Tristão e Isolda

Joseph Bédier

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NOTA INTRODUTÓRIA

 

Tristão é o protagonista de uma trágica aventura de amor e de morte que, nas representações dos trovadores franceses do século XII, se situa dentro de um vasto marco de empresas de audácia e de cortesia, de míticas façanhas e de gestas de cavalaria, de aventuras prodigiosas, de encantos, sortilégio de paixões generosas e ferozes. Mas a matéria heróica ou maravilhosa só constitui o marco; é acessória e episódica, e nem sempre é a mesma nos diversos poemas ou romances franceses cujo protagonista é Tristão.. Isso demonstra que a personalidade de Tristão como figura poética não pode definir-se partindo dos diversos mitos que permitiram o aparecimento dos romances que a ele se referem: Tristão entra, e torna-se imortal no mundo da poesia unicamente como herói de um amor fatal, independente de todo o vínculo e de toda a obrigação; um amor que não obedece a leis, que vence tudo e tudo transcende, inclusive o direito mais sagrado, a moralidade, a religião e a própria honra que, na sociedade cavaleiresca na qual o romance de Tristão nasceu, é a realidade mais nobre e mais elevada, e a lei suprema, sagrada e inviolável.

Que fantasia de poeta criou, pois, esta imagem tão grande, que parece renegar ou repudiar os ideais universalmente aceites e sentidos no século encarnando e introduzindo uma noção da vida e da condição humana! só por acidente coincide com a noção cortês do mundo e da vida? A pergunta leva-nos a um terreno inseguro, a graves problemas, pois muitos são os romances e os lais que, no século XII, surgiram em França à volta da figura de Tristão, sendo também obscura a cronologia destes, além de ser impossível determinar exactamente as suas mútuas relações. Não passa de mera hipótese a doutrina segundo a qual teria existido uma fonte mais antiga de onde derivariam todos os textos que conhecemos.

O problema complica-se ainda mais pelo facto de os dois textos franceses mais importantes relativos a Tristão se acharem em estado fragmentário. De outros, já hoje perdidos, chegam-nos testemunhos cujo valor e significado oferecem dúvidas, sem contar que é difícil estabelecer até que ponto as versões alemãs ou norueguesas são reflexo, na parte ou no todo, de textos franceses anteriores. Segundo a crítica de inspiração romântica, todos os textos teriam por origem a lenda de Tristão que remontaria à antiguidade celta, supostamente conservada e transmitida por cantores ou bardos gauleses ou bretões.

Sobre Tristão e Isolda, Régine Pernoud diz, em Luz sobre a Idade Média: «Que literatura oferece um exemplo mais completo, mais patético, de amantes trágicos, do que Tristão e Isolda? Houve alguma vez criação mais forte e mais perfeita do que estes dois amantes, perdidamente dedicados um ao outro, vivendo apenas pelo seu mútuo amor? Nunca mais rica gama de temas inspirou um poeta, nunca o amor humano soube encontrar acentos mais verdadeiros e mais intensos.»

É neste poema medieval que o compositor alemão Richard Wagner vai encontrar inspiração para escrever a ópera com o mesmo nome, que será representada em Munique em 1865.

Wagner compô-la numa época em que estava também apaixonado.

É menos uma ópera propriamente dita que um longo poema de amor, de intensidade muitas vezes sobre-humana. A paixão não é expressa apenas através das vozes dos personagens mas sobretudo pelas vozes da orquestra. E assim todo o drama – a paixão mais forte do que tudo e o amor que faz Isolda morrer com a morte de Tristão – está resumida em duas páginas que em concerto se costumam tocar juntas: o prelúdio e a conclusão. O prelúdio exprime o nascimento e o domínio crescente da paixão em dois corações unidos pela força do destino. A página final canta o êxtase de Isolda indo reunir-se, por um milagre de amor, a Tristão, o qual, após uma longa separação, ela volta a ver, embora apenas para receber o seu derradeiro suspiro.

 

Tristão e Isolda

 

Tradução de Maria do Anjo Braacamp Figueiredo. Editora Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1994 style=”LINE-HEIGHT: 150%; FONT-FAMILY: ‘Arial’; mso-bidi-font-size: 12.0pt”>

I

NASCIMENTO DE TRISTÃO

 

HÁ MUITO, muito tempo, depois da queda do Império Romano, mas antes da coroação de Carlos Magno como imperador do Ocidente, reinava na Cornualha o rei Marcos. Tanto residia em Lantien, um solar situado na paróquia de Saint-Samson, como na fortaleza de Tintagel, cujo porto se abria para a costa ocidental da Cornualha.

Marcos procedia de uma ilustre linhagem; talvez descendesse até de um antepassado mítico identificado com um deus de forma animal, do qual herdara as orelhas de cavalo, que dissimulava cuidadosamente sob o gorro. O próprio nome, Marcos, significava cavalo em língua celta.

O rei chegara idade madura sem ter arranjado mulher, mas uma das suas irmãs tinha um filho, o duque Audret, ao qual concedeu durante muito tempo toda a sua confiança. A irmã mais nova, Brancaflor, ainda não casara.

Marcos era nobre, freqüentemente generoso, leal, corajoso, mas irascível, impressionável e de humor variável, capaz de uma violência extrema e até de crueldade nos seus súbitos arrebatamentos. Desempenhava com honra o seu lugar nos combates, quando tinha de comandar o seu exército, mas distinguia-se sobretudo na caça, a sua ocupação preferida. Entre os nobres cornualhenses seus vassalos, que lhe deviam conselho e ajuda, havia vários que pretendiam quase sempre lhe impor as suas vontades e que, para obrigarem-no a satisfazer os seus desejos, não hesitavam em ameaçá-lo com a rebelião: se Marcos não se submetesse às suas exigências, retirar-se-iam para os seus castelos construídos em rochedos elevados, cercados de altas paliçadas e de fossos profundos, e pegariam em armas contra ele. Marcos não era homem para enfrentá-los abertamente, e por mais de uma vez se inclinara perante as ameaças desses turbulentos senhores feudais, sobre os quais a sua autoridade era precária. Preferia por vezes ceder, para depois retomar a superioridade sobre eles por meio da astúcia e ganhando tempo.

Marcos teve de defender-se várias vezes contra os ataques de outros reis cujas terras confinavam com as suas e que faziam incursões na Cornualha. Mas era tal a sua fama de nobreza e valor que vários príncipes e barões lhe vinham oferecer os seus serviços e combater por ele. Tal foi o caso de Rivalino, filho do rei de Leônis. Tinha um porte tão altivo e distinguia-se por tais feitos que chamou a atenção de Brancaflor, a irmã mais nova de Marcos. Esta era bela e graciosa, de nobre figura, louvada e desejada entre todas, cortês e bem-educada; por certo que não havia em toda a Grã-Bretanha uma rosa com tanta graça e tal frescura. Um dia em que vira Rivalino justar com outros vassalos, caiu em tal aflição e em tais cuidados, nela tão pouco comuns, que nem ela própria compreendia bem os movimentos do seu coração. Nesse dia, reconheceu que Rivalino ultrapassava todos os outros jovens em habilidade e valentia; ao ouvir os homens e as mulheres gabarem a sua audácia e coragem, ao contemplar durante longo tempo a sua destreza a cavalgar e a justar, todo o seu pensamento foi para ele com o seu desejo. Em breve ambos trazem um mesmo cuidado e um mesmo segredo: ela ama-o com todo o coração e ele com leal querer. Os jovens eram excelentes a arranjar encontros sem atrair censuras: nem o rei nem ninguém na corte desconfiava de nada. Todavia, como Rivalino ultrapassava todos os homens em boas qualidades, se este tivesse declarado a Marcos o seu desejo de desposar a irmã, o rei teria de bom grado consentido na união. Mais ainda: sem que Rivalino lhe tivesse dito alguma coisa, o rei parecia por vezes favorecer os seus encontros com Brancaflor.

Algum tempo depois, Rivalino ficou ferido num combate ao serviço de Marcos e os seus homens transportaram-no para Tintagel, a fim de aí ser tratado. Brancaflor, pelo que ouvia dizer, julgava que os dias do seu amado estavam contados, mas não ousava mostrar em público a sua dor, com medo de revelar sua paixão. Desejava, pelo menos, visitar o ferido antes que este morresse. Usou de tanta prudência e astúcia que ninguém a viu entrar no quarto. Avançou para o ferido, sentou-se no leito onde este jazia e logo, de amor e pesar ao mesmo tempo, desfaleceu. Quando se reanimou, tomou-o nos braços e beijou-o; os seus lábios devolveram-lhe a alegria e a força. Rivalino apertou-a longamente contra si e foi então que concebeu a criança cuja história é o assunto deste romance.

Tratado pelos mais hábeis médicos, Rivalino em breve se curou. Mas mal tinha recuperado a saúde, chegam mensageiros do seu país: o seu pai morrera e tinha de regressar imediatamente a Leônis para, por sua vez, aí reinar. Quando Rivalino, pronto a embarcar, veio despedir-se de Brancaflor, esta lhe disse: “Doce amigo, quanto mal me adveio por amor de vós! Se Deus não vem em meu auxílio e não me socorre, nunca mais terei alegria, pois aos sofrimentos antigos se vão juntar novas misérias. Após a vossa partida, poderia tentar retomar confiança e coragem, mas ficai sabendo que trago em mim um filho vosso; ficando aqui, terei de suportar sozinha o castigo da minha falta.” Rivalino fá-la sentar a seu lado, seca-lhe as lágrimas e diz: “Querida, ignorava o que acabais de me contar; agora que o sei, quero que venhais comigo para o meu país e aí vos prestarei as honras que convêm à nobreza do nosso amor.”

Era já noite cerrada quando Rivalino, após se ter despedido do rei Marcos, alcançou a nau onde Brancaflor, aproveitando a obscuridade, se lhe juntou. Os seus companheiros já aí estavam reunidos, prontos para zarpar: levantam o mastro, içam as velas, o vento lhes é propício. Chegam sem novidade ao porto de Kanoël.

De regresso ao seu país, onde sucedia ao seu defunto pai, Rivalino encontrou a terra em grande perigo, pois o duque Morgan aproveitara-se da morte do velho rei e da ausência do filho para uma vez mais invadir Leônis. Rivalino mandou chamar o marechal da sua corte, Rouault le Foitenant, que sabia fiel e dedicado. Confiou-lhe o que acontecera a ele próprio e à sua amada Brancaflor. “Sire – disse o marechal -, vejo que não cessastes de crescer em mérito e em valor. Não podíeis ter encontrado mulher de mais alta linhagem que a irmã do rei Marcos. Escutai, pois, o meu conselho: pelo bem que ela vos fez, recompensai-a. Quando tivermos levado a nossa guerra a bom termo, uma vez libertos dos embaraços que nos causa o duque Morgan, celebrai umas bodas grandes e ricas e tomai-a publicamente por legítima mulher perante os vossos parentes e barões. Mas desposai-a desde já perante a Igreja e à vista dos clérigos e dos leigos, como o exige a lei de Roma. Deste modo aumentareis a vossa honra.” Assim fez Rivalino, e quando Brancaflor se tornou sua mulher, confiou-a à salvaguarda de Foitenant, enquanto ele próprio juntava-se ao seu exército.

Rouault conduziu a jovem esposa para uma fortaleza e lá a recebeu em sua casa com grandes honras, como convinha à sua classe. Rivalino ainda não regressara da guerra quando a sua mulher deu à luz um filho, morrendo ao dar-lhe a vida. Antes de morrer, Brancaflor entregara a Rouault le Foitenant um anel precioso que lhe dera o rei Marcos e que vinha dos seus antepassados comuns: este anel deveria ser entregue à criança, quando esta crescesse, como recordação de sua mãe e da sua estirpe materna.

Quando Rivalino, algumas semanas mais tarde, voltou vitorioso da guerra, experimentou uma cruel dor e deixou-se afundar num profundo desespero. Depois de ter prestado as honras fúnebres à querida morta, enviou mensageiros ao rei Marcos para anunciar-lhe o seu casamento com Brancaflor e, ao mesmo tempo, como esta perecera ao ter o filho. Em seguida mandou batizar a criança sem nenhuma demonstração pública de alegria e deu-lhe o nome celta de “Drustan”: os contadores e a tradição popular transformaram-no em “Tristão”, para melhor significar a tristeza dos pais no momento do seu nascimento, tristeza essa que não era mais do que um presságio dos transes que o destino reservava ao recém-nascido.

II

A INFÂNCIA DE TRISTÃO

 

DURANTE os seus primeiros anos, Tristão foi alimentado por amas na casa de seu pai. Com sete anos feitos, Rivalino achou que chegara a hora de retirá-lo às mulheres e confiou-o a um sábio escudeiro chamado Gorvenal, que se encarregou de sua educação. Tristão aprendeu a correr, a saltar, a nadar, a montar, a atirar ao arco, a combater com a espada, a manejar o escudo e a lança. Em breve se distinguiu na arte da montaria e da falcoaria, perito em reconhecer as qualidades e defeitos de um cavalo, as virtudes de um ferro bem temperado e a arte de talhar a madeira. A isto se juntavam o canto e a música, pois tocava maravilhosamente harpa e rota e compunha lais à maneira dos jograis bretões. Coisa ainda mais rara, imitava, a ponto de enganar, o canto do rouxinol e dos outros pássaros.

Acabava de atingir os quinze anos quando seu pai, o rei Rivalino, foi morto numa cilada pelo seu inimigo mortal, o duque Morgan. O órfão foi recolhido e protegido dos ataques do inimigo de seu pai pelo senescal Rouault le Foitenant, que o recebeu em sua própria casa com Gorvenal e tomou conta dele como dos seus próprios filhos. Em breve Gorvenal achou este refúgio insuficiente para a segurança do adolescente: decidiu ir-se de Leônis com ele e dirigir-se pelo mar para a Cornualha, a fim de colocar Tristão sob a salvaguarda de seu tio, o rei Marcos. O rapaz desejava ardentemente entrar ao serviço de seu tio, do qual ouvira seu pai e os mais valorosos homens do seu séquito falar tão freqüentemente. No entanto, pediu ao seu mestre Gorvenal que não revelasse a Marcos que era filho de Brancaflor. Queria ganhar a estima e a benevolência do rei por si mesmo e pelo seu valor pessoal. Por nada deste mundo teria aceitado dever o favor do rei ao nascimento e ao parentesco. O sábio Gorvenal consentiu nisso de bom grado.

Ao aproximarem-se de Tintagel, encontraram um grupo de caçadores que havia subjugado um veado. Quando o animal flectiu os jarretes, um dos monteiros matou-o com o punhal e cortou-lhe a garganta para trinchá-lo. Tristão, admirado com este espetáculo, exclamou: “Que fazeis? Será próprio retalhar um animal tão nobre como um porco degolado? E esse o costume deste país?” “Estrangeiro – respondeu o monteiro -, que censuras no que faço? Corto primeiro a cabeça deste veado, depois trincho o corpo em quatro pedaços, que levaremos suspensos dos arções das nossas selas para os apresentarmos ao rei Marcos, nosso senhor. Assim, desde os tempos mais antigos, fizeram sempre os homens da Cornualha. Se, no entanto, conheces costumes mais louváveis, ensina-no-los.” Tristão pegou na faca que o monteiro lhe estendia, ajoelhou-se, esquartejou o animal e depois retirou-lhe o focinho, a língua, os órgãos masculinos e a veia do coração. Os caçadores e os seus lacaios, inclinados sobre ele, observavam-no, surpreendidas e encantados. Sabes belos costumes disse o monteiro. – Em que terras os aprendeste? Peço-te, diz-nos o teu país e o teu nome.” “Chamam-me Tristão e aprendi estes costumes no reino de Leônis.” Depois, após uma pausa, acrescentou com manha: “O meu pai é mercador. Fui raptado por piratas da Noruega, com o meu mestre que vedes aí, mas a tempestade desfez nos rochedos a nau que nos transportava e foi assim que arribamos sem o querermos a este país. Se me aceitardes no vosso grupo, seguir-vos-ei de bom grado até à corte do rei Marcos, vosso senhor.” O monteiro continuou: “Admira-me que na terra de Leônis os filhos de mercadores saibam o que aqui ignoram os filhos dos mais nobres vassalos. Vem conosco, já que o desejas, e sê bem-vindo.” Tristão ensinou-lhes então como deviam andar dois a dois para cavalgarem em boa ordem, segundo a nobreza dos pedaços de carne que cada um levava, dispostos em forquilhas de madeira.

Em breve avistaram o castelo de Tintagel, que se elevava orgulhosamente acima do mar, forte e belo, premunido pelas suas altas muralhas contra qualquer assalto. A torre de menagem, outrora construída pelos gigantes, era feita de blocos de pedra grandes e bem talhados em grés e em granito. O cortejo transpôs a porta guardada por doze homens de armas.

Depois de o monteiro-mestre lhe ter contado a aventura, Marcos admirou o belo andamento do cortejo e o veado bem esquartejado. Mas, acima de tudo, admirava o jovem estrangeiro e não cessava de fitá-lo. À noite, após terem levantado as mesas, um jogral galês, mestre na sua arte, avançou pela sala por entre os barões reunidos e cantou lais acompanhando-os à harpa. Quando acabou, Tristão pegou por sua vez na harpa e, para agradecer ao seu hospedeiro, cantou tão bem que os barões maravilharam-se ao ouvi-lo. Terminado o lai, o rei manteve-se durante muito tempo silencioso. “Filho – disse por fim -, bendito sejas, pois Deus ama os bons cantores: as suas vozes penetram no coração dos homens e fazem-nos esquecer o luto e o sofrimento. Vieste para minha alegria e esta casa, fica muito tempo ao pé de mim.” “Sire – disse Tristão, inclinando-se diante dele – servir-vos-ei da melhor vontade como vosso tocador de harpa, vosso monteiro e vosso servo da gleba.” Assim foi feito, e durante três anos Tristão seguiu Marcos em todas as caçadas. De noite, dormia freqüentemente no quarto real, entre os íntimos e os fiéis. Para lhe ensinar os costumes próprios da Cornualha, Marcos confiou-o ao seu senescal, o sábio Dinas de Lidan, o qual se afeiçoou ao rapaz. Quando Tristão atingiu o seu vigésimo ano, Marcos doou-lhe armas magníficas e confiou-lhe um dos mais altos postos do seu exército.

 

III

A LANÇA ENVENENADA DO MORHOLT

 

UM GRANDE perigo ameaçava a terra do rei Marcos. O Morholt da Irlanda chegara a Tintagel numa nau com todos os seus companheiros. Era um guerreiro temível, de uma estatura gigantesca. O rei da Irlanda, que casara com a sua irmã, uma feiticeira experiente, enviava-o para exigir de Marcos um tributo. Este tributo fora imposto à Cornualha cerca de um século antes, no decurso de uma guerra infeliz. Em virtude deste tratado, os irlandeses podiam cobrar à Cornualha no primeiro ano trezentas libras de cobre, no segundo trezentas libras de prata fina, no terceiro trezentas libras de ouro, mas no quarto ano levavam trezentos rapazes e trezentas moças com a idade de quinze anos, tirados à sorte entre as famílias da Cornualha. Ora, há quinze anos o rei Marcos recusava-se a pagar esse tributo; assim, os enviados do Morholt vinham intimá-lo a entregar-lhes os trezentos rapazes e as trezentas donzelas para servirem o bel- prazer dos senhores irlandeses. Se um campeão do rei Marcos se oferecesse para combater o gigante a sós e o dominasse, a Cornualha seria libertada do tributo.

Grande foi a dor do povo da Cornualha. De todo o lado elevavam-se gritos de dor. As mães lamentavam-se em voz alta: “Filhos, preferia que tivésseis morrido ao nascer ou durante a infância a ver os da Irlanda levarem-vos como servos! Mar pérfido e cruel, vento desleal, por que não afogasteis com borrascas e tempestades todos esses irlandeses nas vagas?”

Tristão soube das exigências do Morholt; viu que os senhores baixavam a cabeça, transidos de medo, e que não diziam palavra. Concebeu então o intento de pedir ao rei Marcos para ser o seu campeão contra o cruel gigante. Solicitou os conselhos de Gorvenal: “Filho – disse-lhe o mestre -, falas com senso e coragem, mas o Morholt é tal combatente que não tem igual no mundo inteiro e tu és ainda jovem.” Todavia Gorvenal acabou por ceder ao pedido de Tristão, e ambos concordaram que, antes de tudo, importava obter o consentimento do rei. Marcos resistiu primeiro, depois deixou-se ceder, mas, antes de tomar a decisão e de a declarar perante todos, convocou o conselho dos barões.

Nesse momento, o próprio Morholt irrompeu pela sala onde reunia o conselho: pensava que as crianças já estavam escolhidas e que os cornualhenses, assustados com as ameaças dos seus mensageiros, lhas iam entregar sem discussão. Tristão levantou-se; numa voz calma e com um ar tranqüilo, pediu ao rei Marcos que lhe concedesse como dom insigne o favor de travar a batalha com o irlandês: “Ire, e vós, senhores cornualhenses, o Morholt pretende ter o direito de levar os vossos filhos, mas eu quero provar em combate singular que não tem nenhum tributo a levar de vós.” Marcos, ligado pela promessa, aprovou publicamente o propósito de Tristão.

Furioso, o Morholt ergue-se: tem a fronte alta e ultrapassa todos em estatura. Diz numa voz sonora: “Loucos, ouvi o que dissésteis e que não tendes a intenção de pagar o tributo. Aceito, pois, que um de vós me combata a sós e que, se eu não fizer triunfar com as armas o nosso direito ao tributo, vós dele sejais plenamente dispensados. E já que um de entre vós é tão ousado que me ouse defrontar e aceitar o meu desafio, que esse receba a luva que lhe estendo!”

Tristão não estava longe. Tinha um porte orgulhoso e um belo corpo. Avançou para o Morholt, pegou na luva e disse: “Morholt, esse sou eu!” Os irlandeses, primeiro estupefatos, recompuseram- se imediatamente e proclamaram que só aceitariam esse adversário desconhecido se fosse de tão boa linhagem quanto o seu senhor. Então Tristão exclamou: “Se o vosso senhor é filho de rei, também eu o sou; o rei Rivalino de Leônis era meu pai, o rei Marcos é meu tio, pois nasci de sua irmã Brancaflor e chamo-me Tristão!”

Perante esta revelação imprevista, o rei Marcos mergulhou ao mesmo tempo na alegria de encontrar um sobrinho e na angústia de arriscar logo a sua perda. Queria afastar a dúvida que o constrangia, desejando igualmente que o rapaz tivesse falado verdade! Mas Gorvenal avança por sua vez: “Sire, Tristão disse a verdade, e como prova eis um anel precioso que outrora oferecesteis a vossa irmã Brancaflor e que Tristão recebeu de Rouault le Foitenant, senescal do defunto rei Rivalino. Vossa irmã havia-lho confiado ao morrer, com a missão de entregá-lo um dia a seu filho quando este tivesse deixado a infância.” O rei pegou na jóia e reconheceu o anel, herança dos seus antepassados: era de ouro e engastado de pedras preciosas. Então Marcos fez sinal a Gorvenal para este se aproximar e perguntou-lhe em voz baixa: “Por certo, vejo agora que me dizeis a verdade; mas por que me haveis enganado primeiro afirmando-me que Tristão era filho de um mercador de Leônis?” “É verdade, sire, que há nisso uma notícia falsa, mas nem por sombras uma mentira, pois nem Tristão nem eu jamais tivemos a intenção de vos iludir nesse ponto. Não era mais que uma artimanha inventada por vosso sobrinho, pois ele entendia ganhar somente as vossas boas graças e amizade pelos seus próprios méritos, o seu valor e o seu fiel serviço: eis a razão por que quis, primeiro, deixar-vos ignorar o estreito parentesco que o liga a vós.” Marcos, com um gesto da mão, deu a entender que estava satisfeito com essa resposta e que compreendia a conduta do sobrinho. No entanto esperava poder ainda desviá-lo de um empreendimento que achava não só perigoso, mas também temerário e manchado de desmesura. Todas estas objeções não tiveram nenhum efeito sobre a determinação de Tristão: demonstrou a seu tio a necessidade de vingar a honra da Cornualha e de libertar o reino de um tributo vergonhoso e intolerável. Finalmente, Marcos resignou-se a confirmar o dom que concedera a Tristão, antes mesmo de ter reconhecido nele o sobrinho, de defrontar o Morholt em combate singular. Como sinal perceptível dessa honra e em símbolo de investidura, o rei entregou a Tristão, perante toda a assistência, uma espada de grande preço, forjada não há muito por um célebre ferreiro e que havia pertencido ao próprio pai de Marcos.

Segundo um antigo costume celta, ficou combinado entre o Morholt e Tristão que o combate se efetuaria num certo dia, a uma certa hora e num certo lugar; na ilha Saint-Samson, situada em frente a Tintagel e a pouca distância da costa. Esta ilha era coberta de árvores com espessa folhagem e nenhum ser vivo aí habitava, de modo que não haveria ninguém para assistir ao combate ou para tentar forçar o destino socorrendo um ou outro dos adversários. Assim só mesmo Deus decidiria a sorte das armas e manifestaria de que lado estava o direito. Todos os conselheiros do rei ratificaram este acordo.

Na manhã do dia fixado, Tristão apresenta-se no palácio do rei: Marcos afivela-lhe o elmo, cinge-lhe a espada, recomenda-o a Deus; todo o povo reza pelo bravo. Um pouco antes da hora fixada. Tristão sobe sozinho para uma pequena barca e, à força de remos, empurra-a para a ilha. Por seu lado, o Morholt deixou o navio e toma lugar noutra barca para ir ter com Tristão à ilha, enquanto os outros irlandeses ficam a bordo para aguardar de longe o desenlace do combate. Tristão salta para a margem e, com o pé, empurra a barca para o mar. O gigante, no mesmo instante, amarra a sua a um tronco. “Por que é que não amarraste a tua barca como eu fiz à minha?” – pergunta o gigante. “Para quê? – responde Tristão. – Para levar o vencido morto ou ferido de morte, uma única barca chega ao vencedor.” A multidão dos cornualhenses, concentrada na margem, tem os olhos fixos no local da batalha e procura adivinhar-lhe as peripécias.

O Morholt, admirando o valor e a valentia do adversário, propõe- lhe um acordo: “Renuncia à batalha; dar-te-ei em troca a minha amizade e partilharei contigo os meus tesouros.” Tristão recusa com desdém. Ambos começam o combate a pé, ferozmente erguidos um contra o outro e brandindo as lanças. “Fica sabendo – disse o Morholt a Tristão para assustá-lo – que cada ferimento da minha lança é mortal; a ponta está envenenada por artes de magia e não encontrarás nenhum médico que te cure.” Em resposta, Tristão assenta um rude golpe no lorigão do gigante, mas o seu ferro não consegue trespassar as malhas. O Morholt riposta com um terrível golpe da sua arma: atravessando a couraça do bravo, a ponta envenenada enterra-se na anca e penetra até o osso, mas a haste quebra-se e voa em pedaços sob a força do choque. Tristão puxa logo da espada, o Morholt desembainha a sua e as duas lâminas entrecruzam-se soltando faíscas que a multidão por vezes avista da margem. Subitamente, a espada de Tristão embate com tal violência no capacete do gigante que a lâmina corta o metal e se lhe enterra no crânio. Tristão tenta arrancar-lha, mas quando a sacode com toda à energia, o aço range e quebra-se; a lâmina ficou fendida e um fragmento de aço continua enterrado no crânio do gigante. Ferido de morte, o Morholt foge com um grito terrível e vem abater-se na margem à vista dos seus homens, que ficaram no navio. Tristão persegue-o com a sua chacota: “Conquistaste então o tributo da Cornualha! Leva-o; nunca mais virás reclamá-lo!” Entretanto o Morholt é recolhido pelos companheiros, que o içam, ainda com vida, para a nau e se fazem à vela com ele para a Irlanda.

Tristão, por seu lado, subiu para a barca do Morholt, soltou-a da margem e aproou para a costa. Quando o povo da Cornualha a viu perfilar-se no mar, reconheceu o esquife do gigante irlandês, mas quando a barca emergiu do cimo de uma vaga, mostrou um guerreiro que se erguia na proa, os braços em cruz: era Tristão. Imediatamente vinte barcas lançaram-se ao seu encontro e os rapazes jogaram-se ao mar para escoltá-lo. O bravo, de um salto, lançou-se no areal, e as mães deitavam-se de joelhos para beijar- lhe os pés. Marcos recebeu-o com manifestações de alegria e levou- o imediatamente para o seu palácio, mas mal Tristão entrou, o seu vigor juvenil foi por sua vez vencido pela força do veneno e ele caiu sem sentidos.

IV

A BARCA SEM VELA NEM REMOS

 

OS SERVOS do rei apressaram-se a levantar Tristão e transportaram- no para uma cama, num dos quartos do palácio. Os mais hábeis médicos foram chamados à sua cabeceira, mas foi em vão que examinaram a profunda chaga que trazia do lado: era negra e fétida e não se tornava difícil adivinhar que fora feita por uma arma envenenada. Nenhum físico conseguiu descobrir a natureza do veneno nem levar remédio ao mal que causava. Em breve as dores se tornaram tão vivas que o bravo não podia pregar olho, nem de noite nem de dia, e também perdeu o apetite e a sede e tornou-se magro e fraco. Das suas chagas exalava um cheiro tão odioso que ninguém conseguia permanecer muito tempo perto dele; só o fiel Gorvenal e Dinas de Lidan se conservavam junto do seu leito. O próprio rei Marcos espaçava as visitas ou contentava-se em pedir notícias do ferido.

Tristão, vendo que o odor das suas chagas importunava os íntimos do palácio, não quis ser pesado a ninguém: fez com que o transportassem para uma cabana, que Gorvenal, a seu pedido, mandara construir num lugar isolado, à beira-mar. Aí, deitado sozinho diante das vagas pelas quais deixava errar o olhar, Tristão aguardava a morte. Todavia a intrepidez do seu coração inspirou-lhe o pensamento e o desejo de tentar a aventura no mar: recordou-se dos contos antigos, populares entre os celtas, que mostravam heróis infelizes confiando-se à sorte das correntes e das tempestades e aportando em ilhas longínquas e maravilhosas onde fadas e seres mágicos curavam, com encantos poderosos, doenças e feridas. Conjurou então o rei Marcos para conceder-lhe este dom: partir além-mar para costas desconhecidas – não sabia onde – a fim de experimentar se Deus lhe concederia, no termo de uma longa viagem, a cura que ainda esperava.

O Rei Marcos, primeiro assustado com a audácia deste projeto, pôs dificuldades em consentir no desejo de Tristão. Depois, vendo que as suas recusas contrariavam o sobrinho e pareciam agravar-lhe o mal, cedeu à sua instância, de acordo com Gorvenal. Tristão foi colocado, como era seu desejo, numa simples barca, sem vela, nem remos, nem leme, sozinho, sem nenhum companheiro. Só tinha ao alcance da mão alguns alimentos e a sua boa harpa, que não cessara de tocar desde que fora ferido, pois o canto e o som dos instrumentos haviam-se tornado a sua única consolação. Quando acabaram os preparativos, Gorvenal e o senescal Dinas de Lidan, reprimindo as lágrimas, empurraram para o alto mar o frágil esquife onde acabavam de depor o amigo. A barca desapareceu pouco a pouco no horizonte.

Durante sete dias e sete noites, as vagas arrastaram-no sem tréguas, ao sabor dos ventos e das correntes. Por vezes, Tristão tocava a harpa para acalmar a angústia e aliviar a dor. Uma manhã, de madrugada, apercebeu-se de que o marulho o havia empurrado para uma terra que jamais vira. Alguns pescadores que lançavam as redes, intrigados com o canto melodioso que vinha daquela barca à deriva, quiseram esclarecer o mistério: aproximaram-se e descobriram um ferido deitado no fundo da embarcação e que parecia extremamente fatigado. Perguntou-lhes que país era aquele onde o mar o atirara. “É a Irlanda” – responderam, e, desejosos de socorrê-lo, rebocaram a barca até ao porto vizinho de Weisefort, residência do rei Gormond. Grande foi a emoção de Tristão ao ver que Deus o dirigira para a pátria do Morholt, cuja irmã, poderosa feiticeira, residia no palácio de seu marido, o rei Gormond. Mas já não era possível recuar e, uma vez que quisera tentar a aventura, teria de ir até ao fim. Com risco de ser reconhecido pelos antigos companheiros do Morholt como o vencedor e assassino do gigante, Tristão deixou-se conduzir pelos pescadores até ao palácio do rei. Gormond queria ver e ouvir o tocador de harpa estrangeiro, vindo de além-mar cujos cantos haviam maravilhado os pescadores no porto. Estendido numa padiola, Tristão respondeu às perguntas do rei: “Ire, sou um jogral bretão. Meu nome é Tãotris. Vinha a bordo de um navio norueguês. Uns piratas atacaram a equipagem para se apoderarem da carga. No decurso da abordagem, recebi um grave ferimento e devo a minha salvação a uma barquinha sem vela, nem remos, nem leme, para a qual me consegui içar com a minha querida harpa.” O rei Gormond declarou imediatamente que queria mandar tratar o ferido e que a rainha sua mulher encontraria sem dúvida alguma os remédios para curá-lo.

Nenhum dos assistentes reconheceu no pretenso Tãotris o valoroso combatente da ilha de Saint-Samson e o assassino do Morholt, de tal modo o veneno lhe havia deformado as feições e enfraquecido o corpo. A rainha Isolda, a pedido de seu marido, tratou de curar o ferido. A feiticeira, a própria que havia preparado o veneno para nele mergulhar a ponta da lança do irmão, descobriu sem dificuldade o tratamento eficaz para destruir o efeito da peçonha que havia destilado. Mandou colocar na chaga um emplastro, que ele conservou durante todo o dia e que rapidamente suprimiu o mau cheiro; depois abriu a ferida e tirou toda a carne morta, retirou com cuidado o veneno que ainda aí existia e a carne viva ficou com melhor aspecto. À noite, pôs sobre a chaga ervas salutares, que, em pouco tempo, fizeram desaparecer a inchação e a infecção.

Quando o dito jogral entrou em convalescença, a rainha, como era uso na época, confiou os cuidados do hóspede à filha, Isolda, então com doze anos, e cuja cabeleira loura tinha o brilho do ouro. A bela criança cumpriu de boa vontade todos os deveres da hospitalidade em relação ao hábil menestrel que o rei Gormond recolhera sob o seu teto. Fazia companhia ao hóspede de seu pai durante todo o dia, pensava-lhe a ferida e aplicava-lhe os remédios prescritos pela rainha. Tãotris, em troca, tocava para distraí-la lais bretões de aventura e de amor, fazendo-se acompanhar pela harpa. Melhor ainda, ensinava-lhe a arte de tocar os instrumentos e de cantar com esmero. A real criança parecia encantada e mostrava-se uma aluna dócil e jovial para o cantor errante.

Todavia, como o estrangeiro reencontrara pouco a pouco o vigor do seu corpo e a beleza das feições, veio o dia em que correu o risco de ser reconhecido pelos companheiros do Morholt e de sofrer da sua parte terríveis represálias. Não podia duvidá-lo quando ouvia a loura Isolda contar-lhe sem desconfiança o regresso à Irlanda do cadáver do tio, cosido pelos seus homens numa pele de veado. Do crânio do gigante havia extraído um fragmento deixado pela espada do vencedor, e a rainha guardava-o preciosamente num escrínio como relíquia de seu irmão. Tristão compreendeu então que devia desaparecer o mais depressa possível. Um navio mercante aprontava-se para deixar o porto: subiu a bordo com acordo dos marinheiros e fez-se a vela com eles para longe da Irlanda. Algumas semanas mais tarde aportava na Cornualha. Jovens e velhos vieram recebê-lo e regozijaram-se como se ele regressasse de entre os mortos.

V

A DONZELA DOS CABELOS DE OURO

 

TRISTÃO glorioso vencedor do Morholt, curado, contra toda a esperança, do seu horrível ferimento, ocupava doravante o primeiro lugar na corte de Marcos. O rei resolvera, no seu íntimo, tomá-lo por herdeiro e legar-lhe o trono. Havia tomado o partido de envelhecer sem descendente e renunciara ao casamento.

Vários barões que viviam na comitiva de Marcos não tardaram a adivinhar-lhe o intento, que julgavam, sem motivo, inspirado por Tristão. Os mais encarniçados eram quatro barões que a inveja havia lançado contra o bravo e cujo ódio não recuava ante nenhuma traição. Por isso, os chamavam “os barões traidores”. O pior destes invejosos era Audret, também sobrinho de Marcos, e que durante muito tempo alimentara a esperança de recolher a sucessão do tio; a sua esperança desenganada tinha-se transformado em furor contra aquele que considerava seu feliz rival. Os outros três traidores chamavam-se Guenelon, Gondoïne e Denoalen. Freqüentemente conversavam em segredo sobre o que tomavam por manobras interesseiras de Tristão e diziam entre si: “Este homem nefasto é um feiticeiro e uma alma de Satanás. A sua cura é inexplicável por meios naturais, pois o seu ferimento era daqueles a que um homem não escapa. A sua vitória assombrosa sobre o Morholt, a sua misteriosa navegação numa barca sem vela nem remos, eis o que já pressupõe uma intervenção diabólica. Nós o vimos atingido por um ferimento incurável, quase agonizante, e ei-lo agora fresco e ágil, o corpo intacto e o coração arrogante! É necessário que tenha um trato com os espíritos infernais e possua o segredo das artes maléficas. Certamente que as usará um dia contra aqueles que, como nós, o abandonaram no momento do seu infortúnio: mais tarde ou mais cedo, vingar-se-á, se não tomarmos nós a dianteira.” Assim, os quatro traidores semeavam a dúvida à volta deles; e aqueles que, como eles, se haviam desinteressado de Tristão quando este estava em perigo de morte temiam pela sua vida. “Se Tristão é um dia nosso senhor legítimo acrescentavam os traidores -, terá todos os direitos sobre nós. É, pois, necessário que o rei se case.”

Um dia dirigiram-se todos juntos à corte e expuseram a Marcos que o interesse do reino e dos homens da Cornualha exigia que ele se casasse sem mais tardar em vista a ter um herdeiro. Se, ainda jovem como era, não desposasse uma mulher que lhe pudesse dar um sucessor, exporia a Cornualha a desordens e a guerras. Alguém poderia, sem direito, pretender reinar na sua terra. “Também – acrescentavam – não vos continuaremos a servir de modo algum se não seguis o nosso conselho.” O rei respondeu-lhes: “Senhores, agradeço-vos a amigável intenção, pois quereis aumentar a minha honra e louvor. Para dizer a verdade, nenhumas desordens deveis temer quando da minha morte. Deus deu-nos um bom herdeiro, que Ele o profeta e conserve. Tristão. Enquanto ele viver, ficai sabendo que nenhuma mulher casada trará coroa nesta corte.” Marcos acrescentou que esse assunto só a ele dizia respeito e que o rei era livre, como qualquer dos seus vassalos, de contrair casamento ou, se isso lhe convinha mais, de se abster dele. Então os traidores encontraram no próprio Tristão um aliado inesperado: para melhor provar que nunca incitara o tio, por interesse pessoal, a renunciar ao casamento, juntou as suas instâncias às dos inimigos. Tentou persuadir o rei de que este devia procriar um herdeiro legítimo e evitar todas as disputas à volta da sucessão. Marcos, não ousando fazer frente a todos os vassalos, ligados contra ele, quis dar-se tempo para refletir: “Senhores – disse-lhes -, dai-me tempo para preparar a minha resposta. Vinde ver-me de novo dentro de quarenta dias, e far-vos-ei conhecer a minha decisão.”

Quando chegou o dia fixado, o rei estava tomado de preocupações. Sozinho no salão do castelo, prestes a receber os barões, procurava ainda um meio de iludir a sua exigência. Nesse instante, por uma janela aberta sobre o mar, entraram duas andorinhas soltando gritinhos e disputando um longo cabelo louro de mulher que uma delas trazia no bico; depois, bruscamente, assustadas com um gesto do rei, as duas intrusas afastaram-se rapidamente, não sem terem deixado cair na sala o magnífico cabelo, mais fino e mais brilhante que um fio de ouro. Marcos inclinou-se e apanhou-o com precaução; examinou-o longamente, admirou-o e uma brusca iluminação atravessou-lhe o espírito.

Quando Tristão entrou, seguido pelos outros barões, fitou-os um instante com um sorriso malicioso e disse: “Alegrai-vos, senhores; quero seguir o vosso conselho e resolvi, após bem pensar, arranjar mulher. Ficai sabendo que não quero outra que não seja aquela a quem pertence este cabelo de ouro. Uma andorinha vinda do mar trouxe-mo no bico e é um feliz presságio que não quero de modo algum negligenciar.” Ao dizer estas palavras, estendia-lhes o cabelo entre os dedos e fazia cintilar no belo fio de ouro um raio de sol.

Os barões sentiram-se gozados e como que injuriados pelo rei: sob a aparência de realizar o seu desejo, designava-lhes por zombaria uma mulher impossível de encontrar. “Este estratagema diziam entre si – é uma nova artimanha de Tristão para melhor assegurar a herança do tio.” Quanto a Tristão, esse não cessava de contemplar o cabelo de ouro, e a sua vista acordava-lhe na alma uma agradável recordação. Entre todas as moças louras que vira, vindas dos países do Norte, nenhuma – tinha a certeza – tinha uns cabelos tão semelhantes a um fio de ouro, a não ser uma única: Isolda, a filha do rei da Irlanda, a que o tratara há pouco tempo, no palácio de seu pai, o rei Gormond, e à qual ensinara a tocar os instrumentos. Enquanto os outros barões continuavam a bradar e a trocar em voz baixa palavras hostis a Tristão, este se voltou para o rei Marcos e disse: “Por Deus, sire, para vos dizer a verdade conheço uma única donzela cujos cabelos de ouro assemelham-se a esse: é Isolda, a loura, a filha única do rei da Irlanda. Bem sabeis como a conheci no seu país, assim como a seu pai e a sua mãe. Entre todas as filhas de rei que me foi dado encontrar, ela é, sem contestação, a mais bela e a mais bem instruída. É excelente no canto e no toque dos instrumentos, e aprendeu com a mãe as virtudes secretas das ervas, das flores e das raízes, de modo que não há melhor médico que esta jovem. Digo-o por eu próprio ter feito a experiência.” Marcos respondeu-lhe: “Não ignoras, querido sobrinho, que há séculos a inimizade e o ódio reinam entre a Irlanda e a Cornualha e que eles suscitaram entre os dois povos guerras sangrentas. Se este cabelo de ouro pertence realmente à jovem Isolda, como esperar que o rei Gormond consinta em dar-me a filha em casamento? Se envio mensageiros a pedir a mão de Isolda, receio que seu pai os mate vergonhosamente, sem mesmo se dar ao cuidado de me responder: Tal afronta valer-me-ia zombarias e vergonha.”

O senescal Dinas de Lidan interveio então: “Ire, acontece com bastante freqüência reis travarem entre si longas guerras com grande dano e grande perda de homens; depois, rejeitando cólera e ódio, transformam a inimizade em paz e em amor, casando com príncipes, outrora seus inimigos, as suas filhas ou irmãs. Isolda é a única filha do rei Gormond. Se pudéssemos realizar ditosamente esse casamento e essa aliança, as coisas poderiam tomar uma feição tão favorável que talvez vós viésseis a reinar na Irlanda um dia.”

O rei respondeu: “Se esse projeto pudesse ser executado com honra para mim, não desejaria outra mulher que Isolda, pois Tristão louvou-me grandemente nela a cortesia, o senso e todas as qualidades convenientes a uma mulher. Pensai, pois, no meio de obtê-la para mim.” Dinas continuou: “Ire, ninguém no mundo vo-la pode obter, exceto Tristão, vosso sobrinho: no decurso da sua viagem à aventura, foi pelo rei Gormond recolhido e, se ficou curado do seu terrível ferimento, deve-o certamente à rainha e à sua filha. Se em tal se empenhar, conquistará seguramente a jovem pela astúcia ou pelo valor.”

Os traidores ouvem que o senescal Dinas de Lidan propõe enviar Tristão à Irlanda para pedir em casamento, em nome do rei Marcos, a filha do rei Gormond. Os invejosos ficam perplexos e não sabem que atitude tomar. Gozam secretamente com o fato de que, se Tristão empreender esta nova viagem, mais que aventurosa, junto dos piores inimigos da Cornualha, não voltará nunca mais. No entanto, persegue-os uma inquietação: não irá este diabo de homem, este feiticeiro, uma vez mais ser bem-sucedido contra qualquer esperança humana e voltar triunfante, ornado com um novo prestígio?

Por seu lado, Tristão compreende que, se recusar empreender a busca da jovem, fornece aos traidores um novo pretexto para acuarem-no de cobiçar para si próprio a herança do rei. Então responde com grande senso e de boa vontade: “Ire, não devo recusar esse empreendimento, uma vez que sou o mais bem preparado para ele. Na verdade, conheço a Irlanda e os seus habitantes, conheço o rei, os seus principais barões, a rainha e a jovem Isolda, mas matei o irmão da rainha: se lá vou pedir que a filha vos seja dada e se o rei sabe quem sou, não me deixará regressar vivo. Todavia, porque desejo que possais ter um herdeiro legítimo, quero empreender essa busca e, para aumentar a vossa fama, realizá-la, se Deus o permitir, na medida das minhas possibilidades. E se, por infelicidade, não puder conquistar Isolda, jamais voltarei à vossa corte.” Em seguida acrescentou: “Ire, confiai-me esse cabelo, quero mandá-lo entrelaçar no estofo da minha túnica de orla dourada e tenho a certeza de que o seu brilho se sobreporá ao do metal mais puro. Mandai-me equipar, se tal é a vossa vontade, uma bela nau, a fim de poder embarcar com cem rapazes da vossa terra.” O rei consentiu-lho de bom grado.

Tristão levou Gorvenal consigo para esta travessia. Como companheiros, escolheu na corte do rei cem jovens vassalos de nobre condição, entre os mais ousados e os mais bravos; arranjou as melhores armas e bons cavalos. A nau ficou bem abastecida de víveres, bebidas, dinheiro; carregaram-na com cereais, peles, farinha-flor, mel e vinho. Acabado o carregamento, vogam para levar a mensagem aos inimigos. Mas Tristão ainda hesita se pedirá a moça ou a atrairá a bordo por meio de qualquer astúcia para raptá-la. Se a pede, arrisca-se a uma recusa brutal; e como raptá-la pela força a um pai tão poderoso? Discute-o com os companheiros, mas nenhum deles o sabe aconselhar; todos gemem por terem sido designados para um empreendimento tão perigoso.

