Declínio do Anarquismo

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O ANARQUISMO HOJE UMA REFLEXÃO SOBRE O MOVIMENTO LIBERTÁRIO

UMA REALIDADE SOMBRIA E CONTRADITÓRIA

O criado arrebatou ao amo seu chicote e se fustigou com ele para assim poder ser amo. Kafka

Vivemos uma época de profundas mudanças, da tecnologia às relações sociais, da economia à política. Transformações que não tem no entanto, qualquer sentido de superação do Sistema — de suas injustiças e irracionalidades —, antes pelo contrário, são condicionadas pelos seus interesses estratégicos de preservar a Ordem Reinante.

A derrocada do socialismo de estado no Leste, é uma dessas mudanças decisivas que marcarão a nossa época. Um processo de auto-reforma iniciado pela oligarquia burocrática, saiu do controle e acabou pulverizando um sistema estatista e autoritário que alguns teimavam em chamar de socialista. Este acontecimento, inegavelmente positivo para os povos que se libertaram daquele sistema terrorista de dominação, não deixou de ser contudo, ao mesmo tempo, uma vitória de setores dessa mesma burocracia que conseguiram preservar seu poder. Mais uma vez, como tem ocorrido nas últimas décadas, as classes dominantes se substituem no poder em resultado duma exaustão política ou dum processo de luta interna. Como no caso das ditaduras ibéricas e dos governos militares latino-americanos, não foi a luta dos explorados e dominados que determinou as mudanças e o fim desses regimes . Quando o povo se apresentou no cenário, foi para sufragar os novos sistemas de dominação, ou para ser usado como carne para canhão em lutas fratricidas, como assistimos na Romênia, Iugoslávia e Geórgia.

Também a ideologia liberal saiu vitoriosa, pois a derrota simbólica das idéias de uma alternativa social, que estiveram presentes nos primórdios da Revolução Soviética, será por muito tempo o tema central da propaganda capitalista. E, razão da descrença e desesperança de muitos dos que lutam contra este sistema.

O socialismo autoritário saiu do cenário social derrotado, dando dessa forma a sua derradeira contribuição ao status quo.

Ao mesmo tempo que impulsionou a uniformização e homogeneização do sistema capitalista à escala universal e em primeiro lugar do modo de produção e das formas de controle social.

Uma nova conjuntura assente na mundialização da divisão do trabalho e na segmentação do mundo — e de cada região — em guetos de riqueza cercados de miséria.

Um panorama internacional, marcado por uma convergência quase total entre os principais centros de poder em torno do Washington Consensus, e administrado pelos Sete Mais que usarão seus organismos internacionais: ONU, CEE, NATO, FMI, BIRD, como instrumentos de gestão, de polícia e companhia de seguros da Ordem Internacional.

A instrumentalização da ONU durante a Guerra do Golfo, nos conflitos regionais e no caso do Haiti; a manutenção da NATO após a dissolução do Pacto de Varsóvia; a recusa dos EUA de desmantelamento do arsenal nuclear; bem como as pretensões hegemonistas da Alemanha dentro da CEE, são entre muitas outras manifestações, demonstrativas desta nova rearticulação do Capitalismo Internacional sob comando de Washington.

Neste contexto de restauração, principalmente nas sociedades de consumo, massificadas e manipuladas por uma rede de propaganda e informação dirigida, as possibilidades de uma alternativa social, se afunilam.

Já que os valores libertários da autonomia, da solidariedade, do livre pensamento e do autogoverno, são dificilmente inteligíveis ou aceites pela maioria dos cidadãos amestrados e desamparados e perdidos num contexto social de individualização e atomização extrema.

Tornando-se assim incapazes de qualquer reflexão crítica, afundados que estão no minimalismo ético e no cinismo pragmático.

O que exprime a maior vitória do sistema: a homogeinização ideológica e cultural das sociedades onde predominam os não-valoresdo individualismo, da concorrência e da esquizofrenia dionisíaca para usar as palavras de Carlos Díaz.

Só os excluídos dessa sociedade (e que não aspiram a se integrar no reino da sujeição conformista) ou os que nela não se reconhecem —uma pequena e desarticulada minoria— podem se identificar potencialmente com esses valores libertários. Em termos objetivos essa é a nossa margem de atuação nas sociedades do chamado Primeiro Mundo.

Mesmo que saibamos que esse conformismo majoritário é cíclico e pode ser abalado, quer por alterações socio-econômicas, quer pelo aprofundamento gradual da crise civilizacional que vivemos.

Outra é a situação vivida nos países do hemisfério sul — com algumas semelhanças com o Leste Europeu — onde a super-exploração, a não satisfação das necessidades básicas e a flagrante desigualdade social que se traduz num verdadeiro apartheid social, abrem espaços à continuidade de amplos movimentos sociais anti-capitalistas.

Olhando ao nosso redor, não seria excesso de pessimismo afirmar que nunca como hoje, as forças do Estado e do Capitalismo foram tão fortes e as tendências libertárias da alternativa social, tão fracas.

No entanto, e apesar disso, persistem contradições e tensões fundamentais no sistema dominante, que se vão acumulando e adquirindo uma visibilidade até hoje nunca vista.

Começando pela miséria absoluta da maioria da população mundial, que contrasta com a riqueza ostensiva e delapidatória de alguns; a própria marginalização de setores sociais nos países ricos: onde jovens, desempregados e velhos apontam os limites de assimilação do sistema; o desenvolvimento da tendência de crescimento dos empregos informais e precários; a desqualificação profissional e o aviltamento do trabalho resultante da introdução da automação e das novas tecnologias; e por fim o aumento das taxas do desemprego estrutural se mostram como problemas congênitos da economia do lucro.

Por outro lado, a natureza predatória da sociedade capitalista e sua ilusão dum crescimento infinito, só pode levar ao esgotamento de recursos, à destruição causada no meio natural, reverso destrutivo desta forma de “progresso” que junto com a utilização arbitrária e irracional das tecnologias, impõe aos gestores da desordem industrial a integração duma política de restrições ambientalistas.

É nesse sentido que deve ser entendido a panacéia do “desenvolvimento sustentável” presente do discurso atual dos donos do Poder e em particular do Banco Mundial. Discurso ideológico que, contudo não aponta uma solução harmoniosa para o problema da pobreza, do desenvolvimento humano e da utilização da tecnologias, questões centrais da nossa época.

O capitalismo pode sentir a necessidade de contabilizar os prejuízos ou as ameaças futuras, mas não pode assimilar os questionamentos radicais levantados por libertários e ecologistas.

Os problemas levantados só podem ser resolvidos no contexto duma sociedade descentralizada e autogerida capaz de criar e controlar formas tecnológicas adequadas a um desenvolvimento integrado, auto-sustentado e solidário. Nem o crescimento zero, nem o desenvolvimento sustentável são possíveis num mundo marcado pela lógica do consumo e do desperdício das sociedades ricas e pela necessidades básicas não satisfeitas das sociedades pobres.

De Bopal e Chernobyl ao contrabando de plutônio a sociedade industrial manifesta-se intrinsecamente desordenada e ameaçadora para o futuro dos povos.

Ao nível político há uma tendência generalizada para a restrição das liberdades e garantias conquistadas em outras épocas. O que se reflete diretamente no ordenamento jurídico, com a reintrodução de conceitos e práticas autoritárias e inquisitórias no direito penal e processual.

A democracia representativa se esvazia face à inexistência de escolhas reais e à transformação das eleições em simples competições de marketing, onde o resultado é sempre inócuo para as elites e burocracias dominantes.

Uma crise de legitimidade que é ampliada pela crescente burocratização do Estado e pelo fato das decisões econômicas e políticas mais importantes serem tomadas, tanto no nível privado, como no nível internacional, fora do chamado controle do Estado de Direito. O mesmo ocorrendo com a maioria das decisões eufemisticamente chamadas de técnicas e com aquelas que são tomadas no complexo de segurança, onde predomina o princípio do segredo.

A corrupção, por sua vez, afirma-se como tendência endêmica do estado moderno, do Japão ao Brasil, da Venezuela a Espanha, França e Portugal, comprometendo as várias correntes políticas com práticas fraudulentas e ilegais, sem que com isso seja afetada essencialmente a credibilidade que os cidadãos-espectadores têm em seus partidos.

