Machado de Assis
PERSONAGENS
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D. Helena
D. Leonor
D. Cecília
Barão Segismundo de Kernoberg
Lugar da cena: Andaraí
ATO ÚNICO
Sala em casa de D. Leonor. Portas ao fundo, uma à direita do espectador
CENA I
D. Leonor, D. Helena, D. Cecília
D. Leonor entra, lendo uma carta, D. Helena e D. Cecília entram no fundo.
D. HELENA – Já de volta!
D. CECÍLIA (a D. Helena, depois de um silÊncio) – Será alguma carta de namoro?
D. HELENA (Baixo) – Criança!
D. LEONOR – Não me explicarão isto?
D. HELENA – Que é?
D. LEONOR – Recebi ao descer do carro este bilhete: “Minha senhora. Permita que o mais respeitoso vizinho lhe peça dez minutos de atenção. Vai nisto um grande interesse da ciência”. Que tenho eu com a ciência?
D. HELENA – Mas de quem é a carta?
D. LEONOR – Do Barão Sigismundo de Kernoberg.
D. CECÍLIA – Ah! o tio de Henrique!
D. LEONOR – De Henrique! Que familiaridade é essa?
D. CECÍLIA – Titia, eu…
D. LEONOR Eu que?… Henrique!
D. HELENA – Foi uma maneira de falar na ausência. Com que então o Sr. Barão Sigismundo de Kernoberg pede-lhe dez minutos de atenção, em nome e por amor da ciência. Da parte de um botânico é por força alguma égloga.
D. LEONOR – Seja o que for, não sei se deva receber um senhor a quem nunca vimos. Já o viram alguma vez?
D. CECÍLIA – Eu nunca.
D. HELENA – Nem eu.
D. LEONOR – Botânico e sueco: duas razões para ser gravemente aborrecido. Nada, não estou em casa.
D. CECÍLIA – Mas, quem sabe, titia, se ele quer pedir-lhe… sim… um exame no nosso jardim?
D. LEONOR – Há por todo esse Andaraí muito jardim para examinar.
D. HELENA – Não, senhora, há de recebê-lo.
D. LEONOR – Por que?
D. HELENA – Porque é nosso vizinho, porque tem necessidade de falar-lhe, e, enfim, porque, a julgar pelo sobrinho, deve ser um homem distinto.
D. LEONOR – Não me lembrava do sobrinho. Vá lá; aturemos o botânico. (Sai pela porta do fundo, à esquerda).
CENA II
D. HELENA, D. CECÍLIA
D. HELENA – Nã0 me agradece?
D. CECÍLIA – O que?
D. HELENA – Sonsa! Pois não adivinhas o que vem cá fazer o Barão?
D. CECÍLIA – Não.
D. HELENA – Vem pedir a tua mão para o sobrinho.
D. CECÍLIA – Helena!
D. HELENA (imitando-a) – Helena!
D. CECÍLIA – Juro…
D. HELENA – Que o não amas.
D. CECÍLIA – Não é isso.
D. HELENA – Que o amas?
D. CECÍLIA – Também não.
D. HELENA – Mau! Alguma coisa há de ser. Il faut qu’une porte soit ouverte ou fermée. Porta neste caso é coração. O teu coração há de estar fechado ou aberto…
D. CECÍLIA – Perdi a chave.
D. HELENA (rindo) – E não o podes fechar outra vez. São assim todos os corações ao pé de todos os Henriques. O teu Henrique viu a porta aberta, e tomou posse do lugar. Não escolheste mal, não; é um bonito rapaz.
D. CECÍLIA – Oh! uns olhos!
D. HELENA – Azuis.
D. CECÍLIA – Como o céu.
D. HELENA – Louro…
D. CECÍLIA – Elegante…
D. HELENA – Espirituoso…
D. CECÍLIA – E bom…
D. HELENA – Uma pérola… (Suspira). Ah!
D. CECÍLIA – Suspiras?
D. HELENA – Que há de fazer uma viúva falando… de uma pérola?
D. CECÍLIA – Oh! tens naturalmente em vista algum diamante de primeira grandeza.
D. HELENA – Nã0 tenho, não; meu coração já não quer jóias.
D. CECÍLIA – Mas as jóias querem o teu coração.
D. HELENA – Tanto pior para elas: hão de ficar em casa do joalheiro.
D. CECÍLIA – Veremos isso. (Sobe). Ah!
D. HELENA – Que é?
D. CECÍLIA (olhando para a direita) – Um homem desconhecido que lá vem; há de ser o Barão.
D. HELENA – Vou avisar titia. (Sai pelo fundo, à esquerda).
CENA III
D. Cecília, Barão
D. CECÍLIA – Será deveras ele? Estou trêmula… Henrique não me avisou de nada… Virá pedir-me?… Mas, não, não, não pode ser ……. Tão moço?… (O Barão aparece).
BARÃO (á porta, depois de profunda cortesia) – Creio que a Excelentíssima Senhora D. Leonor Gouvêa recebeu uma carta… Vim sem esperar a resposta.
D. CECÍLIA – É o Sr. Barão Sigismundo de Kernoberg? (O Barão faz um gesto afirmativo). Recebeu. Queira entrar e sentar-se. (À parte). Devo estar vermelha…
BARÃO (á parte, olhando para Cecília)
– Há de ser esta.