Tristão atravessa o mar da Irlanda em grande dúvida e cuidado. Decide que os seus companheiros e ele far-se-ão passar por mercadores, e que, para agir, esperarão por encontrar um estratagema. Noite e dia, navegaram. Tristão soube que Gormond, o rei da Irlanda, encontrava-se em Weisefort. Lançaram âncora diante do porto: era, para a gente da Cornualha, a terra perigosa por excelência. Tristão enviou dois dos seus companheiros, vestidos com cotas de burel e capas de camelão grosseiro, ao palácio do rei Gormond com a missão de obterem um salvo-conduto para venderem as mercadorias. Os dois mensageiros saudaram o rei cortesmente e disseram-lhe: “Ire, somos mercadores e transportamos as nossas mercadorias de terra em terra para ganhar dinheiro. Carregamos o navio na Bretanha e queríamos atingir a Flandres, mas ventos contrários empurraram-nos para aqui. Disseram-nos no porto que as mercadorias se vendiam bem neste país. Se obtivermos de vós a autorização para vendermos o nosso vinho, o nosso queijo e os nossos tecidos, ancoraremos a nossa nau e faremos comércio com os vossos súditos. Se o não consentirdes, sire, levantaremos ferro para outro país.” O rei respondeu: “Dou-vos permissão e liberdade para traficardes nesta terra em paz e à vontade. Ninguém vos incomodará nem vos fará mal. Encontrareis aqui o melhor acolhimento e sereis livres de partir quando vos aprouver.” Os mensageiros agradeceram ao rei, deram-lhe presentes e regressaram à nau. Aí, com os companheiros, passaram o dia a divertir-se, a jogar xadrez e gamão e a tagarelar.

VI

VITÓRIA SOBRE O DRAGÃO DA IRLANDA

 

NO DIA seguinte, ao acordarem, Tristão e os companheiros ouviram gritos horríveis de homens e de mulheres elevarem-se nas ruas de Weisefort: todo o povo corria para o mar como que a fugir de um misterioso perigo. Esse terror era causado por um dragão que infestava o país; todos os dias descia à cidade e aí fazia grandes devastações. A todos os que conseguia alcançar, matava com as chamas que vomitava. Em todo o reino, não havia ninguém suficientemente forte nem suficientemente bravo para lhe ousar fazer frente; mal o ouviam aproximar-se, todos, nobres, burgueses e vilãos, fugiam à porfia para evitar a morte.

O rei Gormond mandara proclamar por toda a sua terra que, se houvesse um homem bastante corajoso para matar o dragão, lhe daria a filha em casamento e metade do reino, desde que fosse de nascimento nobre. Havia confirmado este compromisso com cartas seladas e ordenara que fossem lidas em todos os lugares pelos arautos. Muitos, aliciados com esta promessa, haviam tentado o empreendimento, mas o dragão matara-os e já não restava ninguém que ousasse esperá-lo na estrada que seguia; os mais aguerridos logo deitavam a fugir e escondiam-se.

Tristão, ao ver fugir os irlandeses, interrogou-os e ficou sabendo tudo acerca do dragão e da promessa feita a quem o matasse. Indagou do covil onde o monstro pernoitava, nos rochedos, e da hora em que descia à cidade. Depois, esperou até à noite do primeiro dia sem nada dizer a ninguém do seu desígnio, e ele próprio preparou o corcel e as armas para o combate. No dia seguinte, aos primeiros alvores da manhã, o dragão, segundo o seu costume, arremeteu em direção à cidade. Tristão, mal ouviu o grito estridente do animal, cavalgou ao seu encontro e nenhum dos seus companheiros disso se apercebeu. No caminho encontrou um bando de homens armados que fugiam a toda velocidade dos cavalos, agarrou um deles pelos cabelos ruivos e obrigou-o a parar. Ele contou-lhe que o monstro os seguia e disse-lhe: “Voltai para donde viestes, senão o dragão não tardará a matar-vos.” Tristão não ligou a este conselho de covarde e foi ao encontro do monstro.

O dragão tinha dois cornos na testa, as orelhas largas e peludas, os olhos cintilantes à flor da cabeça como carvões ardentes, o alto focinho erguido como o de uma serpente fantástica, a língua de fora, cuspindo por todas as partes fogo e veneno, o corpo escamoso, garras de leão e a cauda de uma serpente. O monstro viu Tristão: ruge e incha o corpo. O bravo junta as forças e, cobrindo-se com o escudo, pica o corcel com tal vigor que o ginete, todo eriçado de medo, salta contra o animal. A lança de Tristão embate nas escamas e voa em pedaços. Imediatamente, o bravo desembainha a espada, brande-a e vibra um golpe terrível na cabeça do dragão, mas sem mesmo lhe arranhar a pele. O monstro sentiu a pancada: lança as garras contra o escudo, enterra-as nele e faz voar as presilhas. A peito descoberto, Tristão ainda o procura com a espada e atinge-o nos flancos com um golpe tão violento que o ar vibra. Em vão: não o consegue ferir. Então, o dragão vomita pelas narinas um duplo jato de chamas: O lorigão de Tristão fica da cor do carvão, o cavalo cai e morre. Mas logo Tristão se levanta e enterra a ponta da espada na garganta do monstro, e a penetra inteiramente lhe trespassando o coração. O dragão solta uma última vez o seu terrível grito e morre. Quando Tristão o viu morto, cortou-lhe a língua até a raiz, pois queria conservá-la como um troféu da vitória, e dissimulou-a no calção, entre a carne e o tecido. Em seguida, completamente aturdido pelo fumo acre que o sufocava, dirigiu-se para o charco cujas águas calmas brilhavam no vale, perto de um bosque, para aí beber. Quando chegou à beira da água, a língua aqueceu contra o seu corpo O veneno que dela se escapava infectou-lhe o sangue e paralisou-lhe os membros. O corpo tornou-se débil, lívido e tumefacto. Nas altas ervas que bordejavam o pântano, o herói caiu inanimado. Aí ficou estirado, impotente para ajudar-se a si próprio, a não ser que algum viandante o viesse socorrer.

Ora, o rei Gormond tinha um senescal chamado Aguinguerran, o Ruivo, presunçoso e de má índole, dissimulado, manhoso, mentiroso e velhaco. Afirmava amar a jovem Isolda e todos os dias, na esperança de obtê-la para mulher, armava-se contra o dragão. Mal via o monstro, fugia a sete pés, e tão covardemente que, se lhe oferecessem nesse momento todo o ouro da Arábia, nem tentaria voltar-se. Aguinguerran era o fugitivo que Tristão, no caminho da aventura, tinha parado, agarrando-o pelos cabelos. Os outros fugitivos eram os homens do senescal. Ao fim de algum tempo, Aguinguerran ousou arrepiar caminho para ver o que se havia passado. Encontrou o cadáver do dragão e não viu o cavaleiro que o parara e interrogara, mas unicamente o seu escudo abandonado no chão e o corcel morto; pensou que, antes de morrer, o monstro matara e devorara o cavaleiro. Então, cortou com a espada a cabeça do monstro, a fim de apresentá-la ao rei Gormond e de reclamar para si próprio a bela recompensa prometida. Regressou à cidade e nela entrou a galope, segurando na ponta do braço a cabeça sangrenta do dragão e gritando: “Matei-o! Matei-o!”

Quando entrou no salão do palácio, disse ao rei: “Sire, libertei o reino, vinguei os teus homens e o teu dano, paga-me agora, dá- me Isolda, a tua filha; é a recompensa que me pertence, se não te queres desonrar renegando a tua palavra!” O rei, vendo a cabeça do monstro, não se recusou a fazer justiça ao pedido do senescal, mas, surpreendido com o fato de um tal covarde ter realizado uma tão grande proeza, impôs-lhe um prazo: “Quero reunir o conselho dos meus barões antes de te dar a resposta e de manter, se houver razões, o que prometi.” Quando se espalhou a nova de que a princesa lhe seria dada e foram aos aposentos das mulheres contá-la a Isolda, esta se encheu de angústia e de dor, pois sentia somente aversão e desprezo pelo senescal: mesmo que lhe oferecessem como presente de noivado o império do mundo, não o poderia amar. Disse a sua mãe: “Nunca consentirei no que quer meu pai: não casarei com esse homem! Não, Deus não me deseja tanto mal que me obrigue a aceitá-lo! Prefiro matar-me com um punhal a suportar a vergonha de ser entregue à mercê de um velhaco e de um covarde! Donde lhe teriam vindo a coragem, a força e o valor perante o monstro, uma vez que sempre se mostrou medroso e poltrão perante os homens? É uma mentira inventada por ele para eu lhe ser entregue. Mãe, vinde comigo: vamos ver o cadáver do monstro; temos de encontrar, morto ou vivo, aquele que o matou.” “Pois sim, querida filha. E que Deus nos ajude.”

Saíram do castelo por uma porta secreta que dava para o pomar, unicamente acompanhadas pelo lacaio Périnis e por Brangia, a criada. Do pomar, um estreito atalho conduziu-as ao campo, onde finalmente encontraram o dragão morto e o cavalo, estendido na areia, queimado e denegrido. “Deus sabe – disse Isolda – que o senescal jamais montou este cavalo! Não está ferrado nem aparelhado segundo o costume da Irlanda. . . O estrangeiro a quem este cavalo pertence é, sem dúvida alguma, quem matou o dragão; mas quem sabe o que lhe aconteceu?” Isolda, com a mãe, procurou tanto que descobriu o herói desfalecido à beira do pântano, entre as altas ervas. Ainda respirava. “Encontramos!” – exclamou Isolda. Depois de as duas mulheres terem prestado ao desconhecido os primeiros socorros, este voltou a si, abriu os olhos e disse: “Santo Deus! Nunca senti tal torpor! Quem sois? Onde estou?” “Não temas nada – respondeu a rainha. – Este mal, se Deus quiser, não se agravará.” Périnis e Brangia transportaram o ferido tão secretamente para os aposentos das mulheres que ninguém no palácio disso se apercebeu. Aí, Isolda e a mãe tiraram-lhe a arma dura e encontraram no calção a língua do monstro. A rainha preparou remédios para neutralizar a ação do veneno: colocou no corpo do desconhecido um emplastro e deu-lhe para beber uma infusão de ervas mágicas que lhe proporcionou um grande alívio. Não havia outro médico além da rainha, assistida pela jovem Isolda, que o tratava e servia.

VII

A BRECHA DA ESPADA

 

NO QUARTO da rainha, Tristão é bem tratado e cuidado. Recupera pouco a pouco a força e a saúde. A rainha pergunta-lhe: “Amigo, quem és? Donde vieste? Como mataste o dragão?” “Rainha, sou um vassalo da Flandres e percorro as terras estrangeiras à procura de aventuras e façanhas. Quando cheguei a Weisefort, ouvi falar dos danos que o dragão causava a todo o vosso povo e armei-me, firmemente decidido a defrontá-lo e vencê-lo. Só queria experimentar a minha força e a minha resistência contra esse monstro. Ora, aconteceu, pela vontade de Deus, que o matei. Como troféu da vitória, cortei-lhe a língua e a escondi no meu calção, a fim de poder apresentá-la ao rei Gormond. Quando desmaiei nas ervas do pântano, julguei ter chegado a minha hora; estava tão profundamente desfalecido que não vi quem se aproximou de mim.”

A rainha disse-lhe: “Amigo, sou a rainha da Irlanda. Fui ter contigo com a minha filha Isolda. Mandamos trazer-te para aqui em segredo e afastamos o veneno do teu corpo: eis-te curado!” “Senhora, que Deus me permita mostrar-vos o meu reconhecimento pela vossa ajuda; quero doravante servir-vos o melhor que possa.” “Dir-te-emos, então, amigo, que recompensa esperamos de ti: bravo como és, podes ser-nos de grande socorro. O nosso senescal, Aguinguerran, o Ruivo, pretende ser o matador do monstro e quer que a minha filha Isolda lhe seja entregue em recompensa com metade deste reino, como o rei meu marido prometeu. Mas Isolda, minha filha, recusa-se a pertencer ao senescal, pois ele é um louco inchado de desmesura, velhaco e perverso, sem fé, astuto e invejoso, odiado de todos, covarde e cheio de outros vícios vergonhosos. Isolda preferiria matar-se a entregar-se a ele. A cortesia da minha filha e a vilania desse homem são coisas que não se podem harmonizar. É por isso que temos de provar perante o rei que o senescal não matou o dragão. Tu, que mataste o monstro, se queres assumir contra esse homem a defesa da jovem e de todo o reino, adquirirás grande fama nesta terra. Além disso, se o desejares, o rei dar-te-á sem hesitar a filha e a terra que prometeu ao vencedor.” “Deus sabe que – respondeu Tristão -, para vos servir, quero desmascarar o senescal e provar que não matou o dragão, pois apresentarei perante a corte a língua do monstro que cortei logo após o ter morto. Se ele quiser sustentar a sua afirmação por meio de uma batalha, defenderei Isolda contra ele, que não a obterá, pois reclama-a sem razão, com mentiras, fanfarronice e presunção.”

A rainha afastou-se então, mas a jovem Isolda não cessou de servir Tristão o melhor que pôde e de o prover com todas as iguanas que aumentam o vigor do corpo. A sua força voltava sensivelmente e o rosto reencontrava de dia para dia a sua máscula beleza. Um dia em que Tristão estava sentado numa bacia de mármore antigo, onde tomava um banho de água salutar, a jovem Isolda assistia-o, a fim de curar por completo o corpo do valente. Observou longamente o seu rosto e o seu peito e pensou consigo mesma: “Se este homem é tão valente como belo, saberá sustentar um rude combate contra o senescal.” Quando se inclinou por cima da banheira, Tristão viu de perto os seus longos cabelos louros; admirou como tinham a mesma cor de ouro do cabelo levado a Marcos por uma andorinha. O seu olhar foi da cabeleira de Isolda ao cabelo que mandara tecer na túnica, pendurada perto. Na sua alegria, viu-se a sorrir à idéia de que havia sido bem- sucedido nesta busca, julgada por outros ilusória, a da donzela dos cabelos de ouro.

A jovem apercebeu-se deste sorriso, admirou-se e, por timidez juvenil, supôs que Tristão divertia-se com a sua falta de jeito. “Por que terá sorrido este nobre estrangeiro? Terei cometido por falta de educação alguma coisa inconveniente? Negligenciei algum dos serviços que uma jovem de alta posição social deve prestar ao seu hóspede? Talvez devesse ter o cuidado de lavar a lâmina da espada, ainda enegrecida pelo sangue impuro do dragão?” Tira a dura lâmina da bainha para a lavar e enxugar, mas apercebe-se de que esta apresenta unia longa brecha; os contornos da fenda trazem-lhe imediatamente à memória os do fragmento de aço que a mãe outrora extraíra do crânio do Morholt. Hesita um instante, observa uma vez mais a rotura da espada, quer libertar-se da dúvida. Vai direita ao escrínio onde está guardado o fragmento de aço, retira-o e ajusta-o a tremer à brecha do metal: o ajustamento é tão perfeito que mal se nota o vestígio da rotura. Precipita-se então sobre Tristão, trêmula de cólera, e, fazendo girar a grande espada sobre a cabeça do ferido, grita: “Miserável, és Tristão de Leônis, o assassino do Morholt, o meu querido tio, e foi com esta espada que lhe fendeste o crânio! Soubeste esconder-te durante longo tempo, mas de hoje em diante ninguém mais acreditará nas tuas mentiras! Morre, pois, por tua vez com esta mesma espada, a fim de ser vingado o assassínio do meu tio!”

Tristão quis fazer um gesto para parar o seu braço. Em vão: o corpo ainda estava entorpecido e só o espírito continuava ágil. Falou, pois, habilmente: “Espera! Deixa-me dizer-te unicamente algumas palavras! Se estás resolvida a matar-me sem defesa neste banho, seja, morrerei. Mas para te poupar no futuro longos arrependimentos, ouve-me um momento, filha de rei! Fica sabendo que não só tens o direito, mas também o dever de me matar: sim, tens direito sobre a minha vida, uma vez que ma conservaste e devolveste duas vezes. A primeira vez, quando fingi ser uni jogral chamado Tãotris, com a tua mãe, curaste a minha ferida. Não lamentes ter sarado esse ferimento: não o recebera eu de teu tio, o Morholt, em leal combate? Não matei o Morholt à traição: lançara-me o seu desafio, como a todos os homens da Cornualha. Não era meu dever defender o meu povo e o meu corpo?”

“Pela segunda vez, acabas de me salvar levantando-me, inanimado, das canas do pântano, depois do meu combate com o dragão. Já que, por duas vezes, me salvaste da morte, podes reaver essa vida que me conservaste. Mata-me, pois, se julgas com isso ganhar louvor e glória. Não esqueças no entanto que aceitei ser o teu campeão; comprometi-me a travar batalha para defender a tua honra contra Aguinguerra, o Ruivo. Quando estiveres deitada entre os braços do valente senescal, ser-te-á agradável pensar no teu hóspede ferido que arriscou a vida para conquistar-te e que tu mataste no banho, sem que tenha podido fazer um gesto para defender-se!”

Ao ouvir estas palavras, a jovem ficou um instante interdita, depois o braço deixou cair lentamente a espada que havia brandido. “Ouço palavras enganadoras – disse. – Não te surpreendi fitando-me a sorrir? Por certo que podias troçar de mim ao veres a sobrinha bem-amada do Morholt ocupada a cuidar do teu banho como uma criada!” “Não, de modo nenhum era essa a causa do meu sorriso: o que o fazia nascer nos meus lábios era a vista dos teus cabelos louros, como mulher alguma jamais teve. Comparava-os com o cabelo de ouro que uma andorinha levou de além mar a meu tio, o rei Marcos da Cornualha. E ele achou tão belo esse cabelo de ouro que jurou perante os barões que nenhuma mulher, a não ser aquela a quem pertence este cabelo, seria sua esposa. Parti pelo mar aventuroso em busca dessa mulher e eis que te encontrei; por isso sorri. Vê esse cabelo cosido entre os fios de ouro da minha túnica; a cor dos fios de ouro foi-se, o ouro do cabelo não descorou.” Isolda tomou nas mãos a túnica de Tristão, viu o cabelo de ouro e procurou inutilmente dissimular a emoção. Depois, a perturbação deu lugar à indignação: “Então conquistaste- me matando o dragão, mas, em vez de casares comigo, como é teu direito, queres entregar-me ao teu senhor, o rei Marcos! Receberei a sorte de uma cativa que um chefe de guerra obtém quando da partilha do saque? Ah, sem dúvida, como o Morholt queria outrora trazer na sua nau a flor dos rapazes e das donzelas da Cornualha para servirem a bel-prazer senhores irlandeses, assim, por tua vez, em represália, gabaste-te de levar na tua nau como uma escrava aquela que o Morholt mais amava entre as donzelas!”

Isolda, deixando Tristão no banho, saiu e encaminhou-se para outro quarto, onde estavam sua mãe e a criada Brangia, que fora, desde a sua mais tenra infância, a companheira dos seus jogos e a confidente dos seus pensamentos. Vendo a profunda inquietação de Isolda, as duas mulheres perguntaram-lhe a causa. Ela contou-lhes como havia reconhecido no matador do dragão Tristão de Leônis, o assassino do Morholt, graças à brecha da espada: “Tê-lo-ia morto no banho com essa mesma espada se ele não tivesse parado o meu braço com palavras cheias de astúcia e de manha.” Com esta notícia, a própria rainha ficou numa agitação indescritível, censurou Isolda por ter tido piedade do assassino do tio e garantiu que ela própria iria fazer pronta e rápida justiça. Mas Brangia, a sábia, a avisada, juntou-se a Isolda para acalmar a cólera da rainha: “Senhora – dizia -, uma única coisa importa neste momento: que vossa filha não seja de modo algum entregue ao covarde senescal para vergonha e infelicidade de toda a sua vida. Tristão de Leônis, visto que é ele o vencedor do dragão, deu-vos a sua palavra de que libertaria Isolda das pretensões do senescal. Não será essa a única coisa que conta para vós, presentemente? Vamos primeiro ao mais urgente, e, quando Aguinguerran, o Ruivo tiver sido humilhado e rejeitado, procuraremos um meio qualquer para impedir que Isolda seja dada contra a sua vontade ao rei Marcos da Cornualha.” A rainha da Irlanda reconheceu, como a filha, a sabedoria do conselho de Brangia. As três estavam juntas no quarto da rainha, onde Tristão, saído do banho, repousava num leito. Isolda, sem dizer uma palavra, aproximou-se dele e, diante da rainha e de Brangia, em sinal de acordo, beijou-o na boca.

Pouco depois, a rainha e a filha foram ter com o rei e anunciaram-lhe que haviam finalmente descoberto o verdadeiro matador do monstro. Isolda dirigiu-se ao pai nestes termos: “Ire, recolhemos no quarto da rainha um homem pronto a provar que libertou a vossa terra do flagelo e que a vossa filha não deve ser abandonada a um covarde e, além do mais, a um mentiroso. Contudo, sire, concedei-nos um dom.” “De boa vontade – disse o rei -, uma vez que a minha mulher e a minha filha se unem para mo pedir!” “Prometei-me que perdoareis ao matador do monstro os seus erros antigos, por maiores que sejam, e que lhe concedereis a vossa paz.” O rei não se apressou a responder, pois tinha por costume refletir longamente antes de se decidir, mas acabou por dizer: “Já que assim o quereis, outorgo-vos esse dom.” Isolda ajoelhou-se a seus pés e pediu: “Pai, dai-me o beijo da paz e do perdão, em sinal de que o dareis igualmente a esse homem!” E o rei fez o que a filha pedia. Ficou combinado que a corte do rei se reuniria no dia seguinte de manhã para escutar as afirmações contraditórias do senescal e do matador do monstro. Entretanto, desde que Tristão havia furtivamente abandonado o navio para combater o dragão, Gorvenal e os cem companheiros, privados de qualquer notícia do seu senhor, desolavam-se por terem-no perdido e procuravam em vão saber onde estava. Tristão enviou-lhes secretamente Périnis, o lacaio de Isolda: devia avisar Gorvenal e os outros cornualhenses para se dirigirem à assembléia dos barões da Irlanda, todos juntos, no dia seguinte, paramentados e armados como convinha aos mensageiros de um rei rico.

 

VIII

ISOLDA CONQUISTADA PARA O REI MARCOS

 

NO DIA seguinte, quando da assembléia, grande foi a surpresa dos irlandeses com o aspecto daqueles senhores, desconhecidos de todos, magníficos e silenciosos. Um a um entraram, sentaram-se na mesma fila, vestidos de cendal e púrpura. Os irlandeses diziam entre si: “Quem são estes homens que nunca vimos? Donde vêm estes estrangeiros?” Mas os cem homens de armas calavam-se e não se mexiam dos lugares. Isolda e a mãe entraram por sua vez, levando pela mão o seu protegido. Ao verem-no, todos os senhores cornualhenses levantaram-se para saudar e prestar honras ao seu chefe. Logo de início, Isolda fez seu pai renovar o juramento de perdoar ao desconhecido, se este triunfasse sobre o senescal, todos os seus delitos antigos, quaisquer que fossem. Depois, sem outro preâmbulo, revelou que o seu campeão era Tristão de Leânis, o assassino do Morholt. A despeito dos clamores hostis que provocou a nova, o rei considerou-se como que ligado pela sua promessa e concedeu a Tristão, por amor de sua filha, a remissão do assassínio do Morholt; a própria rainha associou-se a este perdão. Isolda exclamou: “Rei, beija este homem na boca, como me prometeste.” O rei beijou-o na boca e os rumores acalmaram-se.

O senescal foi então introduzido; apresentou ao rei a cabeça do dragão e ofereceu-se para provar em batalha o fundamento da sua pretensão à recompensa prometida. Então Tristão ergueu-se contra ele e disse em voz alta: “Olha, traidor, esta língua: quando matei o dragão, cortei-a à cabeça que exibes!” Em seguida, voltou- se para os barões reunidos: “Senhores, se não me acreditais, pegai nessa cabeça e espreitai-lhe a garganta; a língua já aí se não encontra. Depois disto, se este homem não quiser confessar que mente, que pegue nas armas e se prepare para combater contra mim! Fornecer-lhe-ei a prova da sua mentira.” O rei mandou que lhe trouxessem a cabeça do monstro, e todos viram que a língua lhe havia sido arrancada. Ao ver isto, o senescal perturbou-se; perdeu o sangue frio e cobriu-se de embaraço enquanto o apupavam em toda a sala. De cabeça baixa, confessou a sua perfídia; nesse mesmo instante, o rei retirou-lhe o cargo e expulsou-o para sempre da corte.

Quando se fez de novo silêncio, Tristão tomou a palavra diante de todos: “Senhores irlandeses, é verdade que matei o Morholt em combate leal: ele ter-me-ia podido matar, mas a sorte das armas foi-me favorável. Não tenho, pois, razão para me desculpar perante vós. Mas atravessei o mar para vos oferecer uma bela compensação: pus o meu corpo em perigo de morte e libertei-vos do monstro que devastava as vossas terras e cidades. Eis que conquistei Isolda, a bela, e que a vou receber como recompensa das mãos do rei seu pai. Tendo-a conquistado, levá-la-ei na minha nau. Mas ficai sabendo, senhores irlandeses, que não serei eu quem a desposará e que a filha do rei Gormond nunca será a mulher daquele que venceu e matou o seu tio, o Morholt. De modo algum porque faça pouco caso de uma tão grande honra, a de me tornar o genro do rei Gormond! Se não aceito Isolda, a loura, como mulher, o que poderia fazer como vencedor do dragão, é porque reconheci nela a bela dos cabelos de ouro, de quem uma andorinha levou um cabelo até ao castelo do rei Marcos, em Tintagel, e que o meu senhor decidiu desposar. Tomei o caminho do mar unicamente para procurar a bela dos cabelos de ouro e jurei, se a encontrasse, levá-la ao rei Marcos, que não quer outra mulher. Tenho, pois, de cumprir o meu juramento, senhores irlandeses, e não faltarei de modo nenhum. A fim de pelas terras da Irlanda e da Cornualha se espalhar já não o ódio, mas a amizade, Isolda reinará sobre as mais ricas terras de Inglaterra com o rei seu marido; não existe no mundo melhor país nem homem mais cortês. Vedes aqui cem vassalos de alta linhagem prontos a jurar sobre as relíquias dos santos que a mensagem do rei Marcos é de paz e amizade, que o seu desejo é honrar Isolda como sua mulher e que todos os homens da Cornualha servi-la-ão como a sua senhora e rainha.”

Trouxeram com grande alegria as relíquias dos santos em relicários de ourivesaria. Os cem homens da Cornualha juraram, a mão erguida sobre os santos corpos, que o rei Marcos desposaria Isolda, a loura, em legitimo casamento e que eles ficavam todos por fiadores em seu nome. O rei Gormond pegou na filha pela mão e perguntou a Tristão se este a conduziria lealmente até ao rei Marcos. Perante os seus cem guerreiros e perante os barões da Irlanda, Tristão jurou-o.

Ora, tal é o humor inconstante das mulheres: a jovem Isolda, cujos olhos irradiavam a mais viva alegria quando o senescal deixava a sala sob as injúrias dos assistentes, mostrava agora um rosto entristecido e de traços endurecidos pela cólera. O seu coração fremia de vergonha e de angústia, pois que Tristão mal a havia libertado do senescal covarde logo menosprezava casar-se com ela para levá-la na sua nau, a fim de entregá-la a um velho rei do qual nada sabia. Por certo que o belo conto do cabelo de ouro não passava de uma mentira inventada a contento para justificar o seu desprezo. Mas o rei Gormond, sem se deixar afastar do seu desígnio pelo furor da filha, pousou solenemente a mão direita da moça na mão direita de Tristão, e este a segurou em sinal de que se assenhoreava dela em nome do rei Marcos: “Velarei sem cessar por ela, até ao dia em que a tiver entregue, como fiel depositário, ao seu real marido.” Desde então, Isolda passou a ser considerada por todos como a mulher do rei Marcos e começou a usar o véu, que era o sinal das mulheres casadas.

Durante a semana seguinte, a rainha da Irlanda, ajudada pela fiel Brangia, preparou o enxoval da filha em vista à grande viagem nupcial que a deveria separar dela para sempre. Decidiu que a jovem Isolda seria acompanhada por Brangia e por Périnis, o lacaio afeiçoado à sua pessoa. Isolda não participava nos preparativos da viagem e da longa travessia: triste e silenciosa, recusava qualquer conversa com Tristão, por quem se julgava ofendida e desprezada. Vendo o humor sombrio da filha, a rainha temia que ela fosse infeliz no castelo de Tintagel com um marido que só aceitara constrangida e forçada pela vontade do pai. Veio- lhe então à idéia recorrer à magia para assegurar a união dos dois futuros esposos. Preparou uma poção poderosa com ervas e flores que ela própria colheu na floresta e nas montanhas, a certas horas propícias do dia e da noite; misturando-as com vinho, obteve unia tintura ervosa, que era um filtro de amor capaz de fazer nascer a paixão no homem e na mulher que o bebessem. Mas empregou tais ritos e tais fórmulas secretas que conferiu a esse vinho ervoso um poder inaudito: aquele e aquela que partilhassem essa poção deveriam amar-se com todas as suas forças durante um período de três anos, a tal ponto que não poderiam suportar estar afastados um do outro mais de um dia sem sofrer gravemente e mais de uma semana sem se arriscarem a morrer. Depois, entregou a Brangia o frasco, cuidadosamente selado com cera, que continha o filtro do amor: “Quero que acompanhes a minha filha Isolda à Cornualha, tu, a quem eduquei com ela e que a serviste fielmente durante toda a sua infância: ficarás junto dela no castelo do rei Marcos, em Tintagel, e continuarás a servi-la enquanto viver. E como prova da minha estima por ti, Brangia, vou confiar-te um segredo e unia missão: toma este frasco de vinho ervoso e conserva-o escondido num cofre sem conhecimento de Isolda… É uma poção de amor que eu própria compus para a felicidade de minha filha e do seu futuro marido: pega nele e não fales disso a ninguém. Na noite de núpcias, quando os dois esposos tiverem entrado no leito nupcial, iras ao quarto e apresentarás a cada um uma taça deste vinho ervoso para que o bebam ao mesmo tempo e de uni só trago. E vela bem para que ninguém beba deste filtro, pois grandes males daí poderiam advir!” Brangia respondeu: “Senhora, será feito como ordenais.”

Tristão pedira ao rei Gormond uma nau irlandesa para escoltar a sua até Tintagel: foi nessa nau que Isolda tomou lugar com as suas servas, e uma vasta tenda foi erguida para elas na ponte do navio. Entre os homens, só Tristão aí tinha acesso. Quando a nau ficou pronta, todos se dirigiram para o porto, o rei e a rainha acompanharam a filha até lá e, quando o vento se levantou os dois navios singraram juntos para o alto mar. Na margem, muitos homens e mulheres, nascidos no mesmo país de Isolda, choravam ao vê-la afastar-se, pois amavam-na pela sua graça e beleza.

IX

CUMPRE-SE O SORTILEGIO

 

JÁ AS NAUS, fendendo as vagas espumosas, singravam o alto mar. Isolda, sentada longe no pavilhão das mulheres, via a costa da Irlanda apagar-se na bruma. Suspiros enchiam o seu peito e as lágrimas deslizavam-lhe pelo rosto. Lamentava-se por deixar o país natal, os parentes e amigos, para vogar com homens desconhecidos, sem saber qual o destino. Tristão consolava-a, tão docemente quanto podia, cada vez que a encontrava a moer a sua dor. Fazia-o com o respeito que o vassalo deve à sua senhora, pois, por mais impressionado que estivesse com a sua beleza, não tinha outro querer, o fiel, que de lhe ser um reconforto na dor. Isolda respondia-lhe com despeito: “Deixai-me! Afastai-vos! Que importuno sois!” “Por que vos sou importuno?” “Porque vos odeio.” “Bela, por qual delito?” “Porque, sem vós, estaria ainda livre de cuidados e dores. Fostes vós que, com astúcia e engano, me pusestes nesta aflição. Que funesto destino vos enviou, para minha infelicidade, da Cornualha à Irlanda? Para onde me levais? Não sei.”

“Sossegai, bela Isolda, pois vivereis em grande alegria, rainha poderosa numa terra rica! Em breve vos darei por senhor um rei em quem encontrareis cada dia alegria e saber viver, bem, virtude, honra.” “Não sei, em verdade, por que me fazeis todos esses elogios ao rei Marcos, vosso tio. Pouco me importa que sejam verídicos ou inventados a contento. Uma única coisa conta a meus olhos: o desprezo que mostrais por mim.” “Qual desprezo?” – interrogou Tristão. “Por que me perguntais o que sabeis perfeitamente? O meu pai estava pronto a dar-me a vós em recompensa, desprezaste-me e, tornando como pretexto a fábula do cabelo de ouro, pedistes a minha mão não para vós, mas para o vosso tio.” Tristão não soube o que responder, pois parecia-lhe supérfluo e irritante repetir novamente com minúcia a história das andorinhas, do cabelo de ouro e do juramento solene feito a Marcos.

Entretanto as duas naus corriam pelo mar; até então o vento fora favorável e a travessia boa. Todavia Isolda e as mulheres do seu séquito não estavam habituadas às fadigas dos ventos e das vagas e em breve sentiram um mal-estar nunca experimentado. Na véspera de São João, os ventos caíram; num céu sem nuvens, o sol, com todo o seu brilho, fazia cintilar as vagas. Um pesado calor oprimia os homens: Tristão mandou aportar numa ilha e, cansados do mar, os homens e as mulheres desceram a terra para se recrearem nas sombras. Isolda preferiu ficar no pavilhão, unicamente em companhia de Brangia: mais ninguém ficou no navio irlandês. Foi então que a ardilosa criada, vendo a rainha fechar- se selvaticamente na sua tristeza e despeito, esforçou-se em acalmá-la com palavras astuciosas: “Por que consumir as horas e os dias num sombrio desgosto? Por que temer e maldizer antecipadamente a vossa união com o rei Marcos? Nada podeis fazer, uma vez que vosso pai soberanamente o decidiu: convém-vos agora tirar o melhor partido dessa necessidade e conformai-vos.” Isolda pareceu irritada com estas palavras e replicou, não sem vivacidade: “De que serve pregares-me tolamente resignação quando não tens nenhum meio para acalmar a minha inquietação? Cessa de me afligires com vãs palavras!” “Seja – continuou Brangia – renuncio a aconselhar-vos, mas deixai-me desvendar-vos um segredo que deverá trazer a calma à vossa alma. A rainha vossa mãe fez-me prometer que não o revelaria a ninguém, nem mesmo a vós, mas o estado de desolação em que vos vejo força-me a dele vos dar parte. Não acho outro meio de suavizar o vosso sofrimento. A rainha, antes da nossa partida, confiou aos meus cuidados uma bebida ervosa que preparou com toda a sua ciência da magia: é um filtro de amor que servirei ao rei Marcos e a vós após terdes entrado no leito nupcial. Bebê-lo-eis os dois ao mesmo tempo e, mal o tiverdes feito, amar-vos-eis com todas as forças e com toda a alma, num amor imperioso e sem falha. Durante três anos, nem sequer vos podereis separar mais de um dia sem sofrer, nem mais de uma semana sem risco de morrerdes. Tal é a força inaudita desse sortilégio que o desgosto de amor será por ele banido do vosso coração e vivereis doravante, no reino da Cornualha, feliz e cumulada de todos os bens. Renunciai pois a torturar-vos, já que a vossa felicidade está assegurada antecipadamente pela força do vinho ervoso.” Esta brusca revelação mergulhou Isolda em tal estupor que ficou muito tempo sem falar, absorta nos seus pensamentos, mas redargüiu finalmente, com a mesma vivacidade de tom: “Iludes-te muito se pensas que vou beber esse vinho ervoso cuja existência acabas de me dar a conhecer e partilhá-lo com o rei Marcos na noite de núpcias. Podes apresentar-no-lo, como a minha mãe te ordenou; pela minha parte, não lhe prometi nada nem ela me pediu alguma coisa. Não sou, portanto, obrigada a beber esse licor mágico e não o beberei. Se o partilhasse com o rei Marcos, far-me-ia cúmplice das manobras tortuosas de Tristão. Não, não farei o seu jogo, não me curvarei às suas vontades! O Rei Marcos beberá esse vinho ervoso sem desconfiança alguma quando lho ofereceres, mas eu previno-te: embora aproxime a taça da boca, não beberei nem uma gota. O sortilégio não terá efeito algum sobre mim.” Brangia replicou: “Dizei-me, Isolda: se Tristão vos tivesse pedido para si a vosso pai e se vos tivesse obtido, teríeis aceitado beber o filtro do amor que vossa mãe me teria sem dúvida igualmente confiado para a noite de núpcias? É uma coisa que desejo saber: não mo escondais!” Isolda vacilou um longo momento, depois disse: “Não te posso responder nem sim nem não. Cansas-me com as tuas perguntas. Deixa-me em paz!” A criada afastou-se então, mas ficou a saber que a aparente aversão de Isolda por Tristão procedia, sem que ela disso tivesse consciência, de um desejo amoroso inconfessado e desenganado.

Pouco depois, vendo que Isolda ficara no navio e se recusava a tomar parte nos divertimentos na ilha, Tristão dirigiu-se ao pavilhão para saudá-la e visitá-la. Quando, sentados lado a lado, trocavam algumas palavras, ambos sentiram sede e disseram-no um ao outro. Isolda chamou Brangia e ordenou-lhe que trouxesse vinho. Esta apressou-se a alcançar o ângulo do pavilhão onde os marinheiros irlandeses haviam colocado as arcas de Isolda e do seu séquito. De uma delas retirou o precioso frasco, reconhecível entre todos, onde a rainha da Irlanda deitara o vinho ervoso. Nesse instante, o rosto da jovem iluminou-se num sorriso furtivo: tinha entre as mãos o meio mais seguro de fazer nascer o amor em Tristão e de ligá-lo para sempre a Isolda. Brangia colocou o frasco com uma taça de prata cinzelada numa mesa à qual Isolda se encostara e disse-lhe com um ar risonho: “Rainha Isolda, tomai esta bebida que foi preparada na Irlanda para o rei Marcos.” Isolda não respondeu nem interferiu com a criada. Quanto a Tristão, esse julgou tratar-se de um vinho de eleição oferecido ao rei Marcos. Como homem cortês e bem-educado, deitou a poção na taça e estendeu-a a Isolda, que bebeu até se fartar. Quando ela pousou a taça ainda meio cheia, Tristão pegou nela e esvaziou-a até a última gota.

Mal os dois jovens beberam desse vinho, o amor, tormento do mundo, penetrou nos seus corações. Antes de se terem apercebido disso, curvou-os a ambos ao seu jugo. O rancor de Isolda dissipou- se e nunca mais foram inimigos. Já se sentiam ligados uni ao outro pela força do desejo e, no entanto, ainda o escondiam um do outro. Por mais violenta que fosse a atração que os empurrava para o mesmo querer, ambos tremiam igualmente no temor da primeira confissão.

Quando Tristão sentiu o amor apossar-se do seu coração, recordou- se imediatamente do juramento feito ao rei Marcos, seu tio e seu suserano, e quis recuar: “Não – dizia consigo mesmo sem cessar -, deixa isso, Tristão, volta a ti, não acolhas em ti um desígnio tão desleal.” Também ponderava: “Audret, Denoalen, Guenelon e Gondoïne, traidores que me acusáveis de cobiçar a terra do rei Marcos, ah!, ainda sou mais vil e não é a sua terra que cobiço. Bom tio, que me recolhestes órfão antes mesmo de reconhecer o sangue de vossa irmã, vós que me choráveis enquanto Gorvenal me levava para o barco sem remos nem vela, por que não expulsastes, logo no primeiro dia, a criança errante vinda para vos trair?” Mas o coração trazia-o sem descanso ao mesmo pensamento de amor. Por vezes, juntava a coragem como faz um prisioneiro procurando evadir-se, e repetia consigo mesmo: “Muda o teu desejo, ama e pensa noutra!” Mas o laço cada vez se apertava mais. Quanto a Isolda, todo o seu pensamento não era mais que o amor de Tristão. Até ao anoitecer, durante longas horas, procuraram-se às apalpadelas como cegos, infelizes quando se mantinham silenciosos e enlanguesciam separados, mais infelizes ainda quando, reunidos, recuavam ante a embriaguez do primeiro beijo.

Isolda falou em primeiro lugar e de maneira bem feminina – foi por meio de longos desvios que se aproximou pouco a pouco do seu amado: “Ah!, quando se apresentou a ocasião tão propícia de vos ferir no banho, quando deixei cair a espada já brandida, meu Deus!, que fiz eu? Se tivesse sabido então o que sei hoje, palavra de honra que vos teria morto!” “Por que, bela Isolda” Que vos atormenta?” “Tudo o que sei me atormenta; tudo o que vejo me faz mal; o céu e o mar atormentam-me e o meu corpo e a minha vida.” Inclinou-se e apoiou o braço nele – foi esta a sua primeira ousadia. Os seus olhos claros como espelhos embaciaram- se com lágrimas furtivas, o seu peito encheu-se, os seus doces lábios fremiram, inclinou a cabeça. Ele disse-lhe em voz baixa: “Isolda, só vós e o amor me perturbaram e me fizeram perder o senso. Deixei a estrada e eis-me de tal modo perdido que jamais a voltarei a encontrar. Tudo o que os meus olhos vêem parece-me sem preço. Em todo o mundo, nada é querido ao meu coração excetuando vós.” Isolda respondeu: “Senhor, tal sois vós para mim.” Nos seus belos corpos vibravam a juventude e a vida. Quando fogos de alegria se acendiam na ilha e os marinheiros dançavam cantando à volta das chamas avermelhadas, os dois enfeitiçados, renunciando a lutar contra o desejo, abandonaram-se ao amor.

Brangia, após ter servido o vinho a Isolda, tinha-se juntado às outras aias da rainha na ilha, mas o seu pensamento estava longe. Quando voltou para a nau irlandesa, viu num banco, à claridade das estrelas, o frasco de vinho que Isolda aí deixara. Pegando então no frasco, vazio até mais de metade, correu a escondê-lo de novo na arca de onde o tirara. Foi então que distinguiu, na penumbra, Isolda estendida num leito nos braços de Tristão. Fingiu então a mais profunda surpresa e soltou um grande grito, como se não tivesse previsto nem desejado o que estava a acontecer. Para melhor iludir Tristão, lamentou-se em voz tão alta e dolente que o mais insensível teria ficado impressionado: “Infelizes, parai e voltai atrás, se ainda o podeis! Mas não, vejo-o bem, por meu fatal equívoco, a força do amor arrasta-vos! É o vinho ervoso que vos possui, a poção que a rainha da Irlanda me confiara quando da nossa partida. Só o rei Marcos e Isolda deveriam bebê-lo na noite de núpcias. O Diabo serviu-se de mim e foi a vós que deitei esse filtro mágico quando me pedistes com que matar a sede. Por minha culpa, bebestes, um e outro, do cálice de prata, a embriaguez e os tormentos do amor.” Mas os amantes, completamente absorvidos pelas carícias mútuas, não lhe respondiam.

Entrementes, Gorvenal, que tomara parte nos regozijos dos marinheiros, voltara para o navio irlandês, onde sabia que Tristão fazia companhia a Isolda. Estava diante do pavilhão das mulheres no momento em que Brangia confessava aos amantes o seu pretenso equívoco. Assim, o fiel escudeiro de Tristão foi o único, juntamente com Brangia, a conhecer desde essa noite o segredo da bebida ervosa e o amor que esta fizera nascer entre Tristão e a filha do rei da Irlanda. Ninguém entre os marinheiros dos dois navios soube disso e nenhuma das mulheres irlandesas que acompanhavam Isolda teve a menor suspeita.

X

A NOITE DE NÚPCIAS DO REI MARCOS

 

No DIA seguinte ao São João, os dois navios fizeram-se à vela e vogaram novamente para a Cornualha. Os amantes não tinham nenhuma dificuldade em se encontrarem de dia ou de noite, mas à sua alegria misturava-se a inquietação, pois temiam que o seu segredo fosse surpreendido. Se o rei Marcos viesse a descobrir a sua falta, não deixaria de infligir-lhes um castigo inexorável. “Quando o rei se aperceber de que já não sou virgem – dizia Isolda -, sofrerei a pena que as leis dos nossos povos reservam à mulher adúltera e que é a mesma de um traidor: serei queimada viva e as minhas cinzas dispersas aos quatro ventos.” Tristão respondia-lhe: “E quando o rei Marcos se aperceber disso, considerar-me-á seguramente o único culpado possível, uma vez que, ao receber-vos das mãos de vosso pai, tomei o compromisso de velar durante toda a viagem pela segurança da vossa pessoa e a integridade do vosso corpo! Posso, pois, bela amiga, temer tanto quanto vós a cólera de meu tio e, se tiverdes de perecer de funesta morte, pereceremos juntos.”

No momento em que o seu coração era agitado por todos estes temores e por mil pensamentos contraditórios, Isolda lembrou-se de um ardil para esconder a sua falta. Teve a idéia de pedir a Brangia, que ainda era virgem, para tomar em segredo e em silêncio o seu lugar no leito do rei na noite de núpcias. Os amantes suplicaram-no a Brangia com tanta insistência que esta acabou por vencer a repugnância: resignou-se a executar o seu desejo. Isolda prometeu-lhe em troca belas recompensas e que viveria para sempre ao pé dela em grande honra. Brangia acrescentou: “É justo que vos obedeça e me submeta à vossa vontade, pois sou eu a causa da vossa falta e responsável pela morte que vos ameaça se a vossa ligação for descoberta. Disponde, pois, de mim como quiserdes.”

De repente, soaram os gritos dos marinheiros: “Terra! Terra!” No horizonte, era visível a costa da Cornualha, e todos estavam felizes por chegar ao termo da viagem, salvo Isolda, que cada vez receava mais encontrar-se frente ao rei Marcos, e Tristão, pois, se fosse senhor do seu destino, vogaria sem fim pelas vagas com aquela que era doravante o seu encanto e alegria.

