William Shakespeare
Personagens Dramáticas
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CLÁUDIO (rei da Dinamarca)
HAMLET (filho do defunto rei e sobrinho do rei reinante)
FORTIMBRAS (príncipe da Noruega)
HORÁCIO (amigo de Hamlet)
POLÔNIO (camareiro-mor)
LAERTES (seu filho)
VOLTIMANDO (cortesão)
CORNÉLIO (cortesão)
ROBENCRANTZ (cortesão)
GUILDENSTERN (cortesão)
OSRICO
Um nobre
Um padre
BERNARDO (oficial)
MARCELO (oficial)
FRANCISCO (soldado)
REINALDO (criado de Polônio)
Um capitão
Embaixadores ingleses
Atores, coveiros
GERTRUDES (rainha da Dinamarca, mãe de Hamlet)
OFÉLIA (filha de Polônio)
Nobres, senhoras, oficiais, soldados, marinheiros, mensageiros e criados
O Fantasma do pai de Hamlet
ATO I
Cena I
Esplanada do castelo de Elsinor
Francisco, de sentinela; Bernardo entra.
BERNARDO — Quem está aí?
FRANCISCO — Não; responda-me; pare e diga o nome.
BERNARDO — Viva o rei!
FRANCISCO — Bernardo?
BERNARDO — Ele mesmo.
FRANCISCO — Vindes exatamente na vossa hora.
BERNARDO — Meia-noite, Francisco. Vai deitar-te.
FRANCISCO — Muito grato vos sou por me renderdes. Que frio! Chega a doer-me o coração.
BERNARDO — Foi calma a guarda?
FRANCISCO — Não buliu nem rato.
BERNARDO — Então, boa noite. Se vires por aí Marcelo e Horácio, dize-lhes que se apressem; estão ambos escalados comigo.
FRANCISCO — Julgo ouvi-los. Olá! Não se aproximem. Quem está aí? (Entram Horácio e Marcelo)
HORÁCIO — Amigos desta terra.
MARCELO — E súditos do rei da Dinamarca.
FRANCISCO — Boa noite para todos.
MARCELO — Outro tanto te desejamos nós, meu bom soldado. Quem te rendeu na guarda?
FRANCISCO — Foi Bernardo. Mais uma vez, boa noite. (Sai)
MARCELO — Olá, Bernardo!
BERNARDO — Fale. Horácio está aí?
HORÁCIO — Ele em pessoa.
BERNARDO — Bem-vindo, Horácio; salve, bom Marcelo.
MARCELO — E a tal coisa, esta noite apareceu?
BERNARDO — Não vi nada.
MARCELO — Horácio diz que tudo é fantasia; não quer acreditar no que contamos sobre a visão que duas vezes vimos. Por isso, o convidei a vir fazer-nos companhia nas horas desta noite. Dessa forma ele confirma nossos olhos, se a aparição voltar, e fala com ela.
HORÁCIO — Qual! Não vem! Não vem nada.
BERNARDO — Bem, sentemo-nos; renovemos o assalto aos teus ouvidos, que tão fortes se mostram para a história do que vimos duas noites.
HORÁCIO — Pois sentemo-nos, para ouvir a Bernardo sobre o assunto.
BERNARDO — Na última noite, ao vir iluminar aquela estrela, que está a oeste do pólo, a parte exata do céu em que ora brilha, eu e Marcelo, ao soar uma hora o sino…
MARCELO — Pára! Não continues; ei-lo de novo. (Entra o Fantasma)
BERNARDO — Exatamente a forma do rei morto.
MARCELO — Fala-lhe tu, Horácio, que és instruído.
BERNARDO — Não é igual ao rei? Vê bem, Horácio.
HORÁCIO — Igual; o espanto e o medo me confundem.
BERNARDO — Deseja que lhe falem.
MARCELO — Fala, Horácio.
HORÁCIO — Quem és, que assim usurpas estas horas da noite e a forma nobre e belicosa que ostentava, marchando, a majestade do sepultado rei da Dinamarca? Pelo céu, fala; ordeno-te!
MARCELO — Ofendeu-se.
BERNARDO — Vai recuando.
HORÁCIO — Detém-te e fala! Intimo-te! (Sai o Fantasma)
MARCELO — Foi-se, sem dizer nada.
BERNARDO — Então, Horácio? Assim tremendo e pálido… Não é mais do que simples fantasia? Que pensais de tudo isso?
HORÁCIO — Perante meu Deus, nisso poderia não ter acreditado sem a sensível e verdadeira testemunha de meus próprios olhos.
MARCELO — Ao rei se assemelha?
HORÁCIO — Como tu te assemelhas a ti mesmo. Essas as armas que trazia, quando derrubou o ambicioso Norueguês; desse modo franziu o sobrecenho, depois da discussão, quando no gelo jogou a resistente machadinha. É muito estranho.
MARCELO — Por duas vezes, já, nesta hora morta, passou por nós com o mesmo ar belicoso.
HORÁCIO — Não posso achar explicação; contudo, de maneira geral, penso que o fato é indício de algum mal para nós todos.
MARCELO — Sentem-se, então, e quem souber nos diga donde vem fatigarem-se os vassalos deste reino com guardas rigorosas; e mais: por que fundir canhões de bronze, por que tanto armamento do estrangeiro, por que trabalham tanto os arsenais, sem das semanas separar os sábados? Que nos ameaça, para que essa faina suarenta a noite mude em companheira de trabalho do dia? Quem me pode dar disso a explicação?
HORÁCIO — Eu, quero crê-lo. É o que se fala, ao menos: o defunto monarca, de quem vimos, ora, a imagem, foi desafiado, como é bem sabido, por Fortimbrás, a quem ciumento orgulho dava ousadia. O nosso bravo Hamlet — que assim por estes mundos lhe chamavam — matou o Norueguês, que, por contrato selado e sancionado pelas normas da nobreza, legava ao adversário todos os territórios ocupados, se a vida a perder viesse na compita. Nosso rei, por seu lado, o equivalente de terras empenhou, que caberiam a Fortimbrás, no caso de afirmar-se vitorioso, tal como, pela força desse artigo, as daquele para Hamlet foram deixadas. Mas agora o moço Fortimbrás, ardoroso porém falho de experiência, alistou pela fronteira da Noruega, só a preço de comida, uns tipos corajosos e sem terras, que antevêem qualquer empresa gorda — que não é outra, justamente, como nosso Estado, de há muito, o reconhece — senão nos constranger pela violência das armas a entregar-lhes esses domínios que de seu pai nos vieram. Eis a origem principal, quero crer, de tanta azáfama, a causa desta guarda e a maior fonte da lufa-lufa em que se agita o reino.
BERNARDO — É o que eu penso, também; deve ser isso. É o que explica passar por nossa guarda semelhante portento sob o aspecto do rei que foi e é causa desta guerra.