D. CECÍLIA (á parte) – E titia não vem… Que demora!… Não sei que lhe diga… estou tão vexada… (O Barão tira um livro da algibeira e folheia-o). Se eu pudesse deixá-lo… É o que vou fazer. (Sobe).
BARÃO (fechando o livro e erguendo-se) – V. Excia. há de desculpar-me. Recebi hoje mesmo este livro da Europa; é obra que vai fazer revolução na ciência; nada menos que uma monografia das gramíneas, premiadas pela Academia de Stockholmo.
D. CECÍLIA – Sim? (À parte) Aturemo-lo, pode vir a ser meu tio.
BARÃO – As gramíneas têm ou não têm perianto? A principio adotou-se a negativa, posteriormente… V. Excia. talvez não conheça é o que é o perianto..
D. CECÍLIA – Não, senhor.
BARÃO – Perianto compõe-se de duas palavras gregas: peri, em volta, e anthos, flor.
D. CECÍLIA – O invólucro da flor.
BARÃO – Acertou. É o que vulgarmente se chama cálix. Pois as gramíneas eram tidas… (Aparece D. Leonor ao fundo). Ah!
CENA IV
Os mesmos, D. Leonor
D. LEONOR – Desejava falar-me?
BARÃO – Se me dá essa honra. Vim sem esperar resposta à minha carta. Dez minutos apenas.
D. LEONOR – Estou às suas ordens.
D. CECÍLIA – Com licença. (À parte, olhando para o céu). Ah! minha Nossa Senhora! (Retira-se pelo fundo).
CENA V
D. Leonor, Barão
(D. Leonor senta-se, fazendo um gesto ao Barão, que a imita).
BARÃO – Sou o Barão Sigismundo de Kernoberg, seu vizinho, botânico de vocação, profissão e tradição, membro da Academia de Stockholmo e comissionado pelo governo da Suécia para estudar a flora da América do Sul. V. Excia. dispensa a minha biografia? (D. Leonor faz um gesto afirmativo). Direi somente que o tio de meu tio foi botânico, meu tio botânico, eu botânico, e meu sobrinho há de ser botânico. Todos somos botânicos de tios a sobrinhos. Isto de algum modo explica minha vinda a esta casa.
D. LEONOR – Oh! o meu jardim é composto de plantas vulgares.
BARÃO (gracioso) – É porque as melhores flores da casa estão dentro de casa. Mas V. Excia. engana-se; não venho pedir nada do seu jardim.
D. LEONOR – Ah!
BARÃO – Venho pedir-lhe uma coisa que lhe há de parecer singular.
D. LEONOR – Fale.
BARÃO – O padre desposa a igreja; eu desposei a ciência. Saber é o meu estado conjugal; os livros são a minha família. Numa palavra, fiz voto de celibato.
D. LEONOR – Não se case.
BARÃO – Justamente. Mas, V. Excia. compreende que, sendo para mim ponto de fé que a ciência não se dá bem com o matrimonio, nem eu devo casar, nem… Vossa Excia. já percebeu.
D. LEONOR – Coisa nenhuma.
BARÃO – Meu sobrinho Henrique anda estudando comigo os elementos da botânica. Tem talento, há de vir a ser um luminar da ciência. Se o casamos, está perdido.
D. LEONOR – Mas…
BARÃO (á parte) – Não entendeu. (Alto). Sou obrigado a ser mais franco. Henrique anda apaixonado por uma de suas sobrinhas, creio que esta que saiu daqui, há pouco. Impus-lhe que não voltasse a esta casa; ele resistiu-me. Só me resta um meio: é que V. Excia. lhe feche a porta.
D. LEONOR – Senhor Barão!
BARÃO – Admira-se do pedido? Creio que não é polido nem conveniente. Mas é necessário, minha senhora, é indispensável. A ciência precisa de mais um obreiro: não o encadeiemos no matrimônio.
D. LEONOR – Não sei se devo sorrir do pedido…
BARÃO – Deve sorrir, sorrir e fechar-nos a porta. Terá os meus agradecimentos e as bênçãos da posteridade.
D. LEONOR – Não é preciso tanto; posso fechá-la de graça.
BARÃO – Justo. O verdadeiro benefício é gratuito.
D. LEONOR – Antes, porém, de nos despedirmos, desejava dizer uma coisa e perguntar outra. (O Barão curva-se). Direi primeiramente que ignoro se há tal paixão da parte de seu sobrinho; em segundo lugar, perguntarei se na Suécia estes pedidos são usuais.
BARÃO – Na geografia intelectual não há Suécia nem Brasil; os países são outros: astronomia, geologia, matemáticas; na botânica são obrigatórios.
D. LEONOR – Todavia, à força de andar com flores… deviam os botânicos trazê-las consigo.
BARÃO – Ficam no gabinete.
D. LEONOR – Trazem os espinhos somente.
BARÃO – V. Excia. tem espírito. Compreendo a afeição de Henrique a esta casa. (Levanta-se). Promete-me então…
D. LEONOR (levantando-se) – Que faria no meu caso?
BARÃO – Recusava.
D. LEONOR – Com prejuízo da ciência?
BARÃO – Não, porque nesse caso a ciência mudaria de acampamento, isto é, o vizinho prejudicado escolheria outro bairro para seus estudos.
