mexer,
sem dar palavra, esperando que João se retirasse da sala. Ele, porém,
bateu o postigo com força, cambaleando, dando encontrões nos
móveis, aproximou-se outra vez da afilhada, e, num movimento abrutalhado,
abraçando-a por trás, curvando-se para a frente sobre ela, chimpou-lhe
outro beijo, agora na boca, um beijo úmido, selvagem, babando-a como
um alucinado…

Maria quis gritar sufocada, mas o amanuense, tapando-lhe a boca, ameaçou…

Nada de gritos, hein! nada de gritos… Eu sou seu padrinho, posso lhe beijar
onde e quando quiser, está ouvindo? Nada de gritos!

E Maria, com os lábios muito vermelhos, como a polpa d’uma fruta,
debruçada sobre o piano, desandou a chorar nervosamente.

João da Mata tinha bebido sofrivelmente na bodega do Zé Gato
onde costumava aquecer os pulmões ao voltar da Repartição.
Nesse dia excedeu-se, tomando em demasia, porque lá estava o Perneta,
um dos correios, que usava muleta, que também gostava da pinga e escrevia
versos para o Judeu Errante.

Num momento deram cabo d’uma garrafa em cujo rótulo lia-se este
reclame atraente como visgo: Cumbe legítima.

E que loquacidade! Falaram por três deputados brasileiros sobre poesia
e política.

O Perneta, sujeito pretensioso e pernóstico, metido a literato, falando
sempre com certo ar dogmático, ventilou uma questão de literatura
cearense ¾ Que não tínhamos poeta, disse: o que havia
era uma troça de malandros e de pedantes muito bestas, que escrevinhavam
para a Província coisas tão ruins que até faziam vergonha
aos manes do glorioso José de Alencar; uma súcia de imitadores
que se limitavam a copiar dos jornais da Corte.

Na sua opinião o Ceará só possuía um poeta verdadeiramente
inspirado ¾ era Barbosa de Freitas. Esse, sim, cantava o que sentia
em versos magistrais, dignos de Victor Hugo. Conhecera-o pessoalmente. Um
boêmio! Fazia gosto ouvi-lo, Que eloqüência, que verve, que
talento! Sabia de cor muitas poesias dele, mas nenhuma se comparava ao Êxtase,
“esse poema de amor”, que valia por todas as poesias de Juvenal
Galeno. O João queria que recitasse?

Recita lá, fez o amanuense emborcando o cálice.

E o Perneta, com a voz cavernosa, os cotovelos sobre a mesinha de ferro pintada
de amarelo, recitou de um fôlego o Êxtase

Quando às horas silentes da noite,

Doce flauta descanta no ar,

Quando as vagas soluçam baixinho

Sobre a praia que alveja o luar

…………………………………….

Terminou cansado, com um acesso de tosse, cuspindo para o lado.

Sim, senhor! fez João da Mata com um murro na mesa. Isto é
que é ser poeta!

Queriam alguma coisa? veio perguntar o caixeiro, um rapazinho magro, doente,
com olheiras.

Não, menino, disse o amanuense, está acesa a lanterna por ora.
Foi entusiasmo.

Estavam no fundo da bodega, numa saleta escura, sem saída por trás,
com as paredes encardidas, úmida, cheirando a cachaça, onde
os fregueses tomavam bebidas. “Somente os fregueses de certa ordem”,
prevenia o Zé Gato.

Pois é isto, continuou o Perneta. O pobre Barbosa de Freitas acabou
como o grande Luiz de Camões na enxerga d’um hospital, e nisto,
penso eu, está a sua maior glória.

Apoiado!

E o que se vê hoje? Pedantismo somente. Os poetas e hoje usam fraque,
gravata de seda e polainas, escrevem crônicas elegantes, fazem política.
Os Alvares de Azevedo e os Barbosa de Freitas são gênios que
aparecem de século em século, como certos cometas, no céu
da literatura.

Que tal achas o Zuza como poeta? perguntou o amanuense.

Não me fales em semelhante gente. Aquilo é pior do que um cano
de esgoto, homem. Quem chama o Zuza poeta não sabe o que é ser
poeta, nunca leu o nosso Barbosa de Freitas. O Zuza emporcalha papel nada
mais. Aquilo só presta mesmo para capacho do presidente.

A conversa encaminhou-se para a política e João da Mata tomou
a palavra. ¾ Que a política era a desgraça do Ceará;
que estava cansado de trabalhar gratuitamente para a política. O que
queria agora era dinheiro para acabar de levantar uma casinha no Outeiro.

E que tal o presidente? perguntou o Perneta. Acha que fará alguma
coisa em benefício do Ceará?

Homem, como sabes, eu sou governista, porque infelizmente sou funcionário
público, mas entendo que o Sr. Dr. Carlos é um grandíssimo
pândego.

E noutro tom, limpando os óculos:

Nós precisamos é de homens sérios, seu Perneta, nós
queremos gente séria!

Contou então que na seca tinha ganho muito dinheiro à custa
dos cofres públicos; que fora comissário de socorros, e que
os presidentes do Ceará eram uns urubus que vinham beber o sangue ao
emigrante cearense.

Tinha assistido a muita ladroeira na seca de 77.

Aqui p’ra nós, acrescentou cauteloso, abaixando a voz, o atual
presidente não é justiça lhe seja ¾ um homem sem
juízo, um idiota, um leigo, mas, a continuar como vai, forçando
a emigração para o sul, dentro em pouco transforma esta terra
numa espécie de feitoria de S. Paulo. É embarcar muita gente
para o sul, seu compadre! Já lá foram quatorze mil e tantos!
Isso é despovoar p Ceará, isto é fazer pouco caso do
Ceará, c’os diabos!

É bem feito! disse o Perneta, é muito bem feito para não
sermos bestas. Isto é uma terra em que os estranhos fazem o que querem
e ninguém protesta, ninguém reage. Nós só sabemos
ser maus para os nossos patrícios.

Mas olha que o Cearense tem comido o couro ao homem…

Qual comido o couro! O povo é que devia dar uma lição
de mestre ao governo, a este governo sem patriotismo e sem critério!
E com esta me vou, que isso de política fede… Queres mais alguma
coisa?

Olha que demos cabo d’uma garrafa! Nem mais uma gota. Que horas tens?

O outro puxou um relógio de plaquê desbotado, dentro d’uma
capa de camurça, e, erguendo-se:

Quatro menos cinco minutos. Safa! O tempo voa! O Zé, bota na conta
isto: uma garrafa de branca.

Já cá está, acudiu o Zé Gato, muito sujo, com
um dedo amarrado num pano preto, o lápis detrás da orelha ,
arrastando os chinelos.

… Na conta do Perneta, explicou João da Mata

E saíram pisando em falso, por entre fardos de carne seca e caixas
de cebola.

Ó João, perguntou na rua o aleijado, a menina casa sempre com
o tipo?

Quem, a Maria?

Sim.

Casa, mas há-de-ser com o diabo! Sujeitos daquela ordem não
me entram em casa…

Mas olha que é um casamentão!

Nem que ele viesse coberto de ouro num palanque de diamante. Ela só
há-de casar com quem o padrinho quiser. E adeusinho, menino, adeusinho.

Separaram-se.

Passava um enterro caminho do cemitério. Quatro gatos-pingados, de
preto, conduziam o caixão cujos galões cor de fogo luziam ao
sol. Pouca gente acompanhando: uns dez homens cabisbaixos, taciturnos, de
chapéu na mão, marchavam a passo e passo. Na frente caminhava
um padre, de estola e sobrepeliz, olhando para os lados, indiferente, mais
um menino de cor de batina encarnada carregando a cruz.

O sino da Sé dobrava a finados melancolicamente. Gente chegava às
janelas para ver passar o préstito.

De quem é? Quem morreu? perguntava-se com mistério.

A terra lhe seja leve, fez o Zé Gato, abando a cabeça com um
ar triste.

João da Mata parou à beira da calçada afagando a pêra
com os dedos magros e compridos, nervoso Quem morreria? pensava ¾ E,
assim que o préstito passou, foi andando devagar, cabeça baixa,
equilibrando-se.

No outro lado da rua, o Romão, o negro Romão que fazia a limpeza
da cidade, passava muito bêbado fazendo curvas, de calças arregaçadas
até os joelhos, peito à mostra, com um desprezo quase sublime
por tudo e por todos, gritando numa voz forte e aguardentada:

Arre corno!… Um garoto atirou-lhe uma pedra.

Mas o negro, pendido p’ra frente, ziguezagueando, tropeçando,
encostando-se às paredes, torto, baixo, o cabelo carapinha sujo de
poeira, pardacento, repetia insistentemente, alto e bom som, o estribilho
que todo o Ceará estava acostumado a ouvir-lhe Arre corno! e que repercutia
como uma verdade na tristeza calma da rua.

Capítulo V

Um tédio invencível, um desânimo infinito, foi-se apoderando
de Maria do Carmo a ponto de lhe alterar os hábitos e as feições.
Começou a emagrecer, a definhar, enfadando-se por dá cá
aquela palha, maldizendo-se. Tudo a contrariava agora, tinha momentos de completo
abandono de si mesma, o mais leve transtorno nos seus planos fazia-lhe vontade
de chorar, de recolher-se ao seu quarto e desabafar consigo mesma, sem que
ninguém visse, num choro silencioso. Estava-se tornando insociável
como uma freira, tímida e nervosa como uma histérica. Ia à
Escola para não contrarias os padrinhos, para evitar desconfianças,
mas o seu desejo, o seu único desejo ser viver só, completamente
só, numa espécie de deserto, longe de todo o ruído, longe
d’aquela gente e d’aquela casa, num lugar onde ela pudesse ver
o Zuza todos os dias e dizer-lhe tudo que quisesse, tudo o que lhe viesse
à cabeça. O ruído que se levantou em torno de seu nome
incomodava-a horrivelmente, como zumbir d’uma vespa enorme que a perseguisse
constantemente. Que inferno! Todo o mundo metia-se com sua vida, como se fosse
uma grande coisa ela casar com o Zuza! Era melhor que fossem plantar batatas
e não estivessem encafifando-a . Havia de casar com Zuza, porque queria,
não era da conta de ninguém, seu coração era livre
como as andorinhas. Oh!…

Mas, menina, quem diz o contrário? perguntava a Campelinho. Eu sempre
te aconselhei que o melhor partido era aceitar o amor do estudante.

Não era a Lídia, eram as outras, as invejosas, as brutas, que
nem sequer sabiam conjugar um verbo. estava cansada de ouvir pilhérias
e risinhos tolos, mas à primeira que lhe dissesse tanto assim (e indicava
o tamanho da unha), à primeira que abusasse da sua paciência,
ela, Maria, saberia responder na ponta da língua . Umas namoradeiras
que punham-se a dar escândalos com os estudantes do Liceu, umas sem-vergonhas!
Havia de mostrar!

Ela é que era uma tola, dizia a Lídia; as normalistas falavam
de invejosas, mandasse plantar favas. Cada qual namora com quem quer, e, demais,
não era nenhuma admiração a Maria casar com o Zuza. Por
quê? Porque ele era rico e ela era pobre?

Muito obrigada! Napoleão! tinha-se casado com uma simples camponesa,
e mais era um imperador!

E Maria do Carmo passava noites sem dormir, a pensar no futuro bacharel,
retratando-o na imaginação, amando-o de longe. Havia já
seis dias que ele seguira com o presidente, num domingo.

Que custo, que viagem sem fim! Aquela demora impacientava-a. Já era
tempo de terem voltado…

Todos os dias, à noitinha, ia esperar a Província na janela,
a ver se encontrava alguma notícia dos excursionistas.

Mas nada!

No domingo seguinte, porém, a folha oficial noticiou que “os
ilustres touristes” deviam regressar à capital no dia imediato.

Oito dias! Tê-la-ia esquecido? Oito dias na serra, tomando banhos de
cachoeira, passeando a cavalo, caçando, divertindo-se ¾ que
excelente vida! Maria do Carmo sentiu uma alegria deliciosa ao saber que d’aí
a vinte quatro horas o Zuza estaria de volta, mais amável talvez, mais
nutrido, mais gordo e mais bonito, contando-lhe as minudências da viagem.
Agora, sim, conversaria com ele, perguntar-lhe-ia se gostara da serra, se
tencionava partir logo para o Recife, se pretendia casar no Ceará…

Nessa noite fez-se muito boa para o padrinho, chamou-o “padrinhozinho”,
acariciou-lhe os bigodes, sem dar a entender o seu grande contentamento, a
sua grande felicidade. Durante o víspora esteve perto dele, acompanhando-lhe
o jogo, lembrando quando ele esquecia marcar um número, dando-lhe cafunés
no alto da cabeça, com uma solicitude ingênua.

Quando os habitués do víspora retiraram-se, João da
Mata chamou a afilhada à alcova, e, muito em segredo, como se fossem
velhos namorados, pediu-lhe um beijo na “boquinha”. Maria ofereceu-lhe
os lábios com uma passividade de escrava, sem a menor resistência,
pondo-se nos bicos dos pés, porque João era muito alto, e deixou
que ele sugasse-os em dois tempos, às pressas, antes que viesse D.
Terezinha.

Grande foi a admiração e a luxúria do amanuense. Maria
entregara-se sem um grito, sem um esforço! E suspendendo-a pela cintura,
num ímpeto de carnalidade indomável, apertou-a contra si, com
força, rilhando os dentes, nervoso, bambas as pernas, o coração
aos pulos; mas soltou-a logo. D. Terezinha ali vinha pelo corredor, arrastando
os velhos sapatos achinelados. João pôs-se a assobiar de mãos
para trás.

Estavam jogando o sério? perguntou a mulher.

Não. Porque?

Tão calados!…

Queria tu que estivéssemos a gritar como doidos? fez o amanuense ainda
trêmulo da comoção, enquanto Maria, sem dizer palavra,
disfarçava na janela, olhando o céu.

D. Terezinha começara a desconfiar das intenções de
João da Mata. Via-o agora muito babado pela Maria, convidando-a sempre
para junto de si, perseguindo-a mesmo e notava que a rapariga ultimamente
já não era a mesma para ele, evitava-o, fugia de sua presença,
esquivava-se como uma gatinha corrida pelo macho.

Um dia, vendo-a triste a uma canto, perguntou-lhe o que tinha. Maria conservou-se
calada e séria, sem erguer a cabeça. D. Terezinha quis atribuir
aquele estado à ausência do Zuza, mas notou que havia no olhar
da afilhada um como ressentimento novo, de momento. Nesse dia, justamente,
João esbravejara muito contra a rapariga, ameaçando-a espancar
se ela ousasse “pensar” no estudante. Desde então começaram
as suspeitas de D. Terezinha que conhecia certas tendências instintivas
de João. De certo alguma coisa se passava ente eles. Esses sobressaltos,
essas arrelias… Entretanto, deixava as coisas no mesmo pé, sem dizer
nada. Talvez fosse desconfiança.

E o mais curioso é que o João agora tinha rusgas consecutivas
com a mulher, sem motivo, por ninharia, ao voltar da Repartição
ou pela manhã antes de ir.

Um belo dia rompeu deveras. João sentiu logo o sangue subir-lhe à
cabeça, e, numa excitação violentíssima, num daqueles
ímpetos de raiva que lhe eram tão comuns devido à sua
natureza irascível, ao seu temperamento bilioso, desandou furioso contra
D. Terezinha, arremetendo com a mão fechada, fulo de cólera.
Naquela casa quem mandava era ele, ficasse sabendo! Não aturava desaforos
de mulher alguma, quanto mais dela que não tinha nada com sua vida!

E fique você sabendo, acrescentou com sua vozinha estridente, dando
murros na mesa. Fique você sabendo que uma mulher amigada é como
se fosse uma fêmea qualquer, ouviu? Se duvidar, ponho-lhe no olho da
rua!

Palavras não era ditas. D. Terezinha saltou como uma fera congestionada,
os olhos acesos d’um fulgor fosforescente, desesperada, possessa, os
braços em arco e as mãos nas ilhargas:

Você o que quer é abusar da menina e plantar-lhe um filho no
buxo, seu grandis…

Não acabou a palavra, porque o amanuense, ferido no seu amor próprio,
na sua autoridade de chefe da casa, cego, tresvariado, encheu-lhe a boca com
uma formidável bofetada que fê-la rodar.

Maria ficou perplexa, cosida à janela, muito trêmula, sem saber
o que fizesse, muda, como petrificada. Nos seus magníficos olhos cor
de azeitona perpassou a sombra d’uma desgraça. O padrinho tinha
enlouquecido, pensou. E um pavor infantil tomou-a toda.

Mal acordada dos efeitos da agressão, titubeante, manquejando com
a mão no queixo, D. Terezinha foi estender-se lá dentro na alcova,
soluçando tão alto que se ouvia fora , na rua.

Defronte, em casa da viúva Campelo, estava formada a panelinha do
costume o Loureiro, a viúva e a afilhada.

Eram quase nove horas da noite.

A Lídia com um pulo veio saber, muito curiosa, o que sucedera, tinha
ouvido choro… Se precisassem de alguma cosa…

Mas o amanuense tranqüilizou-a: que não era nada, coisas de mulher,
coisas de mulher…

A Campelinho compreendeu que se tratava de assuntos íntimos e rodou
nos calcanhares. Não era nada, era o doido do amanuense que andava
aos pontapés.

Gente canalha! fez o guarda-livros inalterável. Que educação,
que fina educação, recebia-se naquela casa!

Logo no dia seguinte à chegada do Zuza uma segunda feira luminosa
de Outubro, muito azul no alto, com irradiações no granito das
calçadas e uma aragem insensível quase a arrepiar a fronde espessa
dos arvoredos da praça do Patrocínio Maria do Carmo foi recebida
na Escola Normal com um chuveiro imprevisto de parabéns ¾ que
as normalistas lhe davam à guisa de presentes de ano. Parabéns!
Parabéns! repetiam arrastando os pés para trás, abrindo
alas, como se cortejassem uma princesa. ¾Tinham combinado saudá-la
pela chegada do Zuza com esse espírito irrequieto de colegial despeitado
que se apraz em chacotear outro, e talvez com uma ponta de inveja a mordicá-las
por dentro.

A praça permanecia numa inquietação abençoada,
com seus renques de mungubeiras muito sombrias, verde-escuras e eternamente
frescas, a desafiar, frente a frente, a pujança outonal dos cajueiros
em flor que os liceistas castigavam a pedradas.

Meninos apregoavam numa voz clara e vibrante:

Loteria do Pará, 30 contos!

O edifício da Escola Normal, a um canto do quadrilátero, pintadinho
de fresco, cinzento, com as janelas abertas à claridade forte do dia,
tinha o aspecto alegre d’uma casa de noivos acabada de criar-se.

Maria estava radiante! Que extraordinária alegria infiltrava-se-lhe
na alma, que excelente disposição moral! Acordara mais cedo
que nos outros dias, como se tivesse de ir a alguma festa matinal, a algum
passeio no campo, espanejando-se toda numa delícia incomensurável,
feliz como uma ave que solta o primeiro vôo. Mas ao entrar na Escola
desapontou deveras. Seriam onze horas. O diretor ainda não havia chegado.
Raparigas de todos os tamanhos, trajando branco, azul e rosa conversavam animadas
de livro na mão, formando grupos, no vestíbulo que separava
a sala de música do gabinete de ciências naturais, no pavimento
superior.

Maria entrou vivamente alegre, de braço com a Lídia, dando
¾ bom dia! às colegas, uma bonita orquídea no peito,
toda de branco, apertada por uma cinta. Mas a sua delicada susceptibilidade
estremeceu ante a insólita manifestação que se lhe fazia,
e uns tons de rosa desmaiados, um ligeiro rubor ¾ coloriram-lhe o moreno
claro das faces. “Aceitava os parabéns, como não? Muito
obrigada, muitíssimo obrigada! Queriam debicá-la? Corujas! Fossem
debicar a avó!”

Uma gargalhada irrompeu do grupo indiscreto, clamorosa e prolongada.

Meninas! fez a Lídia. Isso são modos!

Olha a baronesa!

Como ela está grande!

Sua incelência…

Maria a custo pôde abafar a raiva que lhe sacudia os nervos. Sentou-se
à varanda que dizia para uns terrenos devolutos do lado de Benfica,
mordiscando a pelo dos beiços, trombuda, cara fechada, a olhar o arvoredo
com um ar afetado de absoluta indiferença.

Continuava o ruído. Havia um jogo contínuo de ditinhos picantes
acompanhado de risadinhas sublinhadas. Uma queria um botão de flor
de laranjeira, da grinalda, outra desejava apenas um copito de aluá,
ess’outra contentava-se com um beijo na “noiva”, aquela
queria ser madrinho do “primeiro filho”…

Começaram a atirar-lhe bolinhas de papel.

Maria marcava o compasso com o pé, furiosa, sem ver nada diante dos
olhos.

Já basta! disse a Lídia abrindo os braços para afastar
as outras. Tudo tem limite. Vocês estão se excedendo…

Umas ignorantes! saltou Maria acordando. Umas idiotas que querem levar a
gente a ridículo por uma coisa atoa. Ainda hei de mostrar!…

O diretor, o diretor! veio avisar a Jacintinha, uma feiosa, d’olho
vazado, com sinais de bexiga no rosto, e que estava acabando de decorar alto
a lição de geografia.

Foi como se tivesse dito para um bando de crianças traquinas: ¾
Aí vem o tutu!

Houve uma debandada: umas embarafustaram pela sala de música, outras
pela de ciências, outras, finalmente, deixaram-se ficar em pé,
lendo a meia voz muito sérias. Fez-se um silêncio respeitoso,
e daí a pouco surgiu no alto da escada a figura antipática do
diretor, um sujeito baixo, espadaúdo, cara larga e cheia com uma pronunciada
cavidade na caixa do queixo, venta excessivamente grande e chata dilatando
a um sestro especial, cabelo grisalho descendo pelas têmporas em costeletas
compactas e brancas, olhos miúdos e vivos, testa inteligente…

Maria respirou com alívio.

Mas assim que o diretor deu as costas, entrando para o seu gabinete, recomeçou
o zumzum de vozes, a princípio baixinho, depois num crescendo.

O sol obrigou-a a fechar o livro. Ergueu-se e foi para a aula, carrancuda,
extremamente bela com o seu vestidinho de cassa, apertado na cinta delgada.

Ao meio dia, pontualmente, chegou o professor de geografia, o Berredo, um
homenzarrão alto, grosso e trigueiro, barba espessa e rente, quase
cobrindo o rosto, olhos pequenos e concupiscentes. Cumprimentou o diretor,
muito afetuoso, limpando o suor da testa. E consultando o relógio:

Meio dia! São horas e dar o meu recado. Com licença.

Contavam-se na sala d’aula pouco mais de umas dez alunas, quase todas
de livro aberto sobre as carteiras, silenciosas agora, à espera do
professor. Maria ocupava um dos bancos da primeira fila.

Ao entrar o Berredo, houve um arrastar de pés, todas simularam levantar-se,
e o ilustre preceptor sentou-se, na forma do louvável costume, passeando
o olhar na sala, vagarosamente, com bonomia paternal tal um pastor d’ovelhas
a velar o casto rebanho.

A sala era bastante larga para comportar outras tantas discípulas,
com janelas para a rua e para os terrenos devolutos, muito ventilada. Era
ali que funcionavam as aulas de ciência físicas e naturais, em
horas diferentes das de geografia. Não se via um só mapa, uma
só carta geográfica na paredes, onde punham sombras escuras
peles de animais selvagens colocadas por cima de vidraças que guardavam,
intactos aparelhos de química e física, redomas de vidro bojudas
e reluzentes, velhas máquinas pneumáticas nunca servidas, pilhas

elétricas de Bunsen, incompletas, sem o amálgamas de zinco,
os condutores pendentes num abandono glacial; coleções de minerais,
numerados em caixinhas, no fundo da sala, em prateleiras volantes… Nenhum
indício, porém, de esfera terrestre.

O professor pediu um compêndio que folheou de relance. Qual era a lição?
A Oceania? Pois bem…

Diga-me, senhora Da. Maria do Carmo: A Oceania é ilha ou continente?

Maria fechou depressa o compêndio que estivera lendo, muito embaraçada,
e, fitando o mestre, batendo com os dedos na carteira, com um risinho:

Somente uma parte da Oceania pode ser considerada um continente.

Perfeitamente bem!

E perguntou, radiante, como se chama essa parte da Oceania que pode ser considerada
continente; explicou demoradamente e categoricamente a natureza das ilhas
australianas, elogiando as belas paisagens claras da Nova Zelândia,
a sua vegetação opulenta, as riquezas do seu solo, o seu clima,
a sua fauna, com entusiasmo de touriste, animando-se pouco e pouco, dando
pulinhos intermitentes na cadeira de braços que gemia ao peso de seu
corpo.

Maria, muito séria, sem mover-se, ouvia com atenção,
o olhar fixo nos olhos do Berredo, bebendo-lhe as palavras, admirando-o, adorando-o
quase como se visse nele um doutor em ciências, um sábio consumado,
um grande espírito. Decididamente era um talento, o Berredo! Gostava
imenso de o ouvir falar, achava-o eloqüente, claro, explícito,
capaz de prender um auditório ilustrado. Era a sua aula predileta,
a de geografia, o Berredo tornava-a mais interessante ainda. Os outros, o
professor de francês e o de ciências, nem por isso; davam sua
lição como papagaios, e adeus, até amanhã. O Berredo,
não senhores, tinha um excelente método de ensino, sabia atrair
a atenção das alunas com descrições pitorescas
e pilhérias encaixadas a jeito no fio do discurso.

“Muitas ilhas da Oceania, dizia ele, coçando a barba, são
habitadas por selvagens antropófagos, como os da América antes
de sua descoberta…”

“Imaginem as senhoras, que horror! Homens devorando-se uns aos outros,
comendo-se com a mesma satisfação, com a mesma voracidade, com
o mesmo canibalismo com que nós outros, civilizados, trinchamos um
beef-steak ao almoço…”

Houve um casquinada de risos à surdina.

Agora se o Zuza te come, disse baixinho, por trás de Maria do Carmo,
uma moçoila de pincenez. Toma cuidado, menina, o bicho tem cara de
antropófago…

“E note-se, continuou o Berredo, as próprias mulheres não
escapam à fúria das tribos inimigas: devoram-se também…”

Virgem! fez Maria com espanto…

“As senhoras com certeza preferem viver n o Ceará a habitar
a Papuásia…”

Credo! fizeram muitas a uma voz.

E no Brasil há desses selvagens? perguntou estouvadamente uma loura
que se escondia na última fila, estirando o pescoço.

O pedagogo sorriu, passando a mão cabeluda na barba; e muito delicado,
num tom benévolo:

“Atualmente existem poucos… Restos de tribos extintas…”

E continuou a falar com a loquacidade de um sacerdote a pregar a moral, explicando
a vida e costumes dos selvagens da Nova Zelândia, citando Júlio
Verne, cujas obras recomendava às normalistas com um “precioso
tesouro de conhecimentos úteis e agradáveis”. Lessem Júlio
Verne nas horas d’ócio; era sempre melhor do que perder tempo
com leituras sem proveito, muitas vezes impróprias de uma moça
de família…

Vá esperando…. murmurou a Lídia.

“Eu estou certo, dizia o Berredo, convicto, de que as senhoras não
lêem livro obscenos, mas refiro-me a esses romances sentimentais que
as moças geralmente gostam de ler, umas historiazinhas fúteis
de amores galantes, que não significam absolutamente coisa alguma e
só servem de transtornar o espírito às incautas… Aposto
em como quase todas as senhoras conhecem a Dama das camélias, a Lucíola…”

Quase todas conheciam.

“….Entretanto, rigorosamente, são péssimos exemplos…”

Tomou um gole d’água, e continuando:

“Nada! As moças deviam ler somente o grande Júlio Verne,
o propagandista das ciências. Comprem a Viagem ao Centro da Terra, Os
filhos do Capitão Grant e tantos outros romances úteis, e encontrarão
neles alta soma de ensinamentos valiosos, de conhecimentos práticos…”

O contínuo veio anunciar que estava terminada a hora.

Dias depois o Berredo lecionava, como de costume, a seu bel-prazer, derreado
na larga cadeira de espaldar, quando o contínuo, fazendo uma mesura,
anunciou: “S. Excia. o Sr. Presidente da Província”, e
imediatamente assomou à porta da sala o ilustre personagem, mostrando
a esplendida dentadura num sorriso fidalgo, com o peito da camisa deslumbrante
de alvura, colarinhos muito altos e tesos, gravatas de seda cor de creme,
onde reluzia uma ferradura de ouro polido, bigodes torcidos imperiosamente:
um belíssimo tipo de sulista aristocrata. Estava um pouco queimado
da viagem a Baturité.

O Berredo desceu logo do estrado
a cumprimentá-lo com o seu característico aprumo d’homem
que viajara a Europa. Todas as alunas ergueram-se.

Como passa V. Excia, bem? Estava agora mesmo…

O presidente pediu que não se incomodasse, que continuasse. Acompanhavam-no,
como sempre, o José Pereira e o Zuza.

Maria, ao dar com os olhos do estudante, ficou branca, um calafrio gelou-lhe
a espinha, baixou a cabeça. fria, fria, como se tivesse diante de um
juiz inflexível.

S. Excia. tomou assento entre o professor e o diretor. José Pereira
e o Zuza sentaram-se nas extremidades da mesa.

As alunas tinham-se formalizado, muito respeitosas, imóveis quase,
de livro aberto, com medo à chamada. Houve um silêncio.

Pode continuar, disse o presidente para o Berredo. E este, inalterável:

V. Excia. não deseja argumentar?

Não, não. Obrigado…

Neste caso…

E para s discípulas:

Diga-me a Sra. D. Sofia de Oliveira, quantos são os pólos da
Terra? Veja como responde, é uma pequena recapitulaç&atiatilde;o.
Não se acanhe. Quantos são os pólos da Terra?

O Berredo lembrou-se de fazer uma ligeira recapitulação para
dar idéia do adiantamento de suas alunas.

Sofia de Oliveira era uma pequerrucha de olhos acesos, morena, verdadeiro
tipo de cearense: queixo fino, em angulo reto, fronte estreita, olhos negros
e inteligentes.

Quantos são os pólos da Terra? fez ela olhando para o teto
como procurando a resposta, embatucada. Os pólos?… Os pólos
são quatro.

Risos

Quatro? Pelo amor de Deus! Tenha a bondade de nomeá-los

Norte, sul, leste, oeste.

Nova hilaridade

Está acanhada, desculpou o Berredo voltando-se para o presidente.
Até é uma das minhas melhores alunas. Não confunda, tornou
para a normalista. Olhe que são pólos e não pontos cardeais…

Outro disparate:

Há uma infinidade de pólos…

Ora! Adiante… D. Maria do Carmo.

Maria estremeceu, embatucando também, sem dizer palavra, sufocada.
A presença do Zuza anestesiava-a, incomodava-lhe atrozmente. Sob a
pressão do olhar magnético do estudante, que a fixava, sua fisionomia
transformou-se.

Então, D. Maria?… Também está acanhada?

Passe adiante, pediu o Zuza, compadecido.

Duas lágrimas rorejaram nas faces da normalista ciando com um sonzinho
seco sobre a carteira. Estava numa das suas crises nervosas. Outras duas lágrimas
acompanharam a primeira, vieram outras, outras, e Maria, cobrindo o rosto
com seu lencinho de rendas, desatou a chorar escandalosamente.

Sente-se incomodada? tornou o Berredo. D. Maria! Olhe… Tenha a bondade
de levantar a cabeça…

Está nervosa, disse o presidente com o seu belo ar de céptico
elegante.

Pudores de donzela, murmurou o diretor. Isso acontece.

O Berredo passou a mão no bigode, desapontado, e encontrando o olhar
faiscante de Lídia: A senhora… Quantos são os pólos
da Terra?

Dois: o pólo norte e o pólo sul.

Perfeitamente! confirmou o professor batendo com o pé no estrado e
esfregando as mãos satisfeito. Dois, minhas senhoras, disse mostrando
os dois dedos abertos em ângulo; dois! O pólo norte, que é
o extremo norte da linha imaginária que passa pelo centro da Terra,
e o pólo sul, isto é, a outra extremidade diametralmente oposta;
eis aqui está! Está ouvindo, D. Sofia? Está ouvindo D.
Maria do Carmo? São os dois pólos da Terra!

Estou satisfeito, disse o presidente, erguendo-se.

Arrastar de cadeiras e pés, zunzum de vozes, e S. Excia., grave, correto
e calmo, retirou-se com o seu estado-maior.

O Zuza ferrou em Maria do Carmo um olhar tão demorado e comovido que
chegava a meter pena. Os seus óculos de ouro, muito límpido
e translúcidos, tinham um brilho de cristal puro. Trazia na botoeira
do redingote claro (o Zuza gostava de roupas claras) uma flor microscópica.

Alguém murmurou ao vê-lo passar:

Sempre correto!

Maria deixou-se ficar sucumbida, de cabeça baixa, mordiscando a ponta
do lenço, com uma lágrima retardada a tremeluzir-lhe na asa
do nariz, desesperada, revoltada contra si mesma, que não soubera responder
uma coisa tão simples… que vergonha, que humilhação!
pensava.

Não saber quantos pólos tem a Terra! E quem havia de responder?
A Lídia, logo a Lídia! O Zuza agora ficava fazendo um juízo
muito triste a seu respeito e não a procuraria mais… Ah! era muito
tola decididamente! E jurava consigo “não ter mais vergonha de
homem algum”.

Pediu licença ao professor e retirou-se antes de findar a aula para
evitar os gracejos das colegas, voltando à casa sem Lídia, sozinha,
acaçapada, inconsolável.

Uma vez no seu discreto quartinho, bateu a porta com força, despindo-se
às carreiras, desabotoando os colchetes com espalhafato, aos empuxões,
impaciente, até ficar em camisa, e atirou-se à rede soltando
um grande suspiro. Esteve muito tempo a pensar no acadêmico, na “figura
triste” que fizera na aula, em mil outras coisas por associação
de idéias, com o olhar, sem ver, numa velha oleografia do “Cristo
abrindo os braços e mostrando o coração à humanidade”,
que estava na parede.

Era uma desgraçada, suspirava tomada de desânimo. Todas tinham
seus namorados, viviam felizes, com o futuro mais ou menos garantido, amando,
gozando; todas tinham seu dia de felicidade, e ela?

Era como uma gata borralheira, sem pai nem mãe, obrigada a suportar
os desaforos d’um padrinho muito grosseiro que até a proibia
de casar. Nem amigas tinha. A Lídia essa parecia-lhe uma desleal, fingida,
hipócrita; não viram como ela tinha dado o quinau na aula? Uma
ingrata… Sim, está visto que havia de ter um fim muito triste…

O verdadeiro era fugir com o primeiro sujeito que lhe aparecesse, fugir para
fora do Ceará, ir de uma vez… Estava cansada de viver naquela casa…

E revoltava-se contra os padrinhos, contra a sociedade, contra Deus, contra
tudo, num desespero febril, ansiando-se por uma vida feliz, independente,
livre de cuidados ao lado de um homem que a soubesse compreender, que lhe
fizesse todas as vontades.

Por seu gosto não iria mais à Escola Normal para coisíssima
alguma. Estava muito bem educada, não precisava de aprender em colégio,
já não era criança.

Acudiram-lhe reflexões absurdas, idéias extravagantes, pensamentos
de colegial estouvada, inquieta na rede, virando-se revirando-se, ora fitando
com olhar piedoso a imagem de Cristo, ora mergulhando a vista numa telha de
vidro, espécie de clarabóia, que havia no telhado, e através
da qual brilhava um pedaço do céu sem nuvens.

Começou a sentir uma ponta de enxaqueca e caiu numa madorna, deitada
de costas, os braços cruzados sobre a cabeça, traindo a penugem
rala das axilas, respirando levemente, como uma criança. A camisa fina,
quase transparente, arregaçada por descuido até a parte superior
da coxa esquerda, mostrava toda a perna roliça, morena, cheia, sem
depressão, arqueando-se no joelho…

VI

O primeiro cuidado de Zuza ao regressar da excursão presidencial a
Baturité foi ajustar contas com o redator da Matraca, ameaçando
urbi et orbi fazê-lo engolir o número do pasquim que trazia versalhada
torpe sobre o namoro do Trilho de Ferro.

No Ceará não havia outro homem que usasse flor na lapela, dizia;
o estudante, filho de titular, que andava a cavalo mais o presidente da província,
era ele, Zuza. Estava claro, claríssimo, que a diatribe, o insulto,
a infâmia, referia-se à sua pessoa, e o único meio, simples,
fácil e positivo, de se ensinar um patife é dar-lhe de rebenque
na cara. Conclusão: o redator da Matraca não só ia engolir
o papelucho, mas também apanhar de rebenque no focinho, custasse o
que custasse.

