Machado de Assis
Comédia em dois atos
PERSONAGENS
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TITO
ERNESTO SEABRA
ALEIXO CUPIDOV coronel russo
EMÍLIA SOARES viúva
MARGARIDA SEABRA
UM CORREIO
A cena passa-se em Petrópolis – Atualidade.
ATO PRIMEIRO
(Um jardim: mesa, cadeiras de ferro. A casa a um lado.)
Cena I
SEABRA (assentado a um lado da mesa, com um livro aberto); MARGARIDA (do outro lado)
SEABRA — Queres que paremos aqui?
MARGARIDA — Como quiseres.
SEABRA (fechando o livro) — É melhor. As coisas boas não se gozam de uma assentada. Guardemos um bocado para a noite. Demais, era já tempo que eu passasse do idílio escrito para o idílio vivo. Deixa-me olhar para ti.
MARGARIDA — Jesus! Parece que começamos a lua-de-mel.
SEABRA — Parece e é. E se o casamento não fosse eternamente isto o que poderia ser? A ligação de duas existências para meditar discretamente na melhor maneira de comer o maxixe e o repolho? Ora, pelo amor de Deus! Eu penso que o casamento deve ser um namoro eterno. Não pensas como eu?
MARGARIDA — Sinto…
SEABRA — Sentes, é quanto basta.
MARGARIDA — Mas que as mulheres sintam é natural; os homens…
SEABRA — Os homens são homens.
MARGARIDA — O que nas mulheres é sensibilidade, nos homens é pieguice: desde pequena me dizem isto.
SEABRA — Enganam-te desde pequena.
MARGARIDA — Antes isso!
SEABRA — É a verdade. E desconfia sempre dos que mais falam, homens ou mulheres. Tens perto um exemplo. A Emília faz um grande cavalo de batalha da sua isenção. Quantas vezes se casou? Até aqui duas, e está nos vinte e cinco anos. Era melhor calar-se mais e casar-se menos.
MARGARIDA — Mas nela é brincadeira.
SEABRA — Pois sim. O que não é brincadeira é que os cinco meses do nosso casamento parecem-me cinco minutos…
MARGARIDA — Cinco meses!
SEABRA — Como foge o tempo!
MARGARIDA — Dirás sempre o mesmo?
SEABRA — Duvidas?
MARGARIDA — Receio. É tão bom ser feliz!
SEABRA — Sê-lo-ás sempre e do mesmo modo. De outro não entendo eu.
TITO (ao fundo) — O que é que não entendes?
Cena II
MARGARIDA, SEABRA, TITO
SEABRA — Quem é? (levanta-se e vai ao fundo) Ah! é o Tito! Entra! Entra! (abre a cancela) Ah! (abraçam-se) Como estás? Acho-te mais gordo! Anda cumprimentar minha mulher. Margarida, aqui está o Tito!
TITO — Minha senhora… (a Seabra) Dás licença? (a Margarida) Quem vem de longe quer abraços. (dá-lhe um abraço) Ah! aproveito a ocasião para dar-lhes os parabéns.
SEABRA — Recebeste a nossa carta de participação?
TITO — Em Valparaíso.
SEABRA — Anda sentar-te e conta-me a tua viagem.
TITO — Isso é longo. O que te posso contar é que desembarquei ontem no Rio. Tratei de indagar a tua morada. Disseram-me que estavas temporariamente em Petrópolis. Descansei, mas logo hoje tomei a barca da Prainha e aqui estou. Eu já suspeitava que com o teu espírito de poeta irias esconder a tua felicidade em algum recanto do mundo. Com efeito, isto é verdadeiramente uma nesga do paraíso. Jardim, caramanchões, unia casa leve e elegante, um livro… (abre o livro) Bravo! Marília de Dirceu… É completo? Tityre, tu patulae… Caio no meio de um idílio. (a Margarida) Pastorinha, onde está o cajado? (Margarida ri às gargalhadas) Ri mesmo como uma pastorinha alegre. E tu, Teócrito, que fazes? Deixas correr os dias como as águas do Paraíba? Feliz criatura!