D. LEONOR – Não lhe parece que era melhor ter feito isso mesmo, antes de arriscar um pedido ineficaz?
BARÃO – Quis primeiro tentar fortuna.
CENA VI
D. Leonor, Barão, D. Helena
D. HELENA (entra e para) – Ah!
D. LEONOR – Entra, não é assunto reservado. O Sr. Barão de Kernoberg… (Ao Barão) É minha sobrinha Helena. (À Helena) Aqui o Sr. Barão vem pedir que o não perturbemos no estudo da botânica. Diz que o seu sobrinho Henrique está destinado a um lugar honroso na ciência, e… conclua, Sr. Barão.
BARÃO – Não convém que se case, a ciência exige o celibato.
D. LEONOR – Ouviste?
D. HELENA – Não compreendo…
BARÃO Uma paixão louca de meu sobrinho pode impedir que… Minhas senhoras, não desejo roubar-lhes mais tempo… Confio em V. Excia., minha senhora… Ser-lhe-ei eternamente grato. Minhas senhoras. (Faz uma grande cortesia e sai).
CENA VII
D. Helena, D. Leonor
D. LEONOR (rindo) – Que urso!
D. HELENA – Realmente…
D. LEONOR – Perdôo-lhe em nome da ciência. Fique com as suas ervas, e não nos aborreça mais, nem ele nem o sobrinho.
D. HELENA Nem o sobrinho?
D. LEONOR – Nem o sobrinho, nem o criado, nem o cão, se o houver, nem coisa nenhuma que tenha relação com a ciência. Enfada-te? Pelo que vejo, entre o Henrique e a Cecília há tal ou qual namoro?
D. HELENA – Se promete segredo… há.
D. LEONOR – Pois acabe-se o namoro.
D. HELENA – Não é fácil. O Henrique é um perfeito cavalheiro; ambos são dignos um do outro. Por que razão impediremos que dois corações…
D. LEONOR – Não sei de corações, não hão de faltar casamentos a Cecília.
D. HELENA – Certamente que não, mas os casamentos não se improvisam nem se projetam na cabeça; são atos do coração, que a igreja santifica. Tentemos uma coisa.
D. LEONOR – Que é?
D. HELENA – Reconciliemo-nos com o Barão.
D. LEONOR – Nada, nada.
D. HELENA – Pobre Cecília!
D. LEONOR – É ter paciência, sujeite-se às circunstâncias… (A D. Cecília, que entra) Ouviste?
D. CECÍLIA – O que, titia?
D. LEONOR – Helena te explicará tudo. (A D. Heleno, baixo). Tira-lhe todas as esperanças. (Indo-se). Que urso! que urso!
CENA VIII
D. Helena, D. Cecília
D. CECÍLIA – Que aconteceu?
D. HELENA – Aconteceu… (Olha com tristeza para ela).
D. CECÍLIA – Acaba.
D. HELENA – Pobre Cecília!
D. CECÍLIA – Titia recusou a minha mão?
D. HELENA – Qual! O Barão é que se opõe ao casamento.
D. CECÍLIA – Opõe-se!
D. HELENA Diz que a ciência exige o celibato do sobrinho. (D. Cecília encosta-se a uma cadeira). Mas, sossega; nem tudo está perdido; pode ser que o tempo…
D. CECÍLIA – Mas quem impede que ele estude?
D. HELENA – Mania de sábio. Ou então, evasiva do sobrinho.
D. CECÍLIA Oh! não! é impossível; Henrique é uma alma angélica! Respondo por ele. Há de certamente opor-se a semelhante exigência…
D. HELENA – Não convém precipitar as coisas. O Barão pode zangar-se e ir-se embora.
D. CECÍLIA – Que devo então fazer?
D. HELENA – Esperar. Há tempo para tudo.
D. CECÍLIA – Pois bem, quando Henrique vier…
D. HELENA – Não vem, titia resolveu fechar a porta a ambos.
D. CECÍLIA – Impossível!
D. HELENA – Pura verdade. Foi uma exigência do Barão.
D. CECÍLIA – Ah! conspiram todos contra mim. (Põe as mãos na cabeça). Sou muito infeliz! Que mal fiz eu a essa gente? Helena, salva-me! Ou eu mato-me! Anda, vê se descobres um meio…
D. HELENA (indo sentar-se) – Que meio?
D. CECÍLIA (acompanhando-a) – Um meio qualquer que não nos separe!
D. HELENA – Há um.
D. CECÍLIA – Qual? Dize.
D. HELENA – Casar.
D. CECÍLIA – Oh! não zombes de mim! Tu também amaste, Helena; deves respeitar estas angustias. Não tornar a ver o meu Henrique é uma idéia intolerável. Anda, minha irmãzinha. (Ajoelha-se inclinando o corpo sobre o regaço de D. Helena). Salva-me! És tão inteligente, que hás de achar por força alguma idéia; anda, pensa !
D. HELENA (beijando-lhe a testa) -Criança! supões que seja tão fácil assim?
D. CECÍLIA – Para ti há de ser fácil.
D. HELENA – Lisonjeira! (Pega maquinalmente no livro deixado pelo Barão sobre a cadeira). A boa vontade não pode tudo; é preciso… (Tem aberto o livro). Que livro é este?… Ah! talvez do Barão.