Grandíssimo canalha!

– Mas no Ceará não se faz reparo nessas coisas, meu Zuza. O
insulto nesta terra é um divertimento como qualquer outro, como o entrudo,
por exemplo. Cada cidadão aqui é uma verdadeira Matraca, Não
te importes, não te dês cuidado…

Isto dizia-lhe o José Pereira na redação da Província,
mas o Zuza recalcitrava:

– Eu?! Hei de tomar um desforço, custe o que custar. Se é costume
desta terra os indivíduos se insultarem mutuamente, com a mesma facilidade
com que tomam uma xícara de café, pílulas! é preciso
dar ensino, é preciso que alguém se levante!

– É bobagem, filho. Toda a gente toma a defesa do réu e aí
fica a vítima do insulto com cara de besta. É o que é.
Lá diz o rifão: quem não quer ser lobo…

Esse José Pereira, fisicamente, dir-se-ia irmão gêmeo
do Berredo da Escola Normal. Alto, cheio de corpo, trigueiro, a mesma barba
espessa negra cobrindo quase todo o rosto, os mesmíssimos olhinhos
vivos e concupiscentes. Dele é que se dizia que fora surpreendido em
flagrante adultério com a mulher do juiz municipal no Passeio Público,
um escândalo que por muitos dias serviu de pastos a boticários
e bodegueiros.

Começara vida pública no Correio, como carteiro, e agora aí
estava feito redator da Província, em cujo caráter tornou-se
geralmente admirado por seus folhetins alambicados, que o público digeria
à guisa de pastilhas de Detan. Aos sábados publicava no rodapé
do jornal fantasias literárias, contos femininos em estilo 1830, histórias
dissolutas que eram lidas com avidez, mesmo com certa gula pelo mulherio elegante
e pela burguesia sentimental e piegas.

Cedo José Pereira começou a inchar como a rã de La Fontaine
e a julgar-se, com efeito, um grande escritor, “um talento”, capaz,
olá! muitíssimo capaz de fazer as delícias de qualquer
sociedade inteligente e ilustrada. Daí certo ar autoritário,
certa prosápia que ele afetava em toda a parte, dizendo-se “contemporâneo
de Rocha Lima”, “amigo de Capistrano de Abreu”; certo aprumo
pedante que não condizia com sua velha sobrecasaca de diagonal cujo
estado incomodava deveras a alta sociedade cearense.

Que diabo! um sujeito inteligente, com ares de fidalgo avarento, redator
de um jornal, sempre trazendo a mesmíssima sobrecasaca! E o chapéu?
Sempre o mesmo também, um triste chapéu de feltro com manchas
oleosas! Oh! a respeitável sociedade cearense exigia primeiro que tudo
decência no trajar, e aquilo assim, aquela sobrecasaca sórdida
escandalizava-a como se escandaliza uma donzela diante d’uma estátua
nua. Pois o Sr. José Pereira não podia, sem grandes sacrifícios,
comprar um fato novo? Então, que diabo! não aparecesse entre
as pessoas de certa ordem, ficasse em casa, fosse mais modesto. Sim, porque
todo homem de talento, na opinião da sociedade cearense, deve acompanhar
a moda em todas as suas nuances, em todos os seus requintes, deve ter sempre
uma casaca à ultima moda, conforme os figurinos, para os “momentos
solenes”; deve ser enfim um sujeito “correto” na acepção
mais lata da palavra.

O Sr. Pereira sabia dar um laço na gravata, lá isto sabia,
e também não ignorava como se calça uma luva; mas (e
isto é que preocupava a sociedade cearense) o Sr. José Pereira,
quer fosse a um baile de primeira ordem, quer fosse a uma festa inaugural,
quer fosse ao teatro, levava sempre, invariavelmente, a mesma sobrecasaca
surrada e o mesmo chapéu ruço! Um homem de talento, sem gosto,
o que não se admite. A sociedade cearense, porém, ignorava que
o Sr. José Pereira era casado, tinha filhos e ganhava apenas o essencial
para o seu sustento e o da família. cento e cinqüenta mil réis
por mês, uma ninharia.

Os seus amigos, às vezes, gracejando, propunham-lhe abrir uma subscrição
para a compra de um paletó novo e de um chapéu idem. José
Pereira, porém, tinha espírito e respondia-lhes ao pé
da letra, mudando logo o rumo da conversa.

Nesse tempo o redator da Província ainda era calouro em política.
Dava o seu voto e nada mais. A literatura é que o absorvia. Um livro
novo era para ele a melhor novidade: caísse embora o ministério,
rebentasse uma revolução, ele conservava-se a ler, virando páginas,
devorando a obra como um alucinado, defronte do abajur de papelão,
no seu modesto gabinete de escritor pobre. Conhecia Dumas pai de cor e salteado;
fora o seu primeiro “mestre”. Depois entregou-se a ler os Miseráveis,
declarando-se hugólatra incondicional em uma apreciação
que fizera do grande poeta. O artigo concluía deste modo:

“Vitor Hugo é o Cristo da legenda transfigurado em profeta moderno.
Ele é todo um século. Tudo nele é grande como a natureza.
Os Miseráveis são a apoteose de todas as misérias humanas.
Vitor Hugo, o Mestre, é o Sol da Humanidade. Amemo-lo como a um Deus!”

Isso produziu efeito entre os literatos contemporâneos, que não
dispensaram elogios ao “valente folhetinista” da Província.

A fama de José Pereira encheu depressa toda a cidade. Dizia-se – “aí
vai o José Pereira!” como quem diz – “aí vai um
gênio!” E ele saudava a todos convictamente, tocando de leve a
aba mole do chapéu preto de massa.

Em fins de 1886 José Pereira conservava-se ainda na Província,
como um dos principais redatores. A sua fama não decrescera, era a
mesma, com uma pequena e insignificante diferença – é que ele
já não era simplesmente um “talento fecundo”, mas
também um fecundíssimo canalha, um requintado “sedutor
de mulheres casadas”, o que afinal de contas não o prejudicava
assaz no conceito do mulherio. Havia as viúvas, casadas e solteiras
que o defendiam tenazmente.

Não, diziam elas, o diabo não é tão feio quanto
o pintam. José Pereira podia ser um rapaz alegre, divertidíssimo,
jovial e espirituoso, amigo das mulheres – vá, mas, em suma, um excelente
rapaz e um belo caráter. Porque o fato d’um homem apaixonar-se
facilmente por muitas mulheres ao mesmo tempo ou em épocas diferentes
não quer significar que esse homem seja um sedutor e um patife. Demais,
José Pereira era artista, e o artistas, escultor ou poeta, pintor ou
músico, não pode compreender a vida sem o amor…

Mas é um homem casado, profligavam as outras.

Bem; mas o casamento…

E demonstrava que o casamento, longe de ser um atentado contra o livre arbítrio
das partes, é, ao contrário, uma instituição que
concede, tanto ao homem como à mulher, plena liberdade de amar ao próximo
como a si mesmo.

Entre as que adotavam a prática destas teorias tão abstrusas
quanto originais, distinguiam-se a mulher de João da Mata e a do Dr.
Mendes.

– Então, decididamente, queres quebrar a cara ao redator da Matraca!
dizia ele ao Zuza.

– Mas que dúvida!

Quem quer que fosse o verrinista havia de ficar sabendo de quantos paus se
faz uma jangada.

– Mas olhas que é uma imprudência pueril, homem. Quando o insulto
vem de baixo a gente deve responder com o desprezo. O desprezo é a
arma invencível dos espíritos superiores. Eu é como tenho
resolvido as questões desta natureza.

– Qual desprezo! Não se mata com desprezo um réptil venenoso;
pisa-se-o, reduz-se-o a papas. Isto é o que fazem os espíritos
superiores. Sabes -quem é o biltre?

– Homem , francamente, confesso-te que não o conheço. Dizem
ser um tal Guedes, vulgo Pombinha, um sujeito reles, um trocatintas, um miserável
que nem vale a pena de um escândalo…

– Não vale a pena? Quebro-lhe a cara, ora se quebro… Onde fica tipografia
do jornaleco?

– Na rua de São Bernardo, creio eu, uma espécie de toca imunda,
com ares de latrina

– Guedes (Pombinha) … rua de São Bernardo. Muito bem!

E o Zuza tomou nota no seu canhenho, guardando-o resolutamente.

– Diabos me levem se eu não faço uma estralada hoje.

Mudando de tom:

– Quero que publiques hoje o meu soneto A volta; deve sair hoje infalivelmente.

– É dedicado à mesma?

– Certamente. Sabes que eu sempre fui muito correto nos meus amores. A pequena
está pelo beicinho. Há de cair como mosca, eu te garanto.

– Um divertimento, hein?

– Não, sou muito capaz de casar. Aquele arzinho ingênuo, aqueles
olhos de madona traduzindo uma alma cheia de sentimentos bons… – tudo nela,
enfim, agrada-me.

– Mas é uma pobretona, filho. Aquilo é para a gente namorar,
encher de beijos e – pernas p’ra que te quero! És muito calouro
ainda nisso de amores. Aproveita a tua mocidade, deixa-te de pieguismo, menino.
A vida é uma comédia, como lá diz o outro…

Então o Zuza, acendendo um cigarro, disse que estava aborrecido de
mulheres que se entregavam facilmente. Em Pernambuco namorara a filha de um
barão e, se não fosse esperto, àquelas horas estaria
talvez às voltas com o minotauro de que fala Balzac. Era uma rapariga
esplêndida, mas tão depravada, tão dissoluta que acabou
fugindo com um jóquei do Prado Pernambucano, um negro!

Quanto às mulheres de vida alegre, detestava-as; tinha gasto muito
dinheiro, precisava casar, mas, casar com uma menina ingênua e pobre,
porque é nas classes pobres que se encontra mais vergonha e menos bandalheira.
Ora, Maria do Carmo parecia-lhe uma criatura simples, sem essa tendência
fatal das mulheres modernas para o adultério, uma menina que até
chorava na aula simplesmente por não ter respondido a uma pergunta
do professor! Uma rapariga assim era um caso esporádico, uma verdadeira
exceção no meio de uma sociedade roída por quanto vício
há no mundo. Ia concluir o curso, e, quando voltasse ao Ceará,
pensaria seriamente no caso. A Maria do Carmo estava mesmo a calhar: pobrezinha,
mas inocente…

– É o que tu pensas, retorquiu o outro. Hoje não há
que fiar em moças, pobres ou ricas. Todas elas sabem mais do que nós
outros. Lêem Zola, estudam anatomia humana e tomam cerveja nos cafés.
Então as tais normalistas, benza-as Deus, são verdadeiras doutoras
de borla e capelo em negócios de namoros. Sei de uma que foi encontrada
pelo professor de história natural a debuxar um grandíssimo
falo com todos os seus petrechos…

– O que, homem?

– É o que estou a dizer-te, por sinal acabou amigando-se com um bodegueiro
de Arronches e lá vive muito bem com o sujeito. Creio até que
já tem filhos.

– Oh! Senhor, então ao que me vai parecendo, está muito adiantada
a nossa pequena sociedade! Exclamou o Zuza muito admirado, cavalgando o pincenez.
Pois olha eu supunha isto aqui uma santidade…

– É que há muito tempo não vinhas ao Ceará. Por
cá também se dão escândalos como em Pernambuco,
e escândalos de pasmar a um sacerdote da moral, como o filho de meu
pai.

O escritório da Província estava quase deserto. Apenas o José
Pereira e o estudante conversavam amigavelmente, sentados um defronte do outro
à mesa dos redatores, fumando, enquanto lá dentro, nos fundos
onde ficavam as oficinas, os tipógrafos compunham atarefados a matéria
do dia.

Seriam duas horas da tarde. A calor abafava.

Um rapazinho raquítico, em mangas de camisa, com manchas de tinta
no rosto e um ar amolentado, veio trazer as provas do expediente do governo.

– Falta matéria? Perguntou José Pereira, encarando-o. “Não
sabia, não senhor, ia ver”. E saiu voltando imediatamente: que
o jornal estava completo.

– Bem, disse o Zuza, levantando-se, vou à casa do Sr. Guedes. Preciso
acabar com isso.

– Mas olha, recomendou o redator, não vás fazer asneiras, hein?

– Não, não. A coisa é simples. Addio.

E retirou-se fazendo piruetas com a bengala no ar.

– É um criançola esse Zuza, murmurou José Pereira molhando
a pena.

Imediatamente entrou o Castrinho, outro colaborador da Província,
também poeta e amigo particular de José Pereira, autor das Flores
Agrestes publicadas há dias e que tinham sido muito bem recebidas pela
crítica indígena. Vinha trazer a resposta ao crítico
do Cearense que o chamara – plagiador de obras alheias.

– Então temos polêmica? Perguntou José Pereira sem levantar
a cabeça, revendo as provas.

– Porque não? Hei de provar à evidência que não
preciso plagiar a ninguém. Aqui está o primeiro artigo. É
de arromba!

O Castrinho sacou do bolso do paletó de alpaca um calhamaço
de tiras de papel gordurosas e sacudindo-as, como quem toma o peso a alguma
cousa:

– Aqui está: hei de rebater uma a uma, sem dó nem piedade,
todas as asserções do meu invejoso contendor.

– Já te falo, disse o outro, continuando o trabalho. Tem paciência
um pouquinho. O diabo das provas…

– Sim, continua; não te quero interromper…

Plagiador, ele, que tinha talento para dar e emprestar a toda a caterva de
versejadores cearenses? Havia de provar o contrário, porque tanto sabia
burilar um soneto como manejar a prosa.

Até estimara a provocação do Cearense, porque desse
modo o público ficaria sabendo quem eram os imitadores, os parasitas
da poesia nacional. Ali estavam o juízo da imprensa fluminense, ali
estava o juízo de toda a imprensa do Brasil, do Amazonas, do Prata,
sobre as Flores Agrestes. Um jornal do Sul – O Cometa – comparara-o até
a Olavo Bilac e a Raimundo Corrêa.

– Inveja, murmurou José Pereira. O verdadeiro talento é sempre
vítima do despeito das mediocridades.

E terminando a revisão:

– Vejamos isto, disse o Castrinho entregando a papelada. Hei-de convencer
ao zoilo do Cearense, por a+b que ele é quem é plagiador, o
invejoso, o ignorante, a besta, e eu o poeta consciencioso e moderno que não
se limita a cantar Elviras e a copiar Lamartine.

José Pereira derreou-se na cadeira de espaldar, um velho traste que
fora da Perseverança e Porvir, “atestado eloqüente de uma
luta de heróis” – como dizia o Zuza – e, depois de acender a
ponta do cigarro, que estava à beira da mesa, devorou com olhar protetor
a série de argumentos mais ou menos esmagadores com que o outro pretendia
aniquilar o articulista da folha adversa. Tinha a epígrafe – As Flores
Agrestes e a Inveja Furiosa, – e concluía nestes termos: “Voltarei
à questão para esmagar com a lógica irrefutável
da verdade o ousado e néscio criticista que me acoimou de plagiador.
O público verá qual de nós tem razão; eu, que
tive o aplauso da quase totalidade da imprensa brasileira, ou o zoilo do Cearense,
que pretendeu obscurecer o meu merecimento”.

– Magnífico! Exclamou José Pereira, levantando-se. Dá
cá um abraço. Homem.

E estreitando o Castrinho contra o peito:

– Tens talento como um bruto, menino. Olha que quem escreveu vale o que escreveu,
caramba! Continua, Castrinho, continua, que ainda hás de vir a ser
um grande poeta. Desta massa é que se fazem os Byron e os Vítor
Hugo… E logo, paternalmente: – Queres jantar comigo?

– Obrigado. Hás de permitir que te agradeça, hein? Adeuzinho.
Não esqueças o artigo.

– Absolutamente não. Amanhã, impreterivelmente, ve-lo-ás
na segunda página, todo inteirinho. Adeus.

Vendedores de jornais esperavam a Província, à porta da redação,
inquietos, turbulentos, a questionar por dá cá aquela palha,
e já se ouvia o barulho do prelo lá dentro imprimindo a folha
governista. Empregados públicos voltavam das repartições
taciturnos, em sobrecasacas sórdidas, mordendo cigarros Lopes Sá,
amarelos, linfáticos, o estômago a dar horas. Pouco movimento
na rua do Major Facundo; um ou outro transeunte macambúzio, de chapéu
de sol, caixeiros que atravessavam a rua ligeiros, em mangas de camisa, e
alguns pobres diabos arrastando-se a pedir esmola.

A cidade permanecia na sua costumada quietação provinciana,
muito cheia de claridade, bocejando preguiçosamente de braços
cruzados, à espera do Progresso. Suava-se por todos os poros e respirava-se
a custo, debaixo d’uma atmosfera equatorial, acabrunhadora. Estalava
à distância, num ritmo cadenciado e monótono, o canto
estridente e metálico d’uma araponga, cujo eco repercutia em
todo o âmbito da pequena capital cearense.

Ao dobrar a rua da Assembléia o Zuza parou, à espera que o
bonde passasse, e esteve considerando um instante. – De que lhe servia ir
onde estava o Guedes e quebrar-lhe as costelas a bengaladas? O rapaz podia
repetir a agressão e aí estava o conflito sério, em que
necessariamente um dos dois havia de sair ferido. Afinal de contas era provocar
um escândalo inútil, vinha a polícia e a vergonha era
dele, Zuza, unicamente dele, um rapaz de posição, amigo do presidente…
Não valia a pena abrir luta com um pasquineiro. O melhor era, como
aconselhara o José Pereira, dar o desprezo ao cão. Se ele, porém,
o abocanhasse outra vez, então, decididamente, quebrava-lhe a cara.

Apelava para a reincidência do foliculário. Província
estúpida! Estava doído por se ver livre de semelhante canalhismo.
E àquilo é que se chamava terra da luz!

Seguiu para casa preocupado com essas idéias, com um nojo do Ceará.

O coronel divertia-se tranqüilamente com a passarada do viveiro, metido
no inseparável gorro de veludo bordado a ouro e retrós. Era
amigo de pássaros e tinha-os magníficos em gaiolas de arame
penduradas na sala de jantar, além do viveiro, também em arame,
em forma de quiosque chinês, com uma bola de vidro no alto, colocado
no quintal, defronte da casinha de banhos.

Uma vidinha estúpida aquela! Pensava o estudante estendendo-se na
rede. Morria-se de tédio e calor. Vieram-lhe saudades do Recife. Oh!
O Recife, o Prado aos domingos, os passeios, os belos piqueniques a Caxangá…
Lembrou-se da sua última conquista amorosa – a Rosita, uma espanhola
com quem estivera seguramente uns seis meses. Um peixão! Morava na
Madalena. Vira-a uma vez no teatrinho da Nova Hamburgo, sozinha num camarote,
muito bem vestida, com um rico leque de plumas, anéis de brilhante,
esplêndida: era argentina.

Que de cerveja e ceiatas e passeios de carros e pagodeiras nos hotéis!
Relembrava a primeira noite que passara com Rosita, por sinal tinha tomado
muita champanhe, tinha feito um figurão. A rapariga compreendeu que
tratava com gente fina e entregou-se. Uma noite deliciosa! Começou
por uma ceia em casa dela, na Madalena, um chalezinho de porta e janela com
varanda, forrado a papel sangue de boi e jardinzinho na frente. A sala de
visitas era um mimo com sua mobília mignon de assento estufado, piano,
quadros do paganismo, bibelots… E a alcova? Um ninho, um perfeito ninho
de amores. Zuzinha – era como ela o tratava, toda ternura cobrindo-o de beijos,
suspendendo-o nos braços como se levantasse uma criança, sentando-o
no colo – ela de pegnoir de fustão com fitinhas azuis, uns olhos matadores
úmidos de sensualidade, e ele à frescata, em mangas de camisa,
sem colarinho – um deboche!

E uma saudade imensa invadia-o, saudade da Rosita, saudade da república,
– uma troça alegre de rapazes endinheirados e limpos, – saudades dos
banhos de mar em Olinda…

Depois veio-lhe à mente a normalista, a cearense do Trilho de Ferro.
Muito bonitinha, é verdade, mas uma tola que não sabia tratar
com rapazes educados. Lá por ser pobre, não; mas parecia-lhe
tão atrasadinha, assim como apalermada, indiferente a tudo. Além
disso um nome de matuta – Maria do Carmo. Ainda se fosse Maria Luiza, mas
Maria do Carmo!…

Começou então a fazer considerações sobre Maria.
Achava-a até parecida com a Franzina, uma rapariga de Pernambuco, também
morena e d’olhos cor de azeitona, baixinha e sem vergonha, “passada”
por todos os estudantes da academia. Mas mesmo muito parecida, agora é
que se lembrava: era a Franzina. Um horror! No Ceará não se
encontravam mulheres públicas de certa ordem. Tudo era uma récua
de meretrizes imundas, carregadas de sífilis até os olhos. Os
rapazes viviam se queixando de moléstias secretas.

Levantou-se em ceroulas, para acender um cigarro, espreguiçando-se.

O quarto era pequeno, mas arranjado com certo decoro e bom gosto. O Zuza
herdara essa qualidade característica dos Souza Nunes – o amor à
ordem. Tudo dele era arrumado e limpo. Adorava a boêmia, mas a boêmia
que não cospe no assoalho e que toma banho ao menos uma vez por dia.
Nisto de assei, como em muitas outras coisas, era correto e o pai o louvava
por essa qualidade especial de se portar com a máxima inteireza, no
asseio do corpo, como no das ações. Toda a mobília do
pequeno compartimento consistia numa estante envidraçada, cadeiras,
um sofá e uma mesinha redonda, colocada no centro e coberta com um
pano azul, de lã. Comunicava com outro quarto menor onde estava a cama
de ferro e uma rede. Ma cabine à coucher, dizia o Zuza mostrando aos
amigos esse interior confortável de boêmio rico. A claridade
entrava pela varanda e ia morrerem penumbra lá dentro no segundo quarto.
No papel claro das paredes destacavam-se litografias encaxilhadas de poetas
célebres e o retrato de Gambetta, na postura habitual em que o grande
orador falava ao povo. Em política era o seu ídolo, dizia o
estudante, e, no auge do entusiasmo, colocava-o acima de Mirabeau. Em cima
da mesa números avulsos da Revista Jurídica confundindo-se com
jornais ilustrados, e um porta-retratos com as fotografias do coronel e da
esposa, olhando para os lados, em sentidos opostos. Tal o “gabinete”
do Zuza, o seu remanso de estudante cuidadoso.

Tinha aberto ao acaso seu romance querido – A Casa de Pensão. Um livro
importante, gabava; um livro que revelava o grau de adiantamento da literatura
brasileira, não deixando a desejar os melhores dos escritores naturalistas
portugueses. Este exagero do Zuza deve se levar a conta do ódio injusto
que ele votava a tudo quanto cheirasse a lusitanismo.

O estudante, porém, nunca passara a vista sequer num romance de Eça
ou numa crítica de Ramalho. – “Não queria, não
podia tragar coisas que lhe provocassem vômitos”. Preferia um
churrasco à baiana ao “tal” Sr. Camilo Castelo Branco,
um sujeito inimigo do Brasil, que não pedia a ocasião de nos
ridicularizar. De Portugal, Camões exclusivamente, isso mesmo porque
o grande épico era uma “glória universal”. Certas
palavras tinham um encanto particular a seus ouvidos. Gostava de frases cheias
e retumbantes. Os Lusíadas? eram uma “epopéia imortal”,
dizia ele. Pronunciava a palavra epopéia com a boca cheia, acentuando
muito o é. Uma obra de arte reconhecidamente boa era, a seu ver, uma
epopéia, fosse qual fosse o gênero d’ela. O Cristo e a
adúltera de Bernadelli? Uma epopéia nacional!

Começou a ler A Casa e Pensão em voz alta, em tom de recitativo,
pausadamente, repetindo frases inteiras, aplaudindo o romancista com entusiasmo,
exclamando de vez em vez: – “Bonito, seu Zuza” como se fosse ele
próprio o autor do livro. Depois, sacudindo o romance sobre uma cadeira,
levantou-se espreguiçando-se com estalinhos nas articulações,
escancarando a boca num bocejo largo. Que horas seriam? O despertador de níquel
marcava quatro e meia. Ô diabo! Tinha-se descuidado. Estava convidado
para jantar com o presidente às cinco pontualmente. Começou
a vestir-se assobiando trechos de música seródia. De repente:
– “E a normalista que não lhe tinha respondido a carta!”
Muito atrasadinhas as cearenses, pensava. Que mais queria ela? E defronte
do espelho, pondo a gravata: – “Era um rapaz chic,, dava muita honra
à Sra. D. Maria do Carmo escrevendo-lhe uma carta amorosa, pois não?
Era o que faltava, a Sra. D. Maria do Carmo não lhe dar atenção!
Mas havia de cair por força. Era uma questão de tempo”.

Cinco horas. O Zuca enfiou a sobrecasaca às pressas, perfumou-se,
endireitou a gravata e – até logo – foi-se como um raio.

VII

À proporção que se aproximava o dia do casamento de
Lídia com o guarda-livros, as visitas d’este à casa da
viúva Campelo iam-se tornando de mais a mais freqüentes. A Campelinho
não cabia em si de contentamento; pudera! Ia enfim ver-se livre do
perigo de ficar para tia. De resto o Loureiro era um ótimo rapaz, excelente
empregado, natural de bom gênio, tolerante em extremo e senhor de seu
nariz. Era como se fosse de casa, como se já fizesse parte da família,
surdo como uma pedra aos boatos mais ou menos mentirosos que corriam sobre
a vida privada de D. Amanda. Nunca se dera ao trabalho de averiguar se efetivamente
o procedimento de sua futura sogra merecia censuras da gente honesta, mesmo
porque o seu emprego não lhe deixava tempo para isso.

Não, senhor, dizia ele, se por ventura alguém procurar abrir-lhe
os olhos; a viúva era um modelo de mãe de família, coitada,
vivendo modestamente do minguado montepio de seu finado marido, afora um negociozinho
de rendas que tinha no Pará, e que lhe deixava para mais de cinqüenta
por cento. O mais eram palanfrórios, e ele, no caráter de futuro
genro da viúva, não podia consentir que ninguém a difamasse
impunemente.

João da Mata lhe dissera uma vez, ao ouvido, batendo-lhe amigavelmente
no ombro, que não se iludisse, que a Campelo recebia fora de horas
o Batista da feira; que ele, João da Mata, vira muitas vezes, com os
próprios olhos, o negociante entrar cosido à parede, alta noite,
como um gato.

Histórias! O amanuense fazia mal andar propalando suspeitas que podiam
prejudicar muito os créditos da pobre senhora. Absolutamente não
acreditava em tais boatos. Conhecia bem o gênio e a vida de D. Amanda
para desprezar semelhantes falsidades. Em suma, era da escola de S. Tomé:
ver para crer.

Até então só tinha motivos para louvar o procedimento
da sua futura sogra. E concluía: “- Por amor de Deus não
falassem mais em tais coisas… Tinha olhos p’ra ver”.

Todas as noites, invariavelmente, lá ia ele dar seu dedo de palestra
com a noiva, e, depois do víspora em casa do amanuense, ficavam os
dois horas e horas na calçada, num aconchego muito íntimo, ela
apoiada sobre seus ombros, fazendo-se meiga e apaixonada, ele babando-se de
satisfação ao contato palpitante das carnes rijas e abundantes
da sua futura mulher. D. Amanda entrava propositadamente para os deixar à
vontade naquele arrebatamento de noivos sadios e vigorosos.

Um noite o guarda-livros quis ir mais longe nas vivas demonstrações
de seu amor pela Campelinho. Com os lábios pregados à boca da
Lídia, quase abraçados, procurou com uma das mãos apalpar
alguma coisa que a rapariga ocultava religiosamente no templo inviolável
de sua castidade.

– Não, isso não! Fez ela esquivando-se, toda cautelosa, com
ar de surpresa.

Deixasse d’aquilo, que era muito feio entre noivos. Não havia
necessidade; tinham muito tempo depois. Tivesse paciência, sim?

E muito terna, derreando-se de novo sobre o ombro do guarda-livros, beijou-o
na face áspera de espinhas, sem repugnância, e começou
a cofiar-lhe carinhosamente os bigodes, devagarinho, arregaçando-os,
assanhando-os para tornar a alisá-los, prolongando assim a delícia
de Loureiro que nesses momentos era como um escravo das mãozinhas brancas
e delicadas de Lídia.

– Mas, que tem? Perguntou ele com a voz trêmula, um fluído estranho
no olhar terno.

– Não, meu bem, isso não, que é feio, tornou a Campelinho.
Tem paciência.

Não fazia mal, continuou o Loureiro. Não eram noivos? Não
eram quase casados? Que diabo! Consentisse ao menos uma vez. Era um instantinho.
Ora! Uma coisa tão simples, tão natural!… Ninguém via,
deixasse, que tolice!

E enquanto falava, muito baixo, com hesitações trêmulas
na voz embargada pela sensualidade, estendia a mão por baixo, o olhar
fito nos olhos vivos e penetrantes a rapariga.

Nem um ruído da rua do Trilho, nem uma voz, nem o vôo pesado
de um morcego: tudo silêncio, e uns restos de luar a extinguir-se esbatendo
defronte nos telhados. Apenas, ao longe, vago e indistinto quase, o ruído
monótono do mar no silêncio da noite calma.

– Oh! não… suplicou a Campelinho sentindo o contato da mão
grossa do guarda-livros. Deixa…

Houve um fru-fru de vestidos machucados e o baque de uma cadeira.

Momentos depois o Loureiro despedia-se triunfante, pisando devagar, caminho
do HOTEL DRAGOT.

Desde então começou a retirar-se muito tarde. Havia noites
em que só saía depois de uma hora da madrugada. Ultimamente
almoçava e jantava na casa da viúva. Era mais econômico
do que pagar hotel, dizia D. Amanda: bastava que ele contribuísse com
trinta mil réis mensais e tudo se arranjaria ali mesmo em família;
de modo que o Loureiro pouco a pouco foi-se fazendo, por assim dizer, dono
da casa, chefe da família. Por fim todas as despesas corriam por sua
conta e risco. Aluguel de casa, comedoria, roupa lavada e engomada, vestidos
para a Lídia, tudo era ele que pagava de boa vontade, sem tugir, nem
mugir, porque queria e tinha prazer nisso. Muito econômico, amigo de
seu dinheirinho, mas em se tratando das Campelo, não tinha mãos
a medir, era de uma prodigalidade sem limites. Coitadas! Lamenta consigo,
eram umas pobres; cada um sabe de si e Deus de todos; tinha quase o dever
de ampará-las, tanto mais quando estava para ser marido da pequena.
E abriu o seu grande coração e a sua bolsa àquelas duas
criaturas, que se lhe afiguravam duas santas através do prisma azul
de seu amor pela rapariga. Subscritor da sociedade de São Vicente de
Paulo, um pouco devoto, às vezes tinha rasgos de verdadeiro filantropo.
D. Amanda e a filha eram aos seus olhos “duas vítimas da maledicência
de uma sociedade hipócrita e torpe até a raiz dos cabelos”.
Agora jantava e almoçava em casa da viúva, que já lhe
sabia os gostos, as manias. Ela mesma ia preparar a comida, os ovos quentes
e a lingüiça assada do almoço, o feijão e o lombo
assado para o jantar. D. Amanda estava radiante com o genro. Tratava-o a velas
de libra, fazia-lhe todas as vontades, escovava-lhe a roupa, e eram cuidados
de mãe carinhosa ou de criança que tem um pássaro na
mão e receia lhe fuja.

Aos domingos o guarda-livros ia logo cedo para o Trilho, às vezes
com a cara por lavar, metido em calças pardas, abotoado até
ao pescoço. Era quando tinha algum descanso das lidas quotidianas do
armazém, da escrituração do Caixa. Às seis horas
da manhã já ele estava de caminho para o Trilho, muito à
fresca, cigarro ao canto da boca, prelibando as delícias de um dia
inteiro em companhia da noiva, sem ter que dar satisfação a
Carvalho & Cia., com a consciência tranqüila de quem cumpriu
religiosamente o seu dever.

Nem sequer tomava café no hotel. Pulava da rede às pressas,
sem perder tempo, enfiava as botinas, as calças, o paletó surrado,
e abalava por ali fora, escadas abaixo. Às vezes, ainda encontrava
a porta da viúva fechada. Batia devagar com a ponta dos dedos: “-
Sou eu, o Loureiro!” Imediatamente D. Amanda vinha abrir, embrulhada
nos lençóis, cabelos soltos, em mangas de camisa. E a faina
começava. Escancaravam-se as portas para dar entrada livre ao arzinho
fresco da manhã, que se derramava por toda a casa, como um fluido que
se evaporasse de repente de um depósito aberto. O Loureiro tirava o
paletó, abria a toalha no ombro, e, enquanto se punha a ferver a água
para o café, refestelava-se num confortável banho frio puxado
de véspera na grande tina que havia no “banheiro”. Era
tempo de cajus. O guarda-livros tinha a mania dos depurativos. Antes do banho
emborcava um copo de mocororó “para retemperar o sangue!, dizia
ele. Depois o cafezinho quente, coado pelas mãos de D. Amanda, e, finalmente,
o belo dia passado currente calamo; tranqüilamente, num longo idílio,
naquele canto obscuro de Fortaleza, com a “sua santa”. O hotel
servia-lhe apenas para dormir, porque o Loureiro era filho do Rio Grande do
Norte, onde perdera pai e mãe, não tinha no Ceará sequer
um parente em cuja casa pudesse passar as noites. Amigos capazes de merecerem
toda a sua confiança também não os tinha. Pacato, concentrado
e pouco expansivo, dificilmente comunicava-se a quem não o procurasse
em primeiro lugar. Sua natureza egoísta aprazia-se com a vida sedentária.
– Um esquisitão de força, uma espécie de urso! Diziam
os seus camaradas do comércio.

E os dias passavam, longos e modorrentos, cheios de sol, sem nuvens no azul,
iguais sempre, eternamente monótonos.

Novembro estava a chegar. Novembro, o mês dos cajus e das ventanias
desabridas, com as manhãs friorentas e claras, em que, às vezes,
nuvens sombrias acumulam-se no horizonte e vão subindo até desmancharem-se
completamente num chuvisco ligeiro que apenas borrifa de leve a superfície
seca do solo, pondo cintilações diamantinas nas folhas do arvoredo;
novembro, o mês dos estudantes, o mês dos exames, que passa levando
consigo as ilusões cor-de-rosa dos que deixam os bancos preparatórios
e dos que começam a vida pública.

O Zuca não tinha pressa em se formar. De resto era uma questão
de tempo o seu bacharelato. Resolvera passar mais alguns meses no Ceará,
com a família, e então ir-se-ia completar o curso. Já
agora o Ceará não lhe era inteiramente uma terra má.
Habituava-se pouco a pouco a essa vida de província pacata em que se
trabalha um quase nada e fala-se muito da vida alheia. Maria do Carmo tinha
lhe escrito uma cartinha lacônica e expressiva confessando o seu amor.
Entregou-a ela mesma, no Passeio Público, numa quinta feira, à
noite, uma belíssima noite de luar. A avenida Caio Prado tinha o aspecto
fantástico d’um terraço oriental onde passeassem princesas
e odaliscas sob um céu de prata polido, com suas filas de combustores
azuis, encarnados e verdes, com as suas esfinges… Senhoras de braço
dado, em toilettes garridas, iam e vinham no macadame, arrastando os pés,
ao compasso da música, conversando alto, entrechocando-se, numa promiscuidade
interessante de cores, que tinham reflexos vivos ao luar; d’um lado
e d’outro da avenida estendiam-se duas alas de cadeiras ocupadas por
gente de ambos os sexos, na maior parte curiosos que assistiam tranqüilamente
ao vaivém contínuo dos passantes.

O plenilúnio muito alto dir-se-ia uma grande medalha de prata reluzente
com o anverso para a terra, suspensa por um fio invisível lá
em cima na cúpula azul do céu. Defronte da avenida o mar, na
sua aparente imobilidade, tinha reflexos opalinos que deslumbravam, crivado
de cintilações minúsculas, largo, imenso, desdobrando-se
por ali a fora a perder de vista, e para o sul, muito ao longe, a luz branca
do farol tinha lampejos intermitentes, de minuto a minuto. No porto, a mastreação
dos navios destacava nitidamente, inclinando-se num movimento incessante para
um e outro lado, como oscilações de um pêndulo invertido.