HORÁCIO — O olho da inteligência um argueiro o turva. Na época mais gloriosa da alta Roma, pouco antes de cair o grande Júlio, saíram dos sepulcros os cadáveres em seus lençóis, gemendo pelas ruas. Depois, chuviscou sangue, apareceram manchas no Sol, cometas; e o úmido astro que tem força no reino de Netuno, do eclipse padeceu do fim das coisas. Idênticos sinais de cruéis eventos — precursores que são sempre dos Fados e prólogo de agouros iminentes — enviaram juntamente o céu e a terra por sobre o nosso clima e nosso povo. Mas, silêncio! Cautela! Ei-lo que volta. (Entra o Fantasma) Vou falar-lhe, ainda mesmo que me mate. Pára, ilusão! Se tens o uso da fala, responde-me! Se é de necessidade fazer algo de bom, que te alivie e me dê graça, fala-me! Se estás a par de algum mal iminente de tua pátria, e que possa ser desviado, oh, fala-me! Ou, ainda, se escondeste sob a terra, quando vivo, tesouros extorquidos, razão, se diz, de as almas retornarem, (Um galo canta) detém-te e fala. Agarra-o bem, Marcelo.
MARCELO — Posso dar-lhe com minha partasana?
HORÁCIO — Se resistir.
BERNARDO — Aqui!
HORÁCIO — Por este lado! (Sai o Fantasma)
MARCELO — Desapareceu! Foi mal de nossa parte, em tanta mostra de majestade, usarmos de violência. Como o ar, é invulnerável, não passando de brincadeira os nossos golpes vãos.
BERNARDO — Ia falar; o galo o não deixou.
HORÁCIO — Nesse instante, tremeu como culpado diante da citação de ruim presságio. Ouvi dizer que o galo, essa trombeta da manhã, com sua voz vibrante e clara, desperta o deus do dia, e que a esse aviso, quer no mar, quer no fogo, no ar, na terra, os errantes espíritos retornam para seus postos, do que temos clara confirmação em quanto presenciamos.
MARCELO — Quando o galo cantou, desvaneceu-se. Dizem que quando o tempo se aproxima de a data festejarmos do natal do nosso Salvador, essa ave canta durante toda a noite. Então, espírito nenhum anda vagante, dizem; todas as noites são salubres; os planetas não têm influência, os gnomos, os bruxedos: tão gracioso é esse tempo e tão sagrado.
HORÁCIO — Ouvi falar, também, e em parte o creio. Mas vede: a aurora com seu manto rubro passeia sobre o orvalho além do morro. Ponhamos fim à guarda. Sou de aviso que os fatos desta noite os transmitamos ao moço Hamlet, pois, por minha vida, esse espírito mudo há de falar-lhe. Concordais em fazer-lhe esse relato que o dever e a afeição de nós o exigem?
MARCELO — Façamo-lo, vos peço; eu sei o ponto em que é fácil falar-lhe esta manhã. (Saem)
Cena II
Uma sala de recepção no castelo. Entram o Rei, a Rainha, Hamlet, Polônio, Laertes. Voltimando, Cornélio, nobres e séquito.
O REI — Conquanto esteja fresca, ainda, a memória do traspasso de Hamlet, o irmão saudoso, e chorá-lo devêssemos, contraindo toda a corte em tristeza o sobrecenho: tanto a razão se impõe à natureza que com sábia tristura o relembramos ao tempo em que pensamos em nós mesmos. Por isso, à que era nossa irmã, e agora nossa rainha, a imperial herdeira deste reino guerreiro, com alegria, por bem dizermos, parcialmente frustra, num dos olhos o choro, no outro o riso, ledos no funeral, tristes na igreja, sabendo equilibrar a dor e o encanto, tomamos como esposa, após ouvirmos vossos conselhos, sempre e em tudo livres. Nossos agradecimentos por tudo isso. Agora Fortimbrás, o moço, como bem o sabeis, subestimando nossa força, ou mesmo pensando que o traspasso de nosso irmão poria o Estado fora dos eixos, sonha com vantagens pessoais, não cessando de inquietar-nos com mensagens que visam a reaver-nos as terras que seu pai petdeu na luta, conforme as condições estipuladas com nosso bravo irmão. Sobre ele, basta. Passemos a tratar de nós e desta convocação: é o caso que escrevemos a Noruega, tio desse moço Fortimbrás, que, de cama e muito doente, de certo ignora os planos do sobrinho, pedindo-lhe intervenha no sentido de sofrear-lhe o ardor, visto que as levas e alistamentos estão sendo feitos nos seus domínios. Daí vos despacharmos, bom Cornélio, e também vós, Voltimando, com meu saudar ao velho Norueguês, sem mais poder pessoal para tratardes com o rei, além do que estiver previsto nas vossas instruções. E agora, adeus; que a pressa recomende o vosso zelo.
CORNÉLIO e VOLTIMANDO — Demonstrá-lo-emos nisto, como em tudo.
O REI — Estamos certos disso; passai bem. (Voltimando e Cornélio saem) Dize agora, Laertes, que pretendes. Já nos falaste de algo. Que é, Laertes? Não se dará que percas as palavras, se falares com senso ao soberano da Dinamarca. Que nos poderias pedir, Laertes, que não fosse nossa dádiva, não pedido de tua parte? A cabeça não é tão bem casada com o coração, nem serve a mão à boca com mais zelo, que ao trono teu bom pai. Que desejas, Laertes?
LAERTES — Real senhor, permissão de regresso para a França. Ainda que de bom grado eu tenha vindo à vossa coroação, confessar devo que, cumprido o dever, meus pensamentos e desejos, sujeitos vossa alta benevolência, à França me conduzem.
O REI — Teu pai já o consentiu? Que diz Polônio?
POLÔNIO — Sim, milorde, arrancou de mim meu tardo consentimento à custa de insistência, tendo eu, por fim, selado seu pedido com meu custoso “sim”. Por isso, peço-vos consentirdes que volte para a França.
O REI — Laertes, a hora é boa; usa o teu tempo e a teu sabor e dotes o aproveita. E agora, primo Hamlet, primo e filho…
HAMLET (à parte) — Parente, mais; querido, muito menos.
O REI — Por que sempre o teu rosto com essas nuvens?
HAMLET — Nem tanto, meu senhor, o Sol me aquece.
A RAINHA — Despe-te, bom Hamlet, desse luto, e deita olhar amigo à Dinamarca. Não prossigas assim, de olhos caídos, a procurar teu nobre pai na poeira. É lei comum, tu o sabes; quantos vivem, passam da natureza para a vida da eternidade.
HAMLET — É lei comum, realmente, minha senhora.
A RAINHA — Então, se é assim com todos, que te parece estranho nesse caso?
HAMLET — Não parece, senhora; é. Não conheço “pareces”, boa mãe. Nem esta capa sombria, nem as vestes costumeiras de solene cor negra, os tempestuosos suspiros arrancados do imo peito, as torrentes fecundas que me descem dos olhos, o semblante acabrunhado, nem todas as demais modalidades da mágoa poderão nunca, em verdade, definir-me. Parecem, tão-somente, pois são gestos de fácil fingimento. Mas há algo dentro em mim que não parece. Tudo isso é roupa e enfeite do infortúnio.