Até porque há muito as oligarquias políticas da representação abdicaram de mascarar com a aritmética do voto seu mandato eleitoral, como já demonstrou há muito tempo o anarquista ibérico Ricardo Mella a “lei do número” é um falso instituto democrático, tanto mais que até as maiorias eleitorais estão encolhendo a olhos vistos, sendo o Poder efetivamente exercido por minorias, credenciadas minoritariamente nas chamadas eleições democráticas.

Mesmo face a esta realidade cada vez mais visível no mundo contemporâneo, a descrença na política que se traduz no crescente abstencionismo em quase todos os países, no contexto atual só serve para reforçar o cinismo individualista do egocentrismo dominante: “cada um por si, e deus contra todos.”

Afirma-se assim a tendência para um estatismo autoritário, afastado do modelo de Estado de Direito clássico e mais ainda do Welfare State, um Estado já não mais preocupado com a participação e os direitos dos cidadãos. Mas tão só em garantir as condições de produção, reprodução e movimento do Capital: um novo tipo de Estado Polícia, que vem perdendo a sua dimensão nacional para se tornar a repartição local duma nova forma de Estado supranacional em gestação.

O fenômeno incontrolado da violência e da guerra demonstram de forma inequívoca que nenhum Estado ou governo mundial poderá controlar sociedades cindidas pela miséria e injustiça.

Ao contrário do que alguns teóricos liberais nos querem fazer crer, alibanização duma sociedade não é produto da ausência do Estado, mas da quebra do seu monopólio através da estatização de múltiplos grupos sociais. As sociedades em que se romperam os laços tradicionais da solidariedade social, declarando-se a guerra de todos contra todos, só podem ter seu corolário lógico no reacender de guerras fratricidas como na Iugoslávia, nos genocídios de África e na violência desesperada das grandes cidades. As metrópoles — mesmo dos países ricos — com seus bolsões crescentes de miseráveis e marginalizados tendem a constituir-se como um cenário de violência onde nenhum exército particular, ou condomínio das elites desses que proliferam em Madri , Rio de Janeiro, ou Los Angeles poderão no futuro possibilitar a existência segura e despreocupada que as classes dominantes se habituaram a usufruir no passado.

Neste panorama sombrio, o caminho que estamos a percorrer pode abrir, mesmo assim, novas possibilidades: o esvaziamento do sentido social do Estado e sua crise de legitimidade, facilitando a reaproximação dos movimentos sociais do pensamento e da prática anti-estatista.

Também a derrocada do mito do socialismo de Estado, deixa em aberto o campo da alternativa real aos sistemas de dominação, onde se poderá afirmar o socialismo libertário.

Com a derrota da estratégia leninista de tomada do poder, de utilização do Estado para a criação dum “socialismo” por etapas, e da derrocada do mito da excelência da economia centralmente planejada, que só gerou instabilidade, desigualdade e burocracia, a pertinência dos valores anarquistas, dum socialismo orgânico, federalista e descentralizado, torna-se ainda maior para os que não abdicam de pensar e lutar por uma alternativa ao que aí está.

O capitalismo que persiste como barbárie perdura ante uma contradição básica do nosso tempo que pode ser resumida nas palavras de Marcuse: “A revolução mais necessária, parece ser a mais improvável.” Improvável porque só movimentos sociais autônomos e libertários poderiam romper a teia de um sistema repugnante que envolve todas as classes e grupos sociais. A partir daqui, duma realidade adversa mas contraditória, o anarquismo pode lutar por retomar o seu papel nos movimentos sociais — nos velhos e nos novos movimentos —, o que vai depender, pelo menos em grande parte, da vontadelucidez, e ação, dos libertários.

Por mais que os ideólogos do Poder e a corte de acólitos arrependidos, proclamem o fim da História, ela teima em afirmar que só morrerá com o próprio homem.

Mesmo que não possamos descartar a hipótese já um dia levantada por Mannheim de o mundo “estar entrando numa fase de aparência estática, uniforme e inflexível.”

Mesmo assim o futuro será sempre uma possibilidade em aberto onde os seres humanos, com todas as condicionantes culturais e materiais, poderão realizar suas utopias. Para nós anarquistas, o socialismo libertário, a comunidade orgânica da Humanidade, continua sendo um imperativo para a humanização das sociedades.

O DECLÍNIO DO ANARQUISMO, ALGUMAS DE SUAS CAUSAS!!!

Mas uma grande idéia não pode germinar num só dia, por mais rápida que seja a elaboração e a
difusão de idéias durante os períodos revolucionários. Piotr Kropotkin

O declínio histórico do anarquismo tem sido ao longo de décadas apresentado por seus opositores – em particular os marxistas – como uma decorrência do processo histórico de transição de sociedades pré-capitalistas para o capitalismo, e de substituição dos artesãos pelo proletariado industrial.

Essa tese que tem como expoentes historiadores do tipo de Eric Hobsbawn dificilmente resiste a uma análise mais detalhada. Apresentando-se sob o rótulo da cientificidade da história e sua “neutralidade”, mas logo denunciada pelos impulsos exegéticos da dogmática leninista de Hobsbawn sempre que se refere ao anarquismo, chegando às raias da má-fé e de distorção da realidade histórica em vários de suas obras.

Outros historiadores mais conhecedores do anarquismo como Rudolf de Jong ou Carlos da Fonseca já demonstraram como o movimento anarquista do século XX estava amplamente implantado entre os tralhadores industriais e nos principais centros operários da época: “Que Paris, Toulouse, Barcelona, Milão, Rio de Janeiro, São Paulo, Buenos Aires, Montevideo ou Tóquio aí ocupem lugares de grande importância constitui a negação das raízes rurais do movimento.”

Mas se para os pensadores liberais ou para os marxistas o declínio do anarquismo é uma natural inevitabilidade histórica, para muitos anarquistas é um incompreensível acidente, nos dois casos tem ficado sistematicamente ocultas as razões que explicam tal declínio.

Para compreendermos a situação atual do anarquismo, os principais problemas com que se confronta e as possibilidades que se abrem, teremos de rever sua fase de declínio, que se estendeu pelas décadas de 20 e 30 e culminou com a derrota da Revolução Libertária de 1939 na Espanha.

A conjugação de múltiplos fatores adversos, que os anarquistas foram incapazes de entender ou de contornar na conjuntura política e social da época, é o que explica esse esvaziamento progressivo do movimento.

a) Se existe uma causa que deva ser apontada em primeiro lugar essa é a resultante das transformações sofridas pelo capitalismo e pelo Estado, nessas primeiras décadas do século.

A intensificação das lutas operárias a partir de finais do século XIX, o espectro da Revolução Social e as mudanças tecnológicas e organizacionais levaram o Capital a iniciar uma política redistributiva nos países industrializados, o que permitiu uma expansão do processo produtivo e acima de tudo a adesão dos trabalhadores ao sistema.

O acesso ao consumo tornou-se assim o antídoto contra a revolta e foi um fator primordial para a adesão dos trabalhadores à lógica normativa do capitalismo.

O surgimento do Estado intervencionista, que se insere neste processo de mudanças estruturais – seja na sua versão corporativista-fascista, seja na de Estado de Direito Social -, levou ao reconhecimento dos direitos econômicos e sociais dos trabalhadores e a uma demarcação de limites ao capitalismo de livre concorrência e livre exploração do século XIX.

A educação e a saúde pública tornaram-se objetivos de Estado e os direitos trabalhista: descanso, férias, assistência social e reforma, passaram a fazer parte das políticas de governo.

O movimento operário conseguiu impor algumas das suas reivindicações históricas, mas a troco de uma sujeição ao Estado que se traduziu na institucionalização dos conflitos laborais, através de regras de arbitragem ditadas por esse mesmo Estado.

Os governos criaram um novo departamento da conciliação social: o Ministério do Trabalho, que juntamente com tribunais e outros órgãos especializados passaram a interferir nas lutas operárias, na tentativa de desarticular a tática radical do confronto de classes aplicada pelo sindicalismo revolucionário e pelo anarco-sindicalismo.