SEABRA — Sempre o mesmo!
TITO — O mesmo doido? (a Margarida) Acha que ele tem razão?
MARGARIDA — Acho, se o não ofendo…
TITO — Qual, ofender! Se eu até me honro com isso. Sou um doido inofensivo, isso é verdade. Mas é que realmente são felizes como poucos. Há quantos meses se casaram?
MARGARIDA — Cinco meses fazem domingo.
SEABRA — Disse há pouco que me pareciam cinco minutos.
TITO — Cinco meses, cinco minutos! Eis toda a verdade da vida. Se os pusessem sobre uma grelha, como São Lourenço, cinco minutos eram cinco meses. E ainda se fala em tempo! Há lá tempo! O tempo está nas nossas impressões. Há meses para os infelizes e minutos para os venturosos!
SEABRA — Mas que ventura!
TITO — Completa, não? Imagino! Marido de um serafim nas graças e no coração… Ah! perdão, não reparei que estava aqui… mas não precisa corar!… Disto me hás de ouvir vinte vezes por dia! o que penso, digo. (a Seabra) Como não te hão de invejar os nossos amigos!
SEABRA — Isso não sei.
TITO — Pudera! Encafuado neste desvão do mundo de nada podes saber. E fazes bem. Isto de ser feliz à vista de todos é repartir a felicidade. Ora, para respeitar o princípio devo ir-me já embora…
SEABRA — Deixa-te disso: fica conosco.
MARGARIDA — Os verdadeiros amigos também são a felicidade.
TITO (curvando-se) — Oh!…
SEABRA — É até bom que aprendas em nossa escola a ciência do casamento.
TITO — Para quê?
SEABRA — Para te casares.
TITO — Hum!
MARGARIDA — Não pretende?
SEABRA — Estás ainda o mesmo que em outro tempo?
TITO — O mesmíssimo.
MARGARIDA — Tem horror ao casamento?
TITO — Não tenho vocação. É puramente um caso de vocação. Quem a não tiver não se meta nisso que é perder o tempo e o sossego. Desde muito tempo estou convencido disto.
SEABRA — Ainda te não bateu a hora.
TITO — Nem bate.
SEABRA — Mas, se bem me lembro, houve um dia em que fugiste às teorias de costume; andavas então apaixonado…
TITO — Apaixonado é engano. Houve um dia em que a providência trouxe uma confirmação aos meus instantes solitários. Meti-me a pretender uma senhora…
SEABRA — É verdade: foi um caso engraçado.
MARGARIDA — Como foi o caso?
SEABRA — O Tito viu em um baile uma rapariga. No dia seguinte apresenta-se em casa dela, e, sem mais nem menos, pede-lhe a mão. Ela respondeu… que te respondeu?
TITO — Respondeu por escrito que eu era um tolo e me deixasse daquilo. Não disse positivamente tolo, mas vinha a dar na mesma. É preciso confessar que semelhante resposta não era própria. Voltei atrás e nunca mais amei.
MARGARIDA — Mas amou naquela ocasião?
TITO — Não sei se era amor, era uma coisa… Mas note, isto foi há uns bons cinco anos. Daí para cá ninguém mais me fez bater o coração.
SEABRA — Pior para ti.
TITO — Eu sei! Se não tenho os gozos intensos do amor, não tenho nem os dissabores nem os desenganos. É já uma grande fortuna!
MARGARIDA — No verdadeiro amor não há nada disso…
TITO — Não há? Deixemos o assunto; eu podia fazer um discurso a propósito, mas prefiro…
SEABRA — Ficar conosco? Está sabido.
TITO — Não tenho essa intenção.
SEABRA — Mas tenho eu. Hás de ficar.