O REI — Recomenda-te, Hamlet, a natureza chorares o teu pai dessa maneira Mas, lembra-te: teu pai perdeu um pai, que o seu, também, perdera. Ao filho vivo cabe o grato dever de lastimá-lo por algum tempo. Mas mostrar tão grande obstinação no luto, é dar indícios de teima e de impiedade; é a dor dos fracos; revela uma vontade ímpia e rebelde, coração débil, mente anarquizada, inteligência pobre e sem cultivo. Se tem de ser assim, tal como as coisas mais comuns que aos sentidos nos afetam, para que nos mostrarmos rigorosos e pueris? Ora! É ofensa ao próprio céu, natureza, aos mortos, mais que absurda para a razão, cujo princípio básico é o traspasso dos pais, e que não cessa de proclamar desde a hora do primeiro cadáver até ao morto deste instante: Tinha de ser assim. Vamos, te peço, deixa essa dor estéril e nos trata como a pai. Sim, que o mundo tome nota: o mais chegado és tu ao nosso trono. Não menos generosos sentimentos dedica ao filho um pai do que os que à tua pessoa consagramos. Teu desejo de voltar novamente para a escola de Vitemberga opõe-se ao nosso alvitre. Por isso, conjuramos-te a ficares sob o grato prazer de nossos olhos, dos nobres o primeiro, primo e filho.
A RAINHA — Não deixes que tua mãe gaste suas súplicas em vão, Hamlet. Peço-te ficares conosco. Não te vás a Vitemberga.
HAMLET — Quanto em mim for, senhora, serei dócil.
O REI — Isso sim, que é falar sensato e amável. Sê como nós na Dinamarca. Vamos, senhora. O voluntário “sim” de Hamlet sorri-me ao coração. Por isso, os brindes de hoje de Dinamarca o canhão grande deverá transmiti-los até às nuvens. O céu vai repetir, a cada taça do rei, trovões da terra. E agora, vamo-nos. (Saem o Rei, a Rainha, Laertes, Polônio e o séqüito)
HAMLET — Oh, se esta carne sólida, tão sólida, se esfizesse, fundindo-se em orvalho! Ou se ao menos o Eterno não houvesse condenado o suicídio! Ó Deus! Ó Deus! Como se me afiguram fastidiosas, fúteis e vãs as coisas deste mundo! Que horror! Jardim inculto em que só medram ervas daninhas, cheio só das coisas mais rudes e grosseiras. Chegar a isso! Morto há dois meses! Não, nem tanto… Dois? Um rei tão bom, que, confrontado com este, era Apolo ante um sátiro… Tão terno para a esposa, que ao próprio vento obstava de bater-lhe no rosto com violência. Oh céus! Recordá-lo-ei? Pendia dele como se seus desejos aumentassem com a saciedade. E um mês depois… Paremos. Fragilidade, nome de mulher… Só um mês, sem ter gasto ainda os sapatos com que o corpo seguiu do meu bom pai, qual Níobe, só lágrimas. Sim, ela — Ó céu! Um animal que é destruído da faculdade da palavra, certo choraria mais tempo! — desposada! pelo irmão de meu pai, mas que tem tanto dele tal como eu de Hércules. Num mês, antes que o sal das lágrimas tão falsas secassem de seus olhos tumefeitos estar ela casada! Oh! pressa iníqua de subir para o tálamo incestuoso! Não pode acabar bem… Mas despedaça-te, coração; é mister ficar calado. (Entram Horácio, Marcelo e Bernardo)
HORÁCIO — Deus guarde a Vossa Alteza.
HAMLET — Alegra-me rever-te com saúde… Horácio, se a memória não me falha.
HORÁCIO — O mesmo criado, príncipe, de sempre.
HAMLET — Amigo, amigo; é o nome que eu te dou. Qual a razão de haveres tu deixado. Vitemberga?… Marcelo?
MARCELO — Meu bom príncipe…
HAMLET — Muito prazer. (A Bernardo) Bons dias. Mas falando sério, por que deixaste Vitemberga?
HORÁCIO — Simples disposição de um preguiçoso.
HAMLET — Não quisera ouvir isso de teus próprios inimigos. Por isso, não me faças ao ouvido a violência de depores contra ti próprio. Não, não és vadio. Qual o motivo que a Elsinor te trouxe? Conosco aprenderás a beber muito.
HORÁCIO — Senhor, os funerais de vosso pai.
HAMLET — Meu caro condiscípulo, não zombes; creio que vieste para o casamento. de minha mãe.
HORÁCIO — Realmente, foi bem perto.
HAMLET — Economia, Horácio! Os bolos fúnebres serviram para os frios do esposório. Preferira encontrar no céu o inimigo mais ferrenho, a viver tal dia, Horácio. Meu pai! Às vezes julgo ver meu pai.
HORÁCIO — Como, senhor?
HAMLET — Com os olhos da alma, Horácio.
HORÁCIO — Vi-o uma vez; um grande rei, de fato.
HAMLET — Um homem, na acepção lata do termo; jamais poderei ver alguém como ele.
HORÁCIO — Creio, senhor, que o vi nesta noite última.
HAMLET — A quem?
HORÁCIO — A vosso pai, senhor.
HAMLET — O rei meu pai?
HORÁCIO — Prestai-me ouvidos, refreando o espanto por algum tempo, até que eu vos relate tal maravilha, sob o testemunho destes senhores.
HAMLET — Pelo céu, falai.
HORÁCIO — Duas noites a fio estes senhores, o Bernardo e o Marcelo, quando guarda montavam, na hora morta da meia-noite, viram uma figura parecida com vosso pai, armado da cabeça até aos pés, avançando com postura lenta e grave. Três vezes pelos olhos pávidos lhes passou, à só distância de um bastão de comando. Eles, gelados pelo medo, ficaram sem ter ânimo para falar-lhe. O fato me confiaram, sob a maior reserva, ainda abalados. Montei guarda com eles na outra noite… E eis que na hora indicada, sob a forma que eles a descreveram, tudo exato, voltou a aparição… Sim, vosso pai; conheci-o; estas mãos não se parecem tanto.
HAMLET — Onde foi tudo isso?
MARCELO — Na esplanada, senhor, onde ficávamos de guarda.
HAMLET — Falaste-lhe?
HORÁCIO — Falei-lhe, sim, meu príncipe, mas não me respondeu. Contudo, quis-me parecer que ele o rosto levantava, pondo-se em movimento, como prestes a falar. Mas, nessa hora, cantou o galo. A esse canto, esgueirou-se ele apressado, sumindo à nossa vista.
HAMLET — É muito estranho.
HORÁCIO — Por minha vida, príncipe, é a verdade. Pensamos que o dever nos prescrevia dar-vos conta de tudo.
HAMLET — Não vos encubro a minha inquietação. Montais guarda esta noite?
MARCELO e BERNARDO — Sim, alteza.
HAMLET — Tinha armas, o dissestes?
MARCELO e BERNARDO — Sim, alteza.
HAMLET — Da cabeça aos pés?
MARCELO e BERNARDO — Sim, de alto a baixo.
HAMLET — Então não lhe pudestes ver o rosto.
HORÁCIO — Como não? A viseira estava erguida.
HAMLET — E as feições, carregadas?
HORÁCIO — Expressão mais de dor do que de cólera.
HAMLET — Corado ou pálido?
HORÁCIO — Muito pálido.
HAMLET — E o olhar? Chegou a fitar-vos?
HORÁCIO — Durante todo o tempo.
HAMLET — Desejara tê-lo visto.
HORÁCIO — Sem dúvida, isso havia de causar-vos profunda admiração.
HAMLET — Muito provavelmente. E demorou-se?
HORÁCIO — O tempo de contar, com certa calma, até cem.
MARCELO e BERNARDO — Muito mais! Muito mais tempo!
HORÁCIO — Não quando o vi.
HAMLET — E a barba? Era grisalha?