O ordenamento jurídico passou a reconhecer como direitos as organizações operárias, as reuniões, as manifestações e greves, mas deu-lhes um enquadramento legal que lhes retirava todo o potencial conflitivo.

Em contrapartida a ação direta, a sabotagem, o boicote e a greve de solidariedade passaram a ser criminalizadas e reprimidas de forma ainda mais violenta, estabelecendo-se claramente o limite admissível para o sindicalismo: a representação corporativa dos problemas operários.

Também o capital passou a aceitar o sindicalismo dentro desses limites, usando um duplo critério negocial: ao fazer concessões às exigências de sindicatos confiáveis e reprimir as que tivessem uma dinâmica radical. Os episódios do “pistoleirismo” capitalista nessa época, da Espanha aos EUA, são por demais conhecidos.

O sindicalismo que nascera como emanação da vontade de emancipação do movimento operário, e sua forma auto-organizativa por excelência, tornou-se a partir de então um reflexo das intervenções – diretas e indiretas – do Estado e seu ordenamento jurídico.

O direito trabalhista, a institucionalização das negociações sindicais, sujeitas a ardilosas análises jurídicas e econômicas, favoreceram a burocratização dos sindicatos e em muitos casos exigiram-na.

Só através da criação de estruturas administrativas e de assessoria de especialistas do acordo: advogados, economistas, sociólogos e um sem número de funcionários exteriores ao movimento operário, poderiam os sindicatos enquadrar-se neste contexto negocial e nele obter vantagens. A tentação corporativista que nunca chegou a desaparecer do sindicalismo, mesmo nas fases em que se potenciavam mais as formas revolucionárias do confronto de classes , tendo inclusive originado em quase todos os países históricas polêmicas entre anarquistas e sindicalistas, tornavam-se agora preponderantes.

A combatividade dos sindicatos e dos militantes operários, passava a não ter correspondência direta com a eficácia na conquista de melhorias contratuais.

Os mais eficazes passaram a ser os mais hábeis nas negociações, o que normalmente se traduzia na cedência sistemática perante as imposições estratégicas do Capital.

Estavam assim criadas as condições para a derrota do sindicalismo anarquista, que se sustentava na consciência revolucionária, na ação direta e na auto-organização. Tornava-se “impossível” um sindicalismo onde não cabiam funcionários e dirigentes profissionais e para quem – evocando a consigna do sindicalismo revolucionário dos EUA da IWW – “trabalhadores e capitalistas não têm nada em comum”.

Neste panorama de conciliação, em que o Estado ganhava uma autonomia relativa em relação às classes dominantes, assumindo um rosto pacificador, independente, social, deixava de haver condições para a inteligibilidade do discurso anti-estatista dos anarquistas. A maioria dos trabalhadores começaram a ver o Estado como uma entidade beneficente que garantia a educação, a saúde, a habitação e a velhice dos cidadãos e não mais como aparelho central de gestão da dominação.

b) Uma segunda causa pode ser apontada: o aparecimento de ditaduras terroristas em várias regiões do mundo. Desde logo o nazi-fascismo e suas variantes ibéricas, bem como os governos de ocupação resultantes da expansão alemã. As ditaduras na América Latina de Vargas e Perón e na Rússia dos burocratas comunistas.

A repressão desencadeada tornava impossível a sobrevivência do anarquismo como movimento amplo e aberto, principalmente das organizações anarco-sindicalistas.

O anarco-sindicalismo que foi a estratégia que abriu caminho à influência generalizada das idéias anarquistas na maioria dos países, não tinha condições de sobreviver em tal situação de repressão.

Só um movimento estruturado clandestinamente baseado em grupos de afinidade poderia resistir. Mas, mesmo nesse caso, a sobrevivência dependeria a longo prazo de apoio externo, seja na forma de auxílio material, seja na de território de exílio e articulação. E os anarquistas jamais dispuseram de forma continuada dessas condições.

A prisão, morte e exílio de um número incalculável de militantes, juntamente com a impossibilidade de manter a propaganda e intervenção no movimento social, iria levar, em muitos países, ao quase esvaziamento do movimento e a uma ruptura entre gerações.

Quando se tornou possível a rearticulação, os anarquistas estavam cindidos em duas gerações distanciadas por décadas, que só com dificuldade se comunicavam e relacionavam.

c) Finalmente a terceira causa teve a ver com a vitória na Revolução Russa do leninismo e a subsequente criação dos partidos comunistas. Ao se tornar a estratégia da vitória sobre a burguesia – ou ao ser interpretado como tal – reintroduziu o marxismo com carisma revolucionário no movimento operário internacional. A ilusão de que era esse o melhor, ou o mais eficiente, caminho para chegar ao socialismo, somado à falta de informação sobre os rumos da revolução soviética, levou muitos anarquistas e outros trabalhadores ao leninismo. Uma adesão mais pragmática que teórica, que os fazia ver na sociedade russa uma concretização das idéias libertárias.

E os empurrava à criação de organizações que misturavam na sua forma e no seu discurso os princípios anarquistas com um maximalismo ou leninismo incipiente.

Em muitos países os partidos comunistas nasceram de rupturas no seio da corrente social-democrata, mas em quase todos houve uma participação significativa de trabalhadores oriundos do anarco-sindicalismo.

No caso de Portugal e do Brasil, os Partidos Comunistas foram uma criação de anarquistas.

Esta atração pelo leninismo viria a ser ainda maior entre os intelectuais anti-capitalistas que se deixaram conquistar pela idéia de criar o socialismo a partir do Estado, uma manifestação de despotismo esclarecido, baseado na concepção de que o marxismo seria a “ciência” da transformação social; e que aos intelectuais estaria reservado um papel especial na vanguarda dirigente. Nascia assim o “socialismo dos intelectuais”, tão bem dissecado por Makhaiski.

Mas foi no movimento operário que as divisões introduzidas pelas divergentes concepções de socialismo, teriam maiores conseqüências, já que diminuíram a própria capacidade de resistência às ditaduras que se começavam a instalar.

Esta situação se agravou após a adoção pelos comunistas de uma estratégia internacional definida pelo COMITERN e ISV de infiltração e cisão dos sindicatos de orientação anarco-sindicalista.

A ação insidiosa dos comunistas foi determinante para desarticular o anarco-sindicalismo e possibilitou-lhes a criação dos sindicatos atrelados, correias de transmissão do partido, já que para o leninismo era essa a função instrumental das organizações operárias.

Com o agudizar da repressão e, na medida em que os comunistas conseguiram sobreviver na clandestinidade, tornaram-se para muitos trabalhadores a única força capaz de articular as lutas operárias contra as ditaduras e o capitalismo.

Soma-se a isso a maleabilidade tática que os levava a não desprezar a luta pelas pequenas reivindicações e a integrar conceitos conservadores e nacionalistas em seu discurso, o que se adequava a um movimento social em que se expandia o reformismo. Começava assim a dar-se a hegemonia comunista nos meios operários, processo que estava concluído nos finais da década de 40.

A derrota da Revolução em Espanha, foi o culminar desta tendência e sua mais evidente demonstração. Aquele que foi o mais avançado esboço de transformação social libertária, foi empalmado entre fascistas e estalinistas, ante a indiferença conivente dos Estados democráticos, na mais sinistra combinação de forças contra-revolucionárias de nossa época.

Essa seria a última grande mobilização popular das idéias anarquistas e a mais trágica das derrotas. O socialismo libertário, que desde o século XIX tinha tido um dos seus bastiões na Península Ibérica, era esmagado após uma guerra civil que levaria à morte e ao exílio milhões de militantes. Episódio da história social contemporânea que reúne contraditoriamente os erros, os limites e as possibilidades criadoras do anarquismo.

Nunca o anarquismo teve um papel tão decisivo nas mudanças profundas de uma sociedade quanto na Revolução Espanhola, mas também nunca ficou tão próximo de se descaraterizar como alternativa às instituições estatizantes e burocráticas. A participação de alguns de seus mais conhecidos militantes no governo, mesmo não colhendo a adesão de parte do movimento, nem chegando a gerar um anarquismo político de feição maximalista, foi um colaboracionismo que deixou seqüelas profundas no movimento libertário.