Quando os dois navios entraram no porto de Tintagel, Tristão enviou logo um mensageiro ao castelo do rei Marcos para anunciar- lhe que o sobrinho obtivera para ele a mão de Isolda, a loura, a bela dos cabelos de ouro, e que lha trazia. O rei alegrou-se muito com esta nova e veio, à frente de um brilhante cortejo, acolher a esposa ao porto. Tristão pegou-lhe na mão e levou-a diante do rei, que, a recebeu por sua vez, dizendo: “Bela, aceito- vos neste momento por minha mulher e companheira, como Tristão, meu sobrinho e mensageiro, vos recebeu em meu nome das mãos de vosso pai.” Quando foi introduzida no salão do palácio, no meio de todos os vassalos, Marcos tomou a palavra: louvou as andorinhas que, num maravilhoso presságio, lhe haviam trazido o cabelo de ouro, louvou Tristão e os cem vassalos que, pelo mar aventuroso, tinham partido em busca da alegria dos seus olhos e do seu coração.

Alguns dias depois, em presença do clero e de todos os barões, celebrou os esponsais com a jovem Isolda. Quando chegou a noite, a noiva deixou a sala do festim em companhia de Brangia, a sua criada, e dirigiram-se, seguidas por Tristão, ao quarto do rei. Aí, Brangia, para cumprir a promessa, entrou, despida, no leito, no lugar de Isolda, e aguardou pacientemente a vinda do rei, enquanto Isolda se retirava. Então, Tristão voltou para a sala do festim, onde encontrou Marcos muito alegre e algo perturbado pelos vapores do vinho. Tendo-o conduzido até à entrada do quarto real, disse ao rei que era costume ria Irlanda apagar todas as luzes no momento em que o marido se juntava à mulher no leito nupcial. “Esse costume é bom e belo – respondeu Marcos -, faça-se assim!”

Tristão apressou-se a apagar todos os candelabros e acompanhou o rei até ao leito onde Brangia já repousava. Era da mesma idade e do mesmo tamanho de Isolda. O rei estendeu-se ao lado de Brangia, tomou-a nos braços, apertou-a, nua, contra o peito e amou-a.

Entretanto, Isolda esperava na sombra, à escuta, ansiosa e temerosa de que o ardil fosse descoberto. Ao fim de uma hora, ou pouco mais, o rei, aturdido pela bebida, adormeceu profundamente. Então, Brangia deslizou sorrateiramente para fora da cama e Isolda tomou o seu lugar com precaução, para não incomodar o sono do rei. Quando ele acordou, pelo meio da noite, perguntou se não serviam aos novos esposos uma taça de vinho para reconfortá-los, como era costume nesse tempo. Brangia, que previra este pedido, apressou-se a trazer uma taça onde havia deitado o que restava do vinho ervoso no frasco que a rainha da Irlanda lhe confiara. Marcos, sentado no leito, recebeu a taça das mãos de Brangia, bebeu metade e depois passou-a a Isolda para que esta, por sua vez, o bebesse; mas ela, sem ser vista pelo marido, deitou fora a bebida que restava na taça. Desta vez, nem uma gota aflorou os seus lábios.

Quando Brangia se retirou, apagando as luzes de novo, imediatamente o filtro operou no rei. Um novo ardor aqueceu-lhe o coração, um arrepio percorreu-lhe os membros. Estendeu os braços para a Isolda e enlaçou-a. O rei não se apercebeu de que, perto do alvorecer, abraçava outra companheira que não era a que tivera nos braços nas primeiras horas da noite. Isolda, por seu lado, mostrou-se dócil ao prazer do rei Como tinha jeito para fingir, respondeu às suas carícias; ele próprio prodigalizou-lhe tanta ternura que a rainha sentiu-se satisfeita. Distraíram-se com vários ditos agradáveis e divertidos; a noite acabou em alegria.

Em seguida, Isolda mostrou-se animada e feliz; o rei amava-a; ricos e pobres louvavam-na e honravam-na. Tantas vezes quanto podia, via em segredo Tristão, mas como estava constantemente colocada sob a sua guarda, ninguém, nos primeiros tempos do seu casamento, concebeu a mais ligeira dúvida.

 

XI

BRANGIA ENTREGUE AOS SERVOS

 

ISOLDA é rainha e parece viver em alegria tem a ternura do rei Marcos, os barões honram-na e o povo acarinha-a. Passa o dia no quarto das mulheres, ricamente pintado e juncado de tiores; tem jóias preciosas, tecidos de púrpura e tapetes vindos da Tessália. E, acima de tudo, Isolda tem os seus ardentes e belos amores e Tristão ao pé de si quando quer, de dia e de noite, pois, como exigia o costume dos senhores daquele tempo, ele dorme no quarto do rei, entre os íntimos e os fiéis. Vários meses decorreram sem que ninguém desconfiasse dos amores da rainha: só Brangia e Gorvenal conheciam o segredo. Tristão sabia que podia contar com a discrição sem falha do seu fiel escudeiro. Isolda estava menos segura do silencio de Brangia: acontecia-lhe temer que no decorrer de uma zanga a criada deixasse escapar palavras imprudentes e despertasse suspeitas ao rei Marcos ou ao seu séquito. Brangia sabia o seu segredo, Brangia tinha-a à sua mercê. Assim, o medo enlouquece a rainha, e eis que uma idéia monstruosa germina no seu espírito, aí se instala e não mais a deixa: “Que Brangia desapareça e nada mais terei a temer!”

Um dia em que o rei Marcos e Tristão caçavam longe, Isolda mandou chamar dois servos florestais do rei. Prometeu, se a servissem docilmente, libertá-los e dar-lhes tal peso de ouro que poderiam viver daí em diante sem preocupações. Tentados, declararam-se prontos a fazer o que a rainha ordenasse. “Eis o que espero de vós disse-lhes ela – Tenho aqui uma criada que cometeu uma falta e merece castigo. Levai-a para a floresta e trespassai-a com os vossos punhais, depois disso, cortai-lhe a língua e trazei- ma em sinal certo da sua morte. Podeis estar seguros da minha generosidade; recebereis, além da liberdade, pelo menos sessenta soldos de ouro.” Tal é o medo de Isolda de perder o seu amor que se torna cruel e sem piedade. Em seguida, finge estar doente e ordena a Brangia que vá procurar, para aliviar-lhe o mal, ervas salutares à floresta; dá-lhe os dois servos para a guiarem e protegerem de qualquer perigo.

Brangia foi, portanto, com os servos, e caminharam tanto que chegaram às profundezas do bosque. Um deles avançava à sua frente, o outro a seguia. Subitamente, aquele que ia à frente brandiu o punhal para atingi-la. Brangia, não podendo avançar nem recuar, começou a tremer. Gritou tão alto quanto pôde, juntou as mãos e conjurou o servo a dizer-lhe por que crime, por qual delito ia ser morta. O servo respondeu: “Em verdade ignoro-o, e a ti compete dizer-mo. Mal mo digas, mato-te. Que fizeste, pois, à rainha Isolda para que ela te tenha destinado tal morte?” Brangia respondeu: “Em nome de Deus, deixai-me confiar-vos uma coisa antes da minha morte, pois quero mandar uma mensagem à rainha Isolda. Depois de me massacrarem, suplico-vos, declarai-lhe que nunca cometi nenhuma má ação em relação a ela, exceto uma única: quando partimos da Irlanda, a rainha sua mãe deu-nos a cada uma, para a nossa noite de núpcias, uma camisa, branca como a neve. Isolda usou a sua desde o dia da partida. Eu, que não passava de uma pobre rapariga, comprada ainda criança a piratas noruegueses, conservei a minha o melhor que pude. Isolda, por causa do grande calor, só trazia sobre a camisa uma túnica, de sorte que a rasgou inadvertidamente. No momento de desembarcar em Tintagel para casar com o rei Marcos, suplicou-me que lhe emprestasse a minha camisa para entrar no leito do rei, pois a sua já não estava tão branca nem tão intacta como convinha. Confesso que me custou aceder ao seu pedido, pois, por mais pobre que seja, gostaria de conservá-la para mim própria. É por isso que, antes de ceder, me fiz suplicar: essa breve hesitação é a única coisa que Isolda me pode censurar. Em minha alma e consciência sei que não cometi mais nenhuma falta contra ela. Saudai-a, pois, em nome de Deus e no meu, e dizei-lhe que lhe agradeço todo o bem e toda a honra que me fez desde a minha infância até este dia. Que Deus, na sua bondade, a guarde, proteja o seu corpo e a sua vida e que a minha morte lhe seja perdoada. Recomendo a minha alma a Deus. Quanto ao meu corpo, está à tua discrição: podes matar-me agora!”

Os dois homens olharam um para o outro, comovidos com as lágrimas que corriam dos olhos da criada. Ambos estavam com remorsos e maldiziam o terem prometido cometer esse assassínio. Não podendo descobrir nada nela que parecesse merecer a morte, deliberaram e concordaram em que era necessário deixar-lhe a vida. Ataram, pois, a fiel Brangia a uma árvore, bastante acima do solo, para impedir que os lobos a alcançassem e devorassem; na sua compaixão e retidão, esperavam poder voltar mais tarde para libertarem-na. Então, encontraram nas moitas uma lebre que caíra numa armadilha; mataram-na e cortaram-lhe a língua para a levarem à rainha.

Quando Isolda os viu de volta, perguntou-lhes imediatamente com ansiedade: “Falou antes de morrer?” “Sim, rainha, falou. Disse que estáveis irritada contra ela pela única ofensa que vos fez. Rasgasteis no mar uma camisa branca como neve que trouxestes da Irlanda, e ela hesitou em emprestar-vos a sua para a vossa noite de núpcias. Foi este, dizia ela, o seu único crime.” “Não falou mais?” “Não, rainha, agradeceu-vos todos os bens recebidos de vós desde a infância, pediu a Deus que protegesse o vosso corpo e a vossa vida. Manda-vos saudações e amor. Rainha, eis a sua língua, que vos trazemos.” Isolda entrou então em violenta cólera: “Assassinos, quem vos disse para a matardes? Devolvei-me Brangia, a minha querida serva! Não sabíeis que era a minha única amiga?” “Rainha – respondeu um dos servos – diz-se justamente que a mulher muda em pouco tempo. Matamo-la porque vós no-lo ordenastes.” “Miseráveis! Não vistes que falava sob o efeito da cólera? Não devíeis refletir longamente e adiar para mais tarde? Ai de mim!, era a minha querida companheira, a doce, a fiel, a bela. Quero vingar em vós a sua morte. Mandarei esquartejar-vos pelos cavalos e queimar os vossos membros numa pira se não ma devolveis sã e salva e tal como vo-la confiei!” Um dos servos respondeu: “Palavra de honra, rainha, mudais facilmente de pensamento! Nem há duas horas, ordenáveis-nos que a matássemos, e agora quereis perder-nos por amor dela! Para dizer a verdade, senhora, a vossa serva ainda está viva, pois não tivemos coragem de assassinar essa inocente com medo de incorrer nos castigos de Deus! Com a vossa permissão, devolvê-la-emos em breve, sã e salva.” A rainha permitiu que um dos servos fosse buscar Brangia à floresta e mandou guardar o outro, a fim de se vingar nele se o companheiro não lhe trouxesse a moça.

Quando Brangia reapareceu no palácio com o florestal que acabava de desamarrá-la da árvore, ajoelhou-se aos pés da rainha, pedindo- lhe que perdoasse os seus erros; mas esta também caíra de joelhos diante dela e ambas ficaram longamente abraçadas. Nunca mais, desde esse instante, a rainha Isolda concebeu a menor dúvida sobre a fidelidade da sua querida Brangia.

XII

A INVEJA DE KARIADO

 

TRISTÃO amava Isolda com um amor imutável; ela, igualmente. Levavam a vida do mesmo modo, cortês e agradável, e o seu amor era de tal força que pareciam só ter um coração e uma alma. Vários na corte o notaram e o caso foi falado; mas ninguém sabia as coisas com toda a certeza, e o que se contava eram unicamente boatos.

Tristão tinha por companheiro e par um vassalo de nobre família chamado Kariado, que era da sua idade e com o qual partilhava várias vezes o quarto no interior do castelo de Tintagel. Era um fiel do rei Marcos, sempre atento a agradar-lhe, mas invejava os favores com que ele cumulava o sobrinho. Ora, uma noite em que repousavam juntos na mesma cama, mal Kariado adormeceu, Tristão esgueirou-se de perto dele e saiu. Caíra neve e a Lua brilhava com tanta claridade que dir-se-ia ser dia. Tristão chegou à vedação do pomar que se encontrava sob o quarto das mulheres: afastou uma prancha da paliçada por onde costumava penetrar. Brangia pegou-lhe na mão e conduziu-o à rainha Isolda. De um cesto para recolher as cinzas fez um resguardo para disfarçar a claridade da vela e dissimular os ardores dos amantes. Depois, foi-se deitar, esquecendo-se de fechar a porta do quarto.

Entretanto Kariado teve um sonho: viu um enorme javali arremessar- se da floresta, de boca aberta; aguçava as defesas e agitava-se tão violentamente que parecia querer devastar tudo. O animal avançou para o castelo. Nenhum dos barões de Marcos ousou enfrentá-lo. O javali correu a grunhir pelo palácio até ao quarto do rei. Atravessou as portas, precipitou-se no aposento, rasgou e sujou com a espuma do focinho o leito de Marcos e os seus ornamentos. Vários homens acorreram então em socorro, mas o próprio rei não ousava fazer nada.

Kariado acordou, angustiado com o que vira, e acreditou em princípio ser verdade. Mas logo reconhecendo que não passava de um sonho, ficou curioso de saber o que poderia significar. Chamou Tristão, seu companheiro, para dele lhe dar parte. Tateia a cama e não o encontra. Levanta-se, vai à porta e apercebe-se de que está aberta. Supõe que Tristão saiu nessa noite para divertir-se algures; mas por que se terá afastado tão misteriosamente, sem que pudessem notar a sua partida, sem que tivesse confiado a alguém aonde queria ir?

Kariado avista as suas pegadas na neve e segue facilmente essa pista, pois havia luar. Tendo chegado ao pomar, vê a abertura na paliçada por onde Tristão se introduzira. Chega à porta do quarto das mulheres e encontra-a aberta. Vem-lhe ao espírito que Tristão aí entrou por amor de alguma criada; mas no próprio momento em que tem este pensamento, um outro se apodera dele: Tristão entrou aí por amor da rainha. Por fim, Kariado entra no quarto silenciosamente e não encontra claridade alguma: a vela acesa só dá um fraco clarão, pois está coberta com o cesto. Kariado avança mais, tateando as paredes com as mãos, e tanto faz que chega perto do leito da rainha, entrevê os dois amantes estendidos lado a lado e, de súbito, descobre todo o mistério. Deixa o quarto e afasta-se, depois volta a deitar-se, preocupado. Em breve Tristão regressa por sua vez e sobe cuidadosamente para a cama. Conservou- se silencioso e o outro calou-se, nenhum disse uma palavra, o que raras vezes lhes acontecera; não estavam acostumados a tal desconfiança. Tristão apercebeu-se logo desse afastamento e compreendeu que, intimamente, Kariado desconfiava de qualquer coisa. Daí em diante vigiou melhor as suas ações e os seus ditos, mas tarde demais – o seu segredo fora descoberto.

No dia seguinte, Kariado chamou o rei de parte e disse-lhe: “Sire, contam-se na corte, a respeito de Tristão e de Isolda, muitas coisas que não honrariam de modo algum o vosso país e os vossos homens. Advirto-vos para terdes cuidado e refletirdes: estão em jogo o vosso sossego e a vossa honra.” Marcos, o mais fiel dos homens e o melhor, Marcos, o simples, espantou-se: recusava-se a obscurecer, fosse com a mais ligeira dúvida, a estrela da sua alegria, Isolda. Todavia, trouxe estas coisas no coração com sofrimento e dor e pôs-se daí em diante à espreita para ver se conseguia descobrir algum indício. Espiava sem cessar os atos e as palavras da rainha, mas sem nada surpreender, pois Tristão havia posto Isolda de sobreaviso e advertira-a das suas suspeitas e da inveja de Kariado.

Finalmente, o rei resolveu experimentar a rainha. Uma noite em que repousava ao pé dela, disse-lhe com fingida tristeza: “Senhora, quero fazer uma peregrinação, viajar fora da minha terra e, para minha salvação, visitar os santos lugares. Mas não sei a quem entregar a guarda do meu reino. Que me aconselhais? Dizei-me sob qual salvaguarda quereis ficar e seguirei vosso conselho.” Isolda respondeu: “Como podeis duvidar do melhor partido? Quem me deve proteger senão o meu senhor Tristão? Parece- me que o mais conveniente é eu ficar entregue à sua proteção. Pode defender a vossa terra e tomar conta da vossa corte. É filho de vossa irmã; saberá esforçar-se por manter em toda a parte a vossa honra, e, pelo seu fiel serviço, com satisfação de todos, guardará bem o vosso reino.” O rei ficou perturbado com estas palavras: de manhã, foi ter com Kariado e contou-lhe a conversa com a rainha. Kariado respondeu-lhe: “Podeis reconhecê-lo agora pelas palavras da rainha: ama Tristão com tal amor que já não consegue dissimular. É estranho que queirais suportar durante tanto tempo tal vergonha e que não expulseis Tristão para longe de vós.” Mas o rei continuava hesitante e incerto, e não se decidia ainda a aceitar como verdade o que Kariado lhe dizia do sobrinho.

Entretanto, Isolda levantou-se, chamou Brangia e disse-lhe: Bela amiga, soube de uma boa e muito doce nova: o rei quer fazer uma viagem fora do país. No intervalo, devo ficar sob a guarda de Tristão e juntos teremos prazer e alegria: ofenda-se quem queira!” “Senhora – perguntou Brangia – donde vos veio essa nova e quem vo-la disse?” Isolda contou-lhe a conversa da noite com o rei. Imediatamente, Brangia reconheceu a loucura da rainha e disse-lhe: “Não sabeis fingir! O rei experimentou-vos e descobriu-vos, pois ignorais a arte de dissimular os vossos secretos pensamentos. Foi Kariado quem tudo maquinou com o rei para que vos traísseis: não é difícil de adivinhar, observando bem, como ele está secretamente apaixonado por vós e tem ciúmes de Tristão.” Brangia deu conselhos à rainha e ensinou-lhe o que devia dizer ao rei para se livrar desse mau passo.

Por seu lado, a conselho de Kariado, o rei tentou experimentar Isolda pela segunda vez. Na noite seguinte, apertou-a ternamente contra o coração e deu-lhe beijos. “Bela amiga – disse – nada me é tão profundamente caro como vós; e o pensamento de que nos vamos separar, Deus que está no céu bem o sabe, rouba-me o senso.” Mas ela viu logo que ele queria experimentá-la como já o fizera. Dissimulou por sua vez e começou a suspirar profundamente: “Infeliz, nasci para o sofrimento e a dor!” “Bela amiga – perguntou o rei – que tendes e por que essas lágrimas?” Isolda respondeu: “Há muitas razões para os meus cuidados, para os meus sofrimentos intoleráveis, se vós não os quereis suavizar. Pensei que o que me dissestes a noite passada era uma brincadeira e que afirmáveis, por simples gracejo, querer viajar fora do país. Compreendo agora que faláveis a sério. Infeliz a mulher que ama tão ardentemente um homem! Nenhuma mulher mais se deveria fiar num homem se me quereis deixar e abandonar aqui. Onde me deixareis? E qual dos vossos fiéis me protegerá? Por amor de vós, deixei todos os meus sustentáculos: pai e mãe, parentes e amigos. Nunca mais terei consolação, nem de dia nem de noite, se ficar privada do vosso amor. Em nome de Deus, ficai ou deixai-me, cativa, ir convosco!” O rei Marcos respondeu: “Não vos quero deixar sozinha, senhora, uma vez que Tristão, meu sobrinho, vos deve proteger e servir com toda a amizade e decoro. Não há ninguém no meu reino a quem ame tanto como a ele, pela grande cortesia com que vos serve.” “Ai de mim – exclamou Isolda -, se é ele que me deve proteger e guardar! Sei o que pensar do seu zelo em me servir e dos seus bons sentimentos não passam de hipocrisia e de falinhas mansas. Finge ser meu amigo porque matou o meu tio e lisonjeia-me para que não me vingue dele. Pode, no entanto, ter isto por certo: todos os seus belos semblantes não me podem consolar da grande dor, da vergonha e do mal que causou a mim e à minha família. Se não fosse vosso sobrinho, há já muito tempo que o teria feito sentir a minha cólera. Queria nunca mais o ver, nunca mais lhe falar. Mas é um adágio bem conhecido: um traço repreensível e comum às mulheres é que não gostam dos parentes dos maridos e não os podem suportar, nem de dia nem de noite, ao pé delas. Quis, pois, afastar de mim essa censura, e aceitei os seus belos semblantes e o seu serviço. Mas não quero mais, doravante, ser abandonada ao seu poder. Suplico-vos, sire, que me deixeis antes partir convosco.” Soube tão bem enganar o rei com as suas palavras que este deixou cair a cólera. Foi ter com Kariado e assegurou-lhe que não havia nenhum amor entre a rainha e Tristão. Mas Kariado teve o cuidado de ensinar ao rei, com grande astúcia, o que devia dizer a Isolda para experimentá-la uma terceira vez.

Portanto, chegada a noite, Marcos disse à rainha: “A minha partida é coisa bem assente. Ficareis sob a guarda dos meus melhores homens e dos meus amigos, que vos servirão com grande honra segundo os vossos desejos e como convém à vossa linhagem. Mas, uma vez que não vos agrada que o meu sobrinho Tristão vos ofereça o seu serviço, quero, por amor de vós, bani-lo deste país.” “Sire – replicou Isolda -, não é necessário agir tão duramente. Depois dirão que vos levei a esse extremo e que odiava o vosso sobrinho pelo assassínio do Morholt. Com isso atrairia a reprovação. Ora, não quero que por amor de mim odieis os vossos parentes. Não passo de uma mulher: se rebentar uma guerra, os inimigos arrebatar-me-ão depressa a vossa terra, pois não tenho força para defendê-la. E as pessoas não deixarão de dizer que, se mandei expulsar Tristão, o mais forte sustentáculo do vosso país, é porque o odiava com tal rancor que ele não podia permanecer junto a mim. Escolhei, pois, um destes partidos: deixai-me acompanhar-vos ou então entregai-lhe a guarda e a defesa da vossa terra.” Estas palavras de Isolda reanimaram as dúvidas e as suspeitas que torturavam o rei Marcos. Todavia, guiada por Brangia, a sábia, que tratava de reparar os erros da sua senhora, esta ainda escapou ao perigo. Iludindo o seu senhor com palavras falazes, lisonjeando-o com vãs promessas, soube persuadi-lo de que Tristão nada representava para ela e que só à maledicência se deviam atribuir as acusações que o inquietavam. O rei Marcos estava demasiado enamorado da sua bela mulher para duvidar da sua boa fé. Kariado resignou-se e renunciou por algum tempo às acusações contra Tristão. No entanto a inveja havia-se apoderado do seu coração, e não esperava mais que uma ocasião propícia para afastar Tristão da rainha.

 

XIII

A HARPA E A ROTA

 

UM DIA em que Tristão partira a caçar com Gorvenal e os companheiros na floresta, uma grande e bela nau aportouem Tintagel. Comandava-a um barão da Irlanda, e a nau pertencia-lhe com tudo o que transportava. Era orgulhoso e ávido de honras. Cavalgou até à corte de Marcos num corcel bem ajaezado e ornado, sem escudo nem lança, mas trazia às costas uma harpa toda incrustada de ouro. Saudou primeiro o rei e a rainha Isolda. Esta reconheceu-o imediatamente, pois cortejara-a durante longo tempo, sem êxito, e foi para tornar a vê-la que viera da Irlanda até a Cornualha. Ela inclinou-se logo para o rei e segredou-lhe quem era aquele nobre irlandês, mas não achou oportuno revelar-lhe que durante muito tempo ele a amara e cortejara. No entanto, pediu ao rei que recebesse o estrangeiro com honra. Marcos fez como ela queria: convidou o hóspede para jantar, e admitiu-o, em sinal de amizade, a comer na sua própria escudela. Durante toda a refeição, o irlandês conservou a harpa pendurada ao pescoço e declarou que não a pousaria por nada deste mundo, nem mesmo para prestar amizade ou honra a quem quer que fosse. À volta dele, os senhores troçavam entre si do homem da harpa, mas este não dava atenção à sua zombaria.

Quando o rei acabou de comer e as mesas foram levantadas, os barões da corte começaram a recrear-se. Então o rei perguntou, na presença de todos, ao vassalo da Irlanda se este sabia tocar harpa e se, por amor dele, não queria tocar uma melodia no seu instrumento. O irlandês respondeu: “Nunca acedo a recrear um rei num país estrangeiro se não sei antecipadamente qual será a minha paga.” “Então – disse o rei -, distrai-nos com algum canto da Irlanda e dar-te-ei em recompensa o que quiseres.” “Seja” – retorquiu o irlandês. Pegou na harpa e tocou uma melodia do seu país que agradou muito a todos. O rei pediu-lhe que tocasse outra, tão bela ou ainda mais bela, e ele tocou outra duas vezes mais bela que a primeira; era uma alegria escutá-lo. Quando acabou, disse perante toda a corte: “Rei, executa agora o pacto a que acedeste.” “Fá-lo-ei com todo o gosto – disse o rei. – Diz-me então o que pedes como paga.” “Nada mais quero como paga além da bela Isolda – respondeu o tocador de harpa. – Não tens tesouro nem jóia mais ao meu desejo.” “Por minha fé – exclamou Marcos – não a terás nunca. Pede antes uma coisa que me seja possível conceder-te.” O estrangeiro replicou: “Eis que faltas à tua palavra e rompes a promessa dada em presença de toda a corte. Segundo a lei e o direito, não deves mais governar um reino, pois um príncipe que mente publicamente e não cumpre o juramento não deve conservar o senhorio e o poder sobre os barões. Se me recusas o que reclamo de ti, entrego a causa ao julgamento dos homens sábios aqui presentes; e se encontrares alguém que negue o meu direito e o ouse contestar, defenderei neste dia a minha causa contra ele sob o olhar de toda a corte. Se renegas a promessa, não tens mais nenhum direito sobre este reino: prová-lo-ei contra ti pelas armas, contanto que a tua corte queira pronunciar um justo julgamento.”

O rei Marcos ouviu este discurso. Olhou em volta para os seus barões: nem um único se ousa erguer contra o irlandês, chamar a si a causa do seu senhor e libertar a rainha, pois todos viram que o estrangeiro era um homem cheio de força e de desmesura, experiente no manejo das armas. Quando o rei compreendeu que nenhum se queria arriscar a combater o tocador de harpa, entregou- lhe a rainha: nenhum dos seus conselheiros ousou levantar a voz para censurar este abandono.

Então o irlandês sentou Isolda na sela com ele e levou-a, radiante, para a beira-mar. A rainha ia cheia de dor, chorava o seu destino, lamentava-se e maldizia a hora em que Tristão partira para a caça. Por certo que se estivesse lá quando o rei a entregara, tê-la-ia resgatado à custa de um duro combate: teria preferido perder a vida a não a reconquistar! O irlandês levou a bela lacrimosa para uni pavilhão erguido à beira-mar. Depô-la num leito e ordenou que preparassem imediatamente a nau para darem à vela o mais depressa possível. Mas o navio estava encalhado em seco na areia, a maré mal começara a subir e ainda estava muito longe da nau.

Nesse momento, Tristão voltou da floresta. Soube da nova de que a rainha fora entregue a um tocador de harpa. Chamou Gorvenal, seu escudeiro, pegou na rota e cavalgou a grande velocidade para o pavilhão do irlandês. Numa duna que dominava a borda do mar, desceu do cavalo, entregou-o a Gorvenal e, levando a rota suspensa ao ombro, dirigiu-se para a tenda. Encontrou Isolda estendida num leito enquanto o irlandês esforçava-se em vão para consolá-la tocando lais na harpa. Ela recusava-se a ouvi-lo e lamentava-se cada vez mais. “Senhor – disse Tristão -, vim a correr para aqui. Disseram-me que éreis da Irlanda; também sou desse país. Suplico-vos, levai-me convosco para a Irlanda!” “Vagabundo – respondeu o irlandês -, toca rota para nos recreares, e se conseguires consolar a minha amada, dar-te-ei um bom “casaco.” “Deus vos recompense, senhor! Se eu me der ao trabalho de entretê-la, fá-lo-ei tão bem que, dentro de seis meses, não mostrará a menor sombra de desgosto.” Tristão afinou a rota, que era um instrumento parecido com a sanfona e servia sobretudo para as danças e divertimentos do povo. Tocou uma doce melodia, que acompanhou com belos cantos.

Quando acabou a melodia, a maré subira e a nau estava desencalhada. Um marinheiro disse então ao barão irlandês: “Senhor, partamos depressa. Tardais demasiado a fazer-vos ao mar; se Tristão, o bravo, regressasse da caça, bem poderia atrasar-nos a partida. Tem mais fama que qualquer outro vassalo deste reino, e ninguém aqui se lhe ousa opor.” O irlandês respondeu: “Maldito seja o covarde que teme o assalto de Tristão!” Depois, voltando- se para o tocador de harpa, pediu: “Irmão, toca mais qualquer coisa para consolar Isolda, a minha amada, e domar a sua dor.” Tristão afinou de novo a rota e escolheu um lai deleitável de ouvir: Isolda escutava-o, mergulhada no encantamento. Preludiou longamente, depois terminou com uns acordes um pouco tristes.

Enquanto cantava o lai, o fluxo havia subido tão alto que já não se conseguia passar pela prancha que ia da beira-mar à nau. “Que fazer? – interrogou o irlandês. – Como levar Isolda para o meu navio? Deixemos a maré descer o suficiente para que a bela possa atravessar a ponte a pé enxuto.” Tristão respondeu-lhe: “Tenho além, no vale, um bom cavalo para levar a rainha até ao teu navio.” “Trá-lo então!” Tristão foi buscar o corcel, montou-o, agarrou na espada e cavalgou até junto do vassalo da Irlanda. “Senhor – disse -, confia-me Isolda, a rainha. Prometo levá-la suavemente.” O irlandês pegou em Isolda e ergueu-a na ponta dos braços até à sela de Tristão, pedindo-lhe que se comportasse discretamente com a sua dama.

Tristão recebe Isolda no corcel e exclama: “Escuta, imprudente e louco! Conquistaste Isolda com a harpa, eu reconquisto-a com a rota. Se a perdes, é justo: ganhaste-a ao rei com trapaça, eu reconquisto-ta com astúcia. Regressa, ridicularizado e maldito, à Irlanda, vil mentiroso!” Esporeia o cavalo, cavalga a toda a velocidade pela costa, e daí para a floresta. O irlandês perdeu Isolda, Tristão leva a amante. Ao cair da tarde estavam na floresta, e juntos passaram uma bela noite.

De manhã, ao romper do dia, Gorvenal veio avisar o seu senhor de que o irlandês se fizera ao mar, lastimoso e totalmente confundido. Só então Tristão cavalgou com a rainha até ao palácio de Marcos e lha entregou: “Pela minha fé, sire, uma mulher não é de modo algum obrigada a amar um homem que a entrega por uma ária de harpa. Guardai-a melhor para outra vez, pois foi necessária grande astúcia para reconquistá-la.”

XIV

A AVELEIRA E A MADRESSILVA

 

A SEGUIR a Kariado, os barões inimigos de Tristão surpreenderam a verdade dos seus amores com a rainha. Audret, Guenelon, Gondïne e Denoalen denunciam ao rei Marcos aquilo a que chamam “a traição do sobrinho”. O rei aflige-se: ouve contrafeito esta revelação que perturba a sua felicidade e mancha a reputação daquela que ama. Todavia, deixa-se de novo invadir pelas dúvidas e pelas suspeitas; e novamente se apanha a espiar as palavras e os atos da rainha e, desta vez, sob pretexto de pôr fim a rumores ofensivos, ordena a Tristão que deixe a corte e parta para uma terra distante. E, sobretudo, que não tenha a ousadia de voltar ao seu palácio antes de lhe ser dada ordem para tal.

Tristão é forçado a obedecer, pelo menos em aparência, à ordem do rei: nunca mais aparece na corte, mas é-lhe impossível ficar muito afastado da sua dama. Em vez de se exilar num país estrangeiro, contenta-se em ficar escondido num subúrbio de Tintagel, em casa de um habitante que lhe dá asilo, em segredo, a ele e a Gorvenal. Todos os dias, ou quase, Brangia, que conhece o refúgio de Tristão, arranja-lhe encontros furtivos com a amada.

Mas em breve Tristão se sente cercado pelos inimigos: por isso abandona o refúgio e esconde-se sozinho na floresta, a fim de não ser visto por ninguém. Só sai à tardinha, quando é possível encontrar um alojamento. À noite, é albergado por camponeses ou pessoas pobres. Junto deles, informa-se do que faz o rei. Por eles fica sabendo que Marcos deve empreender dentro em pouco uma viagem com toda a sua gente, para reunir a corte, no dia de Pentecostes, num local que fixou. Haverá muitos folguedos e divertimentos, e a rainha estará na festa. Ao ouvir isto, Tristão sente uma grande alegria: Isolda não poderá dirigir-se à assembléia sem que ele a veja passar.

No dia em que o rei se põe a caminho, Tristão esconde-se numa moita ao longo da estrada por onde deve passar o cortejo. Corta um ramo de aveleira ao meio, depois fende-o e esquadria-o. Quando acaba de apará-lo, grava-lhe com o punhal as letras do seu nome, pois é um sinal convencionado entre a rainha e ele. Sabia que Isolda se aperceberia dele, pois era muito atenta a essas coisas e já lhe acontecera dar-se desse modo conta da presença de Tristão. Reconhecerá logo, mal o veja, o pau preparado e ornado pelo amante.

Ao mesmo tempo, Tristão enviou-lhe uma carta com o seguinte teor: “Bela amiga, sabei que por amor de vós continuo escondido na floresta. Aí tenho permanecido à espera de encontrar o meio de voltar a ver-vos, pois é-me impossível viver sem vós: nós dois somos como a madressilva quando se enrola à volta do ramo da aveleira: uma vez a ela ligada e presa, ambas podem durar juntas eternamente, mas, se as querem separar, a madressilva morre em pouco tempo e o mesmo sucede à aveleira. Bela amiga, tal é o nosso caso: nem vós sem mim, nem eu sem vós!”

No dia fixado, Tristão viu primeiro passar os monteiros com os cães, em seguida os barões que escoltavam o rei. Em breve, no meio das aias, entre duas filas de homens de armas, aparece a cavalo a rainha, observando tudo atentamente. Assim, viu, cravado no talude, o ramo aparado e gravado, e compreendeu imediatamente a mensagem que lhe trazia, pois conseguiu decifrar todas as letras. Mandou parar os cavaleiros que seguiam com ela: quer descer do cavalo e repousar. Obedecem à sua ordem. Afasta-se da escolta e leva consigo a criada Brangia através do bosque. Isolda encontra aí aquele que a amava mais que nenhum ser no mundo: fala- lhe à vontade e ela responde-lhe a contento; promete que o ajudará a reconciliar-se com o rei: Marcos, assegura-lhe, está muito triste por tê-lo banido após as acusações levantadas contra ele. Quando chega o momento da separação, os amantes começam a chorar. Ela diz-lhe: “Querido amor, disseste a verdade: sou a madressilva e tu a aveleira, ninguém nos poderá separar um do outro sem causar a morte de ambos.”

Em recordação da alegria que experimentara ao rever a amante, Tristão, que escrevera todas as palavras da rainha tal como esta as pronunciara, fez um novo lai de harpa; chamam-lhe Goatleaf em inglês, os franceses denominam-no Chévrefeuille. O refrão é:

Bela amada, assim é conosco: Nem vós sem mim, nem eu sem vós.

Brangia, a avisada, aproveitou esta entrevista com Tristão para combinar com ele um novo estratagema que lhe devia permitir encontrar-se secretamente com a rainha durante a noite. No pomar, fechado por estacas e fortes paliçadas que cercavam a residência real, brotava uma fonte à sombra de um grande pinheiro. As suas águas frescas e puras, depois de encherem um tanque cavado numa escadaria de mármore, corriam para o castelo por um canal aberto, e atravessavam o quarto das mulheres segundo um antigo costume dos celtas. Tristão viria de noite ao pomar, à fonte; deitaria aí aparas com sinais gravados com a ponta do punhal; quando Brangia as visse deslizar na água do canal, preveniria imediatamente a rainha, que iria ter com ele.

Como a vara de aveleira, aparada e gravada com letras por Tristão, indicara a sua presença na floresta, assim, durante várias semanas, as aparas gravadas com os sinais combinados permitiram aos dois amantes reunirem-se todas as noites ao pé da escadaria de mármore, à beira da fonte, debaixo dos ramos do grande pinheiro. E tal era o encanto do pomar real sob o céu estrelado que Isolda dizia por vezes a Tristão: “Não será este o pomar maravilhoso de que falam os lais bretões? Uma muralha de ar intransponível fecha-o por todos os lados; no meio das árvores em flor, o herói vive sem envelhecer nos braços da amante e nenhuma força hostil pode quebrar a muralha de ar.” Mas quando se apagava a última estrela, o encantamento desaparecia e Tristão apressava- se a transpor a alta paliçada para regressar ao seu refúgio.

XV

MARCOS EMPOLEIRADO NO PINHEIRO GRANDE

 

AUDRET e os barões traidores viam bem que Isolda recuperara a alegria e adivinhavam sem esforço que achara maneira de rever Tristão. Mas era em vão que espiavam as idas e vindas da rainha para descobrir o segredo. Brangia montava tão bem a guarda que se fatigavam sem lucro algum. O duque Audret propôs aos cúmplices empregarem outra tática: “Conheceis, senhores, Frocin, o anão corcunda: conhece a arte da magia, lê o futuro nos sete planetas e no curso das estrelas. Ele, que sabe descobrir as mais secretas coisas, poderá sem dúvida revelar-nos as astúcias de Isolda, a loura.”O aleijão, que era mau e invejava a felicidade dos amantes, não se fez rogado. Observando o curso de Orion e de Lúcifer, descobriu o lugar e a hora dos encontros noturnos dos dois, na fonte do pomar. O duque Audret levou o anão a Marcos e arranjou-lhe uma entrevista com o rei: “Sire — disse o feiticeiro —, fazei constar que partireis esta noite para a floresta para caçar durante sete dias. Antes de soar a meia-noite, regressai bruscamente a Tintagel e eu conduzir-vos-ei, no pomar, a um lugar donde podereis ver o encontro de Tristão e da rainha e ouvir-lhes as palavras. Que eu seja enforcado se ficardes decepcionado com a espera!” O rei seguiu o conselho do anão, mas contra vontade. Chegada a noite, deixou os monteiros nos bosques, montou o anão na garupa e regressou a Tintagel. Sem hesitar, Froncin conduziu-o ao pinheiro grande: “Rei, deveis agora subir para um ramo desta árvore e dissimularde-vos para melhor espiardes a vossa mulher e o vosso sobrinho. Se me acreditais, levai convosco o arco e as flechas: poderão servir-vos quando estiverdes esclarecido sobre a sua conduta. Mantende-vos quieto: não tereis de esperar muito.”O anão dissera a verdade: o rei não esperou nada. Do alto da árvore, Marcos viu Tristão transpor a paliçada e saltar para o pomar; avançou direto à fonte e deitou ai as aparas gravadas com letras, que não tardaram a correr, ligeiras, pelo canal através do jardim e para o quarto das mulheres. Mas Tristão, inclinando- se sobre o tanque de mármore para atirar outras, viu subitamente, à claridade da Lua, o rosto do tio que se refletia, enquadrado pela folhagem, no espelho de água tranqüila. Observando mais de perto, distinguiu também, entre os ramos, o arco, já armado com uma flecha, que o rei segurava na mão. Ah!, se pudesse reter as aparas na sua fuga! Mas não! No quarto das mulheres, Isolda espreita a sua vinda e em breve as verá deslizar no fio de água. Eis que transpõe a porta do quarto e se dirige para o pomar, ágil e no entanto prudente, olhando para todos os lados, a fim de ver se não a espionam. Ora, Tristão, nessa noite, não vem ao seu encontro como das outras vezes e nem sequer a fita; está imóvel, os olhos fixos na água do tanque como que para lhe fazer compreender que há ali qualquer coisa insólita. Esta estranha atitude não deixa de surpreender Isolda, que também volta o olhar para a superfície da água e não tem dificuldade em aí descobrir por sua vez o reflexo do rosto inquieto e atormentado do marido. Lembra-se então de um ardil bem feminino, pois livra-se de levantar os olhos para os ramos da árvore e, a fim de tirar Tristão de apuros, dispõe-se a falar em primeiro lugar: “Senhor Tristão, que loucura vos deu para me chamardes a esta hora? Em nome Daquele que fez o Céu e a Terra, não me chameis mais, nem de dia nem de noite, pois, dessa vez, não virei. Todavia vós bem o sabeis: o rei julga que eu vos amo loucamente. Os barões traidores fazem-no crer que vós, que sois a defesa da sua honra, o ridicularizais sem vergonha. Em verdade, preferiria ser queimada viva e que a minha cinza fosse dispersa ao vento a amar outro homem que não seja o meu senhor. Não, Tristão, não me chameis mais sob nenhum pretexto: não ousaria nem poderia vir; se o rei soubesse da nossa entrevista desta noite, condenar-me-ia à morte esquartejada por quatro cavalos. Por certo que me sois caro, porque sois seu sobrinho. Aprendi com a minha mãe que devia amar os parentes de meu marido: observo esse preceito. E penso que uma mulher não amaria verdadeiramente o seu senhor se não amasse igualmente os seus parentes e os seus próximos aliados. Mas vou-me embora que estou a demorar demasiado!” “Senhora, por amor de Deus, escutai-me! Em boa fé, por várias vezes tentei encontrar-vos. Desde que fui banido da corte, não sei onde vos falar. Sofro grandemente com as suspeitas que meu tio faz pesar sobre mim: por que dará fé a tais calúnias? Por que acreditará nas mentiras daquelas pessoas que vimos mudas e trêmulas perante o desafio do Morbolt? Fazei-me favor, peço-vos, de me justificar vós mesma junto de vosso marido!” “Por Deus, senhor, que me pedis? Convencê-lo da vossa lealdade? Obter-vos o seu perdão? Isso seria provocar, em vão, a cólera do rei! No entanto, ficai sabendo, belo senhor, que, se ele vos perdoasse e esquecesse a cólera, ficaria cheia de alegria. Mas vou indo, pois tenho medo que alguém vos tenha visto chegar.”Tristão retém ainda a rainha e suplica-lhe que interceda por ele junto de Marcos: “Já que o rei me odeia tanto, partirei. Mas obtei-me pelo menos com que comprar as minhas armas e o cavalo, que tive de empenhar a fim de poder subsistir.” “Por Deus, Tristão, admiro-me que ouseis fazer-me semelhante pedido. Quereis então perder-me?” E afasta-se, orgulhosa e digna. Tristão, fingindo uma viva emoção e como que cambaleando, apoia-se à escadaria de mármore e diz alto: “Ah!, Deus, nunca pensei um dia sofrer tal perda e exilar-me em tão grande pobreza. Ai de mim! Vou partir sem armas nem cavalo, pois empenhei o arnês e não o posso resgatar. Deus, afastaste-te de mim! Quando estiver em terra estrangeira, se ouvir dizer que um rei procura homens a soldo para uma guerra, não ousarei pronunciar uma palavra: um homem nu não tem nenhuma razão para falar. Ah, meu tio, é preciso que me conheças muito mal para desconfiares assim de traição! Atribuis-me uma atitude que é o oposto dos meus sentimentos.”O rei, nos ramos da árvore, regozija- se ingenuamente com a fidelidade de Isolda e a lealdade de Tristão; irrita-se contra os delatores: “Desta vez — pensa —, vejo bem que o anão me logrou: foi para minha maior confusão que me mandou subir à árvore. Mentiu-me acerca do meu sobrinho; por isso o mandarei enforcar e também por ter-me feito conceber aversão a minha mulher. Agi como um louco, mas aquele que me levou a isso não esperará muito pelo castigo. Se conseguir apanhar esse anão odioso, fá-lo-ei acabar os seus dias no fogo.” Repete para si mesmo que tem fé na mulher: de futuro recusar-se-á a acreditar nos que a tentarem difamar. Nunca retirará a confiança a Tristão e a Isolda: deixá-los-á de novo ir e vir juntos no quarto real à vontade.De retorno ao castelo, a rainha narra a aventura a Brangia e como, por meio de uma bela astúcia, escapou à armadilha que lhe fora armada: “Bela amiga, quem me dera que nos tivesses ouvido, a Tristão e a mim, queixarmo-nos e lamentarmo-nos à porfia! Por um triz que o rei não se deu conta da verdade. Sai-me verdadeiramente bem deste mau passo!” Quando Brangia a ouviu, não lhe poupou a admiração: “Deus, que nunca enganou, concedeu-vos uma grande graça ao permitir-vos chegar ao termo da entrevista sem terdes dito uma única palavra que vos pudesse comprometer. Deus realizou um grande milagre convosco: agiu como o verdadeiro Pai, pois preocupa-se em não fazer mal àqueles que são bons e leais.”No dia seguinte, de manhã, Marcos quis fazer desaparecer as últimas inquietações acerca da rainha. Penetrou no quarto de Isolda, que sentiu grande emoção: “Sire, em nome de Deus, donde vindes? Tendes algum assunto premente, para virdes assim sozinho?” “Senhora, é a vós que venho falar e perguntar uma coisa; não me escondais, pois, a verdade, porque é a ela que eu quero conhecer.” “Sire, nunca em dias da vida vos menti: mesmo que tivesse de morrer aqui, diria a verdade toda e inteira, não mentiria numa única palavra.” “Então, desde há quanto tempo não vedes Tristão?” “Sire, não me ides acreditar, mas eis o que se passou: vi-o esta noite mesmo e falei-lhe sob o pinheiro que abriga a escadaria de mármore. Sim, senhor, vi o vosso sobrinho no lugar que disse. Mandara-me dizer para ai me encontrar com ele: a minha honra obrigava-me a satisfazer o desejo daquele por quem me tornei rainha da Cornualha, esse Tristão que amo unicamente porque é vosso sobrinho. De preferência a voltar para o exílio, desejava que o reconciliasse convosco; recusei-me a fazê-lo com medo desses traidores que vos fazem crer no mal. Disse-lhe que partisse e nunca mais me procurasse, pois não podia fazer nada por ele, nem devolver-lhe a vossa amizade, nem dar-lhe com que resgatar o arnês que empenhara.” O rei sabe perfeitamente que ela falou verdade; cem vezes a beija e abraça. Declara que lhes devolve a confiança para sempre, a ela e a Tristão. Confessa-lhe que assistiu à entrevista noturna, empoleirado nos ramos do pinheiro grande. “Sire, estáveis realmente no pinheiro?” “Sim, senhora, por São Martinho, não houve uma única palavra que me escapasse, fosse em voz alta ou baixa. Quando ouvi Tristão dizer que empenhara o cavalo e o arnês e que não tinha sequer com que os resgatar, apoderou-se de mim tal piedade que quase caí da árvore. Ouvi quando vos recusastes a pagar-lhe o penhor e vi que não vos aproximastes um do outro. Sorri de contentamento no cimo da árvore.” “Sire, o que contais é-me de grande reconforto. Agora sabeis com certeza que a ocasião era propícia para nos beijarmos e abraçarmos, se nos amássemos com amor culpado. Mas em nenhum momento o vistes aproximar-se de mim, ter uma atitude inconveniente ou abraçar- me.” “Por Deus, não — respondeu o rei. —Sabeis, franca e honrada dama, por que me embosquei naquela árvore? Foi Frocin, o anão corcunda, quem mo aconselhou: o vil mentiroso pretendia ter lido nas estrelas que vós tínheis, nessa noite, um encontro amoroso com Tristão, na fonte do pomar. Jurou-me que vos apanharia aos dois em flagrante, contanto que consentisse em espiar-vos do alto do pinheiro grande.”Marcos volta-se então para Brangia: “Moça, vai buscar o meu sobrinho a casa do hospedeiro que lhe dá asilo. Se ele pretextar seja o que for e não quiser escutar-te, diz-lhe que eu lhe ordeno que me venha ver.” Brangia, a astuta, não resiste à tentação de se divertir também com a credulidade do rei Marcos e, para afastar qualquer suspeita de cumplicidade com os amantes, responde: “Sire, Tristão odeia-me! Sem razão alguma, Deus o sabe, diz que é por minha culpa que se pôs de mal convosco. Irei no entanto, pois, por amor de vós, poupar-me-á e não me fará mal algum. Sire, em nome de Deus, reconciliai-me com ele quando chegar.” Olha a pérfida: contava propositadamente histórias e queixava-se sem motivo para melhor enganar o rei Rindo, corre para a porta e sai.Uma hora depois, Tristão apresentou-se diante de Marcos, que lhe devolveu toda a confiança: autorizou-o a dormir de novo, como os outros fiéis, no quarto do rei.Entretanto, numa clareira da floresta, o anão Frocin interrogava o curso das estrelas para conhecer o resultado do estratagema que aconselhara. Leu no céu que a rainha e Tristão haviam escapado pela astúcia à armadilha que lhes fora armada e que haviam, mais uma vez, acalmado as suspeitas do rei. Leu também que Marcos voltara o furor contra ele e que prometera matá-lo para vingar-se do papel humilhante que o infame feiticeiro o fizera representar. O anão, no mesmo instante, ficou negro de medo e de vergonha; tomado de pânico, fugiu sem parar para a terra de Gales.