HORÁCIO — Tal como a vi, quando ele ainda era vivo: negro-prateada.
HAMLET — À noite, eu farei guarda; talvez ele retorne.
HORÁCIO — É quase certo.
HAMLET — Se ele me aparecer sob a figura de meu pai, falar-lhe-ei, ainda que o inferno se me abrisse e mandasse ficar quieto. Mas peço a todos: se a ninguém falastes dessa visão, sede discretos nisso. A qualquer ocorrência desta noite, trocai sinais apenas, não palavras. Saberei ser-vos grato. Passai bem. Na esplanada, entre as onze horas e as doze, pretendo aparecer.
TODOS — Nossos respeitos.
HAMLET — Vosso amor, como o meu. E agora, adeus. (Horácio, Marcelo e Bernardo saem) A sombra de meu pai em armas! Tudo vai muito mal. Temo qualquer desgraça. Ah! Quem dera que a noite já chegasse! Mas até lá, minha alma, sê paciente. As ações más, embora a terra as cubra, aos olhos dos mortais não se subtraem. (Sai)
Cena II
Um quarto no castelo. Entram Rei, a Rainha, Rosencrantz e Guildenstern.
O REI — Bem-vindos, Rosencrantz e Guildenstern! Ainda que desejássemos rever-vos, a urgência de empregar-vos deu motivo a este chamado. Certo ouvistes algo sobre a transformação de Hamlet; assim lhe chamo, que o exterior dele e o seu íntimo não são agora os mesmos. Qual a causa, fora a morte do pai, que o pôs desta arte, tão alheio a sua própria inteligência, não na posso saber. Por isso, peço-vos — já que ambos fostes criados juntos com ele, tão afins no caráter e na idade — que vos digneis ficar em nossa corte por algum tempo, para o distrairdes com vossa companhia, e também para investigardes, sempre que possível, se algo que nos escapa o mortifica, e que, uma vez sabido, remediemos.
A RAINHA — Tem falado bastante nos senhores. Não pode haver outras pessoas que ele tanto aprecie. Se vos for do agrado mostrar-nos boa vontade e gentileza, despendendo conosco vosso tempo para lucro tão-só de nosso anseio, terá nossa visita prêmio digno do reconhecimento de um monarca.
ROSENCRANTZ — Está em Vossas Majestades, pelo jus da soberania, não pedir-nos favor, mas ordenar-nos, como o queira vosso augusto prazer.
GUILDENSTERN — Estamos prontos a obedecer-vos. Tensos até ao máximo, viemos nos pôr aos pés de Vossa Alteza, para sermos mandados.
O REI — Muito obrigado Rosencrantz, querido Guildenstern.
A RAINHA — Muito obrigada Guildenstern, querido Rosencrantz. É com muito carinho que vos peço visitardes meu filho, que se encontra tão mudado. — Um daí sirva de guia e conduza até Hamlet estes senhores.
GUILDENSTERN — Praza ao céu que lhe seja útil e grato nosso auxílio e presença.
A RAINHA — Deus o queira. (Saem Rosencrantz, Guildenstern e alguns criados) (Entra Polônio)
POLÔNIO — Regressaram contentes da Noruega, meu bom senhor, os nossos emissários.
O REI — Sempre fostes o pai de boas novas.
POLÔNIO — Não é verdade? Posso assegurar-vos que eu dedico o dever, assim como a alma, primeiro a Deus, depois ao meu querido soberano. E ora penso — salvo se esta cabeça já não segue como dantes o rasto da prudência — haver achado o motivo de estar Hamlet louco.
O REI — Revelai-mo; a notícia me alvoroça.
POLÔNIO — Primeiro os emissários; a notícia vai ser a sobremesa do banquete.
O REI — Pois faze-lhes as honras e os conduze. (Sai Polônio) Disse, minha querida, haver achado as origens da doença de teu filho.
A RAINHA — Temo que seja apenas a mais grave: o traspasso do pai e nosso enlace.
O REI — Sondá-lo-emos. (Volta Polônio, com Voltimando e Cornélio) Bem-vindos, bons amigos. Dizei-me, Voltimando, o que trouxestes de nosso irmão Noruega.
VOLTIMANDO — Retribui-vos cumprimentos e envia-vos saudares. Mal nos ouviu, mandou suspender todas as levas do sobrinho, que julgava serem preparações contra o Polaco, mas que, certo, depois soube visarem Vossa Alteza. Indignado com tamanho desrespeito à sua idade e ao próprio achaque da velhice, mandou vir Fortimbrás preso, que lhe obedece prontamente, e após ser admoestado por Noruega, promete ao tio que jamais as forças empregaria contra Vossa Alteza, com o que o velho Noruega, jubiloso, três mil coroas de pensão lhe outorga, com a permissão de usar contra o Polaco justamente os soldados alistados, ao lado do pedido aqui explanado, (Entrega uma carta) de que vos seja grato o livre trânsito dessas tropas por vosso território em condições de inteira segurança, contidas nesta carta.
O REI — Muito bem; vamos lê-la com a calma necessária, responder-lhe e pensar sobre a matéria. Agradecemos vossos bons serviços. Agora descansai; cearemos juntos. Bem-vindos ao meu lar. (Saem Voltimando e Cornélio)
POLÔNIO — Foi bem solucionada essa pendência. Meu rei, minha senhora: pretender explicar o que seja a majestade ou o dever, porque o dia é dia e a noite é noite, e o tempo é tempo, vale o mesmo que malgastar o dia, a noite e o tempo. É certo: a concisão é a alma do espírito, como a prolixidade os seus suportes e flores exteriores. Vou ser breve. Vosso filho está louco; sim, é o termo mais acertado; pois em que consiste a loucura, senão em sermos loucos? Que seja.
A RAINHA — Mais matéria, menos arte.
POLÔNIO — Juro que não faço uso de arte alguma. Que é louco, é certo; é certo e mete pena. Mete pena ser certo; ruim antítese. Pois deixemo-la; quero falar simples. Louco é como lhe chamo; só nos falta descobrir qual a causa desse efeito, ou melhor: qual a causa do defeito, que o efeito defeituoso tem sua causa. Assim ficou; o resto é como segue. Considerai: Tenho uma filha — tenho, enquanto é minha — a qual, fiel à obediência que me deve, notai bem, me deu isto. Ora, concluí: “Ao ídolo de minha alma, à divina e embelezada Ofélia”. Expressão horrorosa e banal: Embelezada! Muito banal. Mas ouvi até ao fim: “Ao seu seio cândido e delicado, estas, etc.”
A RAINHA — Hamlet lhe enviou isso?
POLÔNIO — Senhora, mais paciência; direi tudo. “Duvida da luz dos astros, de que o Sol tenha calor, duvida até da verdade, mas confia em meu amor. Querida Ofélia: não sou muito forte na contagem das sílabas: não possuo a arte de medir os meus suspiros; mas que te amo muitíssimo, infinitamente, podes crer-me. Adeus. O teu para sempre, querida menina, enquanto esta máquina lhe pertencer, Hamlet.” Eis o que minha filha me contou, por obediência; e mais: suas instantes declarações, segundo o modo, o tempo e as oportunidades.
O REI — E ela, como o acolheu?
POLÔNIO — Que pensais, senhor, de mim?
O REI — Que sois pessoa honrada e de confiança.