TITO — Mas se eu já mandei o criado tomar alojamento no hotel de Bragança…
SEABRA — Pois manda contra-ordem. Fica comigo!
TITO — Insisto em não perturbar a tua paz.
SEABRA — Deixa-te disso!
MARGARIDA — Fique!
TITO — Ficarei.
MARGARIDA — E amanhã depois de ter descansado, há de nos dizer qual é o segredo da isenção de que tanto se ufana.
TITO — Não há segredo. O que há é isto. Entre um amor que se oferece e… uma partida de voltarete, não hesito, atiro-me ao voltarete. A propósito, Ernesto, sabes que encontrei no Chile um famoso parceiro de voltarete? Fez a casca mais temerária que tenho visto… (a Margarida) Sabe o que é uma casca?
MARGARIDA — Não.
TITO — Pois eu lhe explico.
SEABRA — Aí chega a Emília.
Cena III
Os mesmos, EMÍLIA e o CORONEL
MARGARIDA (indo ao fundo) — Viva, Senhora ingrata, há três dias…
EMÍLIA — E a chuva?
CORONEL — Minha Senhora, Sr. Seabra…
SEABRA (a Emília) — D. Emília, vem achar-me na maior satisfação. Tornei a ver um amigo que há muito andava em viagem. Tenho a honra de lho apresentar: é o Sr. Tito Freitas.
TITO — Minha Senhora! (Emília fita-lhe os olhos por algum tempo procurando recordar-se; Tito sustenta o olhar de Emília com a mais imperturbável serenidade)
SEABRA (apresentando) — O Sr. Aleixo Cupidov, coronel do exército russo; o Sr. Tito Freitas… Bem… (indo à porta da casa) Tragam cadeiras…
EMÍLIA (a Margarida) — Pois ainda hoje não viria se não fosse a obsequiosidade do Sr. Coronel…
MARGARIDA — O Sr. Coronel é uma maravilha. (chega um fâmulo com cadeiras, dispõe-nas e sai)
CORONEL — Nem tanto, nem tanto.
EMÍLIA — É, é. Eu só tenho medo de uma coisa; é que suponham que me acho contratada para vivandeira para o exército russo…
CORONEL — Quem suporia?
SEABRA — Sentem-se, nada de cerimônias.
EMÍLIA — Sabem que o Sr. Coronel vai fazer-me um presente?
SEABRA — Ah!…
MARGARIDA — O que é?
CORONEL — É uma insignificância, não vale a pena.
EMÍLIA — Então não acertam? É um urso branco.
SEABRA e MARGARIDA — Um urso!
EMÍLIA — Está para chegar; mas só ontem é que me deu notícia…
TITO (baixo a Seabra) — Com ele faz um par.
MARGARIDA — Ora, um urso!
CORONEL — Não vale a pena. Contudo mandei dizer que desejava dos mais belos. Ah! não fazem idéia do que é um urso branco! Imaginem que é todo branco!
TITO — Ah!…
CORONEL — É um animal admirável.
TITO — Eu acho que sim. (a Seabra) Ora vê tu, um urso branco que é todo branco! (baixo) Que faz este sujeito?
SEABRA (baixo) — Namora a Emília, mas sem ser namorado.
TITO (idem) — Diz ela?
SEABRA (idem) — E é verdade.
EMÍLIA (respondendo a Margarida) — Mas por que não me mandaste dizer? Dá-se esta, Sr. Seabra; então faz-se anos nesta casa e não me mandam dizer?
MARGARIDA — Mas a chuva?
EMÍLIA — Anda lá, maliciosa! Bem sabes que não há chuva em casos tais.
SEABRA — Demais fez-se a festa tão à capucha!
EMÍLIA — Fosse o que fosse, eu sou de casa.
TITO — O coronel está com licença, não?
CORONEL — Estou, sim, senhor.
TITO — Não tem saudades do serviço?