XVI

A FARINHA-FLOR

 

O AMOR é insaciável e nenhuma razão o governa. Um gesto, um olhar, um suspiro, bastam para revelá-lo. O descuido dos amantes fazia o jogo dos inimigos. Desde que Marcos renunciara a suspeitar deles, Tristão e Isolda, negligenciando os avisos de Brangia, não hesitavam em encontrar-se em pleno dia. Os traidores, que os observavam e só aguardavam a ocasião de denunciá-los, estavam bem resolvidos a tirar desforra.

Tristão ia e vinha livremente no castelo e visitava a rainha nos aposentos das mulheres. Um dia em que estava com Isolda, os traidores surpreenderam-nos. “Desta vez — pensaram — temo-los na mão: será milagre se escaparem!” Foram contar tudo a Marcos e envergonharam-no da cegueira: “Sire, uma grande infelicidade vos ameaça. A rainha ama Tristão e é correspondida. Toda a gente na corte, salvo vós, está convencida da sua traição. Eis-vos agora prevenido, a vós compete defender a vossa honra afastando vosso sobrinho!” O rei escuta-os, suspira, baixa a cabeça, cala-se. “Não, rei, não o agüentaremos mais, pois sabemos que esta notícia, há pouco estranha, já não te surpreende. Consentes, pois, no seu crime. Que farás? Delibera e aconselha-te. Quanto a nós, se não banires o teu sobrinho para sempre, retiramo-nos para os feudos e levaremos também os vizinhos para fora da tua corte. Eis a escolha que te oferecemos; decide-te.” “Senhores, uma vez acreditei nas feias palavras que dizíeis de Tristão e arrependi- me. Mas vós sois os meus fiéis, não quero perder o serviço dos meus homens. Aconselhai-me pois, peço-vos, é o vosso cargo.” Os barões replicaram: “Se quereis seguir o nosso conselho, mandai chamar o anão Frocin, que injustamente banistes. Tendes-lhe rancor por causa da vossa desventura no pomar. Todavia, não leu nas estrelas que a rainha e Tristão se encontrariam nessa noite debaixo do pinheiro? Sabe muitas coisas; segui o seu conselho.”

O maldito acorreu e ensinou ao rei novo ardil à sua moda: “Sire, ordena ao teu sobrinho que amanhã, ao alvorecer, cavalgue até Carduel, para levar ao rei Artur uma carta em pergaminho, selada com o teu sinete. Tristão dorme no teu quarto e da cama dele à tua não vai mais que o comprimento de uma lança. Na hora do primeiro sono sairás do quarto com os teus fiéis sob o pretexto de ir caçar. Juro-te que Tristão, porque ama loucamente a rainha, tentará falar-lhe antes de partir e irá ter com ela ao leito. Saberás então a confiança que ele merece. Mas livra-te de dizeres alguma coisa ao teu sobrinho antes de se deitarem!” O rei deu o seu acordo. O anão correu até uma padaria e comprou um saquinho de farinha-flor que escondeu no casaco. Em seguida regressou ao palácio sem ser visto.

Já noite escura, quando chegou a hora de o rei se deitar, Tristão, como de costume, encontrava-se presente. Marcos disse- lhe: “Querido sobrinho, um grave problema me preocupa e só tu me podes ajudar. É preciso que amanhã cavalgues até Carduel, onde reside o rei Artur. Saudá-lo-ás da minha parte e entregar-lhe-ás esta carta selada com o meu grande sinete de cera. Dorme bem, pois o caminho é longo e duro e ser-te-á necessário partir ao romper do Sol.” Tristão recebeu esta ordem com desagrado, pois custava-lhe sempre afastar-se da rainha, mas consolou-se dizendo para consigo mesmo que a ausência seria curta. Um desejo furioso de falar à rainha antes da partida apoderou-se dele: prometeu a si próprio que, pouco antes do amanhecer, se Marcos estivesse a dormir, se aproximaria do leito real e falaria com Isolda para despedir-se. Este agradável pensamento mantinha-o acordado, gozando antecipadamente o prazer que o esperava, quando um ligeiro barulho lhe atraiu a atenção. Inclinou-se e viu a porta abrir-se. O anão introduziu-se furtivamente no quarto e entregou- se a uma estranha manobra: extraindo a farinha-flor do saco que segurava debaixo do braço, espalhava-a no solo, entre a cama de Tristão e a da rainha. Se um dos amantes fosse ter com o outro, a farinha conservaria a marca dos passos. Tristão pensou então: “Este anão não costuma fazer-me bem; se espalha a farinha, só pode ser para me prejudicar. Mas ficará desiludido: não sou louco para deixar no chão o rasto dos meus pés!”

Uma profunda obscuridade reinava agora no quarto. O anão, realizada a tarefa, desaparecera apagando as velas. A meia-noite, o rei vestiu-se e saiu com os barões com toda a aparência de ir caçar à espera na floresta. Tristão e Isolda ficaram sozinhos com Périnis, o lacaio irlandês que dormia ao pé do leito real. Tristão julgou o momento favorável para se aproximar de Isolda, mas achou um hábil subterfúgio para desmanchar o ardil de Frocin: lentamente, ergueu-se na cama, juntou os calcanhares e, com um brusco impulso, saltou a pés juntos para a cama do rei. O seu ardor juvenil faz-lhe esquecer que um javali lhe abrira a coxa com as presas, no recurso de uma caçada, dois dias antes. O esforço que faz para saltar reabre a ferida mal fechada e o sangue jorra nos lençóis da rainha. Todo entregue ao prazer, Tristão não sente a dor.

Lá fora, nesse mesmo instante, observando a face da Lua, o anão sabe, pela sua arte de sortilégio, que os amantes se unem na carne. Exulta de alegria e, correndo para Marcos, diz-lhe: “Vai agora e, se não os surpreenderes juntos, manda-me enforcar!” O rei entra imediatamente no quarto seguido pelo anão e pelos quatro traidores. Mas Tristão ouviu-os; com novo impulso, arremessa-se, salta e cai na cama. Gotas de sangue salpicam aqui e ali o chão coberto de farinha-flor; os lençóis de Tristão também estão vermelhos. A toda a pressa, o rei manda acender as velas e olha em redor. Fica desapontado, pois não vê pegadas na farinha-flor e os dois amantes parecem dormir sossegadamente, cada um em sua cama. Então o anão mostra ao rei as manchas de sangue nos dois leitos e as gotas vermelhas na farinha-flor. O rei diz a Tristão: “Eis indícios irrefutáveis: o teu crime está provado, não servirá de nada defenderes-te. Em verdade, Tristão, nunca em toda a minha vida senti tal furor, pois nunca fui ultrajado nem metido a ridículo como tu acabas de fazer! Que comédia não me representastes, a rainha e tu, sob os ramos do pinheiro grande! Mas o castigo de ambos será proporcional ao vosso crime.”

Desta vez os amantes foram apanhados em flagrante. Os barões, superando a covardia, atiram-se sobre Tristão sem nenhum cuidado com a ferida e atam-no fortemente com cordas. Se o bravo tivesse a espada, estes covardes não teriam ousado levantar a mão para ele, mas tinham-no desarmado, à sua mercê! “Querido tio—falou Tristão—, as aparências condenam-nos e nenhuma denegação serviria. Todavia, não há homem em tua casa que, se ousasse sustentar a mentira de que amo loucamente a rainha, não me encontrasse logo pronto a defrontá-lo em campo fechado. Ponho confiança em Deus e estou certo de que, se me permitisses defender-me em combate singular, nenhum guerreiro se encontraria que pegasse em armas contra mim. Mas pelo Deus que sofreu a Paixão, imploro a tua clemência, não para mim, mas unicamente para Isolda, pois não falhou. Sire, não te vingues nela!” Ao dizer, estas palavras, voltou-se para a rainha e inclinou-se profundamente. “Não há piedade!”—gritaram os traidores. “Sire — continuou Tristão —, podes ordenar a minha morte: sem a ter merecido, não a temo no entanto . Mas em nome do Pai da misericórdia, peço-te, poupa Isolda!” Marcos, branco de cólera, voltou a cabeça e não se dignou responder. Os barões apoderaram- se da rainha e amarraram tão rudemente os seus delicados membros que a carne ficou toda pisada. Em seguida, fecharam os amantes num reduto cujas saídas mandaram guardar durante o resto da noite. A partir desse instante, Marcos estava bem resolvido a castigar os culpados sem outra forma de processo: jurou que, no dia seguinte de manhã, os mandaria consumir a ambos no fogo e que as cinzas, seriam espalhadas ao vento, como era uso para os traidores.

XVII

O SALTO DA CAPELA

 

O BOATO de que o rei surpreendera juntos Tristão e a rainha graças aos sortilégios do anão Frocin corre e espalha-se por toda a cidade: Marcos, na sua cólera, resolveu condená-los à morte sem julgamento. Choram grandes e pequenos. Não há ninguém, entre o povo, que se não apiede da sorte dos amantes nem deseje o Inferno para o anão, causa de todo o mal. “Ah! — diziam — temos boas razões para chorar e nos afligir! Como pode o rei enviar para o suplicio o bravo que sozinho ousou combater o Morbolt e nos libertou da servidão? Não admitiremos que o seu corpo seja destruído. Ah, rainha nobre e honrada, haverá alguma terra onde se tenha visto nascer uma filha de rei com o teu valor? Ah, anão maldito, oxalá a tua feitiçaria não conduza à sua perda! Levantemo-nos contra tal iniqüidade: vamos ter com o rei, ele tem de nos ouvir!” E eis o povo que, em grande tumulto, se junta diante do palácio para implorar o perdão dos dois cativos As lamúrias e os gritos redobram, mas tal é o furor do rei que nenhum barão ousa arriscar uma única palavra para aplacá-lo.

A noite chegava ao fim. Já à aurora iluminava a cidade e os campos. Marcos, que não pudera dormir, de tal modo o seu coração estava atormentado, levantou-se cedo e cavalgou com os fiéis até uma vasta planície, a alguma distancia das muralhas da cidade. Ordenou que cavassem uma vala profunda e aí deitassem um monte de sarmento de vinha e moitas de espinheiros-alvares e acácias-da-europa arrancadas com as raízes. A primeira hora, convocou ao som da trombeta os vassalos da Cornualha, que chegaram por caminhos e atalhos, em grande pressa. Quando já se encontravam reunidos na planície, o rei dirigiu-lhes a palavra: “Senhores, a minha mulher e o meu sobrinho são acusados de traição para comigo. Seguindo a lei do país, pagarão esse crime com a vida e, por minha vontade, os seus corpos serão reduzidos a cinzas na pira.”

Ao som destas palavras, um longo clamor elevou-se da multidão: “Sire, piedade para Tristão! Piedade para Isolda! Não foram julgados: concedei-lhes uma prorrogação para ouvir a sua defesa! Seria um grande pecado condená-los à morte sem julgamento.” Mas nada conseguia acalmar a cólera de Marcos. “Em nome d’Aquele que criou o Céu, a Terra e o Inferno — exclamou —, ainda que com isso perdesse o meu reino, nada me poderá desviar do meu desígnio! Declaro-vos: se mais alguém ousar requerer um julgamento para eles, esse será o primeiro a arder neste braseiro.” Ordena que acendam o fogo e que vão primeiro buscar Tristão à prisão: ele deve ser queimado em primeiro lugar. Os espinheiros começam a flamejar e a crepitar, todos se calam, o rei aguarda ansioso. Os lacaios correm até ao quarto onde os amantes estão estreitamente guardados. Arrastam Tristão com as mãos atadas. Quando a rainha vê partir o amado, chora e sente grande dor. “É uma grande vergonha—diz—ver Tristão todo amarrado e tratado como um devasso! Doce amigo, daria de bom grado a minha vida para salvar a tua: saberias vingar-me em seguida.”

Escutai, senhores, como Deus, que nos julgará a todos, teve piedade dos amantes: os lamentos que deixaram Marcos insensível, ouviu-os Ele e tomou em conta as preces da multidão por aqueles que iam suplicar. No caminho que ia do castelo à planície onde a pira estava armada elevava-se, por cima do oceano, uma colina escarpada onde se situava uma capela, batida pelo vento norte. Se um esquilo saltasse do alto do rochedo, não conseguiria salvar- se, morreria imediatamente. A abside da capela, construída no rés da falésia, era furada por um único vão guarnecido com um vitral em tons purpúreos, que um santo, outrora, executara com as suas próprias mãos. Quando Tristão e os guardas passaram diante da capela, viram, pela porta entreaberta, que a nave estava cheia de gente que rezava ao santo pela salvação dos condenados. Então Tristão pediu aos que o levavam: “Senhores, deixai-me entrar nesta capela: já não me resta muito tempo para viver e gostaria de pedir a Deus que me concedesse a remissão dos meus pecados. Que receais? Esta porta é a única por onde se pode entrar e sair: tenho mesmo de passar por aqui e vós estais armados com sólidas espadas. Desprendei-me por um instante, pois não convém que um homem, amarrado como estou, entre para rezar num lugar santo.” Os guardas estavam indecisos e interrogavam-se um ao outro sobre o que deviam fazer: “Ele tem razão — disse um deles. — Que arriscamos? Podemos soltá-lo um instante e deixá-lo ir: como poderia escapar-nos, uma vez que não há outra saída além desta?” Os guardas desamarram-no e deixam-no entrar. Tristão transpõe a soleira sem se apressar; depois, com um passo rápido, atravessa a nave por entre os fiéis prosternados, avança para o coro até atrás do altar e salta para a janela do belo vitral. Abre-a e, com um brusco impulso, atira-se no vácuo. Mais valia correr o risco de partir os ossos contra a falésia do que ser ignominiosamente queimado sob os olhares de todos! Senhores, havia ao rés da falésia, mesmo embaixo da janela, uma larga mesa de pedra: Tristão aterrou sem se magoar nesse patamar, pois, por vontade de Deus que o protegia, o vento engolfara-se nas roupas e amortecera-lhe a queda. Ainda hoje, as pessoas da Cornualha mostram este patamar e chamam-lhe “O salto de Tristão”. Da mesa de pedra, Tristão pulou para a areia e correu a toda a velocidade pela charneca, na direção da floresta. Vários dos que estavam a rezar na capela vieram à janela e gritaram que era milagre, vendo Tristão são e salvo fugindo à beira-mar.

Enquanto Tristão se volta um instante e vê subir ao longe o fumo da fogueira, as testemunhas da sua evasão espalham-se pela cidade, de tal modo que em breve a notícia é conhecida de todos. O fiel Gorvenal acorre imediatamente à rédea solta e, levando também o cavalo de Tristão, junta-se-lhe na charneca: “Amigo, trago-te a espada, o lorigão, o elmo e o cavalo: Deus concedeu-te a liberdade, ser-te-á necessário combater duramente para conservá-la.” Tristão, sem dizer palavra, endossou o lorigão, enfiou o elmo, cingiu a espada e saltou para a sela do cavalo que Gorvenal lhe trazia. Apenas armado, Tristão quis logo arremessar-se contra a pira, cuja crepitação chegava até ele. “Deus concedeu-me a liberdade — disse —, mas de que me serve, se estou separado de Isolda? Antes me tivesse esmagado contra a pedra ao saltar da capela! Isolda, Isolda, minha doce amante, estou livre, mas tu vais ser queimada!”

Gorvenal agarra-lhe no braço e segura-o: “Filho, não nos apressemos, aguardemos o momento propício. O furor do rei é extremo e os burgueses estão aterrorizados. Os que mais te amam, se ele Lhes mandar baterem-te, não ousarão desobedecer, pois, como se costuma dizer, cada um se ama mais que ao próximo. Assim, deixar-te-ás apanhar e matar em vão, sem proveito para Isolda.” Tristão abanou a cabeça e pareceu resignar-se. “Que me aconselhas?” “Vês ali embaixo aquele espesso bosque, cercado por fossos? Escondamo-nos lá e ouviremos sem ser vistos o que dizem as pessoas que passam pela estrada. Por eles saberemos o que acontecerá a Isolda e poderemos, no momento mais favorável, quando a emoção da multidão atingir o auge, surgir bruscamente a galope e raptá-la, se Deus nos ajudar, à viva força.” “Embosquemo- nos então!”

Ora, quando Tristão saltara da capela ao pé da falésia, um pobre homem que passava por ali vira-o levantar-se e fugir. Correu ao castelo do rei e chegou ao cárcere da rainha. E antes que os guardas o pudessem afastar gritou-lhe: “Rainha, não chores mais! O teu amado fugiu.” “Deus seja louvado — disse Isolda.

Agora, que os traidores me amarrem ou desamarrem, que me poupem ou me matem, não me importa já! Uma vez que Tristão está livre, sei que os traidores e o anão, seu maldito servidor, terão em breve a recompensa devida! Agora, não chorarei mais.”

XVIII

ISOLDA ABANDONADA AOS LEPROSOS

 

QUANDO o rei Marcos soube que o sobrinho fugira saltando pelo vitral da capela, o seu furar ainda aumentou mais: ficou branco de cólera. Ordenou que sua mulher fosse trazida sem demora para ser queimada publicamente na pira. Quando ela apareceu, cercada de guardas, pálida e desfigurada, os punhos ensangüentados pelos nós que os estreitam, gritos indignados elevaram-se da multidão.

Dinas, o bom senhor de Lidan, que era amigo de Tristão, lançou-se aos pés do rei: “Sire, suplico-te, ouve-me! Servi-te durante muito tempo com toda a lealdade, sem disso tirar algum proveito: durante todo o tempo em que desempenhei junto de ti as funções de senescal, não há um homem pobre, um órfão ou uma mulher velha a quem tenha exigido injustamente um único denário. Em recompensa, concede-me o perdão da rainha. Queres queimá-la sem julgamento: seria cometer uma perversidade e agir contra o direito e os costumes, pois ela não reconhece o crime de que a acusas. Pensa que, se queimares o seu corpo, nenhum dos teus barões estará mais em segurança em todo o reino. Tristão escapou-se, conhece bem as planícies, os bosques, os vaus, as passagens; como a sua ousadia é sem igual, matará, se os conseguir surpreender, todos os teus homens que considerar responsáveis pelo suplicio da rainha. Por certo que te poupará a ti porque és seu tio, mas mais ninguém além de ti poderá responder pela vida. O teu reino será posto a ferro e fogo, pois não deixará por vingar a filha de rei que trouxe para ti da sua distante ilha.”

Guenelon, Gondoïne e Denoalen escutavam as palavras de Dinas e tremiam de medo ao nome de Tristão. O senescal prosseguiu: “Sire, servi-te toda a vida sem nada pedir em troca. Solicito hoje uma recompensa: confia-me a rainha Isolda e coloca-a sob a minha salvaguarda até ao dia que fixarás para o julgamento. Prometo conduzi-la no dia marcado perante a tua corte.”

O rei pegou na mão de Dinas e levantou-o. Mas, longe de satisfazer o seu pedido, jurou em voz alta: “Pelo apóstolo São Tomás, pronta e inflexível justiça será feita e por nada deste mundo admitirei perdão ou demora!” Dinas inclinou-se diante de Marcos. “Rei — disse —, se é assim, regresso ao meu castelo de Lidan, pois nem por todo o ouro do mundo assistiria ao suplicio da rainha!” Saltou para o corcel e afastou-se, triste e sombrio, a cabeça baixa.

Isolda mantém-se em pé diante das chamas. As lágrimas deslizam- lhe pela face. Traz um vestido de seda cinzenta; os cabelos, em longas tranças, caem-lhe até aos pés. Meu Deus!, como os seus braços estão estreitamente ligados! Quem a poderia ver tão bela sem se apiedar? O povo, em redor, amaldiçoa o rei, amaldiçoa os traidores. Encontrava-se no meio da multidão um bando de cerca de cem leprosos que tinham vindo de Lancien, onde havia o leprosário. Cada um mais hediondo que o outro, agitavam as matracas de madeira e coxeavam nas muletas, empurrando-se e acotovelando-se para melhor gozarem o espetáculo. A carne era esbranquiçada e corroída; sob as pálpebras inchadas, os olhos sanguinolentos estavam dilatados pela espera. O mais disforme de todos era o chefe do bando, e chamava-se Ivã. Com uma voz rouca, gritou ao rei: “Sire, porque a tua mulher te enganou e ridicularizou, queres destruir-lhe o corpo nesse braseiro. Concordo que é justiça boa e direita, mas será demasiado breve! Este grande fogo cedo a queimará e o vento não tardará a espalhar as cinzas. Quando a chama da pira dentro em breve cair e se apagar, o seu sofrimento terá acabado. Queres que te ensine um castigo pior, cem vezes mais longo e cruel, de modo que ela continue a viver, mas uma vida tão miserável e atroz que será pior que a morte? Assim a rainha lamentará todo o resto da vida não ter perecido nesta fogueira; e tu serás ainda mais respeitado.” “Por Deus, aceitarei deixar-lhe a vida, com a condição de lhe ser doravante mais dura que a morte! Aquele que me indicar um suplício tão cruel como dizes e do qual ninguém ainda ouviu falar, ficarei grato e recompensá-lo-ei largamente. Fala, pois, se o conheces.” “Rei — respondeu Ivã —, ficarás satisfeito quando me ouvires. Vê estes companheiros que me cercam, com os membros disformes e a face corroída pela lepra. Entrega-lhes Isolda, ser-nos-á comum e terá de se submeter a todas as nossas vontades. Viverá dia e noite nas nossas cabanas, comerá conosco das tigelas, dormirá nos nossos catres e sofrerá o contato das nossas carnes corrompidas. Há em nós um tão grande ardor, pois o mal atiça-nos o desejo, que não existe mulher no mundo que consiga suportar as nossas relações carnais. Ao pé de ti, vivia à larga, rica e honrada, adornada com jóias e vestidos guarnecidos com peles de esquilo. Quando vir as nossas cabanas de teto baixo, quando tiver de nos servir, partilhar a nossa cama, a orgulhosa Isolda lamentará então a sua falta e até as chamas da fogueira.”

O rei refletiu um instante no que dissera o leproso, depois levantou-se do trono e agarrou Isolda pelo braço para lha dar. “Piedade! Piedade, senhor! — implorou a infeliz. — De preferência a entregar-me a essa gente, atirai-me antes sem demora para a pira!”

Mas Marcos, impassível, entregou-a a Ivã, que, cheio de uma diabólica alegria, apoderou-se dela sem perda de tempo e arrastou- a para longe do braseiro, seguido por todos os companheiros.

O grupo esfarrapado cercava a infortunada soltando gritos penetrantes: quem primeiro se aproximaria dela e lhe tocaria com a mão? Já debatiam ruidosamente qual deles a possuiria primeiro e em que ordem cada um a fruiria. O sinistro cortejo entrou pela estrada de Lancien e aproximou-se do pequeno bosque onde Tristão estava emboscado com Gorvenal. Quando o escudeiro viu avançar aquela turba estridente e avistou a rainha entre eles, encheu-se de horror: “Filho—diz a Tristão—, olha para ali, na estrada; vê Isolda no meio de um bando de leprosos: arrastam-na à força. Será possível que o rei Marcos a tenha abandonado a eles?”

Tristão esporeou o cavalo e saltou para a estrada; lançou-se, de espada em riste, sobre Ivã: “Devasso — disse-lhe —, basta! Larga essa mulher ou faço-te voar a cabeça com um golpe da minha espada.” Mas Ivã desaperta o casaco: “Vamos, companheiros!, aos bastões!, às muletas! É altura de dardes tudo por tudo!”

Era digno de ver os leprosos atirarem as capas de burel esburacadas e remendadas, firmarem-se nos pés mal seguros, resfolegarem, gritarem, brandirem as muletas. Tristão não teve necessidade de bater-se com tal corja. Gorvenal cortara, num maciço, um forte ramo de carvalho: assentou com ele tal golpe no crânio de Ivã que o sangue negro jorrou em abundância. O miserável caiu ao solo e os companheiros dispersaram-se aos berros.

Tristão apressou-se a desamarrar Isolda. Depois, sem perder um instante, içou-a para a garupa do cavalo e, seguido por Gorvenal, refugiou-se nas profundezas da floresta de Morois. Isolda, nos braços de Tristão, depressa esqueceu os perigos daquele dia; de boa vontade se teriam demorado, mas o prudente Gorvenal não quis fazer nenhuma paragem antes do cair da noite. Para melhor escaparem às perseguições, refugiaram-se no cimo de uma colina arborizada e repousaram. Isolda pousou a cabeça no peito do amado e adormeceu.

 

 

XIX

OS AMANTES NA FLORESTA

 

EI-LOS na floresta de Morois; Isolda esqueceu todos os seus pesares. Para subsistir nesta solidão, longe de qualquer habitação humana, não têm outro recurso além da caça. Havia em Tristão um maravilhoso arqueiro, mas não podia exercer a sua perícia, pois faltavam-lhe o arco e as flechas. Gorvenal procurou tanto nos matagais que encontrou a cabana de um florestal e roubou-lhe um arco de alburno e duas flechas bem emplumadas e afiadas. Então Tristão põe-se a trabalhar e a espreitar toda a espécie de caça. Vai-se pelos bosques, vê um cabrito-montês, ajusta a flecha e atira: o animal é ferido na ilharga, dá um salto e abate-se. Tristão carrega-o aos ombros e volta para junto de Isolda. Enquanto um fogo de madeira seca flameja, começa a construir uma cabana. Com a espada, corta e talha os ramos e junca o solo com várias camadas de folhas. Isolda ajuda-o neste trabalho; em seguida, neste fresco tapete de verdura, Tristão senta-se singelamente com a rainha. Gorvenal, diante da choupana de ramadas, leva achas ao braseiro e assa uma peça de caça à volta de um ramo de aveleira. Assim sustentam a vida, mas o sal, o pão e o leite fazem-lhes muita falta. A rainha sente-se subitamente cansada de todas as provações que atravessou; o sono apodera-se dela e adormece, a cabeça apoiada no braço de Tristão. Viveram assim muito tempo, com duro frio, sol ardente, chuva e vento, na profunda floresta.

Tristão deixara em Tintagel um belo cão de corrida, ligeiro e vivo, que atendia pelo nome de Husdent. O rei mandara-o fechar numa sala do torreão, mas ele não queria comer nem pão, nem papa, nada do que lhe davam; latia e raspava com a pata, os olhos lacrimejantes, de tal modo que as pessoas se apiedaram: “Pobre Husdent! Nunca mais encontraremos um cão de caça como este, tão vivo e que manifeste tal dor pelo dono! Salomão disse com justa razão que o seu amigo era o galgo: temos a prova em ti, pois não queres tocar em comida desde que o teu dono desapareceu!” “Creio que ele enlanguesce por causa do dono” — disse Marcos. Vendo que o rei estava comovido, um dos fiéis disse-lhe: “Sire, mandai-o soltar, senão enraivece e era uma pena num animal tão belo e fiel. Quando estiver em liberdade, veremos se é pelo dono que geme.”

Marcos aceitou este conselho e mandou um escudeiro desprender o cão. Todos os assistentes se foram instalar em bancos ou assentos elevados, pois queriam evitar as mordeduras do cão, no caso de estar raivoso. Mas Husdent não tinha a menor intenção de lhes fazer mal: apenas se sentiu solto, desatou a correr em todos os sentidos e não perdeu mais tempo. Transpôs a porta da sala e dirigiu-se para a habitação onde costumava encontrar Tristão. O rei e os outros seguem-no. Não encontrando o dono, o cão gane, late muitas vezes e manifesta uma grande dor; dá várias voltas farejando o chão e encontra o rasto de Tristão. De todos os passos que o bravo fizera quando foi preso e devia ser queimado não há um único que o cão não faça. O faro condu-lo à masmorra onde Tristão foi encarcerado e depois à capela donde saltou para a falésia. Ai, Husdent salta para o altar ladrando e atira-se pelo vitral como o dono fizera. Magoou-se na perna ao cair no patamar, mas não pára; segue a pista pelo areal e só se detém na orla florida do bosque onde Tristão se emboscara; em seguida, entranha-se no matagal sob as grandes árvores. Os barões dizem ao rei: “Deixemo-lo agora, pois poderia conduzir-nos a locais secretos donde seria difícil regressar.”

Husdent corre sob a ramagem e esta ecoa tão fortemente os seus latidos que o barulho chega aos ouvidos de Tristão. O bravo levanta-se e grita a Gorvenal: “Escuta, é Husdent que vem ai! Certamente que o rei vem com ele!” Tristão pega no arco e estica- o. Mas o cão desemboca sozinho das moitas; imaginem as caricias que fez a Tristão: abana a cabeça, agita a cauda, lambe-lhe as mãos e rola a seus pés — para todos uma grande satisfação. Do dono, voa até Isolda, depois para Gorvenal e mesmo para os dois cavalos. Mas sempre, em Morois, à alegria se mistura a inquietação: “Ah, Deus—diz Tristão—, por que infelicidade me soube Husdent encontrar? Que fazer neste bosque de um cão tão barulhento? Os seus latidos trair-nos-ão e a gente do rei prendernos-á. Mais vale matá-lo antes que os seus latidos nos descubram. Fará a nossa infelicidade… Mas no entanto não o posso matar pela sua demasiada fidelidade!” Isolda segura Husdent e mantém-no ao pés de si: “Piedade para ele!—pede.—Se o cão ladra ao perseguir a caça, é tanto por adestramento como por natureza. Ouvi outrora dizer que um florestal galês possuía um galgo: ensinara-o tão bem que seguia o veado magoado a saltar, mas sem nunca ladrar nem fazer barulho. Amigo Tristão, seria uma grande alegria se conseguíssemos, à custa de algum esforço, que Husdent abandonasse o latido.” Tristão ficou imóvel e refletiu; apiedou- se do animal e disse: “Bela, falaste verdade: gastarei a minha aplicação e paciência a fazê-lo agarrar a caça sem latir.”

Tristão vai caçar ao arco na floresta. Era hábil; atira uma flecha a um gamo: o sangue corre, o cão late, o gamo ferido foge aos saltos, Husdent ladra muito alto. Tristão bate-lhe com força. O cão pára ao pé do dono, cessa de latir, abandona a perseguição; levanta a cabeça para fitar Tristão, não sabe que fazer, não ousa latir, perde a pista. Tristão mete o cão entre as pernas, com pequenas pauladas no solo indica-lhe a pista; Husdent quer latir novamente; Tristão está disposto a instrui-lo. Antes de o primeiro mês ter acabado, o cão estava perfeitamente adestrado a caçar em silêncio: na erva, como na neve ou no gelo, nunca abandona a caça, por mais rápida e ardente que seja. Agora o cão Lhes é de grande auxilio, presta-lhes serviços sem preço. Se apanha no bosque um cabrito-montês ou um gamo, dissimula-o cuidadosamente, cobrindo-o com rama, e se o agarra no meio da charneca, amontoa erva sobre o corpo do animal, vai buscar o dono e o conduz até à presa.

Tristão viveu com Isolda dois anos na floresta; aí sofreram muitas aflições e medos. Durante os primeiros meses, não ousavam ficar nunca no mesmo lugar: onde acordavam nunca mais adormeciam. Sabiam muito bem que o rei os procurava e perseguia. O pão e o sal faziam-lhes muita falta: viviam unicamente de bagas selvagens e da carne dos animais que Tristão matava. Não é para admirar que o rosto mude de cor, que as roupas se gastem e rasguem nas silvas e espinheiros. Sofrem igualmente os dois, pois cada um sente as dores do outro. A bela Isolda tem muito medo que Tristão se arrependa; por seu lado, Tristão teme que a amante esteja ressentida contra ele e lamente a loucura cometida.

Foi assim que os fugitivos dissimularam-se e desapareceram no silêncio do bosque cerrado. Haviam-lhes perdido o rasto e os traidores nada mais podiam contra eles. Desde que Tristão vadiava livremente, sentiam a vida ameaçada. Mais uma vez o maldito anão ofereceu-se para ajudá-los, mas foi para sua infelicidade. Os barões inquietavam-se porque notavam que ele tinha com o rei conciliábulos dos quais eram excluídos. As suas perguntas inquietas, respondia com palavras dúbias, como se guardasse um segredo. Todavia, num dia em que o surpreenderam embriagado, atormentaram-no tanto que conseguiram fazê-lo falar: “Possuo — disse — um segredo que não posso trair sem perjurar em relação ao rei. Mas como sois meus amigos, não vos devo esconder nada. Sabereis tudo se me acompanhardes ao Vau Aventuroso; ai se encontra um fosso que abriga uma moita de pilriteiros. O segredo que prometi ao rei não confiar a nenhum ouvido humano, confiei-o, para melhor o enterrar, ao fosso profundo, mas ele chegou à moita de pilriteiros que domina o buraco: quando sopra o vento, o pilriteiro, ao ressoar, murmura o segredo que recolheu.”

Os barões foram até lá com Frocin, que desapareceu no buraco até aos ombros. Os outros olhavam, pasmados, e não ouviam nada. De repente, levantou-se uma brisa que sacudiu a moita de pilriteiros; o ruído das folhas levou até aos barões, com um ligeiro murmúrio, esta confidência: “O rei Marcos tem orelhas de cavalo.” Algum tempo depois, ao saírem de um festim, os barões, animados com o vinho, disseram em tom de brincadeira: “Rei, sabemos o que nos escondes.” “Que vos escondo, então?” Um dos barões aproximou-se dele e sussurrou “O rei Marcos tem orelhas de cavalo!” “Por Deus—respondeu Marcos rebentando a rir —, é verdade que tenho orelhas de cavalo! Guardei o segredo até estes últimos tempos, mas foi descoberto contra minha vontade pelos artifícios de um bruxo maldito, esse execrável anão que não sabe estar calado. Quero acabar com ele. “Mal avistou o anão, Marcos desembainhou a espada e cortou-lhe a cabeça rente à corcunda: muitas pessoas se regozijaram com isso por causa do mal que causara a Tristão e a Isolda — os amantes tinham um inimigo a menos.

 

XX

O IMPOSSÍVEL ARREPENDIMENTO

 

FOI-SE o verão, chegou o inverno. Os amantes viviam escondidos na cavidade de um rochedo e, por vezes, no solo endurecido pelo gelo, o frio polvilhava de geada o leito de folhas secas. Pelo poder do seu amor, nem um nem outro sentiam a miséria. Mas quando voltou o tempo claro, ergueram sob as grandes árvores a cabana de ramos reverdecidos. Tristão conhecia, desde a infância, a arte de imitar o canto dos pássaros dos bosques; imitava perfeitamente o verdelhão, o chapim, o rouxinol e toda a raça alada. Por vezes, nos ramos da cabana, vindos ao seu apelo, numerosos pássaros, de pescoço dilatado, cantavam os seus lais à luz do dia. Os amantes já não fugiam pela floresta, errando sem cessar, pois nenhum barão se arriscava a persegui-los Um dia. todavia, um dos quatro traidores, que Deus o amaldiçoe, arrastado pelo ardor da caça, ousou aventurar-se nas paragens de Morois: era Guenelon, rico homem e de grande fama, amante de fazer correr a matilha.

Nesse dia. Gorvenal estava à beira de um rio, perto da nascente. Tirara a sela ao cavalo para deixá-lo pastar a erva nova. Subitamente, de um pequeno bosque vizinho, surgiram cães que caçavam a grande velocidade: era a matilha de Guenelon que passava. Gorvenal pôs à pressa a sela no cavalo, emboscou-se perto da senda e viu acorrer a galope aquele que mais odiava o seu senhor, sozinho e sem escudeiro. O malvado barão esporeava tanto O cavalo e tantas vezes lhe batia com o punho no pescoço que o animal embicou num rochedo e caiu. Gorvenal, encostado a uma árvore, espiava aquele que chegara tão depressa e nunca mais voltaria — o destino não tem retorno. Os cães perseguem o veado, os lacaios vão atrás dos cães e o senhor desata aos palavrões, irritado com a queda que o atrasou. Quando passa à altura de Gorvenal, o fiel servidor sai do abrigo, rememora todo o mal que Guenelon fez ao seu senhor e, com um golpe de espada, corta-lhe a cabeça. Em seguida, pega nela, prende-a à sela do cavalo e regressa ao refúgio de Tristão.

O bravo repousava na cabana, depois das andanças da noite. Dormia na juncada, estreitando contra si a rainha, por quem sentia tanta aflição e confusão. Que alegria não será a sua, quando souber que aquele que desejava tão ardentemente matá-lo perdeu a vida! Gorvenal chega diante da choupana de folhagem, segurando pelos cabelos a cabeça do traidor, suspende-a na alta forquilha erguida no centro da cabana, o rosto voltado para o chão. Tristão acorda com o barulho, olha para cima e avista na sombra o rosto do inimigo, cujos olhos parecem fixá-lo; pega na espada que pousara ao pé de si e levanta-se de um salto. O escudeiro diz-lhe então em voz alta e forte: “Não te mexas, podes dormir tranqüilo. Mesmo a cabeça de Guenelon, mas já a cortei: já te fizera bastante mal!” Tristão fica muito contente com o que ouve; aquele que mais temia morreu. Espalha-se pela Cornualha a nova de que os monteiros de Guenelon, tendo voltado atrás, encontraram o seu senhor decapitado: todos estão aterrados, ninguém mais ousa ir caçar na floresta.

Para escapar mais seguramente aos grandes perigos que corriam, Tristão fez um arco de madeira robusta e flexível e ajustou-o tão habilmente que nunca errava, e matava tudo o que visava; por isso chamou-o “o arco que não falha”. No dia em que se muniu desta arma, arriscou-se a fazer incursões em locais mais afastados do refúgio. Uma bela manhã em que os amantes percorriam os grandes bosques em busca de ervas e raízes, chegaram por acaso ao oratório de um velho eremita chamado irmão Ogrin. Ao sol, debaixo de um bosquezinho de áceres, perto da capela, o santo homem, apoiado no bastão, caminhava em passos miudinhos. “Senhor Tristão — exclamou —, não sabeis que o rei mandou proclamar um pregão por todas as paróquias do reino? Quem quer que se apodere de vós, por força ou astúcia, e vos entregar receberá cem denários de ouro fino como recompensa, e todos os barões juraram entregar-vos, morto ou vivo. Arrependei-vos, Tristão, pois Deus perdoa sempre ao pecador que se arrepende.” “Arrepender-me, senhor Ogrin? E de que crime? Vós, que nos julgais com tanta segurança, sabeis ao menos que filtro mágico, que vinho ervoso bebemos ambos no mar? Sim, o licor encantado embriaga-nos e eu prefiro errar toda a vida nestes lugares selvagens com Isolda e viver de ervas e raízes a possuir, sem ela, todos os tesouros do rei Otran.” “Senhor Tristão, Deus vos ajude, pois perdestes este mundo e o outro. Nada vos salvará da maldição que pesa sobre vós. Aquele que trai o seu senhor é esquartejado por dois cavalos, queimado na pira e onde a sua cinza cai não nasce mais erva e a lavra é inútil; ai, as árvores e a verdura murcham. Tristão, conjuro-vos, pela salvação da vossa alma, entregai a rainha àquele com quem casou segundo a lei de Roma.” “Irmão Ogrin, sabei que já não lhe pertence, pois ele abandonou-a vergonhosamente e entregou-a ao bando de leprosos; foi aos leprosos que a conquistei. Doravante, é minha; não me posso separar dela, nem ela de mim.”

 

Nessa noite, o eremita acolheu os dois amantes debaixo do seu teto; por caridade, violou uma vez a sua regra de vida, que lhe proibia receber qualquer mulher. De manhãzinha, levantaram-se; o eremita rezou por eles e abençoou-os. Isolda chorava, prosternada aos pés do homem que sofre por Deus. O eremita, para convencê-la, citava-lhe palavras do Livro Santo; mas ela, desfeita em lagrimas, abanava a cabeça e recusava-se a acreditar: “Irmão — dizia —, só amo Tristão e ele só me ama pela força da bebida mágica que ambos tomamos por engano e que nos obriga a amarmo-nos. Está fora do nosso poder renunciar a este amor.” “Meu Deus! — exclama Ogrin. — Que reconforto se pode dar a mortos? Arrependei-vos, pois aquele que vive em pecado sem arrependimento é um morto.” “Não — continuou Tristão com força —, não sou um morto, pois vivo e não me arrependo. Irmão Ogrin, vamos voltar para a floresta que nos protege e guarda. Vem, Isolda, meu amor!” Isolda levantou-se; deram-se as mãos e, quando entraram nas altas ervas e na urze, as árvores fecharam sobre eles a folhagem.

XXI

A CLEMENCIA DO REI MARCOS

 

DOIS ANOS haviam passado desde que os amantes se refugiaram com Gorvenal na floresta de Morois: já ai haviam habitado dois verões e dois invernos e viam chegar a estação quente pela terceira vez. No fundo dos bosques, longe de qualquer local habitado, Tristão e sua amada viviam como animais acossados. Além de frutas selvagens, ervas e raízes, só comiam a carne dos animais mortos na caça; fazia-lhes falta o sabor do sal. Na cabana de folhagem onde voltavam sempre depois das caminhadas, o pobre mobiliário não passava de alguns vasos de barro que Gorvenal trocara com florestais por peças de caça. Iam buscar a água a uma fonte bastante próxima, que Tristão descobrira entre as silvas, no decurso de uma caçada. Sempre fiel e laborioso, Gorvenal entrançara alguns cestos de junco e os fugitivos empregavam-nos na colheita das frutas e bagas que tinham de procurar durante horas debaixo das grandes árvores e ao longo das veredas. Isolda ficava sozinha todo o dia. enquanto os dois homens iam à caça ou à procura de um alimento frugal. A rainha depressa renovava a juncada debaixo da choupana de ramagem: o resto do tempo, ficava solitária, à espera do regresso do amante. Tão áspera e dura era a vida dos desterrados que a sua magreza era extrema e os corpos haviam enfraquecido: quanto mais o tempo passava, mais esta vida de indigência e provação lhes pesava e mais prontos estavam a sentir a fadiga. As roupas, que não cessaram de trazer durante tantos meses, estavam gastas e caiam aos farrapos, a tal ponto rasgadas pelas silvas que os três companheiros a custo se defendiam contra as intempéries e a frescura das noites. Só a força do sortilégio impedia os amantes de se apiedarem da sua sorte e lamentarem a sua existência passada.

Era pouco depois do Pentecostes; o sol estava abrasador, e o calor opressivo desde as primeiras horas do dia. Gorvenal já partira para a caça e o cão Husdent acompanhara-o. Tristão saiu da cabana, cingiu a espada, pegou no “arco que não falha” e, sozinho, foi caçar pelos bosques. A sorte não lhe sorriu nesse dia: levantou primeiro uma corça, depois um veado e, durante horas e horas, extenuou-se a persegui-los sem nunca os ter ao alcance das flechas. Parecia-lhe que os membros emagrecidos estavam como que entorpecidos e traiam o seu ardor na perseguição da caça. Na hora em que o calor pesava mais, o bravo sentiu-se dominado pela fadiga e, pela primeira vez, renunciou a continuar a caçada. Abandonou a pista e regressou a passos lentos à choupana de folhagem onde Isolda o esperava. A rainha adormecera. O rangido seco dos raminhos sob os pés de Tristão acordou-a. Levantou-se, veio ao seu encontro e disse-lhe, os olhos ainda meio fechados pelo torpor: “Belo amigo, há tanto tempo que me deixaste!” “Encarnicei-me a perseguir uma corça, depois um veado, e não cacei nem um nem outro; morro de lassidão e só desejo estender-me e dormir.”