POLÔNIO — Pois prová-lo-ei. Que havíeis de pensar, se eu visse alçar o vôo amor tão férvido — e o percebi, vos digo, antes de minha filha mo revelar — que pensaríeis, ou a minha majestade aqui presente, se eu tivesse servido de carteira ou pasta de papéis, ou então piscado ao coração, ficando quieto e mudo, e indiferente contemplasse o caso? Que pensaríeis? Não; pus-me em campanha, e falei deste modo à senhorita: “Lorde Hamlet está acima de tua esfera; não pode ser”, e dei-lhe bons conselhos para que ela o evitasse daí em diante, recusasse recados e presentes. Pôs-se ela a aproveitar-se dos conselhos, e ele — para ser breve — repelido, cai em melancolia a que se segue jejum, falta de sono, abatimento e distração. E assim, piorando sempre, cai na loucura em que ora se debate e nos punge.
O REI — Pensais, então, seja isso?
A RAINHA — Pode ser; bem plausível.
POLÔNIO — Já aconteceu — anseio por sabê-lo — ter eu dito: “Tal coisa é deste modo”, que assim não fosse?
O REI — Não, que o saiba.
POLÔNIO (indicando a cabeça e os ombros) — Arrancai esta destes, se isso é falso. Pelo rasto descubro onde se encontra escondida a verdade, ainda que seja no próprio centro.
O REI — E como comprová-lo?
POLÔNIO — Sabeis que ele passeia horas seguidas aqui na galeria.
A RAINHA — É hábito seu.
POLÔNIO — Mandarei minha filha vir falar-lhe; nós ficamos atrás desta cortina. Observai bem os fatos; se a não ama, mudai-me da função de conselheiro para a de carroceiro ou camponês.
O REI — Façamos a experiência.
A RAINHA — Mas vede. Como é triste! O pobrezinho vem lendo um livro!
POLÔNIO — É urgente; deveis ambos sair, eu vos suplico. Vou falar-lhe. (Saem o Rei, a Rainha e os criados) (Entra Hamlet, lendo) Como passa o meu bom príncipe Hamlet?
HAMLET — Bem, graças a Deus.
POLÔNIO — Conheceis-me, milorde?
HAMLET — Perfeitamente; sois um peixeiro.
POLÔNIO — Eu, não, milorde.
HAMLET — Pois quisera que fôsseis tão honesto.
POLÔNIO — Honesto, príncipe?
HAMLET — Sim, porque do jeito em que o mundo anda, ser honesto equivale a ser escolhido entre dez mil.
POLÔNIO — É muito certo isso, príncipe.
HAMLET — Porque, se o sol gera vermes no cadáver de um cão, carniça muito bela para ser beijada… Não tendes uma filha?
POLÔNIO — Tenho, milorde.
HAMLET — Então não a deixeis passear ao sol; a concepção é uma bênção; não porém, como vossa filha pode conceber. Cuidado, amigo!
POLÔNIO — Que quereis dizer com isso? (À parte) Sempre com a idéia em minha filha. No entanto, a princípio não me reconheceu, tendo-me tomado por um peixeiro. O mal já vai longe. Mas, para ser franco, na minha mocidade o amor me fez sofrer bastante. Cheguei quase a esse ponto. Vou falar-lhe outra vez. Que é que o meu príncipe está lendo?
HAMLET — Palavras, palavras, palavras…
POLÔNIO — A que respeito, príncipe?
HAMLET — Entre quem?
POLÔNIO — Refiro-me ao assunto de vossa leitura, príncipe.
HAMLET — Calúnias, meu amigo. Este escravo satírico diz que os velhos têm a barba grisalha, a pele do rosto enrugada, que dos olhos lhes destila âmbar tenue e goma de ameixeira, sobre carecerem de espírito e possuírem pernas fracas. Mas embora, senhor, eu esteja íntima e grandemente convencido da verdade de tudo isso, não considero honesto publicá-lo; por que se pudésseis ficar tão velho quanto eu, sem dúvida alguma andaríeis para trás como caranguejo.
POLÔNIO (à parte) — Apesar de ser loucura, revela método. Não quereis sair do vento, príncipe?
HAMLET — Entrar na sepultura?
POLÔNIO — Realmente, desse modo sairíeis do vento. (À parte) Como são agudas, não raro, as suas respostas! É uma felicidade da loucura, algumas vezes, felicidade que a razão e o bom senso não alcançam com a mesma facilidade. Vou deixá-lo, a fim de arranjar maneira de que se encontre com minha filha. Meu muito digno senhor, desejo humildemente pedir permissão para despedir-me.
HAMLET — Pois não; não podeis pedir coisa que eu cedesse de melhor boa vontade; exceto a vida, exceto a vida, exceto a vida.
POLÔNIO — Passai bem, meu príncipe. (Retirando-se)
HAMLET — Esses velhos cacetes e sem miolo! (Entram Rosencrantz e Guildenstern)
POLÔNIO — Procurais lorde Hamlet? Está aqui.
ROSENCRANTZ — Deus vos guarde, senhor. (Sai Polônio)
GUILDENSTERN — Nobre senhor…
ROSENCRANTZ — Meu querido príncipe…
HAMLET — Caros amigos! Como passais, Guildenstern? Ah, Rosencrantz! Bons amigos, como ides passando?
ROSENCRANTZ — Como filhos medíocres da terra.
GUILDENSTERN — Felizes por não o sermos em demasia. Não somos o botão mais alto do gorro da Fortuna.
HAMLET — Nem a sola de seus sapatos?
ROSENCRANTZ — Nem isso, príncipe.
HAMLET — Então viveis na zona da cintura, ou no meio de seus favores?
GUILDENSTERN — De fato, vivemos em sua intimidade.
HAMLET — Nas partes secretas da Fortuna? Realmente, é uma meretriz. Que novidades há?
ROSENCRANTZ — Nenhuma, príncipe; a não ser que o mundo se tornou honesto.
HAMLET — Nesse caso, aproxima-se o dia do Juízo. Mas para ficarmos no caminho trilhado da amizade, que vos trouxe a Elsinor?
ROSENCRANTZ — Fazer-vos uma visita, príncipe; nada mais.
HAMLET — Sou um mendigo que sofre de penúria até de agradecimentos. Contudo, agradeço-vos; com a certeza, meus caros, de que esses agradecimentos já serão caros demais por um real. Não fostes chamados? Viestes de moto próprio? Trata-se de visita espontânea? Vamos, vamos! Sede sinceros comigo; dizei-me a verdade.
GTJILDENSTERN Que poderemos dizer, senhor?
HAMLET — Qualquer coisa, contanto que sirva ao caso. Fostes chamados; leio em vosso olhar uma espécie de confissão, que a modéstia que vos é própria não consegue mascarar. Sei perfeitamente que o bom rei e a rainha mandaram chamar-vos.
ROSENCRANTZ — Com que fim, senhor?
HAMLET — É o que ireis dizer-me. Mas, conjuro-vos pelos direitos de nossa camaradagem, pela consonância da idade, pelas obrigações de nossa sempre comprovada afeição e por tudo de mais caro que pudesse ser invocado por um orador mais convincente do que eu; sede sinceros comigo: fostes ou não fostes chamados?
ROSENCRANTZ — (à parte para Guildenstern) — Que dizeis a isso?