CORONEL — Podia ter, mas há compensações…
TITO — É verdade que os militares, por gosto ou por costume, nas vagas do serviço do exército, alistam-se em outro exército, sem baixa de posto, alferes quando são alferes, coronéis quando são coronéis. Tudo lhes corre mais fácil: é o verdadeiro amor; o amor que cheira a pelouro e morrião. Oh! esse sim!
CORONEL — Oh!…
TITO — É verdade, não?
CORONEL — Faz-se o que se pode…
EMÍLIA (a Tito) – É advogado?
TITO — Não sou coisa alguma.
EMÍLIA — Parece advogado.
MARGARIDA — Oh! ainda não sabes o que é o nosso amigo… Nem digo, que tenho medo…
EMÍLIA — É coisa tão feia assim?
TITO — Dizem, mas eu não creio.
EMÍLIA — O que é então?
MARGARIDA — É um homem incapaz de amar… Não pode haver maior indiferença para o amor… Em resumo, prefere a um amor… o quê? Um voltarete.
EMÍLIA — Disse-te isso?
TITO — E repito. Mas note bem, não é por elas, é por mim. Acredito que todas as mulheres sejam credoras da minha adoração; mas eu é que sou feito de modo que nada mais lhes posso conceder do que uma estima desinteressada.
EMÍLIA — Se não é vaidade, é doença.
TITO — Há de me perdoar, mas eu creio que não é doença nem vaidade. É natureza: uns aborrecem as laranjas, outros aborrecem os amores; agora se o aborrecimento vem por causa das cascas, não sei; o que é certo é que é assim.
EMÍLIA (a Margarida) — É ferino!
TITO — Ferino, eu? Sou uma seda, uma dama, um milagre de brandura… Dói-me, deveras, que eu não possa estar na linha dos outros homens, e não seja, como todos, propenso a receber as impressões amorosas, mas que quer? A culpa não é minha.
SEABRA — Anda lá, o tempo há de mudar.
TITO — Mas quando? Tenho vinte e nove feitos!
EMÍLIA — Já, vinte e nove?
TITO — Completei-os pela Páscoa.
EMÍLIA — Não parece.
TITO — São os seus bons olhos…
UM CORREIO (ao fundo) — Jornais da corte! (Seabra vai tomar os jornais. Vai-se o correio)
SEABRA — Notícias do paquete.
CORONEL — Notícias do paquete? Faz-me favor de um? (Seabra dá-lhe um jornal)
SEABRA — Queres ler, Tito?
TITO — Já li. Mas olha, deixa-me ir tirar estas botas e mandar chamar o meu criado.
SEABRA — Vamos. Dispensam-nos por um instante?
EMÍLIA — Pois não!
SEABRA — Vamos.
TITO — Não tardo nada. (entram os dois em casa. O Coronel lê as notícias com grandes gestos de espanto)
EMÍLIA — Coronel, ao lado da casa há um caramanchãozinho, muito próprio para leitura…
CORONEL — Perdão, minha senhora, eu bem sei que faço mal, mas é que realmente o paquete trouxe notícias gravíssimas.
EMÍLIA — No caramanchão! no caramanchão!
CORONEL — Hão de perdoar, com licença… (a Emília) Não vai sem mim?
EMÍLIA — Conto com a sua obsequiosidade.
CORONEL — Pois não! (sai)
Cena IV
MARGARIDA, EMÍLIA
MARGARIDA — Quando te deixará este eterno namorado?
EMÍLIA — Eu sei lá! Mas, afinal de contas, não é mau homem. Tem aquela mania de me dizer no fim de todas as semanas que nutre por mim uma ardente paixão.