Mal entrou, Tristão deitou-se no chão juncado de verdes ramos e, com um gesto cheio de senso, pousou diante de si, ao longo do corpo, a espada nua que trazia na mão. Sentia tal necessidade de repouso que não se deu ao trabalho de se despir: conservou os longos calções e uma túnica curta, apertada na cintura com um cinto. Isolda estendeu-se também à sua frente, do outro lado da espada, o rosto voltado para Tristão, sem que todavia os seus lábios se aflorassem. Trazia uma túnica usada e esburacada, que vestira sobre uma longa camisa branca. O dedo estava ornado com um anel de ouro, engastado com uma esmeralda, que Marcos lhe dera no dia do casamento. Nesse dia. tivera alguma dificuldade em colocá-lo, mas hoje o dedo tornara-se tão delgado que o anel corria o risco de escorregar a cada instante. Tristão estendera os dois braços para o rosto da amiga: a mão esquerda, colocada sob a cabeça de Isolda, mergulhava na trunfa dos seus cabelos; a direita repousava na curva delicada do pescoço. Os dois corpos, embora próximos, não se tocavam e o aço frio da espada brilhava entre eles. Não tardaram a mergulhar no sono, os dois corpos estendidos frente a frente, imóveis e belos como estátuas. Pela primeira vez desde que haviam entrado na floresta de Morois, repousaram juntos sem obedecerem à força do desejo.

Lá fora, o sol estava mais ardente que nunca: nem uma aragem, nem uma folha se mexe. Aconteceu de um florestal do rei passar por ali. Debaixo de uma árvore, notou que a erva fora pisada recentemente e conservava o vestígio de dois corpos: os amantes haviam ai repousado na véspera. O homem ouvira proclamar o pregão do rei: sabia que uma grande soma de ouro seria entregue a quem descobrisse o retiro dos fugitivos. A isca do ganho levou-o a procurar o refúgio dos amantes: meteu-se pelo matagal e, seguindo na erva as pegadas, atingiu o seu novo pouso. Pela porta aberta da cabana avistou-os dormindo estendidos frente a frente no leito de folhagem, e reconheceu-os; mas o pavor apoderou-se dele ao pensar que Tristão poderia acordar e maltratá-lo. Afastou-se, recuando, na ponta dos pés e, quando chegou a uma distancia razoável, desatou a correr e transpôs as duas léguas que o separavam de Tintagel.

No salão, o rei reunia o tribunal, cercado pelos barões. O florestal subiu os degraus da escadaria e irrompeu pela sala, completamente esbaforido. Ao vê-lo, Marcos exclamou: “Que novas me trazes para entrares assim sem pedir permissão? Resfolegas como um monteiro que andou a correr atrás dos cães! Contra quem vens apresentar queixa? Fala! Expõe o teu pedido!” O florestal aproximou-se do rei e segredou-lhe ao ouvido: “Escuta-me, rei, por favor. Proclamaram por este pais que aquele que encontrasse o teu sobrinho com a rainha deveria, sob pena de morte, informar-te sem demora. Pois bem, descobri-os! Por certo, tive imenso medo quando os vi, pois as flechas de Tristão nunca falham o alvo mas temo o teu furor. Se quiseres, levo-te onde eles dormem: que eu morra se não disse a verdade!” Marcos ficou vermelho de emoção e de cólera: “Diz-me, monteiro — perguntou baixinho —, onde os encontraste?” “Numa cabana da floresta de Morois, a duas boas léguas daqui. Vi-os adormecidos um ao pé do outro. Vem sem tardar e castiga os autores da tua vergonha. Se não tiras severa vingança, não tens mais direito a governar o teu reino.” O rei disse-lhe: “Se tens amor à vida, livra-te de revelar a quem quer que seja o que acabas de me contar. Vai e espera por mim na Cruz Vermelha que se eleva ao longo do caminho à entrada do cemitério; não me demoro nada. Terás todo o ouro e toda a prata que quiseres!” O monteiro deixa o rei, vai até o lugar marcado e senta-se no pedestal.

Tendo saído o homem, o rei chama os fiéis e diz-lhes: “Acabo de saber uma coisa da qual me quero eu próprio certificar. Vou, pois, deixar-vos aqui durante uma hora ou duas. Que nenhum de vós tenha a ousadia de me seguir para ver onde vou!” Todos se fitam, boquiabertos, e vários perguntam: “Rei, falais a sério? Já alguma vez vos viram viajar sem escolta?”

Marcos, que não desejava que eles testemunhassem sua desonra, replicou: “Não recebi nenhuma notícia importante, mas uma donzela marcou-me encontro pedindo-me segredo: desejo ir lá, sem escudeiro nem companheiro, sozinho com o meu corcel.”

O rei cinge a espada, monta a cavalo e dirige-se para a Cruz Vermelha Enquanto cavalga, traz à memória a traição de Tristão e como lhe roubou a linda Isolda. Jura que, se os encontra deitados juntos, Lhes fará pagar o preço da vergonha trespassando-os com a espada. Na Cruz Vermelha, esperava-o o monteiro.

“Conduz-me o mais depressa possível à cabana onde os surpreendeste.”

Entraram na floresta. O espião ia à frente; o rei seguia-o apertando a espada na mão direita. Finalmente, o florestal murmurou: “Rei, estamos perto.”

Pegou nas rédeas do cavalo do rei, segurou no estribo enquanto ele se apeava e atou o animal ao tronco de uma macieira selvagem. Avançaram silenciosamente para a cabana florida que avistavam diante deles. Antes de entrar, o rei desapertou o casaco; tinha assim o braço livre para manejar a espada, persuadido de que logo a empregaria na vingança. Por duas vezes jurou a meia-voz: “Que eu morra se os não matar!” Ordenou ao florestal que se afastasse e o esperasse perto do cavalo, depois avançou até ao leito de folhas, a espada erguida, e observou-os um instante, imóveis a dormir. Vai matá-los? Mas eis que o braço trêmulo de cólera cai lentamente; viu que os lábios não se tocavam, que haviam conservado as roupas e que os corpos estavam separados pela espada desembainhada de Tristão, a mesma que se fendera não há muito no crânio do Morholt. “Deus — disse para consigo mesmo —, que vejo aqui? Tenho o direito de matá-los? Há dois anos que vivem juntos neste bosque; se se amassem loucamente, dormiriam vestidos? Teriam colocado entre eles esta espada nua? Os mais sábios clérigos ensinam-nos que uma espada desembainhada entre dois corpos é guardiã e garantia de castidade. Não vejo os seus lábios desunidos? Não, não os matarei; seria um grande pecado matá-los quando repousam sem defesa. E se os acordasse, quem sabe se Tristão, bruscamente tirado do sono, não dirigiria contra mim a espada? Um de nós poderia ser morto. Isso seria comentado durante muito tempo neste país e não traria honra a ninguém. Mas vou fazer de modo que, quando despertarem, saibam com toda a certeza que os descobri adormecidos nesta choupana; saberão que os poderia matar se quisesse e que me apiedei destes, concedendo- lhes o meu perdão e clemência.”

O rei sente a cólera acalmar pouco a pouco; deseja do fundo do coração reconciliar-se com a mulher e o sobrinho. Então, retira docemente do dedo emagrecido da rainha o anel de ouro, engastado com uma esmeralda, que lhe dera pelo casamento; introduz em seu lugar, sem que ela sinta, o anel com que Isolda o presenteara. “Possa ela compreender que, por esta troca de anéis, lhe guardo a minha fé e o meu amor como no primeiro dia da nossa boda!” Depois, inclinando-se de novo, ergue lentamente pelo botão do punho a espada de Tristão que jazia entre os dois corpos e coloca aí a sua.

“Querido sobrinho, pela troca que faço das nossas espadas, devolvo-te a minha confiança e amizade como no dia cm que te armei cavaleiro quando te preparavas para defrontar o Morholt.”

No momento em que saía da cabana, Marcos viu um buraco na sebe de folhas e ramos que formavam o teto; um quente raio penetrava por aquela estreita abertura e vinha iluminar o rosto da rainha, que resplandecia na penumbra.

Pegou nas luvas reais, ornadas de arminho, e dispô-las na folhagem para defendê-la do ardor do sol. “Que estas luvas, símbolo do poder real, vos sejam penhor, bela Isolda, de que vos tomo como ainda não há muito sob a minha proteção e salvaguarda!”

Uma vez longe da cabana, Marcos desamarrou o cavalo, saltou para a sela e, como o florestal se admirou por vê-lo renunciar tão facilmente à vingança, disse-lhe: “Patife! Desde quando tenho de te prestar contas? Foge para longe e salva o corpo se conseguires!” Quando Marcos regressou a Tintagel, os seus homens perguntaram-lhe onde estivera durante tanto tempo. Mentiu o melhor que pôde: ninguém soube nunca onde nem a que fora. Quanto a ele, regozijava-se secretamente de poder acreditar de novo que a mulher e o sobrinho não o enganavam; agradava-lhe, para melhor se convencer da sua inocência, tomar as aparências pela realidade e um símbolo por uma prova. A sua natureza levava-o a preferir o perdão e apaziguamento à dureza e à violência.

Entretanto os amantes continuavam a dormir e Isolda sonhava. Parecia-lhe estar numa grande floresta, debaixo de um rico pavilhão; leões esfomeados precipitavam-se sobre ela, mas, no último momento, em vez de a devorarem, cada um deles colocava a pata direita sobre a cabeça da rainha como que para tomarem posse da sua pessoa. Isolda solta um grito de pavor e acorda; com os movimentos que faz, as luvas ornadas de arminho caem-lhe no peito. Tristão ouve o grito, ergue-se bruscamente e quer pegar na espada: vê então estupefato que a lâmina não está fendida e, pelo botão do punho em ouro cinzelado, reconhece a espada do rei. No mesmo instante, a rainha nota no dedo o anel que Marcos aí introduzira. Empalidece e exclama: “Que Deus nos ajude! O rei descobriu-nos! Vê, meu querido, retirou o anel do meu dedo e pôs o dele em seu lugar!” Tristão replica: “Levou a minha espada e deixou-me a sua; sem dúvida que me quis dar a conhecer que estive à sua mercê enquanto dormia. Quis dar a entender que estamos em seu poder e à sua discrição; por isso depôs as luvas na folhagem da cabana.”

Entrementes, Gorvenal entrou na cabana e, vendo-os tão pálidos e desamparados, inquietou-se: “Que tendes? Que vos atormenta?” “O rei encontrou-nos aqui enquanto dormíamos. Poupou-nos, não sei por que, mas deixou a sua espada em lugar da minha e meteu o seu anel no dedo da rainha; além disso, colocou as luvas ornadas de arminho na folhagem da cabana. Que quer isto dizer, que devemos pensar? É agora mais do que nunca que temos necessidade dos teus conselhos e da tua sabedoria.

Gorvenal respondeu: “Temo que, por meio de trocas singulares, o rei tenha procurado iludir-vos. Quem sabe se não quis sossegar-vos com uma fingida benevolência, enquanto ia a toda a pressa reunir os homens de armas para melhor vos apanhar? Na minha opinião, não tendes outro recurso senão a fuga. Não tenho melhor conselho a dar-vos. Na dúvida em que estais das verdadeiras intenções do rei, o melhor é pôr uma grande distancia entre ele e vós. Depois será o momento de refletir no que vos convém fazer.”

Os amantes, com Gorvenal, dirigem-se por sendas perdidas para a terra de Gales, nos extremos confins da floresta de Morois. O medo traça-lhes longas etapas sem repouso nem sono. Quantas torturas o Amor não Lhes causou!

XXII

O FIM DO SORTILEGIO

 

A VIRTUDE do filtro só devia durar três anos; assim o quisera a mãe de Isolda quando o preparou. O termo chegou como estava fixado: foi alguns dias depois de o rei Marcos ter surpreendido os amantes adormecidos na cabana de folhagem. Nesse dia. Tristão levantara-se de manhãzinha, sem acordar Isolda. Partiu para a caça como habitualmente, mas a tarde caiu sem que tivesse abatido sequer um animal. Em pé debaixo de um carvalho, no flanco de um outeiro, surpreendeu-se a pensar com o olhar voltado para longe, para o pais de Gales. Ao cair da noite, acenderam-se fogos a distância, uns após outros, no cimo das colinas: os galeses festejavam o São João. Fora nesse mesmo dia. o mais longo do ano, que, três anos atrás, na nau que o trazia da Irlanda com Isolda, haviam bebido a fatal beberagem. Então, sentiu-se bruscamente liberto da ação do sortilégio e novos pensares lhe vieram ao espírito:

“Não, não foi por medo nem por manha que o rei nos poupou. Apoderara-se da minha espada, eu dormia, estava à sua mercê: podia ter-me eliminado, para que reforços? E se me quisesse apanhar vivo, por que, tendo-me desarmado, me teria deixado a sua própria espada? Ah, reconheço-te nisso, querido tio: não por manha, mas sim por piedade nos quiseste perdoar. Perdoar-nos? Não, não tens nada a perdoar, entreviste confusamente a verdade. Adivinhaste que nunca tive vontade de te ofender: estava dominado por uma força da qual não era senhor. Lembraste-te que, desde que me havias condenado à fogueira, eu não reconhecera o meu erro, mas inutilmente reclamara julgamento por meio de batalha; e a nobreza do teu coração inclinou-te a compreender coisas de que nem sequer suspeitavas. Não que saibas nem jamais possas saber a verdade da bebida mágica, mas duvidas, esperas, sentes que eu não menti. Ah, querido tio, como me seria doce fazer as pazes contigo, voltar a vestir ainda ao teu serviço o lorigão e o elmo. Não há muito, perseguido, podia levantar-me contra ti, pois abandonaras Isolda aos leprosos; não era mais tua, era minha. Eis que pela tua piedade e clemência me tiraste o direito de te disputar a rainha e de ficar com ela. A rainha? Neste bosque, vive como uma serva. Que fiz da sua juventude? Em lugar do quarto forrado a seda, dei-lhe uma cabana na floresta selvagem, e é por mim que ela vive esta rude vida. Ao Senhor Deus, Rei do mundo, peço perdão e suplico-lhe que me dê força para devolver Isolda ao rei Marcos.

A noite tornava-se mais profunda. No matagal cercado de silvas que há três dias lhe servia de abrigo, a loura Isolda aguardava o regresso de Tristão. Um raio de lua fez brilhar no dedo o anel de ouro que Marcos lhe enfiara. Pensou: “Aquele que por cortesia meteu este anel de ouro no meu dedo durante o meu sono será o mesmo homem que, levado pela cólera, me entregou aos leprosos? Não, é o soberano cheio de indulgência que desde o dia em que abordei a sua terra me acolheu e protegeu. Mas eu vim e causei, sem querer, a inimizade que ergue agora o rei Marcos contra Tristão. Tristão não deveria viver no palácio do rei, com cem donzelas à sua volta? Por mim renunciou a exercer o seu valor: exilado da corte, perseguido neste bosque, leva uma existência miserável. Será, pois, para me agradar, constrangido a passar o resto da vida no meio de privações e na obscuridade? Não tenho o direito de exigir dele um tal sacrifício.”

Ouviu então os passos de Tristão aproximarem-se. Foi ao seu encontro, como de costume, para lhe tirar as armas. Tirou-lhe das mãos o “arco que não falha” e as flechas e desatou as presilhas da espada. “Querida — disse Tristão —, é a espada de Marcos. Devia degolar-nos, mas poupou-nos.” Isolda pegou na espada e contemplou as pedras preciosas que decoravam o botão do punho em ouro. “Bela — disse Tristão —, se pudesse chegar a um acordo com o rei! Se ao menos ele me permitisse defender em batalha que nunca, por minha vontade, em palavras ou em atos, te amei com um amor ultrajante para ele! Então, qualquer homem do seu reino, desde Lidan a Durham, que me ousasse contradizer, encontrar-me-ia pronto a vencê-lo em campo fechado. Uma vez justificado por este combate, se o rei me quisesse conservar em sua casa, voltaríamos juntos para a corte e servi-lo-ia com grande honra, como meu senhor e tio. Se preferisse afastar-me guardando-te ao pé dele, iria para a Frísia ou para a Bretanha armórica com Gorvenal por único companheiro. Num ou noutro caso, rainha, sempre te pertenceria e ficaria teu. Pode espantar-te que eu pense nesta separação, mas a idéia nunca me teria acorrido se não fosse a dura miséria que suportas por minha causa desde há tanto tempo, bela, nesta terra deserta!” Isolda refletiu durante um certo tempo, depois replicou: “Há dois anos que erramos por esta floresta e suportamos sem nos queixarmos as privações, o calor e o frio. Todavia, nunca até hoje me falaste assim. Por que pensas agora, pela primeira vez, em separar-te de mim e devolver-me ao rei Marcos?” “Doce amor, Deus é testemunha que o meu amor por ti é tão forte como antes, mas, não to quero esconder, hoje é dia de São João e vi os fogos de alegria acenderem-se no cimo das colinas do pais de Gales: ainda ardem neste momento. Fitando de longe as chamas subirem na noite, lembrei-me que três anos haviam decorrido, dia a dia. desde que tu e eu bebemos o filtro do amor. Sabes que a rainha da Irlanda, tua mãe, o fabricara, por artes de magia, e sabes também da sua duração. Não há no mundo feiticeira igual, e ela não se enganou nos cálculos. Tive bruscamente o sentimento de que a força do vinho ervoso cessara de nos dominar; sinto que já se desvaneceu neste instante. Senão, como poderia conceber a idéia de te entregar ao rei Marcos? Como, se o filtro ainda te possuísse, poderias suportar ouvir-me propor esta separação? Só este pensamento nos seria outrora insuportável a ambos.” “Falas a verdade, querido Tristão. Sinto como tu que o sortilégio chegou ao fim. O nosso amor continua, como dizes, mais forte que nunca, mas cessou de ser uma coação mágica, uma força exterior, invencível e fatal. Vamos amar-nos agora como os outros homens e as outras mulheres desde que o mundo é mundo; eis-nos restituídos à condição comum de todos os mortais. Doravante estaremos sujeitos aos caprichos do destino, à flutuação dos nossos desejos, a todos os movimentos contrários, a todos os remorsos das nossas vontades. Daí vem que a esta hora, sem cessarmos de nos amar, estejamos a conceber o projeto de nos separarmos.” Tristão fitou-a longamente com ternura, depois acrescentou: “Compreendeste como eu, bela amiga, que a nossa vida ia mudar. A partir de agora, não seremos mais conduzidos contra vontade pela força do sortilégio; temos de ser nós a decidir a nossa sorte. Que homem será suficientemente sábio para nos aconselhar em tal confusão?” “Tristão, lembra-te do eremita Ogrin, que visitamos não há muito na sua mata. Vamos ter com ele, e que possamos receber, na incerteza em que nos encontramos, um conselho inspirado por Deus!” “Não poderíamos fazer melhor” — respondeu Tristão. Renunciando de comum acordo a dormir nessa noite, acordaram Gorvenal O escudeiro precedia-os para abrir-lhes caminho através das moitas. Isolda montava o cavalo de Tristão, que este conduzia pela rédea; então, atravessando pela última vez os bosques mergulhados nas trevas, avançam sem uma palavra. Aos primeiros alvores da madrugada, repousaram um pouco, depois retomaram a marcha até chegarem ao eremitério. Na soleira da capela, Ogrin lia um livro. Viu-os e, de longe, chamou-os: “Amigos, como o amor vos persegue de miséria em miséria! Quanto tempo ainda durará a vossa loucura? Coragem, arrependei-vos!” Tristão falou em primeiro lugar: “Trazemo-vos, irmão Ogrin, uma nova que vos alegrará o coração: temos agora vontade de nos reconciliar com o rei. Se ele consentir no acordo que lhe propomos, estou pronto a entregar-lhe a rainha. E até, se o exigir, a ir-me para longe, para a Bretanha ou a Frísia. Todavia, se o rei me admitisse junto dele, voltaria para a corte e servi-lo-ia corno é meu dever.” Isolda falou por sua vez numa voz dolente: “Irmão Ogrin, compreendo bem, não posso viver mais a vida que levei durante dois anos. Não digo que me arrependo de ter amado e de amar Tristão: nunca de tal me arrependerei. Mas não tenho mais força para suportar uma existência tão rude e miserável. Suportei-a tanto quanto pude, agora estou fraca demais para persistir nessa vida. Peço-vos, santo eremita, ajudai-nos com os vossos conselhos.” O eremita escutou-a e comoveu-se até às lágrimas: “Agradeço-te, Deus Todo-Poderoso, por teres inspirado salutares remorsos a estes infelizes. Bendito sejas por me teres deixado viver o suficiente para vê-los finalmente resolvidos a mudar de vida! Tristão e Isolda, escutai-me: quando dois se amaram com amor culpado, depois lamentam o pecado e se afastam um do outro, Deus nunca lhes recusa o perdão. Vou escrever uma carta ao rei: far-lhe-ei saber que estais aqui e que nada haveis cometido que justifique o seu rancor. Graças aos céus, escapastes às intrigas do anão, que foi o seu indigno conselheiro. Se Tristão levou a rainha consigo, foi por piedade, para não a abandonar ao seu infortúnio, entregue ao bando de leprosos. Eis o que é preciso dizer para vos justificar, pois, para fazer as pazes, é por vezes permitido mentir um pouco… Se o rei quiser esquecer os agravos contra vós, regressareis de boa fé à corte.” “Homem de Deus — disse Tristão —, falais com grande senso; é assim que é necessário escrever ao rei. Acrescentareis somente que, para minha salvaguarda, peço a meu tio que expresse o acordo por escrito. Que mande colocar a resposta num dos braços da Cruz Vermelha. Quando a receber, confiando na sua palavra, cumprirei a sua vontade.”

 

O irmão Ogrin serviu-lhes primeiro leite de cabra, pão de centeio cozido na cinza e legumes com sal. Quando ficaram saciados, o santo homem aproximou-se da escrivaninha e, num pergaminho novo, escreveu a carta como queria o visitante; em seguida, levantou-se e estendeu-a a Tristão, que a selou com o anel. “Amigo — disse o eremita —, qual de nós levará a mensagem?” “Eu próprio” — respondeu Tristão. “Isso não pode ser. pois o risco é demasiado grande.” “Certamente; conheço bem o local. Partirei a cavalo com Gorvenal e apear-me-ei à entrada da cidade.” Após o pôr-do-sol, Tristão põe-se a caminho com o escudeiro. Cavalgam toda a noite e chegam a Tintagel à hora em que a sentinela toca a trombeta na muralha para anunciar a aproximação do dia. Tristão deixa-se deslizar para o fosso, transpõe a cintura de muralha do castelo e chega sem novidade junto do quarto do rei. Aproxima-se da janela e chama-o pelo nome. Marcos acorda e, espantado, pergunta: “Quem és para vires a esta hora?” “Sire, é Tristão. Trago-vos uma carta: encontrá-la-eis no alargamento do vão da janela. Não posso demorar: dar-me-eis a resposta no local indicado.” “Por Deus, querido sobrinho, espera que eu já vou.” O rei levanta-se da cama, corre à janela, pega na missiva do pergaminho e por três vezes chama Tristão. Este está longe, já se juntou a Gorvenal nas portas da cidade. “Estás louco? — exclama o escudeiro. — Vamos ser perseguidos! Fujamos pela vereda!” Cavalgaram a tal velocidade por um caminho desviado que atingiram o eremitério à hora sexta. Na capela, Ogrin pedia a Deus que concedesse o seu socorro a Tristão; suspirou quando os viu de volta. Isolda saiu- lhes ao encontro. Desde a partida que achara a espera bem longa. Atormentado com perguntas, Tristão contou a escapadela: como penetrara na cidade até ao castelo, o que dissera ao rei e como este o chamara três vezes enquanto fugia. Ogrin junta as mãos: “Senhor — exclama —, bendito sejas! Doravante tudo correrá bem. O rei não tardará a dar-nos notícias suas.”

 

XXIII

A SEPARAÇÃO DOS AMANTES

 

QUANDO marcos encontrou a mensagem, chamou o capelão e estendeu- lha. O clérigo quebrou o selo de cera e leu alto o que escrevia Tristão. Marcos regozijou-se com as novas que continha a carta, pois continuava a amar a mulher, e desde que a surpreendera adormecida junto de Tristão na floresta de Morois, afligia-se por tê-la perdido. Mandou imediatamente acordar os barões. Mal se encontraram reunidos no salão, tomou a palavra: “Senhores, eis uma carta que acabo de receber. Sou o vosso rei; vês sois meus vassalos e deveis-me conselho. Escutei, pois, o que me escrevem.” O clérigo desdobrou o pergaminho e leu sem nada omitir: “Ao nobre rei Marcos, Tristão, seu sobrinho, envia saudações e amor, assim como a toda a baronagem! Rei, sabes como, depois de ter morto o dragão furioso, conquistei com essa proeza a filha do rei da Irlanda. Trouxe-a para este pais e tu tomaste-a por mulher perante a tua corte reunida. Depois de o teu casamento ter sido celebrado, Kariado mais quatro traidores enganaram-te com as suas calúnias: mentiam e ainda estou pronto a prová-lo e a lutar com armas iguais contra quem tenha falado mal da rainha. E no entanto, querido tio, quiseste-nos queimar vivos, a ela e a mim. Mas Deus ouviu as orações das pobres gentes e teve piedade de nós. Quanto a mim, escapei da pira saltando do alto de uma falésia; foi então que entregaste Isolda aos leprosos para melhor a desonrar, mas eu libertei-a das suas mãos e fiz justiça. Poderia deixá-la à mercê desses vagabundos? Fugi com ela e temos vivido um junto do outro, protegidos de ti pela espessura dos bosques. Mandastes proclamar um pregão que prometia uma recompensa a quem nos entregasse, mortos ou vivos, mas Deus, na sua clemência, preservou-nos de todo o mal. Há poucos dias, surpreendeste-nos numa cabana de folhagem, na floresta de Morois, quando dormíamos, inocentes, lado a lado. Deus inspirou-te pensamentos de clemência: poupaste-nos sem mesmo nos acordares. Deixaste-nos, em penhor da tua benevolência, o teu anel, a tua espada e as tuas luvas. Sire, compreendemos a mensagem e queremos responder. Se desejas agora reaver a loura Isolda, e acolher-me de novo no teu palácio, nenhum barão desta terra te servirá mais fielmente do que eu. Se me repeles, por temor ou rancor, irei combater para o rico rei de Gavoie e não me tornarás a ver. A ti compete a decisão; não posso mais suportar ver a rainha viver na miséria e na penúria, entre os animais da floresta. Se não aceitares o acordo que te proponho e se te recusares a receber a rainha, por amizade e honra a levarei novamente para a Irlanda, donde a trouxe, e reinará no seu pais. Sire, manda suspender a tua resposta, qualquer que seja, num dos braços da Cruz Vermelha.”

Os barões vêem que Tristão, uma vez mais, lhes oferece batalha para demonstrar a inocência de Isolda e a sua. Mas nenhum deles está interessado em pegar nas armas e expor o corpo para sustentar a acusação. Os traidores calam-se; Dinas de Lidan e aqueles que nunca haviam acusado Tristão exclamam unanimemente: “Sire, retomai a vossa mulher, pois foram os insensatos que vos indispuseram contra ela! Mesmo admitindo que tenha cometido alguma imprudência, expiou tão duramente essa falta que lhe podeis conceder a remissão. Quanto ao vosso sobrinho, sem passar o mar, que vá combater para Gavoie, o rico reino que o rei da Escócia acaba de invadir. Ali encontrará emprego para o seu valor. Mais tarde, se o julgardes conveniente, podereis chamá-lo de novo para junto de vós. Mandai-lhe, pois, as vossas condições e ordenai-lhe que traga, sem mais tardar, a rainha.” O rei fez sinal ao capelão: “Senhor, escrevei-me rapidamente uma carta; os meus barões disseram-vos o que é preciso dizer; não tenho nada a acrescentar. O meu único desejo é rever Isolda, a minha doce esposa, que tanto sofreu. E não deixeis de saudar da minha parte Tristão, o meu querido sobrinho. Que desde esta tarde a mensagem seja suspendida num dos braços da Cruz Vermelha.”

Em vão Tristão tentou dormir nessa noite. Antes de esta chegar a meio, levantou-se, cavalgou através da Charneca Branca, até a Cruz Vermelha, encontrou suspensa num dos braços da cruz a carta do rei e trouxe-a para o eremitério. Tendo-a decifrado, Ogrin viu que o rei consentia em acolher de novo Isolda, sua mulher. Falou então como convinha a um homem que crê em Deus: “Tristão, o rei ouviu-te. A conselho dos barões, declara-se pronto a receber Isolda, mas não a tomar-te ao seu serviço. Tens de guerrear, durante um ano ou dois, em terra estrangeira, e depois, se o rei e a rainha o desejarem, chamar-te-ão de novo à corte. É uma sábia medida, e a ela te deves submeter. Dentro de três dias, incontestavelmente, conduzirás Isolda ao Vau Aventuroso.” “Deus — exclamou Tristão —, que desgosto ter de deixar a minha querida! Mas tenho de me resignar, pois a sua miséria já durou demasiado.” Em seguida, voltando-se para Isolda, disse-lhe: “Rainha, esta separação será bem dura para ti e para mim, mas só durará um tempo. Se me mandares chamar por um mensageiro, voltarei imediatamente para te reconfortar e, se for preciso, para te socorrer; o que quer que me ordenes, cumprirei a tua vontade. Quando chegar a hora de nos separarmos, trocaremos penhores e juraremos acorrer sempre que um de nós apelar para o outro.” A rainha soltou um suspiro e respondeu: “Tristão, é assim que devemos fazer. Queres deixar-me o teu cão Husdent, que partilhou das nossas misérias? Jamais cão algum terá sido mais amimado, se ficar comigo. Quando estiver triste, belo e doce amigo, ele far-me-á pensar em ti e o meu coração encher-se-á de alegria. Eu tenho um anel de prata, com o engaste de jaspe verde, cuja pedra possui uma virtude maravilhosa. Dar-to-ei e tu usá-lo-ás sem cessar no dedo, pois de cada vez que o olhares verás a minha imagem na tua lembrança como se eu estivesse presente ao teu lado. Quando me quiseres ao pé de ti, confia-lo-ás ao mensageiro para que eu o reconheça. Bastar-me-á vê-lo e asseguro-te que nenhuma muralha, nem torre, nem fortaleza me impedirão de tudo abandonar para cumprir o teu desejo, quer seja sensatez ou loucura.” “Bela Isolda, como penhor de amor, deixar-te-ei o meu cão Husdent e receberei o teu anel em troca.”

Os banidos não podiam reaparecer na corte com as roupas em farrapos. O bom eremita pôs-se à procura de trajes novos. Dirigiu- se ao monte São Miguel da Cornualha, onde havia um mercado de tudo, Comprou pele de esquilo, branca e cinzenta, finos tecidos de seda, de púrpura e de escarlate e, para Isolda, uma camisa mais branca que flor-de-lis. Vendo-o fazer tais compras, os mercadores riam com gosto e zombavam do santo homem, sem que este se importasse com isso. Também adquiriu um belo palafrém treinado a andar a passo travado, com arreios decorados a ouro. O eremita gastou nisso todo o seu pecúlio, mas pouco lhe importa: tanto procurou, tanto regateou que, com os seus cuidados, a rainha ficou suntuosamente vestida e provida de uma rica equipagem. Isolda agradeceu-lhe alegremente e disse: “Eremita, dar-vos-ei três vezes mais quando tiver regressado à corte!”

Por toda a terra da Cornualha, Marcos mandou proclamar pelos arautos que ia reconciliar-se publicamente com a rainha e que a acolheria no dia marcado no Vau Aventuroso. As damas e barões são numerosos, de tal modo estão desejosos de rever Isolda: era amada por todos, exceto pelos traidores, que Deus os amaldiçoe! No dia fixado para o encontro, o rei avançou, seguido por um longo cortejo. Ricos pavilhões haviam sido erguidos na pradaria. Pouco depois, Tristão chegou à outra margem, cavalgando no corcel, e a rainha, perto dele, montava o palafrém. Gorvenal seguia-os a alguma distancia e bom cão Husdent corria em todos os sentidos à volta deles. Por prudência, Tristão, que desconfiava dos traidores, vestira sob a túnica uma cota de fortes malhas e Gorvenal levava as armas do seu senhor. Viram ao longe as tendas e reconheceram o rei entre os fiéis. O bravo inclinou-se para Isolda e disse: “Eis chegado o momento, bela. Confio-te Husdent, o meu fiel cão de caça; não o deixes afastar-se! Vejo do outro lado do vau o rei, teu senhor, com os homens da sua corte; em breve não poderemos mais conversar livremente um com o outro. Mas, por Deus Todo-Poderoso, promete-me que, quando te enviar algum mensageiro portador do teu anel de jaspe verde, farás o que te disser.” “Amigo Tristão, escuta-me. Se um enviado se apresentar sem o anel de jaspe verde que acabas de pôr no dedo, não acreditarei em nada do que possa dizer; mas quando vir o anel, nem torre, nem muralha, nem fortaleza me impedirão de realizar, lealmente e com toda a honra, a vontade do meu amigo.” “Deus te abençoe, bela Isolda!” Atraiu-a a ele e apertou-a nos braços. Depois, como se afastasse, ela segurou-o: “Querido — disse —, mais uma palavra. A conselho de Ogrin, vais restituir-me ao rei e em seguida deixarás este país. Consinto nisso, mas promete-me que não te afastas antes de saber como o meu senhor se conduzirá comigo. Esta noite, vai esconder-te em casa de Orri, o florestal, que já te deu algumas vezes abrigo. O traidor Guenelon morreu, mas os outros sobrevivem e temo as suas ciladas. Esconder-te-ás no celeiro, debaixo da cabana, e eu enviar-te-ei as mensagens pelo meu lacaio Périnis.” “Não temas nada, bela amiga. Velarei por ti tanto tempo quanto for preciso. Que aquele que pensa ofender-te se acautele comigo como com Satanás!”

Os dois grupos encontravam-se agora um em frente do outro, nas margens opostas do vau. Estavam suficientemente próximos para trocarem as saudações. O rei vinha na frente com o senescal Dinas de Lidan, à distancia de um tiro de arco da escolta. Tristão agarrou pelas rédeas o cavalo de Isolda, fê-lo atravessar o Vau Aventuroso e parou junto de Marcos, a quem primeiramente saudou: “Rei, restituo-te a nobre rainha tua mulher. Fica sabendo que jamais homem algum devolveu tesouro mais precioso.” Marcos procurou em vão dissimular a emoção e mostrar-se senhor de si; segurou o estribo à rainha enquanto esta se apeava, recebeu-a nos braços e apertou-a ternamente contra o coração. Todos os assistentes olhavam em silêncio e vários ficaram comovidos até às lágrimas. Quando os esposos afrouxaram o abraço, Tristão continuou com voz firme, os olhos fixos no rosto de Marcos: “Sire, a rainha não desmereceu, nem eu. Sabe-lo agora, uma vez que nos recebes neste dia com grande honra. Se o quiseres, ficarei junto de ti para te servir, e se alguém persistir em me acusar, peço-te que me deixes justificar em presença dos teus barões. Se perder, podes mandar-me queimar em enxofre; se, pelo contrário, o vencer, reterme-ás ao pé de ti.” O rei, no íntimo, inclinava-se a ceder ao desejo de Tristão; assim, afastou-se um pouco para deliberar uma última vez com o conselho. Confiou a Dinas de Lidan o cuidado de fazer companhia a Isolda. O senescal, que era sábio, cortês e bem-educado, apressou-se a entreter a rainha com palavras amáveis. Ajudou-a a despir o casaco de escarlate e ela apareceu na túnica de seda coberta com uma outra de finos bordados. O eremita que os comprou não olhara as despesas! O vestido era rico, e gracioso o corpo que cobria, a despeito das privações. Só o rosto parecia pálido e os traços um pouco abatidos; os olhos claros de Isolda não estavam menos luminosos e os cabelos mais louros que nunca. O senescal admirava- a e sorria de prazer. Dois de entre os traidores, Gondoïne e Denoalen, se enterneceram. Fingindo indignação, aproximaram-se do rei e disseram-lhe em confidência: “Sire, vede a rainha que conversa alegremente com Dinas, como se nenhum remorso a atormentasse. Será falta de pudor ou inconsciência? Tivemos todavia boas razões pata suspeitar dela! Se voltar para a corte em companhia de Tristão, a maledicência terá razões e as pessoas reprovarão a vossa complacência. 11 necessário deixar partir o vosso sobrinho e, mais tarde, quando Isolda vos tiver provado a sua sinceridade, podereis chamá-lo.” “O que quer que me digam — respondeu Marcos —, seguirei o vosso conselho, pois acho-o bom.”

Então o rei chamou Tristão de parte e fez-lhe compreender que devia deixar a Cornualha durante um tempo. Censurava a si próprio o rigor para com o sobrinho e custava-lhe bani-lo, mas temia provocar uma vez mais o ressentimento dos traidores. Não querendo deixar Tristão sem uma palavra de amizade, perguntou-lhe para onde ia. Tristão respondeu: “Sire, para a Frisia ou para a Bretanha, ou então para o rico rei de Gavoie, a quem os escoceses invadiram a terra.” “Querido sobrinho, basta uma palavra e darte-ei mais que o necessário: ouro e prata em quantidade, peles de esquilo branco e cinzento, com que te vestires e viveres à vontade.” “Rei da Cornualha — respondeu Tristão —, não tenho que fazer dos vossos bens. De vós não aceitarei um vintém. Pobre como sou, é com grande alegria que irei servir um rei poderoso. O único favor que vos solicito hoje é que me devolvais a espada, aquela que me destes outrora para combater o Morholt e cuja lamina se fendeu no crânio do gigante. Haveis-ma retirado, nobre tio, quando me surpreendestes numa cabana de Morois, adormecido perto da rainha. Permiti que a recupere agora, antes de partir em terra estrangeira. Mandei o meu escudeiro trazer a vossa espada real com o botão do punho em ouro cinzelado, aquela que colocastes junto de mim, no lugar da minha, em sinal da vossa clemência: não convém que a leve comigo para o exílio.” E assim foi: Marcos recuperou sua espada e devolveu a de Tristão.

Sem mais nenhuma palavra, Tristão pegou nas rédeas, meteu o cavalo a trote e encaminhou-se para o mar. Isolda seguiu-o com o olhar enquanto o pôde ver. Dinas havia-se reunido ao jovem: cavalgava a seu lado e falava-lhe para aliviar a sua dor: “Amigo — disse —, não percas a coragem. Talvez vejas brevemente o fim do exílio. E em todo o caso, conheço aqui alguém que te não esquecerá.” “Dinas — respondeu Tristão —, sabes por que parto. Nem tu nem eu saberíamos dizer quando regressarei.” Sete vezes se beijaram; depois, cada um, triste e silencioso, foi para seu lado.

A noticia do regresso de Isolda espalhara-se pela cidade. Todos, nobres e vilãos, homens, mulheres, velhos e crianças, haviam sadio ao seu encontro, enquanto os sinos dos mosteiros tocavam a rebate. Mas quando souberam que não veriam Tristão, que o rei o havia proscrito, uma grande tristeza apoderou-se deles. No entanto, receberam bem o cortejo e saudaram Isolda com vivas quando esta apareceu, sentada no palafrém, na rua principal, juncada de flores, entre as casas engalanadas. O rei, a rainha e os barões subiram a encosta que leva ao mosteiro de Saint-Samson. Bispo, monges e abades, paramentados com alvas e capas, saíram ao pórtico para recebê-lo. O bispo pegou na mão da rainha e conduziu- a à igreja, onde lhe apresentaram um tecido de brocado que ela depôs no altar. Terminada a cerimônia, o rei, os condes e os marqueses levaram Isolda para o palácio, cujas portas foram abertas. Toda a gente pôde entrar livremente e comer até fartar. Mesmo no dia de núpcias, Isolda não recebera semelhante honra, pois, para festejar o seu regresso, o rei libertara cinqüenta servos e armara vinte pajens.

Nos aposentos das mulheres, Isolda encontrou a fiel Brangia: esperava-a há dois anos e nunca cessara de aguardar o seu regresso. Na altura da maior cólera do rei, a manhosa soubera, ao mesmo tempo que continuava devotada à sua senhora, granjear a benevolência do soberano, pois continuava a enganá-lo estranhamente, fazendo-o crer que abominava Tristão e que este a odiava. Reviu Isolda com manifestações de alegria, e quando toda a gente se retirou, as duas mulheres passaram longas horas em afetuosas confidências. Quanto a Périnis, o lacaio irlandês que seguira Isolda até à Cornualha, esse soubera, com discrição e habilidade, passar despercebido no meio da tormenta e ficar no castelo ao serviço de Marcos.

Entrementes, Tristão, após a partida de Dinas de Lidan, abandonara a estrada e embrenhara-se, em companhia de Gorvenal, no atalho que conduzia à habitação de Orri, o florestal. Caía a noite: penetrou, sem ser visto, na cabana e instalou-se no celeiro. Durante todo o tempo que Tristão permaneceu no esconderijo subterrâneo, recebeu por meio de Périnis novas da rainha.

 

XXIV

O JURAMENTO JUDICIÁRIO É EXIGIDO

 

A RAINHA AINDA não decorrera um mês quando o rei foi um dia caçar com os traidores, Audret, Gondoïne e Denoalen, e mais um grupo de monteiros. Numa charneca, num alqueive que os camponeses haviam queimado, o rei parou, prestando atenção aos latidos dos cães. Os três barões aproveitaram este instante de descanso para abordarem- no e falaram-lhe deste modo: “Rei, perdoaste à rainha, e era teu direito, mas se ela se conduziu como uma mulher leviana, o teu perdão não a dispensa de se justificar segundo a lei desta terra. Vários dos teus homens freqüentemente pediram que um processo fosse instaurado e um julgamento realizado sobre os atos censurados a Isolda e a Tristão. Exige que a rainha a ele se submeta e, se recusar, que deixe por sua vez este reino!” O rei ficou vermelho de cólera: “Por Deus, senhores cornualhenses, não tendes o direito de falar assim. Quando Tristão trouxe a rainha até ao Vau Aventuroso, não se propôs justificar? Quem de vós, nesse momento, ousou pegar em armas contra ele? Bani-o com medo de vos desagradar; obedecer-vos-ei uma vez mais expulsando a minha mulher? Por Santo Estêvão, o mártir, impondes-me exigências demasiado duras: será portanto necessário que vos guerreie. Declaro-vos: dentro de poucos dias, vereis reaparecer Tristão em minha casa! Deus vos destrua, vós que haveis causado a minha vergonha! Sim, chamarei o bravo que expulsastes.”

Perante o furor do rei, os três voltam rédeas; na charneca, num valezinho, apeiam-se. Um deles diz: “Que poderemos fazer? O rei Marcos vai chamar o sobrinho, e, se ele volta, lá se vai o nosso crédito e, quem sabe, a nossa vida. Se nos encontrar sozinhos, na floresta ou no caminho, ninguém o poderá impedir de nos tirar o sangue do corpo. É mais conveniente fazermos as pazes com o rei, a fim de que ele renuncie a chamar o sobrinho. Calemo-nos, não lhe peçamos mais nada.” Vão ter com o rei, que ficara no alqueive. Marcos viu-os aproximarem-se e jurou entre-dentes não considerar o que lhe poderiam dizer. “Sire, escutai-nos: vós estais triste e enraivecido por nos preocuparmos tanto com a vossa honra. Aconselhamo-vos por dever e vós levai-nos a mal. Porém, uma vez que não nos quereis acreditar, fazei como vos apraz! Calar-nos-emos, pois não desejamos a guerra. Perdoai somente a nossa lealdade.” O rei, ainda mais furioso, ergue-se no arção e exclama, o dedo apontado para o horizonte: “Senhores, o caso está arrumado; afastai-vos da minha terra. Por Santo André, a quem vão rezar além-mar até à Escócia, haveis-me feito tal chaga no coração que me atormentará um ano inteiro.” “Sire — respondeu Audret —, exaltais-vos contra nós sem motivo. Se persistis em querer expulsar-nos, causar-vos-emos preocupações como nunca tivestes.” Proferidas estas ameaças, os traidores afastam-se a toda a pressa; têm fortes castelos construídos em altos rochedos e cercados de estacas agudas. Juram que ai se vão entrincheirar e conspirar contra o rei.

Para regressar ao castelo, Marcos não esperou pelos cães nem pelos monteiros. Em Tintagel, diante da torre, desce do cavalo e entra, sem ser visto, no quarto das mulheres. Isolda vem ao seu encontro, tira-lhe a espada, depois senta-se aos seus pés. O rei pega-lhe na mão; ela nota-lhe a expressão selvagem e cruel do seu rosto. “Ai de mim! — pensa com os seus botões —, Tristão foi descoberto! Quem sabe se o rei não se apoderou dele?” Cai de joelhos diante do seu senhor e, o rosto lívido, desmaia. Marcos ergue-a nos braços e dá-lhe beijos, de tal modo que ela volta a si. “Senhora, que tendes?” “Sire, tenho grande medo.” “Então de quê?” “Sire, vejo pelo vosso rosto que estais encolerizado. Por que levar tão a sério os acasos e os jogos da caça?” Este dito diverte o rei, que ri e a abraça uma vez mais. “Querida, não é de caça que se trata. Se me vistes em tal furor, foi por culpa de três traidores que, desde há muito, procuram romper o nosso casamento. Dei-lhes demasiada atenção até hoje. Com as suas falsas palavras, afastaram de mim o meu sobrinho, mas quero chamar Tristão, que me vingará e os enforcará.” A rainha não ousa dizer alto o que pensa: “Deus seja louvado! O meu senhor enfureceu-se contra aqueles que fizeram nascer o escândalo!” Em seguida, pergunta: “Senhor, que mal disseram de mim? Cada um pode pronunciar as palavras que quiser e, salvo vós, não tenho nenhum defensor; com as suas mentiras, sem descanso nem tréguas, procuram a minha perda.” “Senhora — diz o rei —, podeis alegrar- vos, pois bani os três traidores para longe da corte.” “Por que, Sire? Que mais inventaram?” “Defendem que não justificastes o agravo que vos fizeram de ter amado loucamente Tristão.” “Querem verdadeiramente que justifique tal agravo?” “Por certo que o pedem.” “Senhor, estou pronta a submeter-me ao que eles exigem, e o mais brevemente possível. Ah!, nunca mais me deixarão uma hora de paz? Mas se Deus manifestar a minha inocência, estou certa de que depois ficarão quietos e não pedirão mais nada! Também quero que o rei Artur e a sua corte assistam ao meu julgamento, Gauvain, o seu sobrinho, Girflet e Keu, o senescal: com eles por testemunhas, pronunciarei o juramento. Senhor, fixai uma data e mandai dizer ao rei Artur que o quereis encontrar, a ele e aos seus fiéis, no dia marcado na Charneca Branca.” O rei respondeu: “Rainha, falastes como é de honra.” E manda todos os seus homens dirigirem-se ao julgamento.