– Uma noite admirável, hein? Maria! dizia Lídia de braço
com a amiga, levada pela onda dos dilettandi. A normalista, porém,
não deu atenção à Campelinho, muito distraída,
caminhando maquinalmente, a pensar no estudante. Decididamente entregava-lhe
a carta, fosse como fosse. Eram oito horas e o Zuca ainda não havia
chegado. Estava aflita, inquieta, impaciente. E se ele não fosse ao
Passeio esta noite? Ela rasgaria a carta e nunca mais havia de o procurar.
O seu coração batia com força. Ia e vinha, cansada de
esperar, com ímpetos de voltar para casa.

– Tem paciência, menina, disse a outra. O rapaz não tarda. Está
no clube, talvez.

Qual clube! Era necessário acabar com aquilo. Começava a desconfiar
do Zuca. Certo ele queria passar o tempo folgadamente, por isso fingira aquela
comédia de amor. Não era possível, não acreditava
na sinceridade do Zuca. Se ele fosse outro procurá-la-ia sempre, em
toda a parte, nos passeios, no teatro, nos bailes. E ela é que estava
fazendo uma figura ridícula a procurá-lo, como se ele fosse
o único homem do Ceará com quem ela pudesse ser feliz!

E lá veio o maldito nervoso, uma vontade de fechar os olhos a tudo
e viver para si, egoisticamente, como o bicho da seda no seu casulo. Incomodava-lhe
o zunzum de vozes e as pisadas da multidão, a própria música
começou a fazer-lhe mal à cabeça. Que horror! Nem sequer
podia passear!

Nisto ouviu uma voz que lhe pareceu a do estudante.

– Boa noite, minhas senhoras!

Era realmente ele, que vinha chegando ao lado do José Pereira, muito
correto, de chapéu alto, calça de casimira clara, croisé
aberto, grandes colarinhos lustroso de ponta virada e a infalível flor
na botoeira.

Maria voltou-se aturdida e um suspiro largo e bom escapou-lhe do peito.

Até que enfim! Ele ali estava inteiro, completo, absoluto!

Agora pensava em como entregar a carta sem que ninguém visse, sem
escândalo.

A Lídia sugeriu-lhe uma idéia – iriam à outra avenida,
mais sombria e menos freqüentada; ele naturalmente havia de ir também
e então passava-lhe a carta num aperto de mão franco e amigável.

– Sim, vamos…

E dirigiram-se para a avenida Carapini, ensombrada pelos castanheiros, que
formavam uma como abóbada compacta de ramagens através das quais
o luar coava-se aqui e ali, pelas clareiras.

Puseram-se por ali a esperar, em pé defronte dos gnomos de louça,
à beira dos reservatórios d’água onde cruzavam
gansos e marrequinhas vadias que grasnavam alegremente inundadas de luar ou,
caminhando devagar, iam contando os minutos, enquanto a música, no
coreto, executava trechos alegres de operetas em voga. No botequim, rodeado
de toscas mesinhas de madeira, abriam-se garrafas de cerveja com estrondo
e havia um movimento desusado de gente. As normalistas afastaram-se para mais
longe.

– Eles não vêm, disse Maria desanimada, enquanto a outra procurava
com o olhar o estudante, que se confundia coma a multidão.

– Tem paciência, tolinha. Por que não hão de vir?

Com efeito, d’aí a pouco assomou no extremo oposto da avenida
a figura corpulenta de José Pereira, alta, larga, colossal, ao lado
do Zuca, que lhe ficava pelo ombro, apesar de alto também, com o seu
corpo fino em contraste frisante com o todo asselvajado do amigo. Vinham passo
a passo, discretamente. Pararam no botequim, numa roda de rapazes que discutiam
calorosamente sobre política.

De braço dado, ombro a ombro, as duas raparigas tinham procurado o
lugar mais sombrio da avenida onde não podiam ser facilmente reconhecidas
pelos passeantes da Caio Prado.

– Esperemo-los aqui, disse Lídia, sentando-se com um vago suspiro.

E continuava a chegar gente e a encher o Passeio por todas as avenidas do
primeiro plano, cruzando-se em todos os sentidos, acotovelando-se, confundindo-se.
Na Mororó, mais larga que as outras, havia uma promiscuidade franca
de raparigas de todas as classes: criadinhas morenas e rechonchudas, com os
seus vestidos brancos de ver a Deus, de avental, conduzindo crianças;
filhas de famílias pobres em trajes domingueiros, muito alegres na
sua encantadora obscuridade; mulheres de vida livre sacudindo os quadris descarnados,
com ademanes característicos, perseguidas por uma troça de sujeitos
pulhas que se punham a lhes dizer gracinhas insulsas. Toda uma geração
nascente, ávida de emoções, cansada d’uma vida
sedentária e monótona, ia espairecer no Passeio Público
aos domingos e quintas feiras, gratuitamente, sem ter que pagar dez tostões
por uma entrada, como no teatro e no circo.

Ali não havia distinção de classes, nem camarotes, nem
cadeiras de primeira ordem: todos tinham ingresso para saracotear nas avenidas
ao ar puro das noites de luar.

Apenas quem não tivesse dois vinténs esta proibido de sentar-se,
porque, nesses dias, as cadeiras eram alugadas, havia assinaturas baratas.
Lia-se mesmo na Província o seguinte anúncio: “No estabelecimento
Confúcio e no Club vendem-se cartões de assinaturas de cadeiras
no Passeio Público, com abatimento nos preços”. Mas, ora,
toda a gente possuía vinténs para alugar uma cadeira, e, demais,
ia-se ao Passeio para andar, para se mostrar aos outros como numa vitrine,
não valia a pena ir para ficar sentado, casmurro, a ver desfilar o
que? O mesmo carnaval de todos os domingos e quintas-feiras, as mesmas caras,
as mesmas toilettes. Não valia a pena de certo.

Quando a música parava, um realejo fanhoso, ao som do qual rodavam
cavalinhos de pau, em um dos ângulos do jardim, gemia, num tom dolente
e irritante, o Trovador atordoando os ouvidos delicados do Zuca que achava
aquilo simplesmente insuportável e medonho como um assassinato em plena
rua.

– “Como é que se consentia semelhante importunação
em uma capital que tinha foros de civilizada? Oh! em Pernambuco, o italiano
que se lembrasse de tocar realejo à porta d’uma república
era imediatamente punido a batatas e as cascas de laranja. Estava muito atrasadinho
o Ceará!”

Gostava pouco d’ir ao Passeio, o que fazia raríssimas vezes
a convite do José Pereira, que comparava aquilo a um paraíso.

– O Passeio Público? dizia ele; o Passeio Público é
um dos mais belos do Brasil e a coisa mais bem feita que o Ceará possui.
Que vista, que magnífico panorama se aprecia da avenida Caio Prado,
à tarde! Nem o Passeio Público do Rio de Janeiro!

E justificava o anti-bairrismo do estudante:

– É que tu tens passado a melhor parte da tua vida na Corte e em Pernambuco,
menino, dizia ele. Se vivesse algum tempo nesta terra, havias de gostar extraordinariamente.
Mas o que te posso afirmar é que no Brasil não há uma
cidade tão bem alinhada como esta, uma iluminação mais
rica do que a nossa e um Passeio Público assim como este.

– “Não duvidava, não duvidava, mas o Ceará ainda
estava muito atrasadinho, lá isso estava”.

Afinal chegou o momento que Maria do Carmo aguardava com a impaciência
febril de um desesperado. O redator da Província e o Zuca tinham deixado
o grupo de políticos e aproximavam-se a passos lentos. Ao passarem
pelas normalistas a Campelinho levantou-se e, muito desembaraçada,
com esse tic indizível das raparigas habituadas a convivência
dos homens e à vida elegante, dirigiu-se aos dois amigos, saudando-os
rasgadamente com um belo sorriso aristocrata:

– Como passou, Sr. José Pereira?… Sr. Zuca…

– Oh! minha senhora… fizeram os dois ao mesmo tempo.

E a Lídia, depois de perguntar a José Pereira, com quem tinha
alguma familiaridade, se vira por ali D. Amélia, e com uma ponta de
cinismo, dirigiu-se ao Zuca:

– Que tal o Passeio, Sr. Zuca?

– Esplêndido, minha senhora! Está de encantar!

– Isto é um inimigo do Ceará, D. Lídia, atalhou José
Pereira rindo, com a sua voz muito grossa, os dentes muito brancos e pequeninos.
Isto é um vândalo.

– Vândalo, não. Sou apenas um admirador, um amante do progresso.
A meu ver, repito, o Ceará tem muito ainda, mas mesmo muito (e deu
umas castanholas com o dedo) que andar para ser uma capital de primeira ordem.

– Eu já sabia que o Sr. Zuca não gostava da terra de Iracema,
disse a normalista.

Maria tinha se deixado ficar à distância, sentada num banco
de madeira encostado a uma árvore, na meia sombra que havia de um lado
da avenida, quieta, imóvel, acaçapada, como uma cousa a toa…
Sentia-se cada vez mais tola, mais matuta e insociável.

A presença do acadêmico punha-lhe calafrios na espinha, e vinha-lhe
logo um desejo de isolar-se e não dizer palavra. Não sabia o
que aquilo era; o certo é que a presença do Zuca hipnotizava-a,
fazia-lhe perder a cabeça, como se estivesse diante de um monstro,
de uma criatura misteriosa, cujo poder sobre ela fosse enorme.

Zangava-se consigo mesma nesses momentos. Já estava em idade de perder
de todo o acanhamento e que diabo! Atirar-se à vida, à sociedade,
sem medo, sem receios infundados, sem pieguismos. Bolas! De si para si, tornava
a jurar nunca mais ter medo de homem algum, mas no outro dia era a mesma da
véspera, fraca, impotente para dominar-se.

– Pois estamos distraindo o esp&iacuiacute;rito, tornou a Lídia. A avenida
Caio Prado está muito cheia; vimos apreciar o movimento d’aqui,
da avenida dos charutos.

O Zé Povinho denominava avenida dos charutos, a avenida Carapini por
ser mais freqüentada por gente de cor, e Lídia achava muita graça
naquilo, não podia acertar com o verdadeiro nome da sombria aleia,
ponto dileto de cozinheiras e raparigas baratas da rua da Misericórdia.

– Ah! Fez o Zuca. Então V. Excia. não veio só?

– Não, não. Vim com a minha amiga inseparável.

E voltou-se para Maria, que fingia olhar para o coreto da música.

– Quem D. Maria do Carmo? Perguntou José Pereira, voltando-se também.

– Sim, a Maria…

– Oh! exclamou o redator dirigindo-se para a normalista. Está triste
hoje, D. Maria? Uma moça bonita não se deixa ficar assim na
sombra. Como vai, como tem passado, boazinha? Sempre acanhada!… Venha, faz
favor? Quero-lhe apresentar a um moço muito chic e que lhe aprecia
muito.

Quem , o Sr. Zuca? Ela já conhecia. Estava descansando.

– Ô Zuca!

O acadêmico e Lídia aproximaram-se.

E José Pereira num tom de cortesia:

– Apresento-te aqui a Sra. D. Maria do Carmo, normalista, e uma das moças
mais distintas da nossa sociedade, uma flor!

Riram todos àquele disparate premeditado, pondo uma nota alegre nesse
obscuro recanto do Passeios.

– Oh! Já se conheciam? Não sabia, por Deus! Então já
conheces a moça mais bonita do Trilho de Ferro, hein? Uma coisa que
não sabes: faz versos também…

Maria cumprimentou o estudante com um modo muito discreto, conservando-se
sentada, aflita.

A música deu começo a um tango repinicado, saltitante e carnavalesco,
espécie de Chorado Baiano, com rufos de tambor, em que sobressaía
o clarinete, cujas notas, muito prolongadas e queixosas, morriam languidamente.

De quando em quando os instrumentos faziam uma pausa e rompia um coro de
vozes grossas – Quem comeu o boi?… que a molecagem, lá fora, repetia
numa desafinação irritante de vozes finas.

– Vamos tomar alguma coisa, insistiu José Pereira oferecendo o braço
à Lídia cortesmente. Ô Zuca, você dá o braço
a D. Maria do Carmo.

E, dois a dois, dirigiram-se para o botequim, José Pereira na frente
com a Campelinho.

A ocasião era oportuna.

Maria a princípio desanimou completamente, mas, num ímpeto
decisivo e franco, fazendo um esforço supremo sobre a si mesma, nervosa,
mais tímida que nunca, sacou a carta, passou-a ao estudante, com a
mão trêmula, sem proferir palavra, e imediatamente veio-lhe um
arrependimento profundo de se ter comprometido daquele modo, como se naquela
carta fosse toda a sua honra, todo seu pudor de rapariga honesta. Estava perdida!
Pensou, e já lhe parecia que toda a gente – o Passeio Público
em peso – seguia-lhe as pegadas observando-lhe todos os movimentos.

– Ah! Fez o Zuca satisfeito. Pensei que não respondesse.

E sentindo-se dono daquela prenda, com um frêmito de pálpebras
através dos óculos de ouro, aconchegou a si o braço roliço
da normalista meio descoberto.

Maria conservou-se calada, sentindo cada vez mais forte o poder misterioso
do estudante sobre seu coração extremamente sensível
e bom. Deixou-se ir automaticamente, como uma sonâmbula.

Sentaram-se. José Pereira quis saber o que desejavam tomar. Havia
sorvete, cidra, cerveja, vinho do Porto, chocolate…

– Cerveja, acudiu a Lídia.

Todos assentaram, depois de alguns minutos de indecisão, em tomar
cerveja, e o redator da Província, sempre alegre e cortês, enfiando
a cabeça para dentro do botequim, pediu três garrafas de Carls
Berg, gelo e quatro copos.

O serviço do botequim era feito por um menino que entrava e saía
sem descanso, uma azáfama dos diabos, suado, com os cabelos empastados
na testa, sem paletó, uma toalha nauseabunda e úmida no ombro,
acudindo, ele só, a todos os chamados.

Rapazes impacientes, de chapéu caído para a nuca, tresandando
ixora, muito arrebitados, batiam com as bengalas sobre as mesinhas.

– Uma garrafa de cerveja, menino!

– Ó pequeno, aqui. Olha dois cafés.

O pobre caixerinho não tinha tréguas, com a cara enfaruscada,
resmungando.

De vez em quando, esfregava a toalha nas mesas com força, salpicando
restos de comida nos janotas.

– Ó burro, estás cego?

O menino zangava-se e corria à outra mesa.

Vinha de dentro do quiosque um cheiro ativo de café requentado. Saíam
bandejinhas com chocolates e pão-de-ló.

– Muito mal servido isto, objetou Zuca com ser ar afetado de fidalgo, limpando
os bigodes. Tenho notado mesmo que aqui, no Ceará, não se usa
guardanapo…

– É objeto de luxo, disse José Pereira, atirando também
o seu dichote.

E pouco a pouco a conversação foi se animando, pouco a pouco
foi-se estabelecendo uma intimidade entre todos, aos passo que os copos esvaziavam.

Pediram mais uma garrafa de cerveja.

A própria Maria do Carmo tinha o rosto em fogo. Foi perdendo o acanhamento
e ria também com os outros quando o redator dizia pilhéria.

A Lídia essa, lambia os beiços a cada copo que virava de dois
tragos. Era a sua bebida predileta – cerveja. Bebera pela primeira vez ali
mesmo no Passeio, por sinal o Alferes Coutinho, do batalhão, é
que tinha pago. Estava em meio do terceiro copo, – Aquilo é que era
uma bebida agradável e higiênica”, dizia ela. Não
gostava de licores e bebidas adocicadas. A champanhe mesmo enjoava-lhe.

– E que tal acha o peru? Perguntou maliciosamente o José Pereira.

Isso era outra coisa: o peru era uma excelente bebida; bastava ter sido inventada
pelo presidente da província, um moço de educação
muito fina, viajado. Diziam até que tinha ido à Rússia…

Então falou-se do presidente, que José Pereira não perdia
ocasião de elogiar exageradamente.

Um homem superior, gabava ele, um gentleman, um fidalgo de raça, uma
dessas criaturas que a gente ficava querendo bem por toda a vida. Pois não!
Excelente amigo, dedicado até, jogador de florete, sabendo montar a
cavalo “divinamente” e atirando ao alvo com uma perfeição
ultra! E que educação, que finíssima educação
social! O homem falava francês como um parisiense, entendia inglês
e tinha um modo excepcional de se portar em qualquer ocasião solene.
Com tudo isto, acrescentava pigarreando, era muito bom democrata, sim senhores.
Passeava sem ordenança, a pé; ia ao mercado pela manhã
“ver aquilo” como qualquer plebeu , e jogava o bilhar na Maison
Moderne… Que queriam mais? D’um homem assim é que o Ceará
precisava. Ele estava ali na pessoa do Castro.

Tratava o presidente familiarmente, como a um amigo de muita intimidade.

Por sua vez o Zuca elevava o presidente aos cornos da lua. A sua opinião
resumida era a seguinte: “Todos os cearenses juntos, trepados uns sobre
os outros, não chegavam aos pés do fidalgo paulista”.

– Eu o que mais admiro nele é o pescoço, a brancura escultural
do pescoço, disse Maria.

O presidente foi analisado escrupulosamente da cabeça aos pés,
como uma estátua grega, ao sabor da cerveja Carls Berg.

Já não havia quase ninguém no Passeio, quieto agora,
sem o ruído tumultuoso dos passantes, sem música, todo iluminado
pela claridade branda e melancólica do luar. Apenas se ouvia o grasnar
áspero dos gansos nos reservatórios, o gritar estridente das
marrequinha e a toada dos soldados no quartel, rezando.

José Pereira tinha pedido mais uma garrafa de cerveja e instava para
que Maria do Carmo tomasse “um bocadinho só”. A normalista,
porém, cobria o copo com a mão, recusando. Que não: estava
muito cheia, sentia uma pontinha de dor de cabeça. Botasse p’ra
Lídia…

Ora, fizesse favor, aceitasse, por vida de seus magníficos olhinhos
de princesa encantada, suplicou o redator da Província fixando os olhos
em Maria que esperava o assentimento do Zuza.:

– Por que não toma, D. Maria? perguntou este num tom quase imperativo.
O José Pereira pede-lhe com tão bons modos…

Maria aceitou com um gesto de repugnância.

– À sua saúde, fez José Pereira, tocando o copo no da
normalista.

Houve um tilintar de cristais chocando-se ao de leve, e todos beberam ruidosamente.

– Agora vamo-nos chegando que se faz tarde, propôs Lídia levantando-se

Mal se sustinha em pé. José Pereira ofereceu-lhe o braço.

Uma languidez extrema tinha-se apoderado de Maria, cujas pálpebras
pesavam como chumbo. Foi preciso amparar-se ao estudante para não cair
redondamente.

– Uma tonteira! Queixou-se ela fechando os olhos.

Não era nada, disse o outro, passando-lhe o braço pela cintura;
e enquanto o redator seguia pela avenida com a Lídia, deixavam-se ficar
naquela posição, em pé ambos e quase abraçados.

– Olhe, D. Maria…

A rapariga tentou abrir os olhos, e nesse momento, naquele silencioso recanto
do Passeio estalou um beijo. Depois seguiram também, e, juntos todos
quatro foram tomar café no restaurante Tristão.

VIII

Maria do Carmo chegou à casa ofegante, esfalfada, com a cabeça
a arder, muito corada e alegre, o olhar cheio de meiguice, transfigurada pelos
efeitos da cerveja, rindo por da cá aquela palha. Atirou-se com todo
o peso do corpo nos braços de João da Mata, fazendo-lhe festa,
muito amorosa, como uma cadelinha de estima depois d’uma ausência.
No seu olhar aveludado e submisso havia uma súplica irresistível.

– Cheguei um bocadinho tarde, não é assim, padrinho? Perguntou
cosendo-se ao amanuense, a cabeça derreada para trás.

João olhou-a, olhou-a, hesitante, com um ar de extrema bonomia no
rosto ainda há pouco carrancudo.

Tinha acabado de ralhar pela demora da afilhada e agora achava-se sem ânimo
de dizer uma só palavra áspera à rapariga, cujo olhar
fascinava-o com um abismo. Ali estava ela a seus pés, submissa e mais
bela do que nunca, acariciando-lhe a barba, toda sua, como uma escrava.

– Sim senhora, chegou um bocadinho tarde. Isto não são horas
de uma moça estar passeando…

Afetava um tom repreensivo e ao mesmo tempo paternal.

Quase dez horas! Não era bonito aquilo, tivesse mais juizinho. Enfim,
por aquela vez, o dito pelo não dito, mas, por amor de Deus, não
fizesse outra, senão, senão…

– Mas, padrinho…

– Não tem padrinho, não tem nada. Pode ir ao Passeio, mas,
por favor, não me volte a estas horas.

E afagava os cabelos de Maria, passava-lhe a mão nas faces, atoleimado,
imbecil, como um velho impotente, o olhar aceso através dos óculos
escuros, a calva reluzente como uma grande bola de bilhar.

– Tu bebeste cerveja, aposto, tornou tomando entre as mãos a cabeça
da rapariga, e cheirando-lhe a boca. Ora se tomou…

– Tomei, sim, padrinho, tomei um copo assim. E indicou o tamanho do copo.
Mas não estou tonta, não, padriozinho… Olhe, foi só
um copo.

– E quem t’o pagou?

– Quem pagou? … Ora, quem pagou…

– Sim , quero saber quem te pagou a cerveja. Tu não levaste dinheiro…

– Quem pagou foi o Sr. José Pereira…

– Eu logo vi! Aposto em como o tal Zuca também entrou na festa.

Maria fez-se desentendida, e agarrando-se ao pescoço do amanuense,
com um pulo plantou-lhe um beijo na testa.

João da Mata desequilibrou-se.

– Ora, ora, ora, esta menina!…

Não sabia o que fizesse. Ralhar? Não. Maria estava encantadora
e pagava-lhe com beijos as recriminações. Calar? Também
não. A rapariga era capaz de reincidir na falta. O verdadeiro era não
falar mais no Zuca. E João da Mata rematou a conversa:

– Vá, minha filha, vá dormir, que você não está
boa…

Maria beijou, como de costume, a mão descarnada do padrinho, e, d’um
salto, recolheu-se ao seu querido quarto do meio, caindo pesadamente na rede,
vestida como estava, sem ao menos lembrar-se de soltar os cabelos, tendo apenas
tirado os sapatinhos e desabotoado o corpete.

Arre! Estava muito fatigada, precisava descansar.

E adormeceu imediatamente com um sorriso adorável na pequenina boca
entreaberta.

Teve sonhos impossíveis e horrorosos nessa noite. Cerca de onze horas
acordou sobressaltada com um pesadelo. Sonhou, coisa extravagante! Que ia
sozinha por um caminho deserto e interminável onde havia urze e flores
em profusão. Estava perdida, sem saber o rumo que devia tomar , caminhando
sem olhar p’ra trás.

De repente – Arre corno! Ouviu a voz aguardentada do Romão, o mesmo
que fazia a limpeza da cidade, e logo surgiu-lhe em frente a figura nauseabunda
e miserável do negro. Era um Romão colossal, grosso e musculoso
como um Hércules, nu da cintura p”ra cima, as espáduas
largas reluzentes de suor, calças arregaçadas até os
joelhos, preto como carvão, as pernas curvas formando um grande O,
os braços levantados segurando na cabeça chata um barril enorme
transbordando imundícies! -Arre corno! Grania o negro no silêncio
da noite clara, cambaleando muito bêbado, perseguido por uma cáfila
de cães que ladravam desesperadamente. Fazia um luar esplêndido…

Assim que deu com os olhos nela, o negro atirou o chão o barril de
porcarias, que se despedaçou empestando o ar. E o Romão, cambaleando
sempre, muito fedorento, atirou-se a ela, rilhando os dentes num frenesi estúpido,
beijando-a, besuntando-a.

Que horror! Ela mais que depressa, cobrindo o rosto com as mãos, quis
fugir sentindo toda a hediondez daquele corpo imundo, mas o negro deitou-a
no chão com força e … E Maria do Carmo acordou quase sem sentidos,
sentando-se na rede, com um grande peso no coração, aflita,
sufocada, sem poder falar, porque tinha a língua presa…

– Virgem Maria! suspirou logo que pôde voltar a si. Que sonho feio!…

Suava em bicas, muito pálida, como se acabasse de sair de um forno.
Só então reparou muito admirada que ainda estava com a mesma
roupa com que fora ao Passeio Público. Riscou um fósforo com
a mão trêmula, acendeu a velinha de carnaúba e começou
a despir-se depressa.

Lá fora na rua, passava uma serenata. Uma voz de homem cantava uma
modinha conhecida, acompanhada de violão e flauta:

Não cho..res, querida Elvi…ra…

Maria sentia-se doente, com um sabor desagradável na boca e uma dor
forte nas têmporas. Vinha-lhe uma vontade de vomitar, de deitar fora
a cerveja que bebera: sentia um mal estar geral em todo o corpo, como se estivesse
para cair gravemente doente.

Que seria, Deus do céu? Aproximou a vela do espelho, um velho traste
com o aço muito estragado, e achou-se abatida, os olhos fundos, uma
crosta esbranquiçada na língua. Nunca mais havia de tomar a
tal cerveja, uma bebida selvagem, sem gosto, repugnante como um vomitório.
Só tomara naquela noite por causa do Zuza, porque ouvira dizer que
“era moda nas grandes cidades”, na Corte e no Recife, as senhoras
tomarem cerveja. Mas credo! Noutra não caía. Se soubesse teria
pedido cidra.

Quis chamar a Mariana para lhe fazer um chazinho de laranja, mas era muito
tarde, podiam desconfiar e, depois o padrinho agora dormia na sala de jantar…

Não, não, era melhor não incomodar a ninguém!
aquilo havia de passar, se Deus permitisse.

Tinha até esquecido de rezar…

Ajoelhou-se, mesmo em camisa, diante da oleografia que representava o Cristo
abrindo o coração à humanidade, balbuciou uma oração,
persignou-se e, mais aliviada, mais fresca, adormeceu novamente, pensando
no estudante.

O amanuense, no mesmo dia da briga com a mulher, resolvera de então
em diante dormir numa rede na sala d jantar. Uma figa! Não estava mais
para suportar o calor infernal da alcova, e, além disto, viviam ultimamente,
ele e D. Terezinha, arengando consecutivamente como duas crianças invejosas,
pela coisa mais insignificante. Ele, muito jubiloso, achava que tudo em casa
ia muito ruim, que D. Terezinha não se importava com as coisas, que
não se fazia mais economia – “Um gasto enorme de dinheiro! um
desperdício sem nome, um esbanjar sem trégua, e afinal de contas,
não passavam da carne cozida e do lombo assado com arroz. Isso assim
ia mal, muito mal. Depois ninguém fosse chorar por dinheiro…”

Quem, ela, chorar? Que esperança! Estava muito enganado, seu “pap’angu”
de boceta. Tinha muito para onde ir, não faltavam casa de gente séria
no Ceará. Socasse os eu dinheiro onde quisesse…

Toda a vizinhança, ávida de escândalos, ouvia com risinhos
de pérfida satisfação aqueles torniquetes às vezes
imorais até, do amanuense com a mulher. Era um divertimento.

– Deus o fez e o diabo os ajuntou, dizia a mulher d’um barbeiro que
morava ali perto, paredes meias.

Quando João da Mata entrava na pinga então a coisa tomava proporções
assustadoras. Ameaçava expulsar a mulher de casa a pontapés,
berrava como um possesso, batia as portas, quebrava louça ao jantar,
rogava pragas e a própria empregada não escapava à sua
cólera.

Mariana era uma rapariga muito pacata e em pouco acostumou-se às impertinências
ríspidas de “seu Joãozinho”.

– Para que havia de dar o pobre homem, dizia ela às vezes, penalizada,
cruzando os dedos sobre o ventre. Credo! A gente vê coisas! Hum, hum!…

E muito risonha, muito tola, com o seu ar idiota de animal dócil,
lá se ia para a cozinha cuidar das panelas e da louça, porque
era ao mesmo tempo cozinheira e copeira.

Quase todos os dias a mesma lengalenga, o mesmo duelo de palavras de porta
de feira, a mesma pancadaria de descomposturas. Não era raro sair da
boca desdentada do amanuense uma obscenidade!

– Jesus! exclamava Maria fugindo
para o seu quarto com as mãos nos ouvidos.

Ao ouvir a voz de João da Mata berrando como um danado, a vizinhança
chegava às janelas ávida de escândalo. Meninos em fralda
de camisa, chupando o dedo, paravam defronte da porta do amanuense, muito
espantados, olhando cheios de curiosidade pelas frinchas da rótula.

E a algazarra crescia lá dentro, como se papagueassem muitas pessoas
ao mesmo tempo.

As duas criaturas faziam as delícias da rua do Trilho, que se regozijava
com aqueles espetáculos gratuitos de um cômico irresistível.

– “Aquilo ainda acabava mas era num escândalo badejo”,
resmungava a mulher do barbeiro, uma magricela de cara de quem está
sempre com dor de barriga. O Loureiro repetia indignado, dando-se ares de
homem sério e reformador de costumes:

– “Uma gente sem vergonha. Uma canalha! Tomara já se casar para
ver-se longe de semelhante peste. Até que era feio a Lídia ter
amizade com aquela gente”.

E aconselhava à rapariga que fosse, pouco a pouco, deixando de ir
à casa de João da Mata, porque não lhe ficava bem, a
ela, “rapariga de família”, em véspera de casar,
ter relações com uma corja d’aquela.

Já não se jogava o víspora na casa do amanuense. As
velhas coleções dormiam esquecidas no saquinho de baeta verde
em cima do piano.

D. Terezinha transformava-se a olhos vistos. Pouco lhe importavam os móveis
cobertos de poeira e de fuligem das locomotivas; protestara nunca mais abrir
o bico para dar ordens naquela casa. Esta cansada de agüentar desaforos
“do corno” do Sr. João da Mata.

E tudo por que? Por causa de uma peste que se lhe metera casa adentro e agora
andava mostrando os dentes e mais alguma cousa ao padrinho, com partes de
afilhada. Não, ela é que não servia de alcovitiira a
ninguém, meu bem. Estava muito enganadinho . Se quisesse fazer mal
à sonsa da Maria fosse fazer onde bem entendesse, mas ela, Teté,
não servia de travesseiro, não, mas não mesmo… Estimava
muito que lhe deixassem dormir só, na sua cama. Não perdia nada.

Por seu lado o amanuense encarava a mulher com um desprezo solene. Vinha-lhe
agora um arrependimento profundo por ter feito a asneira de amigar-se com
D. Terezinha. Tanta rapariguinha fresca e bonita vivia à procura de
um homem, tanta retirante ”moça” e pobre, tanta gente boa
no mundo, fora amigar-se logo com quem? com quem, Sr. João da Mata?
Com uma sujeita feiosa que só tinha carne nos quadris, um monstro de
gordura, com pernas finas e ainda por cima estéril! Que grandíssima
cabeçada! Entretanto, podia estar muito bem casado com uma mulher de
certa ordem, rica mesmo, bem educada e bonitona.

Depois que se mudara para sala de jantar apoderou-se dele um aborrecimento
inexplicável por D. Terezinha.. Passava horas e horas estendido na
rede, de papo para o ar, em ceroula e camisa de meia, acendendo cigarros,
a pensar na vida, como um grande capitalista que sonha no dinheiro acumulado
usurariamente; e Maria do Carmo aparecia-lhe na imaginação como
um tesouro preciosíssimo, que ele receava fosse cobiçado um
belo dia pelo rapazio galante da cidade… Estava ficando velho, era preciso
aproveitar o resto da vida. É verdade que em 77, na seca, tinha desfrutado
muita “bichinha” famosa. Nesse tempo ele era comissário
de socorros… Mas nenhuma daquelas retirantes chegava aos pés da afilhada.
Chegava o que! Nem havia termo de comparação. Maria, além
de ser uma rapariga asseada, e apetitosa como uma ata madura, tinha, sobre
as outras, a vantagem de ser inteligente e educada.

Estas qualidades da normalista tinham um encanto extraordinário aos
olhos do amanuense. Nunca em sua vida cheia de aventuras amorosas encontrara
uma rapariga nas condições de Maria do Carmo, filha da família,
branca, singularmente encantadora e que estivesse ao alcance de seu coração,
ah! nunca.

Maria punha-o doido com seus belos olhinhos cor de azeitona. A sua imaginação
criava planos fantásticos, inexequíveis, por meio dos quais
ele pudesse iludir a afilhada, e, zás, tirar-lhe o lírio branco
da virgindade. Não queria precipitar-se com o risco de um escândalo
comprometedor, isso não. Preferia insinuar-se pouco a pouco, devagar,
no ânimo da pequena, sem a sobressaltar, fazendo-lhe todas as vontades,
de modo que, na ocasião oportuna, no momento preciso, ela se entregasse
prontamente, sem resistência.

Com efeito Maria, agora, para não desagradar ao padrinho, obedecia-lhe
cegamente, com a resignação indolente e fria duma escrava. Que
havia de fazer, ela uma pobre filha adotiva, se o padrinho era quem lhe dava
de comer e de vestir? Consentia, pudera não! sem a menor resistência,
que o amanuense afagasse-lhe o bico dos seios virgens e lhe passasse a mão
pelas coxas tenras e polpudas…

– Está fazendo cócegas, padrinho, murmurava rindo, com riso
sem expressão, que lhe vinha do fundo d’alma de donzela.

– Sossega, tolinha, ralhava João.

E ela não tinha remédio senão ficar quieta, imóvel,
com o olhar úmido no teto, abandonada às carícias sensuais
d’aquele homem repugnante que a perseguia com um animal no cio, mas
que afinal de contas era seu padrinho…

Muitas vezes, ah! quase sempre, vinham-lhe ímpetos de reagir com toda
a força do seu pudor revoltado, mas ao mesmo tempo lembrava-se que
era só no mundo, porque já não tinha pai nem mãe,
e podia ser muito desgraçada depois… Sim, era preciso paciência
para suportar tudo até que o Zuza se decidisse a ampará-la sob
a sua proteção de rapaz rico. Vivia agora, sabe Deus como, entre
a indiferença cruel de D. Terezinha e a vontade soberana do amanuense,
por assim dizer sozinha naquela casa onde tudo tinha o aspecto sombrio e desolado
da pobreza desonesta. Ah! mas aquilo havia de acabar fosse como fosse…

A própria Lídia já não a procurava como dantes
toda orgulhosa com o seu noivo. A felicidade da amiga aumentava-lhe ainda
mais o desespero. Decididamente era muito infeliz. Aí vinham-lhe outra
vez as lágrimas e os soluços concentrados. Recolhia-se com os
olhos cheios d’água ao seu quarto com uma tristeza infinita no
coração e só achava conforto nas confidências amorosas
do Zuza, que ela guardava como uma relíquia no fundo de uma caixinha
perfumada de sândalo. Esquecia-se a lê-las devagar, repetindo
frases inteiras, admirando a bela caligrafia em que elas eram escritas, beijando-as
sobre a assinatura do estudante, toda entregue ao seu amor.

Havia uma semana que se correspondiam por cartas onde a vida de ambos era
descrita como num diário, minuciosamente, em todos os seus detalhes.
Porque o futuro bacharel desconfiara do modo frios com que o amanuense o recebia,
e, sem dizer nada a ninguém, resolvera nunca mais pôr os pés
naquela casa que ele “honrara” durante quase um mês com
a sua presença. Pílulas!

Todos os dias encontrava o sujeito com uma cara de mata-mouros, a pequena
tinha ordem de não lhe aparecer, e mesmo era uma estopada ir ao Trilho
a pé, sujeitando-se à crítica idiota dos mequetrefes
da vida alheia. Estava decidido – não iria mais ao Trilho de Ferro.
E cumpriu a sua palavra com a dignidade de um fidalgo.

Encontravam-se diariamente na Escola, que o Zuza freqüentava agora com
a pontualidade irrepreensível d’um inglês. E, como não
podiam conversar à vontade sem escandalizar os créditos do estabelecimento
já um tanto abalados, trocavam cartinhas no intervalo das aulas.