D. CECÍLIA – Mas vamos… continua.
D. HELENA – Isto há de ser sueco… trata talvez de botânica. Sabes sueco?
D. CECÍLIA – Helena!
D. HELENA – Quem sabe se este livro pode salvar tudo? (Depois de um instante de reflexão). Sim, é possível. Tratará de botânica?
D. CECÍLIA – Trata.
D. HELENA – Quem te disse?
D. CECÍLIA – Ouvi dizer ao Barão, trata das…
D. HELENA – Das…
D. CECÍLIA – Das gramíneas?
D. HELENA – Só das gramíneas?
D. CECÍLIA – Não sei; foi premiado pela Academia de Stockholmo.
D. HELENA – De Stockholmo. Bem. (Levanta-se).
D. CECÍLIA (levantando-se) – Mas que é?
D. HELENA – Vou mandar-lhe o livro…
D. CECÍLIA – Que mais?
D. HELENA – Com um bilhete.
D. CECÍLIA (olhando para a direita) Não é preciso; lá vem ele.
D. HELENA – Ah!
D. CECÍLIA – Que vais fazer?
D. HELENA – Dar-lhe o livro.
D. CECÍLIA – O livro, e…
D. HELENA – E as despedidas.
D. CECÍLIA – Não compreendo.
D. HELENA – Espera e verás.
D. CECÍLIA – Não posso encara-lo; adeus.
D. HELENA – Cecília! (D. Cecília sai).
CENA IX
D. HELENA, BARÃO
BARÃO (á porta) – Perdão, minha senhora; eu trazia um livro há pouco…
D. HELENA (com o livro na mão) – Será este?
BARÃO (caminhando para ela) – Justamente.
D. HELENA – Escrito em sueco, penso eu…
BARÃO – Em sueco.
D. HELENA – Trata naturalmente de botânica.
BARÃO – Das gramíneas.
D. HELENA (com interesse) – Das gramíneas!
BARÃO – De que se espanta?
D. HELENA – Um livro publicado…
BARÃO – Ha quatro meses.
D. HELENA – Premiado pela Academia de Stockholmo?
BARÃO (admirado) – É verdade. Mas…
D. HELENA – Que pena que eu não saiba sueco!
BARÃO – Tinha noticia do livro?
D. HELENA – Certamente. Ando ansiosa por lê-lo.
BARÃO – Perdão, minha senhora. Sabe botânica?
D. HELENA – Não ouso dizer que sim, estudo alguma coisa; leio quando posso. É ciência profunda e encantadora.
BARÃO (com calor) – É a primeira de todas.
D. HELENA – Não me atrevo a apóia-lo, porque nada sei das outras, e poucas luzes tenho de botânica, apenas as que pode dar um estudo solitário e deficiente. Se a vontade suprisse o talento…
BARÃO – Por que não? Le génie, c’est la patience, dizia Buffon.
D. HELENA (sentando-se) – Nem sempre.
BARÃO – Realmente, estava longe de supor, que, tão perto de mim, uma pessoa tão distinta dava algumas horas vagas ao estudo da minha bela ciência.
D. HELENA – Da sua esposa.
BARÃO (sentando) – É verdade. Um marido pode perder a mulher, e se a amar deveras, nada a compensará neste mundo, ao passo que a ciência não morre… Morremos nós, ela sobrevive com todas as graças do primeiro dia, ou ainda maiores, porque cada descoberta é um encanto novo.
D. HELENA – Oh! tem razão!
BARÃO – Mas, diga-me V. Excia.: tem feito estudo especial das gramíneas?
D. HELENA – Por alto… por alto…
BARÃO – Contudo, sabe que a opinião dos sábios não admitia o perianto… (D. Helena faz sinal afirmativo). Posteriormente reconheceu-se a existência do perianto. (Novo gesto de D. Helena). Pois este livro refuta a segunda opinião.
D. HELENA – Refuta o perianto?
BARÃO – Completamente.
D. HELENA – Acho temeridade.
BARÃO – Também eu supunha isso… Li-o, porém, e a demonstração é claríssima. Tenho pena que não possa lê-lo. Se me dá licença, farei uma tradução portuguesa e daqui a duas semanas…
D. HELENA – Não sei se deva aceitar…
BARÃO – Aceite; é o primeiro passo para me não recusar segundo pedido.
D. HELENA – Qual?
BARÃO – Que me deixe acompanha-la em seus estudos, repartir o pão do saber com V. Excia. É a primeira vez que a fortuna me depara uma discípula. Discípula é, talvez, ousadia da minha parte…
D. HELENA – Ousadia, não; eu sei muito pouco; posso dizer que não sei nada.
BARÃO – A modéstia é o aroma do talento, como o talento é o esplendor da graça. V. Excia. possui tudo isso. Posso compará-la à violeta, – Viola odorata de Lineu, – que é formosa e recatada…
D. HELENA (interrompendo) – Pedirei licença à minha tia. Quando será a primeira lição?
BARÃO – Quando quiser. Pode ser amanhã. Tem certamente notícia da anatomia vegetal.
D. HELENA – Notícia incompleta.
BARÃO – Da fisiologia?