HAMLET (à parte) — Não vos perco de vista. Se me tendes amizade, nada de evasivas.
GUILDENSTERN — De fato, príncipe, fomos chamados.
HAMLET — Vou dizer-vos o motivo; desse modo, antecipando-se minhas presunções a vossas declarações, não oscilará no mínimo a discrição que deveis ao rei e à rainha. De tempos a esta parte — por motivos que me escapam — perdi toda a alegria e descuidei-me dos meus exercícios habituais. Tão grave é o meu estado, que esta magnífica estrutura, a terra, se me afigura um promontório estéril; este maravilhoso dossel — ora vede — o ar, este excelente firmamento que nos cobre, este majestoso teto, incrustado de áureos fogos, tudo isto, para mim não passa de um amontoado de vapores pestilentos. Que obra-prima, o homem! Quão nobre pela razão! Quão infinito pelas faculdades! Como é significativo e admirável na forma e nos movimentos! Nos atos quão semelhante aos anjos! Na apreensão, como se aproxima dos deuses, adorno do mundo, modelo das criaturas! No entanto, que é para mim essa quintescência de pó? Os homens não me proporcionam prazer; sim, nem as mulheres, apesar de vosso sorriso querer insinuar o contrário.
ROSENCRANTZ — Não pensei em semelhante coisa, príncipe.
HAMLET — Então, por que sorristes, quando eu disse que os homens não me proporcionam prazer?
ROSENCRANTZ — Por pensar que, se isso acontece, os atores vão ter uma recepção de quaresma. Apanhamo-los em caminho; vêm para oferecer-vos os seus serviços.
HAMLET — Será bem-vindo o que representa o rei; Sua Majestade receberá as minhas homenagens; o cavalheiro andante fará uso do florete e do escudo; o amante não suspirará de graça; o caprichoso irá em paz até ao fim do seu papel, o bobo fará rir aos que tiverem pulmões que disparem ao menor toque, as damas exporão livremente o seu pensar, para que o verso branco não fique estropiado. Que espécie de atores são eles?
ROSENCRANTZ — Os mesmos de que tanto gostáveis: os atores da cidade.
HAMLET — E por que estão viajando? Se ficassem fixos, só poderiam ganhar, assim na reputação como em vantagens materiais.
ROSENCRANTZ — Penso ser isso resultado da última sedição.
HAMLET — Ainda gozam de conceito igual ao do tempo em que eu estava na cidade?
ROSENCRANTZ — Não tanto, meu senhor.
HAMLET — E qual a causa? Ficaram enferrujados?
ROSENCRANTZ — Não; esforçam-se como de costume; mas apareceu por aí uma ninhada de crianças, uns frangotes que trazem a público todas as particularidades da questão, pelo que são barbaramente aplaudidos. Estão agora em moda, cacarejando de tal maneira nos teatros comuns — como eles lhes chamam — que muita gente de espada receia ir lá, com medo das penas de pato.
HAMLET — Como assim! São crianças? E quem os mantem? Quem lhes paga ordenados? Só exercerão a arte enquanto puderem cantar? Não dirão mais tarde, se se tornarem atores comuns — o que é de presumir, uma vez que lhes faltam maiores cabedais — não dirão que os escritores abusaram deles, fazendo os declamar contra seu próprio futuro?
ROSENCRANTZ Em verdade, de parte a parte não tem faltado matéria para brigas, sem que o povo revele escrúpulos em espicaçá-los. Época houve em que a peça nada rendia, se o poeta e o ator não fossem às vias de fato com seus adversários.
HAMLET — É possível?
GUILDENSTERN — Oh! Tem havido grande desperdício de inteligência.
HAMLET — E os meninos, carregaram os louros da vitória?
ROSENCRANTZ — Foi, realmente, o que se deu, milorde; carregaram Hércules e mais o seu fardo.
HAMLET — Não admira; meu tio é rei da Dinamarca, e aqueles que lhe faziam caretas em vida de meu pai, dão agora vinte, quarenta, cinqüenta, e até cem ducados por seu retrato em miniatura. Por minha vida! Há algo de sobre-natural em tudo isso. Assim pudesse a filosofia descobri-lo. (Ouve-se toque de clarins)
GUILDENSTERN — São os atores que chegam.
HAMLET — Senhores, sois bem-vindos a Elsinor. Apertemo-nos as mãos; os cumprimentos e cortesias são as pertenças das boas-vindas. Consenti que vos saúde deste modo, para que minha atitude em relação aos atores — e posso assegurar-vos que vai ser de brilhante aparência — não pareça acolhimento mais afetuoso do que o que vos dispenso. Sois bem-vindos; mas meu tio-pai e minha tia-mãe se enganaram.
GUILDENSTERN — Em quê, senhor?
HAMLET — Eu só fico louco quando o vento sopra de nornoroeste; com vento sul, distingo perfeitamente um falcão de uma garça. (Entra Polônio)
POLÔNIO — Meus cumprimentos, senhores.
HAMLET — Escuta, Guildenstern; e tu também; para cada ouvido um ouvinte: esse bebê grande que estais vendo, ainda não saiu dos cueiros.
ROSENCRANTZ — Nesse caso, voltou a usá-los, porque dizem que a velhice é uma segunda infância.
HAMLET — Sou capaz de adivinhar que vem falar-me dos atores. Tendes razão, senhor; foi justamente na manhã de segunda-feira.
POLÔNIO — Meu senhor, tenho uma notícia a dar-vos.
HAMLET — Meu senhor, tenho uma notícia a dar-vos: quando Roscius era ator em Roma…
POLÔNIO — Os atores acabam de chegar, príncipe.
HAMLET — Lará, lará…
POLÔNIO — Palavra de honra.
HAMLET — Então, cada um veio montado na sua besta.
POLÔNIO — São os melhores do mundo para tragédia, comédia, história, pastoral, comédia pastoral, pastoral histórica, pastoral trágico-histórica, trágicocômico-histórica, cenas sem divisão ou poesia sem limite. Para eles, Sêneca não é muito pesado nem Plauto leve demais. São únicos, tanto para ler como no improviso.
HAMLET — Ó Jefté, juiz de Israel, que tesouro possuías!
POLÔNIO — Que tesouro era, príncipe?
HAMLET — Ora… Tinha uma filha, nada mais, que ele adorava sobre tudo.
POLÔNIO (à parte) — Sempre com minha filha na idéia.
HAMLET — Não tenho razão, velho Jefté?
POLÔNIO — Se me chamais de Jefté, senhor, tenho uma filha a quem adoro sobre todas as coisas.
HAMLET — Não é essa a conseqüência.
POLÔNIO — Qual será, príncipe?
HAMLET — Ora, A sorte só pôs o que Deus dispôs. O resto, sabeis muito bem: Daí ter-se dado o que era esperado. A primeira parte dessa canção de Natal vos informará melhor; mas aí vem vindo o resumo do meu discurso. (Entram quatro ou cinco atores) Bem-vindos, senhores; sois todos bem-vindos. Alegro-me ver-te com saúde. Bem-vindos, bons amigos. Olá, meu velho amigo! Da última vez que te vi, não tinhas essas franjas no rosto. Vieste à Dinamarca para pegar-me pela barba? Oh! a minha menina e senhora! Por Nossa Senhora, Vossa Senhoria está mais perto do céu do que da última vez que a vi, a diferença de um chapim. Queira Deus que não tenha acontecido com a voz como com as moedas que são retiradas da circulação, por ficarem rachadas junto da orla. Senhores, sede todos bem-vindos. Façamos, porém, como os falcoeiros franceses, que solam contra tudo o que vêm. Linguagem direta: dai-me uma amostra de vossa arte, um discurso bem patético.