Era voz geral na cidade que o estudante estava disposto a casar com a normalista
mesmo contra a vontade de seus pais e a despeito da burguesia aristocrata
que lamentava por sua vez tamanho “desastre”. Um rapaz fino, com
um futuro invejável diante de si, estimado, amigo do presidente, casar-se
com uma simples normalista sem eira nem beira! E em toda a parte, desde o
Café Java até ao Palácio da Presidência, comentava-se,
discutia-se ruidosamente o assombroso acontecimento. Uns asseguravam que o
Zuza estava desfrutando a rapariga para depois – fuisser! pôr-se ao
fresco e nunca mais pisar o solo cearense. Outros, porém, eram de parecer
que o acadêmico tinha boas intenções e até fazia
bem levantar da miséria uma criatura como a Maria, que estava se perdendo
em companhia do amanuense. Havia outro grupo que acreditava no casamento do
Zuza com a normalista porque, na sua opinião, a menina já “estava
pronta”, isto é, o estudante já lhe tinha “plantado
no bucho um Zuzinha”. E, assim, multiplicavam-se as opiniões,
enquanto o Zuza, fazendo ouvidos de mercador, não se dava ao trabalho
de desfazer boatos – “Que se fomentassem todos. Não tinha que
dar satisfações a ninguém por seus atos”.

Um belo domingo a Matraca lembrou-se outra vez de curtir o couro ao Zuza
em redondilhas escandalosas que enchiam quase toda uma página. Os vendedores
do pasquim atravessavam as ruas em disparada esbaforidos, apregoando alto
e bom som o Namoro do Trilho de Ferro.

Em todas as esquinas surgiam meninos maltrapilhos sobraçando o jornaleco,
arquejantes sob a luz crua do sol que incendiava a cidade nesse luminoso meio-dia
de novembro.

O casarão do governo, acaçapado e informe, com o seu aspecto
branco e tradicional de velho edifício português do tempo do
Sr. D. João VI, com a sua fila de janelas, alinhas à maneira
de hospital, espiando para a praça do General Tibúrcio, parecia
dormir um sono bom de sesta, batido pelo sol, na mudez solene de um monumento
arqueológico. Tinha dado meio-dia na Sé; ainda vibrava no espaço
iluminado e azul a última nota das cornetas.

Àquela hora o estudante acabara de almoçar com o presidente,
e, de pernas cruzadas, reclinado numa cadeira de balanço, dedicava-se
a fumar tranqüilo o seu havana mais o José Pereira, na larga sala
de recepção do palácio.

De repente:

– A Matraca a 40 réis! O namoro do Trilho de Ferro! O estudante e
a normalista! Grande escândalo!

Um menino passava gritando a todo pulmão, numa voz fina de adolescente,
as notícias da folha domingueira.

Zuza – com o rosto afogueado pelo Bordeaux que tomara ao almoço –
estremeceu na cadeira.

– Hein?

O vendedor de jornais repetia a lengalenga lá fora, na praça.
Então o estudante, fulo de raiva, sacudindo fora o resto do charuto,
levantou-se e foi direto à janela.

– Psiu! Psiu! Ó menino da Matraca!

– Eu?

– Sim, você mesmo!

Enquanto se esfrega um olho os dois encontraram-se em baixo na porta do palácio.

– Que está você a gritar, seu patife? perguntou Zuza segurando
o vendedor pelas orelhas.

– Nada, seu dotô; é o namoro do Trilho…

– Você ainda repete, seu grandíssimo corno!

E, depois de encher o pequeno de petelecos, o futuro bacharel tomou-lhe todos
os exemplares da Matraca, rasgando-os imediatamente.

O outro abriu-lhe a goela a chorar encostando-se à parede, com a cabeça
entre os braços.

– E puxe! continuou o Zuza implacável, com o seu olhar de míope.
Vá, vá, vá e diga ao dono desta imundície que
eu ainda lhe quebro a cara a bengaladas, hein? Vá, vá, vá…

O pequeno não teve outro jeito senão ir-se arrastando pela
parede, muito triste, resmungando, protestando nunca mais vender a Matraca,
enquanto o Zuza explicava o caso ao José Pereira e ao presidente, que
o receberam com uma explosão de risos.

O caso não era par rir, dizia ele formalizado limpando os óculos
com a ponta do lenço de seda. O caso não era para rir, que diabo!
Ainda havia de quebrar a cara do redator da Matraca. Aquilo excedia as raias
do decoro e do respeito que se deve ter à sociedade. Que essa! Não
era nenhum filho da mãe que estivesse a servir de judas a Deus e ao
mundo. Era assim que se resolviam questões de dignidade pessoal – à
bengala!

– Mas vem cá, ó Zuza, disse amigavelmente o fidalgo paulista;
tu perdes o tempo e o latim com semelhante gente…

– Eu já o aconselhei, interrompeu José Pereira. O desprezo
é a arma dos fortes.

– Qual desprezo, hein? O desprezo é a arma dos covardes. Eu cá
resolvo as coisas positivamente a bengaladas.

– Quantas já destes ao redator da Matraca? – perguntou José
Pereira para confundir o Zuza.

– Não dei nenhuma ainda, mas pretendo, antes de me ir embora, quebrar-lhe
os queixos, sabe você?

O presidente para não provocar mais a bílis do Zuza perguntou,
a propósito de jornais que se ocupavam da vida alheia, se tinham lido
o Pedro II, e a conversa descambou para o terreno árido da política
local.

– Que diz o papelucho? perguntou fidalgo de dentro dos seus grandes colarinhos
lustrosos.

– A mesma coisa de todos os dias, respondeu José Pereira com um gesto
de desprezo. Que você é um péssimo presidente, que você
gosta de tomar champagne, e, finalmente, que você “vai encaminhando
as coisas públicas para um abismo”.

– Ora, suporte-se uma coisa destas!, saltou o Zuza. Eis aí: é
ou não para se dar o cavaco?

– Mas, Zuza, eu vou respondendo a cada artigo com a demissão de dez
funcionários amigos da oposição. Queres ver uma coisa?…
Que dia é hoje?

– Domingo…

– Pois bem, vou mandar lavrar a demissão de alguns empregados públicos,
que se dizem miúdos, com a data de hoje. Eis aí está
como se resolvem questões desta ordem. Insultam-me, não é
assim? injuriam-me, acham que sou mau, que não tenho juízo,
que sou indiferente à sorte do Ceará… Pois bem, hoje mesmo
muita gente vai pagar pelos diretores do tal partido. Nada mais simples, não
achas?

Ante a resolução pronta e decisiva do presidente o Zuza ficou
perplexo. Decididamente era um grande homem aquele!

– Mas olha que vais reduzir à miséria muitas famílias…

O presidente teve um sorriso de suprema indiferença àquelas
palavras do estudante e dirigiu-se à secretaria com o passo firme de
quem caminha para uma ação nobre com o seu belo porte de diplomata.

Zuza pretextou uma forte enxaqueca e abalou a pensar no vendedor da Matraca.
Tinha feito mal em esbofetear o rapazinho, porque afinal de contas o pequeno
estava inocente, nada tinha que ver com os desaforos publicados. Era um simples
vendedor, coitado.

Enfiou pela rua da Assembléia, macambúzio, com um ar indolente,
chapéu derreado para trás, riscando o chão coma bengala,
muito distraído.

“- Que diabo! A gente sempre faz asneiras…”

E, pecador arrependido, entrou em casa esbaforido, soltando, logo à
entrada, um bocejo de velho preguiçoso.

Entretanto a demora do Zuza na capital cearense começava a inquietar
o coronel Souza Nunes. Era época de exames e o estudante nem sequer
falava em tirar passagem para o Recife onde já se devia achar a fim
de concluir o curso.

– Se lhe entrasse na cabeça a idéia de casamento com a tal
senhora normalista, então, adeus, pensava o coronel; ia tudo águas
abaixo. Seria talvez preciso improvisar um passeio à Europa, do contrário
o rapaz era capaz de fazer uma estralada dos diabos.

Ia falar ao Zuza como pai, ia repreendê-lo severamente, dizer-lhe com
a franqueza rude de um superior para um subalterno que aquilo não podia
continuar, que era tempo de seguir para o Recife, que se preparasse.

Mas o filho tinha umas maneiras capciosas de convencê-lo, fazendo-se
enérgico, revoltando-se contra a maledicência pública,
provando-lhe com argumentos fortes que tudo que se dizia na rua era mentira,
que ele, Zuza, até desejava ir-se logo para Pernambuco, o que decididamente
faria no primeiro vapor.

– O certo é que vapores passam, e tonam a passar e tu vais ficando,
objetou-lhe um dia o coronel que abstinha-se de falar na normalista.

– … Mas, ora, há tempo bastante para tudo. Os exames começam
tarde este ano.

– Qual tarde, meu filho! tu estás perdendo um tempo precioso quando
já devias estar lá.

Havia ente os dois, pai e filho, uma familiaridade moderna, como se fossem
apenas irmãos.

A esposa do coronel é que não se envolvia em questões.

Adorava o filho, é verdade, tratava-o com todo carinho, tinha orgulho
nele, mas, sempre muito boa, respeitava as resoluções do Zuza
e evitava contrariá-lo na mais pequena coisa. Demais, D. Sofia estimava
até que o filho se demorasse o mais possível em sua companhia.

A formatura do Zuza era para ela uma questão secundária que
havia de se resolver mais cedo ou mais tarde; de si para si achava que o estudante
tinha pouco amor aos estudos, mas não revelava este seu pensamento
a ninguém. Vivia constantemente incomodada, com fortes dores no útero
provenientes de um parto infeliz em que fora preciso arrancar a criança
a fórceps.

Era uma senhora de quarenta anos com todos os característicos de uma
boa esposa; inimiga de passeios, importando-se pouco ou nada com a vida elegante,
arrastando a sua enfermidade incurável pelo interior sossegado da casa.
O Zuza tinha-lhe uma afeição supersticiosa. D. Sofia era a única
mulher sincera e boa no mundo a seus olhos de filho agradecido. Um pedido,
um desejo de sua mãe era satisfeito imediatamente, sem considerações,
custasse o que custasse.

Ela, por sua vez, a pobre senhora, retribuía-lhe o afeto com a mesma
dedicação, com o mesmo desprendimento, não contrariando
o mais leve pensamento do rapaz.

“- É o que me obriga vir ao Ceará, dizia ele, é
minha velha, do contrário jamais eu tornaria a esta província
insuportável.”

Mas entravam e saiam vapores e ele deixava-se ficar com o seu tédio,
preso irresistivelmente aos olhos cor de azeitona da normalista como a uma
forte cadeia de ferro. “- Tinha tempo, tinha tempo…” repetia,
decidido a passar o Natal em, Fortaleza. Que diabo! deixassem-no ao menos
provar o tradicional aluá. Os exames? ninguém se incomodasse,
faria-os em março; era até melhor, porque assim podia estudar
mais e “fazer figura”.

E os dia passavam e cada vez mais crescia no seu espírito o desejo
veemente, a ambição romântica de possuir completamente
aquela rapariga que se tinha apoderado de todo o seu coração.
Queria para esposa uma mulher nas condições de Maria do Carmo,
órfã, de origem obscura e pobre. Decididamente casava-se desta
vez embora isso custasse algum desgosto ao pai. Todo homem deve ter a liberdade
de escolher a mulher que melhor lhe quadrar.

– Mas olha que a rapariga é normalista… lembrava José Pereira
maliciosamente.

Que importava isso? Fazia muito bom juízo da sociedade cearense para
não acreditar que todas as normalistas do Ceará fossem indignas
de um rapaz de certa ordem. O que queria é que a pequena soubesse corresponder
à sua confiança.

Capítulo IX

Foi num sábado, à noite, que se realizou cerimoniosamente,
com toda a pompa de uma festa de província, o casamento da Lídia
com o guarda-livros, na igreja de N.S, do Patrocínio.

Às sete horas parou à porta da viúva Campelo um carro
e saltou o Loureiro todo de preto, gravata branca, o cabelo lustroso, repartido
ao meio em trunfas, empunhando o seu famoso clak. Estava glorioso dentro da
sua casaca de pano fino mandada fazer especialmente para o ato.

Que festa na rua do Trilho!

No quarteirão compreendido entre a rua das Flores e a do Senador Alencar,
notava-se um movimento desusado de gente que se debruçava às
janelas e parava na calçada e nas esquinas para esperar a saída
dos noivos. Uma curiosidade flagrante estampava-se na fisionomia dos moradores
que assistiam basbaques à chegada dos carros, comunicando a sua ruidosa
alegria àquele pedaço de rua habitualmente silenciosa e sossegada.

Havia folhas tapetando o chão defronte da casa da viúva onde
reinava agora uma estranha aglomeração de pessoas de ambos os
sexos, compactas, abafadas, espremidas entre as quatro paredes da pequena
sala de visitas.

A noiva estava acabando de colocar a grinalda quando entrou o Loureiro muito
teso com um riso amável e desconfiado que lhe arrebitava o bigode espesso.
Dois sujeitos, também encasacados, de luvas, foram recebe-los à
porta. -“Chegou o homem”, anunciou uma voz, e a estas palavras
cresceu o zunzum propagando-se por ali fora entre os curiosos que se acotovelavam
à porta da rua.

E logo toda gente a repetiu transmitindo-se a grande notícia -“chegou
o noivo!” – e todos os olhares caíram de chofre sobre o guarda-livros
transfigurado em herói de comédia.

D. Amanda, muito azafamada, tomou-o pelo braço e conduziu-o à
sala de jantar para lhe oferecer um calizinho de vinho do Porto.

Loureiro queixou-se do calor sacando fora as luvas, rubro, com a testa reluzente
de óleo, metido num colarinho em folha, todo ele recendendo opopánax.
Nunca ninguém o vira tão bem disposto, tão lépido,
com um ar ao mesmo tempo condescendente e soberano de capitalista sem débito.
-“A noiva estava pronta?” – perguntou. E, sem esperar resposta,
começou a contar um incidente que lhe sucedera no hotel no momento
em que se vestia. Nada, uma infâmia que não lhe atingia sola
do sapato. Uma carta anônima contra a reputação de Lídia,
coisas do Ceará, coisas dessa terra…

Incomodara-se a princípio, o sangue subira-lhe à cabeça
ao ler semelhantes torpezas, mas acalmara-se logo, porque não valia
a pena a gente incomodar-se por uma carta anônima escrita em péssima
letra e, o que era mais, acrescentou convicto o Loureiro, “sem assinatura”.

A viúva não se inquietou, atarefada, suando, muito apertada
na sua toilette de seda escarlate, os grandes seios ameaçando romper
o corpete e uma rosa no cabelo. – Calúnias, nada mais, observou servindo
o vinho. O guarda-livros emborcou o cálice à saúde da
noiva, gabando a boa qualidade do Porto.

A pequena sala de jantar, caiadinha de novo, tinha agora outro aspecto mais
asseado e alegre, sem manchas de gordura nas paredes amarelecidas, como d’antes,
com vasos de flores no aparador, iluminada à vela de espermacete. Sobre
a mesa do centro coberta com um pano novo de riscadinho encarnado, pousavam
duas lanternas em forma de sino, jarros, pratos com bolos e garrafas intactas
dispostas em simetria. O chão de tijolo ainda estava meio úmido
da baldeação que se fizera na véspera. De resto os mesmos
móveis do costume: um lavatório de ferro com espelho defronte
do corredor, a mesa de jantar, o aparador de nogueira e o guarda-louça,
uma velha peça que fora do tempo do marido de D. Amanda.

A verdadeira casa do Loureiro, o ninho em que ele ia passar a lua-de-mel
com a Lídia, era no Benfica, uma casinha também de porta e janela,
mas muito fresca e alegre, nova, ainda cheirando à tinta. Resolvera
não fazer festa. Um “copito” de vinho aos amigos, um taco
de bolo e o deixassem em paz com a sua “querida”. Tinha feito
muitas despesas com o casamento. Da igreja iria diretamente para a “chácara”,
onde ficava à disposição dos amigos. Isso de pândega
em noite de núpcias não era próprio, achava uma formidável
maçada. Demais não era nenhum milionário para não
contar o dinheiro que gastava.

Uma miniatura a casinha do Benfica, um sonho do poeta lírico, assobradada,
com a sua fachada azul ainda fresca, recebendo em cheio até o meio-dia
toda a luz do nascente. Logo à entrada havia uma escadinha de três
degraus, d’onde se via, lá dentro, nitidamente, como por um cristal
muito límpido, a sala de jantar e as bananeiras do quintalejo, de um
verde tenro… Sala e visitas, alcova, comunicando com um quarto, casa de
jantar, varanda, dispensa, quarto para criado, cozinha e quintal, tudo asseado
e confortável, com uns tons aristocráticos matizando a compostura
graciosa dos móveis, papel claro nas paredes, e lustres na sala de
visitas.

Concluídas as obras da casa, o trabalho de renovação,
Loureiro dera-se pressa em mobiliá-la a seu jeito, conforme as suas
posses e os seus hábitos de empregado zeloso e metódico. Não
pedira conselhos a ninguém; escolhera ele mesmo os móveis e
objetos decorativos, tudo novo e lustroso, como se tivesse saído da
fábrica naquele instante. Mandara vir dos Estados Unidos, por intermédio
da casa Confúcio, um piano americano e uma máquina de costura.
E uma vez tudo pronto, tudo no seu lugar, passou uma revista geral na casa,
desde a sala de visitas até ao fundo do quintal, admirando com a alma
cheia de satisfação a espécie de paraíso que ele
próprio criara para si.

“- Sim, senhor, tinha cumprido rigorosamente o seu dever. Estava tudo
que nem um brinco! Agora, sim, podia casar.”

Lídia pasmou diante daquele novo mundo que se lhe oferecia à
vista. Nunca pensara que o guarda-livros soubesse preparar uma casa com tanta
graça. Pelo primeira vez na sua vida o Loureiro revelara-se um homem
moderno e civilizado. Estava encantada! Já agora não invejava
a sorte de Maria do Carmo: o Loureiro podia competir com o Zuza em bom gosto!
Quem diria? Supunha o guarda-livros mais tolo, mais ignorante e sensaborão.
Agora estava convencida de que o seu homem era capaz de fazer figura em qualquer
sociedade. Percorreu todos os aposentos, revistando os móveis, admirando
a qualidade fina dos objetos, com exclamações de íntima
alegria. Sentou-se ao piano e ensaiou uma escala achando-o excelente.

– Esplêndido, hein, mamãe? Melhor que o das Cabraes!

Mirou-se ao espelho, uma peça magnífica, de cristal, que o
guarda-livros comprara num leilão particular por preço exorbitante.
Subia de ponto a satisfação da rapariga. Esteve quase se atirando
ao pescoço do noivo e beijando-o agradecida; conteve-se porém.
A viúva, essa acompanhava a filha, embasbacada, dando graças
a Deus por ter encontrado semelhante genro. -“Olha isto, menina, olha
aquilo!” dizia, muito gorda chamando a atenção da Lídia.

Da sala de visitas passaram à alcova. O guarda-livros guiava-as, na
frente, explicando os melhores detalhes, a procedência dos objetos,
o seu valor. – “Oh, a cama! saltou a Lídia, sentando-se no belo
leito de ferro azul com esmaltes d’ouro, armado à inglesa em
forma de dossel.

Achava muito elegante as camas que se estavam usando. Experimentou o enxergão
de arame calcando-o com o corpo. Magnífico! A viúva também
se sentou um instantinho, e continuaram a visita.

Era quase noite quando se retiraram.

Agora, uma semana depois, num sábado, toda agente falava no casamento
da Campelinho como d’um acontecimento extraordinário. A Campelçinho,
hein? Quem diria!… Uma felizarda! E todos comentavam o fato com ruído,
recapitulando a vida inteira da viúva e da filha, lembrando episódios,
cochichando malícias, prognosticando o futuro da rapariga, admirando
a boa fé do Loureiro. Coitado, ele talvez ignorasse mesmo certos pormenores
da vida da Lídia…

Daí quem sabia? talvez fossem muito felizes. Conheciam-se moças
mal comportadas que, depois, casando-se tinham-se tornado verdadeiras mães
de famílias.

O Guedes, da MATRACA, esse, logo às seis horas começou a beber
no Zé do Gatto mais o Perneta, vomitando todo o seu despeito contra
a Lídia que ele cobria de impropérios aguardentados.

Debalde o Perneta procurava acalmá-lo, o Guedes estava fora de si,
com os olhos ensangüentados, esbravejando como uma fera.

– Deixa-te disso, ó Guedes, aconselhava o Perneta. Olha que te podem
ouvir, homem!

– Que ouçam, que ouçam, cambada de infames!

E batendo no peito orgulhoso:

– Esse aqui beijou muito aquela tipa, sabes? Não preciso dela para
coisíssima alguma, estás ouvindo? Aquilo é uma sem vergonha
muito grande, aquela fêmea!

– Cala a boca, menino…

– Cala a boca, porque? Pensa você que tenho medo de caretas? Hei de
dizer o que eu muito bem quiser, fique você sabendo!

– Quem te diz o contrário, homem de Deus? O que não é
bonito é estares por aí a dizer asneiras.

De vez em quando aproximava-se o Zé Gato e suplicava que não
falassem tão alto, que na rua se estava ouvindo. Mas o Guedes não
atendia a coisa alguma, com o pensamento na Lídia, transbordando cólera,
possesso.

Escureceu e ele ainda lá estava no fundo da bodega esvaziando cálices
de aguardente, a falar desesperadamente.

Às sete horas dois foguetes queimados defronte da casa da viúva
Campelo, no Trilho, deram sinal de que os noivos iam sair. Com efeito, d’aí
a pouco surgiu na calçada a Campelinho caracterizada em noiva, afogada
em seda branca, com uma auréola de imortalidade, cabisbaixa, pisando
devagar, de braço com a firma Carvalho & Cia.

E àquela aparição levantou-se um rumor em todo o quarteirão.
“Já vem, já vem!” era a voz geral.

Logo após vinha o Loureiro com a viúva, em seguida Maria do

Carmo e um rapaz empregado no comércio, D. Terezinha, o Castrinho,
e outras pessoas de mais ou menos intimidade, duas a duas.

O cortejo desfilou a pé, ante a curiosidade indiscreta da vizinhança
que se debruçava na janela para ver melhor a noiva. -“Como aquilo
ia orgulhoso!”, disse Justina Proença, uma paraense equívoca,
vizinha de João da Mata. -“Tão besta é um quanto
o outro”, murmurou a mulher do barbeiro, num muxoxo.

Moleques com tabuleiros de doces na cabeça acompanhavam o préstito.

De repente houve um fecha-fecha na esquina onde iam dobrar os noivos.

Que é? Que foi? Recomeçou o zunzum mais forte, como um zumbido
de abelhas num cortiço e os boatos circulavam vertiginosamente. Toda
a gente queria saber o que era, o que tinha acontecido. A verdade é
que ao aproximar-se o “casamento” da venda do Zé Gato,
saltou de dentro o Guedes, bêbedo como uma cabra, espumando, sem chapéu
e pôs-se no meio da rua a vociferar obscenidades contra a Campelinho
e mais o guarda-livros.

Um escândalo. Soaram apitos; compareceram guardas de polícia;
o Zé Gato saiu à rua para acalmar o borracho; foi alterada a
ordem do préstito; a Lídia ficou branca debaixo do véu
e ia tendo uma síncope; o Loureiro quis avançar contra o desordeiro,
mas foi detido por João da Mata…

Afinal de contas, depois de alguns segundos, fez-se a ordem e o “casamento”
seguiu em paz, direto à igreja do Patrocínio.

O Guedes forcejara por evadir-se dos braços do Zé Gato e d’outro
sujeito, que procuravam conduzi-lo à venda.

– Sou eu que te pedes, ó Guedes, vamos. Deixa de tolices, rapaz; estás
dando escândalo, homem!

– Não vou, porque não quero, está ouvindo? Não
vou, porque não quero. Eu hoje faço o diabo!

E agachava-se, e caía p’ra trás e tombava para os lados,
sem gravata, os olhos esbugalhados, os cabelos em desordem, como um doido.
Foi uma luta para acalmá-lo.

Por fim o Zé Gato mandou vir uma xícara de café sem
açúcar, deu-lhe a cheirar limão, e em pouco, o redator
da Matraca dormia beatificamente, debruçado sobre a mesa de ferro onde
serviam-se as bebidas.

– Coitado! lamentou o vendeiro. Um talento famoso! É um segundo tomo
de Barbosa de Freitas…

Cerca de uma hora depois voltaram os noivos com o seu bizarro cortejo de
amigos e amigas, mas agora vinham os dois na frente abrindo caminho, conversando
baixinho, com um belo ar de familiaridade. Nas fileiras do préstito
havia um rumor de franca liberdade. Falava-se um pouco alto, ouviam-se risadinhas
gostosas, tinha-se perdido a cerimônia grave de momentos antes. A volta
não se parecia com a ida. A alegria dos noivos comunicava-se instintivamente
aos circunstantes como se na verdade estes compartilhassem da íntima
felicidade daqueles.

Outra vez a casinhola da viúva encheu-se que num um ovo. No meio dos
convidados havia estranhos que invadiam a sala sem cerimônia, imiscuindo-se
no tumulto de gente como se fossem amigos velhos, de paletó saco e
gravatas de cores espaventosas.

Ninguém os conhecia, mas ninguém ousava despedi-los, deixando-os
ficar, por uma condescendência razoável. Curiosos de ambos os
sexos debruçavam-se da parte de fora das janelas para dentro, espremidos
uns contra os outros.

Os noivos tinham se sentado no sofá, defronte à janela, aconchegados,
prelibando as delícias do matrimônio na casinha do Benfica.

Loureiro limpava devagar com o lenço recendendo opopánax o
suor que lhe corria em gotas da testa, encarando com supremo orgulho a curiosidade
pulha dos circunstantes.

Pousava os pés sobre o tapete deixando ver as meias de seda cor de
carne com pintas de ouro.

Lídia estava divina com sua suntuosa toilette de noiva comprimindo-lhe
os quadris rijos e carnudos, muito séria, o rosto afogueado.

O guarda-livros contemplava-a de instante a instante com um profundo olhar
apaixonado de dono que acaricia um objeto querido, sentindo-se mais que nunca
irresistivelmente atraído pela formosura sensual da Campelinho.

D. Amanda, sempre muito solícita, veio convidá-los para a ceia:
que estava pronto o chá, e logo toda gente enfiou pelo corredor atrás
dos noivos, sequiosa de cerveja e vinho do Porto.

Um rubor de ocasião solene tomou as faces do Castrinho, disposto já
a brindar os noivos num grande rasgo de eloqüência demostênica.

A saleta de jantar resplandecia à luz dos dois castiçais de
vidro com mangas em forma de sino, colocados nas extremidades da mesa. A um
canto, sobre uma mesinha de pinho, uma bateria de garrafas de cerveja desafiava
a gan&aacirc;ncia dos convidados. Houve um assalto à mesa. Todos acercaram-se
dela com a avidez de gastrônomos, e, antes que os noivos tomassem assento
à cabeceira, já havia alguém sentado no extremo oposto.
O Castrinho não pode reprimir um – oh! de indignação,
que felizmente passou despercebido. -“Sentem-se, sentem-se”, ordenava
a viúva, inquieta como uma barata à volta da mesa, indicando
as cadeiras. Todos se sentaram com ruído, acotovelando-se. Ao lado
dos noivos os padrinhos, Carvalho & Cia. e a esposa, tinham o ar modesto
de quem se vê cercado de honras imerecidas. O Castrinho que não
faltava à festa alguma dessa ordem, sentou-se ao centro com uma comoção
visível no olhar agitado.

Os curiosos da rua tinham invadido o corredor e assistiam em pé, ao
redor da mesa, àquela cena banal de doze pessoas que comiam bolo à
guisa de pirão de farinha; ao todo eram quatorze, mas o Loureiro e
a Lídia, por um escrúpulo mal entendido, apenas provaram o delicioso
manjar e cruzaram o talher.

O Castrinho não se fez demorar muito. Quando menos se esperava, ei-lo
de pé, empunhando o cálice.

– Silêncio, silêncio! advertiu uma voz.

O poeta das Flores Agrestes pigarreou solenemente abrangendo com um olhar
vitorioso toda a saleta, e enfiando a mão direita no bolso da calça.
com um grande ar de tribuno acostumado a falar às massas, começou:

– Meus senhores… e minha senhoras….

Fez-se um silêncio grave e recolhido, em que se destacava apenas, muito
de leve, o ruído dos talheres que continuaram a funcionar ativamente.

– Eu faltaria ao mais sagrado dos deveres….

Uma voz: – Não apoiado.

– … Si neste momento solene, em que toda a natureza veste-se de gaias para
receber em seu vastíssimo seio os noivos presentes… eu, o mais humilde
amigo desta casa…

– Não apoiado…

-… não erguesse a minha fraca voz… para saudar… para saudar
o himeneu destas duas criaturas (apontando para os noivos) nascidas “no
mesmo galho, da mesma gota de orvalho”… como diria o nosso Casimiro
de Abreu…

– Bravo! murmurou o mesmo apartista dos não apoiado numa voz cava,
com a boca cheia.

O orador, visivelmente inquieto, sem tirar a mão de dentro do bolso,
endireitou a gravata com pancadinhas suaves, e, mergulhando o olhar na fruteira,
continuou:

– Sim, meus senhores… e minhas senhoras, o casamento é a base de
toda a sociedade civilizada; o casamento, como dizia certo escritor, cujo
nome não vem ao caso citar… o casamento é a mais nobre de
todas as instituições, e o homem que se casa dá um passo
para o infinito, isto é para Deus!…

Uma salva de palmas cobriu as palavras do Castrinho, que agradeceu comovido.
No peito de sua camisa, muito alva e lustrosa, reluzia uma pedra duvidosa.

Crescia a animação da festa. Os talheres batiam nos pratos
com mais força e as palavras do liceista comunicavam ao auditório
certo entusiasmo sereno que se traduzia em apetite voraz e insaciável
secura nas gargantas. Ouviam-se trabalharem as mandíbulas.

Houve uma pausa depois da qual o Castrinho, tomando o cálice cheio,
concluiu com ênfase:

– Portanto, eu brindo ao ditoso par, desejando-lhe um futuro de rosas banhado
pelos eflúvios do amor conjugal…

E, escorropichando o cálice:

– Aos noivos!

– Hip, hip, hurra!

Todos se levantaram.

– Loureiro…

– D. Lídia…

– Sr. Castro não quer se servir de um pedacinho de bolo de mandioca?
ofereceu a viúva por trás do poeta.

– Agradecido, minha senhora, agradecido… Estou satisfeito.

– Então, mais um copo de vinho…

Aceitava, pois não.

– Não façam cerimônia, minha gente, observou D. Amanda.
Já acabou, Sr. João da Mata? Um pinguinho de doce de caju, Sr.
Alferes… E você, menina, coma sem cerimônia.

Maria do Carmo não podia disfarçar a tristeza, a ponta de inveja
concentrada que lhe tomava de assalto a alma inteira. Sentara-se à
mesa por civilidade, para corresponder aos reclamos da viúva, mas o
seu único desejo era ir-se embora para casa; a festa da amiga fazia-lhe
mal aos nervos, e, demais, o Zuza proibira-lhe de ir a qualquer parte onde
ele não estivesse. Fora ao casamento da Lídia, porque o padrinho
a obrigara, não por sua espontaneidade. E agora ali estava casmurra,
silenciosa, com um arzinho recolhido de filha de Maria, vendo sem ver, ouvindo
sem ouvir, as pessoas e os ruídos, numa abstração infinita,
no meio de toda aquela gente que festejava o casamento da amiga. Agora, mais
do que nunca, por um excesso de sensibilidade nervosa, doía-lhe no
coração de pomba desolada não poder, como a Lídia
e como outras tantas raparigas felizes, amar livremente, sem ter que obedecer
aos caprichos de um padrinho atrabiliário e despótico como João
da Mata. Enquanto os outros divertiam-se sorvendo cálices de vinho,
saudando aos noivos, ela, toda entregue a seus pensamentos, permanecia muda
e bisonha como quando pela primeira vez. apresentara-se à sociedade,
logo ao chegar de Campo Alegre, menina ainda, matutinha. Ah! naquele tempo
ela tinha o seu papai e a sua mamãe perto de si, não era como
agora, anos depois, uma simples, uma pobre, uma desprezada órfã,
assistindo com uma grande tristeza egoísta derramada nalma à
felicidade alheia triunfante…

– Atenção, meus senhores! Atenção!

Desta vez ia falar o alferes
Coutinho, quartel mestre do batalhão, um moreno, de costeletas, cabelo
penteado em pastinhas, certo ar arrogante de pelintra acostumado a todas as
festas, desde os sambas do Outeiro aos bailes do Clube Iracema, magricela,
olhos cavados. Nas horas d’ócio dava-se ao luxo de fabricar sonetos
no gênero piegas dos últimos trovadores de salão.

Arrastava ao piano as valsas em moda e dizia-se exímio tocador de
flauta.

Convidado à toda parte, não perdia ocasião de exibir-se
na poesia ou na música. Tinha fama de primeiro recitador do Ceará,
ninguém como ele sabia marcar um quadrilha, todo enfezado, sempre de
lenço na mão, metido invariavelmente na sua farda de alferes
com colete branco.

Houve um silêncio profundo. Todas as vistas caíra, de chofre
sobre o militar como se de sua boca fossem sair preciosas revelações.

Era o alferes Coutinho? Oh? magnífico! Psiu! psiu!… Silêncio!…

– Meus senhores. Respeitabilíssimas senhoras… Não dispondo
de dotes oratórios, tão úteis nas ocasiões solenes
como esta, eu, que tenho a honra de pertencer à falange dos discípulos
de Castro Alves, Casimiro de Abreu, Varela e tantos outros astros de primeira
grandeza, que brilham no firmamento da poesia brasileira, eu vou ler uns versos
de minha lavra, que tomei a liberdade de dedicar aos donos desta festa inolvidável…

Nem um aparte. O mesmo silêncio cauteloso e recolhido. A noiva abaixou
a cabeça afetando modéstia e Loureiro fixou o olhar atrevidamente
no orador. Mas o Coutinho, calmo e desembaraçado, sacou do bolso da
farda um papel, e lendo:

– Noite de Núpcias é o título dos pobres versos…

– Não apoiado…

– … que tenho a honra de oferecer a Excia. Sra. D. Lídia, uma das
estrelas mais fulgurantes que ornam o céu da sociedade cearense…

Lídia estremeceu com um belo sorriso de agradecimento,

-… e ao Sr. Dias Loureiro, inteligente e zeloso guarda-livros da nossa
praça, ambos, portanto, dignos um do outro e da nossa eterna amizade…

– Apoiadíssimo, confirmou Carvalho & Cia, palitando os dentes.

Sem mais preâmbulos, o alferes entrou a declamar com uma convicção
admirável os tais versos de sua lavra, uma enfiada de palavrões
antigos e bolorentos, que ele procurava animar com sua voz de trovão,
seca e cavernosa, brandindo o papel com a mão esquerda e a direita
gesticulando como se estivesse a marcar compasso de música.

Ao terminar o último verso –

“Chovam bênçãos de amor sobre os que casam!”

Uma salva de palmas forte e prolongada ecoou na pequenina sala.

– Bravo! muito bem! muito bem!

E o poeta sentou-se agradecendo com repetidos movimentos de cabeça
as manifestações de que era alvo. Diversas pessoas levantaram-se
e foram cumprimentá-lo de perto. Um velho calvo que se sentava a seu
lado, lembrou-se de perguntar-lhe ao ouvido “Se o Sr. Alferes era cearense”.

– Não senhor, respondeu o Coutinho, voltando-se gravemente, sou guasca,
nasci na cidade de Porto Alegre.

E contou quando viera para o ceará, disse a sua grande simpatia por
essa província e que pretendia casar com uma cearense.

O “brinde de honra” foi feito em duas palavras por Carvalho &
Cia à D. Amanda, “encarnação de todas as virtudes
domésticas, senhora de incomparável brandura e sisudez”.

– Hip! hip! hip! hurrah!

Foi um delírio esse final de banquete nupcial, em que tomavam parte
o exército representado pelo Alferes Coutinho, a poesia na pessoa do
autor de Flores Agrestes e o comércio em grosso simbolizado no ventre
obeso de Carvalho & Cia. Esgotaram-se as botelhas de vinho do Porto e
de cerveja com um açoitamento de quem não bebia água
há três dias e depara uma piscina abundante do precioso líquido.
E, ao levantarem-se da mesa, os convidados olhavam com soberano desdém
a toalha manchada de nódoas de vinho sobre a qual havia um confusão
grotesca de copos e pratos em desordem, abandonados ali como restos de um
festim sardanapalesco. Uma coisa tinha sido respeitada e conservava-se no
mesmo lugar em que fora colocada pela mão zelosa de D. Amanda, era
o paliteiro de prata representando um alcaide com chapéu de três
bicos e aspecto napoleônico, de braços cruzados , numa imobilidade
de objeto de luxo que se receia tocar por escrúpulo.