Dessa experiência também não conseguiram os anarquistas extrair uma teoria e uma prática adequada para lidar com o fenômeno do Estado e do Poder, nem desenvolverem a partir das realizações construtivas da Revolução – para empregar as palavras de Gaston Leval – uma alternativa de autogestão generalizada para as modernas sociedades complexas.

Hoje, poderemos a partir destas mesmas causas que se combinaram para debilitar o movimento anarquista, entender as perspectivas abertas pela derrocada de dois mitos: o do Estado Socialista e o do Estado do Bem Estar Social. Agora, mais de cinqüenta anos após a Revolução Espanhola de 1936, talvez os anarquistas possam refletir sobre todo esse período de esperanças e derrotas dos movimentos libertários.

Mesmo que hoje tenham desaparecido as causas fundamentais do declínio do anarquismo, isso ocorre numa fase em que o pensamento e a prática libertária atingiram seu ponto mínimo e quando a homogeneização ideológica do sistema capitalista atingiu seu ápice.

Certamente por essa razão o desgaste do Estado e da representação política só tenha gerado um generalizado desinteresse cínico com os destinos da sociedade e não mais uma busca de uma alternativa ao existente.

Essa descrença generalizada, contraditoriamente, pode representar o começo de uma nova esperança: se não mais acreditamos no Estado e na democracia representativa, então podemos nos auto-organizar e começar a imaginar formas de autogoverno para as sociedades. E aí nos reencontramos com o velho desafio do anarquismo!

UMA ÉPOCA DE DESENCONTROS!!!

Os bois passam debaixo da canga
os cegos vão aonde a gente queira levá-los
Mas o homem que nasce livre tem o seu próprio caminho… Herbert Read

A partir dos anos 40 o anarquismo tornou-se uma pálida imagem do que fora no passado, não possuindo sequer já o vigor, a combatividade e a obstinação dos primeiros grupos que se formaram na década de 60, no século XIX. A fragilidade do movimento – que se prolonga até agora – manifesta-se na sua quase ausência dos movimentos sociais, na sua incapacidade associativa e na reduzida influência no pensamento crítico atual. Derrotado em Espanha, enfraquecido pelas mortes e prisões, dividido pelas mágoas do exílio, o anarquismo perdeu a sua última grande referência. Por todo o lado, na Europa e na América, os movimentos sociais reapareciam enfeudados a populismos estatizantes ou atrelados à estratégia comunista das “correias de transmissão”, sendo meros instrumentos da política partidária.

Gradualmente o anarquismo perdia a sua principal vitalidade das décadas anteriores que lhe era dada pelos camponeses das diferentes comunidades do estado espanhol, pelos operários de Barcelona, Rio de Janeiro, Buenos Aires, pelos núcleos libertários da Ásia e pelos internacionalistas que corriam a América e a Europa agitando as idéias de uma sociedade sem Estado.

Os grupos que persistiam em países como França e Itália era o que sobrava desse velho movimento proletário e revolucionário que tinha agitado a Europa nos últimos cem anos, mas a sua incapacidade de penetração nos movimentos sociais e entre a juventude era uma constatação evidente.

Foi então, que de forma imprevisível, no final dos anos 60, irromperam novamente as idéias libertárias, a partir de uma geração quase sem contato com o movimento anarquista histórico.

A crítica da sociedade industrial, a ecologia, o pacifismo e o comunitarismo nascidos no movimento contracultural da América do Norte, desenvolveram-se em paralelo ao anti-capitalismo radical dos jovens estudantes e proletários da Europa de 68. Os valores libertários que os anarquistas tinham assumido no movimento social, ao longo de décadas, emergiam novamente de forma criativa e espontânea. Esta nova geração, ao se aproximar do velho movimento iria se confrontar com o problema da distância que os separava dos militantes provindos das lutas dos anos 30, na sua quase totalidade operários autodidatas.

Seria complexa e difícil essa integração: a visão do mundo, o discurso, a estratégia, a origem social – e até os comportamentos – eram distintos, dificultando que a experiência e a história que esses velhos militantes representavam se somasse ao voluntarismo e criatividade das novas gerações.

Passaram a coexistir dois movimentos paralelos, com suas publicações e grupos claramente identificáveis, que umas vezes se completavam, mas em outras conflitavam.

Com o tempo acabaram por estabelecer alguns contatos, ligações e colaborações entre si, sem no entanto vencer definitivamente essa barreira que os separava.

Não era o resultado do envelhecimento ou dogmatismo dos velhos militantes como alguns afirmavam, mas tão só a barreira inexorável do tempo que afastava esses experimentados ativistas da realidade da prática social; e que aos jovens impedia de apreender o conhecimento e a experiência que o movimento histórico havia acumulado.

Os grupos surgidos a partir do começo dos anos 70, iriam ainda ser marcados por uma fraqueza congênita, já que eram constituídos por estratos sociais que se definem por sua transitoriedade e descontinuidade: jovens e estudantes.

Não conseguindo superar o maior problema com que se debatia o anarquismo nas últimas décadas, o da sua implantação nos movimentos sociais.

O anarquismo, ao contrário do marxismo, não acredita na existência de um sujeito histórico único e predestinado, uma classe ou grupo social capaz de realizar, em função de um destino histórico, a mudança social.

As forças sociais que os libertários consideravam mobilizáveis para um projeto de mudança, eram mais vastas e plurais. Desde Bakunin e Kropotkin, sempre estiveram no centro do pensamento anarquista, ao lado do proletariado, os camponeses, todos os explorados e excluídos, os marginais e jovens, mas enquanto pessoas concretas, sujeitos capazes de assumirem sua liberdade e se autodeterminarem historicamente.

No entanto, é condição necessária para a concretização de um projeto de transformação social, que esses sujeitos sejam parte de grupos e classes sociais com uma afinidade de interesses e com uma estabilidade e continuidade estrutural, que possibilitem formas de associação e de luta a prazos mais longos.

O movimento anarquista só terá condições de retomar uma presença significativa nos movimentos sociais, se participar das suas lutas, principalmente as que nascem das condições básicas de produção e da resistência às relações de dominação. Já que as fábricas, os escritórios e os outros locais de trabalho dos assalariados, serão sempre – enquanto não existir a robotização total da produção e prestação de serviços – o centro das relações fundamentais de dominação e, consequentemente, o núcleo potencial da resistência ao capitalismo, onde pode germinar uma alternativa social. O anarquismo não conseguiu até hoje retomar sua relação histórica com os movimento sociais e, particularmente, com a luta operária.

O renascimento do anarco-sindicalismo em Espanha, nos anos 70, foi um caso único que resultou de uma longa história do anarco-sindicalismo e da tradição libertária nesse país. Mas mesmo aí, não se traduziu numa recriação da estratégia anarco-sindicalista adaptando-a às profundas transformações da economia e da própria condição operária, que haviam sido decisivas para debilitar o movimento.

Os problemas com que se tem debatido a CNT após sua reconstrução em 1977 resultam em parte – já que temos de reconhecer que existiram tentativas de infiltração e cerco por parte do Estado -, de duas causas: a primeira foi a incapacidade da CNT romper com o fantasma da história e se abrir ao novo movimento libertário que renascia nos anos 70, em Espanha; por outro lado do fato da estratégia anarco-sindicalista, como se definiu historicamente, não se mostrar operante numa sociedade em que o Capital e o Estado tinham passado por mutações profundas.

Esta constatação não significa aceitar como certa e inevitável a teoria que o sindicalismo morreu ou é, hoje, inevitavelmente integrador, e menos ainda, que não existe espaço para uma estratégia autônoma de confronto anti-capitalista nas atuais relações de trabalho.

Embora tenhamos de reconhecer que essa margem se reduziu na maioria dos países de capitalismo maduro, onde a consciência da sujeição desapareceu perante a perspectiva de acesso ao consumo.

E onde uma nova e radical divisão se cria no mundo do trabalho: a que nasce da oposição entre os garantidos e os excluídos das relações de produção.