Quando Marcos saiu do quarto das mulheres, Isolda chamou Brangia de parte disse-lhe: “Procura comigo, peço-te, a maneira como poderei, sem atrair sobre mim por meio de um perjúrio a terrível vingança de Deus, pronunciar sobre as relíquias dos santos o juramento que exigem de mim os traidores.” “Senhora, o mais seguro seria recusardes prestar esse juramento, pois se tomais Deus por testemunha perante um tribunal encobrindo ou dissimulando a verdade, o castigo do Todo-Poderoso não se terá esperar! Todos os mais sábios clérigos vo-lo dirão.” “Sei-o tão bem como tu, mas os meus inimigos não me darão tréguas enquanto não tiver prestado esse juramento. Também prometi ao rei Marcos submeter-me a esse rito, contanto que seja perante um tribunal de justiça presidido pelo rei Artur, rodeado pelos bravos da Távola Redonda.” “Senhora, é a melhor garantia de o direito ser observado nesse julgamento. Mas qual será a fórmula do juramento?” “Terei de jurar que nunca amei Tristão com amor culpado ou ofensivo para o meu marido.” “Senhora, não podeis empregar essa fórmula sem cometer perjúrio e incorrer na cólera divina, cá embaixo e no outro mundo. O filtro pôde muito bem servir de desculpa perante o eremita Ogrin, como me haveis contado, mas não vos autoriza a jurar contra a verdade. Acreditai- me, tendes de empregar outra fórmula, com palavras tão bem escolhidas e tão engenhosamente compostas que possam ser interpretadas no sentido da verdade por aqueles que a sabem e num sentido muito diferente por aqueles que a não conhecem.” As duas mulheres começaram então a procurar juntas: imaginaram, para sossegar o rei Marcos sem ofender a Deus, um estranho estratagema para o qual o concurso de Tristão era necessário. Brangia riu muito só à idéia do ardil e Isolda divertiu-se com ela.

Já todos sabem pelo pais o dia da assembléia e que o senhor da Távola Redonda ai estará com toda a sua corte. Marcos manda Périnis levar o mais depressa possível uma mensagem ao rei Artur, rogando-lhe que presida ao julgamento; Isolda chama Périnis antes da partida e ordena-lhe que passe primeiro por casa do florestal Orri para prevenir Tristão do que deverá fazer: “Diz-lhe que no dia marcado se encontre sem falta no Pântano do Mau Passo, perto do vau que domina a Charneca Branca, e que separa o reino de Artur do reino da Cornualha; que esteja no outeiro onde começa o paneiro de vigas e de ramagens que serve para passar o lodo. Quero que se enferpele com farrapos como um leproso, que segure numa das mãos um cálice de madeira e que se apoie com a outra na muleta. O rosto deve estar pintado e inchado: ele sabe o segredo. A todos os que vierem assistir aos debates, pedirá esmola. Lá estarei, mas fingirei não o reconhecer. Que fique descansado, pois saberei fazê-lo representar o papel, com a condição de se deixar manejar e de me obedecer em tudo.”

Périnis parte e chega a casa de Orri ao cair da tarde, no momento em que o florestal e os hóspedes acabam de comer. Tristão acolhe- o com alegria e escuta a mensagem. Jura que todos aqueles que pensaram mal e censuraram a amante agiram no sentido da sua própria infelicidade. “Diz à rainha que, no dia fixado, me encontrarei no local marcado, coberto de andrajos como um pedinte. Mendigarei tão bem que o rei Artur, o rei Marcos e todos os outros se não poderão dispensar de me dar esmola. Acrescenta que acho muito bom tudo o que faz e fará para vencer a prova do juramento e que lhe quero obedecer em tudo. Que se mantenha de boa saúde e alegre: será vingada daqueles que lhe estragam a vida. Leva-lhe finalmente a saudação e a homenagem que devo à sua lealdade.” Périnis montou de novo e cavalgou até ao castelo de Durham, onde se encontrava a Távola Redonda. Aí, perante o rei Artur e a sua corte, contou como a rainha Isolda aceitara justificar-se com o juramento e qual o dia e o lugar fixados pelo rei Marcos para o julgamento. Os barões endureceram-se contra os três traidores da Cornualha: sire Gauvain e o bravo Girflet desfizeram-se em ameaças, pedindo ao rei permissão para matá-los em duelo. Artur era demasiado cortês para o consentir: “Senhores — disse —, livrai-vos dos arrebatamentos da cólera e de qualquer descortesia; ponde antes a vossa honra em aparecerdes todos na assembléia desse julgamento no vosso mais belo corcel, com escudo novo e rico paramento, por cortesia para com a rainha Isolda. Em seguida, o rei quis escoltar em pessoa o mensageiro, encarregando- o de levar os seus respeitos à senhora da Cornualha.

No caminho, Périnis encontrou o florestal que, não há muito, fora à corte do rei Marcos, todo esbaforido, comunicar-lhe que descobrira os amantes numa cabana de Morois, mas ficara bem decepcionado, pois nunca recebera a recompensa prometida. Depois disso, num dia em que estava bêbado, o florestal havia-se gabado da traição e queixara-se da ingratidão de Marcos. Périnis reconheceu-o imediatamente. O homem acabava de cavar, no solo da floresta, um buraco profundo e cobria-o habilmente com uma camada de ramos, para apanhar na armadilha lobos e javalis. Viu arremessar-se contra si o lacaio da rainha e quis fugir; mas Périnis empurrou-o para a berma do fosso: “Espião, que vendeste a rainha, para que fugir? Fica ai, ao pé da sepultura que tu próprio tiveste o cuidado de cavar.” Fez girar o pau de carvalho nodoso, e bate na fonte do fronte do traidor com tal violência que ele caiu inanimado. Périnis, o louro, o fiel, empurrou com o pé o corpo para o fosso, depois tapou-o com torrões de terra e folhas secas.

XXV

O JURAMENTO AMBIGUO

 

CHEGOU a data da assembléia em que Isolda, a loura, se devia justificar com o julgamento. Era um dia quente, para o fim do verão. Tristão, a seu pedido, fizera uma estranha vestimenta: uma cota de burel grosseiro que trazia sem camisa sobre a pele, um alforje e velhas botas de couro remendadas para cobrir-se, talhara uma ampla capa de lã castanha, enegrecida pelo fumo. Assim enferpelado, parecia um verdadeiro leproso; por prudência, escondia sob a capa a espada, suspensa de uma corda que atara à volta da cintura. Gorvenal, que o acompanhara até ali, dera-lhe sábios conselhos: “Tristão, não sejas tolo por bravata. Observa bem os sinais que te fará a rainha e executa as suas ordens.” “Se me ajudares, tudo ira bem; mas não devemos ir sem as armas, pois podem-nos fazer falta. Levarás o meu cavalo arreado, com o escudo e a lança, e emboscar-te-ás numa moita, na proximidade do Mau Passo. Os dois reis estarão ai, rodeados pelos seus barões. Enquanto armam as tendas na pradaria, do outro lado do vau, dar-lhes-ei um famoso espetáculo!”

Gorvenal emboscou-se como Tristão lhe dissera. O falso leproso, de bordão ao pescoço, cálice de madeira na mão, veio sentar-se no cimo do outeiro que dominava os pântanos e o vau. Não era disforme, nem corcunda, mas estava tão bem caracterizado que toda a gente acreditava. Aos que passavam por ele dizia, lamentando- se: “Infeliz de mim, que não nasci para me tornar mendigo nem ter tal oficio. Mas, no estado em que estou, não tenho outro remédio.” As pessoas, apiedadas, puxavam das bolsas e ele recebia humildemente as esmolas. Até aos pedintes, aos vagabundos que jaziam de costas nas valas das estradas, estendia o cálice. . Uns davam-lhe, outros injuriavam-no, chamando-lhe vadio, devasso, e maltratavam-no. Ouvia e suportava tudo sem lhes responder, mas quando se tornavam demasiado ameaçadores, afastava-os com a muleta: magoou uma dúzia. Aos que lhe davam, dizia que ia beber à sua saúde, pois um fogo ardente lhe devorava o corpo. Ninguém desconfiou que não fosse verdadeiramente leproso.

Na pradaria, lacaios e escudeiros erguem os pavilhões de cores vivas e, por vias e caminhos, chegam os cavaleiros em bandos, apressando-se a atingir o pântano. Meu Deus, como o caminho é péssimo! Merece bem a designação de Mau Passo! Mal se afastam do pontilhão feito de tábuas postas sobre uma camada de lenha, os cavalos entram no lodo até ao flanco e os cavaleiros cobrem-se de lama. O leproso faz chacota do seu embaraço; grita-lhes: “Segurai as rédeas pelo nó e dai às esporas! Para a frente! Não há mais lodaçal!” E quando avançam, o pântano afunda-se sob eles. Então, vendo o cavaleiro estatelar-se na vasa, Tristão, radiante, toca a matraca e bate com o cálice no bordão. Artur aproximou-se do vau. Tristão vai ao seu encontro e implora: “Ô grande rei! Sou pobre e filho de pobre, doente, corcunda, desfigurado, leproso. Venho aqui para pedir esmola: não me mandes embora; ouvi tantas vezes falar da tua generosidade! Tens belas roupas de tecido cinzento e o pano de Remos é doce à tua pele branca. Vejo as tuas pernas estreitamente cingidas por calções de fio verde e os teus pés calçados de botas escarlates. Vê a minha roupa esburacada, vê a minha pele, como me coço e tenho frio, embora o corpo me arda. Rei, por Deus, dá-me as tuas polainas.” O nobre rei apieda-se. Dois lacaios o descalçam; o leproso desce do cabeço para receber as polainas e volta depois a subir. Por sua vez, chega o rei Marcos, orgulhoso e bem trajado. O leproso quer ver se consegue qualquer coisa dele. Mais que nunca, agita a matraca e fala com ênfase. O rei pára tira o capuz e só conserva o gorro na cabeça “Toma, irmão, cobre o crânio e os ombros: com certeza que, com o mau tempo, deves sofrer muito.” “Sire, obrigado, isto me resguardará do frio.” E põe o capuz.

Com grande custo, Marcos atravessou o Mau Passo e juntou-se a Artur, que, na margem dependente do seu reino, diverte-se com os seus homens. Desde logo se informa de Isolda: Vem com o senescal Dinas de Lidan, que se encarregou de escoltá-la — respondeu Marcos. “Mas como irá atravessar o lameiro deste Mau Passo?” No mesmo instante, dois dos barões traidores, Denoalen e Gondoïne, chegam diante do vau. Avistam o leproso e perguntam-lhe por onde passaram os cavaleiros que menos se enlamearam. Tristão aponta com a muleta: “Vedes essa turfeira? O melhor caminho; vi vários passarem por ai.” Os traidores avançam e, de repente, enterram-se ao mesmo tempo no lodaçal até à sela dos cavalos. O leproso grita- lhes: “Ide, senhores. Segurai-vos bem aos arções e avançai: digo- vos que é o caminho, vi passar por ele muita gente hoje.” Mas os outros não encontraram nem margem nem fundo. Para ver como sairiam dali, os dois reis e a sua gente aproximaram-se. Isolda, a bela, chega por sua vez, montada num palafrém branco. Vem vestida com uma túnica de seda clara e um longo casaco forrado de arminho; as suas tranças louras caem-lhe até abaixo da cintura, presas na testa por um círculo de ouro. Com grande alegria, vê os invejosos na lama e o amado empoleirado no outeiro, vestido de mendigo; ri com vontade. E Tristão, radiante, bate com o cálice no bordão e agita a matraca. Todos os que aí se encontram riem também às gargalhadas. O leproso interpela então Denoalen: “Agarra no meu bastão, bom senhor, segura-o e puxa com força com as duas mãos!” Quando o traidor segura bem firme, Tristão deixa-o cair de costas e grita com voz de falsete: “Não consigo segurar- te! O mal entorpeceu-me as mãos, levou-me as forças.” Há agora à vontade, à volta dos dois reis, cem barões que se divertem a observar os dois traidores chafurdando na lama. Estes se livram do lodo com grande custo: têm de tirar as roupas e tomar banho antes de se apresentarem na assembléia.

Isolda, que descera da montaria, faz sinal a Tristão que vai também passar o vau. A seu lado, Dinas ocupa-se a ajudar a rainha. “Senhora — diz-lhe —, ides sujar o vestido ao atravessar o pântano. Ficaria triste se vos acontecesse algum dano.” Isolda ri-se, pois tinha a sua idéia na cabeça. Despiu o casaco forrado de arminho, que confiou a Dinas de Lidan, só conservando a túnica de seda branca, o diadema de ouro, as jóias do pescoço e das mãos e os finos sapatos. Com um piscar de olhos, fez compreender ao senescal que não precisava dele para atravessar o vau. Dinas afastou-se, seguiu a margem e acabou por encontrar outro vau um pouco mais baixo, por onde passou sem dificuldade.

Isolda sabia perfeitamente que a observavam do outro lado. Aproximou-se do palafrém e, mais depressa que um escudeiro, atou sobre o arção as presilhas da gualdrapa, meteu a cilha sob a sela, tirou-lhe o freio e o peitoral, e depois, vergastando o animal com a chibata, fê-lo entrar na água de modo que passou sozinho o pântano e atingiu a outra margem. Isolda via, do outro lado, os dois reis e os vassalos e divertia-se com a sua surpresa. Que lhe aconteceria na travessia do Mau Passo, privada de montada? Viram-na subitamente avançar para a entrada da ponte de feixos e dirigir-se ao leproso empoleirado no outeiro: “Mendigo, não me quero sujar na travessia; levar-me-ás às costas como um burro, em passos lentos, sobre as pranchas do pontilhão.” “Nobre rainha, não me peçais semelhante serviço: estou doente e não me seguro nas pernas, de tal modo o mal me enfraqueceu!” “Pouco importa, despacha-te e curva o lombo!” O leproso obedece, baixa a cabeça e inclina as costas; ela monta nele, que se estica, se apoia na muleta, avança pela travessa de madeira e anda como que com grande esforço, coxeando, fingindo arquejar e escorregar por vezes na lama Quanto a Isolda, muito à vontade, perna daqui, perna dali, aperta fortemente o leproso entre as coxas e, com a mão, apalpa-lhe as costas. Da margem, os assistentes observam-nos e não adivinham nada. Na montaria, lentamente, Isolda atinge a outra margem do pântano. Artur e Marcos foram ao seu encontro. A rainha deixa-se escorregar. O portador pede-lhe com que se alimentar. “Ah! — diz Artur —, mereceu-o bem, rainha, dai-lhe!” Responde Isolda: “Pela fé que vos devo, sire, ele não necessita de absolutamente nada. Enquanto o cavalgava, reparei que era um mendigo forte e, apalpando-o, senti que o alforje estava cheio. Tem as vossas polainas e o capuz do meu senhor; nada lhe darei; deve estar contente em ter-me sido útil.” Nisto, um escudeiro lhe traz o palafrém e a rainha monta nele.

Diante das tendas dos dois reis, senhores, clérigos e gente do povo estavam reunidos. Um lençol de seda ricamente bordado estava estendido na erva e haviam ai disposto todos os corpos santos do pais, tirados do tesouro das igrejas, relicários de ourivesaria, escrínios e relicários esmaltados. Artur saiu do seu pavilhão e falou em primeiro lugar: “Rei Marcos — disse —, ultrajar a rainha exigir-lhe semelhante juramento. Aqueles que te levaram a reunir esta assembléia fizeram-te uma patifaria e deviam pagá-la caro. Es demasiado crédulo e deixas-te enganar pelos intrigantes. Mas já que Isolda, a nobre rainha, a complacente, se quer submeter a esta provação, consinto que se realize na minha presença. Declaro-o solenemente: uma vez justificada com o juramento, mandarei enforcar todos aqueles que tiverem a audácia de falar mal dela.” Marcos respondeu-lhe: “Ai de mim! As tuas censuras atingem-me e aceito-as. Mas que podia fazer quando os meus barões me predispunham contra a rainha? Fiz mal em ouvir- lhes as palavras malevolentes e tomar as suas mentiras por avisos sinceros. Asseguro-te, rei Artur, que, se depois deste julgamento, se obstinarem em a maldizer, não terão de mim nenhum perdão.” Artur dirigiu-se então a toda a multidão: “Gente da Cornualha, escutai-me! A rainha vai comparecer livremente e de sua plena vontade: sobre as relíquias dos santos, prestará juramento ao rei do Céu de que nunca teve com Tristão relações das quais possa ser censurada. Quando a tiverdes ouvido tomar Deus por testemunha, não mais tereis o direito de suspeitar dela.”

Os assistentes dispuseram-se diante das tendas, e os dois reis conduziram Isolda segurando-lhe as mãos. A rainha, depois de se ter descalçado e suplicado a Deus, os braços estendidos para a frente, avançou para as relíquias, vestida unicamente com a túnica de seda branca. Em volta, os barões contemplavam a sua beleza. “Escutai-me, Isolda, a bela — continuou Artur. — Jurai aqui que Tristão não teve por vós mais do que o amor devido à mulher de seu tio e que vós não tivestes por ele outro amor além do devido ao sobrinho de vosso marido. Jurai-o.” Então Isolda respondeu: “Sire, farei ainda melhor do que o que me pedis. A fim de o rei Marcos e todo o povo da Cornualha ficarem inteiramente seguros de mim, perante Deus e toda a corte celeste, sobre estas santas relíquias e sobre todas as que estão pelo mundo, juro que jamais homem algum entrou nas minhas coxas senão o rei Marcos, meu marido, e aquele leproso que, há pouco, me trouxe às costas como um animal de carga.” Estendeu então a mão direita por cima dos corpos santos e, com uma voz forte e segura, pronunciou a fórmula sacramental, segundo o rito da Santa Igreja: “Assim como disse a verdade, possa Deus Todo-Poderoso vir em meu socorro!” Fez-se um grande silêncio entre o povo e os barões, como se esperassem que Deus se manifestasse por meio de um sinal sensível, mas nada se produziu. Isolda rompeu o silencio em primeiro lugar e disse: “Rei Artur, ouvistes o que jurei do meu marido e do leproso: excluo esses dois do juramento e mais nenhum. Em verdade, não posso fazer mais nada.” Artur respondeu: “Todos os que ouviram a fórmula deste juramento concordarão que nada mais se pode exigir. A rainha era unicamente obrigada a justificar-se em relação a Tristão, e prestou um juramento que se aplica, excetuando o leproso, a todos os outros homens! Infeliz daquele que, doravante, suspeite dela!”

O rei Artur dirige-se pela última vez ao rei Marcos, em presença de todos os barões: “Rei, vimos e ouvimos bem a justificação de Isolda: nada mais deixa a desejar. Que os traidores e os maus — poderia citar-lhes os nomes — não duvidem; que nunca mais deixem escapar uma calúnia. Pois, em paz ou em guerra, se soubesse que dizem da rainha Isolda qualquer má palavra, nada me impediria de vir eu mesmo vingá-la!” “Nobre senhor — diz Isolda —, muito vos agradeço!” Da assistência sobem aclamações dirigidas à rainha; na multidão, os traidores e os seus amigos escondem-se e perdem-se. Depois, cada um volta para casa, Artur para Durham e Marcos para Tintagel. Quanto a Tristão, depois de ter escutado de longe o juramento, juntara-se a Gorvenal numa moita e voltaram juntos para a cabana do florestal.

 

XXVI

DISFARCES E CRUELDADES DO AMOR

 

QUANDO Tristão, de regresso à cabana do florestal Orri, jogou fora o bordão e despiu a roupa de leproso, perguntou a si mesmo se não chegara o dia de afastar-se do país da Cornualha. Por que tardar ainda, já que Marcos não dera seguimento ao projeto de voltar a chamá-lo? Mesmo depois do juramento no Mau Passo, não achara bem pôr fim ao seu exílio. É verdade que a rainha se justificara, saíra vitoriosa da provação imposta pelos traidores; o rei, longe de lhe mostrar ressentimento, honrava-a grandemente e amava-a. Artur, em caso de necessidade, tomá-la-ia sob a sua salvaguarda: nenhuma perfídia poderia doravante prevalecer contra ela. Por seu lado, Gorvenal observava a Tristão que não podia continuar mais tempo, contra a vontade expressa do rei, a rondar à volta de Tintagel sem arriscar inutilmente a sua vida, a vida do florestal Orri, que lhe dava asilo, e o repouso de Isolda. Tristão tardou ainda três dias, não podendo resolver-se a separar- se do país onde vivia aquela a quem amava. Quando chegou o quarto dia. despediu-se do florestal e disse a Gorvenal: “Querido mestre, eis chegada a hora da longa partida, vamos para o país de Gales ou para o rico rei de Gavoie.

Puseram-se a caminho, tristemente, pela noite afora. Mas o caminho ladeava o pomar do castelo, cercado de estacas, onde Tristão, outrora, esperava pela amiga. A noite estava clara e o céu estrelado. Numa curva do caminho, não longe da paliçada, viu destacar-se no céu claro a silhueta altaneira do pinheiro grande. “Querido mestre, espera no próximo bosque, estarei de volta em breve.” “Onde vais, louco? Queres sem descanso provocar a morte?” Mas já com um salto ágil Tristão transpusera a paliçada de estacas. Dirigiu-se para o pinheiro grande, perto da fonte e da escadaria de mármore.

No quarto das mulheres, Isolda, estendida na cama, estava acordada e Brangia repousava não longe dela. Subitamente, o canto de um rouxinol elevou-se no jardim, primeiro débil e hesitante, depois encheu-se e tornou-se mais seguro; a voz entrou no quarto pela janela aberta e encheu-o com a sua quente harmonia. Isolda, extasiada, escutava esta melodia que vinha encantar a noite. A rainha julgara primeiro ouvir um rouxinol. A força de pensar nisso, uma dúvida atravessou-lhe o espírito e transformou-se em breve numa certeza: “Ah! 1: Tristão! Assim imitava na floresta de Morois, para me deleitar, todos os pássaros do bosque. Vai partir e afastar-se deste país: este canto é o seu último adeus. Como se lamenta! Assim faz o rouxinol quando se despede, no fim do verão. Querido, nunca mais ouvirei a tua voz!” A melodia vibra, mais ardente. “Ah!, que exiges? Que eu vá? Não, lembra-te de Ogrin, o eremita, e dos juramentos feitos. Cala te, a morte espreita-nos!” Os trinados redobraram, fizeram-se mais prementes. “Que importa a morte? Chamas-me, queres-me, vou!”

Deslizou para fora da cama e deitou sobre o corpo um casaco forrado de pele de esquilo. Brangia acompanhou-a até ao vestíbulo que dava para o jardim e aí ficou de atalaia para prevenir a senhora ao primeiro alerta. Isolda transpôs a soleira e embrenhou- se na alameda que conduzia ao pinheiro grande. A medida que se aproximava do local de onde provinha o chamado, o canto diminuía de intensidade; em breve abrandou-se e dissipou-se na penumbra. Debaixo das árvores, sem uma palavra, Tristão apertou a amada contra o peito e os braços enlaçaram-se à volta dos corpos. Pela primeira vez se encontravam sozinhos desde que se tinham separado no Vau Aventuroso e Isolda fora entregue a Marcos.

Doravante, nunca mais Tristão se poderia encontrar com sua amada, a não ser de longe a longe, com perigo de vida e sob um disfarce do acaso. Na Charneca Branca, vestira a roupa de um leproso para poder levá-la às costas de uma margem à outra do vau. Nessa noite, escolhera a imitação do rouxinol. Até ao aproximar da aurora, não desfizeram o abraço. Então ele saiu do jardim saltando por cima da paliçada e, apesar das objurgações de Gorvenal, resolveu adiar uma vez mais a partida. Com a cumplicidade de Brangia e de Périnis, os amantes retomaram como outrora os encontros noturnos, primeiro no jardim e depois no próprio quarto de Isolda. Ora, Gondoïne, um dos traidores, tinha um servo que várias vezes empregara para espiar os amantes. Foi um dia ter com o barão e disse-lhe em grande segredo: “Senhor, não o ignorais: desde a assembléia do Mau Passo que o rei vos tomou ódio. E, todavia, a rainha fez um juramento falso! Tristão, que se devia exilar, violou a promessa e esconde-se não longe daqui. Mais de uma vez, durante a noite, se encontra e faz amor com ela no quarto das mulheres, enquanto Brangia fica de atalaia e Gorvenal espera fora do tapume. Quereis surpreendê-los em flagrante? Emboscai-vos no pomar e içai-vos até o balcão da janela que dá para um angulo do jardim. Se seguirdes os meus conselhos, não tardareis a ver Tristão aparecer, a espada na bainha, o arco numa das mãos e duas flechas na outra. Podeis acreditar-me, pois o vi com os meus próprios olhos.” “Quando viste?” “Esta manhã, antes da alvorada; vê-lo-eis como eu se o quiserdes. Que me dareis em recompensa?” “Vinte marcos de prata, pelo menos, e, se não mentiste, far-te-ei ainda mais rico.” “Prestai atenção — disse o devasso. — A janela alta a que me referi está encoberta com uma tapeçaria de seda. Entrai no pomar, lá para o fim da noite, escalando o tapume, e içar-vos-eis sem custo a um rebordo do balcão. Tende o cuidado de vos munir de uma vara bem aguçada, que espetareis na tapeçaria. Assim, afastá-la- eis suavemente, a fim de ver o interior. Consinto em ser queimado vivo se, por essa abertura, não contemplares um belo espetáculo!”

Gondoïne deu parte da noticia a Denoalen, seu compadre, e comunicou-lhe a vontade de tentar em primeiro lugar essa aventura, no dia seguinte; Denoalen arriscá-la-ia depois. Resolvida a questão, separaram-se alegremente, pois julgavam-se certos de confundir Tristão. A rainha não suspeitava nada das suas intrigas e, como o rei devia partir para a caça pouco depois da meia-noite, enviou Périnis a Tristão para lhe dizer que podia vir passar a seu lado as últimas horas da noite. A Lua brilhava ainda quando ele deixou o refúgio: pôs-se a caminho através dos bosques que o separavam do castelo. Rastejando pela mata, avançava com prudência, pois estava sempre a temer uma armadilha. Subitamente, ao desembocar de uma moita de espinheiros, viu Gondoïne avançando ao longo de um atalho. Tristão atirou-se para a espessura do matagal. “Meus Deus, fazei que ele não me veja antes de estar ao meu alcance!” E, a espada desembainhada, estava pronto a atacar, mas Gondoïne fez um desvio por outro atalho. Tristão lançou-se em vão ao seu alcance: o traidor avançara muito e já estava fora de suas vistas.

Tristão retomara a marcha através do matagal quando surgiu Denoalen, precedido por dois galgos e montado num cavalo negro. O bravo, dissimulado atrás de uma macieira, esperou-o. O outro apressava-se a alcançar os cães que enviara à frente para espantarem um javali. Mal o homem ficou suficientemente próximo, Tristão tirou o casaco e, com um salto, colocou-se à sua frente. O traidor quis fugir: quase nem teve tempo para soltar um grito de pavor, pois Tristão decepou-lhe a cabeça com a espada. Depois, cortou-lhe as longas tranças e meteu-as nos calções: levá-las-ia a Isolda para melhor se regozijar com ela da morte do traidor. Limpou a espada na erva, meteu-a na bainha e arrastou um pesado tronco para cima do corpo ensangüentado do inimigo.

Os primeiros clarões do dia afugentavam já as trevas. Tristão apressava-se agora a atingir a habitação da rainha. Gondoïne havia-se-lhe antecipado. No rebordo do balcão, afastara ligeiramente a tapeçaria com uma vara de ponta afiada e via do alto o interior do quarto das mulheres todo juncado de gladíolos. Primeiro só avistou Brangia, que ainda segurava o pente de marfim com o qual penteara a rainha. Isolda entrou pouco depois, um castiçal na mão, ajustando as vestes. Finalmente, Tristão transpôs a soleira, o casaco desapertado, trazendo numa mão o arco de alburno e na outra duas longas tranças ruivas. Quando a rainha ia ao seu encontro, viu, perfilada na cortina, a sombra da cabeça de Gondoïne. “Querida — disse Tristão —, trago-vos um rico presente: são as tranças de Denoalen. Cortei-lhe o pescoço; nunca mais usará a lança ou o escudo.” “Muito obrigada, louvado seja Deus! Mas concedei-me mais alguma coisa!” “O quê?” — perguntou Tristão. “Gostaria que retesásseis o arco para ver como o fazeis., Tristão, surpreendido, hesitou um momento sem compreender. Depois, retesou o arco com todas as forças. Então Isolda disse-lhe ao ouvido: “Amor, armai uma flecha: avisto lá em cima, na tapeçaria, a sombra de uma cabeça que não me agrada nada! E agora, visai com precisão!” Tristão ergueu o olhar para a janela e reconheceu o rosto do inimigo, cuja sombra se recortava na tapeçaria.

Deus — pensou —, se sou verdadeiramente um hábil arqueiro, faz com que não falhe!” Visou tranqüilamente e atirou: a flecha voou mais rápida que o esmerilhão, atingiu com toda a força o olho de Gondoïne e alojou-se-lhe no crânio. o traidor morreu no mesmo instante e o corpo caiu para trás do lado do pomar. Isolda, impressionada, pegou na mão de Tristão: “Doce amor — disse-lhe —, não há dúvida de que nos podemos regozijar! Denoalen e Gondoïne já não existem, não virão mais perturbar a paz entre o rei Marcos e eu, e prejudicar o nosso repouso. O fiel Périnis enterrará este corpo na floresta.”

Todavia, apesar da embriaguez da vingança, só experimentaram, nessa manhã, um prazer misturado com inquietação e amargura: sentiam mais do que nunca como a sua felicidade era frágil e sempre ameaçada. Quando Tristão se preparou para partir, Isolda disse-lhe: “Por certo que temos hoje menos dois inimigos, o que é muito, mas restam na corte o duque Audret, Kariado e bastantes invejosos ou indiscretos para espiarem as nossas idas e vindas. Mais cedo ou mais tarde, encontrarão na floresta o corpo decapitado de Denoalen e todos compreenderão que foste tu quem o matou; se Gondoïne desapareceu, só tu o pudeste suprimir. Desde agora o teu refúgio não mais poderá ser dissimulado. Para tua e minha salvação, tens de fugir para longe daqui.” “Querido amor — respondeu Tristão —, partirei então, uma vez que é essa a tua vontade. Prefiro afastar-me de ti a ver-te viver, por minha culpa, na incerteza e na angústia. Mesmo que a tua imagem se pudesse apagar um único instante do meu coração, o teu anel de jaspe verde fá-la-ia renascer imediatamente: bem sabes que ao teu primeiro apelo virei ter contigo.” Tristão beijou-a uma última vez e, com o coração oprimido, foi juntar-se a Gorvenal, que o esperava no bosque.

 

XXVII

AS FOICES SANGRENTAS

 

DESTA vez, Tristão deixou Tintagel com o pensamento de que não voltaria tão cedo, e talvez até nunca mais. Era não contar com a estranha aventura que devia, contra as suas previsões, trazê-lo de volta alguns dias mais tarde. Tomara com Gorvenal o caminho que levava ao reino de Gavoie Depois de terem atravessado a Charneca Branca e o vau do Mau Passo, os dois homens ladeavam a orla de uma floresta quando encontraram um grupo de monteiros do rei Artur e, entre eles, vários companheiros da Távola Redonda. Gauvain, sobrinho de Artur, e Keu, o senescal, fizeram bom acolhimento a Tristão, de quem conheciam a fama das proezas e das desventuras. “O quê? — perguntaram-lhe. — Ainda errais pelos bosques com um único escudeiro? O rei Marcos não pôs fim ao vosso exílio? Não devia deixar-vos voltar para a corte mal a rainha se justificasse em juramento na presença de Artur e na nossa?” “Que querem, senhores? — respondeu Tristão. — Os meus inimigos, e o duque Audret mais que os outros, têm demasiado poder na corte sobre o espírito do rei para que o meu tio consinta acolher-me de novo junto de si. As suspeitas e a angústia apoderaram-se da sua alma e não sei se alguma vez se libertará delas. Presta à rainha todas as honras e trata-a com grande deferência, mas ainda não levantou até hoje a sentença de exílio que aplicou contra mim no dia em que lhe restituí Isolda.” “Querido senhor Tristão — continuou o senescal Keu —, agradava-vos rever a rainha uma vez mais, antes de vos exilardes numa terra longínqua? Vinde conosco: iremos caçar perto de Tintagel e, chegada a noite, fingindo termo- nos perdido, pediremos hospitalidade ao rei. Estareis conosco como um dos monteiros, encarregado de preparar e conduzir a matilha. Assim, nessa vestimenta, podereis aproximar-vos da rainha e conversar com ela.”. Muito obrigado, senescal — respondeu Tristão. — Uma vez que me ofereceis essa boa aventura, não a posso recusar. Conheço umas ervas mágicas que modificarão a cor e os traços do meu rosto, de modo que o próprio rei Marcos não me poderá reconhecer.” Gorvenal em vão qualificou esse projeto de insensato e jurou por todos os deuses que não seguiria Tristão nessa louca aventura: de nada adiantou e, no dia seguinte, o plano foi executado.

Marcos, o cortês, o generoso, acolheu bem Gauvain, o senescal Keu e todos os monteiros. Recebeu-os à mesa albergou-os no quarto real. Esse aposento era vasto e alto, coberto por um teto de fortes vigas e de ricos lambris; o chão era de terra batida, mas todo juncado de gladíolos. Porém, no meio do alegre tumulto do festim, Marcos estava inquieto e perturbado no intimo, tanto mais que acabara de tom ar conhecimento do assassínio de Gondoïne e de Denoalen e bem sabia que só Tristão podia ser o autor. Atormentado pelos ciúmes, assustava-o sentir rodar à volta da bela Isolda os desejos de todos os caçadores. Mandou chamar três servos e ordenou-lhes que espetassem em circulo, no chão do quarto, à volta das camas vizinhas do rei e da rainha, laminas de foices recentemente afiadas, como colocavam nas armadilhas para lobos; gladíolos deviam dissimular o gume das foices, de modo que, se alguém se tentasse aproximar, a favor das trevas, do leito da rainha, ferir-se-ia cruelmente nas pernas e seria obrigado a fazer marcha atrás. Os três servos espetaram as foices como o rei mandara.

Terminado o festim, vieram os ditos alegres depois de beber; um pouco antes da meia-noite, o próprio Marcos conduziu Isolda até ao leito, com medo que se magoasse nas laminas aceradas. Os convidados, depois de se descalçarem e despirem, estenderam-se nas camas de tiras de lona dispostas à volta do quarto. Quando todos adormeceram, Tristão levantou-se sem ruído e procurou — o insensato! — juntar-se a Isolda no leito. Não tardou a rasgar as pernas numa das foices, e teve de rasgar os lençóis para estancar o sangue e atar as feridas. Keu, seu vizinho, inclinou-se para ele e perguntou baixinho: “Que tendes? Como vos magoastes?” “Senescal — murmurou Tristão —, foi o rei que, para impedir que se aproximassem da mulher, mandou espetar foices no chão do quarto.” “Infeliz — respondeu Keu —, ides ser descoberto! Essa ferida far-vos-á reconhecer!” O senescal imaginou então um belo estratagema: mandou transmitir, de uma cama para outra, ordem para que todos os monteiros se levantassem bruscamente, descalços, e se injuriassem uns aos outros como se discutissem. Um instante depois, todos os caçadores corriam através do quarto gesticulando, soltando gritos e lançando-se grosseiras provocações: todos se magoaram no gume das foices e fizeram nas pernas profundos golpes. O rei Marcos, despertado em sobressalto e não compreendendo nada da barulheira, ordenou a Périnis que acendesse os candelabros. Um espetáculo inaudito ofereceu-se então aos olhares: todos os convidados do rei perdiam sangue em abundância e esforçavam-se por estancá-lo com pensos improvisados. Todo o quarto estava ensangüentado. Só Keu, o imaginador da artimanha, prudente e fino como de costume, conseguira esquivar-se das foices, mas Gauvain, por gracejo, empurrou-o contra elas, de modo que se feriu mais gravemente que os outros. Então Keu teve uma nova inspiração. Na desordem geral, começou a gritar com voz forte: “Andam lobos nesta sala, para que se disponham tais armadilhas? É esta a hospitalidade de Marcos?” Que restava ao rei fazer senão acalmar a contenda e desculpar-se por ter deixado pôr armadilhas no seu próprio quarto? Enquanto cuidavam dos feridos, Tristão, que já não corria o risco de ser reconhecido entre os feridos, aproveitou para aproximar-se Lia rainha e dirigir-lhe algumas palavras.

De manhã, enquanto os homens de Artur voltavam para a floresta, Tristão desceu até ao porto onde o fiel Gorvenal, aguardando o seu retorno, se pusera em busca de um navio prestes a largar. Uma nau de mercadores ia fazer-se à vela para a Pequena Bretanha; combinaram o preço e embarcaram.

XXVIII

A MIRAGEM DA OUTRA ISOLDA

 

NESSE tempo reinava na Pequena Bretanha, à qual também chamavam Armórica, um velho duque de nome Hoel, a quem o vizinho, o conde Riol de Nantes, guerreava rudemente. O duque tinha um filho chamado Kaberdin, bravo e cortês, e uma filha, bela e bem- educada, a quem chamavam Isolda das mãos brancas. Tristão ofereceu os seus serviços ao duque, que o aceitou, e tão bem fez, com a ajuda de Kaherdin, que libertou várias cidades sitiadas pelo inimigo e obrigou o conde Riol a implorar a paz.

Porque a filha de Hoel tinha o nome de Isolda e assemelhava-se muito com a Isolda da Irlanda, Tristão deleitava-se a fitá-la. A donzela, porque o via belo e valoroso, apaixonou-se por ele. Um dia em que Tristão cavalgava com Kaberdin, começou a pensar em Isolda, a loura, que deixara em Tintagel, e afundou-se num tão profundo devaneio que já não sabia se dormia ou estava acordado. Kaherdin apercebeu-se disso, mas não disse uma palavra, receando importuná-lo. Tristão, mergulhado nos seus pensamentos, começou a cantar a meia-voz: Isolda, minha força; Isolda, minha querida Em vós, minha morte, em vós, minha vida!

Era o refrão de um lai bretão que compusera não há muito em honra de Isolda, a loura. Quando saiu finalmente deste devaneio, sentiu- se constrangido perante Kaherdin. O companheiro disse-lhe:

“Amigo, não é de bom senso pensar demais!” “Falas verdade — replicou Tristão —, mas não é de admirar que o homem que tem o coração em tormento por vezes se perca.” “Amigo — disse Kaherdin —, vejo-te mais pensativo do que desejaria e creio bem que é por qualquer dama ou donzela. Se te apraz confias-te a mim, não me pouparei a nada para aliviar-te a dor.” “Vou dizer-to — continuou Tristão. — Amo tanto uma bela chamada Isolda, para quem compus esta canção, que suspiro por ela como podes ver. Se essa Isolda não existisse, desejaria deixar este mundo.” Quando Kaherdin ouviu o nome de Isolda, julgou que Tristão referia-se a sua irmã, pois nunca ouvira falar de outra Isolda e teria muito prazer que Tristão se tornasse seu cunhado. Disse: “Tristão, por que mo escondeste tanto tempo? Fica sabendo: se tivesse pensado que querias a minha irmã, asseguro-te que não terias de sofrer uma longa espera.” Tristão compreendeu que Kaherdin se enganara quanto ao objeto dos seus sonhos, mas não ousou desenganá-lo, pois o seu coração estava agitado por sentimentos diversos e o seu espírito atravessado por pensamentos contraditórios.

A noite, sozinho no quarto, dirigia-se baixinho a Isolda, a loura, como se esta estivesse presente: “Bela, como as nossas vidas são diferentes! Na separação que suportamos, só há amargura para mim. Perco por ti a alegria e o prazer que enchem os teus dias e as tuas noites. A minha vida não passa de incessantes torturas, a tua de encantamentos de amor. Só vivo para te desejar, ainda que só conheças nos braços do teu marido gozo e voluptuosidade. O rei tem todo o vagar para se deliciar contigo: o que foi o meu bem tornou-se a sua presa.” Este pensamento fê-lo sentir tanta amargura que se apanhou a dizer: “Sei bem as alegrias que Isolda tem: ela, por quem o meu coração despreza todas as mulheres, compra o prazer com o esquecimento a que me vota. E eis agora que sinto a amarga, angústia de me sentir desejado por outra mulher; o amor ardente com que esta donzela me requer torna ainda mais insuportável a dor de ser abandonado pela rainha. Se a loura Isolda não se acautela, terei de renunciar ao que não posso ter: encontrarei o apaziguamento neste novo amor. Em vez de suspirar pelo impossível, restringirei as minhas forças às coisas acessíveis. Para que eternizar um amor do qual não pode vir nenhuma alegria? Que Isolda, a loura, ame o seu dono e senhor e fique com ele. Não a quero censurar: o homem não deve odiar o que adorou, pode unicamente libertar-se, afastar-se e desprender- se disso. Quero doravante esforçar-me, a exemplo da loura Isolda, por apreciar o encanto que há nas carícias sem amor. Mas como experimentá-lo senão casando com a jovem que se enamorou de mim e que aspira a dar-me esse prazer?”

Tristão deseja Isolda das mãos brancas pela sua beleza, que era como que um reflexo da de Isolda da Irlanda, e também pelo nome de Isolda, que lhe recorda o primeiro amor: é a reunião do nome e da beleza que lhe inspira o desígnio de tomar a jovem por mulher. O sofrimento vem-lhe de uma Isolda, é de outra Isolda que espera a consolação. Eis que mostra por ela tanto ardor, que tem para com os seus parentes tantas belas palavras, que todos concordam em celebrar o casamento.

No dia fixado, todos os preparativos estão terminados para as núpcias: Tristão casa com Isolda das mãos brancas. O capelão celebra o oficio, depois demoram-se num banquete de festa. Saem para divertirem-se na música, no lançamento do dardo e na esgrima. O dia passa com os prazeres, a noite está próxima; o leito nupcial está preparado. A moça entra em primeiro lugar. Tristão despe a túnica, mas, ao retirar a manga direita, ajustada ao punho, deixa escorregar do dedo o anel de prata com engaste de jaspe verde que a rainha lhe dera no dia da separação. O anel tilinta nas lajes com um som claro, Tristão inclina-se para apanhá-lo e contempla-o longamente. Como por encanto, a radiosa imagem de Isolda, a loura, surgiu diante de si e encheu-o até ao mais fundo do ser de uma emoção indizível. O anel mágico fez a sua obra. Recolocou diante dos olhos do amante a imagem, um instante esfumada, da longínqua bem-amada. Um remorso insinua-se- lhe na alma e em breve a domina: arrepende-se da conduta e absorve-se em amargas reflexões. Esse anel, que meteu no dedo, rememora-lhe o pacto da mútua fidelidade concluído com Isolda na hora do último adeus. Suspira do fundo do coração e diz para consigo mesmo: “Eis que eu próprio me coloquei, por causa de um louco erro, numa dura necessidade. O meu dever de marido é de me deitar ali, uma vez que casei com esta donzela. As conveniências exigem que me estenda ao lado dela: já é tarde para me retirar! Eis o belo trabalho do meu coração demente, fútil e volúvel.”

Tristão deita-se, Isolda enlaça-o ternamente, beija-lhe a boca e a face. Deseja ardentemente aquilo a que Tristão se recusa. Não é que não esteja disposto a acariciar a sua jovem mulher, mas um amor maior retém-no e faz calar o apelo dos sentimentos. A paixão por Isolda, a loura, mais forte que nunca no seu coração, paralisa-lhe a vontade e torna a natureza impotente. Vê que a jovem é desejável e ardente; aspira a volúpias, mas o outro desejo é suficientemente forte para dominar o instinto da carne: tudo cede àquele grande amor. E é para Tristão um embaraço, um tormento, uma inquietação e uma angústia não saber como se manter casto, que conduta ter com a mulher, a que estratagema recorrer. Subtrai-se aos abraços da jovem esposa e ilude o prazer que ela procura. Dá um único beijo a Isolda das mãos brancas e diz-lhe: “Minha bela amiga, não tomeis isto por uma vilania ou um ultraje. Quero fazer-vos uma confissão, pedindo-vos que a guardeis só para vós, pois nunca a confiei a mais ninguém. Aqui, no meu lado direito, tenho uma ferida que me afligiu longamente e que ainda esta noite me atormenta duramente. As fadigas que suportei guerreando os inimigos de vosso pai acordaram em mim a dor. Por causa dela, não me posso entregar aos prazeres amorosos. Mas tê-los-emos quando o quisermos.” Isolda respondeu-lhe: “Estou aflita, mais do que saberia dizer, com o mal de que sofreis. Quanto à coisa de que me falais, quero e posso muito bem passar sem ela esta noite.” Assim ficou Tristão, durante toda a noite, estendido, sem se mover, ao lado da esposa. Ela, que dos jogos do amor só conhecia os abraços e os beijos, adormeceu com toda a simplicidade enlaçada a Tristão. Mas chegada a manhã, quando as servas lhe ajustaram o véu das mulheres casadas, sorriu tristemente e pensou que não tinha nenhum direito a ele.