PRIMEIRO ATOR — Qual será, príncipe?
HAMLET — De uma feita ouvi-te declamar um trecho que nunca foi levado à cena, ou, quando muito, uma única vez. Lembra-me perfeitamente; a peça não agradou aos milhões; era caviar jogado ao povo. Mas, segundo o meu modo de ver e o de pessoas, cuja opinião no assunto é mais autorizada do que a minha, era uma peça excelente, com boa disposição de cenas e escrita com tanta sobriedade quanta argúcia. Recorda-me ter ouvido a alguém que os versos não continham nada de picante para torná-los aceitáveis, e que nenhuma expressão traía afetação por parte do autor; o estilo foi qualificado de honesto, tão sadio quanto agradável, e aprazível sem rebuscamentos. Apreciava muitíssimo certa passagem, e fala de Enéias a Dido, especialmente quando ele trata do assassínio de Príamo. Se a tens de memória… Começa pela frase… Espera um pouco… Deixa ver… Como tigre da Hircânia, o feroz Pirro… Não, não é isso. Começa com Pirro: Esse Pirro feroz, que armas trazia da cor do próprio intenso, igual à noite. que o envolvia no ventre do cavalo sinistro e malfadado, a negra forma com brasões mais sinistros ora cobre: da cabeça até aos pés é todo rubro; enfeita-o horrendamente o triste sangue dos pais, das mães, das filhas, dos filhinhos, ressecado nas ruas abrasadas, que emprestam uma luz maldita e bárbara a seus crimes nefandos. A arder de ira, empastado de sangue coagulado, os olhos a brilharem quais carbúnculos, Pirro, o maldito, busca o venerando Príamo. Agora prossegue.
POLÔNIO — Por Deus, príncipe; muito bem declamado; boa cadência e discrição.
PRIMEIRO ATOR — Conseguiu por fim achá-lo, a lutar sem vantagem contra os gregos. Sua antiquada espada, ao braço infensa, fica onde cai, rebelde a seus mandados. Em duelo desigual, Pirro o acomete; mas ao simples sibilo de seu gládio, tomba o velho enervado. Exânime, Ílio pareceu ressentir-se desse golpe: dobra até à base o pico de suas chamas, e com medonho estrondo prende o ouvido de Pirro. Vede! A espada que já vinha baixando sobre a cândida cabeça do venerando Príamo, parece que o próprio ar a detém: desta arte, Pirro, qual tirano em pintura, fica imóvel, como que neutro entre a vontade e o braço, sem fazer nada. Mas, tal como pouco antes das tormentas silêncio em todo o céu, calmas as nuvens, os ventos sem falar, e a terra embaixo tão quieta quanto a morte — quando o raio de súbito fuzila: assim, depois da parada de Pirro, a despertada vingança o compeliu para outros feitos. Os malhos dos Ciclopes nunca as armas de Marte percutiram, fabricadas para ampararem sempre, com tão pouco remorso, como bate a espada rubra de Pirro sobre Príamo. Fortuna! fora, meretriz! Ó deuses do conselho geral, tirai-lhe a força! Quebrai pinas e raios de seu carro, e fazei do alto céu rolar o cubo para o centro do inferno!
POLÔNIO — Acho muito comprido.
HAMLET — Enviai-a, então, ao barbeiro, para que a corte juntamente com vossa barba. Continua, peço-te eu; a não ser em farsas ou histórias obscenas, ele adormece logo. Prossegue; cheguemos logo a Hécuba.
PRIMEIRO ATOR — Oh! Quem visse a rainha encapuzada!
POLÔNIO — Não fica mal; rainha encapuzada; vai muito bem.
PRIMEIRO ATOR — Descalça corre, as chamas ameaçando; as lágrimas a cegam; por diadema cinge apenas um trapo, e, como vestes, sobre os lombos delgados e sofridos, um cobertor, às pressas apanhado. Quem visse tal, com língua envenenada, acusara a Fortuna de traidora. Mas se os deuses, nessa hora, a contemplassem, quando ela a Pirro deparou no esporte maligno de cortar do esposo os membros: o clamor subitâneo de sua mágoa — se os mortais não lhe são de todo estranhos — faria enlanguescer os olhos quentes do céu e os próprios deuses se apiedarem.
POLÔNIO — Vede como ele muda de cor e tem os olhos marejados de lágrimas. Não prossigas, peço-te.
HAMLET — Está bem; depois me dirás o resto. Caro senhor, quereis incumbir-vos da hospedagem destes atores? Mas tomai nota: que sejam bem tratados, porque são o espelho e a crônica resumida da época. Ser-vos-ia preferível um ruim epitáfio depois de morto, a andardes em vida difamados por eles.
POLÔNIO — Pois não, príncipe; hei de tratá-los de acordo com seu merecimento.
HAMLET — Com a breca, homem! Muito melhor! Se fôsseis tratar todas as pessoas de acordo com o merecimento de cada uma, quem escaparia da chibata? Tratai deles de acordo com vossa honra e dignidade. Quanto menor o seu merecimento, maior valor terá a vossa generosidade. Levai-os.
POLÔNIO — Vamos, senhores.
HAMLET — Amigos, acompanhai-o. Amanhã teremos representação. (Sai Polônio com os atores, com exceção do primeiro ator) Ouviste, velho amigo, podes representar a peça “A Morte de Gonzaga”?
PRIMEIRO ATOR — Perfeitamente, senhor.
HAMLET — Então será amanhã à noite. E ser-te-á possfvel, em caso de necessidade, decorar um discurso de doze ou dezesseis linhas, que vou escrever, para insertar na peça? É possível?
PRIMEIRO ATOR — Perfeitamente, meu senhor.
HAMLET — Muito bem; acompanha aquele senhor; mas peço-te que não zombes dele. (Sai o primeiro ator) Meus bons amigos, vou deixá-los até à noite. Sois bem-vindos a Elsinor.