Os espectadores intrusos evacuaram o corredor com a mesma facilidade de ligeireza
com que se tinham introduzido e depressa a sala de jantar ficou entregue à
viúva e ao criado. que se ocuparam de cobrir os restos dos bolos, recolhendo-os
ao guarda-comidas. O troço dos comensais, homens e senhoras, enchiam
a sala de visitas, cujas cadeiras estavam todas ocupadas, e palrava agora
desembaraçadamente numa atmosfera pesada de fumaça e heliotrópico,
– umas abanando-se com os grandes leques de cetim, outros com os lenços
, porque o calor crescia. Transpirava-se por todos os poros, o que fazia o
alferes Coutinho trazer constantemente o lenço no pescoço, resguardando
o colarinho, onde já havia sinal de suor. A janela estava tomada por
algumas pessoas que formavam roda ao redor do Loureiro, em pé. Senhoras
entravam e saíam da alcova com ar desconfiado, compondo discretamente
os vestidos.

Deram dez horas no relógio da Sé, cujas badaladas faziam-se
ouvir, graves e sonolentas, em todo o âmbito da cidade.

Dez horas! Carvalho & Cia. consultou o relógio. Havia uma pequena
diferença de dez minutos. Safa! o tempo voava!.

E, alto, levantando-se:

– Vamos, Quininha?

– É muito cedo, acudiu a Lídia, que conversava com Maria do
Carmo no sofá.

– É verdade, minha gente, saltou D. Terezinha, saindo da alcova. Os
noivos precisam descansar. Dez horas!

– Estávamos tão distraídos! disse o alferes Coutinho
puxando os punhos.

– Vamos, vamos, repetiram muitas vozes.

– É cedo, minha gente! implorava a Lídia muito amável,
com um sorriso de irresistível faceirice.

Imediatamente todos se levantaram impulsionados pela mesma idéia,
à procura dos chapéus, num reboliço crescente, aos encontrões,
enfiando pela alcova e pelo corredor.

Estrondou um bocejo senil e demorado, que se propagou por ali a fora – era
o velho calvo, de óculos, que se tinha encafuado a um canto da sala
cochilando, e que despertara agora num espreguiçamento como se estivesse
em sua própria casa.

As senhoras agasalhavam-se nos fichus, defronte do espelho.

D. Amanda, de um lado para outro, de dentro para fora da alcova, não
descansava as pernas.

Começaram as despedidas.

Que de beijos estalados à queima roupa! Em pé no meio da sala,
os noivos, competentemente formalizados, agradeciam reconhecidos a chuva de
felicitações que caiam sobre eles à guisa de flores desfolhadas
sobre suas cabeças, ao mesmo tempo que Lídia ia distribuindo
a uns e outros botões de laranjeiras.

Que fossem muito felizes; que tivessem uma eterna lua-de-mel; que fossem
muito unidos sempre como dois irmãos; que não esquecessem as
velhas amizades…

– Olhe, minha filha, aconselhou D. Terezinha com a mão no ombro da
Lídia, depois de a ter beijado. Olhe, seja sempre boa para seu maridinho,
faça o que ele quiser, o que ele mandar. O homem é que faz a
mulher e a mulher é que faz o homem. Adeus, ouviu?

Todos tiveram mais ou menos o que dizer aos noivos.

– Não esqueça o que lhe pedi, ouviu Lídia? recomendou
de fora uma voz de mulher.

– Boa noite!

– Sejam felizes!

– Durmam bem!…

Em pouco todos tinham se retirado. Havia ainda alguns curiosos fora, na calçada.
Loureiro mandou aproximar o carro que o esperava. A rua estava silenciosa
e escura como se fosse alta noite. Defronte, em casa de João da Mata,
fecharam-se as portas apagando-se completamente a última luz que clareava
aquele trecho da rua do Trilho.

D. Amanda chamou a filha à alcova onde estiveram conversando alguns
minutos, e depois, abraçando-a ternamente com os olhos úmidos:

– Deus os conduza em paz…

Lídia beijou comovida a mão da viúva e, dando o braço
ao Loureiro, entrou no carro que rodou em direção de Benfica,
com a sua luzinha amarela tremeluzindo no escuro.

Minutos depois D. Amanda recebia, como de costume, o Batista da Feira Nova…

X

Quando chegaria sua vez? pensava Maria do Carmo nessa noite, sem poder conciliar
o sono, com um desalento profundo no coração apreensivo. Que
tal , hein? O Sr. Zuza não se resolvia a pedi-la em casamento, sempre
com evasivas, pretextando tolices, como se estivesse tratando com uma biraia
qualquer! Porque isso? porque não se decidia logo a dizer a verdade
fosse ela qual fosse?

Era sempre melhor do que estar perdendo tempo sem tomar uma resolução
franca e definitiva. Quem sabe? talvez o padrinho não fizesse questão
agora que a tratava tão bem, que lhe fazia todas as vontades… Uma
felizarda a Lídia!… Casara com um guarda-livros, mas embora, casara…

E imediatamente vinha-lhe uma confiança ilimitada no estudante. Já
estava tão acostumada com ele que nem era bom pensar em uma deslealdade.
Paciência, paciência – Roma não se fez em um dia… Consolava-se
ao penar nas confidências íntimas do futuro bacharel, embebidas
de ingênua e tocante sinceridade, na franqueza ativa com que ele dizia
todas as suas idéias e todas as suas ações, como se já
fossem noivos. Zuza contava-lhe tudo com a maior simplicidade, dava-lhe conta
de seus passeios, de seus planos, de suas intenções.

Pode-se mesmo dizer que não havia segredo entre os dois. Era lá
possível que o Zuza, aquele Zuza tão amável, tão
sincero, tão bom a esquecesse, ele que reprovava com frases repassadas
de indignação o procedimento de certos indivíduos para
quem a mulher outra coisa não é senão uma espécie
de fruto amargo que a gente prova e deita fora? Qual! O Zuza era incapaz de
descer até onde começava o rebaixamento do caráter de
um homem…

Animava-se ao fazer estas considerações tão simples,
tão espontâneas, saídas do mais íntimo de sua alma
enamorada. Tinha momentos em que tudo afigurava-se-lhe uma comédia,
cujo protagonistas – o estudante – aprazia-se em vê-la rendida a seus
pés por um simples capricho de rapaz do mundo que se diverte à
custa de muitas raparigas como ela, ainda não corrompidas pelos costumes
modernos. Nascida no interior de uma província essencialmente católica,
educada em um colégio religioso, o convívio com as suas colegas
da Escola Normal não lhe apagara de todo essa bondade característica
dos filhos do sertão, que se revela em uma confiança ingênua
nos outros. Por isso é que ao mesmo tempo Maria não podia acreditar
que o Zuza faltasse à sua palavra para com ela. Duvidava às
vezes, mas não perdia de todo a confiança, porque amava deveras,
e o amor transforma a pessoas ou objeto querido numa espécie de ídolo,
que a gente adora como a um modelo de virtudes incomparáveis.

Quando chegaria sua vez? E a figura de João da Mata surgia-lhe aos
olhos como uma visão pavorosa, que a fazia estremecer da cabeça
aos pés. Sim, o padrinho não gostava que se falasse no Zuza,
implicava com ele, odiava-o gratuitamente, sim, gratuitamente, porque o rapaz
nunca lhe fizera o menor mal, até pelo contrário, uma vez lhe
emprestara cinqüenta mil réis, e ela o sabia pela boca de D. Terezinha.
Que infelicidade, a sua, que caiporismo! além do padrinho não
gostar do Zuza, aquela casa parecia agora um verdadeiro inferno: era o padrinho
para um lado e a madrinha para o outro, ambos de cara fechada, sem se trocarem
palavras, e ela, Maria, para um canto, coitada, sem amigas, sem parentes,
vivendo uma vida de criminosa…

Que maldito inferno!… Antes nunca tivesse nascido.

Onze horas… meia noite! e ela ainda velava, sem um bocadinho de sono, a
matutar na vida, a pensar em frioleiras.

Entrou a parafusar no casamento da Lídia, rememorando toda a festa,
tintim por tintim, com a pachorra de quem procura armar um castelo de cartas.
– Assim mesmo tinha ido muita gente, sim senhora, parecia até uma festa
de gente rica. Inegavelmente a Lídia estava encantadora debaixo do
véu de noiva. Nunca vira a igreja de N.S. do Patrocínio tão
cheia de povo! Ah! mas fora uma coisa horrorosa o escândalo provocado
pelo Guedes. Que horror! Se fosse ela, Maria do Carmo, teria caído
no meio da rua com um ataque…

Palpitavam-lhe a imaginação, como num sonho, os menores acidentes
daquela noite, em que todos tomaram o seu cálice de vinho e só
ela, irressistivelmente mordida de inveja por ver a sua maior amiga num torno
de felicidade, ela somente se deixara ficar esquecida como qualquer lagalhé,
na impotência da sua tristeza. Entretanto, se não fora o padrinho,
ela também podia breve estar de caminho para a igreja, ao lado de seu
noivo, metendo inveja às outras. Então é que a festa
seria d’estrondo! O coronel Souza Nunes abriria o seu salão iluminado
como um palácio real, e haveria dança e música e um banquete
lauto. E iria o presidente da província e toda a gente grande do Ceará.
Que bom que seria!…

Nisto adormeceu e logo tornou-lhe a aparecer em sonho o negro Romão
com as calças arregaçadas e um barril na cabeça a gritar
-Arre corno! cercado de garotos que lhe atiravam pedras e sacudiam-lhe punhados
de farinha-do-reino na carapinha, por detrás no meio de gritos e assobios.

Depois o preto deixou cair o barril, que se derramou, inundando a calçada
de imundícias, e ei-lo montado num cavalo magro, a fazer de palhaço
de Circo, uivando uma porção de asneiras, que a molecagem replicava
sempre com o mesmo estribilho, a uma voz: – É sim, sinhô!

Depois…. (não se lembrava o resto)

Davam duas horas no relógio do vizinho, quando acordou muito assustada
e nervosa, a olhar para todos os lados, sem consciência exata do ambiente
que a cercava. Teve um sobressalto ao ver sobre uma cadeira, perto da rede,
o vestido com que fora ao casamento. – Credo, que susto!

A luzinha da vela de carnaúba agonizava numa poça de cera derretida.

E essa! Era a segunda vez que sonhava com o Romão, sem quê nem
p’ra quê… Com certeza estava para lhe suceder alguma desgraça.
Que esquisitice! hum, hum,…

A porta do quarto, que se conservava entreaberta, rangeu nas dobradiças,
como se alguém a empurrasse de manso. Apoderou-se de Maria um pavor
terrível; arrepiaram-se-lhe os cabelos, e uma extraordinária
sensação de frio percorreu-lhe o sangue. Ficou assombrada, sem
se mexer, com o ouvido alerta e os olhos fechados, numa prostração
de quem está sem sentido. Pareceu-lhe ouvir chamar pelo seu nome e
então subiu um ponto o terror que lhe tapava a boca como uma mordaça
de ferro. Abriu os olhos para verificar se com efeito estava acordada e tornou
a fechá-los mais que depressa. Instintivamente fez um esforço
supremo para gritar, para chamar alguém, mas não podia abrir
a boca, estarrecida.

Maria? repetiu a mesma voz, que ela julgava ouvir, uma voz fina, mas abafada,
como se saísse das entranhas da terra.

E logo:

– Sou eu, Maria. É o padrinho…

De feito, João da Mata vinha-se chegando, pé ante pé,
subtilmente, segurando-se à parede, equilibrando-se na ponta dos pés,
como um ladrão, sem o menor ruído, com estalinhos de juntas.

Maria encolheu-se toda debaixo do lençol duvidando. Tremia como um
doente de sezões, embiocada que nem caracol.

– Não grites, Maria, olha sou eu, teu padrinho, tornou João
da Mata, agora quase ao ouvido da afilhada, agarrando-se ao punho da rede.

A rapariga respirou forte, como se saísse de dentro de um buraco,
e pôde abrir os olhos, meio aliviada, presa ainda de uma grande comoção.
Ao medo sucedera-lhe uma apreensão dolorosa, que o seu espírito
repelia como impossível. Não teve tempo de associar idéias,
porque o amanuense foi se sentando na rede, a seu lado. – O padrinho por ali,
no quarto d’ela, àquelas horas?… Estaria sonhando?…

– Padrinho…

– Sou eu mesmo, minha flor… Olha, queres saber uma coisa?… Deixe-me descansar
um bocadinho e eu te direi, ouviste?… Espera…

– Mas, padrinho!…

– Olha, não fales alto… Sou eu, estás ouvindo? eu, teu padrinho
mesmo… Bico…

Maria do Carmo não compreendeu logo a presença de João
da Mata ali

no seu quarto, àquela hora.

Fez-se uma confusão inextricável, caótica, no seu espírito
subitamente assaltado por um turbilhão de idéias sem nexo, disparatadas;
o coração pulsava-lhe forte, como se tivesse acabado de fazer
um grande esforço; operava-se em seu duplo ser moral e físico
um desses abalos extraordinários, que deixam a gente numa prostração
invencível. Pela primeira vez na sua vida achava-se frente a frente
com um homem, alta noite, no silêncio de um quarto escuro. Mal acordada
do terrível pesadelo que acabava de ter, vendo ainda, esboçada
na sua imaginação, a figura hedionda do negro com os bugalhos
injetados, a boca abrindo-se num riso nervoso e alvar, o peito à mostra,
a venta chata, ela permanecia imóvel, olhando para o escuro como uma
idiota.

A luz tinha se apagado completamente. Ouvia-se a respiração
asmática da criada no quarto pegado à sala de jantar. Longe,
nalgum quintal, ladrava um cão. Ao calor insuportável sucedia
o friozinho bom da madrugada.

João estava em ceroula, nu da cintura para cima. Desde que chegara
da festa do Loureiro não fechara os olhos, a fumar no seu cachimbo
curto, que preferia às vezes aos cigarros, andava-lhe na cabeça
o plano há muito formado, de ir ao quarto da afilhada uma noite. Nada
mais fácil: da sala de jantar, onde dormia agora, ao quarto eram dois
passos; o diabo era se a menina abrisse a goela a chamar por gente, isto é
que era o diabo!… Qual! ela não tinha coragem para tanto, mormente
sabendo logo que era ele, o padrinho. – Mãos à obra, João;
nada de pensar em asneiras. Isso a gente inventa uma história de embalar
crianças, diz que a vida é esta, e … foi um dia uma donzela.
Oh! pois ela não é tua afilhada! demais, meu besta, já
lhe pegaste umas tantas vezes no bico dos seios, sem que ela reagisse, a Maria,
naturalmente porque sabes encampar a tua autoridade de padrinho. E depois,
que diabo! Quem arrisca… Um, dois…

E, com um salto, o amanuense levantou-se, dirigindo-se ao quarto da rapariga,
cosendo-se às paredes, macio, cauteloso, todo agachado, pisando devagar,
no bico dos pés descalços.

A fresca da madrugada arrepiava-lhe o tronco magro e cabeludo.

Ah! como se sentia bem agora, sentado na mesma rede em que ela dormia, sozinho
com ela, adivinhando, no escuro, toda a incomparável perfeição
de suas formas rechonchudinhas de rapariga nova! O calor brando do corpo dela
comunicava-se agora a seu corpo, infiltrando-lhe no sangue um fluído
bom e vigoroso.

Sentia-se forte como um touro, ali assim a seu lado, ele, um pobre homem
sem força, um magricela sem carnes.

E Maria esperava, numa aflição, o desenlace daquela trapalhada
que ela não compreendia bem.

Estiveram ambos calados alguns minutos até que o amanuense, escorregando
para o fundo da rede, pousou a mão sobre o ombro da afilhada, segredando-lhe
– se ela estava com frio?

– Frio? … não …

– Pois olha, na sala de jantar, faz um frio dos demônios. Por isso
eu vem para junto de ti…

Maria não disse nada.

Então o amanuense começou com uma lengalenga, um despropósito
de palavras murmuradas como uma oração, numa voz que mal se
ouvia, inclinado sobre a afilhada, sufocando-a com seu hálito nauseabundo,
roçando-lhe no rosto a ponta da barba.

– Olha, Maria, dizia-lhe, tu não sabes quanto eu abomino o Zuza…
Há muito tempo que estava para te dizer umas certas coisas, mas era
preciso segredo, muito segredo… Agora, que estamos sós, deixe que
te fale com franqueza… Tu amas o rapaz, não é assim? Não
mintas… sei que gostas muito dele, e até já se fala, na rua,
em casamento. Ainda hoje alguém afirmou-me que vocês se beijam
na Escola Normal. Eu sei de tudo, minha afilhada, eu sei de tudo. Mas, olha
bem o que te digo, tudo depende de ti, só de ti…

Maria estremeceu no fundo da rede, debaixo do lençol, e sentiu-se
irressistivelmente presa às palavras de João da Mata. Se ele
a quisesse deixar, nesse momento, ela não consentiria, tão viva
era a sua curiosidade, agora que o padrinho lhe falara do Zuza; e o movimento
quase imperceptível da rapariga não passou despercebido a João
da Mata.

– Sim, minha cabocla, tudo depende de ti, porque eu também te quero
muito bem e não consentiria nunca nesse casamento, se… Olha, deixa
dizer-te ao ouvido…

E, colando a boca ao ouvido de Maria:

– … se não fosses boa para teu padrinho.

Pouco a pouco o amanuense ia deitando ao lado da rapariga, acotovelando-a,
machucando-a com o seu corpo ossudo, devagar, cautelosamente.

“-Estava bem armada a rede? Era preciso comprar outra mais larga, mais
rica…”

Um grilo entrou a cantar monotonamente num canto do quarto – testemunha oculta
daquela cena inacreditável.

Entretanto Maria não dava palavra, com as pálpebras pesadas
de sono, respirando a custo, numa espécie de inconsciência muda,
como hipnotizada. Este estado porém durou pouco; espreguiçou-se,
puxando o lençol para se cobrir melhor e começou a achar certo
encanto naquela intimidade secreta, ombro a ombro com o padrinho. Seu instinto
de mulher nova acordara agora obscurecendo-lhe todas as outras faculdades,
ao cheiro almiscarado que transudava dos sovacos de João da Mata. Coisa
extraordinária! aquele fartum de suor e sarro de cachimbo produzia-lhe
um efeito singular nos sentidos, como uma mistura de essências sutis
e deliciosas, desconcertando-lhe as idéias. Uma coisa impelia-o para
o padrinho, sem que ela compreendesse exatamente essa força oculta
e misteriosa.

E quando ele, num tom paternal e amoroso, lhe falou no Zuza, Maria teve um
frêmito bom, como se tivesse caído por terra o paredeiro que
mediava entre ela e o estudante. Tudo dependia dela, somente dela… Ficou
a pensar nestas palavras, sem atinar com o seu verdadeiro sentido, alheada,
os olhos fitos, quase sem pestanejar, na telha de vidro, por onde escoava
agora uma claridade tênue de alvorada;

João respirou, e, passando-lhe o braço por trás do pescoço:

– Então?…

– É quase dia, padrinho, podem nos ver assim…

– E que tem? já nos têm visto tantas vezes? Agora espera, só
me vou se me deres uma boquinha…

E, sem esperar resposta, o amanuense beijou-a na face, apertando-a contra
si, numa impaciência de quem não tempo a perder.

Maria repeliu-o brandamente.

– Juro-te, continuou ele, juro-te que casarás com o Zuza, mas por
amor de Deus, deixa… ou não contes comigo para coisíssima
alguma. Por alma de tua mãe que está no céu. Olha, sou
eu quem te pede… Ninguém saberá, o próprio Zuza não
poderá saber nunca… É como se não tivesse havido nada,
são segredos que não aparecem, sabes? Eu te peço…

Tinha-se feito a verdade aos olhos da normalista, como um clarão que
de repente iluminasse todo o quarto. ao mesmo tempo que uma luta medonha travava-se
dentro de si, sem lhe dar tempo a pensar. Estava justamente em vésperas
de ter o incomodo. Toda ela vibrava como uma lâmina de aço ao
contato daquele homem que comunicava-lhe ao corpo um fluido misterioso, transformando-a
numa criatura inconsciente atraída por um poder extraordinário
como o de uma cobra sobre um rato.

As palavras do padrinho, embebidas de voluptuosidade e o nome do Zuza pronunciado
naquele instante e, mais que tudo isso, a invocação feita à
alma de sua mãe, confundiam-lhe os sentidos, acordando no coração
de donzela o que tinha de mais delicado. teve piedade de João, como
se ele fosse na verdade o mais desgraçado dos homens. Sentiu-o a seu
lado, humilde como um ser desprezível que reconhece a sua baixeza,
com uma tremura na voz, rendido, suplicante, e não teve coragem de
o enxotar, de dar-lhe com a mão na cara e de desaparecer para sempre
d’aquela casa imoral, onde ela vivia tristemente com as doces recordações
de seu passado, como uma flor que vegeta num montão de ruínas.
Ao contrário d’isto, a visível submissão do padrinho,
doera-lhe nalma como a ponta d’uma lanceta. Sem o saber, João
da Mata encontrou a afilhada numa dessas extraordinárias predisposições
de corpo e alma. em que, por mais forte que seja, a mulher não tem
forças para resistir às seduções de um homem astuto
e audacioso. Conhecia suficientemente o gênio de Maria – nada mais,
e isto lhe bastava para que a vitória fosse certa, infalível.

De resto, algumas palavras atoa murmuradas à surdina, o contato morno
de um corpo viril… e Maria do Carmo aumentava o número de suas dores.

A madrugada veio encontrá-la de joelhos, mãos juntas, duas
grandes lágrimas no olhar, como um anjo de sepultura, defronte da oleografia
de Cristo abrindo o coração à humanidade. Nunca o doce
e meigo olhar de Jesus pareceu-lhe tão meigo.

Era domingo. Cantavam galos de campina nas ateiras do quintal. E enquanto,
lá fora, a cidade acordava e a vida recomeçava seu eterno poema
de alegrias e dores, Maria procurava no coração de Jesus um
conforto para seu doloroso arrependimento.

Capítulo XI

Maria do Carmo passou uma semana inteira, oito dias consecutivos, sem ir
à Escola Normal, sem pôr os pés na rua, sucumbida , mortificada,
com receios de encarar os conhecidos, sem ânimo para se apresentar em
público.

Se até então a vida fora-lhe um nunca acabar de desgostos e
contrariedades, o que seria agora, depois de se ter comprometido levianamente
para todo o resto da sua existência, entregando-se, num momento de desvario
dos sentidos, aos desejos concupiscentes do padrinho?

Estava doida, não havia que ver, estava doida naquele momento, não
tinha um bocadinho de juízo! Devia ter visto logo que uma mulher de
certa ordem não se entrega por força alguma d’este mundo
a outro homem, que não seja o seu marido, o dono de seu coração,
o legítimo esposo de seu corpo e de sua alma. Que desgraçada
imprudência a sua! Que vergonha, santo Deus, que vergonha! Era para
isso que se tinha coração, para se deixar cair numa armadilha
daquela… Se fosse uma mulher forte e resoluta, capaz de todos os escândalos,
contanto que soubesse guardar a sua honra… bem, não teria sucedido
nada. Mas, não : fora uma grandíssima tola, uma menina d’escola,
deixando-se levar pelo coração até o ponto de compadecer-se
do padrinho! Que infelicidade!…

E chorava que nem uma criança, com a cabeça no travesseiro,
metida no seu quarto, dizendo-se a mais infeliz de todas as mulheres, supersticiosa
ao peso de sua culpa irremediável, com grandes manchas lívidas
ao redor dos olhos, inconsolável na sua dor..

Às vezes supunha estar sonhando, como que procurava iludir-se a si
própria, enxugava os olhos na ponta do lençol, via-se ao espelho
e experimentava um bem-estar passageiro, um conforto muito íntimo;
mas punha-se logo a pensar, a fazer consigo mesma mil conjecturas, e desandava
outra vez num choro silencioso, que lhe sacudia o corpo todo em estremecimentos
nervosos. Não sabia bem porque chorava; uma coisa, porém, dizia-lhe
que nunca mais seria feliz em sua vida, desde o momento que, por sua condescendência
imperdoável, entregara seu corpo àquele homem…

À proporção que os dias passavam, sucedendo-se numa
monotonia aborrecida, uniformes como os elos d’uma grande cadeia de
ferro, crescia o desânimo em Maria do Carmo, cujas feições
transformavam-se a olhos vistos. Tomava-lhe o rosto uma palidez de reclusa
macerada pelos jejuns, cavavam-se-lhe os olhos, onde se refletia visivelmente
o estado de sua alma, e os cabelos iam perdendo aquele brilho resplandecente
que era o desespero do Zuza. Em uma semana sua fisionomia adquiria uma expressão
iniludível de dor concentrada.

No sábado recebeu um bilhete da Lídia convidado-a para jantar
com ela no dia seguinte. “Espero-te sem falta. Todas as minhas amigas
tem vindo me visitar, menos tu. Creio que não te dei motivo para procederes
deste modo. Por andar incomodada é que ainda não fui te ver”.

Quedou-se numa imobilidade profundamente triste, com a face na não,
a olhar para a letra da amiga, escrita em papel-amizade, e ficou assim muito
tempo, como num êxtase. Veio-lhe a mente o Zuza. Já não
se lembrava d’ele, toda entregue à sua dor. Há uma semana
que não o via, nem sequer tinha notícia dele, e agora o estudante
aparecia-lhe vagamente na imaginação como a lembrança
remota de uma coisa que se viu em sonho. As lágrimas começaram
a cair-lhe dos olhos duas a duas, silenciosamente, sobre o bilhete de Lídia.

Uma… duas…

Duas horas da tarde. O amanuense ainda não tinha voltado da Repartição.
D. Terezinha costurava na sala de jantar, cantarolando uma modinha cearense
em desafio com o sabiá, que desferia seu eterno e monótono dobrado,
esquecido ao sol. Havia no tépido interior d’aquela casa a calma
preguiçosa d’essa hora do dia, em que se ouve o voar do moscardo
impertinente e cantos do galo ao longe, nos quintais. Mariana suspirava na
cozinha às voltas com as panelas, cachimbando. Sultão, esse
dormia tranqüilamente o seu sono do meio-dia aos pés de D. Terezinha,
orelhas murchas, deitado de banda.

Todos os dias, invariavelmente, era a mesma quietação, a mesma
sonolência, o mesmo ramerrão, até que viesse o amanuense
com as suas hemorróidas ou com sua cachaça dar à casa
o ar de sua graça. Freqüentemente João chegava às
quatro horas, demorando-se às vezes até às cinco, o que
não era muito raro.

Nesse dia, porém, antes que o velho pêndulo da sala de jantar
marcasse quatro horas, entrou de chapéu na cabeça, como de costume,
para não constipar, e foi direto ao quarto da afilhada.

“- Como tinha passado o dia? Muito fastio ainda!” – E puxando
uma cadeira sentou-se ao lado de Maria, que ainda se conservava deitada.

Ao pé da rede, sobre a esteira gasta, eternizava-se uma tigela com
o resto de caldo onde flutuavam moscas. João fez um gesto de aborrecimento,
e apanhando a tigela:

– Mariana!

Demônio de gente! Naquela casa ele é que fazia tudo, e, se havia
uma pessoa doente, era o mesmo que nada.

– Mariana!

– Inhô!

– Não está ouvindo chamar, seu diabo!

D. Terezinha continuava a cantarolar, sem se dar por achada, por pirraça.

Mariana apareceu à porta do quarto, sem casaco, os seios moles, dentro
da cabeção da camisa tisnada. pés descalços, cabelos
assanhados.

João mediu-a com olhar, d’alto a baixo, e entregando-lhe a louça:

– Por que ainda não tirou isto?

– Estava cuidando do jantar…

– Cuidando no jantar, hein? Cuidando no jantar?… Burra!…

A criada, porém, deu-lhe as costas e saiu rindo com seu ar idiota.

Uma pessoa somente interessava-se pela saúde de Maria do Carmo – era
ele, João da Mata, cujos cuidados para com ela redobravam dia a dia.

D. Terezinha, essa nem sequer chegava à porta do quarto, resmungando
sempre, rogando pragas, dizendo indiretas, que Maria do Carmo ouvia com lágrimas
nos olhos.

Nunca João fora tão bom para a afilhada como agora: Trazia-lhe
mimos da rua, bons bocados, confeitos, rendas, com uma solicitude paternal,
animando-a, prometendo-lhe muitas felicidades, contando-lhe tudo quanto ouvia
dizer na rua, dando-lhe notícias dos conhecidos.

– Teve febre hoje? continuou ele tornando a sentar-se.

– Não sei…

– Deixe ver o pulso… Não, nem um bocadinho… Bom, não se
amofine, hein, não se amofine. Amanhã, se Deus quiser, pode
levantar-se. E baixo:

– Tolice… Morrendo sem quê nem para quê! Se continuas, é
pior… podem até saber… Isto a gente faz cara alegre e vai para
a adiante, com as outras, minha tola… Olha a tua amiga Lídia… Casou
e casou bem… E assim a maior parte… Deixa de tolices.

Logo no dia seguinte à noite do seu defloramento Maria do Carmo queixou-se
de fortes dores de cabeça e nos quadris, indisposição
geral, e uma ausência quase absoluta de apetite. Não podia ver
comida de espécie alguma nem sentir ao menos cheiro de guisados. Tudo
a enjoava provocando-lhe náuseas. Cada vez que se lembrava de João
vinham-lhe arrepios na pele e “agasturas na boca do estômago”.

Pungia-lhe uma espécie de remorso, que a fazia passar horas inteiras
numa abatimento medonho, encafuada no quarto, sem coragem para continuar a
vida como dantes. Lamentava-se como uma desgraçada: – Que vida! que
vida!

Não quis almoçar e passou o dia com uma xícara de café,
que a Mariana lhe levara.

D. Terezinha não se abalava: era como se Maria do Carmo não
existisse. Que fosse para lá com seus faniquitos, não tinha
obrigação de criar filhos de ninguém. Antes de ir para
a Repartição João lhe recomendara: – Olhe: Maria amanheceu
doente. Está com uma pontinha de febre, não a deixe morrer de
fome , hein…

Foi como se não recomendasse, porque D. Terezinha nem sequer pôs
os pés no quarto da rapariga. Limitou-se a dizer à criada: –
Ouviste! Não deixes morrer de fome a mimosa.

Ah! esse desprezo, essa indiferença da madrinha doía nalma
de Maria como um insulto. Lembrava-se às vezes de a mandar chamar e
pedir-lhe por amor de Deus que não a tratasse assim, que não
a desprezasse… Mas ao mesmo tempo achava que isto era confessar a sua culpa,
porque na verdade nunca houvera ente elas causa para o mais leve rompimento,
a não serem as impertinências de João da Mata. Que culpa
tinha ela se o padrinho dissesse desaforos à mulher?

E assim ia passando agora, abandonada, sem uma pessoa que se interessasse
verdadeiramente por sua sorte, a não ser João da Mata.

– Trataram-na bem? perguntava o amanuense ao voltar do trabalho.

– Trataram… murmurava ela.

Mas a verdade é que Maria passava uma vida miserável De manhã,
enquanto João ainda estava em casa, ele mesmo ia levar-lhe o café
com torradinhas de pão, mas, depois, ela ficava entregue à preguiça
da criada e à indiferença da madrinha, em termos de morrer de
fraqueza. Davam-lhe um caldo ao meio-dia, único alimento com que ela
esperava o jantar às quatro horas, quando o padrinho viesse. Por fim
quase não podia suportar aquilo, e nove dias depois, um domingo, levantou-se
resolvida a ir jantar com Lídia, ao menos por desfastio, que aquela
casa era um horror! Mostrou a João a carta da amiga, acrescentando
que até era bom para ela passar o resto do dia fora, no Benfica, ouvir
tocar piano, distrair, enfim, porque andava muito triste.

O amanuense aprovou prontamente: que sim! mas era preciso saber se já
estava completamente boa, se não sentia mais nada.

– Mais nada, passei muito bem a noite.

João tomou-lhe o pulso com carinho.

– Pois bem, vista-se e vamos. Amanhã pode até ir à escola,
não é assim?

E, noutro tom:

– Não vale a pena a gente se amofinar por qualquer coisa, filha. A
vida é isto mesmo – andar p’ra diante sempre com a cara alegre.
Vamos, vá se vestir.

Ainda não tinha dado meio dia no pêndulo. Maria foi ao quarto,
abriu baús, mais consolada, escolheu o melhor de seus vestidos de cretone,
um azul de riscados brancos, em pouco saiu do lado ao padrinho, traçando
o fichu, sem dar palavra a D. Terezinha.

Ninguém na rua do Trilho, deserta àquela hora como uma rua
d’aldeia.

Seguiram para a Praça Ferreira a tomar o bonde de Pelotas. Pouca gente
na praça ensombrada por suas enormes mungubeiras. Dois sujeitos sentados
um defronte do outro, jogavam silenciosamente o dominó no Café
Java: Às portas da Maison Moderne famílias esperavam os bonds
em pé, silenciosas, com ar de infinito aborrecimento. Dentro jogava-se
bilhar. Muitas pessoas rodeavam uma das mesas para ver jogar o presidente,
que, em colete, escanchado num ângulo da mesa, calculava o efeito das
bolas. Maria teve um estremecimento ao vê-lo. Certo o Zuza também
andava por ali… Instintivamente procurou-o com o olhar. O José Pereira
tomava cerveja a um canto mais o Castrinho.

Os bonds iam chegando uns atrás dos outros , enfileirados.

Antes de subir para o de Pelotas, Maria lançou um último olhar
à sala de bilhares. O José Pereira sem o Zuza! Era realmente
assombroso!

Mas d’aí a pouco o bond rodava outra vez caminho do Benfica,
e invadiu-lhe o coração uma melancolia sem causa, uma tristeza
vaga que lhe deu vontade de estar só, de voltar à casa.

Lídia veio receber a amiga de braços abertos, muito alegre,
de branco, com papelotes no cabelo e sandálias de cetim. – Ora, até
que enfim! Já não a esperava mais, Sra. D. Maria. Noiva de fidalgo…
pudera!

– Não diga isso, minha negra. não vim há mais tempo,
porque tenha andado adoentada. Tu não imaginas…

Cobriam-se de beijos.

Lídia mandou-os entrar para a sala de visitas.

– Como vai D. Terezinha, Sr. João? perguntou maliciosamente escancarando
as janelas.

– Bem, respondeu o amanuense num tom seco, pondo o chapéu sobre uma
cadeira. E logo… – Homem, isto está que nem um paraíso!

– Qual paraíso! Está nos debicando?…

– Não senhora, longe de mim tal pensamento. O que digo é a
verdade. O Loureiro preparou isto à fidalga.!

E ia examinando, através dos detestáveis óculos escuros,
os quadros, o papel da sala, o piano, os bibelots, com uma curiosidade infantil,
estendendo o olhar de vez em quando até o interior da casa, disfarçadamente.

Maria tinha-se sentado no sofá e por sua vez confirmava a admiração
do amanuense: – Sim, senhora, tudo muito bem arranjadinho, muito chique…

– Vejam só, vejam só, a graça! repetia a outra, sentando-se
ao lado da amiga.

– E o Sr. Loureiro como ia? inquiriu Maria.

– Bem menina, muito atarefa do com o emprego. É uma vidinha cansada,
esta de guarda-livros. O Loureiro, coitado, não tem sossego de espírito.
Vive na loja, e, ainda por cima, trabalha em casa. Um horror! Tu é
que estás magrinha: estou te achando tão abatida, tão
pálida…

– Saudades tuas…

– Saudades, eu sei de quem…

Riram.

– Agora é que reparo, continuou Lídia muito amável,
tira o fichu e vamos ver a casa.

E levantando-se:

– Preciso conversar muito contigo. Já não te lembravas de mim,
hein?… Sr. João tenha a bondade de esperar um pouquinho – o Loureiro
não tarde: está às voltas com a papelada.

– Oh! minha senhora…

João da Mata deliciava-se a observar os quadros e as estatuetas de
terracota, de mãos para trás, como se estivesse numa exposição.
Depois chegou à janela por onde entrava um arzinho puro impregnado
de essência de resedás. Defronte enchia a vista o verde sombrio
d’uma esplêndida floresta de cajueiros onde oscilavam pequeninos
pontos amarelos e vermelhos quebrando a monotonia da paisagem larga e igual,
batida de sol. O palacete azul do Loureiro perdia-se num fundo de verdura.
À direita, lá longe, na esquina de um grande sítio, passava
a linha de bonds. E que frescura! Dava vontade à gente pecar muitas
vezes por dia, como Adão no Paraíso, ali assim, naquele pedacinho
do Ceará, sem seca e sem política, entretendo relações
sentimentais com a natureza agreste e sincera.