MARGARIDA — Enfim, se não passa da declaração semanal…
EMÍLIA — Não passa. Tem a vantagem de ser um braceiro infalível para a rua e um realejo menos mau dentro de casa. Já me contou umas cinqüenta vezes a batalha em que ganhou o posto de coronel. Todo o seu desejo, diz ele, é ver-se comigo em São Petersburgo. Quando me fala nisto, se é à noite, e é quase sempre à noite, mando vir o chá, excelente meio de aplacar-lhe os ardores amorosos. Gosta do chá que se péla! Gosta tanto como de mim! Mas aquela do urso branco? E se realmente mandou vir um urso?
MARGARIDA — Aceita.
EMÍLIA — Pois eu hei de sustentar um urso? Não me faltava mais nada.
MARGARIDA — Quer-me parecer que acabas por te apaixonar…
EMÍLIA — Por quem? Pelo urso?
MARGARIDA — Não; pelo coronel.
EMÍLIA — Deixa-te disso… Ah! mas o original… o amigo de teu marido? Que me dizes do vaidoso? Não se apaixona!
MARGARIDA — Talvez seja sincero…
EMÍLIA — Não acredito. Pareces criança! Diz aquilo dos dentes para fora…
MARGARIDA — É verdade que não tenho maior conhecimento dele…
EMÍLIA — Quanto a mim, pareceu-me não ser estranha aquela cara… mas não me lembro!
MARGARIDA — Parece ser sincero… mas dizer aquilo é já atrevimento.
EMÍLIA — Está claro…
MARGARIDA — De que te ris?
EMÍLIA — Lembra-me um do mesmo gênero que este… Foi já há tempos. Andava sempre a gabar-se da sua isenção. Dizia que todas as mulheres eram para ele vasos da China: admirava-as e nada mais. Coitado! Caiu em menos de um mês. Margarida, vi-o beijar-me a ponta dos sapatos… depois do que desprezei-o.
MARGARIDA — Que fizeste?
EMÍLIA — Ah! não sei o que fiz. Fiz o que todas fazemos. Santa Astúcia foi quem operou o milagre. Vinguei o sexo e abati um orgulhoso.
MARGARIDA — Bem feito!
EMÍLIA — Não era menos do que este. Mas falemos de coisas sérias… Recebi as folhas francesas de modas…
MARGARIDA — Que há de novo?
EMÍLIA — Muita coisa. Amanhã tas mandarei. Repara em um novo corte de mangas. É lindíssimo. Já mandei encomendas para a corte. Em artigos de passeio há fartura e do melhor.
MARGARIDA — Para mim quase que é inútil mandar.
EMÍLIA — Por quê?
MARGARIDA — Quase nunca saio de casa.
EMÍLIA — Nem ao menos irás jantar comigo no dia de ano bom?
MARGARIDA — Oh! com toda a certeza!
EMÍLIA — Pois vai… Ah! irá o homem? O Sr. Tito?
MARGARIDA — Se estiver cá… e quiseres…
EMÍLIA — Pois que vá, não faz mal… Saberei contê-lo… Creio que não será sempre tão… incivil. Nem sei como podes ficar com esse sangue-frio! A mim faz-me mal aos nervos!
MARGARIDA — É-me indiferente.
EMÍLIA — Mas a injúria ao sexo… não te indigna?
MARGARIDA — Pouco.
EMÍLIA — És feliz.
MARGARIDA — Que queres que eu faça a um homem que diz aquilo? Se não fosse já casada era possível que me indignasse mais. Se fosse livre era possível que lhe fizesse o que fizeste ao outro. Mas eu não posso cuidar dessas coisas…
EMÍLIA — Nem ouvindo a preferência do voltarete? Pôr-nos abaixo da dama de copas! E o ar com que diz aquilo! Que calma! Que indiferença!
MARGARIDA — É mau! É mau!
EMÍLIA — Merecia castigo…
MARGARIDA — Merecia. Queres tu castigá-lo?
EMÍLIA — Não vale a pena.
MARGARIDA — Mas tu castigaste o outro.
EMÍLIA — Sim… mas não vale a pena.