D. HELENA – Um pouco menos.
BARÃO – Nesse caso, nem a taxonomia, nem a fitografia…
D. HELENA – Não fui até lá.
BARÃO – Mas há de ir… Verá que mundos novos se lhe abrem diante do espírito. Estudaremos, uma por uma, todas as famílias, as orquídeas, as jasmíneas, as rubiáceas, as oleáceas, as narcíseas, as umbelíferas, as…
D. HELENA – Tudo, desde que se trata de flores.
BARÃO – Compreendo: amor de família.
D. HELENA – Bravo! um cumprimento!
BARÃO (folheando o livro) – A ciência os permite.
D. HELENA (à parte) – O mestre é perigoso. (Alto). Tinham-me dito exatamente o contrário; disseram-me que o Sr. Barão era… não sei como diga… era…
BARÃO – Talvez um urso.
D. HELENA – Pouco mais ou menos.
BARÃO – E sou.
D. HELENA – Não creio.
BARÃO – Por que não crê?
D. HELENA – Porque o vejo amável.
BARÃO – Suportável apenas.
D. HELENA – Demais, imaginava-o uma figura muito diferente, um velho macilento, melenas caídas, olhos encovados.
BARÃO – Estou velho, minha senhora.
D. HELENA – Trinta e seis anos.
BARÃO – Trinta e nove.
D. HELENA – Plena mocidade.
BARÃO – Velho para o mundo. Que posso eu dar ao mundo senão a minha prosa científica?
D. HELENA – Só uma coisa lhe acho inaceitável.
BARÃO – Que é?
D. HELENA – A teoria de que o amor e a ciência são incompatíveis.
BARÃO – Oh! isso…
D. HELENA – Dá-se o espírito à ciência e o coração ao amor. São territórios diferentes, ainda que limítrofes.
BARÃO – Um acaba por anexar o outro.
D. HELENA – Não creio.
BARÃO – O casamento é uma bela coisa, mas o que faz bem a uns, pode fazer mal a outros. Sabe que Mafoma não permite o uso do vinho aos seus sectários. Que fazem os turcos? Extraem o suco de uma planta, da família das papaveráceas, bebem-no, e ficam alegres. Esse licor, se nós o bebêssemos, matar-nos-ia. O casamento, para nós, é o vinho turco.
D. HELENA (erguendo os ombros) -Comparação não é argumento. Demais, houve e há sábios casados.
BARÃO – Que seriam mais sábios se não fossem casados.
D. HELENA – Não fale assim. A esposa fortifica a alma do sábio. Deve ser um quadro delicioso para o homem que despende as suas horas na investigação da natureza, faze-lo ao lado da mulher que o ampara e anima, testemunha de seus esforços, sócia de suas alegrias, atenta, dedicada, amorosa. Será vaidade de sexo? Pode ser, mas eu creio que o melhor premio do mérito é o sorriso da mulher amada. O aplauso público é mais ruidoso, mas muito menos tocante que a aprovação doméstica.
BARÃO (depois de um instante de hesitação e luta) – Falemos da nossa lição.
D. HELENA – Amanhã, se minha tia consentir. (Levanta-se). Até amanhã, não?
BARÃO – Hoje mesmo, se o ordenar.
D. HELENA – Acredita que não perderei o tempo?
BARÃO – Estou certo que não.
D. HELENA – Serei acadêmica de Stockholmo?
BARÃO – Conto que terei essa honra.
D. HELENA (cortejando) – Até amanhã.
BARÃO (o mesmo) – Minha senhora! (D. Helena sai pelo fundo, esquerda, o Barão caminha para a direita, mas volta para buscar o livro que ficara sobre a cadeira ou sofá).
CENA X
Barão, D. Leonor
BARÃO (pensativo) – Até amanhã! Devo eu cá voltar? Talvez não devesse, mas é interesse da ciência… a minha palavra empenhada… O pior de tudo é que a discípula é graciosa e bonita. Nunca tive discípula, ignoro até que ponto é perigoso… Ignoro? Talvez não… (Põe a mão no peito). Que é isto?… (Resoluto). Não, sicambro! Não hás de adorar o que queimaste! Eia, volvamos às flores e deixemos esta casa para sempre. (Entra D. Leonor).
D. LEONOR (vendo o Barão) – Ah!
BARÃO – Voltei há dois minutos; vim buscar este livro. (Cumprimentando). Minha senhora!
D. LEONOR – Senhor Barão!
BARÃO (vai até à porta e volta) – Creio que V. Excia. não me fica querendo mal?
D. LEONOR – Certamente que não.
BARÃO (cumprimentando) – Minha senhora!
D. LEONOR (idem) – Senhor Barão!
BARÃO (vai até à porta e volta) – A senhora D. Helena não lhe falou agora?
D. LEONOR – Sobre que?
BARÃO – Sobre umas lições de botânica…
D. LEONOR – Não me falou em nada…
BARÃO (cumprimentando) – Minha senhora!
D. LEONOR (idem) – Senhor Barão! (Barão sai). Que esquisitão! Valia a pena cultivá-lo de perto.
BARÃO (reaparecendo) – Perdão…
D. LEONOR – Ah! Que manda?
BARÃO (aproxima-se) – Completo a minha pergunta. A sobrinha de V. Excia. falou-me em receber algumas lições de botânica; V. Excia. consente? (Pausa). Há de parecer-lhe esquisito este pedido, depois do que tive a honra de fazer-lhe há pouco…
D. LEONOR – Sr. Barão, no meio de tantas cópias e imitações humanas…
BARÃO – Eu acabo: sou original.