– Bom para se copiar um balanço, isto aqui, costumava dizer o ingênuo
guarda-livros.

João pôs-se a contemplar, com um enlevo nalma, toda essa poesia
selvagem iluminada por um sol implacável.

De súbito:

– Olá, seu Mata, como vai você? Que milagre foi este?

Era o guarda-livros, em chinelos, calça branca e paletó de
seda amarelo.

João voltou-se.

– Oh!… Estava admirando a grandeza do Criador… Você assim mesmo
tem gosto, seu Loureiro, você é um danado, homem! Sim, senhor,
isto aqui é um maná! Faz vir água à boca.

– Escolhi este local por ser muito isolado da civilização.
Detesto o ruído da cidade…

– Tens também a tua veia poética, hein?

– Qual veia poética! Isso de versos não é comigo. Tenho
até horror à poesia. O que eu quero é sossego, o bem
estar, o conforto…

– Fazes muito bem, filho, não há nada como se viver no seu
cantinho com a sua mulher e os seus filhos, comendo com o suor do seu rosto.
Eu, se pudesse fazia o mesmo – deserdaria da capital, do centro da civilização,
para viver comodamente, bem longe de toda essa porcaria que se chama sociedade.
Fazes muito bem. Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele.

– E você como vai?

– Homem, assim mesmo: nem p’ra diante nem p’ra trás, remando
contra a maré… Têm-me aparecido umas doresinhas do lado esquerdo…

– Por que não usa você o vinho de caju?

O guarda-livros fez a apologia do vinho de caju, citando casos de curas assombrosas
produzidas pelo uso quotidiano desse depurativo. Ele mesmo, Loureiro, tinha-se
curado radicalmente de um dartro na perna esquerda. Na sua opinião
o vinho de caju era muitíssimo superior à salsa, ao iodureto
e à quanta panacéia receita-se por aí sem resultado.

O amanuense, porém, afirmou que seu mal era no pulmão, que
já tinha consultado o Dr. Melo.

– Não te fies em médicos do Ceará, que dão cabo
de ti. Olha o Calado, conferente d’Alfândega: diagnosticaram-lhe
lesão cardíaca e o pobre homem, coitado, estirou a canela no
Rio de Janeiro com uma enfermidade nos rins. Uns ignorantes, seu João,
uns magarefes da humanidade é o que eles são. Meta-se no vinho
de caju, que é o grande remédio para as moléstias do
sangue.

Enquanto os dois, sentados no sofá, de pernas trançadas, iam
discutindo banalidades, Lídia e Maria do Carmo comunicavam-se como
boas amigas, numa intimidade franca e expansiva, abrindo-se mutuamente em
confidências de colegial felizes. Primeiro tinham percorrido toda a
casa. Lídia mostrara à outra todos os seus confortos e todas
as suas jóias desde a cama de casados, ampla e fresca, até o
presente de noivado, um magnífico jogo de pulseiras cravejadas de pérolas
em forma de serpentes, o guarda-vestidos, os vidros de essências, os
chapéus, as toalhas de labirintos, feitas no Aracati e tudo o mais
que o Loureiro comprara com aquela bondade ingênua que o caracterizava.

Maria via tudo aquilo embasbacada, com surpresas no olhar, falando por monossílabos,
examinando com inveja cada objeto que seus olhos deparavam, achando tudo muito
bom, muito fino, de muito bom gosto. E a outra: olha isto, vê lá,
aqui está o meu relógio d’algibeira, comprado no Jaques,
tu ainda não viste a minha cinta de tartaruga; é verdade, e
o meu tinteiro de prata, presente do Carvalho, e o meu leque de plumas…

Foram sair na sala de jantar, e aí, uma defronte da outra, em cadeiras
de balanço, Lídia entrou indiscretamente a falar no Zuza.

– Ainda o amas muito? Então fica para a volta?…

Maria não compreendeu a pergunta.

– Como fica para a volta?

– Sim, de certo, creio que vocês não se casaram…

– Não te compreendo?

– Olha a engraçada!… Quer um peitinho?!

– Por Deus como te não entendo…

– Pergunto se o casamento é quando o Zuza voltar, não te faças
tola…

– Quando o Zuza voltar?

– E então?…

– Mas voltar d’onde?

– Estás hoje muito misteriosa, minha espertalhona;

Maria teve um pressentimento: – “E o Zuza tinha ido embora?”

– Pois não embarcou anteontem?

Olhavam-se as duas sem se compreenderem, como se estivessem jogando o disparate.

– Para onde?…

– Para o Recife, ora adeus! para onde havia de ser?… A estas horas anda
ele bem longe do Mocuripe.

Maria do Carmo empalideceu, como se acabasse de saber uma notícia
funesta.

– Estás gracejando, murmurou com a voz trêmula.

– Não sabias?

– Não, não sabia…

– Pois a Província deu notícia.

– Infame.

E Maria não pode resistir à comoção que lhe sufocava,
os olhos umedeceram-se-lhe de lágrimas, e desatou a chorara com o rosto
mergulhado no lencinho de rendas.

– Que é isso, criatura? Tolice!

Lídia não contava com o pieguismo da amiga.

Ora adeus, o rapaz havia de voltar, que asneira! Era preciso paciência
para tudo, e então? Ela mesma, Lídia, não esperara pelo
Loureiro quase um ano? Tolice…

– Deixa-te d’isso, filha, vamos tocar piano. Estás nervosa.

Inclinada sobre a rapariga, que soluçava como se lhe tivesse morrido
alguém, Lídia procurava carinhosamente arrancar-lhe o lenço
dos olhos , alisando-lhe os cabelos, comovida.

– Então?… Levanta, vamos para a sala, que está mais fresco.
Não sê criança, vamos…

– Sou uma desgraçada, disse Maria enxugando os olhos com força.

– Que desgraçada o que, estás feito criança… Isso
acontece a todo mundo, criatura. Vamos, vamos p’ra sala. Já viste
o meu álbum.

Maria levantou-se devagar, preguiçosamente, com as faces escarlates,
as pestanas úmidas, assoando-se; e arrependida.

– Não, fiquemos aqui mesmo, depois se toca. Não foi nada –
um nervoso…

– Bem, mas não te ponhas a choramingar por aí, como uma tola.
Tu sabes, a família do Zuza não quer o casamento, quem sabe
se o rapaz foi obrigado a embarcar à última hora? Espera cartas,
se ele não te escrever, então sim, podes ficar certa de que
não te ama.

Tornaram a sentar-se.

A criada, alta como um pau de sebo, veio saber da Sra. D. Lídia “se
a sopa era de macarrão ou de arroz”.

– De macarrão mesmo, Tomázia, faça de macarrão,
mas faça uma sopa gostosa, ouviu?

E para a amiga:

– Não imaginas quanto aborreço a cozinha. Há dias em
que não ponho lá os pés. Felizmente o Loureiro arranjou
uma boa criada, que até já foi cozinheira do Dr. Paula Souza,
da Estrada de Ferro. É assim como viste, seca e ríspida, mas
uma excelente criada. Faz tudo a meu gosto.

– Mas, então o Zuza embarcou, hein? tornou Maria voltando à
conversa.

– Não falemos mais nisto. estás hoje muito sentimental e eu
não quero que passes mal o resto do dia em minha casa, sabes? Não
falemos mais nisto.

– Mas, diz-me… aquilo foi uma tolice… diz-me, não o viste mais?

– Não. O José Pereira é que está muito nosso
amigo, sabes? Tem vindo aqui duas vezes nesta semana. E que amabilidades,
menina, que delicadezas! Ofereceu-se para apresentar o Loureiro ao presidente
da Província, mandou-nos outro dia um camarote para o teatro…

– E tu, como passas a nova vida?

– Perfeitamente. Desejava antes morar na cidade, mas o Loureiro é
muito impertinente, diz que prefere isto – paciência. Agora quando vierem
os filhos, isso então… Por enquanto estou muito satisfeita. Um bocado
triste isto aqui no Benfica, mas ..vai se passando. É verdade, precisas
vir passar uns dias comigo, estás muito magra; o ar aqui pé
melhor que na cidade. Tens ido à Escola?

– A Escola qual! Passei oito dias em casa como, uma freira, sem ir à
parte alguma. creio que não irei mais àquilo.

– Eu, no teu caso, faria o mesmo. Agora, então, que estou casada,
olha…

Fez um gesto com as mãos.

– … bananas, não estou para suportar desaforos d’aquela canalha.
Porque tudo aquilo é uma canalha, menina. Fazes muito bem em não
pondo os pés naquela feira de reputações. As raparigas
ali aprendem a ser falsas e imorais. Conheço muito o tal Sr. Berredo,
o tal Sr. Padre Lima e mais os outros todos. O próprio diretor… eu
cá sei…

Maria estava mais consolada ante a solicitude da amiga. Achava-a mais amável,
mais expansiva.

Foram para a sala de visitas, de braços trançados nas cinturas,
e Lídia cantou ao piano o Non m’amava, a velha romanza sentimental,
que encheu de lágrimas os olhos de Maria.

E os dias passavam uns após outros, longos, intermináveis,
como uma repetição monótona que faz mal aos nervos.

Vieram as festas, o Natal e o Ano Bom.

Maria do Carmo, cada vez mais magra, sentido-se definhar dia a dia, descrente
de tudo, tinha agora uma certeza cruel que a torturava barbaramente, a certeza
que estava para ser mãe, de que muito breve o seu nome estaria completamente
desmoralizado. Sentia bulir dentro de si uma coisa estranha, que lhe incomodava
como uma perseguição, e mais de uma vez, nos seus momentos de
grande desânimo, atravessara-lhe a mente a idéia sinistra do
suicídio. Sim, preferia matar-se a assistir às exéquias
de sua honra na praça p&uauacute;blica, em todas as ruas da cidade, em
todas as bocas. estava irremediavelmente perdida, não tinha pai nem
mãe, nem alguém que lhe fosse sincero no mundo, pois bem, acabar-se-ia
de uma vez, sem ter que dar satisfação a ninguém por
isso. Era um pecado, mas não era uma vergonha, porque não teria
que corar nunca diante da sociedade, como uma criminosa, como uma culpada.
Não, mil vezes, não! Outra, que não ela, preferisse arrastar
uma existência vergonhosa, a morrer fosse como fosse.

Uma ocasião estava prestes a ingerir uma dose de láudano, mas
faltou-lhe coragem. Começou a imaginar mil coisas. Via-se morta dentro
de um caixão azul, de mãos cruzadas sobre o peito, numa sala
onde havia gente chorando e um crucifixo à cabeceira entre velas de
cera que ardiam lugubremente. Que horror! recuou espantada fazendo em pedaços
o vidro de veneno.

Às vezes, vinham-lhe resignações, um desejo místico
de ser irmã de caridade, depois que desse à luz a criança,
arredar-se para sempre do mundo e ir viver na Santa Casa de Misericórdia,
curando os enfermos metida nas suas vestes azuis, debaixo de um grande chapéu
de asas, dedicar-se toda a Deus, como uma santa.

Dera para devota; não faltava à missa aos domingos, na Sé,
vestida com muita simplicidade, e rezava sempre, com uma contrição
admirável, ao deitar-se e ao acordar, defronte da oleografia do Coração
de Jesus.

Foi em casa da Lídia que ela teve a certeza de achar-se grávida.
Até então ignorava certos segredos da maternidade, certos fenômenos
da fisiologia amorosa, que nunca lhe tinham dito, nem mesmo as companheiras
de Escola, “aliás versadas em assuntos dessa natureza”.

Tinha ido passar uma semana com a amiga, nas festas, e um dia a Lídia
disse-lhe que “estava pronta” e que ela, Maria, havia de ser a
madrinha do primeiro filho.

Então, aproveitando a oportunidade, Maria do Carmo quis saber como
as mulheres tinham certeza de estar grávidas.

Lídia explicou tudo minuciosamente; a suspensão das regras,
os antojos, as dores madre e, finalmente, os primeiros movimentos do feto
no útero. Depois leram junto a Fisiologia do Matrimônio de Debay,
que o Loureiro tivera o cuidado de comprar, especialmente o capítulo
– da calipedia ou arte de procriar filhos, o mais importante, na opinião
da esposa do guarda-livros.

– Todo meu desejo, dizia a Lídia com o livro sobre a perna, todo meu
desejo é que o pequeno, menino ou menina, se pareça com o presidente
da província. Ainda no último baile em palácio não
tirei os olhos dele.

E Maria nesse dia, ao jantar, teve um grande enjôo da comida, cruzando
o talher logo no primeiro prato, inapetente. Não havia dúvida,
“estava pronta” também como a Lídia, e esta idéia
tornou-se uma idéia fixa, de todos os dias, de todas as horas, de todos
os minutos. Ela com um filho, Jesus! Decididamente estava perdida para sempre
no conceito honesto da gente séria. Não passaria mais de uma
simples rapariga que “já teve filho”! As revelações
de Lídia tinham-lhe aberto os olhos; sentia agora perfeitamente bulir
a criança, e até, na sua alucinação, parecia-lhe
ouvir os vagidos do bebê. Se fosse possível evitar o seu desenvolvimento,
matá-lo mesmo no ventre… Mas não: seria uma barbaridade, uma
malvadez; Afinal de contas era seu filho, de suas entranhas, embora fruto
de um crime…

E Maria agoniava-se, fazendo essas considerações e mil outras
conjecturas absurdas, sem coragem de esperar o desenlace d’aquele drama
secreto que ela era a protagonista. Vivia assombrada e não raro caía
num desfalecimento que lhe tirava a ação do corpo e do espírito.

Por uma espécie de instinto, previa todas as conseqüências
do seu estado e pressentia o desprezo acerbo que havia de lhe cair sobre a
cabeça, implacavelmente, como uma grande mão de ferro, esse
desprezo convencional e hipócrita de uma sociedade ávida de
escândalos, cevando-se da desgraça alheia, banqueteando-se em
torno da vítima, como para torturá-la ainda mais.

E enquanto a Lídia ganhava, com sorrisos de triunfo, as simpatias
dessa mesma sociedade que há poucos meses a maldizia, ela, Maria do
Carmo, sobre cuja reputação pairava a sombra de uma nódoa,
via-se pouco a pouco ludibriada, tratada como uma mulher a toa, num abandono
completo, sem amigas, sem honra, pobre, sem pai, nem mãe, mísera
cadela que a gente enxota a pontapés de dentro da casa por safada e
indecente.

XII

O Zuza abalara de feito numa sexta-feira, dias depois do casamento da Lídia.
Por toda a parte se comentava, com risinhos sublinhados, o escandaloso namoro
com a normalista, e o pai, o coronel Souza Nunes, escrupuloso em tudo que
lhe dizia respeito, exigiu do filho que embarcasse no primeiro vapor, sob
penas severas.

– Mas, meu pai…

– Tenha santa paciência, vocemecê embarca ou diz porque não
embarca. Fala-se em toda a cidade nos seus namoros com a rapariga e eu não
quero, não consinto em semelhante escândalo. Sei muito bem o
que isso é. Não pode ser boa mãe de família uma
rapariga educada em companhia de um safardana reconhecido, como o tal Sr.
João da Mata. Prepare as malas e deixe-se de histórias, que
é perder tempo.

Nestas condições o estudante não teve jeito senão
resignar-se ante a vontade imperiosa do pai e anunciar ao José Pereira
o seu embarque d’aí a dois dias.

– De acordo, aprovou o redator da Província. Deves tratar quanto antes
da tua formatura e então podes voltar ao Ceará e fazer um figurão
na nossa magistratura, que já conta em seu seio bons talentos, rapazes
da tua estatura, inteligentes e resolutos.

Sentia muito que o Zuza não se demorasse mais algum tempo, mas, enfim,
como esperava em breve tornar a vê-lo formadinho, com o seu título
de bacharel, “dando sorte” na capital cearense, que diabo! era
preciso abafar a saudade e consolar-se.

O Zuza, porém, estava contrariado. Agora que as coisas corriam-lhe
tão bem, que a rapariga entregava-se-lhe de corpo e alma, é
que o obrigavam a embarcar da noite para o dia, sem ao menos ter tempo de
despedir-se d’ela, de dar-lhe uma beijoca, um abracinho sequer, às
escondidas. É verdade que o seu amor não era lá para
que se dissesse um amor extraordinário, uma dessas paixões incendiárias
que decidem do futuro de um cristão, mas, tinha a sua simpatia por
aqueles olhinhos ternos como os de uma santa, lá isso tinha… Tão
boas as palestras ao meio-dia, na Escola Normal, enquanto as outras normalistas
divertiam-se lá para dentro à espera dos professores! Uma gentinha
levada da breca, essas normalistas ! Com que facilidade a Maria do Carmo,
aliás, uma das mais comportadas, entregava-lhe a face para beijar e
escrevia-lhe cartinhas perfumadas, cheias de juras e protestos de amor! Se
fosse outro, até já podia ter feito uma asneira… Arrependia-se
agora de não ter aproveitado os melhores momentos… Grandíssimo
calouro! podia ter desfrutado a valer.

E concluiu, preparando-se para sair:

– Ora sabem que mais? Há males que vêm para bem. A cidade está
cheia do meu nome e do nome da rapariga, o verdadeiro é ir-me embora
mesmo, sem dar satisfação a ninguém. Meu pai é
um homem de juízo. Eu podia muito bem engraçar-me deveras com
a menina para casar e depois… sabe Deus as conseqüências. Já
se foi o tempo de um homem sacrificar posição e futuro por uma
mulher pobre. Concluo o meu curso e sigo para a Europa, é o verdadeiro,
ora adeus!

Enfiou a manga do redingote, atabalhoado, e saiu a despedir-se dos amigos.

Toda a cidade soube logo da viagem intempestiva do estudante. A notícia
propalou-se com a rapidez do fogo em palha, por todos os botequins, por todos
os cafés e restaurantes, avolumando-se, como se se tratasse de um grande
acontecimento.

Quem o Zuza, o filho do coronel Souza Nunes? Então não se casava
com a normalista?

– Por esta já esperava eu, diziam uns convictamente.

– E eu, repetiam outros.

– Pela cara se conhece quem tem lombrigas, seu Sussuarana, afirmava um sujeito
reles na botica do Travassos. Aquele tipo sempre me pareceu uma bisca. Agora
a pobre rapariga é quem fica por aí com a cara de besta, sem
achar quem lhe roa os ossos.

– Pode dizer, seu compadre. Esses fidalgos o que querem é isso mesmo
– desfrutar e pôr-se ao fresco. Todo nosso mal é recebermos em
nossas casas qualquer sunga-nenén que chegue a esta terra. Nós,
os pais de família, é que somos os culpados.

– E o compadre João da Mata o que pretende fazer?

– Eu sei lá, homem de Deus, aquele é outro…

A viagem imprevista do Zuza assumia proporções de escândalos.
Nas fileiras políticas especialmente entre os partidos contrários
à administração presidencial, alardeava-se o fato: que
o rapaz era um produto da política do governo, que todos os amigos
do presidente mediam-se pela mesma bitola, que era tudo uma súcia de
bandidos de casaca, usurpadores da honra cearense, o diabo!

Os jornais da oposição rosnaram contra a moralidade dos governistas,
responsabilizando o presidente pelo “desmembramento de caracteres”
que ia pela sociedade cearense, alcunhando-o de negro Romão. Tal dizia
que “S. Excia. era homem de costumes dissolutos, acostumado a beber
cerveja nos cafés cantantes de Paris, e a passear de braço com
as cocottes no Bois de Boulogne”. Tal outro afirmava que “ S.
Excia. sabia manobrar perfeitamente um phateon, montava muito bem a cavalo,
mas não tinha capacidade para dirigir os destinos de um país”.

Insinuava aquele que “a viagem inesperada de certo bacharel por formar-se
era um atentado contra os nosso brios e contra a moral pública”,
aquele outro confirmava que “a polícia devia dar caça
a um tal Sr. bacharel de nome açucarado contra quem pesavam as mais
sérias acusações no tocante ao seu procedimento para
com a família cearense”.

E toda gente sabia que se tratava do Zuza e da Maria do Carmo.

O estudante, azucrinado por todos os lados, numa roda viva de indiretas,
indagava na Agência se o vapor já tinha chegado, esbaforido,
às carreiras, doido por já se ver barra afora, debruçado
tranqüilamente na amurada, a ver sumirem-se no horizonte, como visões
de uma noite mal dormida, as areias do Mucuripe.

Uff! … Estava cansado de suportar tanta sujidade! Decididamente não
voltaria ao Ceará por preço algum. Diabo de província
onde ninguém está livre da calúnia e da descompostura
pela imprensa desde que não se submeta às imposições
d’uma política de interesses pessoais.

Revoltava-se de novo contra o Ceará, contra os costumes cearenses,
contra a política, “essa política sem ideal e sem patriotismo,
que só servia de nos rebaixar, obrigando o indivíduo a vender-se
por amor de sua mulher e seus filhos”. Que diabo tinha ele com a política
para que se viesse meter com sua vida? Só porque era amigo do presidente
e filho de político? Sebo! Então não se podia ter amigos
no Ceará, decididamente. E porque tanto barulho em trono do seu nome,
porque não lhe diriam? Por causa de um simples namoro com uma pobre
normalista sem eira nem beira? Era o cúmulo!

Com que deliciosa alegria ele ergueu-se da rede no dia do embarque, de manhã
muito cedo, as malas no meio do quarto prontas, a passagem comprada no bolso,
sem dívidas, sem compromissos, completamente pronto a deixar o Ceará.
Quando vieram lhe chamar para o banho, às seis horas, já há
muito estava de pé, em chambre, muito bem disposto, fumando o seu cigarro,
passando uma vista d’olhos na maleta do camarote onde refulgia, numa
frescura capitosa, a roupa branca – ceroulas, camisas, meias e toalhas de
rosto – tudo arrumado cautelosamente, com um cuidado feminino, umas cheirando
ainda a sabão, passadinhas a ferro outras.

Ah! ia deixando fora a Casa de Pensão. Tomou do livro que se achava
sobre a mesa e colocou-o na maleta, ao lado, para ler na viagem.

Agora sim, não faltava mais nada. Só pedia a Deus que não
chovesse, porque um embarque debaixo d’aguaceiro era um desastre horroroso.

De feito ameaçava chover. Era em Janeiro. Há dias caia sobre
a cidade uma chuvinha sintomática de inverno, persistente e miúda,
acompanhada de trovões longínquos, lavando a atmosfera, encharcando
as ruas, alentando a população, enverdecendo as árvores.
Os longos meses de seca iam ser compensados por uma abundância de chuvas
consoladoras e refrigerantes. As manhãs iam se tornando frescas e já
se viam passar, em tabuleiros, feixes de feijão verde e hortaliças
para feira.

Zuza tinha aberto a vidraça para consultar o tempo. Os telhados, defronte,
estavam úmidos e o céu de uma cor esmaecida de safira, arqueava-se,
sem uma nuvem na penumbra da ante-manhã. Passava um fiscal da Câmara
com o seu boné, jaqueta com botões dourados, chapéu de
chuva debaixo do braço, assoando-se com estrondo.

– Tudo fechado ainda, com efeito! pensou o Zuza. Entretanto já tinha
dado seis horas!

Entrou e pôs-se a reler as cartas de Maria do Carmo, trincando a ponta
do bigode.

“Meu querido Zuza…”

Nesta normalista jurava como não tinha ido ao Club Iracema; que era
uma calúnia o que tinham dito ao estudante..

“Tua querida Maria”.

Zuza meneou a cabeça com um ar de riso e abriu outra.

“Zuza do meu coração…”

Nest’outra Maria lamentava que o rapaz não tivesse aparecido
na Escola Normal na véspera.

“Tu já não me amas, Zuza; não queiras matar-me
de saudades. Todos os dias peço a Deus por ti e tu nem sequer lembras
da tua futura esposa!”

E assim, uma a uma, o futuro bacharel releu toda a série de cartas
da normalista, enfeixando-as depois, dobradinhas, com um cadarço.

Que horror, meu Deus, quanta banalidade! E ela a tomar a coisa a sério!
A gente sempre faz asneiras de criança nessa idade!…

E guardando o maço de cartas no fundo da maleta: “- Magnífico
rol de asneiras para fazer rir a rapaziada de Pernambuco.”

As horas passavam vertiginosas. A claridade larga do sol penetrava no quarto
pela janela aberta, como um visita sem cerimônia, anunciando um dia
seco e esplêndido.

Já lá fora, na rua, recomeçava a labuta quotidiana.
Um barbeiro, que morava defronte, amolava as navalhas assobiando um trecho
de fandango, com as pernas cruzadas, de frente para a rua. Passavam burricos
com cargas d’água, procurando as coxias. Meninos apregoavam o
Cearense.

José Pereira ficara de vir almoçar com o Zuza, mais cedo que
de costume, para seguirem juntos ao ponto de embarque.

D. Sofia andava numa faina, da sala para a cozinha, com os olhos empanados
de lágrimas, esquecendo as suas dores de útero para pensar no
Zuza, no seu filho que ia embora.

O coronel, esse não se alterava, calmo, consultando o relógio
de vez em quando, bem humorado nesse dia, passeando o seu grande ar de homem
independente.

Cerca de 10 horas entrou o redator da Província anunciando a chegada
do vapor.

– A que horas sai? perguntou o estudante.

– Está marcado para as duas. Em todo o caso é prudente ir mais
cedo…

– Sem dúvida. Ao meio dia, o mais tardar, devo estar a bordo. Qual
é o vapor?

– O Espírito Santo.

– Diabo, uma carroça!

José Pereira entrara para o quarto do Zuza, e, sentado na larga rede
de varandas encarnadas, perna traçada com desembaraço, passeava
o olhar morosamente naquele tabernáculo de rapaz solteiro, agora em
desordem, como um ninho abandonado, enquanto o estudante acabava de fazer
a toilette no aposento contíguo.

Na frente das duas malas, uma grande e outra menor lia-se em letreiros impressos
e nítidos – José de Souza Nunes – Recife. Perto estava um caixote
com livros e o mesmo dístico no alto.

– Dez e meia! fez o redator levando o relógio ao ouvido.

Imediatamente surgiu o Zuza lépido, esfregando as mãos, como
se saísse de um banho de perfumes.

– Prontinho, disse ele.

E misteriosamente:

– Então, com quê a canalha tem-se divertido à minha custa,
hein?

– Como assim?

– Oh! homem, inventaram por aí que eu deflorei a Maria do Carmo. Não
leste o Pedro II e o Cearense?

– E tens culpa no cartório?

– Não, c’os diabos, mas isso é um horror! Ninguém
pode mais gracejar, ninguém tem mais o direito de chegar-se a uma rapariga
honesta sem intenções malévolas. Cada vez me convenço
mais de que isso é uma terra selvagem, seu José Pereira! Isto
é um país de bárbaros. Vocês da imprensa devem
civilizar este povo, devem ensinar a esta gente a pensar e a ter juízo,
do contrário…

– Mas, fala a verdade, interrompeu o outro com um ar de riso malicioso; tu
nunca…

– Palavra como não! É verdade que dei alguns beijos, mas o
nosso namoro nunca foi além disso, mesmo porque, tu compreendes a minha
responsabilidade… Depois, só fui a casa do padrinho umas três
vezes, no máximo. Calúnia, simples calúnia…

– É. Este povo é muito indiscreto…

– Indiscreto não – alcoviteiro, mentiroso, ignorante e besta, é
o que ele é.

E depois de uma pausa:

– Bem, vamos almoçar que deve ser hora.

Uma vez instalado a bordo, o seu camarote do lado do mar, o futuro bacharel,
de binóculo a tiracolo e boné, respirou a todo pulmão
e foi assistir da tolda a manobra do vapor que suspendia o ferro.

Eram duas em ponto. O tempo estava magnífico. Ventava forte e o mar
em ressaca atirava sobre o quebramar uma toalha de espuma que se desmanchava
em poeira tenuíssima irisada pelo sol. A cada golpe do mar havia uma
algazarra na praia coalhada de gente. Escaleres navegavam para a terra puxados
a remo, destacando a bandeira do escaler Capitania do Porto.

Zuza assestou o binóculo, e, sacando do lenço, correspondeu
aos acenos que lhe faziam de um escaler que se afastava. sentia agora uma
ponta de saudade a espiaçar-lhe o coração. Através
da confusão que reinava no seu espírito, como um ponto luminoso
por entre um nevoeiro denso, via mentalmente e nitidamente a cabeça
branca de D. Sofia, de sua boa mãe, e só então sentiu
que uma coisa prendia-lhe ao Ceará, atraía-lhe a essa terra
que ele tanto detestava. Não sabia mesmo porque, por índole,
por sistema, por pedantismo.

– Sim, queria mal ao Ceará, mas não podia esquecer nunca o
Ceará, porque nele ficava a sua velha que ainda há pouco, abraçando-o
entre lágrimas, metera-lhe no bolso uma nota de cem mil réis
e cheirando a fundo de baú.

Boa e santa velhinha! pensava ele, e já não enxergava coisa
alguma, porque os vidros do binóculo estavam úmidos e enevoados.

Depois, quando o vapor singrava em direção ao Mucuripe, começou
a examinar a costa cearense, como se nunca a tivesse visto de fora, da tolda
de um navio. Viu passar diante de seus olhos arregalados todo o litoral de
Fortaleza, desde o farol do Mucuripe até a Ponta dos Arpoadores…

Primeiro o farol, lá muito longe, embranquecido, cor de areia, ereto,
batido pelos ventos; depois a extensa faixa de areia que se desdobra em ziguezague
até a cidade; a praia alvacenta e rendilhada de espumas. Em seguida
o novo edifício da alfândega, em forma de gaiola, acaçapado,
sem arquitetura, tão feio que o mar parece recuar com medo à
sua catadura.

Noutro plano, coqueiros maltratados pelo rigor do sol, erguendo-se da areia
movediça que os ameaçava soterrar, uns já enterrados
até a fronde, outros inclinados, prestes a desabar; o torreão
dos judeus Boris, imitando a torre de um castelo medieval, cinzento e esguio;
o seminário por trás, no alto da Prainha, com as suas torres
triangulares; as torres vetustas e enegrecidas da Sé; o Passeio Público,
com seus três planos em escadarias; a S. C. de Misericórdia,
branca, no alto; o Gasômetro; a Cadeia; e por ali fora o arraial Moura
Brasil, invadido pelo mar, reduzido a um montão de casebres trepados
uns sobre os outros…

– Sim, senhor, pensou o Zuza, bonito aspecto para se ver de longe, barra
a fora…”

Dentro em pouco o vapor começou a tombar desesperadamente. Fortaleza
já não era mais do que uma pintura microscópica diluindo-se
muito ao longe na tinta alvacenta do horizonte…

… E só agora, três dias depois da partida do Zuza é
que Maria do Carmo sentia a dor do seu abandono, ao mesmo tempo que adquirir
a certeza esmagadora de que estava para ser mãe; sim, para ser mãe
de um filho espúrio, concebido num momento de desvario, mal acordada
de um pesadelo horrível. Era de mais, era! Se dissesse que ela tinha
deixado seu quarto para ir ter à rede do padrinho, oferecendo-se-lhe
como uma fêmea desavergonhada vá; era justo que caísse
sobre si toda a cólera dos homens; mas, ao contrário, ele, o
infame do padrinho, é que fora alta noite ao seu quarto, provocar-lhe,
impor-lhe, para bem dizer, uma coisa d’aquelas, e ela, coitada, tão
inexperiente, tão tola que nem ao menos tivera coragem para dar um
escândalo, expulsando-o, como se expulsa um ladrão, dando-lhe
com a mão no focinho, embora com sacrifício de sua vida.

Chegavam aos seus ouvidos, indistintamente, como um surdo rumor de cochichos,
os ecos da maledicência. Na Escola Normal as outras raparigas atiravam-lhe
indiretas fortes, que ela não tinha ânimo de repelir como dantes.

Viam-na triste, para um canto, muito desconfiada, com grandes olheiras. Todas
notavam a alterações de sua fisionomia, e certo desleixo no
trajar, que faziam dela uma outra Maria do Carmo, albardeira e insociável,
inimiga da convivência das companheiras, egoísta, intratável.

– Aquilo é uma coisa… comentavam maliciosamente as normalistas.
A Maria viu alma d’outro mundo, não é possível.

– Que o quê, menina, são desgostos de família. Dizem
que o padrinho a maltrata.

– Quem, o João da Mata? Um grandíssimo miserável. D’aí
talvez seja isso mesmo.

– Não se iludam, meninas, insinuou a zarolha, a Maria ficou assim
depois que o Dr. Zuza foi-se embora. Ela d’antes era até uma
rapariga muito alegre, vocês não se lembram?

– Coisas deste mundo, mulher, coisas deste mundo. Ninguém deve fazer
mau juízo das pessoas.

O diretor um dia maltratou-a. Ao chegar viu desenhada na pedra da aula, a
giz, uma obscenidade. Ficou furioso, disse muitas grosserias às raparigas
e quis saber quem era a autora de semelhante indecência.

Silêncio profundo. Ninguém se atrevia a responder.

– Tenham a bondade de dizer quem fez isto! repetiu o diretor, e, de relance,
viu, na última fila, um dedo que apontava para Maria do Carmo.

– Ah! foi a senhora, D. Maria do Carmo?

Maria empalideceu.

– Eu, não senhor!

– Tenha a bondade, faça o favor de vir apagar isto.

– Mas não fui eu, Sr. Diretor, tornou ela, erguendo-se.

– Embora, venha sempre: a senhora paga pelas outras.

– Não senhor, não posso responder por uma falta que não
cometi.

– Não vem?

– Não senhor…

Toda a aula estava voltada para Maria do Carmo, medindo-a de alto a baixo,
como se vissem nela uma transfiguração extraordinária.

– Então a senhora não vem? repetiu o homem, fazendo uma carranca
medonha.

– Não senhor…

– Retire-se da aula! fez ele apontando a porta. A senhora é uma insubordinada,
desobedeceu à primeira autoridade deste estabelecimento. Vamos, retire-se!

Houve um silêncio grave, e Maria, tomando os livros, séria e
resignada, sem olhar para as colegas, retirou-se taciturna, ouvindo atrás
de si o atrito da esponja na pedra.

E tudo mais era assim, sucediam-se as contrariedades como um castigo. Crescia-lhe
na alma o desgosto, como uma nuvem que sobe no horizonte vagarosamente alastrando
pouco a pouco toda a vasta cúpula do céu para se desfazer em
chuva caudalosa. Tinha pena de não ser como as “outras mulheres”,
indiferente a tudo, até nos momentos mais difíceis da vida.
Vinham-lhe às vezes alegrias intermitentes, uma resignação
infinita animava todo seu ser, e dispunha-se a enfrentar todas as conseqüências
do seu desatino com uma calma heróica, sem dar mostra da mais leve
tristeza.

Nesses momentos abria-se em infusões de ingênua bondade para
com D. Terezinha, procurando-a, puxando conversa, oferecendo-se-lhe para pentear
o cabelo, gabando-lhe os vestidos, com uma humildade de escrava. Mas a madrinha,
seca e indomável, aborrecia-se com aquilo, enfadava-se, sempre de cara
fechada, respondendo por monossílabos às perguntas da afilhada.
Quando amanhecia mal humorada, com as suas desconfianças, inquisilava-se
demais. – “Deixe-me, criatura, deixe-me, por amor de Deus, oh!”
Maria não dizia palavra, recolhia-se ao silêncio do seu quarto
a costurar ou a ler o Almanaque das Senhoras por desfastio, para se distrair.

Entretanto João da Mata progredia no vício de beber aguardente.
Andava agora muito chegado ao Perneta e ao Guedes, de quem se dizia amigo
do coração.

A bodega do Zé Gato continuava a ser o ponto de suas reuniões,
onde se demoravam às vezes até alta noite a jogar a bisca num
esquecimento absoluto de família e de deveres, saturados de álcool,,
lívidos à luz de um miserável candeeiro de querosene.
O triste ordenado que lhe pingava no bolso em cada fim de mês escorria-lhe
por entre os dedos como azougue, transformando-se em fichas na banca de jogo
e desaparecendo como por encanto, sem que ele próprio soubesse disso.

Quantas vezes sucedia entrar em casa sem um real no bolso para mandar à
feira no dia seguinte!

Era preciso então tomar dinheiro a juros aos agiotas, correr toda
a cidade atrás de alguém que lhe emprestasse alguns mil réis
até ao fim do mês, contar as suas necessidades, as pequeninas
misérias domésticas, inventar situações incríveis.
Porque os seus “amigos do coração”, o Perneta e
o Guedes da Matraca, também eram pobretões e perdulários,
sentiam muito as necessidades do Janjão, mas não podiam lhe
ser úteis por forma alguma, senão dando-lhe a ganhar no jogo
quando a sorte o protegia.