MARGARIDA — Dissimulada!
EMÍLIA (rindo) — Por que dizes isso?
MARGARIDA — Porque já te vejo meio tentada a uma vingança nova…
EMÍLIA — Eu? Ora, qual!
MARGARIDA — Que tem? Não é crime…
EMÍLIA — Não é, decerto; mas… Veremos!
MARGARIDA — Ah! Serás capaz?
EMÍLIA (com um olhar de orgulho) — Capaz?
MARGARIDA — Beijar-te-á ele a ponta dos sapatos?
EMÍLIA (apontando com o leque para o pé) — E hão de ser estes…
MARGARIDA — Aí vem o homem! (Tito aparece à porta da casa)
Cena V
TITO, EMÍLIA, MARGARIDA
TITO (parando à porta) — Não é segredo?
EMÍLIA — Qual! Pode vir.
MARGARIDA — Descansou mais?
TITO — Pois não! Onde está o coronel?
EMÍLIA — Está lendo as folhas da corte.
TITO — Coitado do coronel!
EMÍLIA — Coitado por quê?
TITO — Talvez em breve tenha de voltar para o exército. É duro. Quando a gente se afaz a certos lugares e certos hábitos lá lhe custa a mudar… Mas a força maior… Não as incomoda o fumo?
EMÍLIA — Não, senhor!
TITO — Então posso continuar a fumar?
MARGARIDA — Pode.
TITO — É um mau vício, mas é o meu único vício. Quando fumo parece que aspiro a eternidade. Enlevo-me todo e mudo de ser. Divina invenção!
EMÍLIA — Dizem que é excelente para os desgostos amorosos.
TITO — Isso não sei. Mas não é só isto. Depois da invenção do fumo não há solidão possível. É a melhor companhia deste mundo. Demais, o charuto é um verdadeiro Memento homo: reduzindo-se pouco a pouco em cinzas, vai lembrando ao homem o fim real e infalível de todas as coisas: é o aviso filosófico, é a sentença fúnebre que nos acompanha em toda a parte. Já é um grande progresso… Mas aqui estou eu a aborrecê-las com uma dissertação aborrecida… Hão de desculpar… que foi descuido. (fixando o olhar em Emília) Ora, a falar a verdade, eu vou desconfiando; V. Exa. olha-me com uns olhos tão singulares.
EMÍLIA — Não sei se são singulares, mas são os meus.
TITO — Penso que não são os do costume. Está talvez V. Exa. a dizer consigo que eu sou um esquisito, um singular, um…
EMÍLIA — Um vaidoso, é verdade.
TITO — Sétimo mandamento: não levantarás falsos testemunhos.
EMÍLIA — Falsos, diz o mandamento.
TITO — Não me dirá em que sou eu vaidoso?
EMÍLIA — Ah! a isso não respondo eu.
TITO — Por que não quer?
EMÍLIA — Porque… não sei. É uma coisa que se sente, mas que se não pode descobrir. Respira-lhe a vaidade em tudo: no olhar, na palavra, no gesto… mas não se atina com a verdadeira origem de tal doença.
TITO — É pena. Eu tinha grande prazer em ouvir da sua boca o diagnóstico da minha doença. Em compensação pode ouvir da minha o diagnóstico da sua… A sua doença é… Digo?
EMÍLIA — Pode dizer.
TITO — É um despeitozinho.
EMÍLIA — Deveras?
TITO — Despeito pelo que eu disse há pouco.
EMÍLIA (rindo) — Puro engano!
TITO — É com certeza. Mas é tudo gratuito. Eu não tenho culpa de coisa alguma. A natureza é que me fez assim.
EMÍLIA — Só a natureza?
TITO — E um tanto de estudo. Ora, vou desfiar-lhe as minhas razões. Veja se posso amar ou pretender amar: 1°, não sou bonito…
EMÍLIA — Oh!…
TITO — Agradeço o protesto, mas continuo na mesma opinião: não sou bonito, não sou.