D. LEONOR – Não ouso dizê-lo.
BARÃO – Sou; noto, entretanto, que a observação de V. Excia. não responde à minha pergunta.
D. LEONOR – Bem sei; por isso mesmo é que a fiz.
BARÃO – Nesse caso…
D. LEONOR – Nesse caso, deixe-me refletir.
BARÃO – Cinco minutos?
D. LEONOR – Vinte e quatro horas.
BARÃO – Nada menos?
D. LEONOR – Nada menos.
BARÃO (cumprimentando) – Minha senhora!
D. LEONOR (idem) – Senhor Barão! (Sai o Barão)
CENA XI
D. Leonor, D. Cecília
D. LEONOR – Singular é ele, mas não menos singular é a idéia de Helena. Para que quererá ela aprender botânica?
D. CECÍLIA (entrando) – Helena! (D. Leonor volta-se). Ah! é titia.
D. LEONOR – Sou eu.
D. CECÍLIA – Onde está Helena?
D. LEONOR – Não sei, talvez lá em cima. (D. Cecília dirige-se para o fundo). Onde vais?…
D. CECÍLIA – Vou…
D. LEONOR – Acaba.
D. CECÍLIA – Vou concertar o penteado.
D. LEONOR – Vem cá; concerto eu. (D. Cecília aproxima-se de D. Leonor). Não é preciso, está excelente. Diz-me: estás muito triste?
D. CECÍLIA (muito triste) – Não, senhora; estou alegre.
D. LEONOR – Mas, Helena disse-me que tu…
D.CECÍLIA – Foi gracejo.
D. LEONOR – Não creio; tens alguma coisa que te aflige; hás de contar-me tudo.
D. CECÍLIA – Não posso.
D. LEONOR – Não tens confiança em mim?
D. CECÍLIA- Oh! toda!
D. LEONOR – Pois eu exijo… (Vendo Helena, que aparece à porta do fundo, esquerda). Ah! chegas a propósito.
CENA XII
D. Leonor, D. Cecília, D. Helena
D. HELENA – Para que?
D. LEONOR – Explica-me que historia é essa que me contou o Barão?
D. CECÍLIA (com curiosidade) – O Barão?
D. LEONOR – Parece que estás disposta a estudar botânica.
D. HELENA – Estou.
D. CECÍLIA (sorrindo) – Com o Barão?
D. HELENA – Com o Barão.
D. LEONOR – Sem o meu consentimento?
D. HELENA – Com o seu consentimento.
D. LEONOR – Mas de que te serve saber botânica?
D. HELENA – Serve para conhecer as flores dos meus bouquets, para não confundir jasmíneas com rubiáceas, nem bromélias com umbelíferas.
D. LEONOR – Com que?
D. HELENA – Umbelíferas.
D.LEONOR – Umbe…
D. HELENA – … líferas. Umbelíferas.
D. LEONOR – Virgem santa! E que ganhas tu com esses nomes bárbaros?
D. HELENA – Muita coisa.
D. CECÍLIA (à parte) – Boa Helena! Compreendo tudo.
D. HELENA – O perianto, por exemplo; a senhora talvez ignore a questão do perianto… a questão das gramíneas…
D. LEONOR – E dou graças a Deus!
D. CECÍLIA (animada) – Oh! deve ser uma questão importantíssima!
D. LEONOR (espantada) – Também tu!
D. CECÍLIA – Só o nome! Perianto. É nome grego, titia, um delicioso nome grego. (À parte). Estou morta por saber do que se trata.
D. LEONOR – Vocês fazem-me perder o juízo! Aqui andam bruxas, de certo. Perianto de um lado, bromélias de outro; uma língua de gentios, avessa à gente cristã. Que quer dizer tudo isso?
D. CECÍLIA – Quer dizer que a ciência é uma grande coisa e que não há remédio senão adorar a botânica.
D. LEONOR – Que mais?
D. CECÍLIA – Que mais? Quer dizer que a noite de hoje há de estar deliciosa, e poderemos ir ao teatro lírico. Vamos, sim? Amanhã é o baile do conselheiro e sábado o casamento da Júlia Marcondes. Três dias de festas! Prometo divertir-me muito, muito, muito. Estou tão contente! Ria-se, titia; ria-se e dê-me um beijo!
D. LEONOR – Não dou, não, senhora. Minha opinião é contra a botânica, e isto mesmo vou escrever ao Barão.
D. HELENA – Reflita primeiro; basta amanhã!
D. LEONOR – Há de ser hoje mesmo! Esta casa está ficando muito sueca; voltemos a ser brasileiras. Vou escrever ao urso. Acompanha-me, Cecília; hás de contar-me o que lia. (Saem).
CENA XIII
D. Helena, Barão
D. HELENA – Cecília deitou tudo a perder… Não se pode fazer nada com crianças… Tanto pior para ela. (Pausa). Quem sabe se tanto melhor para mim? Pode ser. Aquele professor não é assaz velho, como convinha. Além disso, há nele um ar de diamante bruto, uma alma apenas coberta pela crosta científica, mas cheia de fogo e luz. Se eu viesse a arder ou cegar… (Levanta os ombros). Que idéia! Não passa de um urso, como titia lhe chama, um urso com patas de rosas.