XXIX

A AGUA ATREVIDA

 

ALGUNS meses após o casamento, Tristão e Isolda das mãos brancas dirigiram-se, com Kaherdin, à peregrinação dos Sete Santos da Bretanha. Kaherdin cavalgava à direita da jovem, que montava à amazona, e Tristão à esquerda. Trocam mil ditos agradáveis, e o que dizem absorve-os de tal modo que deixam ir os cavalos ao sabor do seu capricho. Chegam acidentalmente a um pequeno curso de água quase seco, que atravessam num vau atulhado de pedras. Menos dóceis que o cavalo de Tristão, o de Kaherdin esquiva-se, o de Isolda empina-se; ela esporeia-o; mas, ao elevar o tacão para esporeá-lo de novo, é-lhe necessário abrir os joelhos e levantar o vestido, segurando-se com a mão direita ao arção da sela. O palafrém avança, deixa-se cair sobre as patas, mas escorrega numa pedra vacilante no meio do riacho. Pousando a pata na pedra mal segura, o cavalo faz jorrar muito alto um esguicho de água, que salta para debaixo do vestido de Isolda, entre os joelhos. A jovem, apanhada pelo frio da água na carne, solta um grito e desata a rir. Kaherdin, que a ouve, teme ter provocado a sua hilaridade com alguma palavra risível ou algum gesto desajeitado. Um pouco confuso, pergunta à irmã: “Ris com muita vontade, mas não sei por quê. Que fiz eu para ficares nesse estado de alegria?” “Irmão — responde —, não é de ti que rio e não te deves melindrar. Rio da agradável aventura que acaba de me acontecer, quando o cavalo fez saltar a água fria do vau para as minhas pernas. No momento em que ela esguichou para debaixo do meu vestido, estremeci e disse a meia-voz: “Água, és em verdade muito atrevida e foste mais longe entre as minhas pernas do que foi a mão de algum homem, nem mesmo a de Tristão!” Tristão fingiu não ter ouvido estas palavras e, dando às esporas, ganhou avanço sobre os companheiros. Quanto a Kaherdin, voltou-se para a irmã e perguntou-lhe: “Que me contais? Tristão não foi mais atrevido contigo que a água deste riacho?” “Irmão, contei-te isso, mas falei demais e estou arrependida.” Kaherdin, espantado, fez-lhe tantas perguntas que ela acabou por lhe dizer a verdade sobre a noite de núpcias. “Que significa isso? — interroga Kaherdin. — Não partilhais a mesma cama, Tristão e tu, há vários meses, desde que estais casados? Devo compreender que viveis afastados um do outro, como se fôsseis monge e monja? Se Tristão não brinca contigo aos jogos do amor, acho que te faz a pior das ofensas!” “Confesso-te, querido irmão, que Tristão nunca me tocou: por vezes, antes de adormecer, ainda me dá um beijo.” “Por Deus, minha irmã, Tristão enganou-nos e decepcionou-nos gravemente, a ti e a toda a família. Se te desdenha, tão pura e tão franca, é de certeza porque ama outra mulher. Ah!, se o tivesse sabido mais cedo, nunca teria transposto a soleira do teu quarto!” “Irmão, não o deves condenar sem primeiro o ouvir: Tristão é leal e justo e tem, sem dúvida, razões para agir assim. Talvez te as dissesse se o interrogasses?”

Kaherdin levou o cavalo até Tristão, que se afastara um pouco, perdido em devaneios. Mas quando chegou à sua altura, e lhe ia falar, ficou tão embaraçado que lhe faltaram as palavras para exprimir-se. Sentia uma viva contrariedade e um alanceador cuidado, pois supunha que o cunhado desprezara a irmã porque não queria ter um herdeiro descendente da linhagem do duque Hoel. Kaherdin continuou a cavalgar ao lado de Tristão, o rosto sombrio e o ar encolerizado, sem lhe dirigir palavra nem responder às perguntas do amigo. Tristão afligia-se por vê-lo de tão mau humor, ele que se mostrava habitualmente um companheiro tão alegre!

Terminada a peregrinação, quando voltaram para o castelo de Karhaix, Tristão chamou-o de parte e perguntou-lhe: “Amigo, por que evitas qualquer conversa comigo? Em que é que te desagradei? Não é próprio de um gentil-homem zangar-se com o melhor amigo sem lhe dar uma explicação.” Kaherdin, dominando o furor, resolveu-se finalmente a exprimir-lhe com franqueza os agravos que tinha contra ele: “Não sei por que finges, Tristão, não saber o que te censuro; todavia, não ignoras que tenho o direito de te odiar. Nenhum homem da minha linhagem agiria de outro modo no meu lugar, e quando souberem o que eu sei, detestar-te-ão como eu. Mediste o alcance da afronta que nos fizeste? Casaste com a minha irmã em núpcias legitimas, de teu pleno agrado e de tua livre vontade, e no entanto, vários meses decorreram sem que tenhas consumado essa união. É claro que desdenhas unir-te a ela porque desprezas a nossa família: não queres ter um herdeiro de minha irmã. Declaro- te francamente: se não tivesses sido meu companheiro de armas e meu amigo, ter-te-ia feito pagar caro essa injúria. Eis a minha última palavra: se não reparas a tua falta e não tratas doravante a minha irmã como tua verdadeira mulher, lanço-te o meu desafio, pois tal ultraje só se lava com o sangue!” Tristão respondeu-lhe: “Irmão, infelizmente, os agravos que tens contra mim são demasiado reais. Compreendo-os e reconheço-lhes o fundamento. Dizes verdade: vim para o meio de vós para vossa infelicidade. Se o mal secreto que atormenta o meu coração não me tivesse alterado a razão e perturbado o bom senso, nunca teria contraído esse casamento. Quando te tiver revelado a minha miséria, talvez o teu furor se acalme. Fica, pois, sabendo que amo com ardente amor outra Isolda, a mais bela de todas as mulheres. Durante anos, viveu comigo e conhecemos a felicidade dos amantes. Quando o infortúnio da minha vida obrigou-me a deixá-la, prometi guardar sempre a sua recordação e ficar-lhe fiel, mas não contara com o horrível tormento dos ciúmes que tortura o meu coração. Desde que a restitui ao marido, persuadi-me a mim mesmo, no meu delírio, que ela me votara ao esquecimento e que encontrava a alegria e o prazer junto de outro. Insensato! Cedi à ilusão de me vingar procurando, também eu, a alegria e o prazer junto de outra mulher, e é por isso que, de boa-fé e sem pensar em mal, casei com a tua irmã. Ai de mim! Desde a noite de núpcias que senti toda a extensão do meu erro: sei agora que nunca me será possível unir-me carnalmente a outra mulher que não seja aquela Isolda cuja existência acabo de te revelar.” “Que grande piada me contas! — exclamou Kaherdin. — As tuas palavras são engenhosas e sabes encontrar belos pretextos para desculpar a tua falta. Julgas-me suficientemente ingênuo para dar crédito a tais fábulas? A longíqua Isolda de quem falas, que é senão uma quimera que forjaste a contento para acalmar a minha cólera?” “Enganas- te, amigo; é uma mulher de carne e osso. Vive em Tintagel, no reino da Cornualha, e o marido, a quem a entreguei, é o célebre rei Marcos, cuja fama chegou, desde há muito tempo, até aqui. Já sabes que sou filho do rei Rivalino de Leônis; pois fica sabendo agora que o rei Marcos é meu tio, irmão de minha mãe, e que o único objeto do meu amor é Isolda, a loura, filha de Gormond, rei da Irlanda, e mulher do rei Marcos. Ousas ainda afirmar que são quimeras e vãs ilusões de um espírito doente? “Kaherdin mergulhou com estas revelações num estupor tão profundo que ficou muito tempo estupefato sem saber que responder. Então Tristão retomou a palavra e contou-lhe pormenorizadamente todo o mistério da sua vida. Disse-lhe como fora à Irlanda pedir em casamento, em nome do rei Marcos, a Isolda dos cabelos de ouro; como no mar bebera, sem saber, e partilhara com Isolda o filtro de amor que a rainha da Irlanda destinara ao rei Marcos para a noite de núpcias; como, durante três anos, Isolda e ele estiveram ligados um ao outro pela força invencível da bebida mágica. Narrou as ciladas e os ardis do anão corcunda, a traição e as denúncias dos barões traidores, a rainha levada à pira e entregue ao bando de leprosos, a vida amarga e dura dos amantes na floresta selvagem, e como restituíra Isolda ao rei Marcos após o fim do sortilégio e como casara com Isolda das mãos brancas para tentar esquecer aquela que permanecia para ele o verdadeiro e único amor. Acrescentou: “Se a tua irmã, amigo, casou comigo para sua infelicidade, acredita que sofro duplamente: por ela e por mim, que não a quis de modo algum ofender.” Kaherdin ficou impressionado com o acento de sinceridade de Tristão e compreendeu que dizia a verdade; teve piedade dele e, mudando de tom, falou-lhe menos amargamente: “Tristão — disse —, há um instante queria matar-te. Sinto agora que o meu furor se acalma e que a minha amizade revive. Seguramente que, se estás ligado para sempre a outra mulher por um amor tão poderoso, a minha irmã não pode pensar em conquistar-te, pois qualquer partilha te seria odiosa. Se eu pudesse verificar com os meus próprios olhos que a rainha da Cornualha te ama com um amor sem par e que a sua beleza não tem igual, perdoar-te-ia, por mais que me custasse, o mal feito a minha irmã.” “Só peço que mo deixes provar-te — continuou Tristão. — Queres acompanhar-me à Cornualha? Ai habita, no grande palácio do rei Marcos, a loura Isolda, o meu único amor. Quando a vires, julgar-me-ás.”

Alguns dias mais tarde, Tristão e Kaherdin, reconciliados, confiaram ao duque Hoel e a sua filha Isolda que haviam feito o voto de ir a Inglaterra visitar os mosteiros onde se veneravam os túmulos dos santos de outrora. Pegaram no bordão e no alforje de peregrinos e só levaram com eles, com as mesmas vestes, Gorvenal e o escudeiro de Kaherdin. Os quatro homens alcançaram a pé a beira-mar e arranjaram lugar numa nau que os levou à Grã- Bretanha.

 

XXX

O MOCHO E O CORUJÃO

 

TRISTÃO enganava-se: Isolda não o votara ao esquecimento. É verdade que o rei Marcos fazia-lhe uma vida fácil e brilhante e mostrava-se atencioso e generoso, e ela lhe estava reconhecida; mas nada disso apagara no seu coração a imagem de Tristão nem enfraquecera o amor que lhe dedicava. Isolda, sozinha no quarto em companhia do cão Husdent, que lhe lembrava sem cessar o amigo, suspira por aquele que tanto deseja. O seu coração e o seu pensamento têm um único objetivo: amá-lo. O que mais a aflige é que, desde a sua partida, nunca mais teve uma noticia sua: ignora onde está e em que pais, se está morto ou vivo. Está prostrada de tristeza e o seu espírito está assombrado pelo horrível pensamento de que talvez o amado tenha perdido a vida. Aguardara durante longo tempo que um mensageiro viesse da sua parte; a espera fora vã. Forte e ousado como era, não teria exposto o corpo numa aventura?

Havia na corte de Marcos muitas pessoas que estavam informadas dos feitos de Tristão na Pequena Bretanha, mas, porque não gostavam nada dele, escondiam a Isolda tais noticias, reservando- se o direito de divulgar em todos os lugares o mal que sabiam por boatos; por isso, Isolda evitava encontrar esses barões cornualhenses. Um dia. no quarto, senta-se e, para melhor pensar no amigo, canta e toca na harpa um lai bretão que fora composto por ele. Conta como Guiron foi surpreendido e morto pelo marido da dama que amava acima de tudo, como, manhosamente, o ciumento deu a comer à mulher o coração de Guiron e como esta sofreu uma dor indescritível. A rainha canta docemente: harmoniza a voz com a harpa. As mãos são belas, o poema é comovente e o tom grave. Aparece então Kariado, aquele rico conde de alta linhagem que fora outrora companheiro de Tristão e o primeiro a, levado pela inveja, denunciar ao rei os amores do sobrinho e da rainha. Desde então, Kariado nunca mais cessara de cortejar Isolda, embora esta o tenha sempre repelido com desprezo. Se não fizera causa comum com os barões traidores, fora unicamente para não atrair a inimizade aberta da rainha, pois conservava sempre a esperança de conquistá-la com os seus galanteios e obter os seus favores. Quanto a Tristão, seu antigo companheiro, não perdia o ensejo de manifestar a sua malevolência e regozijava-se com as provações que o oprimiam. Uma vez mais, Kariado deixara o seu belo castelo e as terras férteis; viera a Tintagel na intenção de obter o amor da rainha. Isolda considerava as suas pretensões pura loucura; desde que Tristão saíra do pais, o galante perdera o tempo a cortejá-la sem nunca obter nada. Era um belo senhor, cortês, altivo e orgulhoso, mas valia mais nos quartos das damas que na batalha; era, além disso, belo e bom conversador e fino contador de histórias.

Encontrou Isolda cantando o lai de Guiron, e como sabia muito bem que era Tristão o autor aproveitou para fazer, em tom de gracejo, desagradáveis alusões à possível morte do sobrinho de Marcos: “Senhora — disse —, eis um canto bem sinistro, onde só se fala de assassínio e de sangue! Pode dizer-se que é o canto do mocho, uma vez que, como é crença comum, o canto desse pássaro pressagia um falecimento. Deduzo que vai ser em breve questão de morte de homem. Além do mais, o vosso lai, na minha opinião, anuncia a morte do próprio mocho, isto é, do cantor que compôs esse lai.” Isolda respondeu-lhe: “Falais verdade: o meu canto pressagia a morte da ave. mas o mocho ou o corujão sois vós que cantais para pesar dos outros; deveis antes temer a vossa morte, se receais que o meu canto seja de mau agouro. Aposto que me trazeis hoje, como é vosso hábito, uma noticia má: comportais-vos exatamente como o corujão. Posso afirmar que nunca me contastes novas das quais tenha tirado satisfação e nunca aqui viestes sem anunciar desgraças. Nem sequer teríeis deixado a vossa casa se não tivésseis uma coisa desagradável para contar. Vós, Kariado, nunca tivestes a menor vontade de partir para longe a fim de realizardes feitos que vos trouxessem fama. Nunca se ouvirá sobre vós uma única noticia de que os vossos amigos se possam honrar ou com a qual fiquem contristados aqueles que vos odeiam. Estais sempre disposto a dizer mal das ações de outrem, mas das vossas nunca se falará.” Kariado replicou então: “Senhora, eis-vos encolerizada sem que eu saiba por quê. Seria bem louco se receasse a morte que me agourais; isso não me importa absolutamente nada. Dizeis que sou o corujão; poderia responder- vos que sois o mocho e que ambos são pássaros de má sorte. Contudo, corujão ou não, é uma dura noticia que vos trago sobre o vosso amigo Tristão: está perdido para vós, pois casou noutra terra. Doravante servos-á licito apelar para outrem, já que ele desdenha o vosso amor. Casou em núpcias legitimas com outra Isolda, a filha do duque Hoel da Bretanha.” Isolda respondeu com irritação: “Sempre fostes corujão para dizer mal de Tristão. Que Deus me prive de todos os seus bens se não me tornar mocho para vós! Destes-me uma má noticia, não vos darei melhor. Declaro-vos, procurais o meu amor inutilmente, nunca obtereis de mim o menor favor e, durante a minha vida, nunca vos amarei nem aos vossos galanteios. Teria procurado uma aventura bem funesta se, há pouco, tivesse aceitado o vosso serviço. Mais vale perder o amor de Tristão a ganhar o vosso!” Experimenta um violento furor e Kariado não se ilude. Sente que seria contrário aos seus interesses avivar com outras palavras a angústia da rainha: despede-se e afasta-se.

A rainha fica sozinha, atormentada por uma grande aflição. Tristão perjurou. Tristão! Será possível? Gostaria de se assegurar da verdade do fato, mas está de tal modo ferida e humilhada no seu intimo que não se ousa confiar a ninguém, nem mesmo a Brangia, a sábia, nem ao franco Périnis.

XXXI

O REENCONTRO DOS AMANTES

 

PARA Tristão e Kaherdin, vogando para a Cornualha com os escudeiros, o vento foi ligeiro e bom. Desembarcaram uma manhã, antes da aurora, não longe de Tintagel, numa enseada deserta vizinha do castelo de Lidan. Tristão sabia que Dinas de Lidan, o bom senescal do rei Marcos, o albergaria e saberia esconder a sua vinda. De manhãzinha, os quatro companheiros subiam para Lidan quando viram chegar atrás deles um homem que seguia o mesmo caminho a passo no cavalo. Esconderam-se nos bosques e o homem passou sem os ver, pois dormitava na sela. Tristão reconheceu-o: “Irmão — disse baixinho a Kaherdin —, é o próprio Dinas de Lidan. Dorme: sem dúvida que volta de casa da amante e ainda sonha com ela. Não seria cortês acordá-lo; sigamo-lo de longe.” Alcançou Dinas, pegou docemente nas rédeas do cavalo e caminhou sem ruído a seu lado. Finalmente, um passo em falso do cavalo despertou-o. Abriu os olhos, viu Tristão, hesitou um instante e exclamou: “És tu! És tu, Tristão! Deus abençoe a hora em que te revejo: esperei- te durante tanto tempo!” “Amigo, Deus te salve! Que novas me contais da rainha?” “Infelizmente, duras notícias. Desde a tua partida para o exílio que suspira e chora por ti. Ah!, por que voltas para junto dela? Queres ainda provocar a tua morte e a sua? Tristão, tem piedade da rainha, deixa-a descansada!” “Amigo — disse Tristão —, concede-me um dom: esconde-me em Lidan e leva- lhe a minha mensagem. Faz que a possa rever uma vez, uma única vez!” Dinas respondeu: “Tenho piedade da minha senhora e só te faço o recado se souber que te continua a ser cara acima de todas as mulheres. “Ah!, senhor, diz-lhe que ainda é meu único amor, e será verdade.” Segue-me então, Tristão: ajudar-te-ei na tua necessidade.”

Em Lidan, o senescal hospedou Tristão e Gorvenal, Kaberdin e o escudeiro. Quando Tristão lhe contou ponto por ponto as infelizes núpcias com Isolda das mãos brancas, Dinas foi a Tintagel saber noticias da rainha. Contaram-lhe que daí a três dias o rei Marcos e a loura Isolda, com todos os escudeiros e os monteiros, deixariam Tintagel para instalarem-se no castelo de Lancien. Quando Tristão soube disto, confiou ao senescal o anel de jaspe verde e a mensagem que devia levar à rainha.

Dinas voltou a Tintagel, subiu os degraus e entrou na sala. O rei e Isolda estavam sentados a jogar xadrez. Dinas tomou lugar num escabelo perto da rainha, como que para observar o seu jogo e, por duas vezes, fingindo designar as pedras, pousou a mão no tabuleiro. A segunda vez, Isolda reconheceu-lhe no dedo o anel de jaspe. Então, perdeu a vontade de jogar. Deu um ligeiro encontrão ao braço de Dinas, de sorte que várias peças caíram em desordem. “Vede, senescal — disse —, baralhastes de tal modo o meu jogo que não saberia continuá-lo.” Marcos deixa a sala, Isolda retira-se para o quarto e Brangia leva Dinas até junto dela: “Amigo, sois mensageiro de Tristão?” “Sim, rainha; está em Lidan, escondido no meu castelo.” “Ê verdade que casou-se na Bretanha?” “Rainha, nesse ponto disseram-vos a verdade. Mas ele assegura que, a despeito desse casamento, que aliás nunca consumou, não vos traiu de modo algum; que nem um único dia cessou de vos amar acima de todas as mulheres; que morre se não vos vê, nem que seja só uma vez. Suplica-vos que consintais, pela promessa que lhe fizestes no dia em que vos restituiu ao rei.” A rainha manteve-se durante algum tempo calada, pensando com desagrado na outra Isolda em quem não podia impedir-se de ver uma rival. Finalmente, respondeu: “Sim, no dia em que se separou de mim, após o nosso exílio na floresta, recordo-me de ter dito: Se alguma vez revir o anel de jaspe verde, nem torre, nem fortaleza, nem proibição real me impedirão de cumprir a vontade do meu amigo, seja sensatez ou loucura…” “Rainha, daqui a dois dias a corte deve deixar Tintagel para instalar-se em Lancien; Tristão manda vos dizer que estará escondido numa moita ao longo do caminho. Suplica-vos que vos apiedeis dele.” “Já o disse: nada me impedirá de cumprir-lhe a vontade.”

Dois dias depois, enquanto toda a corte de Marcos preparava-se para a partida, Tristão e Gorvenal, Kaherdin e o escudeiro puseram-se a caminho do local designado por atalhos secretos. Através da floresta, duas estradas levavam de Tintagel a Lancien: uma bela e bem arranjada, por onde devia passar o cortejo, a outra pedregosa e abandonada. Tristão e Kaherdin postaram nesta os dois escudeiros e ordenaram-lhes que os esperassem nesse local com os cavalos e os escudos, enquanto eles próprios meteram-se pelos bosques e esconderam-se numa moita de espinheiros. Em breve o cortejo aparece na estrada. Vem primeiro o séquito do rei Marcos. Vêm, em boa ordem, os peleiros e os ferreiros, os cozinheiros e os copeiros reais, vêm os moços dos cães trazendo galgos e cães de caça, depois os falcoeiros levando as aves no punho esquerdo, depois os monteiros, depois os barões e os homens de armas. Avança, então, o cortejo da rainha. As lavadeiras e as camareiras reais vêm à cabeça, seguem-se as mulheres e as filhas dos barões e dos condes. Finalmente, aproxima-se um palafrém montado pela mais bela que Kaberdin jamais viu: é bem feita de corpo e de rosto, as ancas são um pouco baixas, as sobrancelhas bem traçadas, os olhos risonhos, os dentes pequenos; cobre-a um vestido de cetim vermelho. “Ê a rainha” — diz Kaherdin em voz baixa. “A rainha? — exclama Tristão. — Não, é Brangia, a criada!” Mas numa clareira luminosa que fazia o sol através das grandes árvores, Isolda, a loura, apareceu, com o duque Audret à sua direita. Estava vestida de brocado, os longos cabelos de ouro enquadrando o rosto de tez clara, a cabeça ligeiramente inclinada, como se a tornasse pesada um grave cuidado. “Desta vez — disse Tristão a mela voz —, é a rainha!” Kaberdin contemplava-a fixamente, e tal era o seu encantamento que ficou boquiaberto. A partir desse instante não mais duvidou da palavra que Tristão lhe dera. Nesse momento, da moita de pilriteiros onde estavam os dois companheiros elevaram-se cantos de toutinegra e de cotovia, e Tristão punha nestas melodias toda a sua ternura. A rainha reconheceu a voz do amigo. Então, volta-se para o maciço de espinheiros e diz em voz alta: “Pássaros deste bosque, que me deleitastes com as vossas canções, tomo-vos ao meu serviço. Enquanto o meu senhor Marcos cavalga até Lancien, quero regressar a Tintagel, pois esta viagem fatiga-me. Pássaros, escoltai-me até lá! Esta noite recompensar-vos-ei largamente, como a bons menestréis.” Tristão ouve estas palavras e alegra-se. Depois Isolda mandou chamar Brangia e falou-lhe em confidência: “Amiga, o coração diz-me que Tristão não está longe e que daqui a pouco cessarão as minhas angústias. Quando estivermos de retorno a Tintagel, vigia a porta. É possível que tente vir ter comigo sob algum disfarce. Saberás reconhecê-lo e levar-mo-ás em segredo.”

Exausto por ter corrido a planície em perseguição da caça, o rei mandara erguer os pavilhões numa pradaria e repousava. O duque Audret juntara-se a ele enquanto a rainha regressava a Tintagel. A noite caiu, negra e sem lua. Tristão e Kaherdin dirigiram-se para o castelo. Tristão sabia que Isolda compreendera a sua mensagem e não duvidava de ser bem recebido. Debaixo da capa de peregrino, trazia uma túnica de seda, calções bem ajustados e a espada embainhada. Chegados ao pé das muralhas, os dois companheiros avançaram até ao fosso e chamaram o porteiro: “Senhor, tende piedade de dois peregrinos que pedem asilo para a noite e, se for possível, alguma comida.” Abriram-lhes a porta, pois era costume em Tintagel dar esmola aos piedosos viajantes e conceder-lhes hospitalidade. Mal os estrangeiros transpuseram a grade de ferro, Brangia avançou para eles; pegou na mão de Tristão e, sem uma palavra, levou-o através das galerias obscuras até ao quarto das mulheres. Tristão, apesar do disfarce, não teve de mostrar o anel. Isolda, que o esperava, atirou-se-lhe aos braços e ficaram longamente enlaçados. Em seguida, fê-lo sentar ao pé dela e pediu-lhe que lhe contasse a sua vida desde que se haviam separado. Esquecendo tudo o que não era o seu amor, abandonaram-se à alegria como se estivessem reunidos para sempre. Quando chegou a madrugada, Brangia, a prudente, que fizera companhia a Kaherdin durante a noite, fez sair os dois homens do castelo por uma porta secreta. Os amantes não contavam com a malícia dos inimigos. O duque Audret, cujo ódio por Tristão não diminuíra, admirara-se com o estranho comportamento de Isolda ao dirigir-se aos pássaros da floresta, com a sua conversa confidencial com Brangia e com o seu brusco regresso a Tintagel. Como conhecia de longa data o virtuosismo de Tristão ao imitar o canto dos pássaros, não demorou muito a suspeitar que Tristão regressara à Cornualha e que a rainha não tardaria a ir ter com ele. Entrou no pavilhão onde repousava o rei e disse: “Sire, passam-se coisas estranhas. Apesar da promessa, Tristão voltou. Vai tentar ver a rainha e ela recebê-lo-á, pois nunca cessaram de se amar. Ela está prevenida do seu retorno e sei que se prepara para recebe-lo em Tintagel, em companhia de Brangia e de Périnis, que sempre foram seus cúmplices. Rei, pensai em defender a vossa honra! Enquanto vós vos afastais para o passatempo da caça, Isolda e o vosso sobrinho entregam-se ao passatempo do amor.” Marcos escutou-o, mas hesitava em acreditá-lo, pois Isolda havia- lhe fornecido toda a garantia da sua lealdade e Tristão, segundo o que lhe haviam dito, guerreava do outro lado do mar. Também não queria interromper o seu prazer, pois dispunha-se a caçar as aves aquáticas com a ajuda de falcões sabiamente treinados.

Após uma ausência de dois dias, Audret estava de regresso à tenda do rei. “Sire, o meu pressentimento não me enganou. Corri até Tintagel e testemunhei a traição de Isolda. Todas as noites Tristão bate à porta, disfarçado de peregrino. A impudente Brangia condu-lo secretamente ao quarto da rainha. Nada mais vos direi, a não ser que esta noite os podereis surpreender.” Marcos levantou-se de um salto e disse a Audret: “Sobrinho, agradeço-te a vigilância. Se falaste verdade, receberás tal recompensa que nada mais poderás desejar. Ordena aos meus lacaios que desarmem as tendas. Manda selar os cavalos, parto contigo.” Andaram tão depressa que chegaram a Tintagel antes da noite. No decurso dessa cavalgada silenciosa, o rei ainda duvidava da veracidade das palavras de Audret.

Mal chegou, Marcos quis informar-se ele próprio e mandou chamar Brangia, que, terrificada com as ameaças, pensava ele, não poderia deixar de revelar tudo. Esta não se fez esperar e veio, a fiel, fingindo a maior surpresa. “Menina — disse o rei —, respondei francamente. Se mentirdes, o vosso corpo será queimado e as cinzas espalhadas ao vento. Corre o boato de que Tristão voltou, apesar da minha proibição, e que a rainha, esquecendo o seu dever, o recebe nos seus aposentos durante a noite. Dizei-me como tal aconteceu, pois, se sou traído pelo meu sobrinho, a minha vingança será sem piedade.” Brangia sorriu com este discurso e respondeu sem se impressionar: “Sire, devo-vos obediência e respeito. Quando a vossa honra está em perigo, não tenho o direito de me calar. No mesmo instante em que me haveis chamado, ia por minha própria iniciativa advertir-vos do que se trama. ~ verdade, senhor, que Isolda se aborrece, porque desde há quase uma semana que a negligenciais. Quarto vazio faz dama louca, diz o vilão, e presa fácil tenta o ladrão. Se não vos acautelais, ela julgar-se-á abandonada e cometerá algum disparate. Imaginais que, afastando Tristão, suprimis todo o perigo, mas ele nunca a amou. Aquele que a procura com insistência é Kariado, o rico conde. Deu-lhe tão belos presentes, gabou-lhe tanto a graça e a beleza, que pouco faltou para ela sucumbir. Juro-vos que, se não traiu a fidelidade que vos deve, foi graças aos meus cuidados e conselhos. Kariado, sire, é belo, cortês e cheio de astúcia; sabe dizer as palavras que agradam a Isolda e adivinhar os seus desejos. ~ espantoso que ela ainda não tenha cometido nenhuma loucura com esse galanteador que a persegue. O pobre Tristão não é perigoso. Deixai-o em paz e desconfiai de Kariado.” Marcos respondeu-lhe: “Não me recuso a acreditar-te, mas Tristão não infringiu a minha proibição voltando para cá?” “Sire, dizem-no, e é possível, mas a rainha nunca mais o quer ver e encarregou Kariado de o afastar se tornasse a aparecer. Receio mesmo que esse traidor, levado pelos ciúmes, lhe arme uma cilada. Conheço melhor que ninguém os erros e defeitos de Tristão, mas não seria um grande pecado se Kariado o matasse?” O rei ficou perplexo, pois Tristão permanecia-lhe querido. Mas que fazer para salvá-lo? A falta de melhor, seguirá o conselho de Brangia: “Querida amiga — disse —, aceito as vossas razões e nada tentarei contra Tristão. Mas expulsarei da corte Kariado, esse velhaco que me quer enganar. Quanto a vós, não percais de vista a rainha e vigiai-a sem cessar. Não quero que tenha, com quem quer que seja, encontros secretos. Coloco-a sob a vossa guarda e dela me dareis conta.” Sem tardar, a moça correu até junto da ama e contou-lhe a conversa que tivera com o rei.

A noite, quando Tristão se apresentou à porta do castelo, disse- lhe: “Um grande perigo ameaça Isolda. O rei está informado do vosso regresso; doravante, livrai-vos de vos aproximar do castelo antes de a noite ter caído e sem precauções; e que os escudeiros, para passarem despercebidos, se dissimulem de todos os olhares num canto afastado da floresta!”

XXXII

O PECADO E A PENITÊNCIA DE ISOLDA

 

O DUQUE Audret, persuadido do regresso de Tristão, mantinha espiões para saber o que se tramava no palácio. Soube assim que Brangia todas as noites ia encontrar-se com um desconhecido. Numa noite, Audret até quase o surpreendeu com a serva: era Kaherdin. Conseguiu escapar-se, mas Audret entreviu, na sombra, outro homem que sala dos aposentos da rainha; era Tristão, certamente. Resolveu apoderar-se dele. No dia seguinte, pôs-se à sua procura, acompanhado por uma pequena escolta. Por infelicidade, o acaso conduziu-o direto ao bosquezinho perto do castelo onde estavam escondidos Gorvenal e o escudeiro de Kaherdin com os cavalos e as armas dos senhores. Como os dois homens tinham a cabeça coberta com um elmo de viseira, Audret tomou-os por Tristão e pelo desconhecido que por pouco não surpreendera com Brangia. Mal viram Audret aproximar-se deles, os escudeiros puseram-se em fuga e afastaram-se o mais depressa possível. Audret gritou-lhes com todas as forças: “A vós a vergonha, covardes! Escondeis-vos como poltrões!” Depois, dirigindo-se àquele que julgava ser Tristão: “Pára, Tristão! Esconjuro-te em nome do teu valor!” Os dois fugitivos nem se voltaram. Então Audret continuou: “Pára, Tristão! Esconjuro-te em nome de Isolda, a loura!” Renovou duas vezes esta adjuração em nome de Isolda, a loura. Em vão: os dois homens não diminuíram a velocidade e acabaram por desaparecer na curva de um caminho. Os homens do duque Audret só conseguiram apanhar um dos cavalos que os escudeiros levavam pelas rédeas e trouxeram-no Para o castelo de Tintagel.

Mal encontrou a rainha, Audret disse-lhe: “Senhora, sei agora que Tristão regressou a este país. Avistei-o perto daqui, num bosque, em companhia de um desconhecido. Ambos se puseram em fuga por um velho caminho abandonado. Por três vezes o intimei a parar esconjurando-o em nome de Isolda, a loura, mas ele amedrontou-se e não ousou esperar por mim.” “Sire Audret, falais mentira e loucura! Nunca me fareis crer que Tristão, esconjurado em meu nome por três vezes, não tenha parado e não tenha ousado fazer-vos frente!” “No entanto, foi ele quem eu vi! Até me apoderei de um dos cavalos: podeis avistá-lo, todo aparelhado, lá embaixo no pátio.”

Com isto, Audret despediu-se da rainha, que deixou completamente desamparada. Começou a chorar e disse: “Infeliz, vivi demasiado, pois vi o dia em que Tristão me despreza e amaldiçoa. Outrora, esconjurado em meu nome, que inimigo não defrontaria? É ousado e valente: se fugiu diante de Audret e se se recusou a obedecer à tripla esconjuração que lhe era feita em meu nome, é porque a outra Isolda o possui e já não faz, na realidade, nenhum caso de mim! Todavia voltara e eu recebera-o com alegria. Ora, não lhe bastou trair-me, quis desonrar-me também! Não estava eu farta dos meus tormentos antigos? Que volte, pois, por sua vez amaldiçoado, para Isolda das mãos brancas!” A rainha chamou Périnis, o fiel, e repetiu-lhe as notícias que Audret lhe trouxera: “Amigo Périnis, procura Tristão na estrada abandonada que vai de Tintagel a Lancien. Dir-lhe-ás que não o saúdo e que não seja tão audacioso que ouse doravante aproximar-se de mim, pois fá-lo-ei expulsar pelos sargentos e lacaios.” Périnis põe-se imediatamente à procura de Tristão e de Kaherdin; quando os encontrou, transmitiu- lhes a mensagem da rainha. “Irmão — exclamou Tristão, espantado —, que me contas? Como teríamos fugido, Kaberdin e eu, perante o duque Audret, se não encontramos os nossos escudeiros no bosquezinho onde nos deviam esperar? Não tínhamos os cavalos. Procuramos em vão Gorvenal e o escudeiro de Kaherdin; ainda os procuramos.”

Nesse mesmo momento, Gorvenal e o outro escudeiro desembocaram do velho caminho abandonado, seguidos por um único cavalo. Interrogado por Tristão, Gorvenal não pôs nenhuma dificuldade em confessar que haviam fugido: “Senhor, que outra coisa podíamos fazer para não cairmos nas mãos do duque Audret e da sua gente? Se me tivesse deixado reconhecer, o traidor teria descoberto logo o segredo do teu regresso à Cornualha.” Então o bravo disse a Périnis: “Querido amigo, volta depressa para a tua senhora: diz- lhe que lhe mando saudações e amor, que não faltei à lealdade que lhe devo e que nunca fugi diante de ninguém nem ignorei uma esconjuração feita em seu nome. Pede-lhe que me perdoe, uma vez que não falhei e que toda esta história é o resultado de um mal- entendido. E não deixes de voltar trazendo-me o seu perdão: aguardarei aqui o teu regresso.”

Périnis contou à rainha o que vira e ouvira; esta recusou-se a acreditar: “Ah!, Périnis, eras o meu fiel servidor e o meu pai havia-te afeiçoado, ainda criança, à minha pessoa. Durante anos, nada houve que te censurar, mas eis que agora Tristão, o enganador, te conquistou com as suas mentiras! Também tu me traíste: vai-te!” O lacaio prosternou-se de joelhos diante dela, as mãos estendidas: “Senhora, dizeis-me palavras duras que me ofendem e afligem. Nunca senti tal dor em toda a minha vida! Mas pouco me importa por mim: se me aflijo, é por vós, senhora, que ultrajais injustamente o meu senhor Tristão, e vos mostrais iníqua com ele. Estou certo de que um dia. mas demasiado tarde, vos arrependereis.” “Vai-te, não te acredito! Também tu, Périnis, o fiel, me atraiçoaste!” Tristão esperou muito tempo pelo perdão da rainha: Périnis não voltou.

De manhã, Tristão vestiu uma grande capa em farrapos e tingiu o rosto com suco de casca de noz e vermelhão, a fim de ficar com o aspecto de um doente carcomido e desfigurado pela lepra, como fizera quando da assembléia da Charneca Branca. Tomou entre as mãos o bastão de madeira venada que lhe dera a rainha e uma matraca. Penetrou assim nas ruas de Tintagel e, disfarçando a voz, começou a pedir esmola aos passantes. O seu único desejo e esperança eram avistar a rainha e fazer-se reconhecer por ela. Finalmente, ela saiu do castelo, acompanhada por Brangia e um grupo de lacaios e de sargentos. Quando meteu pela rua que levava à igreja, o falso leproso juntou-se ao grupo de lacaios fazendo tinir a matraca e suplicando com uma voz dolente: “Rainha, fazei- me algum bem, não sabeis a que ponto sofro e estou necessitado!” Isolda não se deixou iludir pela velha capa usada e pela matraca: reconheceu Tristão pelo belo corpo, pela nobre estatura e pelo bastão de madeira venada que lhe havia oferecido. Mal o reconheceu, o seu corpo estremeceu todo, mas, ofendida no orgulho, não se dignou baixar o olhar para ele. O mendigo implorou de novo e metia dó ouvi-lo. Suplicava-lhe arrastando-se ao pé dela: “Rainha, não vos enfureçais se ouso aproximar-me de vós! Vede a minha miséria: tende piedade de mim!” Em vez de se comover, chama os lacaios e os sargentos: “Expulsai este vagabundo” — ordena-lhes. Os lacaios empurram-no e afastam-no batendo-lhe com os paus. Ele enfrenta-os ferozmente e exclama: “Rainha, tende piedade! Sofri tanto por vós!” Quando ouviu estas palavras, Isolda desatou a rir e entrou rapidamente na igreja. O mendigo calou-se e afastou-se.

Nesse mesmo dia. Tristão, depois de abandonar as vestes de leproso, despediu-se de Dinas de Lidan. Estava tão desanimado que parecia ter perdido o juízo. No dia seguinte, em companhia de Gorvenal, de Kaherdin e do seu escudeiro, todos vestidos de peregrinos, fez-se ao mar para regressar à Pequena Bretanha.

Pobres amantes! A rainha não tardou a arrepender-se do seu orgulho e dureza. Recordando a sucessão dos acontecimentos, compreendeu finalmente que Périnis falara verdade. Tristão jamais fugira diante do duque Audret; jamais fora esconjurado em nome de Isolda, a loura; cometera um grave erro ao expulsá-lo. “Infeliz de mim! — exclamou. — Pequei contra o meu amor! Doravante odiar-me-á e nunca mais o verei. Jamais saberá quão arrependida estou nem que penitência irei impor a mim mesma e oferecer-lhe como penhor dos meus remorsos.” Desde esse dia. Isolda, a loura, passou a usar um cilício e fez o voto de trazê-lo contra a carne até que Tristão a perdoasse.

XXXIII

TRISTÃO LOUCO

 

DE REGRESSO ao castelo de Karhaix, a casa do duque Hoel, Tristão enlanguesce durante um ano inteiro e pergunta a si mesmo o que deve fazer, pois nada lhe traz reconforto. A sua única esperança é curar-se do mal de amor: preferia morrer de uma vez para sempre a viver na dor todo o resto da vida. De toda a gente Tristão se esconde e duvida; até se cala diante de Kaherdin, o seu bom companheiro, até diante do seu velho mestre Governal e, ainda mais, diante da mulher, Isolda das mãos brancas. Possui-o e persegue-o um desejo surdo: tornar a atravessar o mar para ver, uma vez mais, a loura Isolda. Uma manhã em que errava sem ninguém o saber, os passos conduziram-no ao porto, onde encontrou uma grande e bela nau de mercadores estrangeiros. Os marinheiros içam a vela e puxam a ancora. Dizem que vão alcançar o alto mar, pois o vento é bom para bem singrar. Do quebra-mar, Tristão grita- lhes, pondo as mãos em concha: “Onde ides?” Várias vozes lhe respondem ao mesmo tempo: “Para a Inglaterra!” Tristão continua: “Senhores, levai-me convosco!” “Com todo o gosto; subi depressa!” Tristão sobe a escada e salta para a ponte. O vento incha as velas e impele-os diretos à Inglaterra.

No décimo terceiro dia aportam em Tintagel. Tristão salta para terra e senta-se à beira-mar. A um vilão que passa pede novas do rei Marcos e de Isolda, a loura. O vilão responde: “O rei está no castelo e também a rainha, mas esta tem um ar triste e pensativo como de costume.” Tristão procura então um ardil para aproximar- se dela sem ser reconhecido pelo rei Marcos nem por mais ninguém. Passa-lhe uma estranha idéia pela cabeça: vai fingir de louco e introduzir-se na corte sob este novo disfarce. Entrementes, avista um pescador que se dirige para esse lado, vestido com uma longa cota de burel munida de um capuz. “Amigo — diz —, troquemos de roupas: terás as minhas, que ainda estão boas e novas, e eu terei as tuas vestes, que me agradam imenso.” O pescador observa a roupa de Tristão e verifica sem dificuldade que é melhor que a sua, aceita-a com alegria e abandona-lhe de bom grado a cota felpuda e remendada. Com uma tesoura, Tristão corta- os belos cabelos e faz no alto do crânio uma tonsura em forma de cruz, igual à que faziam usar aos loucos desse tempo. Prepara um licor composto por certas ervas do seu conhecimento e tinge o rosto, que não tarda a mudar de cor e a ficar negro. Disfarçar a voz era para ele um artificio familiar. Desde então, não havia pessoa no mundo que o pudesse reconhecer, tanto ao vê-lo como ao ouvi-lo. Ao passar ao longo de uma sebe de arbustos espinhosos, pegou na faca e cortou um forte ramo de azevinho, com o qual fez um bordão, que suspendeu ao pescoço. .Chegado à porta da cidade, todos os que ali se encontravam troçaram dele. O porteiro do castelo saudou-o com um gracejo: “Entra filho de Urgan, o peludo, pois grande e peludo és, lembras o gigante Urgan!” O louco entra pelo postigo: os lacaios correm ao seu encontro e gritam, como na perseguição de um lobo: “Hu, hu! Ao louco! Eis o louco!”

Os servos e os escudeiros perseguem-no através do palácio; por vezes, volta-se e se lhe batem no lado direito replica com uma paulada à esquerda, como se rachasse de meio a meio um fantasma. Aproxima-se da porta do salão e entra sem maneiras, segurando o bastão. Logo o rei, sentado sob o dossel perto da rainha, o avista e diz: “Vejo avançar daquele lado um belo rapaz, em verdade! Trazei-o à minha presença.” Vários se dirigem ao encontro do recém-chegado, saúdam-no com escárnio, como ele próprio os saúda, e trazem-no ao rei. Marcos diz-lhe: “Aproxima- te mais de mim, amigo. Donde vens e o que desejas?” O outro responde: “Acabo de desembarcar de um navio de mercadores. Também vos quero dizer quem sou e o que peço: a minha mãe era uma baleia que vivia no mar como uma sereia. Não sei onde nasci mas sei quem me alimentava: uma grande tigresa aleitava-me numa gruta onde me encontrara. Estava estendido numa larga pedra e ela dava-me de mamar. Também tenho uma irmã muito bela; dar-vo-la-ei, se quiseres, em troca de Isolda, que amo apaixonadamente. Façamos este negócio! Vós aborreceis-vos com Isolda: dai-ma e unide-vos a outra mulher. Se me entregardes Isolda, serei vosso homem e servir-vos-ei até ao fim dos meus dias.” O rei riu-se e perguntou: “Tão verdade como Deus te possa ajudar, se te presenteasse com a rainha, diz-me, o que farias dela? Para onde a levarias?” “Rei — respondeu o louco, conservando o olhar fixo em Isolda —, tenho lá em cima no céu uma sala onde habito. F: toda feita de vidro, bela e grande: pendurada nas nuvens e toda banhada pelo sol, qualquer que seja a violência dos ventos, não se mexe nem cai. Perto da sala há um quarto feito de cristal; quando o Sol se levanta, a claridade é maravilhosa.” O rei e os outros desatam a rir ruidosamente e zombam entre si dos ditos desconexos do louco. “Eis seguramente um belo louco, divertido como é de desejar e que conta alegres mentiras!” “Rei — diz o louco —, amo Isolda desmedidamente! Por ela o meu coração sofre e lamenta-se. Sou Tãotris, o jogral que tanto a amou e amará enquanto durar a sua vida!” Isolda ouve-o e suspira do fundo do coração; aquele louco inspira-lhe cólera e despeito: “Mentes, não és Tãotris!” O louco presta mais atenção às palavras de Isolda que às dos outros todos; bem vê que ela está irritada e que o seu rosto mudou de cor. Continua: “Rainha, sou Tãotris, o menestrel que outrora curaste. Recordais-vos? Recebi um grave ferimento, pois a lança estava envenenada; o poderoso veneno havia-se espalhado por todo o meu corpo. A minha chegada, estava doente e fraco. Vossa mãe e vós haveis tratado das minhas chagas com a vossa admirável ciência da virtude das plantas e ervas. Para vos agradecer, ensinei-vos a tocar na harpa lais do meu pais. Não me reconheceis?” “Por certo que não — respondeu a rainha —, pois Tãotris era belo e nobre e tu és demasiado hediondo e feio para que te possamos dar o seu nome. Deixa-nos: és louco de nascença e eu não faço caso nenhum de ti nem dos teus disparates!”

Tristão volta-se bruscamente e bate ao sabor da maça nos que se encontram perto dele: “Gentes loucas, ao largo! Saí daqui de dentro, deixai-me sozinho com a rainha, pois vim para amá-la!” O rei diverte-se imenso, mas Isolda cora e zanga-se: “Expulsai daqui este odioso bobo!” Imperturbável, o louco retoma as divagações: “Então não vos recordais do dia longínquo em que o rei, querendo casar convosco, me enviou para vos trazer? Fui à Irlanda fazendo-me passar por um mercador. Isso não me impediu de, chegado o dia. combater o dragão e o matar.” “Insensato! Jamais realizaste os altos feitos de que te vanglorias! Aposto que estavas ontem bêbado ao deitares-te e foi a embriaguez que te fez sonhar isso!” “Havei-lo dito, rainha; estou de verdade embriagado, mas foi por ter bebido uma beberagem como não há outra no mundo. Recordai-vos: vosso pai havia-vos entregue a mim e vossa mãe conduziu-vos até à nau que vos devia trazer até à Cornualha. Quando chegamos ao alto mar, vou contar-vos o que aconteceu…” Nisto o louco interrompeu-se e começou a cantarolar com um ar inspirado, como alguém que sabe mais do que quer dizer. Vendo isto, Isolda dissimulou o rosto no casaco e quis levantar- se para se ir embora. O rei puxou-a docemente pelo braço e pediu- lhe que se sentasse de novo junto dele: “Tende um pouco de paciência, doce amiga; não devemos ir até ao fim da sua loucura? Tenho pressa de saber até onde este vagabundo quer chegar.” Em seguida, virando-se de novo para o louco, fez-lhe muitas perguntas: “Quero saber agora o que sabes fazer. Conheces a arte da montaria por cães e por aves?” “Rei, quando quero caçar nas florestas, com os meus galgos, caço os grous que voam nas nuvens; com os meus podengos, caço os cisnes, as moças simplórias, os gansos; quando atiro ao arco, caço vivos os mergulhões e os alcaravões.” Marcos ri singelamente, e assim fazem grandes e pequenos. O rei pergunta em seguida: “Diz-me, irmão, que sabes caçar no rio?” “Sire, caço tudo o que encontro: com os meus abutres, caço os lobos dos bosques e os grandes ursos; com os meus gerifaltes, os javalis que persigo por montes e vales; com os meus altivos falcõezinhos, apanho cabras e gamos; com o gavião, caço a raposa, que tem uma cauda tão bela; com o esmerilhão, caco as lebres.” “E que mais sabes fazer?” “Sei tocar harpa e rota e cantar afinado. Com uma faca, sei talhar aparas que deito nos riachos. Rica rainha, sei amar e nenhum amante me excede! Também me sei servir de um pau!” E dizendo isto, começa de novo a bater naqueles que estavam à sua volta: “Deixai o rei tranqüilo! Deixai o rei em paz; regressai a casa! Por que ficais aí fincados como cepos?”