Mesmo assim a existência de organizações anarco-sindicalistas em Espanha, em França e na Suécia, e de diversos núcleos sindicalistas revolucionários em outros países, não deixam de ser um desafio que se mede pela distância que vai desse sindicalismo autônomo ao sindicalismo atrelado, corporativista, e burocrático.

Mesmo assim temos de reconhecer com lucidez os limites atuais da prática sindical que tende a se desvirtuar na prática negocial – esse é o drama da CGT em Espanha – , ou a se encurralar na intransigência do confronto, impedindo os ganhos imediatos, que são uma componente necessária dessa forma de organização.

Ao contrário da visão simplista de alguns anarquistas, o sindicalismo burocrático e corporativo predominante atualmente, não é um produto da traição de dirigentes reformistas, mas a expressão do movimento operário que aderiu aos valores e à lógica do capitalismo. A burocracia sindical, tal como a burocracia política, só reflete a imagem dos movimentos sociais contemporâneos.

Esta reavaliação das relações anarquismo X sindicalismo, e a definição de uma estratégia atual para a ação no mundo do trabalho não deixam de ser importantes, mesmo que, levando em consideração a situação atual na maioria dos países, as perspectivas para os anarquistas são, quando muito, a de contribuir para a criação de núcleos de autonomia e auto-organização nos locais de trabalho, aplicando as idéias e táticas do anarco-sindicalismo adequadas a cada situação.

Hoje o sindicalismo para ser revolucionário, teria de se tornar mais abrangente, mesmo ao nível reivindicativo, rompendo as amarras do reacionarismo corporativo. Além das tradicionais lutas salariais, de redução de horário, de melhoria das condições de trabalho e contra o desemprego, teria de passar a intervir no redimensionamento do papel do trabalho e da função do trabalhador. E, indo mais além, atuar nas questões que envolvem o mundo do trabalho, como os transportes, habitação, urbanismo, consumo e qualidade de vida, já que são aspetos fundamentais, se partirmos de uma visão integrada das relações de dominação e de suas conseqüências na existência quotidiana dos assalariados.

O sindicalismo revolucionário teria de retomar a tradição perdida de ser o espaço de construção de relações de afinidade e solidariedade e de criação de uma contracultura de resistência.

Rompendo a barreira contemporânea estabelecida entre os trabalhadores garantidos e excluídos, entre os que possuem trabalho precário e trabalho seguro, criando formas de organização e luta solidária junto com os desempregados e aposentados.

As mudanças estruturais por que está passando a sociedade capitalista tem como uma de suas conseqüências mais importantes o declínio da coesão e consciência dos trabalhadores, bem como a perda da identidade construída ao longo do século XIX e primeiras décadas do nosso século. O Estado do Bem-Estar, a sociedade de consumo e as tecnologias de massificação, em particular o rádio e a televisão, podem ser apontadas como algumas das razões fundamentais para esta realidade que se manifesta de forma clara no primeiro mundo e já adquire os mesmos contornos nos países do sul industrializados e urbanizados.

Onde o espaço comunitário e da socialização dá lugar à realidade mediática da televisão omnipresente.

Se num primeiro momento o sindicalismo e o anarquismo conseguiram se apropriar da tecnologia da imprensa e a partir dela construir uma cultura operária e libertária, o mesmo processo não ocorreu em relação à rádio, televisão, vídeo e agora em relação à informática, que foram usados quase exclusivamente pelo sistema para unificar ideológica e culturalmente toda a sociedade, destruindo as diferenças e neutralizando a resistência cultural que se havia gerado a partir da crítica anti-capitalista. Essa estratégia teve um outro desdobramento, que foi o da fragmentação do espaço coletivo quotidiano das classes dominadas, induzidas por essas mesmas tecnologias a se fecharem sob o espaço individual e privado do lar.

A reconstrução desse espaço perdido da sociabilidade, da comunicação e da cultura dos “de baixo”, é possivelmente o maior desafio que um projeto libertário terá de enfrentar.

O anarco-sindicalismo, principal responsável pela criação dessa cultura operária em muitos países, foi um exemplo de criatividade dos operários libertários e de sua adaptação às necessidades de luta da época em que surgiu. Foi também a aplicação concreta de estruturas auto-controláveis e auto-dirigidas à sociedade industrial.

 

Sua recriação atual, terá de afastar qualquer pretensão hegemonista ou de imitação saudosista e considerar que é uma das estratégias possíveis de luta anti-capitalista.

Talvez a que maiores potencialidades ainda tem entre os setores sociais sujeitos as condições de trabalho violentas ou em regiões do mundo onde o quotidiano de miséria e exploração mantém desperto o instinto combativo dos assalariados.

Mas não se pode perder de vista que toda a análise social, centrada exclusivamente sobre as relações de produção, não dá conta de muitos problemas já levantados no passado e, menos ainda, dos que adquiriram maior importância nos últimos anos, através dos novos movimentos sociais, nascidos como resposta auto-organizativa a situações e conflitos diferenciados.

O anarquismo que já no passado se manifestava e agia nas mais diferentes áreas, do anti-militarismo e pacifismo, ao naturismo, do esperanto às experiências educacionais, deveria estar especialmente atento às potencialidades libertárias destes novos movimentos.

Mas, sem deixar de lhes apontar a principal limitação que é a de assumirem uma visão fragmentada dos problemas estruturais da sociedade, perdendo a noção do todo social.

Da organização dos consumidores, ao ambientalismo, da ecologia ao feminismo, do anti-militarismo às prisões, muitos são os objetivos e as formas de associação que potenciam a auto-organização de diferentes setores da sociedade em defesa dos seus interesses e, certamente, em todos os casos pode haver uma proposta e uma presença libertária que potencie a articulação e globalização de cada uma dessas lutas.

A ecologia social e o anti-militarismo, pelas suas tradicionais afinidades com os valores libertários, são áreas onde a militância anarquista mais se tem exprimido, mas também aí as potencialidades são limitadas, se for perdido o sentido da estratégia global de ruptura.

Não é possível construir uma alternativa social a partir do espaço fragmentado da particularidade e da diferença, mas somente a partir da cooperação em torno de um projeto de mudança que una diferentes grupos e tendências sociais. Caso contrário acabarão engolidos – como temos assistido nos últimos tempos – pelo movimento permanente de integração, através do qual o sistema tende a recuperar em seu benefício toda a crítica parcelar.

Também as lutas relativas às liberdades se tem tornado mais comuns nos chamados países democráticos, sendo decisivas para impedir a expansão do Estado autoritário.

Os anarquistas não se podem omitir com o inócuo pretexto de que em muitas delas estão em causa apenas regras jurídicas, já que são estes espaços de liberdade que o movimento social impôs ao Estado, como seus direitos que estão ameaçados.

As garantias penais e processuais, os direitos dos presos, o direito de asilo e de emigração, são entre muitos outros, os que os Estados vêm paulativamente eliminando ou reduzindo.

A nossa crítica ao Estado se concretiza no estabelecimento de metas imediatas para a luta social nesta área. Contrariamente a uma recusa abstrata ou a uma concepção doutrinária, devemos apoiar uma prática radical anti-estatista, que em cada caso e situação se oponha à expansão e hegemonia das relações de Poder, e favoreça a autonomia e a criação de espaços de liberdade a partir da própria sociedade.

Todas estas possibilidades, em aberto, para nossa intervenção, estão condicionadas pela capacidade de nos articularmos e associarmos, já que só movimentos sociais organizados têm condições para transformar qualquer situação social.

Nossa fragilidade organizativa: incapacidade de associação e coordenação em cada região e mais ainda internacionalmente, são por demais evidentes para não serem vistas como um dos problemas chaves do que genericamente chamamos de movimento libertário. Não se solucionando isto, será impossível qualquer ativismo profícuo, qualquer resultado duradouro para a nossa militância ou a transmissão de uma cultura libertária entre gerações.

O processo de globalização da sociedade industrial, está entrando num momento decisivo, onde o internacionalismo e a solidariedade dos povos é o único antídoto contra a xenofobia e a ghuetização de um mundo repartido entre o desperdício da abundância, no Norte, e a mais absurda das misérias no Sul.