– É. Eu bem sei que vocês também têm família
como eu e precisam também. É o diabo, é o diabo.

D’aí as dissensões, os conflitos, em casa, com a mulher
por causa de dinheiro. Ele já não conseguia impor a D. Terezinha
a sua autoridade de chefe da casa, como d’antes; ao contrário,
agora suportava-lhe as impertinências, as saraivadas de impropérios,
com uma passividade de animal submisso.

– Tenha vergonha, homem de Deus, tenha vergonha, que você já
não é criança, dizia-lhe nas bochechas, quase lhe abanando
o queixo. Olhe para as barbas que tem na cara, porte-se como gente!

Ele ouvia tudo aquilo sem dizer água vai, caladinho, como um prego,
murcho, impotente.

Como os tempos mudam! Há poucos dias era ele o forte, o manda-chuva
naquela casa; bastava um olhar seu, por cima dos óculos escuros, para
que todos, D. Terezinha, Maria do Carmo e a Mariana, estremecessem com medo,
porque sabiam de quanto ele era capaz nos momentos de cólera; agora
não, tinham-se trocado os papéis; bastava um olhar de D. Terezinha
para que ele desse-lhe as costas disfarçadamente para evitar barulho.

– Basta, basta, basta! costumava dizer quando a mulher dirigia-se para ele
com os olhos chamejantes, de mãos fechadas.

E escafedia-se até ao fundo do quintal para não lhe ouvir os
disparates.

Estava magro, muito magro, e queixava-se de dores nos intestinos.

Diabo de Repartição não lhe deixava tempo para nada.
Era um trabalhar sem descanso, sentado a uma banca, das nove às três,
copiando ofícios, riscando papel estupidamente. Se ao menos tivesse
quem lhe arranjasse com o ministro uma aposentadoria ainda que fosse com a
metade do ordenado… Mas qual! tudo uns políticos sem importância,
uns legalhés que iam para a Câmara proferir barbaridades, a repetir
que o país estava à beira d’um abismo e nada mais. Até
estimava que lhe demitissem do emprego, porque iria fazer pela vida noutra
parte, e escusava perder tempo a emporcalhar papel, para no fim do mês
– tome lá seu ordenado, uns míseros vinténs que mal chegavam
para o boi. Uma desgraça.

De resto a Maria não lhe dava muito cuidado. A princípio ainda
lhe fizera uns carinhos, dera-lhe uns cortes de chita e um rico vestido de
cassa da Índia para agradar, porque também seria uma ingratidão
vê-la para um canto a se acabar, magra e amarela que nem uma lesma.
Achava até que tinha feito muito. Outros havia piores que ele, ora!

– Meu bem, tristezas não pagam dívidas. É andar, é
andar sem olhar para trás.

Mas quando, um belo dia, Maria declarou-lhe positivamente que estava prenha,
que sentia “uma coisa” bolir-lhe na barriga, João estremunhou.
– Que se há de fazer, filha? Agora é ter paciência. Foi
uma fatalidade, foi uma fatalidade. Há de se arranjar a coisa do melhor
modo possível. Vais aí para qualquer sítio, fora da cidade,
e ninguém saberá de coisa alguma. Dá-se tanto d’isto…

– E depois? murmurou Maria mordendo a ponta do lenço, cabisbaixa.

– E depois? E depois… ora adeus! e depois dá-se a alguém
para criar o trambolho e tu voltas à tua santa vidinha.

Maria soluçava baixo, fungando numa crise nervosa.

– Já te pões a chorar como uma criança! Tolice! Estou
a dizer-te que o caso é muito simples…

Uma tarde em que o Mendes, o juiz municipal e a mulher, tinham ido passear
ao Trilho, João da Mata entrou alvoroçado, sem fôlego,
com uma notícia a escapulir-lhe da boca.- Sabem quem está muito
doente?

Todos voltaram-se surpreendidos, com o olhar cheio de curiosidade. – Não,
ninguém sabia. Algum conhecido?

– O presidente, o Dr. Castro, teve um ataque há um pouquinho. A rua
está cheia. Diz que está bem mal.

– De quê, menino? interrogou o juiz muito admirado e já nervoso.

Houve logo um interesse comovido nos circunstantes.

E João, sentando-se, sem apertar a mão aos Mendes, pálido,
limpando a testa, foi dizendo o que sabia: – Muita gente defronte do palácio.
Tinham sido chamados todos os médicos, e todos, menos o Dr. Melo, eram
de parecer que se tratava de um caso de febre amarela. O presidente tinha
acabado de jantar e lia à cabeceira da mês a correspondência
do sul chegada naquele momento, quando começou a sentir-se mal – embrulho
no estômago, tonteiras, calafrios. Imediatamente, ergueu-se, lívido,
e, ao dar o primeiro passo, caiu fulminado!…

– Ai! fez D. Terezinha cruzando as mãos sobre o regaço. E depois?

– Depois conduziram-no à cama, sem sentidos, vomitando uma coisa preta…

João fez esgar de nojo. Todos cuspiram.

– … e quando os médicos chegaram já o encontraram sem pinga
de sangue no rosto, vomitando ainda golfadas de bílis sobre a esposa
que o amparava, coitada, nem sei mesmo como…

– Coitado! lamentaram num tom arrastado as duas senhoras.

Maria do Carmo ouvia silenciosa e compungida a narração do
padrinho, ao lado do piano, com os olhos úmidos e o ar assustado.

– Mas, João, isto é sério? perguntou o juiz municipal
erguendo-se com os braços cruzados, estupefato.

– Oh! senhor, pois eu havia de inventar uma coisa d’esta? Admiro até
como vocês ainda não sabiam, porque a rua está cheia.
Eu soube ali, na bodega do Zé Gato.

Fez-se um silêncio repassado se suspiros.

– Um homem tão forte, vendendo saúde! fez o juiz.

– Mas bebia muito, coitado, tornou João da Mata, respirando com força.
Era homem que não bebia água.

– Por isso não, atalhou D. Terezinha. Que asneira! Tanta gente se
embriaga todos os dias e não lhe sucede nada.

– D’aí pode ser que escape, murmurou D. Amélia; não
queiram sepultar o homem em vida.

– Pode ser.

– Pode ser, repetiu o juiz. A ciência faz milagres.

– Que dúvida!

Então o Mendes tomando o chapéu, muito impressionado, as mãos
trêmulas:

– Bem, vamo-nos Amélia. esta vida, esta vida!

Era cedo, insistiu D. Terezinha triste. Mas os Mendes pretextaram afazeres,
lembraram as crianças que tinham ficado com a criada e despediram-se.

Maria do Carmo passou a noite nervosa com insônias, sentida com a doença
do Dr. Castro, muito apreensiva.

Não podia se conformar com a idéia da morte do presidente,
o homem da moda, o “querido das moças”, o grande amigo
do Ceará, que tantos benefícios fizera a esta província,
mandando construir açudes no sertão, reconstruindo o Passeio
Público, ativando as obras do porto, facilitando a emigração,
prodigalizando esmolas, e, finalmente, introduzindo em Fortaleza certos costumes
parisienses, como por exemplo, o sistema de passear a cavalo a chouto, de
aparar a cauda aos animas de sela.

Lembrava-se as qualidades pessoais do fidalgo paulista, o seu modo de falar
num sotaque aportuguesado, muito moderado na conversação íntima,
as suas maneiras delicadas, os seus belos dentes branquejando sob um bigode
sedoso e bem tratado. Uma vez, no baile oferecido à oficialidade do
cruzador “1º de março” dançara com ele uma
quadrilha, por sinal bebera muita champagne nessa noite a ponto de ficar um
pouco tonta da cabeça. Coitado! uma alma boa. É verdade que
tinha demitido o Pinheirão mais os filhos, deixando-os na miséria,
mas no dia seguinte mandara-lhe um envelope com cinqüenta mil réis.
Tudo por causa da política; a política é que o fazia
mau. Tinha rasgos de generosidade fidalga, lá isso era inegável,
tanto assim que um dia dera ao negro Romão, um negro sujo coma aquele,
cinco mil reisinhos. Era uma pena se morresse, coitado, havia de fazer uma
falta tão grande. … – Compadecia-se como se fosse seu parente. Balbuciou
uma promessa às almas do purgatório e só muito tarde,
pela uma hora da manhã, conseguiu adormecer.

Ao outro dia procurou saber logo como ia o presidente. As notícias
eram cada vez mais desagradáveis. As janelas do palácio continuavam
fechadas e os transeuntes olhavam contristados o casarão ao redor do
qual pairava uma melancolia lúgubre. Os boatos multiplicavam-se penetrando
todas as casas como um vento de desgraça. A Província suspendeu
a publicação por condolência, e os jornais da oposição
fizeram uma pausa nos seus ataques à administração provincial.

As filhinhas do presidente estavam em casa do José Pereira, na rua
Major Facundo, duas crianças louras e inteligentes, que falavam francês,
uma nascida em Paris, e outra no Rio de Janeiro. Um cabo de ordem, arrastando
o chanfalho, passava a toda pressa em direção ao telégrafo.
O espírito público começava a inquietar-se com a sorte
do presidente, e os próprios adversários políticos enchiam-se
de penas concentradas.

Pela noite desabou um formidável aguaceiro e toda a população,
por assim dizer toda, aguardava ansiosa, dentro da casa, ao sussurro da chuva
que caía fora, sacudida pelo vento, notícias sobre o estado
do Dr. Castro. Maria, como toda a gente sentia um peso no coração
ao lembrar-se daquele homem sadio e robusto, a seus olhos a síntese
da mais requintada elegância. que tanto amara o Ceará, e cujo
nome andava gravado a canivete até nos troncos dos cajueiros, nos sertões
por onde tinha andado, tão moço ainda e já às
portas da morte, acabando-se como qualquer mortal! – A Providência às
vezes era injusta com os homens: poupava um ente abominável como o
padrinho e um pelintra desleal como o Zuza, para aniquilar, enquanto se esfrega
um olho, um homem da força do Dr. Castro, “útil ao país
e benfeitor da humanidade!”

Indignava-se com essa preferência injusta das cortes celestes , e,
de si para si, concluía que não valia a pena uma pessoa ser
honesta, trabalhar noite e dia, dedicar-se a uma coisa nobre, engrandecer-se
aos olhos da humanidade para um belo dia – toma! vá para a cova que
é seu lugar! Uma coisa estúpida a vida, afinal de contas.

Entretanto outros viviam aí a cometer mil desatinos, a roubar, a assassinar,
a iludir os incautos e tinham vida para um século inteiro, livre de
congestões, de febre amarela e de quanta doença há.

Acordou cedo e foi pôr-se à janela à espera de alguém
que lhe desse notícias do presidente. O céu estava carregado
de nuvens compactas e neblinava. A casa da viúva Campelo, defronte,
estava fechada; a viúva tinha ido passar uns dias com a filha no Benfica.
Passou um empregado da Estrada de Ferro, condutor de trem, com as calças
arregaçadas, comendo pão. Maria chamou-o: – O Sr. sabe me dizer
como vai o presidente?

– Faleceu ás duas horas da madrugada, respondeu o sujeito, mastigando,
indiferente.

– Obrigado, disse Maria, empalidecendo, e entrou imediatamente batendo o
postigo. – Coitado! foi dizendo pela casa, com grade mágoa na voz.
Coitado! Que pena!

– Que foi? perguntou o amanuense, que subia o corredor em ceroulas.

– O presidente morreu!…

João parou assombrado como se lhe tivesse caído um raio defronte.

– Morreu, hein?!

– Disse-me agora mesmo um empregado da Estrada de Ferro.

– Realmente! E vá gente se fiar na justiça divina! Morre um
homem d’aqueles, da noite para o dia, como qualquer bêbedo!

E lá foi resmungando contra Deus e contra os padres.

Os sinos da Sé começaram a dobrar a finados. Aumentava a chuva,
que já se ouvia chiar nas calçadas como uma panela fervendo.

Maria entrou para o seu quarto, aflita. Essa manhã foi para ela de
tristeza e desânimo. Acudiam-lhe à imaginação lembranças
extravagantes, idéias lúgubres, como aves negras que pousassem
de chofre num arvoredo, alvoraçadas, cantando sinistramente. Caía
em abstrações prolongadas em que se punha a contar os dedos
maquinalmente, como se fosse ensandecer. Apoderou-se dela um medo pueril,
um inexplicável pavor das coisas sombrias, um supersticioso receio
d’almas d’outro mundo, um mal estar, um quer que era que lhe trancava
a respiração, que lhe oprimia o peito.

Procurava disfarçar as apreensões, arrumando os trastes do
quarto, mexendo nos baús, numa inquietação crescente,
num vira-e-mexe cada vez mais açodado, abrindo e fechando gavetas,
atarantada, com o coração aos pulos.

– O enterro! o enterro! bradou à porta a Mariana que ia às
compras.

Todos correram à janela. D. Terezinha, na precipitação,
deixou cair um copo, que se esfarinhou; e João da Mata esquecera os
óculos, enfiando as mangas da camisa.

Maria arrancou como uma louca, dando um encontrão na mesa do centro
da sala de visitas.

Continuava a chover, agora devagar, com uma insistência importuna,
o sol a espiar por trás d’uma nuvem, frio, indeciso, mandando,
com um supremo desdém pelas coisas cá de baixo, uma réstia
de luz tímida e complacente sobre a manhã úmida.

O enterro do presidente passava na esquina, caminho do cemitério.

Maria do Carmo assistia com a respiração suspensa e um nó
na garganta o desfilar do préstito, o caixão levado por seis
homens de preto, coberto de galões dourados debaixo da chuva miúda,
o acompanhamento – uma comparsaria dispersa de gente de todas as classes de
chapéu-de-chuva aberto, marchando resignadamente ao som da música
do batalhão que tocava à funeral.

Os padres já tinham passado, na frente, com os seus acólitos,
muito graves, olhando para o chão evitando as poças d’água.
Um carro seguia atrás, todo fechado, devagar.

E a chuva a cair e a música a tocar o funeral, deixando por onde passava
uma tristeza vaga que lembrava um dia de finado entre as sepulturas…

D. Terezinha enxugava os olhos com a aba do casaco e João da Mata
pigarreava disfarçando a comoção.

Maria ficou à janela vendo passar o resto do acompanhamento, sujeitos
sem paletó, de chapéu de palha de carnaúba, outros sem
chapéu.

– Que triste, meu Deus!

E entrou muito inquieta, com um frio na medula, as pupilas dilatadas, pálida,
toda trêmula. Mas no meio da sala perdeu o equilíbrio – escureceu-lhe
a vista, tropeçou numa cadeira e estendeu-se no chão pesadamente,
como morta.

– Chega! A Maria teve uma coisa! gritou D. Terezinha, correndo para a filhada.
Chega, Janjão, chega depressa!

– A água Florida, a água Florida, em cima da cômoda!

O amanuense precipitou-se pelo corredor a grandes passadas, atônito,
aterrado, sem saber o que fizesse, seguido pelo Sultão que lhe tomou
a frente ganindo.

– Jesus, o que foi?!

– Sei lá, uma coisa que lhe deu de repente… Segura aí nos
braços…

E ambos, João da Mata e a mulher, pálidos, muito vexados, conduziram
a rapariga para a alcova, arrastando os pés com o peso.

– Chega depressa água Florida, mandou João abando o rosto à
doente

D. Terezinha trouxe a garrafa e começou logo o afanoso trabalho de
umedecer a têmporas de Maria, dando-lhe a cheirar o líquido,
friccionando-lhe a testa com força, numa aflição.

– Um copo com água, um copo com água, Janjão.

Maria deu um grande suspiro, entreabrindo os olhos, estendida no comprido
na larga cama de jacarandá.

– Cheira mais, cheira mais, recomendava D. Terezinha, agora mais aliviada.

Maria murmurou que estava melhor.

– Já pode se sentar? perguntou o amanuense, chegando o copo. Vá,
faça um esforçozinho… Upa!

– Não seria bom chamar o médico? lembrou D. Terezinha.

Maria fez com a mão que não, e com a voz fatigada, apoiada
ao espelho da cama: – “Não era preciso, já estava boa…”

– Sentes alguma coisa? quis saber o amanuense. Se sentes, dize.

– Apenas uma dorzinha aqui… – E indicou o flanco esquerdo.

– Bom, bom, bom, quietinha…

E desde esse dia aumentaram as suspeitas de D. Terezinha, que observava agora
os menores movimentos da afilhada, insistentemente, examinando-lhe a roupa
usada, medindo-lhe o volume da barriga, perseguindo-a com os olhos.

– Isto, isto ainda acaba mal! pensava ela.

XIII

Em poucos meses o estado interessante de Maria do Carmo foi carecendo de
cuidados mais sérios, e João da Mata assim o julgou, tratando
logo de arranjar uma casa, um sítio nos subúrbios, onde ela
pudesse tranqüilamente e sem escândalo, alijar a carga, desembuchar
a criança. Mas onde e como poderia ele dispor as coisas do melhor modo,
sem despertar a curiosidade pública? Esta era a grande questão
que afligia o amanuense, cada vez que seu olhar vesgo descia sobre o ventre
da afilhada, vendo-o crescer dia a dia, tomar uma forma esférica iniludível,
arredondar-se, arquear-se para fora numa convexidade característica
e esmagadora. – “E agora?” interrogava-se ele, passando a mão
na calva. O caso ia se tornando grave, urgia fazer qualquer arranjo logo e
logo, antes que a Teté rebentasse por aí em quatro pedras a
acusá-lo violentamente, atirando-lhe em rosto a sua infidelidade, o
seu crime, a sua pouca vergonha. A rapariga engordava a olhos vistos: só
um cego não veria dentro d’aquela redondeza uma criatura humana
em formação.

Toda ela – o ventre, os seios, os braços, o rosto – inchava, adquiria
um cunho extraordinário de maturidade precoce. Notavam-se-lhe agora,
asperezas na pele, uma cor seca de folha sazonada e certo ar amolentado que
se traduzia numa sonolência infinita e na prematura tendência
para o abandono de si mesma.

Com efeito, Maria, apenas com quatro meses de grávida, tinha perdido
muito da antiga expressão insinuante e viva de sua fisionomia. Na idade
em que a mulher, como a flor, em plena exuberância dos tecidos, desabotoa
numa singular alacridade de cores, toda frescura e beleza, ela, que não
transpusera ainda os dezoito anos, olhava a vida com uma indiferença,
única, estiolando ali assim entre as paredes d’aquela casa sem
ar e sem luz, esperando resignadamente o seu fim. Queria ver até quando
duraria aquele estado de coisas, até onde a queriam levar!

Já não chegava à janela com vergonha de ser vista pela
vizinhança e pelos conhecidos – refugiara-se, como uma culpada, no
ádito misterioso do seu quarto, egoisticamente, sem ao menos lembrar-se
da Lídia que não a esquecia e que lhe mandava de onde em onde
presentezinhos, recados e abraços.

E João inquietava-se, procurando meio de evadir-se da alhada em que
se metera com risco de um escândalo medonho!

Havia um mês que Maria do Carmo caíra com o ataque no meio da
sala. D. Terezinha ruminava sutilidades para descobrir uma sombra sequer,
um vestígio que confirmasse de uma vez as suas suspeitas. Batera todos
os aposentos, todos os cantos da casa, indagara da lavadeira se não
vira alguma nódoa, alguma mancha na roupa da afilhada; acordava vezes
sem conta, alta noite, prestando ouvidos a qualquer ruído, por mais
leve, e nada! absolutamente nada! Faziam-lhe espécie os modos reservados
de Maria, esse impenetrável desgosto que a punha triste, com um ar
esquisito de “galinha choca”. Alguma coisa havia, por força,
era capaz de jurar.

D. Terezinha nunca mais dormira com João da Mata e era só quem
passava bem naquela casa; até estava criando banha no pescoço.
Pudera! Uma vida relativamente calma, senhora absoluta de seu nariz, ganhando
um dinheirão com o negócio de rendas que mandava para o norte
pelo despenseiro do vapor, tudo corria-lhe às mil maravilhas. Queria
ter um pesinho para rusga, isso queria. E se ainda “fazia vida”
com o Janjão, era por condescendência, para não dar escândalo;
achava feio uma mulher deitar-se com um homem e depois – passe bem – abalar
por esse mundo afora, como uma doida, atrás de aventuras. Não
era mulher para essas coisas; o que queria era o seu descanso – comer bem,
dormir bem, passar bem; não admitia que a fizessem de tola.

Tinha uma amiga sincera – a Amélia, senhora do Dr. Mendes. Essa, sim,
sabia-lhe apreciar as virtudes, dar-lhe importância, tratá-la
com consideração, mesmo porque ela, Terezinha, trabalhava para
ganhar a vida honradamente.

– Você é tola, Teté, a gente não deve se matar,
dizia-lhe a mulher do Dr. Mendes.

– Lá isso é verdade, mas você o que quer? É fado,
é mania…

As conhecidas admiravam-lhe a boa disposição para o trabalho.
Sentava-se à máquina às dez horas do dia, cabelos úmidos
sobre a toalha de banho estendida nos ombros e labutava três, quatro
horas consecutivas a cantarolar modinhas, costurando para o fornecedor da
polícia.

E sempre gorda, sadia e forte!

– Mulher mouro! dizia João da Mata aos amigos.

Uma tarde, ao voltar da rua, o amanuense entrou alegre, como se tivesse tirado
a sorte grande na loteria, saboreando um charuto mau que lhe dera o Guedes.
Vinha um pouco toldado.

– Olha esse jantar! bradou para dentro, atirando fora aponta do charuto.
E começou a cantar desafinadamente os Sinos de Corneville, então
muito repisados

Vai, marinhei…ro,

vôa ligei…ro,

velas à brisa

no espelho do mar

E logo:

Nunca percas a esperan…ça,

Quando houver temporal,

que há de ver a bonan…ça,

e depois o … final

– À cena a Naghel, à cena a Naghel! bradava o amanuense batendo
as palmas com fúria.

– Ainda mais esta! resmungou D. Terezinha na sala de jantar.

– Olha essa lambugem! tornou João enfiando pelo corredor.

Estava num de seus dias felizes. Foi até à cozinha acompanhado
pelo Sultão que lhe pulava às pernas, ganindo alegre. Mariana
mexia o pirão escaldado de farinha num velho alguidar de barro, com
a saia arrepanhada na cintura, o casaco desabotoado, exibindo como de costume,
o seu detestável colo nu.

– Como vai isto, ó estafermo! rosnou o amanuense, espalmando a mão
em cheio nas ancas da rapariga.

– Sô Janjão… fez esta pudicamente.

E João trauteou, fazendo festa ao cão.

Mariana diz que tem

sete saias de veludo…

– Tenha modos, homem de Deus! repreendeu D. Terezinha. Tenha juízo,
dê-se a respeito!

– É boa! Então já não de pode ser alegre?! Ora
muito obrigado!

Durante o jantar declarou que a Maria, no dia seguinte, domingo, ia passar
uma semana no Cocó, em casa da tia Joaquina, conhecida pela velha dos
cajus.

– Faz ela muito bem, aprovou D. Terezinha, com enfado, cortando o cozido.

E João, muito meigo, olhando por cima dos óculos:

– Você compreende, ela anda adoentada, teve outro dia aquele ameaço…
não tem apetite, e o médico, o Dr. Azevedo, disse-me a mim que
aquela gordura não val’nada, é toda postiça, é
uma gordura falsa… Sim, a rapariga coitada, precisa tomar o seu leitinho,
descansar um pouco…

Maria, que se sentara defronte da madrinha, não pode ocultar seu embaraço.
Fez-se escarlate, e muito submissa:

– É se a madrinha consentir…

– Ainda mais esta! Podes ir até p’ra China quanto mais p’ro
Cocó!…

– E tu, não queres ir também? perguntou João com certa
frieza.

Mas D. Terezinha torceu o beiço com desdém:

– “Só se estivesse doida, credo”.

– Vá você com sua afilhada.

– Ah! se eu pudesse passar uma temporadazinha fora… suspirou João.
Mas qual, minha filha, não posso faltar um só dia à Repartição,
que o chefe não venha logo com os seus arrebatamentos que o governo
não sustenta vadios, que o empregado público deve ser infalível
como o papa, e tanta asneira!… Coitado, já está velho e suspira,
como eu, por uma aposentadoria.

Houve um ligeiro silêncio.

– Pois é isto, tornou o amanuense limpando o bigode com a toalha.
Está ouvindo, Maria? Prepare o seu bauzinho, a sua roupinha. Amanhã
depois da missa da madrugada. É p’ra lá do Outeiro, na
Aldeola, um sitiozinho, um lugar muito bom, muito saudável. A casa
é que é pobre, mas, ora! pobres somos nós também…

Os talheres batiam nos pratos com força. João falava mastigando,
com a boca cheia, cortando o invariável e sediço lombo assado,
com uma voracidade espantosa.

Galinhas debicavam debaixo da mesa, cacarejando. Sultão muito rechonchudo,
sentado nas patas traseiras, orelhas em pé, alongava o olhar súplice
para cima, à espera que lhe caísse um osso ou uma pelanca. Ouvia-se
o miar desesperado de um gato na cozinha. De onde em onde a voz da Mariana
punha em debandada os parasitas de crista: – “Chô, galinha! Chô!…”

Havia um rumor d’asas pesadas, e um velho galo de cauda furtacor estendia
o pescoço num cocorocô estridente e prolongado que fazia João
fechar os ouvidos, berrando para Mariana que enxotasse “aquele demônio”.

A sala de jantar era uma espécie de alpendre assentado sobre grossos
pilares de tijolo, abrindo toda para o quintal, onde, àquela hora,
via-se a roupa lavada a enxugar, de uma brancura de hóstia, ao redor
da cacimba. Fazia ângulo à esquerda com a cozinha, e, à
direita, um velho muro escalavrado separava o quintal d’outros quintais,
com uma medonha dentadura de cacos de garrafa.

Desde as três horas começava a fazer sombra no alpendre e às
quatro já se podia respirar ali a frescura das ateiras.

Sobre a mesa nada mais que um toalha com manchas de gordura, pratos e copos
em desordem, uma moringa muito estragada, bananas e laranjas.

D. Terezinha fazia bocados de pirão com os dedos em pinha e atirava
a Sultão.

– Boa alma aquela tia Joaquina, continuou o amanuense acendendo o cigarro.
O mestre Cosme, esse é um homem pobre, coitado, mas honesto como poucos.
Vive de vender lenha na feira… Bom velho!

– Leva estes pratos, Mariana, disse D. Terezinha erguendo-se.

Tinha jantado num momento.

A tia Joaquina, conhecida no mercado pela velhinha dos cajus, e mais o mestre
Cosme, eram um pobre casal que moravam na Aldeota, cerca de um quilômetro
da cidade, numa casinhola de taipa, dentro de um largo cercado de pau-a-pique
plantado de cajueiros, todo verde no inverno, com um grande poço no
centro, cavado toscamente, e ao fundo do qual sangrava um veio d’água
cristalina.

Era aí que viviam, há anos, desde a seca de -77, entre brenhas
de camapus e matapasto, à sombra dos cajueiros, felizes, sem filhos.
Corria-lhe a vida como um abundante manancial d’águas límpidas
em leito de areia.

Pela manhã, muito cedo, mestre Cosme saltava da rede armada no alpendre,
enfiava a grossa camisa d’algodão e lá ia, com um xícara
de café no estômago, atrás da jumenta, da sua inseparável
jumenta, que lhe dava o pão de cada dia e que carinhosamente chamava-a
Coruja. O dócil animal costumava pastar à beira da cerca, tão
feliz quanto o dono, cuja presença punha-lhe uma expressão reconhecida
no olhar manso. Mestre Cosme metia-lhe o focinho no freio, armava-lhe a cangalha,
e abalava para o morro do Cocó a explorar a mata, a fazer lenha para
vender no mercado a dez tostões a carga. Um dinheirão!

Mestre Cosme não queria vida melhor. Ao por do sol voltava com seus
ricos dobrões na ponta do lenço, escanchado na Coruja, sem cuidados,
debaixo do seu grande chapéu de palha de carnaúba.

Tia Joaquina ficava trocando os bilros na almofada, Mas, em chegando o fim
do ano, ia também à cidade fazer o seu negócio, com uma
grande cuia na cabeça: – “Olha o cajuzinho bom do Cocó!
Olha o cajuzinho bom!” E voltava com a cuia vazia e com a isquinha de
fígado para a ceia ou com o cangulinho fresco d’alto mar.

Chamavam-na a velhinha dos cajus, porque os cajus que tia Joaquina vendia
tinham um sabor especial, eram doces como açúcar.

Queriam-se os dois como um casal novo em lua de mel. “meu velho”
e “minha velha” – é como se tratavam.

João da Mata conhecia-os de longa data, desde a seca, por sinal naquele
tempo tinham uma filha moça – também Maria (Maria das Dores)
que morrera das febres em 77. João era comissário de Socorros
e fazia-lhes muitos benefícios. Mestre Cosme morava, então,
no Pajeú, numa palhoça miserável.

– Tempo de calamidades! murmurava o velho ao lembrar-se da seca.

O amanuense viu o mestre Cosme no mercado e teve a idéia de lhe falar
da ida de Maria do Carmo para a Aldeota “-Tinha um grande favor a pedir
ao mestre Cosme”, começou, pousando a mão no ombro do
velho

– Pois diga lá… Seu Joãozinho sabe que a gente vive no mundo
p’ra servir uns aos outros…

– É isto, mestre Cosme: A Maria, minha afilhada, tem andado doente,
coitada, está fraquinha, precisa tomar um pouco de leite fora da cidade…
Eu queria que ela fosse passar uns tempos no Cocó, a rapariga tem um
fastio que até mete pena…

O bom velho ficou admirado: “- Só isso?… Ora, seu Joãozinho,
isso não é favor! Eu até estimo. A menina pode ir quando
quiser. È casa de pobre, vocemecê bem sabe, mas a gente sempre
veve…

– Pois está bem, mestre Cosme, a pequena vai domingo cedo. Diga à
tia Joaquina. Deixe estar que não lhe esquecerei. Lembra-se da seca?…

– Se me alembro? Ora, ora, ora, como se fosse hoje. Comi muita farinha do
seu Joãozinho, pois não hei de me alembrar? Aquilo é
que foi morrer gente!…

– Bem. Você ainda mora na mesma casa, não é assim?

– Sim senhor, p’ra lá do Asil; na Aldeota, à direita
de quem sobe…

– Muito bem, adeus. Domingo, sem falta. Tome lá p’ra você
comprar fumo.

E João deu um níquel ao velho.

Estava tudo arranjado.

O amanuense começou a ver claro na espessa caligem de seu espírito.
Decididamente era um homem de recurso.

No domingo, com efeito, depois da missa da madrugada na Sé, Maria
do Carmo e o padrinho seguiram para a Aldeota, a pé.

Ainda tremeluziam estrelas no alto. Para as bandas do Coração
de Jesus, por ente os coqueiros que se avistavam da praça do Colégio,
nuvens esfarripavam-se numa soberba apoteose de púrpura e violeta.

Tinham-se apagado as luzes da cidade e pouco a pouco, imperceptivelmente,
como numa mágica, sucediam-se as nuances, cada vez mais claras, esbatendo
o contorno das coisas há pouco difundidas numa meia tinta escura. Ia-se
fazendo gradativamente a majestosa mise-en-scêne do dia: clarões
rasgavam-se d’um e d’outro lado do horizonte, incendiando a fachada
dos edifícios e o cabeço dos montes longínquos, iluminando
tudo…

Ao passarem pela Imaculada Conceição, a normalista olhou por
entre as grades do colégio. Lá estavam, como antes, sombrios
e silenciosos, os quatro pés de tamarindo, numa imobilidade tímida
e respeitosa. Ouvia-se lá dentro o coro abafado das educandas ora pro
nobis…ora pro nobis. Maria teve um estremecimento, um vago desejo de viver
como as irmãs de caridade; mas passou logo…

Ia vestida de preto, com o pescoço e a cabeça envolvidos num
fichu cor de creme, segurando o manual da missa.

João ao lado fumava distraidamente, muito preocupado.

Chegaram à praça do Asilo. O grande edifício, à
esquerda, abria as janelas sonolentas para o descampado. Havia luz dentro.
À direita, no meio da praça, a “cacimba do povo”,
cor de tijolo, em forma de quiosque, desolada àquela hora, tinha um
aspecto misterioso, quase lúgubre. E adiante, lá longe, por
trás da floresta baixa e espessa, branquejavam os morros do alto Cocó.

Já era dia. Mulheres em tamancos passavam para a cidade falando alto,
de cachimbo no queixo, cuia de hortaliças na cabeça, ar desenvolto,
chale trançado.

João da Mata perguntou a uma delas “se ainda estava longe o
mestre Cosme?”

– Hum, hum, respondeu a mulher, meneando a cabeça, sem tirar o cachimbo
da boca.

E voltando-se:

– Está vendo aquele cercado lá adiante, aquela casinha branca
na encruzilhada? pois é ali.

– Obrigado.

Corria um ar fresco e matinal. Revoada de periquitos, num vôo de flecha,
cortavam a limpidez da atmosfera e desciam d’um e d’outro lado
da estrada sobre o matagal espesso e verde. As primeiras chuvas do ano tinham
fecundado a terra, cuja exuberância ostentava-se agora prodigiosamente
na esplêndida paisagem que os olhos de Maria do Carmo viam com admiração.
Sentia-se um fartum de terra úmida que fazia gosto. As matas da Aldeola,
de um verde gaio pitoresco, estendiam-se por ali fora, a perder de vista,
eriçadas pelo terral, sob a larga irradiação do sol nascente.

Aquela estrada branca de areia, larga e interminável, desenrolava-se
aos olhos da normalista como uma via láctea de ilusões, como
um caminho de ouro que a conduzisse a uma outra vida, completamente outra
daquela que até ali vivera, a uma vida sossegada, sem hipocrisias e
sem traições, sem dores e sem lágrimas…

Fazia-lhe bem, como um tônico, o ar fresco da manhã que lhe
bafejava o rosto. Sentia-se melhor respirando aquele ar, bebendo toda a selvagem
frescura do campo, todo o delicioso, o inefável perfume que se levanta
dos crotons e das salsas bravas.

– Que dizes a isto, hein? perguntou João bruscamente, apontando o
campo. Vais engordar, minha filha, vais passar bem. Para longe a tristeza,
para longe as mágoas, e deixa correr o marfim.

E descrevendo um círculo com a mão espalmada.

– Como está isto bonito! Não há notícia de inverno
igual. Mete inveja, a quem mora naquele inferno de cidade. Uma delícia,
Maria, isto é que é vida! O que vais engordar!

Aproximaram-se da casinha de mestre Cosme. Vacas babujavam silenciosamente
e voltavam a cabeça com uma vagarosa melancolia no olhar.

Os velhos já estavam de pé na porteira do cercado.

– Ora muito bom dia! saudou o amanuense

– Louvado seja N. S. Jesus Cristo, correspondeu a tia Joaquina, recuando.
– Então é esta a sua afilhada.

– Esta mesma, tia Joaquina. Moça feita e… bonitona, como está
vendo.

– Entrem, entrem, convidou mestre Cosme solícito.

– Sim senhor! fez a velha admirada. Bonita mesmo, pode dizer! Coitadinha,
parece que vem tão cansada…

Maria teve um sorriso consolado. Estava, com efeito, cansada e pálida.

Houve logo um princípio de intimidade entre ela e os velhos, que não
cessavam de contemplar o seu belo perfil de noviça envolto numa penumbra
melancólica.

Provisoriamente instalada no seu bucólico e nemoroso retiro da Aldeota,
longe de tudo que lhe arreliava o juízo, a um bom quilômetro
das rabujices de D. Terezinha e do mau hálito de João da Mata,
outra foi com efeito a vida de Maria do Carmo. O viver simples e sossegado
de Mestre Cosme e da tia Joaquina, o aspecto úmido da mata resplandecendo
num fundo verde claro e onde variados matizes da flora agreste punham efeitos
surpreendentes, o bom leite puro e fresco bebido pela madrugada à porta
do curral, e, à tardinha, quase ao anoitecer, o violão de mestre
Cosme gemendo saudades de um país remoto e abençoado, a liberdade
que se bebia ali na larga convivência da Natureza, tudo isto robustecia-lhe
o corpo e a alma, inoculando-lhe no sangue um conforto viril, ressuscitando-lhe
o quase extinto amor à vida, a alegria, a mocidade, e as apagadas reminiscências
do bom tempo em que ela, ainda inocente, em Campo Alegre, ia esperar o papai
que voltava da vasante.