Quando o rei se divertiu à farta, mandou o escudeiro selar o cavalo para a caça e perguntou à rainha se o desejava acompanhar. “Sire — respondeu —, agradeço-vos, mas não me sinto bem e tenho dores de cabeça; para não ouvir nenhum barulho, quero ir repousar.” Vai para o quarto, onde encontra Brangia; senta-se na cama, pensativa e dolente: “Brangia, minha doce irmã, mais valia estar morta, de tal modo a vida me é dura e amarga! Tudo o que acabo de ver e de ouvir me contraria mais do que posso exprimir.” “Que haveis então visto e ouvido?” “Um louco chegou ao salão do castelo, tonsurado em cruz, e fez-me muita pena. Por certo que esse louco é adivinho e feiticeiro, pois sabia a minha vida toda de fio a pavio. Não vejo quem lhe possa ter revelado tudo aquilo: além de ti, de Tristão e de mim própria, quem conhece assim o pormenor das nossas aventuras?” “Senhora — inquire Brangia, a avisada —, esse louco será o próprio Tristão?” “Oxalá que não! É grosseiro, hediondo e disforme, enquanto Tristão é belo, fino e ágil. Ah!, que Deus confunda esse louco! Maldita seja a hora em que nasceu e maldita a nau que o trouxe para este pais! É uma grande pena que os marinheiros não o tenham atirado ao mar profundo!” “Senhora, se não é Tristão, esse louco não será o seu mensageiro?” “Não sei nem o creio, mas vai tu ter com ele, bela amiga, e procura saber dele quem é.”

Brangia apressou-se a obedecer à sua senhora: dirige-se para o salão e não encontra aí ninguém, nem servo, nem lacaio, salvo o louco sentado num banquinho. Tristão reconhece-a imediatamente: “Brangia!, sê bem-vinda! Por Deus, tem piedade de mim!” “E por que é que havia de ter piedade de vós?” “Em verdade, sou Tristão que tanto sofreu por amor da rainha Isolda.” Como hesitava em acreditá-lo, ele recordou-lhe como ela servira à rainha e a ele próprio a bebida a mágica e como tomara o lugar de Isolda no leito do rei para este a achar virgem. Brangia fica interdita e não sabe que responder. No seu desvario, foge para o quarto da rainha; o louco persegue-a suplicando-lhe que tenha piedade dele. Em seguida, penetra no quarto da rainha e, quando vê Isolda, avança para ela e quer beijá-la na boca. Ela, confusa e envergonhada, atira-se para trás. Tristão diz-lhe: “Rainha franca e honrada, considerais-me doravante tão vil que já não me quereis amar? Ai de mim!, terei vivido tanto para descobrir que me tomastes desdém?” Isolda responde-lhe: “Por mais que vos observe, nada me diz que sejais Tristão.” “Rainha, recordai-vos do anão Frocin que nos espiou dia e noite e, entre os nossos leitos, espalhou farinha-flor.” “Que adivinho sois para terdes descoberto tais segredos?” “Isolda, deveis lembrar-vos do cão Husdent que vos dei no dia da nossa separação: que haveis feito dele?” “Guardei sem cessar junto de mim o cão de que falais. Brangia, vai buscá-lo e trá-lo aqui pela trela.” A criada sai e volta em seguida com Husdent. Tristão chama o animal: “Aqui, vem cá, Husdent! eras meu: recupero-te!” Mal o vê, o cão acorre, salta para ele e faz-lhe festa. Levanta a cabeça para o dono, agita a cauda, lambe-lhe as mãos e salta-lhe para a cara. Isolda maravilha-se: freme e treme de angústia. Tristão segura Husdent nos joelhos e afaga-o. “Lembra-se melhor dos cuidados que tive com ele do que vós do amor que vos dediquei!” Isolda fica ofendida com esta censura e o rubor tinge-lhe as faces. Tristão continua: “Senhora rainha, recordai-vos do anel de jaspe que me destes quando nos separamos na floresta de Morois? Recebi-o de vós quando vos deixei recomendando-vos a Deus.” Isolda diz-lhe: “Ê um sinal no qual devo acreditar. Se tendes o anel, mostrai- mo!” Tira o anel e apresenta-lho. Isolda observa-o um momento, depois começa a chorar: “Infeliz de mim! Tristão, o meu doce amante, deve estar morto, pois jamais teria escoltado tal louco como mensageiro e jamais lhe teria confiado este anel!” Vendo as suas lágrimas, Tristão apieda-se: “Senhora, vejo-vos tão leal e bela que não me quero mais esconder. ~ altura de me dar a conhecer e a ouvir.” Cessa desde então de disfarçar a voz: “Ah, doce amor, perdoa-me por te ter imposto esta provação!” Isolda não hesita mais, reconhece a voz que lhe é querida, deita os braços à volta do pescoço de Tristão é cobre-o de beijos.

Depois desta troca de caricias, Tristão vira-se para Brangia e pede-lhe: “Traz-me água: quero tirar do meu rosto este suco de erva que o desfigura.” A criada volta com uma bacia cheia de água fresca e leva-lhe o rosto: o licor de erva vai-se com o suor. Os belos traços de Tristão reencontram a sua forma primitiva. “Ai de mim! — exclama Isolda. — Como foi possível não te ter reconhecido? O receio de ser vitima de uma impostura fechava-me os olhos. Ah! Tristão, tem piedade de mim: estou arrependida!” Tristão toma-a nos braços e ela aperta-o contra o peito. Ficai sabendo que a rainha de forma alguma o deixou partir nessa noite. Tristão teve boa cama, bem feita e bela. Que mais poderia desejar, uma vez que a rainha está com ele?

Chegada a manhã, Tristão diz: “Meu amor, se o rei me surpreendesse contigo neste quarto, mandar-nos-ia matar aos dois. Para tal salvação, embora me custe, tenho de me afastar de ti uma vez mais.” “Ah!, Tristão, belo e doce amigo, sei que, em verdade, nunca mais te verei neste mundo.” Tristão respondeu-lhe: “Não sei o que nos reserva o futuro, mas estou certo de que nunca cessarei de te amar.” Isolda continuou: “Belo amigo, toma-me nos teus braços e leva-me então para o pais afortunado do qual me falavas não há muito, o pais do qual ninguém regressa. Leva-me!” “Sim, iremos juntos para o pais afortunado dos vivos. Aproxima-se a hora: não bebemos já toda a miséria e toda a alegria? Aproxima-se o momento: quando tiver chegado, se te chamar, Isolda, virás?” “Amor, bem sabes que irei.” Então Tristão despediu-se da amada, mas jamais em vida a devia tornar a ver.

XXXIV

A SALA DAS IMAGENS

 

DE REGRESSO À Pequena Bretanha, Tristão vivia na dor e na angústia, pois não via mais nenhum modo de ir ter com Isolda, a loura, a Tintagel e não podia sentir nenhuma alegria verdadeira separado dela. No castelo do duque Hoel, ficava junto de Isolda das mãos brancas, que todos consideravam sua mulher, mas só era sua esposa de nome, pois nunca teve com ela nenhuma das intimidades que convém a um marido. O duque Hoel jamais concebeu a menor suspeita do estranho comportamento do genro, pois a filha era demasiado reservada para revelar-lhe a sua existência íntima e os seus dissabores conjugais. Kaherdin continuava a ser o único a conhecer o triste estado da irmã desde que esta lho revelara, dirigindo-se à água atrevida, quando cavalgavam juntos na passagem de um vau. O furor que sentira primeiro acalmara desde que Tristão lhe confidenciara o drama da sua vida e fizera com ele a viagem até à Cornualha: perante o espetáculo da radiosa beleza da loura Isolda, compreendera a razão por que o companheiro não pudera nem poderia nunca amar carnalmente outra mulher. Mais ainda, a amizade dos jovens tornava-se de dia para dia mais intima e mais confiante.

Tristão tinha por costume errar na floresta bretã sob pretexto de perseguir a caça, mas, na realidade, para aí encontrar a solidão propicia aos devaneios e aos pensamentos amorosos que o levavam sempre a Isolda dos cabelos de ouro. Foi no decurso dessas longas caminhadas que lhe acorreu a idéia de construir, nas profundezas dos bosques, um refúgio só dele conhecido para onde teria toda a ocasião de se retirar para pensar na amada. Prometeu a si próprio, já que não a podia ver em carne e osso, esculpir a sua estátua com tal parecença que lhe daria a ilusão da sua presença. Um feliz acaso não tardou a fazê-lo descobrir o sítio que, pelo seu aspecto selvagem e inacessível, melhor convinha ao seu projeto.

Um dia em que o duque Hoel caçava com Tristão na floresta, chegaram a um rio cujo leito largo e profundo os obrigou a parar. O duque disse ao genro: “Este rio marca o limite do ducado da Bretanha: não se estende mais longe. A corrente é tão violenta e impetuosa que é impossível a um peão ou a um cavaleiro passar de uma margem à outra, a não ser que conheça o traçado de um vau muito estreito ao qual nada assinala a existência; nenhum bretão lhe conhece hoje a situação. Em redor desse vau desenrolaram-se recentemente violentos combates em que muitos guerreiros caíram de ambos os lados e as suas armas ficaram no leito do rio. A margem oposta pertence a um temível gigante chamado Beliagog, que várias vezes me atacou e mais de uma vez pilhou e devastou os meus domínios. Só com grande custo consegui repeli-lo e conclui com ele um tratado nos termos do qual este rio marcaria para sempre a fronteira dos nossos dois territórios: ele comprometeu- se a nunca mais invadir o meu ducado e eu prometi em troca nunca transpor este vau para ir à sua terra. Ora, eu quero observar esse tratado o mais que puder, pois, se o romper, ele tem o direito de pôr os meus domínios a ferro e fogo e de ai causar o maior mal que puder. Se encontrar homens meus no seu território, tem o direito de matá-los. Se animais ou cães nossos transpuserem este curso de água, somos obrigados a comprá-los, sem que ninguém os possa chamar e recuperar. Todos os meus barões juraram este acordo. Também a ti, Tristão, proíbo de passares este rio, pois seria para tua vergonha e morte.” Tristão respondeu: “Deus sabe, bom senhor, como não desejo nada avançar até lá abaixo. Que faria ai? Esse tal gigante bem pode guardar a sua terra em paz; não quero ter com ele nenhuma contenda. Não me faltam florestas onde caçar! “Todavia, cravou demoradamente os olhos na floresta que via além do vau proibido: era feita de belas árvores, altas, direitas e robustas e das mais diversas espécies. De um lado, era limitada pelo mar e do outro pelo rio que ninguém podia transpor, de modo que formava verdadeiramente uma ilha. Entrementes, o duque voltou rédeas e pôs fim às reflexões de Tristão, iludindo as suas perguntas e arrastando-o atrás de si pelo caminho de regresso.

Durante toda a noite que se seguiu, Tristão pensou na bela floresta solitária e nas suas grandes árvores; projetava construir aí uma nobre habitação, que só ele conhecesse, dedicada à lembrança e à imagem de Isolda, a loura. Também meditava no gigante Beliagog e desejava encontrá-lo na esperança de se medir com ele e de realizar uma nova proeza.

Alguns dias mais tarde, partiu sem nada dizer, com o corcel, as armas de guerra e a trompa e avançou até ao rio que marcava o termo e o limite das terras de Hoel e do gigante. O leito, muito profundo, era ladeado por duas altas ribas de areia. Tristão procurou o vau, mas, não conhecendo de todo o local, lançou o corcel pela parte mais profunda da corrente. A água cobriu até acima das cabeças cavalo e cavaleiro; Tristão afundou-se tão rapidamente que julgou não sair vivo daquela. Todavia, esforçou-se tanto e tão bem que acabou por ganhar pé na outra margem. Tirou ao cavalo o freio, as rédeas e a sela para escorrer a água, deixou o animal repousar, pôs as roupas a secar e em seguida tornou a montar e embrenhou-se na floresta. Após ter errado durante algum tempo, como não encontrasse ninguém, pegou na trompa e arrancou-lhe um som tão forte e prolongado que o gigante o ouviu.

Beliagog acorreu imediatamente, armado com uma maça de ébano. Viu Tristão no corcel e perguntou com cólera: “Quem és tu, que ousas vir armado às minhas terras? Donde és? Onde queres ir? Que procuras aqui na minha floresta?” O bravo respondeu tranqüilamente: “Chamam-me Tristão e sou genro do duque da Bretanha. Via esta bela floresta e pensei que serviria para abrigar uma casa que quero mandar construir, pois vejo aqui as mais raras e belas espécies de árvores: quero abater as mais belas no número de quarenta e oito dentro de duas semanas.” Estas palavras tiveram o poder de irritar o gigante, que respondeu: “Tão verdade como Deus me proteja, se não fosse o fato de viver em paz e amizade com o duque, abater-te-ia com um golpe da maça! Deixa quanto antes esta floresta, feliz por eu te deixar partir as sim!” Tristão replicou: “Nada tenho a fazer da tua piedade! Quero abater aqui tantas árvores quanto me apetecer e aquele que de nós dois vencer o outro disporá do resto da floresta.” O gigante exclamou: “Não passas de um louco inchado de presunção; mas não me escaparás tão facilmente. Vais pagar com a vida a tua louca desmesura. Vejamos se és capaz de agüentar o meu ataque e se o teu escudo te saberá proteger!” Fez girar a maça acima da cabeça e lançou-a com todas as forças contra Tristão. O bravo esquivou-se e assaltou por sua vez o gigante. Como este se esforçava por recuperar a arma para lançá-la de novo, Tristão colocou-se entre o gigante e a maça e tentou cortar-lhe a cabeça; falhou o alvo, mas quando Beliagog se desviou para evitar o golpe, a espada atingiu-o tão violentamente na perna que esta ficou decepada abaixo do joelho e caiu no solo. Tristão visava de novo a cabeça do gigante quando este lhe gritou: “Sire, concede- me a vida salva! Se me poupares, servir-te-ei fielmente e darte-ei todos os meus tesouros. Não faço empenho em conservar nenhum dos meus bens, exceto a vida; leva-me para onde quiseres e faz de mim o que te agradar!”

Quando Tristão viu que o gigante pedia clemência, aceitou a sua submissão e as suas promessas. Até lhe pensou o ferimento e talhou uma perna de madeira que ligou fortemente abaixo do joelho. Os servos do gigante, acorridos ao barulho do combate, levaram-no para a gruta onde residia. Mostrou ao vencedor os seus tesouros todos e ofereceu-lhos, mas Tristão não lhes prestou muita atenção, pois o seu pensamento não estava de modo algum, naquele momento, voltado para as riquezas. Quando Beliagog lhe prestou vassalagem por meio de juramento, Tristão permitiu-lhe conservar os tesouros e guardá-los em sua casa. Em seguida, concluíram uma convenção segundo a qual o gigante se comprometia a fornecer a Tristão os operários e os materiais de construção necessários. O bravo podia dispor livremente da floresta e cortar todas as árvores que quisesse. Finalmente, o gigante acompanhou Tristão ao rio e, antes de se despedir, ensinou-lhe o traçado exato do vau que permitia a passagem sem perigo.

De regresso a casa do duque Hoel, Tristão não disse uma palavra acerca da sua aventura, fez como se nada lhe tivesse acontecido, e Kaherlin, seu companheiro, não se apercebeu de nada.

A partir do dia seguinte, levantava-se de manhãzinha, cavalgava sozinho e, secretamente, atravessava o rio no vau e chegava a casa de Beliagog. O gigante executou fielmente as convenções: arranjou-lhe operários, materiais e tudo o que havia prometido. Ora Tristão, ao procurar o sitio que mais conviria ao seu projeto, notou, na extremidade da ilha do lado do oceano, um outeiro elevado cercado por um fosso circular que comunicava por um canal com o mar e esse fosso era tão largo que não se podia tomar pé no outeiro nem dele sair se a maré não estivesse completamente vaza. O montículo tinha no cimo um rochedo perfeitamente arredondado, no qual haviam sido cavados vários quartos abobadados com a mais exímia habilidade. A entrada era alta e quadrada e dava luz a um primeiro aposento alongado de cerca de dez toesas de comprimento e metade de largura. Dai, uma porta dava acesso a uma segunda sala com o dobro da primeira, iluminada de cima por uma clarabóia que deixava ver o céu e as estrelas, e por onde a água da chuva descia até uma cisterna. No meio da abóbada encontrava-se um arco de pedra decorado com folhagens, pássaros e animais fantásticos. Nos dois assentos do arco viam-se ornamentos tão singulares que nenhum homem vivo teria podido executar semelhantes. Essa bela abóbada agradou enormemente a Tristão. Era obra de um gigante vindo outrora de África, que pilhara toda a Bretanha até ao monte Saint-Michel.

Tristão havia meditado longamente e previsto o arranjo deste palácio subterrâneo e pôs nele todo o seu entendimento. Durante os trabalhos, comportou-se com tanta discrição que ninguém entre as gentes do duque da Bretanha sabia onde ele estava nem em que ocupava o tempo. Vinha todos os dias de manhãzinha e voltava tarde. Tristão mandou primeiro tapar a gruta com uma porta feita de várias madeiras preciosas reunidas com grande mestria. Dentro, as paredes foram talhadas e pintadas com ornatos de folhagem e folhas de acanto. Na sala grande, mandou tapar a clarabóia com um vitral de diversas cores, engastado em chumbo.

Perto do sopé do montículo, mas no exterior, mandou construir uma sala de excelente madeira, na qual a floresta era pródiga, e cercou esta sala com uma paliçada: era ai que trabalhavam os artífices das diversas mestranças, mas nenhum deles conhecia as intenções de Tristão nem por que mandava arranjar aquele palácio e executar tantas esculturas e estátuas. Tristão apressou tanto os carpinteiros, os fazedores de imagens, os pintores e os ourives que logo a sua tarefa foi terminada. Então, permitiu-lhes irem-se embora, mas não sem os ter feito jurar que guardariam silêncio sobre tudo o que haviam visto; depois acompanhou-os até terem deixado a ilha, de regresso a casa. Junto de si não ficou outro companheiro além de Beliagog. Ambos levaram para o interior do palácio subterrâneo as estátuas e as esculturas executadas pelos artífices e dispuseram-nas segundo o plano previsto por Tristão. Cada uma estava pintada e dourada com a mais maravilhosa habilidade.

Na primeira sala, Tristão colocou a figura do Morholt estendido morto no seu barco. Diante dele, doze donzéis, esculpidos em madeira pintada e marfim, e outras tantas donzelas, vestidas de seda e com ornatos bordados, bailavam e dançavam a carola: representavam a juventude da Cornualha celebrando alegremente a vitória de Tristão sobre o Morholt. Mais atrás, via-se o dragão da Irlanda que se erguia sobre a cauda, a boca aberta e as garras de fora.

A segunda sala estava ainda mais ricamente ornada do que a primeira. O centro era ocupado por uma imagem de Isolda, a loura, de tamanho natural: as proporções e as cores, o rosto, o aspecto e a estatura estavam reproduzidos com tanta arte que, ao vê-la, ninguém poderia duvidar que a vida não lhe corresse no corpo. Dos seus lábios, por meio de um mecanismo engenhoso, escapava-se um hálito tão doce que o seu perfume enchia a sala. Estava tão magnificamente vestida como convinha a uma rainha. Trazia uma larga sobreveste de escarlate bordado, apertada na cintura por um cinto de placas de prata do qual pendia uma escarcela. A cabeça, donde caíam duas longas tranças louras, estava ornada com um circulo de ouro onde se engastavam pedras de todas as cores; um rico colar enfeitava-lhe a garganta, que parecia levantar-se e respirar. Na mão direita segurava um cetro terminado nas flores mais delicadamente trabalhadas. A mão esquerda, adornada com um anel de jaspe verde, desenrolava uma tira onde se liam estas palavras: “Tristão, pega neste anel e guarda-o por amor de mim, a fim de te recordares as nossas alegrias e as nossas dores.” A figura do malvado anão Frocin, moldada em latão, estava colocada sob os seus pés à laia de escabelo. Isolda mantinha-se em pé sobre o peito da pitorra disforme, que parecia chorar. Em face da rainha, encostada a um pilar, encontrava-se a sua criada Brangia, tendo aos pés o cão Husdent, que havia acompanhado os fugitivos na floresta de Morois e que a rainha conservava junto de si como recordação do amigo; Tristão fizera empenho em esculpir ele próprio na madeira a imagem do fiel animal. A estátua da serva era um pouco menor que o natural e menor que a da senhora; tão bela como a própria Brangia e paramentada com os mais belos adornos, segurava na mão um vaso coberto com uma tampa, que oferecia a Isolda com um rosto sorridente. A volta do vaso estavam inscritas estas palavras, tal como haviam sido outrora pronunciadas no navio: “Rainha Isolda, tomai esta bebida, que foi preparada na Irlanda para o rei Marcos.”

No vestíbulo que precedia a primeira sala, um pouco atrás da porta de entrada, Tristão ergueu uma estátua maior que o tamanho natural: a do gigante Beliagog. Apoiava-se na única perna que lhe restava e brandia com as duas mãos a maça de ébano por cima do ombro, como que para proteger a imagem da rainha. Estava coberto com uma grande pele de bode; esta não descia muito baixo, de modo que ele estava nu a partir do umbigo. Arreganhava os dentes e lançava olhares furiosos, como se quisesse matar todos aqueles que tentassem entrar na sala. Do outro lado da porta estava postado um grande leão moldado em cobre. Erguia-se nas quatro patas e enrolava fortemente a cauda à volta de uma imagem feita à semelhança de Kariado, que havia desonrado e caluniado Tristão junto a Marcos.

Quando todas as obras ficaram prontas, Tristão fechou a porta, guardou as chaves e ordenou a Beliagog, assim como ao seu lacaio e ao seu servo, que montassem tão boa guarda que ninguém se pudesse aproximar da sala subterrânea. O gigante conservou os seus outros tesouros e Tristão regozijou-se grandemente por ter sido bem-sucedido naquele empreendimento. Regressou como habitualmente ao castelo do duque Hoel, em Karhaix: comia, bebia e dormia junto da mulher, Isolda das mãos brancas, e conversava amigavelmente com os companheiros. A seguir, continuou a visitar freqüentemente a sala das imagens, mas ia por caminhos escusos, a fim de não ser surpreendido por ninguém.

De certa vez revia a imagem de Isolda, tomava-a nos braços e beijava-a como se ela estivesse viva e lembrava-lhe os seus amores, as suas dores e os tormentos. Quando estava alegre, sentava-se num escabelo de carvalho, no meio da sala, e cantava para agradar à amada um dos lais que compusera em sua honra. Mas quando a tristeza se apoderava da sua alma, testemunhava-lhe desagrado e cólera, pois ainda lhe acontecia imaginar nos seus devaneios que ela o votava ao esquecimento e que não pudera impedir-se de amar outro na sua ausência. Desconfiava sobretudo do belo Kariado, cuja assiduidade ao pé da rainha conhecia, e esta preocupação levava-o a conceber falsas suspeitas. Quando experimentava tais sentimentos, censurava Isolda e às vezes até se recusava a fitá-la, a sorrir-lhe e a falar-lhe. Nesses momentos, era a Brangia que se dirigia: “Bela, venho apresentar queixa junto de vós da infidelidade de Isolda, a minha amada.” Depois, pouco a pouco, a segurança abandonava-o, o seu olhar caía sobre a mão de Isolda e sobre o anel de jaspe verde. Revia a expressão do seu rosto no momento da partida do amigo e recordava- se do pacto concluído na hora da separação. Então pedia-lhe perdão pela loucura que o assaltara durante uma hora, e media até que ponto as suas falsas suspeitas o haviam desvairado. Era por isso que havia feito aquela imagem: não tendo mais ninguém a quem revelar a sua vontade ou o seu desejo, queria desvendar-lhe o seu coração, os seus pensamentos, o seu louco erro, a sua dor e a sua alegria de amor.

Assim vive Tristão, a quem a paixão possui. Por vezes foge à imagem, por vezes volta para ela; por vezes tem para ela olhares radiosos e por vezes mostra-lhe um rosto de desgosto.

 

XXXV

A ÚLTIMA FERIDA

 

A SALA das imagens estava acabada há vários meses quando Kaherdin confidenciou a Tristão uma aventura amorosa em que se metera. Não longe de Karhaix, numa fortaleza isolada no meio dos bosques e cercada de água por todos os lados, vivia um anão rico e poderoso chamado Bedalis, marido ciumento de uma jovem mulher de grande beleza que respondia pelo nome de Gargeolain. Kaherdin avistou um dia a bela à janela da sua torre e ficou tão apaixonado que tentou várias vezes visitá-la: todas as suas tentativas só tiveram como resultado excitar ainda mais os ciúmes do marido e tornar ainda mais apertado o cativeiro da mulher. Todavia Gargeolain tirou com cera o molde da fechadura da porta flanqueada por duas torres, que se erguia à entrada da ponte levadiça e dava acesso à cadeia, graças à qual se podia abaixar ou subir a ponte. Fê-la chegar às mãos de Kaherdin. O apaixonado encarregou um ferreiro de lhe forjar uma chave segundo esse molde; quando ficou pronta, pediu a Tristão que o acompanhasse na sua temerária aventura.

Sem outras armas além das espadas e só seguidos pelos escudeiros, chegaram à entrada da ponte levadiça. Bedalis partira para a caça e todos os servos o haviam acompanhado. Kaherdin abriu a porta, baixou a ponte levadiça e foi encontrar-se com Gargeolain no quarto. Tristão, enquanto aguardava o retorno do amigo, ficou com Gorvenal e o outro escudeiro numa sala vizinha da entrada e estenderam-se no chão coberto de juncos recentemente cortados. Kaberdin demorou tanto tempo junto da amante que deu ao marido ensejo de regressar. Quando Tristão ouviu o barulho dos caçadores que se aproximavam, chamou Kaberdin a toda pressa e os quatro companheiros escaparam mesmo ao combate com Bedalis.

Ao regressar ao castelo, o anão espantou-se por encontrar a porta aberta e a ponte levadiça baixada; as suas suspeitas aumentaram quando viu flutuar na água dos fossos uma canoa de rosas vermelhas que Kaherdin trazia na cabeça e que, na fuga precipitada, deixara cair. Armou-se e, à cabeça de um bando numeroso, lançou-se no encalço dos fugitivos. Cercados por adversários muito superiores em número, os quatro homens defenderam-se com grande coragem e mataram vários dos assaltantes. Gorvenal desembainhara a espada e resistia valentemente, mas sucumbiu sob o número e caiu, trespassado de um lado ao outro. Tristão vinha em seu auxílio quando Bedalis o atingiu no flanco com um terrível golpe da sua lança envenenada. O bravo vacilou sob o choque, mas conseguiu manter-se na sela. Kaherdin e o escudeiro realizaram prodígios de valor para cobrir a sua retirada até ao castelo de Karhaix, onde chegou no limite das forças.

Os servos precipitaram-se; desceram-no do cavalo com mil precauções, mas ele não conseguiu agüentar-se em pé e caiu sem sentidos no pavimento. Transportaram-no para a habitação onde residia habitualmente junto da mulher. O primeiro cuidado de Isolda das mãos brancas foi convocar médicos para pensarem a chaga e tratarem dele. Apresentou-se um grande número, mas nenhum deles conseguiu descobrir a natureza do veneno: todos os seus cuidados foram inúteis. A despeito de todos os emplastros, o mal piorava cada vez mais, a tez do ferido alterava-se, as forças esgotavam-se, o corpo estava emagrecido e descarnado. Tristão dirigiu-se então a Kaberdin: “Escuta — disse —, querido companheiro; estou aqui em pais estrangeiro e não tenho nem parente nem homem da minha raça para me socorrer na minha necessidade. Desde que perdi o meu querido Gorvenal, só te tenho a ti como amigo: és o único ser no qual me posso apoiar. Fica sabendo que mais ninguém me pode curar além de Isolda, a loura. Só ela, se o quiser, pode realizar esse milagre. Contanto que seja informada do estado em que me encontro, estou certo de que não se poupará a nada para me salvar. E por isso que, em nome da nossa amizade, te suplico que a vás procurar ao castelo de Tintagel e lhe peças que venha sem demora contigo para me salvar a vida.” Kaherdin ficou comovido com as lamentações de Tristão e, para consolá-lo, disse-lhe doces palavras: “Não chores mais, Tristão, farei tudo o que quiseres. Se fosse preciso, afrontaria a morte para te devolver a saúde. Diz-me somente a mensagem que devo levar à rainha Isolda e preparar-me-ei sem demora para essa viagem.” “Escuta-me, pois — respondeu Tristão. — Toma este anel de jaspe verde que me confiou Isolda, a loura, para que seja entre nós um sinal de reconhecimento. Quando chegares à corte, mal lhe apresentes este anel, ela reconhecer-te-á como meu mensageiro e achará maneira de falar-te comodamente sem que ninguém vos possa ouvir. Depois de a teres saudado da minha parte, diz-lhe que não há para mim nenhuma esperança de cura se ela não me vier tratar em pessoa. A menos que me reconforte com um beijo da sua boca, terei de ir desta para melhor com grande desgosto meu. Recorda-lhe que, por amor dela, me expulsaram e exilaram vergonhosamente em terra estrangeira: passei por tantas dores e lutei tanto que já só tenho um sopro de vida, muito débil. Desde que fui coagido a afastar-me dela, jamais, e tu sabe-lo, amei outra mulher: quanto mais se esforçaram por me separar dela, menos o conseguiram. Companheiro, esforça-te por conduzi-la até ao meu leito de dor; se não regressas depressa com ela, nunca mais me tornarás a ver. Toma também cuidado para que ninguém saiba nada disso além de nós os dois: apresentá-la-ás como uma hábil curandeira vinda de uma terra estrangeira para tratar do meu ferimento. Sobretudo, nada digas a tua irmã Isolda das mãos brancas, a fim de que ela não suspeite do meu amor por Isolda da Irlanda.” Kaherdin respondeu: “Diz-me que navio devo tomar para essa viagem e que prazo me concedes para ir à Cornualha e voltar com a rainha.” “Leva a bela nau com que te presenteou o teu nobre pai, o duque Hoel, e recruta a equipagem entre os melhores deste país. Não sei ao certo quanto tempo te será necessário para ir a Tintagel e voltar com a rainha: tudo dependerá dos ventos e do estado do mar.” “Na minha opinião — observou Kaberdin —, não estarei de retorno, por mais diligências que faça, antes de uma quarentena de dias.” “E possível — replicou Tristão. — Não sei se terei forças para agüentar tanto tempo sem ser socorrido, mas Deus sustentar-me-á pela virtude da esperança. Além disso, para que enlanguesça menos tempo na incerteza da espera, peco-te, belo companheiro, que leves duas velas contigo: uma branca e outra preta. Se conseguires decidir Isolda a vir curar-me a chaga, iça a branca no retorno: assim, a alegria que experimentarei iniciará a minha cura antes mesmo de teres ancorado no porto. Se, por infelicidade, não trouxeres a minha terna amada, então desfralda a vela preta e eu cessarei de reter o que me poderá restar de vida. Vai! Nada mais tenho a dizer-te: que Deus te conduza na tua viagem e te traga são e salvo!” Kaherdin abraça Tristão e, muito dolorosamente, despede-se dele.

Ao primeiro vento favorável, Kaberdin faz-se ao mar, os marinheiros levantam as ancoras, içam o mastro e singram para o largo, levados por uma suave brisa. Durante vários dias cortam a toda a velocidade as vagas e as ondas, a todo o pano. Kaberdin mandou carregar debaixo da ponte tecidos de seda, louça de Tours, vinhos de Anjou e de Poitou, pássaros de Espanha: far-se-á passar por um mercador, a fim de dissimular o objetivo real da sua missão.

XXXVI

A MORTE DOS AMANTES

 

CÓLERA de mulher é coisa temível: todo o homem se deve preservar dela, pois onde uma mulher mais amou, a~ porá o máximo de ardor a vingar-se. Nas mulheres, o ressentimento dura mais tempo que a afeição: elas que regateiam o amor, prodigalizam ao desbarato o ódio enquanto durar a cólera. Thomas de Inglaterra não ousa dizer todo o seu pensamento sobre esta questão: não é assunto de um poeta.

Isolda das mãos brancas, escondida do outro lado da parede, escutara e surpreendera a conversa secreta de Tristão, seu marido, com Kaherdin, seu irmão. Eis que descobriu, de repente, todo o mistério daquele amor! A cólera enche o seu coração: não desejou tanto Tristão para vê-lo voltar-se para outra! Agora compreende bem por que é que Tristão, desde que casara com ela, perdera toda a alegria e jovialidade. Fixa todos os pormenores do que ouviu por manha, fingindo ignorá-lo, mas, mal tenha ocasião, vingar-se-á cruelmente do homem que crê amar mais que tudo no mundo. Assim que se abriram as portas, Isolda entrou no quarto. Dissimula a Tristão a cólera, serve-o com cortesia e mostra um rosto afável, como uma amiga deve mostrar ao seu amigo. Por vezes, até o beija e abraça; simula um perfeito amor, mas medita numa vingança traiçoeira e espreita o momento de saciar o seu rancor. Por vezes procura saber notícias; pergunta quando Kaherdin deve regressar com o médico que curará Tristão. Todavia, é falsamente que geme com o sofrimento do marido: a dissimulação escolheu para morada a sua alma e ela conta, se tiver poder para tal, castigar cruelmente Tristão pelo que considera uma infidelidade e um ultraje.

Entretanto, Kaherdin voga no alto mar. Aporta em Tintagel e desembarca com as mercadorias. Diante do castelo do rei, desenfarda a pacotilha, estende os panos de seda, expõe em gaiolas os pássaros de Espanha, matizados e soberbos. Tão depressa empunha um açor na muda, como logo desdobra um pano de seda tecido do Oriente. Eis, finalmente, uma taça de trabalho delicado cinzelada e niquelada. Oferta-a ao rei Marcos e diz-lhe, com a maior boa vontade do mundo, que vem ao seu reino portador de ricos tesouros, na esperança de ganhar ainda mais. O rei dá-lhe toda a liberdade e segurança para vender as mercadorias no seu reino.

Kaherdin solicita então permissão para ir apresentar à rainha Isolda as suas ricas jóias. Presenteia-lhe uma fivela de ouro fino, a mais delicadamente trabalhada, afirma, que há em todo o mundo. Nunca Isolda vira uma tão bela. Então Kaherdin, tirando do dedo o anel de jaspe verde que Tristão lhe confiara, coloca-o ao lado da fivela e diz: “Rainha, vede como as pedras preciosas encastoadas na fivela têm menos brilho que o jaspe verde no qual é feito o engaste deste anel!” Mal a rainha vê o anel, não se engana é aquele mesmo que dera a Tristão. Examina mais de perto os traços do mercador e reconhece nele Kaherdin, o companheiro de Tristão. Então o coração salta-lhe no peito, empalidece e suspira profundamente, pois teme que o pretenso mercador seja portador de má noticia. Para saber mais, pergunta se quer vender o anel de jaspe verde e que soma deseja. Kaherdin, fingindo discutir o preço, segue-a até um canto do quarto: “Rainha — diz —, escutai bem o que vos vou anunciar: Tristão, o vosso amigo, saúda-vos como a dama em quem está a sua vida e a sua morte Faz-vos saber que foi ferido por uma lança envenenada: enlanguesce com dores horrorosas e não tem mais nenhuma esperança de recuperar a saúde e a vida se vós não vierdes curá-lo em pessoa. Jaz em grande dor, deitando um cheiro repugnante e intolerável. Se lhe recusais a vossa ajuda, não poderá sobreviver. Pela fidelidade que lhe deveis, não hesiteis por nada deste mundo em responder ao seu chamamento. Vim expressamente para conduzir-vos até ele.” Ao ouvir esta mensagem, Isolda fica tomada de uma angustia como jamais conhecera. A resolução é rapidamente tomada: vai tentar a viagem e acompanhar Kaherdin na nau.

Lá para a noitinha, Isolda prepara com a ajuda de Brangia aquilo de que necessita para a travessia e aguarda, para sair do castelo, que toda a gente esteja a dormir. lá noite cerrada, enquanto Brangia fica de atalaia, sai furtivamente do palácio sem alertar quem quer que seja, deslizando por uma poterna baixa que desembocava no mar. O barco de Kaherdin espera perto dali. Assim que a rainha subiu a bordo, os marinheiros fazem-se à vela e vão impulsionados pelo vento. Em breve a nau ligeira aponta para a costa armórica.

Ora, Tristão, a quem a chaga retém estendido, sofre o martírio no seu leito: nada o consegue aliviar, nenhum remédio lhe serve e, o que quer que faça, nada o acalma. Se ainda se esforça por prolongar a vida, é porque aguarda a chegada de Isolda, a loura, esperando que ela venha e lhe alivie o mal. Todos os dias envia alguém à beira-mar para espiar o retorno de Kaherdin, e este único desejo lhe absorve todo o ardor da alma. Por vezes, ordena que o levem para a costa, que lhe façam a cama diante do mar para ver se a nau está à vista e que vela arvora. Por vezes também manda que o tragam de regresso a casa com medo da infelicidade que já adivinha, pois receia de repente que a rainha não venha; se tal acontecesse, preferiria sabê-lo por outrem a ver com os seus próprios olhos o navio regressar sem ela. De volta a casa, queixa-se muitas vezes à mulher, mas sem lhe revelar a verdadeira causa do seu tormento; deplora unicamente a lentidão de Kaherdin, que tarda a trazer o médico de que necessita.

O navio que trazia a amiga tão desejada aproxima-se agora da costa. A roda da proa traçava nas vagas uma alegre esteira quando uma borrasca se levantou, pegou no mastro com vento de proa e fez o navio girar. Os marinheiros acorrem ao ló, voltam a vela, mas em vão: quer queiram quer não, são impelidos para o largo. O vento sopra furiosamente, levanta as vagas, o mar agita-se até às profundezas, o céu escurece e uma bruma espessa estende-se sobre as ondas negras. Chove, saraiva; no céu amontoam-se nuvens, no barco bolinas e cordames partem-se com estrondo. Descem o mastro e avançam bordejando com o vento e as vagas. Isolda, a loura, impressionada com o espetáculo da tempestade, dirige-se a Tristão como se este a pudesse ouvir: “Deus não me quer deixar viver o suficiente para te rever, meu amor. Decidiu que eu pereceria afogada no mar. Tristão, se pudesse falar-te ainda uma vez mais, não me importaria com a minha morte. Mas não depende da minha vontade estar perto de ti nesta hora; se Deus o permitisse, já estaria ocupada a curar o teu mal. Amigo, eis o fim de um sonho! Pensava morrer nos teus braços e repousar contigo no mesmo túmulo. Ai de mim!, é mais uma ilusão que temos de perder!”

Durante dois dias, a borrasca e a tempestade fustigaram o mar; no terceiro, o vento amainou e o bom tempo voltou. Kaherdin, olhando de longe, viu surgir na bruma as falésias da costa bretã. Radiante, mandou desfraldar o mais alto possível a vela branca, a fim de anunciar a Tristão a boa nova: Isolda, a loura, chega! Estava a chegar ao fim o prazo de cerca de quarenta dias que Kaherdin fixara a Tristão para a viagem. Cúmulo do infortúnio: eis que o vento abranda, o sol aquece. O mar fica numa calmaria total, a nau não se move nem para um lado nem para outro e deixa- se embalar pelo marulho das vagas. Os marinheiros estão exasperados: a terra está ali à vista deles, mesmo próxima, e nenhuma brisa os empurra para ela. Ei-los no pior dos embaraços.

Entretanto, Tristão, doente e cansado, por vezes queixa-se, por vezes suspira por Isolda que tanto deseja. Torce as mãos e as lágrimas correm. Neste desgosto, nesta angústia, vê a mulher avançar para ele; esta se lembra de um pérfido artifício e diz- lhe: “Kaherdin está a chegar! Avistei a nau ao longe no mar. Estou certa de que é a sua. Deus queira que vos traga uma nova da qual tireis reconforto!” Ao ouvir estas palavras, Tristão sobressalta-se e pergunta: “Bela amiga, estais absolutamente certa de que é a nau de Kaherdin?” “Não duvideis; reconheci-a bem “ “Dizei-me, peço-vos, não mo escondais: de que cor é a vela que esvoaça na verga?” Isolda responde numa voz que deseja segura: “A vela é preta!” Tristão não responde nada. Volta-se para a parede e diz: “Isolda, não quisestes vir para junto de mim! Por vosso amor tenho de morrer hoje!” Depois, após um curto instante, acrescenta numa voz apagada: “Não posso reter a vida mais tempo.” Por três vezes, pronunciou “Isolda, meu amor!”; a quarta, entregou a alma a Deus.

No mesmo momento, o vento levantou-se no mar: conduziu sem tardar até à margem a nau de Kaherdin. Antes de qualquer outra pessoa, Isolda, a loura, desceu a terra. Ouve grandes lamentos elevaram- se nas ruas de Karhaix e o dobre que soa nos campanários das igrejas. Pergunta aos transeuntes a razão por que tocam os sinos, por quem chora todo aquele povo. Um velho responde-lhe: “Bela dama, que Deus me ajude! Aconteceu nesta terra uma grande infelicidade: Tristão, o bravo, o franco, morreu! Acaba de falecer na cama de uma ferida de que nenhum médico o pôde curar.” Ao ouvir esta notícia, Isolda, a loura, fica muda de dor. Corre pelas ruas como uma louca, o vestido desapertado, pois quer chegar antes dos outros ao castelo. Os bretões admiram-na à passagem: jamais haviam visto mulher de semelhante beleza, mas não sabem nem quem é nem donde vem.

Isolda transpõe a porta do castelo e atinge logo o quarto onde repousava o corpo do amigo. Isolda das mãos brancas lamentava-se diante do corpo, chorando e soltando grandes gritos. A recém- chegada, pálida e sem uma lágrima, aproxima-se dela e diz-lhe: “Mulher, levanta-te e deixa-me sozinha aqui. Tenho mais direito de me afligir do que tu. Acredita-me: amei-o mais!” Mantém-se em pé diante do leito fúnebre, a cabeça voltada para a frente, as mãos erguidas para o céu, e reza em silêncio; em seguida dirige- se a ele para deplorar o seu falecimento: “Tristão, morreste por amor de mim. Uma vez que já não vives, também eu não tenho nenhuma razão para viver. Tudo doravante me será sem doçura, sem alegria, sem prazer. – Maldita seja a tempestade que me atrasou no mar! Se tivesse podido chegar a tempo, ter-te-ia devolvido a saúde e tenhamos docemente falado do terno amor que nos une. Mas já que te não posso curar, que possamos ao menos morrer juntos!” Aproxima-se do leito e estende-se a todo o comprido sobre o corpo de Tristão, rosto com rosto, boca com boca. Neste abraço supremo, sucumbe à violência da dor e expira num soluço.

Kaherdin, com o assentimento do duque Hoel, seu pai, já demasiado idoso para tomar decisões, mandou prestar as honras fúnebres à rainha Isolda e a Tristão. Mandou embalsamar os corpos com vinho, pimenta e ervas aromáticas e colocar cada um, cosido numa pele de veado, numa barca feita de um tronco escavado ao fogo. Os dois corpos foram assim transportados por um navio até ao porto de Tintagel e entregues ao rei Marcos por um enviado de Kaherdin.

“Sire — disse o mensageiro —, o duque Hoel da Bretanha e Kaherdin, seu filho, enviam-vos por mim saudações e amizade Encarregaram-me de vos entregar os corpos da rainha Isolda, a loura, vossa mulher, e do bravo Tristão, vosso sobrinho, cujas almas ponha Deus entre o escol do Paraíso! Tristão, que libertou o ducado da Bretanha de todos os seus inimigos e tornou por mulher a filha do duque Hoel, foi ferido pela lança envenenada de um anão que Deus amaldiçoe! Como todos os médicos eram impotentes para curar a ferida, mandou chamar a toda a pressa a rainha Isolda, vossa mulher, que já por duas vezes, por meio da alta ciência herdada da mãe, o havia arrancado à morte. Infelizmente, embora tenha acorrido ao primeiro apelo, chegou demasiado tarde a Karhaix, quando Tristão acabava de entregar a alma a Deus, e ela própria morreu de comoção e compaixão. Possa o Senhor Todo- Poderoso conceder-vos amparo e consolação no momento em que haveis perdido ao mesmo tempo a mais bela das mulheres e o mais valente dos sobrinhos! Possa Ele conceder-vos longa vida, saúde, honra e vitória sobre os vossos inimigos!”

O rei Marcos ficou comovido com este discurso, e quando viu os dois corpos embrulhados nas peles de veado e deitados nas barcas, sentiu extinguir-se a cólera e acalmar-se o ressentimento, como outrora, quando havia descoberto os dois fugitivos estendidos lado a lado na cabana de folhagem de Morois. Com grandes honras, no meio das lamentações do povo, mandou enterrar perto de uma capela os corpos dos dois amantes. No túmulo de Isolda, a loura, plantou uma roseira vermelha e no de Tristão um cepo de nobre vinha. Os dois arbustos cresceram juntos e os seus ramos entrelaçaram-se tão intimamente que foi impossível separá-los; de cada vez que os podavam, tornavam a crescer com todo o vigor e confundiam a sua folhagem.

Aqui acaba o romance de Tristão e Isolda. A todos os amantes, o narrador dirige a sua saudação: aos sonhadores, aos enamorados, aos ciumentos, a todos aqueles a quem o desejo morde, aos divertidos, aos enlouquecidos, a todos aqueles que lerem esta história! Se não disse a todos o que teriam desejado, disse-o pelo menos o melhor que pude e disse a verdade pura tanto quanto a pude conhecer. Suprimi um pouco à narração; o que conservei, escolhi-o para ilustrar e embelezar esta história, a fim de agradar aos amantes e de estes aí encontrarem com que deleitar o coração. Possam eles dela tirar reconforto contra as traições, contra as injustiças, contra as dores, contra as lágrimas, contra todos os desgostos de amor!

Fonte: www.4shared.com

 

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