BARÃO (aproximando-se) – Perdão, minha senhora. Ao atravessar a chácara ia pensando no nosso acordo, e, sinto dizê-lo, mudei de resolução.
D. HELENA – Mudou
BARÃO (aproximando-se) – Mudei.
D. HELENA – Pode saber-se o motivo?
BARÃO – São três. O primeiro é o meu pouco saber… Ri-se?
D. HELENA – De incredulidade. O segundo motivo…
BARÃO – O segundo motivo é o meu
gênio áspero e despótico.
D. HELENA – Vejamos o terceiro.
BARÃO – O terceiro é a sua idade. Vinte e um anos, não?
D. HELENA – Vinte e dois.
BARÃO – Solteira?
D. HELENA – Viúva.
BARÃO – Perpetuamente viúva?
D. HELENA – Talvez.
BARÃO – Nesse caso, quarto motivo:
sua viuvez perpétua.
D. HELENA – Conclusão: todo o nosso acordo está desfeito.
BARÃO – Não digo que esteja; só por mim não o posso romper. V. Excia., porém, avaliará as razões que lhe dou, e decidirá se ele deve ser mantido.
D. HELENA – Suponha que respondo
afirmativamente. –
BARÃO – Paciência! obedecerei.
D. HELENA – De má vontade?
BARÃO – Não; mas com grande desconsolação.
D. HELENA – Pois, Sr. Barão, não desejo violentá-lo; está livre.
BARÃO – Livre, e não menos desconsolado.
D. HELENA – Tanto melhor!
BARÃO – Como assim?
D. HELENA – Nada mais simples: vejo que é caprichoso e incoerente.
BARÃO – Incoerente, é verdade.
D. HELENA – Irei procurar outro mestre.
BARÃO – Outro mestre! Não faça isso.
D. HELENA – Por que?
BARÃO -Porque… (Pausa). Vossa Excia. é inteligente bastante para dispensar mestres.
D. HELENA – Quem lho disse?
BARÃO – Adivinha-se.
D. HELENA – Bem; irei queimar os olhos nos livros.
BARÃO – Oh! seria estragar as mais belas flores do mundo!
D. HELENA (sorrindo) – Mas então nem mestres nem livros?
BARÃO – Livros, mas aplicação moderada. A ciência não se colhe de afogadilho; é preciso penetra-la com segurança e cautela.
D. HELENA – Obrigada. (Estendendo-lhe a mão). E visto que me recusa as suas lições, adeus.
BARÃO – Já!
D. HELENA – Pensei que queria retirar-se.
BARÃO – Queria e custa-me. Em todo caso, não desejava sair sem que V. Excia. me dissesse francamente o que pensa de mim. Bem ou mal?
D. HELENA – Bem e mal.
BARÃO – Pensa então…
D. HELENA – Penso que é inteligente e bom, mas caprichoso e egoísta.
BARÃO – Egoísta!
D. HELENA – Em toda a força da expressão. (Senta-se). Por egoísmo – científico, é verdade, – opõe-se às afeições de seu sobrinho; por egoísmo, recusa-me as suas lições. Creio que o Sr. Barão nasceu para mirar-se no vasto espelho da natureza, a sós consigo, longe do mundo, e seus enfados. Aposto que – desculpe a indiscrição da pergunta – aposto que nunca amou?
BARÃO – Nunca.
D. HELENA – De maneira que nunca uma flor teve a seus olhos outra aplicação, além do estudo?
BARÃO – Engana-se.
D HELENA – Sim?
BARÃO – Depositei algumas coroas de goivos no túmulo de minha mãe.
D. HELENA – Ah!
BARÃO – Há em mim alguma coisa mais do que eu mesmo. Há a poesia das afeições por baixo da prova científica. Não a ostento, é verdade; mas sabe V. Excia. o que tem sido a minha vida? Um claustro. Cedo perdi o que havia mais caro: a família. Desposei a ciência, que me tem servido de alegrias, consolações e esperanças. Deixemos, porém, tão tristes memórias.
D. HELENA – Memórias de homem; até aqui eu só via o sábio.
BARÃO – Mas o sábio reaparece e enterra o homem. Volto à vida vegetativa… se me é lícito arriscar um trocadilho em português, que eu não sei bem se o é. Pode ser que não passe de aparência. Todo eu sou aparências, minha senhora, aparências de homem, de linguagem e até de ciência…
D. HELENA – Quer que o elogie?
BARÃO – Não; desejo que me perdoe.
D. HELENA – Perdoar-lhe o que?
BARÃO – A incoerência de que me acusava há pouco.
D. HELENA – Tanto perdôo que o imito. Mudo igualmente de resolução, e dou de mão ao estudo.
BARÃO – Não faça isso!
D HELENA – Não lerei uma só linha de botânica, que é a mais aborrecível ciência do mundo.
BARÃO – Mas o seu talento…
D. HELENA – Não tenho talento; tinha curiosidade.
BARÃO – É a chave do saber.
D. HELENA – Que monta isso? A porta fica tão longe!
BARÃO – É certo, mas o caminho é de flores.
D. HELENA – Com espinhos.
BARÃO – Eu lhe quebrarei os espinhos.
D. HELENA – De que modo?
BARÃO – Serei seu mestre.