MARGARIDA — Oh!
TITO (depois de inclinar-se) — 2°, não sou curioso, e o amor, se o reduzirmos às suas verdadeiras proporções, não passa de uma curiosidade; 3°, não sou paciente, e nas conquistas amorosas, a paciência é a principal virtude; 4°, finalmente, não sou idiota, porque, se com todos estes defeitos, pretendesse amar, caía na maior falta de razão. Aqui está o que eu sou por natural e por indústria; veja se se pode fazer de mim um Werther…
MARGARIDA — Emília, parece que é sincero.
EMÍLIA — Acreditas?
TITO — Sincero como a verdade.
EMÍLIA — Em último caso, seja ou não seja sincero, que tenho eu com isso?
TITO — Ah! Nada! Nada!
EMÍLIA — O que farei é lamentar aquela que cair na desgraça de pretender tão duro coração… se alguma houver.
TITO — Eu creio que não há. (entra um criado e vai falar a Margarida)
EMÍLIA — Pois é o mais que posso fazer…
MARGARIDA — Dão-me licença por alguns minutos… Volto já.
EMÍLIA — Não te demores!
MARGARIDA — Ficas?
EMÍLIA — Fico. Creio que não há receio…
TITO — Ora, receio… (Margarida entra em casa, o criado sai pelo fundo)
Cena VI
TITO, EMÍLIA
EMÍLIA — Há muito tempo que se dá com o marido de Margarida?
TITO — Desde criança.
EMÍLIA — Ah! foi criança?…
TITO — Ainda hoje sou.
EMÍLIA (voltando ao sério) — É exatamente o tempo das minhas relações com ela. Nunca me arrependi.
TITO — Nem eu.
EMÍLIA — Houve um tempo em que estivemos separadas; mas isso não trouxe mudança alguma às nossas relações. Foi no tempo do meu primeiro casamento.
TITO — Ah! foi casada duas vezes?
EMÍLIA — Em dois anos.
TITO — E por que enviuvou da primeira?
EMÍLIA — Porque meu marido morreu.
TITO — Mas eu pergunto outra coisa. Por que se fez viúva, mesmo depois da morte de seu primeiro marido? Creio que poderia continuar casada.
EMÍLIA — De que modo?
TITO — Ficando mulher do finado. Se o amor acaba na sepultura acho que não vale a pena de procurá-lo neste mundo.
EMÍLIA — Realmente o Sr. Tito é um espírito fora do comum!
TITO — Um tanto.
EMÍLIA — É preciso que o seja para desconhecer que a nossa vida não comporta essas exigências de eterna fidelidade. E demais, pode-se conservar a lembrança dos que morreram sem renunciar às condições da nossa existência. Agora, é que eu lhe pergunto por que me olha com olhos tão singulares…
TITO — Não sei se são singulares, mas são os meus.
EMÍLIA — Então acha que eu cometi uma bigamia?
TITO — Eu não acho nada. Ora, deixe-me dizer-lhe a última razão da minha incapacidade para os amores.
EMÍLIA — Sou toda ouvidos.
TITO — Eu não creio na fidelidade.
EMÍLIA — Em absoluto?
TITO — Em absoluto.
EMÍLIA — Muito obrigada!
TITO – Ah! eu sei que isto não é delicado; mas, em primeiro lugar, eu tenho a coragem das minhas opiniões, e em segundo, foi V. Exa. quem me provocou. É infelizmente verdade, eu não creio nos amores leais e eternos. Quero fazê-la minha confidente. Houve um dia em que tentei amar; concentrei todas as formas vivas do meu coração; dispus-me a reunir o meu orgulho e a minha ilusão na cabeça do objeto amado. Que lição mestra! O objeto amado, depois de me alimentar as esperanças, casou-se com outro que não era nem mais bonito, nem mais amante.