Usando as palavras de Noam Chomsky: “o principal hoje é que se a resistência popular quiser ter alguma significância, terá que ser internacional…, isto começa a ser compreendido e é preciso que haja algum tipo de reação em escala internacional, um tipo de solidariedade transnacional entre pobres e trabalhadores”.

Por essa razão podemos afirmar que, de forma imediata, teremos de encarar a questão da associação, articulação e coordenação de nossas práticas.

O que passa também pela clarificação do papel da organização libertária, que é, antes do mais, o de criação de um espaço coletivo, livre e fraterno, onde se forjem novas relações sociais e se viva de acordo com os valores da cultura libertária, como aconteceu no passado quando “os trabalhadores e os pobres não estavam nem de longe tão isolados e nem submetidos ao monopólio ideológico da mídia dos negócios.”

Foi por isso que a esperança e a utopia se reproduziam nesses espaços libertados onde viviam os excluídos. É esta uma das funções que temos de recuperar para as associações libertárias, ao mesmo tempo que se assumam como um núcleo de difusão das idéias anarquistas e de articulação da luta de resistência anti-capitalista.

As formas concretas de associação podem ser diversas, das organizações anarco-sindicalistas, às federações de grupos de afinidade, das redes de informação, às associações de ateneus e centros de cultura.

O fundamental é federalizar e coletivizar práticas e experiências isoladas, ampliando assim as possibilidades de intervenção social. A ruptura com o isolamento e o individualismo do cidadão-consumidor-espectador – papel que o Sistema nos quer impor – é o passo mais decisivo no caminho da reconstrução do espaço coletivo da alternativa social.

Só através de um associativismo libertário que respeite a autonomia, singularidade e diferença entre cada indivíduo ou grupo, mas que seja capaz de potencializar, acima de tudo, o que temos em comum, fundamento de qualquer relação de afinidade, solidariedade e apoio mútuo, poderemos criar uma dinâmica nova no movimento e concretizarmos de imediato as formas organizacionais que propomos para a sociedade.

Este é o modelo reconhecido por qualquer anarquista, mas que tantas vezes negamos ao adotar posturas dogmáticas e arrogantes, confrontos personalizados, criticismos inconseqüentes, resultantes do descomprometimento com a ética anarquista.

Essa ética que nos leva a exigir uma adequação dos meios aos fins um ponto importante da nossa crítica ao socialismo autoritário deve assumir um papel central na militância libertária, condicionando imperativamente nossa prática social. Uma realidade em que estão presentes tensões permanentes, resultantes das pressões do meio social, da introjeção dos valores dominantes e das limitações pessoais, mas que será sempre o critério determinante para a avaliação da coerência de cada um de nós.

A ética anarquista e os valores libertários tornam-se, assim, pontos da ruptura radical com as ideologias autoritárias, constituindo a mais profunda clivagem com o socialismo autoritário. A rebeldia, a transformação social só podem ser um produto da vontade livre de sujeitos autodeterminados e solidários vivendo dentro de uma dada realidade histórica e social. Jamais produto das condições materiais de produção.

Essas sempre potenciarão a maximização da alienação e da sujeição.

Nenhum materialismo vulgar poderá explicar Miguel Angiolillo. Um operário italiano refugiado em Londres, que depois de conhecer os depoimentos de anarquistas espanhóis vítimas de prisão e tortura, decide em 1896, calma e pacientemente procurar o primeiro ministro de um país estranho e o assassinar, morrendo no garrote após realizar o que para si era imperativo pessoal de solidariedade.

DILEMAS DO ANARQUISMO CONTEMPORÂNEO

Uma sociedade que se auto-organiza sem autoridade, está sempre ao nosso alcance
como uma semente debaixo da neve, enterrada pelo peso do Estado e sua burocracia… Colin Ward

Ao contrário do que muitos gostariam o anarquismo não é uma espécie exótica em extinção, em todos os países eles estão presentes na manifestação ruidosa na praça pública ou na recusa silenciosa.

Mas certamente poderemos afirmar que enquantomovimento com o mínimo de organicidade, o anarquismo desapareceu nos últimos cinqüenta anos. Existem coletivos, publicações e associações em muitos países, mas não mais um movimento federalizado e internacionalista que se relacione de forma ativa e se afirme como alternativa social. A incapacidade organizativa, a reduzida atuação do anarquismo nos movimentos sociais e a cristalização teórica são essas as questões centrais que os libertários têm de enfrentar nos tempos presentes.

Existe uma relação direta entre estes dois aspectos já que, quer o pensamento individual, quer a elaboração dum conhecimento coletivo, estão ligados indissociavelmente à participação da práxis dum grupo social.

Como alguns libertários gostam de afirmar “os anarquistas são teóricos da sua prática e práticos da sua teoria”. É em função do agir sobre a realidade que qualquer teoria social se vai elaborando, desdobrando e auto-corrigindo. Cada sucesso ou fracasso, impõe uma reavaliação do nosso pensar.

Esta relação primordial entre teoria e prática, sempre existiu no movimento anarquista histórico, essa foi uma das razões porque não se constituiu uma intelligentzia especializada em pensar a mudança social, entre os libertários. No marxismo essa ruptura gerou na maioria dos casos um pensamento essencialmente ideológico e contemplativo, tipicamente acadêmico e nesse sentido inútil para o movimento anti-capitalista.

Desde sua prisão na Saxonia escreveu Bakunin uma carta em que dizia: “Encontro-me agora no ponto zero, quero dizer que estou condenado à condição de ser exclusivamente pensante, ou seja, não vivente.”

Se existe corrente socialista que assumiu a 11ª Tese de Marx contra Feuerbach: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo” foram os libertários.

No anarquismo os intelectuais do movimento sempre se assumiram mais como militantes do que como pensadores, sua radicalidade, e a opção pela coerência impossibilitaram que o anarquista produzisse essa subespécie de teóricos contempladores. Mesmo os que como intelectuais brilhantes como Kropotkin, Reclus ou Santillan acabaram não dispondo do tempo e meios que lhes possibilitassem procurar suas cadeiras em alguma Biblioteca do exílio.

Mas certamente é difícil encontrar movimento social que tenha conseguido produzir tantos autodidatas críticos e pensadores quanto o anarquismo, usando a deliciosa expressão do historiador do anarquismo Edgar Rodrigues — também ele um autodidata — que movimento conseguiu produzir um “engraxate e intelectual” como Ossep Stefanovetch ucrâniano anarquista que viveu no Brasil?.

A própria natureza heterodoxa do anarquismo impedia essa recuperação ideológica, até porque desde Proudhon se recusava a construção dum sistema fechado e auto-suficiente:

“Acolhamos, encoragemos todos os protestos, desonremos as exclusões, todos os misticismos: não olhemos jamais uma questão como esgotada, e quando tivermos usado até ao nosso último argumento, recomecemos, se for preciso, com eloqüência e ironia” .

O que também o diferenciava daquela corrente que se proclamava do socialismo científico e que era uma manifestação duma imensa arrogância e dogmatismo intelectual.

Só que na medida em que o anarquismo se foi afastando da realidade social, perdendo suas raízes nos movimentos sociais, também ele se encaminhou para a cristalização teórica, que se traduziu num pensamento fechado e doutrinário em uns casos, numa reflexão acadêmica sem qualquer conteúdo de crítica social, em outros ou num niilismo chique para consumo de classe média.

O anti-dogmatismo essencial do anarquismo, não justifica, que nos possamos agarrar a algumas idéias gerais e excluir o sentido da dúvida sistemática e uma necessária recriação permanente, o que nos impõe um aguçado sentido autocrítico. Ao contrário, a complexidade social atual, os novos problemas a encarar e a ampliação permanente do conhecimento, deve-nos levar a novas elaborações de valores e objetivos libertários. Não como forma de adaptação à realidade — do tipo libertarista pós-moderno —, mas sim como meio de responder à crítica necessária dessa realidade.

Conjugar o sentido utópico do anarquismo com a reflexão teórica e uma prática social, é condição desse pensamento revolucionário.

Caso contrário ficará reduzido a uma ética de comportamento ou a uma seita messiânica sem qualquer condição de interação com os acontecimentos reais.