Que mudança na sua vida, que transformações desde 77!
Antes nunca tivesse saído da Imaculada Conceição para
se meter numa escola sem disciplina e sem moralidade, sem programa e sem mestres,
e onde uma rapariga, filha de família, é expulsa da aula porque
outra de maus costumes escreveu obscenidades na pedra!

Mil vezes a Imaculada Conceição com os seus claustros, com
as suas capelas, com o seu silêncio respeitoso, com a sua disciplina
austera; ao menos não teria voltado à casa dos padrinhos, àquela
maldita casa de hipócritas, e não teria dado espetáculos
com Sr. Zuza.

Ah! o Zuza… Vinha-lhe um forte desejo de vingar-se do estudante, de caluniá-lo
e de culpá-lo pela sua desgraça. Àquela hora o que não
estariam dizendo d’ela na cidade?…

Pensava essas coisas no seu pobre quartinho de taipa abrindo para a Natureza,
enquanto tia Joaquina fazia rendas.

Dentro de um mês era notável a influência do campo na
sua saúde. Criara novas cores, novo sangue, muito solícita agora
nas preocupações domésticas.

– A menina Maria está criando banha! admirava a tia Joaquina. Sim
senhora!

– O leite, tia Joaquina, o leitinho é que tem me feito bem.

João da Mata aos domingos, invariavelmente, ia ver a afilhada, afetando
grande interesse por seu estado. Dizia-lhe as novidades, os escândalos,
dava-lhes lembranças da Lídia Campelo, e, ao retirar-se prevenia:
– “Se houver necessidade mandem-me dizer”.

– Vá descansado, seu Joãozinho, vá descansado, que há
de chegar o dia…

Mas o estado de Maria do Carmo não inspirava cuidados. O útero
revigorava, funcionando com a regularidade precisa d’uma excelente máquina
moderna; por sinal Maria, desde que se mudara para a Aldeota, nunca mais sentira
pontadas.

O amanuense exultava, alegre e feliz. A princípio receara um aborto,
mas agora tinha a certeza de que triunfavam as qualidades procriadoras da
rapariga.

– É, pensava ele, roendo o canto das unhas. Um bom útero é
tudo na mulher: eqüivale a um bom cérebro!

E esquecia-se a filosofar na vida intra-uterina, admirando-se muito do que
uma simples gota de esperma pudesse gerar um homem!

XIV

A ausência de Maria do Carmo não passou despercebida às
rodas de calçada e aos freqüentadores do Café Java, cujo
tema quotidiano – a política – não lhe satisfazia o prurido
de entrar pela vida alheia a esmiuçar escândalos como quem procura
agulha em palheiro.

Nas portas de botica, nos cafés, nas repartições públicas,
mo mercado, em toda aparte comentava-se o desaparecimento da normalista, em
tom misterioso e com risadinhas sublinhadas a princípio, depois abertamente,
sem rebuços, com uma ponta de perfídia, traindo a sisudez convencional
da burguesia aristocrata.

Que tinha ido tomar ares a Maracanaú, afirmavam uns acentuando a ironia:
outros – que andava adoentada de uma pneumonia “proveniente de desarranjos
na madre”; outros – que estava proibida de sair à rua e de chegar
à janela por desconfianças do amanuense. Alguns, porém,
como o José Pereira, comunicavam secretamente, pedindo toda a cautela,
que a rapariga tinha sido raptada por um paraense e que se achava depositada
no Cocó, em casa de uma tal Joaquina Xemxem, por sinal o Manoel Pombinha,
tipógrafo, “os vira passar uma note embuçados numa capa
preta” caminho do Outeiro.

Na Escola Normal rebentavam suspeitas à flor das discussões
que preenchiam o intervalo das aulas.

Quem, a Maria do Carmo? Aquela mesma não era mais moça, não,
meu bem. Ela sempre fora muito metida á aristocrata, por isso mesmo
caíra na mãos de um Zuza. Era bem feito! Uma grandíssima
orgulhosa com carinha de santa. Aí estava a santidade…

Vinham à baila casos análogos de filhas-famílias que
tinham ido para fora da cidade tomar ares e, no fim de contas, iam mas era
“desembuchar” onde ninguém pudesse ver…

– Então, já apareceu a rapariga? perguntava-se com interesse.

O Guedes ardia em desejos de saber a verdade nua e crua. Diabo de tantas
histórias e ninguém descobria a incógnita do problema.

Aproveitou uma ocasião em que João da Mata jogava a bisca no
Zé Gato. O amanuense estava já um pouco atordoado pela cachaça.

É agora! pensou da Matraca, e formalizou-se, carregando o chapéu
para a nuca.

– Então é verdade o que se diz por aí, ó João?

– Sobre os amores secretos do falecido presidente?

– Não, homem, não é essa a ordem do dia. Isso passou.
A questão é outra.

– Desembucha!

– Pergunto se é verdade o que corre sobre…

-… Sobre a Maria do Carmo? Uma calúnia, seu Guedes, uma calúnia.
Você bem conhece este povo.

– Eu já tinha dito isso mesmo a alguns amigos: que a D. Mariquinha
era incapaz de semelhante procedimento.

– Idem, idem, atalhou o Perneta embaralhando as cartas. Essa é a minha
opinião.

– E que fosse verdade, continuou João da Mata partindo o baralho,
e que fosse verdade, não era da conta de ninguém.

– Que dúvida! confirmou o Guedes.

– Mando copas, rosnou o amanuense.

E o jogo continuou sem que o Guedes soubesse a verdade.

Mas, ao retirarem-se, cerca de meia noite, interpelou novamente o amanuense
na esquina, à luz de um lampião. João da Mata cambaleava,
equilibrando-se, a praguejar contra o calçamento das ruas e contra
a Câmara Municipal. A rua do trilho perdia-se na escuridão, silenciosa
como um subterrâneo.

O Guedes tinha tomado pouco nesse noite e fumava o seu cigarro com um grande
ar de superioridade, pisando forte, o gesto largo e o paletó aberto
num abandono frouxo de boêmio.

– Cuidado ! não vás cair, avisava com as mãos nos ombros
do outro.

– Que cair nada, homem! Pensas tu que estou bêbedo, hein? estás
muito enganado! O diabo dos óculos escuros é que não
me deixam ver bem…

– Por aqui, por aqui, guiava o Guedes, cauteloso. Espera, vais fumar um cigarrinho
fino…

Pararam. Um polícia passou do outro lado da rua, sonolento e lúgubre.

Então o redator da Matraca abraçando o amigo pelo pescoço,
depois de lhe ter dado o lume:

– Tu não me quiseste ser franco ainda agora na presença do
Perneta, mas nós somos amigos… tu sabes… Aonde diabo meteste tu
a rapariga?

João cuspinhou para o lado.

– Hein?

– A Maria do Carmo, onde anda ela?

– Ah! seu marreco, você quer saber onde está a rapariga, hein?
Pois não lhe digo, não…

– Fala sério, homem. Dizem que está no Cocó, que teve
um filho?… Juro-te como esta boca não se abrirá… Sentemo-nos
aqui um pouquinho, que ainda não deu meia-noite.

Sentaram-se à beira da calçada, debaixo do gás e o amanuense,
encostando-se à coluna do lampião, o chapéu, o inseparável
chile enterrado na cabeça, foi dizendo à meia voz:

– A coisa não é como se diz, seu Guedes; a verdade é
esta, que eu lhe confio porque sei que você é meu amigo: a menina
está no Cocó, mas ainda não teve a criança…

– Ah!…

– Sim, quero dizer, você bem sabe o que quero dizer…

O Guedes era todo ouvidos.

Luziam-lhe os bugalhos no fundo das órbitas, parados, imóveis,
caindo sobre o amanuense com a fixidez de clarabóias de vidro. Sentia
um prazer especial, uma comoçãozinha esquisita, um extraordinário
bem estar ao ouvir a história, a verdadeira história do escândalo,
narrada pelo João da Mata, pela própria boca do padrinho da
rapariga, gente de casa, testemunha ocular.

Encolhia-se todo de gozo, ante aquelas maravilhosas palavras do amanuense.

– E o pai?

– Que pai? O pai morreu no Pará…

– Não, homem, o pai da criança…

– Sim… o pai da criança, o Zuza? Pois não foi-se embora para
Recife? Aquilo é um infame, um biltre… Eu cá previa tudo quando
proibi formalmente que a pequena lhe mostrasse o nariz, logo a princípio,
mas, que querem? encontravam-se na Escola Normal, no Passeio Público,
e, afinal foi o que resultou…

Soaram doze badaladas graves e dormentes na Sé. João contou
uma a uma.

– Meia noite, seu compadre, vou-me embora, adeus! Perdi hoje tanto como dez
pintos.

E separaram-se friamente, como dois desconhecidos.

Perto de casa o amanuense esbarrou com um vulto que se movia no escuro, –
era um burro, o pobre animal babujava a rama da coxia, solitário e
mudo.

Uma vez senhor do segredo, o Guedes não se conteve, disse-o, ao ouvido
Perneta, e com pouco ninguém ignorava na cidade, “que a normalista
do Trilho fora desembuchar, ao Cocó, um filho do Zuza”.

– Do Zuza? exclamou o José Pereira ao saber da novidade na redação
da Província, pela manhã.

– Sim, do Zuza, confirmou o Castrinho pousando a pena atrás da orelha.
É o que diz o público. Vox populi…

– E esta!

José Pereira arrepanhou as abas da sobrecasaca, e, passeando o olhar
sobre a banca de trabalho onde destacavam dois grandes dicionários
de Aulete, sentou-se vagarosamente, voltando para o poeta.

– Admira-se você, tornou este. Oh! homem, pois um fato que toda gente
previa!..

O outro recomendou que falasse mais baixo por causa dos tipógrafos…

E o Castrinho, à meia voz, estrangulado por uns colarinhos extraordinariamente
altos:

– Qual! O fato está no domínio público, não há
por aí quem não o saiba. Dizem que o velho Souza Nunes só
falta perder a cabeça.

Em todo caso sempre era prudente guardar certo sigilo, negar mesmo , se possível
fosse, uma vez que se tratava da reputação do Zuza…

Meninos de bolsa a tiracolo questionavam com o agente da folha, do outro
lado do tabique que dividia a sala da redação e onde se viam
o empilhamento de jornais sobre uma velha mesa gasta.

Daí a pouco entrou o Elesbão, outro redator, um sujeito lúgubre,
muito pálido, faces encovadas, olhar triste, tossindo devagar. Foi
perguntando, numa voz sumida e lenta, do que se tratava.

O Castrinho disse, empertigando-se na cadeira, que se tratava “dos
brios da sociedade cearense”. O outro arregalou os olhos com ar de espanto.
– Como assim? E explicou: Tinha estado fora, na Guaiúba, a leites,
não sabia as novidades.

– Um fato muito natural, disse José Pereira, nada mais que a reprodução
de fatos velhos… Não valia a pena tocar na ferida…

Mas o Eslebão estranhou que “os colegas” tivessem segredos
para ele… E, depois de saber o “mistério”:

– Magnífico assunto para folhetim realista, hein?

Escrevia folhetins realistas para o rodapé da Província e trabalhava
num livro de fôlego, os Mistérios de Arronches, com que, dizia,
pretendia fundar uma escola “mais consentânea com o estado atual
da ciência”.

A sua opinião sobre o novo escândalo que preocupava agora a
população cearense era que “nós ainda não
tínhamos compreendido o importante papel da mulher na civilização”.

– A educação feminina, acrescentou com cansaços na voz,
a educação feminina é um mito ainda não compreendido
pelos corifeus da moderna pedagogia. Queríamos introduzir no Ceará
os dissolventes costumes parisienses, à fortiori, mas não eram
essas as tendências do nosso povo essencialmente católico e essencialmente
crédulo. Não admitia a teocracia tal como a aceitavam os padres
– “essa corja de especuladores” – mas era preciso respeita as
crenças populares, o verdadeiro sentimento religioso, sem hipocrisia,
sem preconceitos.

De quando em quando a tosse o interrompia, uma tossezinha seca e pigarreada;
levava a mão ao peito e expectorava. – “Diabo de catarro não
o deixava em paz!”

E, continuando:

– Que é a Escola Normal, não me dirão? Uma escola sem
mestres, um estabelecimento anacrônico, onde as moças vão
tagarelar, vão passar o tempo a ler romances e a maldizer o próximo,
como vocês sabem melhor que eu…

José Pereira contestou, lembrando o Berredo, “uma ilustração
invejável” , o padre Lima, “um excelente educador em cujas
aulas as raparigas aprendiam ao mesmo tempo a ciência e a religião”.

– Mas não têm método, não fazem caso d’aquilo,
vão ali por honra da firma, por amor aos cobres, rebateu o Eslebão,
forcejando por falar alto. Aquilo é uma sinecura, não temos
educadores, é o que é.

– Você deste modo ofende o atual diretor da Escola Normal, tido e havido
como um pedagogista de primo cartello! advertiu o Castrinho, que se conservava
calado.

– Não ofendo a ninguém, ao contrário, folgo em reconhecer
nele um homem estudioso e bem intencionado, mas isto não basta , meu
caro…

Novo acesso de tosse desta vez mais prolongado.

-… É preciso orientação e muito bom senso, isto é
justamente o que falta aos nossos corpos docentes…

– Tudo isso é inútil, Elesbão, tudo isso é completamente
inútil quando uma mulher tende fatalmente para um homem. Foi o que
se deu com a Maria do Carmo…

– É verdade, gabou o Castrinho roendo as unhas desesperadamente. Dizem
que é inteligente e bem educada.

– E além d’isto, acrescentou José Pereira, uma rapariga
até morigerada…

– Não creio, duvidou o Eslebão batendo com o pé, curvado,
já com uma poça de cuspo ao lado da cadeira, no chão.
O amor tem suas exigências, incontestavelmente, mas, quando a mulher
é bem educada e tem noções exatas da vida, dificilmente
se entregará a qualquer mariola que se lhe chegue.

E sentenciosamente:

– Todo fenômeno é conseqüência de uma causa. Não
há efeito sem causa. No caso vertente a causa é a falta de educação,
a falta de absoluta de quem sabe dirigir a mocidade feminina. A nossa educação
doméstica é detestável, os nossos costumes são
de um povo analfabeto.

Um tipógrafo aproximou-se e pediu licença ao Sr. José
Pereira para perguntar uma palavra.

– O que é?

O rapaz mostrou o original: – “Está aqui”, disse apontando
com o dedo sujo de tinta…

– Crápula, disse o José Pereira.

O tipógrafo foi repetindo – crápula, crápula…

– Que é isso? inquiriu Eslebão curioso.

Era um artigo contra o Pedro II, uma formidável descompostura a um
dos redatores da folha oposicionista.

Entraram a falar no novo presidente da província.

A notícia do escândalo chegou até o Benfica, à
casa do Loureiro. A Lídia ficou estupefata.

– A Maria, hein?! Tão calada, tão sonsa…

E repetia:

– Este mundo, este mundo!…

Ao mesmo tempo apoderava-se dela um pesar sincero pela amiga. Tão
moça ainda, coitada, tão boazinha…

– São coisas, são coisas, rosnava o Loureiro. Eu nunca me enganei
com aquela gente. Uma súcia de doidos, a começar pelo tal Sr.
João da Mata, um tipo que anda caindo nas ruas, bêbedo como uma
cabra.

– Que é isso, Loureiro! ralhava a Campelinho, empinada, carregando
os seus oito meses de prenhez.

Pensou em escrever à Maria lamentando o deplorável acontecimento,
mas não sabia ao certo onde ela parava. Ouvia falar no Outeiro, na
Aldeota, no Cocó… Se fosse possível, até iria, ela
mesma, dar um abraço na sua amiga de escola, consolá-la. Imaginava-a
muito triste, cortada de desgostos, num abandono pungente, em casa d’alguma
mulher à toa, sem ter quem lhe aparasse as lágrimas…

Pobre Maria! É assim – uns tão felizes e tão maus, outros
ao contrário, bons e infelizes…

E Lídia soltava uns suspiros vagos, traspassados de pena ao lembrar-se
de sua velha companheira agora atirada ao desprezo como um ente nulo e prejudicial
à sociedade!

– Este mundo, este mundo!…

Entretanto, corria-lhe a vida deliciosamente, não lhe faltava coisa
alguma, o Loureiro a estimava cada vez mais, comia e vestia do melhor, tinha
relações com as principais famílias da capital, ia ao
teatro e freqüentava o Club Iracema; gozava!

Se pudesse repartir a sua felicidade com Maria, coitadinha…

Ultimamente andava muito preocupada com o enxoval do seu primeiro filho.
Até já havia escolhido um nome para ele, para o pequeno – chamar-se-ia
Julieta ou Romeu. O Loureiro tinha lhe dito que Romeu era nome de gato, mas
ela teimava em batizar o filho com este nome se fosse “menino”.
Os padrinhos também já estavam designados – o comendador Carreira
e a esposa.

Por sua vez a mulher do juiz municipal correu logo à casa de João
da Mata numa ânsia de saber como as coisas tinham se passado. Era da
escola de S. Tomé – ver para crer. Vestiu-se às pressas, atabalhoadamente,
e voou para o Trilho de Ferro, como uma seta, atirando-se nos braços
de D. Terezinha, esfalfada, sem fôlego, o rosto quente do mormaço.

A mulher do amanuense saudou-a com o seu invariável – salvou-se uma
alma! – proferido entre beijos.

Sem esperar oportunidade, D. Amélia foi direto ao móvel da
sua inesperada visita. – “Então era mesmo certo o que se dizia
na rua?”

– De que?

– Da Maria…

– Se era? Tão certo como dois e dois são quatro. Jurava sobre
os Santos Evangelhos.

O demônio metera-se-lhe em casa com a rapariga, e por tal modo que,
de certo tempo àquela parte, nem fazia gosto a gente viver.

A Amélia não fazia idéia – uma vergonha! criatura, uma
vergonha! Ela, Terezinha, estava cansada de sofrer desapontamentos, nem sequer
saía à rua para não ser olhada com maus olhos. Haviam
de pensar que ela era outra…

– E onde está Maria?

– Sei lá, menina, sei lá… No Cocó, na Aldeota, no
inferno. Tomara que aquela peste não me entre mais em casa!

– E tu não viste logo se ela estava grávida?

– Vi lá o que! Andava aqui toda espremida, com um arzinho de mosca
morta, metida no quarto que nem uma feira. Uma sonsa, Amélia, uma sonsa
é o que ela é.

– O tal do Sr. Zuza, hein?!

– Qual Zuza, mulher, elas é que são as culpadas, porque não
se dão ao respeito, não têm vergonha.

– E o que diz a isso o Sr. Joãozinho? Furioso, hein?

– É o que tu pensas, indiferente como se não fosse com gente
dele…

E o diálogo continuou animado, sem que D. Terezinha revelasse à
amiga as suspeitas acerca de João da Mata e Maria do Carmo.

D. Amélia falou sobre o José Pereira, queixando-se de que ele
há muitos dias não aparecia em nossa casa, “todo embebida
com a outra , com a Lídia”. O redator da Província não
tirava os pés do Benfica, e, às vezes, voltava depois da nove,
no último bonde.

A Teté não achava feio isso, um homem ir diariamente, às
mesmas horas, à casa duma senhora casada! Era feíssimo! Já
andavam dizendo até coisas. E então o José Pereira que
não era tolo e tinha fama…

– Queira Deus que a tal Sra. D. Lídia não vá se arrepender…
É verdade, a mãe, a viúva Campelo, como vai?

– Naquilo mesmo, respondeu D. Terezinha com um sorriso de malícia,
piscando um olho.

Riram baixinho e a conversa recaiu sobre D. Amanda àquela hora entregue
ao seu delicioso farniente de mulher solteira que dispõe do tempo a
seu bel-prazer e da algibeira de um capitalista generoso.

Toda a cidade vivias agora do escândalo, dando-lhe vulto, criando novelas
de romance, esmiuçando pequeninos acidentes domésticos, com
um olho na política e outro na normalista, à espera de chuvas
e de novos acontecimentos sensacionais.

João da Mata não se inquietava muito, de resto, e continuava
a sua vida inalterável de empregado subalterno, sem prestar ouvidos
à maledicência, encantonado no seu absoluto desprezo à
sociedade e à opinião pública, cada vez mais submisso

à mulher que o cobria de injúrias e labéus.

– Sedutor de filhas alheias! dizia-lhe ela na cara, ameaçadoramente.
Peste! Coisa ruim! Sem vergonha!

E ele punha-se a cantarolar, com os ouvidos arrolhados, o olhar no teto,
estendido na rede, mudo, impotente como um eunuco.

Uma noite, pela madrugada, despertou com o desejo veemente de ir ter com
D. Terezinha na alcova. Há meses não se chegava à mulher
alguma, cheio de aborrecimento pelo outro sexo, frio mole, inacessível
quase às carícias da fêmea. Agora, porém, renascia-lhe
a virilidade, sentia uma forte vontade, indomável e impetuosa, de amar
fisicamente, de crucificar-se nos braços de uma mulher que não
fosse de todo o mundo e confundir-se o seu sangue com o dela num demorado
e indescritível espasmo. Tremiam-lhe as carnes como ao contato de um
condutor elétrico, uma formidável ereção a distender-lhe
os nervos escabujando na rede em espreguiçamentos lúbricos,
vergando, como um vencido, ao poder irresistível da animalidade humana.
O sangue pulava-lhe nas artérias numa hiperquinesia que lhe atordoava
os sentidos, que lhe tirava a respiração, impelindo-o para a
mulher…

Pensou na Mariana, que dormia ali perto, mas a Mariana era uma criada que
não se lavava, um estafermo sem sexo, incapaz de satisfazer os apetites
de um homem. Não havia jeito senão tentar a Teté. E lá
se foi sutilmente, pé ante pé, corredor a fora, direito à
alcova da infeliz senhora.

A alcova tinha uma porta para o corredor. João olhou pelo buraco da
fechadura, mas não pode ver senão o espelho do velho toucador,
defronte, inclinado para a frente, refletindo um vaso noturno e roupas espalhadas
no chão.

Bateu de leve, e, receoso da criada, deu volta pela sala da frente, tateando
no escuro, sem ruído. A outra porta da alcova conservava-se entreaberta:
empurrou de leve enfiando a cabeça para dentro.

– Teté! chamou numa voz quase imperceptível.

Silêncio profundo. Os cortinados da cama estavam cerrados. João
foi entrando devagar, equilibrando-se nos bicos dos pés.

– Teté! repetiu à meia voz.

Ninguém respondeu. Adiantou-se e escancarou as cortinas, mas – oh!…
– o leito matrimonial, largo e fresco, branquejava desolado, sem sombra de
mulher.

João ficou boquiaberto, muito admirado. -“Que significava aquilo?”
Os lençóis revoltos acusavam o desespero de uma pessoa que não
teve tempo a perder. Ante a clarividência assombrosa da realidade, o
amanuense rodou sobre os calcanhares, e, resignado como um boi, sem proferir
palavras, murcho, sentiu desaparecer-lhe subitamente o forte desejo que ainda
há pouco o espicaçava como uma urtiga. Retirou-se macambúzio
a pensar nos caprichos da sorte.

Quando mestre Cosme, uma manhã, foi avisar a João da Mata que
“a menina estava com as dores”, o amanuense dormia ainda sob os
lençóis e nem sequer sonhava com a afilhada.

Ergueu-se da rede, com um pulo, enfiou as calças, lavou-se num instante,
e abalou mais o velho para a Aldeota, sem dizer palavra à D. Terezinha.

– Já tinham arranjado parteira? inquiriu acelerando o passo.

– Já, nhor sim, a comadre Joana Pataca, uma do Outeiro.

– Boa?

Mestre Cosme não afirmava porque não conhecia bem, mas era
limpa e não tinha má cara. Diz que era a melhor parteira do
Outeiro. Agora, se seu Joãozinho não quisesse… A mulher já
estava cuidando da menina…

– Quando apareceram as dores? – Se Maria gemia muito…

O velho informou tudo minuciosamente, sem ocultar um só detalhe, juntando
às palavras os seus gestos rudes de homem do campo.

A rapariga há dois dias queixava-se d’uma dores nas “ancas
e no pé da barriga”, acompanhadas de fraquezas nas pernas e grande
falta de ar… Se gemia? Muito, coitada, metia até pena. Pudera! novinha
ainda… A parteira disse logo que a criança estava no nascedouro.
Aquela noite as dores tinham piorado, ninguém dormira, velando a pobre
moça. Eram chás e fricções, e – corre d’aqui
e chega depressa – todos com cuidado, rezando à N.S. do Bom Parto.

Logo da porteira do sítio João escutou os gemidos de Maria
do Carmo, trêmulos, sentidos, longos … e aquilo apertou-lhe o coração.

No pequeno quarto de taipa, com uma janelinha para o descampado, achava-se
Tia Joaquina, à cabeceira da normalista, alisando-lhe os cabelos, com
carinho, e uma outra mulher gorda, pançuda, sem casaco, muito trigueira,
com marcas de bexiga no rosto, meio idosa.

– Dão licença? murmurou João da Mata descobrindo-se
com respeito.

A mulher gorda tomou o casaco, às pressas, e Maria volveu os olhos
úmidos e profundamente melancólicos para o padrinho, gemendo.

Mestre Cosme trouxe um tamborete.

Sentia-se um cheiro ativo de alfazema queimada: encostada à parede
fumegava o braseiro.

– Então, como vai? perguntou João tomando a mão da afilhada.
Muitas dores, hein?

– Assim… respondeu a rapariga mordendo o beiço com um gesto doloroso,
revirando-se na rede, e continuou a gemer alto.

– A senhora é que é a parteira? tornou João para a mulher
gorda que se conservava imóvel com o queixo na mão.

– Sua criada Joana Pataca.

– Já verificou se a criança está perfeita, se não
há novidade?

– Ora, ora, ora… há que tempo! D’aqui a pouquinho o menino
está fora, se Deus quiser.

O amanuense encarou por cima dos óculos, com ar de desconfiança
o todo obeso da mulher. E, sentando-se:

– A senhora tem licença para assistir?

Não era preciso licença, não senhor. No Ceará
qualquer mulher podia ser parteira contanto que merecesse confiança.
Ela, Joana Pataca, era muito conhecida no Outeiro, por sinal tinha partejado
uma vez a mulher do comandante do batalhão…

– Vocemecê duvida?

– Não, não… é que eu queria saber… Então
não é preciso licença?

– Inhor não. É qualquer uma.

– Está bom, está bom… Mas não se descuide… Olhe
não vá esquecer…

A parteira pousou no chão o cachimbo que estivera fumando, e foi aquecer
uns panos.

Deu meio dia e a rapariga não teve a criança. As dores tinham
melhorado um pouco. Tia Joaquina batia os beiços rezando “-Tenha
paciência, minha filha, tenha fé no Senhor do Bonfim”,
dizia ela muito solícita.

João da Mata passou todo esse dia na Aldeota, aguardado o sucesso,
bebendo aguardente e acendendo cigarros, esquecido da repartição.

Mestre Cosme armara-lhe uma rede no alpendre e fora-se a desbastar a mata,
escanchado na Coruja.

Fazia um belo dia de sol, calmo e luminoso. O arvoredo imóvel dormitava
na esplêndida pulverização da luz que o narcotizava para
beber-lhe a seiva. O passaredo aninhava-se na verde espessura dos cajueiros
em flor, contubernal e gárrulo; rolas bravas debicavam nas clareiras
os minúsculos diamantes que o sol punha na areia. E no silêncio
e na beatitude d’aquela espécie de cemitério João
pôde dormir um sono bom de duas horas, embalado pelos gemidos da afilhada
como por um vago e monótono estribilho repassado de melancolia.

Às sete horas da noite, ao acender-se a primeira vela, Maria teve
um sobressalto e ergueu-se bruscamente com uma fortíssima dor no baixo
ventre, muito branca, o olhar desvairado e os cabelos em desordem.

– Que é isso, comadre! repreendeu-a a parteira agarrando-a.

– Minha filha! fez a tia Joaquina.

E em pé, entre as duas mulheres, com a cabeça arqueada para
trás, contorcendo-se numa aflição suprema, a rapariga
soltava gemidos estrangulados, cortada de dores, agarrando-se como uma louca
ao pescoço das velhas, no bico dos pés, em camisa.

Houve uma confusão extrema.

– Sente-se, comadre, sente-se, por amor de Deus! suplicava a parteira, agarrando
com jeito.

– Sente-se, minha filha, repetia a outra.

João da Mata acudiu gelado.

– Calma! calam! bradou estacando à porta do quarto.

Mas era tarde. Ouviu-se uma pancada surda no chão, como a queda de
um balão de barro úmido, e, imediatamente, rios de sangue jorraram
aos pés da parteira, e no linho branco da camisa de Maria do Carmo
desenhou-se larga faixa rubra, d’alto a baixo, como uma bandeira de
guerra desdobrada.

– Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! rosnou Joana Pataca estremecendo.

Passou-se a noite às voltas. O amanuense resolveu não chamar
médico – que era uma asneira, o perigo tinha passado. A parturiente
adormecera profundamente, depois de lhe terem ministrado um hidromel de aguardente.

Sobre uma grande caixa de pinho, a um canto do quarto, envolvido, em panos,
o recém nascido – uma criança nutrida e robusta – dormia o sono
eterno, roxo, d’olhos fechado, as gordas mãozinhas cruzadas sobre
o peito, com um fio de sangue a escorrer-lhe do nariz.

João não pregara os olhos, pensativo, com a calva entre as
mãos, ao lado da afilhada. – Era o diabo, era o diabo! Até lhe
doía a cabeça! Grandíssima besta, a parteira, que nem
ao menos soubera apanhar a criança! Estúpida! deixar morrer
assim uma criança tão bem feita e nutrida! Isso só acontecia
a ele, João da Mata.

De meia em meia hora acendia um cigarro automaticamente e punha-se p’r’ali
a ruminar silenciosamente, à luz d’uma triste vela de carnaúba,
que pingava a sua cera denegrida no gargalo d’uma velha botija de genebra,
esbatendo ao fundo do quarto o perfil do recém-nascido.

Diabo! pensava o amanuense quebrando a cinza do cigarro. Um caiporismo! Tantos
cuidados, tanta aflição, e, afinal de contas, lá ia tudo
por água abaixo. Por um lado era uma felicidade o pequeno ter morrido,
porque isso de filho natural sempre dava que falar às más línguas
e até podia-se descobrir a verdade.

Consolava-se com esta idéia.

Perto, numa palhoça vizinha, havia um samba que durava desde o anoitecer.
No silêncio da noite ecoava um alarido medonho, vozes aguardentadas,
sapateados que estremeciam o chão, cantos, desafios ao som d’uma
viola cansada.

Maria ressonava docemente, com o rosto voltado para a parede, o tronco repousando
sobre chumaços de pano onde brilhavam manchas de sangue. Cerca de onze
horas moveu-se devagar, abrindo os olhos e soerguendo-se , como quem acorda
de um pesadelo; mas faltaram-lhe as forças e repousou novamente.

– Queria alguma coisa? perguntou João.

– Onde está meu filho?

– Não te lembres d’isto agora, vê se descansas…

– Mas onde puseram ele? está vivo?

– Qual vivo, filha! Pois queria tu que escapasse?

E em tom lamentoso:

– Coitado, ao menos está no céu, livre das misérias
d’este mundo…

Maria não se conteve: repuxou o lençol, e, com os olhos cheios
d’água, murmurou numa voz entrecortada de soluços:

– Pobrezinho! … Porque não me disseram logo?

– Já te pões a chorar!

Maria do Carmo soluçava com desespero, sentindo crescer dentro de
si, no íntimo de seu coração, avassalando-a, abalando
todo o seu ser, toda sua delicada alma de mulher, como um sopro violento e
devastador, esse inestimável desgosto que as mães sentem ao
verem o filho morto. Ela que desejava tanto criá-lo, amamentá-lo
com o seu leite, que era o seu próprio sangue, a sua própria
vida, amá-lo, adorá-lo, com toda a força do seu coração!…
Era um filho natural, mas era seu filho, nascido em suas entranhas, carne
de sua carne, sangue do seu sangue, havia de amá-lo muito…

– Quero vê-lo, deixe-me vê-lo, pediu aflita.

– Que tolice! fez João agasalhando-a melhor. Não pense nisto
agora, criatura, os médicos recomendam toda a calma. A criança
está morta, que se há de fazer?

Continuavam os soluços, um choro estugado, interrompido por um tossezinha
convulsa.

– Mau! mau! tornou João.

E, imediatamente, foi buscar o cadáver do filho, depondo-o carinhosamente
sobre os joelhos.

Tia Joaquina apareceu, envolvida numa larga coberta de chita feita de retalhos.
“- O que era?…”

– Nada, tia Joaquina. Ela que desejou ver o filho, explicou João.
Uma imprudência. Até pode lhe fazer mal…

– Vejam a vela, por favor, pediu Maria. Quero ver meu filho…

E ao mirar o rosto lívido da criança, os bracinhos rechonchudos,
o filete de sangue escorrendo do nariz como um veio de rubim, a rapariga sentiu
um calafrio e um grande vácuo no peito, como se lhe tivessem arrancado
um pedaço do corpo. E entrou a soluçar outra vez de um modo
tão penoso e comovente que João da Mata não pode recalcar
duas lágrimas, as primeiras de sua vida, que rolaram vagarosas nas
suas faces magras, como duas linhas cristalinas na aspereza tosca d’uma
rocha.

No dia seguinte, antes do sol nascer, mestre Cosme foi ao fundo do sítio
cavar uma sepultura para o pequenino cadáver. João acompanhou-o
taciturno. Pararam ao pé de um grande cajueiro, que ficava defronte
da casa, e, com pouco, o amanuense viu sumir-se debaixo da terra o corpo do
seu primeiro filho.

Mestre Cosme socou bem a areia, nivelou o terreno com os pés e suspirou
com força, como depois d’um trabalho penoso.

João assistiu em pé, sem dar palavra, mãos p’ra
trás, olhos cravados na terra.

– Pronto! fez o velho pousando a enxada no ombro.

– Bem, murmurou João. E seguiram por entre as ateiras, calados e graves.

Seriam seis horas da manhã. No alto de um coqueiro que farfalhava
à beira do cercado, cantava uma gralha, e as notas límpidas
do seu canto vibravam demoradamente na transparência do ar, sobre a
verde monotonia do campo, como um toque de alvorada!

Tinha-se calado o samba havia pouco.

Meses depois, quando Maria do Carmo apresentou-se na Escola Normal para concluir
o curso interrompido, estava nédia e desenvolta, muito corada, com
uma estranha chama de felicidade no olhar. A sua presença foi uma ressurreição.
“-A Maria do Carmo, hein? Nem parecia a mesma!” – Houve um alarido
entre as normalistas: abraços, beijos, cochichos… Até o edifício
tinha-se pintado de novo como para recebê-la.

O programa era outro, mais extenso, mais amplo, dividido metodicamente em
educação física, educação intelectual,
educação nacional ou cívica, educação religiosa…
pelo moldes de H. Spencer e Pestalozzi; o horário das aulas tinha sido
alterado, havia uma escola anexa de aplicação, estava tudo mudado!

A esse tempo um grande acontecimento preocupava toda a cidade. Lia-se na
seção telegráfica da Província as primeiras notícias
sobre a proclamação da república brasileira. Dizia-se
que o barão de Ladário tinha sido morto à pistola por
um oficial de linha, na Praça da Aclamação, e que o imperador
não dera uma palavra ao saber dos acontecimentos em Petrópolis.

O Ceará estremecia a esses boatos. Grupos de militares cruzavam as
ruas, ouviam-se toques de corneta no batalhão e na Escola Militar.
Tratava-se de depor o presidente da província a um coronel do exército.
Os canhões La Hitte, da fortaleza de N.S. d’Assunção,
dormiam enfileirados na praça dos Mártires, defronte do Passeio
Público, guardados por alunos de patrona e gola azul.

Ninguém se lembrava dos escândalos domésticos nem de
pequeninos fatos particulares.

Um homem revoltava-se, indignado com o novo estado de coisas – era João
da Mata.

– É boa! bradava ele na Bodega do Zé Gato, esmurrando a mesa.
Isto é um país sem dignidade, uma nação de selvagens!
Expulsar do trono um Monarca da força de D. Pedro II, mandá-lo
para o estrangeiro doente e quase louco, é o cúmulo da ignorância
e da selvageria!

E Maria do Carmo. agora noiva do alferes Coutinho, da polícia, via
diante de si um futuro largo, imensamente luminoso, como um grande mar tranqüilo
e dormente.

FIM

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