D. HELENA (levanta-se) – Não! Respeito os seus escrúpulos. Subsistem, penso
eu, os motivos que alegou. Deixe-me ficar na minha ignorância.
BARÃO – É a última palavra de Vossa Excia.?
D. HELENA – Última.
BARÃO (com ar de despedida) – Nesse caso… aguardo as suas ordens.
D. HELENA – Que se não esqueça de nós.
BARÃO – Crê possível que me esquecesse?
D. HELENA – Naturalmente: um conhecimento de vinte minutos…
BARÃO – O tempo importa pouco ao caso. Não me esquecerei nunca mais destes vinte minutos, os melhores da minha vida, os primeiros que hei realmente vivido. A ciência não é tudo, minha senhora. Há alguma coisa mais, além do espírito, alguma coisa essencial ao homem, e…
D. HELENA – Repare, Sr. Barão, que está falando à sua ex-discípula.
BARÃO – A minha ex-discípula tem coração, e sabe que o mundo intelectual é estreito para conter o homem todo; sabe que a vida moral é uma necessidade do ser pensante.
D. HELENA – Não passemos da botânica à filosofia, nem tanto à terra, nem tanto ao céu. O que o Sr. Barão quer dizer, em boa e mediana prosa, é que estes vinte minutos de palestra não o enfadaram de todo. Eu digo a mesma coisa. Pena é que fossem só vinte minutos, e que o Sr. Barão volte às suas amadas plantas; mas é força ir ter com elas, não quero tolher-lhe os passos. Adeus! (Inclinando-se como a despedir-se).
BARÃO (cumprimentando) – Minha senhora! (Caminha até à porta e pára). Não transporei mais esta porta?
D. HELENA – Já a fechou por suas próprias mãos.
BARÃO – A chave está nas suas.
D. HELENA (olhando para as mãos) -Nas minhas?
BARÃO (aproximando-se) – Decerto.
D. HELENA – Não a vejo.
BARÃO – É a esperança. Dê-me a esperança de que…
D. HELENA (depois de uma pausa) – A esperança de que…
BARÃO – A esperança de que… a esperança de…
D. HELENA (que tem tirado uma flor de um vaso) – Creio que lhe será mais fácil definir esta flor.
BARÃO – Talvez.
D. HELENA – Mas não é preciso dizer mais: adivinhei-o.
BARÃO (alvoroçado) – Adivinhou?
D. HELENA – Adivinhei que quer a todo o transe ser meu mestre.
BARÃO (friamente) – É isso.
D. HELENA – Aceito.
BARÃO – Obrigado.
D. HELENA – Parece-me que. ficou triste?…
BARÃO – Fiquei, pois que só adivinhou metade do meu pensamento. Não adivinhou que eu… por que o não direi? di-lo-ei francamente… Não adivinhou que…
D. HELENA – Que…
BARÃO (depois de alguns esforços para falar) – Nada… nada…
D. LEONOR (dentro) – Não admito!
CENA XIV
D. Helena, Barão, D. Leonor, D. Cecília
D. CECÍLIA (entrando pelo fundo com D. Leonor) – Mas titia…
D. LEONOR – Não admito, já disse! Não te faltam casamentos. (Vendo o Barão). Ainda aqui!
BARÃO – Ainda e sempre, minha senhora.
D. LEONOR – Nova originalidade.
BARÃO – Oh! não! A coisa mais vulgar do mundo. Refleti, minha senhora, e venho pedir para meu sobrinho a mão de sua encantadora sobrinha. (Gesto de Cecília).
D. LEONOR – A mão de Cecília!
D. CECÍLIA – Que ouço!
BARÃO – O que eu lhe pedia há pouco era uma extravagância, um ato de egoísmo e violência, além de descortesia que era, e que V. Excia. me perdoou, atendendo à singularidade das minhas maneiras. Vejo tudo isso agora…
D. LEONOR – Não me oponho ao casamento, se for do agrado de Cecília.
D. CECÍLIA (baixo, a D. Helena) Obrigada! Foste tu…
D. LEONOR – Vejo que o Sr. Barão refletiu.
BARÃO – Não foi só reflexão, foi também resolução.
D. LEONOR – Resolução?
BARÃO (gravemente) – Minha senhora, atrevo-me a fazer outro pedido.
D. LEONOR – Ensinar botânica à Helena? Já me deu vinte e quatro horas para responder.
BARÃO – Peço-lhe mais do que isso; V. Excia. que é, por assim dizer, irmã mais velha de sua sobrinha, pode intervir junto dela para… (Pausa).
D. LEONOR – Para…
D. HELENA – Acabo eu. O que o Sr. Barão deseja é a minha mão.
BARÃO – Justamente!
D. LEONOR (espantada) – Mas… Não compreendo nada.
BARÃO – Não é preciso compreender; basta pedir.
D. HELENA – Não basta pedir; é preciso alcançar.
BARÃO – Não alcançarei?
D. HELENA – Dê-me três meses de reflexão.
BARÃO – Três meses é a eternidade
D. HELENA – Uma eternidade de noventa dias.
BARÃO – Depois dela, a felicidade ou o desespero?
D. HELENA (estendendo-lhe a mão) – Está nas suas mãos a escolha. (A D. Leonor). Não se admire tanto, titia; tudo isto é botânica aplicada
Fonte: pt.wikisource.org
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