Quanto às novas teorizações que tem ocorrido nos últimos anos, um pouco por todo o lado, na linha libertarista norte-americana de um Robert Nozick, há muito se afastou dos valores radicais do anarquismo para se aproximar dum liberalismo, que não tem correspondência com a realidade cínica do sistema dominante. Mais que um pensamento reformista —já que nem radicais são em suas exigências de reforma—, é um pensamento acomodado, incapaz de questionar profundamente a realidade e apostar na vontade e desejo utópico que sempre estiveram presentes nos movimentos sociais dos oprimidos.

Ao contrário do que apregoam os libertaristas, o pensamento anarquista clássico sobre o Estado e o Poder, mantém toda a sua pertinência e o conceito libertário duma comunidade autogovernada, descentralizada e federalizada é mais atual que nunca. A intuição e lucidez na crítica do socialismo autoritário e do Estado, demonstrou-se duma objetividade insofismável.

O que não nos impede de reconhecer que as idéias expostas por Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Malatesta e Landauer, entre outros, não tiveram os desenvolvimentos posteriores que se faziam necessários.

Muitas questões abertas pela experiência da Revolução Soviética e da Revolução libertária em Espanha, bem como muitas outras surgidas com as mutações ocorridas na sociedade industrial (das novas tecnologias, à ecologia) estão em aberto. Uma teoria do Poder; uma concepção libertária de organização; a análise das formas de autogestão; os problemas de escala e da complexidade tecnológica na sociedade contemporânea; um entendimento dos mecanismos psicológicos da agressividade e da dominação; as relações de micropoder na família e nos grupos, um estudo das potencialidades libertadoras da robótica e da telemática, são entre outros temas que precisam de ser aprofundados desde uma perspectiva libertária.

Enquanto o anarquismo esteve no centro dos movimentos sociais e se afirmava como pensamento rebelde, manteve sua capacidade de atração sobre uma intelectualidade desvinculada e crítica.

Até ao começo do século conhecidos pensadores se interessavam pelas idéias e as principais figuras do movimento como Kropotkin e Reclus, encontravam-se envolvidas nos grandes debates intelectuais da época.

Nos anos 20 ainda muitos pensadores da importância de Buber, Lukács e Benjamin estavam próximos de posições libertárias, o mesmo ocorrendo com muitos escritores e artistas.

Após os anos 30 a atração exercida pelo socialismo possível abriu o caminho à hegemonia do marxismo-leninismo nos meios intelectuais, passando o anarquismo a persistir como referência só em alguns meios dissidentes: dos teóricos do comselhismo, pacifistas, ou escritores como Perét, Breton, Orwell, Huxley e Camus.

Um movimento inverso, embora minoritário, haveria de ocorrer, quando a consciência dos crimes cometidos pelas burocracias vermelhas, aproximou do anarquismo importantes intelectuais oriundos do marxismo, entre os quais Herbert Read, Daniel Guerin, Murray Bookchin, Chomsky e Paul Goodman. Com eles o pensamento libertário ganhou importantes contribuições em novas áreas, da arte, educação, urbanismo e ecologia social.

Mas foi só a partir dos anos 60, que assistimos a uma ruptura ampla dos intelectuais como o socialismo autoritário, quer pelo conhecimento da realidade do estalinismo, quer pela influência da explosão libertária ocorrida no final dessa década.

Só que essa ruptura haveria de tomar duas direções: de um lado uma maioria intelectual que adotou a postura acomodada de conivência tácita ou adesão explícita ao capitalismo, sob o eufemismo de adesão aos valores democráticos; de outro uma minoria que persistiu com uma posição crítica e autônoma, vindo vários a se aproximar dos valores libertários e da tradição anarquista, mesmo que em alguns casos tenham permanecido com posições oscilantes e contraditórias, já que por pruridos marxistas ou por preconceitos acadêmicos, acabavam não reconhecendo explicitamente essa vinculação.

Dos situacionistas, a Guattari, Bosquet e Castoriadis, a contribuição a um pensamento libertário contemporâneo ainda é feita com preconceitos e mal entendidos em relação à corrente social que mais pensou e lutou por esses valores.

Não está em causa a eliminação dum sentido crítico sobre o próprio anarquismo, ou a identificação apriorística do libertário com aquele que se diz ser anarquista, mas certamente é contraditório se posicionar como libertário e ostensivamente ignorar um pensamento e uma prática social que se traduziram na história contemporânea, essencialmente, no movimento anarquista.

Pelo contrário, entre os anarquistas sempre houve uma procura permanente das fontes do pensamento libertário, dos heréticos do passado aos do presente, de Illich a Marcuse e Reich, uma posição aberta à heterodoxia. Mesmo que em alguns casos também tenham ocorrido resistências a essas críticas libertárias que não eram de matriz anarquista, como se por esse fato, fossem menos fundamentais para nós.

Essa forma de preconceito, também leva ao dogmatismo e traduz-se na maioria dos casos, numa recusa de toda a produção teórica que seja exterior ao movimento.

Uma obstinada cegueira que impossibilita uma leitura proveitosa, por exemplo, do pensamento de raiz marxista, principalmente aquele elaborado por intelectuais anti-autoritários.

Esta intransigência não leva em conta o que Kropotkin um dia caracterizou como a luta permanente de duas tendências na história e na sociedade: uma corrente autoritária e uma corrente libertária.

E que esta última não pode ser reduzida a uma expressão pura, pelo contrário é produto duma prática e dum processo reflexivo contínuo e tantas vezes contraditório em que cada grupo e indivíduo, de forma cooperativa, vão acrescentando algo de novo, numa superação permanente de dúvidas e dificuldades.

Usando as palavras de Colin Ward:

“a escolha entre as soluções libertária e autoritária não consiste em uma luta catastrófica definitiva, mas em uma série de compromissos atuais, muitos deles inconclusos, que ocorrem e ocorrerão, ao largo de toda a história”.

No entanto, é sintomático a dificuldade do anarquismo absorver o novo pensamento libertário. Tirando algumas excepções como Itália, onde tem estado presente nos coletivos anarquistas assumindo aí uma contemporaniedade radical, em Espanha depois do período dinâmico do fim dos anos 70, quando publicações como a Bicicleta trouxeram esse novo rosto do pensamento libertário, logo se voltou a um discurso carregado de fantasmas e saudades.

Esta cristalização ideológica do anarquismo, como teoria definida e acabada, leva a uma concepção sectária e religiosa, Víctor Garcia velho militante anarquista colocou o dedo na ferida numa crítica ácida ao ortodoxismo quando escreveu:

“El anarquismo debe vigorizar-se y actualizar-se, condición imprescindible si deseamos tener auditorio. El anarquismo organizado, en particular, ha sufrido una exagerada tirania por parte de vestales, exégetas y Torquemadas que no han permitido nunca el re-examen y la renovación de unas táticas por miedo a que se resintieran los principios y las finalidades. Esta imposición oficialista ortodoxa no ha permitido el airear nuestros recintos que se han llenado de telerañas mientras el mundo intelectual y la ciência continuaba una marcha vertiginosa que nos costará esfuerzos supremos si queremos darle alcance. Todo el que no se renueva, muere…”

O anarquismo nasceu da dissidência e da heterodoxia, em Godwin, Bakunin ou Malatesta não encontramos esse sectarismo e ortodoxia, essa tentação que não esteve de todo ausente em outras épocas, acabou sufocada pela diversidade e radicalidade heterodoxa. Anarquistas, sindicalistas, individualistas, pacifistas e insurreicionalístas, foram a expressão dessa pluralidade libertária que fizeram do anarquismo uma manifestação viva do pensamento anti-dogmático. Estas são algumas das características que temos de preservar, a tolerância é uma componente básica do movimento anti-autoritário, sem ela não é possível pensar qualquer forma de associativismo ou qualquer forma de renovação.