EMÍLIA — Que prova isso?
TITO — Prova que me aconteceu o que pode acontecer e acontece diariamente aos outros.
EMÍLIA — Ora…
TITO — Há de me perdoar, mas eu creio que é uma coisa já metida na massa do sangue.
EMÍLIA — Não diga isso. É certo que podem acontecer casos desses; mas serão todas assim? Não admite uma exceção que seja? Seja menos prevenido; aprofunde mais os corações alheios se quiser encontrar a verdade… e há de encontrá-la.
TITO (abanando a cabeça) — Qual…
EMÍLIA — Posso afirmá-lo.
TITO — Duvido.
EMÍLIA (dando-lhe o braço) — Tenho pena de uma criatura assim! Não conhecer o amor é não conhecer a felicidade, é não conhecer a vida! Há nada igual à união de duas almas que se adoram? Desde que o amor entra no coração, tudo se transforma, tudo muda, a noite parece dia, a dor assemelha-se ao prazer… Se não conhece nada disto, pode morrer, porque é o mais infeliz dos homens.
TITO — Tenho lido isso nos livros, mas ainda não me convenci…
EMÍLIA — Há de ir um dia à minha casa.
TITO — É dado saber por quê?
EMÍLIA — Para ver uma gravura que lá tenho na sala: representa o amor domando as feras. Quero convencê-lo.
TITO — Com a opinião do desenhista? Não é possível. Tenho visto gravuras vivas. Tenho servido de alvo a muitas setas; crivam-me todo, mas eu tenho a fortaleza de São Sebastião; afronto, não me curvo.
EMÍLIA (tira-lhe o braço) — Que orgulho!
TITO — O que pode fazer dobrar uma altivez destas? A beleza? Nem Cleópatra. A castidade? Nem Susana. Resuma, se quiser, todas as qualidades em uma só criatura e eu não mudarei… É isto e nada mais.
EMÍLIA (à parte) — Veremos. (vai sentar-se)
TITO (sentando-se) – Mas, não me dirá; que interesse tem na minha conversão?
EMÍLIA Eu? Não sei… nenhum.
TITO (pega no livro) — Ah!
EMÍLIA — Só se fosse o interesse de salvar-lhe a alma…
TITO (folheando o livro) — Oh! essa… está salva!
EMÍLIA (depois de uma pausa) — Está admirando a beleza dos versos?
TITO — Não senhora; estou admirando a beleza da impressão. Já se imprime bem no Rio de Janeiro. Aqui há anos era uma desgraça. V. Exa. há de conservar ainda alguns livros da impressão antiga…
EMÍLIA — Não, senhor; eu nasci depois que se começou a imprimir bem.
TITO (com a maior frieza) — Ah! (deixa o livro)
EMÍLIA (à parte) — É terrível! (alto, indo ao fundo) Aquele coronel ainda não acabaria de ler as notícias?
TITO — O coronel?
EMÍLIA — Parece que se embebeu todo no jornal… Vou mandar chamá-lo… Não chegará alguém?
TITO (com os olhos cerrados) — Mande, mande…
EMÍLIA (consigo) — Não, tu é que hás de ir. (alto) Quem me chamará o coronel? (à parte) Não se move!… (indo por trás da cadeira de Tito) Em que medita? No amor? Sonha com os anjos? (ameigando a voz) A vida do amor é a vida dos anjos… é a vida do céu… (vendo-o com os olhos, fechados) Dorme!… Dorme!…
TITO (despertando, com espanto) — Dorme?… Quem? Eu?… Ah! o cansaço… (levanta-se) Desculpe… é o cansaço… cochilei… também Homero cochilava… Que há?
EMÍLIA (séria) — Não há nada! (vai para o fundo)
TITO (à parte) — Sim? (alto) Mas não me dirá?… (dirige-se para o fundo. Entra o coronel)
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