POSSIBILIDADES ATUAIS DUMA TEORIA E PRÁTICA LIBERTÁRIA

Os homens temem este desconhecido no qual entrariam se renunciassem à atual ordem de vida conhecida.
Sem dúvida, é bom temer o desconhecido, quando nossa situação conhecida é boa e segura;
mas este não é o caso e sabemos, sem margem de dúvida, que estamos à beira do abismo. Liev Tolstoi

Mesmo neste momento de maior arrogância do sistema capitalista que se travestiu em sociedade democrática e só por esse nome quer ser conhecido — principalmente do seu Estado—, quando a ideologia do Poder e da Sujeição se escuta em todo o lado, não se descortinam argumentos a favor dum sistema essencialmente — e historicamente — infame.

Sua irracionalidade econômica e social é por demais evidente. A pequena ilha de abundância, cercada de pobreza, pode até ser o paraíso, ou um pobre sucedâneo, para os que aí vivem. Só que não passa disso, uma ilha que é abastecida e financiada pelos que vivem fora dela. Uma multidão de esfomeados, desesperados ou dos conformados na miséria que povoam as grandes regiões do planeta.

Como é possível falar de progresso, desenvolvimento e êxito do gênero humano neste contexto em que uma parte da Humanidade se dessolidariza da restante?

Como admitir como política ou eticamente admissível um sistema social que perpetua tal realidade?

Que Futuro aponta essa realidade?

Certamente não é a ampliação da sociedade de consumo, à escala universal, mesmo que se amplie a novas ilhas, no oceano do apartheid social.

Os recursos escassos e a crise ecológica provocada pela economia do lucro e do desperdício, só permitem visualizar uma planificação autoritária à escala mundial, com o controle rigoroso dos recursos, da destruição ambiental e da própria população.

Em resumo, um sistema ainda mais autoritário e injusto.

O contraponto a esse futuro será sempre uma possibilidade, criada a partir da vontade, desejo e consciência dos de baixo, dos excluídos deste sistema, mas também de todos os estratos sociais para quem a Humanidade é maior que o Estado, evocando as palavras de Martin Buber. Dos que tem consciência que as opções são mais vastas e que o futuro e o mundo são criados pelos seres humanos e, como tal, sempre estarão abertos à nossa ação criadora.

Do ponto de vista do anarquismo, do movimento dos que recusam todas as formas de dominação, não podemos deixar de considerar uma prova da perenidade do inconformismo e da rebeldia, a persistência do movimento e das idéias nesta época de restauração e conformismo. O aparecimento de novos grupos no Leste europeu e em países do Terceiro Mundo, bem como a aproximação de intelectuais dos princípios libertários, sinalizam a pertinência da reflexão anarquista sobre o poder, a dominação e o estado. Abrindo possibilidades para o ressurgir dum socialismo libertário, orgânico e federalista. A própria generalização nas redes sociais de conceitos como autonomia, apoio mútuo, descentralização, democracia direta, federalismo que afloram dentro das chamadas Organizações Não Governamentais principalmente nos países do Sul permitem ter a esperança que as sociedades se aproximem em suas buscas dum modelo libertário, mesmo que essa forma de organização não assuma os contornos idealizados pelos militantes do passado.

A crítica da política como ocultação e falsa consciência, e do Estado como burocracia da inutilidade, que se manifesta também nos movimentos sociais reabre o caminho libertário dos projetos sociais autogestionários.

A idéia libertária manifestou-se sob várias formas no passado, da antigüidade aos movimentos religiosos e messiânicos, no presente se manifesta nas experiências autogestionárias da América Latina, nos movimentos ecológico, feminista e pacifista, não sendo propriedade de nenhum grupo. Mas ninguém foi tão longe como os anarquistas na tentativa de modelar um projeto social libertário, fazendo convergir a igualdade e a liberdade, o indivíduo e a comunidade, a autonomia e a cooperação. Por isso podemos dizer que o anarquismo é uma síntese dos ideais que revolucionaram a época moderna, uma utopia subversiva que questiona a realidade sobre valores fundamentais ainda não realizados.

Mas estará o anarquismo condenado à sua condição de utopia?

Certamente que o pensamento libertário também é feito de desejo e utopia, mas como disse Bakunin “foi na busca do impossível que o homem realizou e reconheceu o possível”.

No entanto o anarquismo é também uma práxis e um projeto social objetivo, que se assumindo como uma visão otimista da Humanidade, propõe a mudança positiva, onde as comunidades valorizem a vertente do apoio mútuo, da liberdade e igualdade e recusem as formas mediáticas, centralizadoras e autoritárias de organização social.

Colocando ante nós algumas interrogações:

Porquê reconhecer no capitalismo o último e definitivo modo de produção e no Estado com sua “democracia” representativa a derradeira forma das comunidades se organizarem?
Porquê não retomar e aprofundar a tradição libertária, descentralizadora e federalista que persistiu em várias épocas e civilizações?

A realidade contraditória que estamos vivendo abre novas possibilidades ao renascimento dum pensamento e duma prática libertária que contribua para responder a essas perguntas.

Certamente que esta mesma realidade pode forjar novas sujeições e autoritarismos: poderes supranacionais, integrismos religiosos, nacionalismos dementes, violência autofágica, manipulação genética, etc.

Como Carlos Díaz poderíamos dizer ” así que estamos lejos de entonar risuenamente, com el famoso libertario italiano, eso de que ‘anárquico es el mundo, anárquico el pensamiento y caminamos hacia la anarquía’ No. Hay más apoltronamiento y más inercia que espíritu de busqueda y que insatisfacción”

Perdida a inocência e o otimismo do século XIX, quando os movimentos sociais e os anarquistas em particular esperavam o amanhã radioso, sabemos hoje que o futuro está em aberto, nenhum movimento irresistível da história será capaz de nos preparar algo melhor daquilo que nós mesmos sejamos capazes de construir a partir de hoje.

Se os anarquistas forem capazes de passarem o testemunho de sua história, e afirmarem na prática social seus valores, talvez os movimentos sociais possam reencontrar, nessa radicalidade libertária, um dos referenciais que procuram de forma desnorteada. A imprevisibilidade histórica ou o ceticismo não são obstáculos definitivos ao voluntarismo anarquista.

Quando Fanelli o libertário italiano companheiro de Bakunin chegou a Espanha em 1868, sem sequer falar o espanhol, acaso poderia prever que estava contribuindo para a criação da mais importante base do movimento anarquista: o movimento libertário da Península Ibérica?

Não existe um que fazer para os anarquistas. Existe muitas possibilidades de fazer, traduzindo as diferentes situações e perspectivas em que cada grupo ou indivíduo libertário se encontram, mas que passa antes de tudo por preservar a lucidez crítica, pensar permanentemente a realidade, agir sobre essa mesma realidade, assumir a solidão da resistência em tempos difíceis lutando para criar os laços do espaço comunitário alternativo.

A práxis libertária contemporânea deverá se traduzir cada vez mais na crítica do Poder, da Política, do Estado e do Capital. Mas também na intervenção construtiva a partir da realidade local, na defesa do municipalismo e da democracia direta que sustentem um amplo federalismo regional e internacional dos Povos. Na criação duma cultura crítica que libere espaços de liberdade, de autonomia e criatividade, mas também de projetos autogestionários de alternativas econômicas e convivenciais.

Esse é o caminho para quebrar a quietude que a sociedade do espetáculo nos impõe, recusar a condição de espectador impotente e agir, a recusa silenciosa, o discurso, o fanzine, a sabotagem anônima, a revista, a desobediência civil, o livro, a ação radical do sindicalista libertário, as cooperativas autogestionárias, a manifestação anti-militarista dos anarco-punks, as experiências educacionais ou as listas de discussão libertárias dentro das redes de computadores são testemunhos de que tudo pode ainda ser feito.

E porque não fazê-lo?

Temos razão para crer que os nossos valores: cooperação, apoio mútuo, solidariedade, liberdade e igualdade correspondem à possibilidade de humanização da história das sociedades.

Por essa razão o anarquismo mantém toda a sua atualidade, acima de modas e conjunturas, até porque a ética e a rebeldia libertária possuem a dimensão eterna de Prometeu e está umbicalmente ligado com o desejo de realização integral de nossa humanidade.

Embora sua concretização subversiva só possa ocorrer dentro do contexto real da história e das sociedades. Sendo esse o maior desafio que se coloca ao projeto social libertário.

Fonte: www.anarquia.oi.com.br

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