ROSENCRANTZ — Meu bom senhor! (Saem Rosencrantz e Guildenstern)
HAMLET — Que Deus os acompanhe. Enfim, sozinho! Que velhaco sou eu, que vil escravo! Pois não será monstruoso? Este ator pôde, numa simples ficção, num sonho apenas de paixão, forçar a alma aos seus preceitos, a ponto de fugir-lhe a cor do rosto, marejarem-lhe os olhos, o conspecto confundir-se-lhe, a voz tornar-se trêmula, e toda a compostura conformar-se às suas influições. Tudo por nada, por Hécuba! Que é ele de Hécuba, Hécuba que é dele, para chorar por ela? Que faria, se tivesse, como eu, deixas violentas? Inundara de lágrimas o palco, rasgara o ouvido a todos com seus gritos; assombrados deixara os inocentes, insanos os culpados, confundidos os ignorantes; sim, deixara atônitos os sentidos usuais da vista e ouvido. Ao passo que eu, um parvo feito só de lama, um néscio, como um joão-sonhador, sem nenhum plano de vingança, me calo, quando a vida preciosa e o trono um rei a perder veio por maneira tão bárbara e maldita. Serei covarde? Quem me lança o apodo de vilão? a cabeça me abre em duas? a barba arranca-me e atira-ma no rosto? puxa-me do nariz? de mentiroso me acoima até os pulmôes? Quem me faz isso? Ah! Fora bem feito. E a causa não é outra: tenho sangue de pombo, o fel me falta que a opressão torna amarga, ou já teria dado as entranhas desse escravo a todos os abutres do céu. Vilão nojento, sanguinário, traidor, devasso, estéril! Oh vingança! Oh! Que grande asno eu sou! Como é ser bravo! Filho de um pai querido, assassinado, a quem o inferno e o céu mandam vingar-se, e aliviar-me a falar como uma simples meretriz, a insultar como uma criada! Que vergonha! Vamos, cabeça, a postos! Tenho ouvido dizer que os criminosos, quando assistem a representações, de tal maneira se comovem com a cena, que confessam na mesma hora em voz alta seus delitos, pois embora sem língua, o crime fala por modo milagroso. Esses atores irão representar para meu tio a morte de meu pai. Hei de observar-lhe os olhos e sondar-lhe a alma até o fundo. Se se assustar, conheço o meu caminho. Talvez que o espírito que eu vi não passe do demônio, que pode assumir formas atraentes. Sim, talvez mesmo tencione perder-me, aproveitando-se de minha melancolia e pouca resistência, como sói proceder com tais espíritos. Preciso de razões mais convincentes do que isso tudo. E a peça é a coisa, eu sei, com que a consciência hei de apanhar o rei. (Sai)
ATO III
Cena I
Um quarto no castelo. Entram o Rei, a Rainha, Polônio, Ofélia, Rosencrantz e Guildenstern.
O REI — Não tivestes ensejo, na conversa, de saber o que o pôs nessa desordem que seus dias de calma tanto abala com demência inquieta e perigosa?
ROSENCRANTZ — Confessa que se sente perturbado: mas a causa, persiste em não dizê-la.
GUILDENSTERN — Não o achamos disposto a ser sondado; com a astúcia da loucura, se esquivava sempre que pretendíamos levá-lo a falar de si mesmo.
A RAINHA — Como vos recebeu?
ROSENCRANTZ — Como perfeito cavalheiro.
GUILDENSTERN — Conquanto algo forçado.
ROSENCRANTZ — Avaro em perguntar, mas respondendo com liberalidade.
A RAINHA — Convidaste-o para algum passatempo?
ROSENCRANTZ — Aconteceu, senhora, que encontramos em caminho uns atores. A notícia, recebeu-a com mostras de alegria. Já se acham no palácio. Penso, mesmo, que vão representar para ele, à noite.
POLÔNIO — É verdade; pediu-me que falasse com Vossas Majestades, concitando-vos a ver e ouvir a peça.
O REI — De todo o coração; muito me alegra sabê-lo assim disposto. Continuai, cavalheiros, a animá-lo, despertando-lhe o gosto para as festas.
ROSENCRANTZ — Pois não, senhor! (Saem Rosencrantz e Guildenstern)
O REI — Doce Gertrudes, deixa-nos; mandamos vir secretamente a Hamlet, para que ele se encontre com Ofélia, como por acidente. Eu e seu pai, legítimos espias, vendo sem sermos vistos, poderemos avaliar do encontro imparcialmente e concluir, do seu procedimento, se é amor, em verdade, ou se outra é a causa que o faz sofrer assim.
A RAINHA — Já me retiro. No que te toca, Ofélia, só desejo que seja a tua beleza a feliz causa da loucura de Hamlet, pois espero que tua virtude o leve à trilha antiga, para honra de ambos.
OFÉLIA — Eu, de mim, o espero, também, minha senhora. (Sai a Rainha)
POLÔNIO — Chega, Ofélia, para aqui… Majestade, ora busquemos nosso lugar. E tu, lê neste livro; a leitura pretexto será para tua solidão. Freqüentes vezes somos passíveis de censura, pois abundam provas sobre isso, de que com bondade simulada e ações pias conseguimos tornar açucarado o próprio diabo.
O REI (à parte) — Quão verdadeiro! Como essas palavras me chicoteiam fundo a consciência! O rosto rebocado das rameiras não é mais feio, sob a artificial beleza, do que a minha ação debaixo do verniz com que a enfeitam meus discursos. Oh fardo horrível!
POLÔNIO — Ei-lo que chega, meu senhor; saiamos. (O Rei e Polônio saem) (Entra Hamlet)
HAMLET — Ser ou não ser… Eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? Morrer… dormir… mais nada… Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se. Morrer.., dormir… dormir… Talvez sonhar… É aí que bate o ponto. O não sabermos que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando alfim desenrolarmos toda a meada mortal, nos põe suspensos. É essa idéia que torna verdadeira calamidade a vida assim tão longa! Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo, as injustiças dos mais fortes, os maus-tratos dos tolos, a agonia do amor não retribuído, as leis amorosas, a implicância dos chefes e o desprezo da inépcia contra o mérito paciente, se estivesse em suas mãos obter sossego com um punhal? Que fardos levaria nesta vida cansada, a suar, gemendo, se não por temer algo após a morte — terra desconhecida de cujo âmbito jamais ninguém voltou — que nos inibe a vontade, fazendo que aceitemos os males conhecidos, sem buscarmos refúgio noutros males ignorados? De todos faz covardes a consciência. Desta arte o natural frescor de nossa resolução definha sob a máscara do pensamento, e empresas momentosas se desviam da meta diante dessas reflexões, e até o nome de ação perdem. Mas, silêncio! Aí vem vindo a bela Ofélia. Em tuas orações, ninfa, recorda-te de meus pecados.
OFÉLIA Como tem passado, príncipe, no correr de tantos dias?
HAMLET — Muitíssimo obrigado; bem, bem, bem.
OFÉLIA — Tenho algumas lembranças suas, príncipe, que há muito devolver eu desejara; receba-as, por favor.
HAMLET — Eu, não; eu, não; eu nunca te dei nada.
OFÉLIA — O príncipe bem sabe que é verdade, e com palavras de tão doce anélito, que o valor dos presentes aumentava. Mas, evolado o aroma, agora os trago. Os brindes se empobrecem, para uma alma bem-nascida, de par com os sentimentos de quem os dá. Ei-los aqui, meu príncipe.
HAMLET — Ah! Ah! És honesta?
OFÉLIA — Como assim, príncipe?
HAMLET — És bela?
OFÉLIA Que quer dizer Vossa Alteza com isso?
HAMLET — É que se fores, a um tempo, honesta e bela, não deves admitir intimidade entre a tua honestidade e a tua beleza.
OFÉLIA Mas, príncipe, poderá haver melhor companhia para a beleza do que a honestidade?
HAMLET — Realmente, que a beleza, com o seu poder, levaria menos tempo para transformar a honestidade em alcoviteira do que esta em modificar a beleza à sua imagem. Já houve época em que isso era paradoxo; mas agora o tempo o confirma. Cheguei a amar-te.
OFÉLIA — Em verdade, o príncipe me fez acreditar nisso.
HAMLET — Não deverias ter-me dado crédito, porque a virtude não pode enxertar-se em nosso velho tronco, sem que deste não remanesça algum travo. Nunca te amei.
OFÉLIA — Tanto maior é a minha decepção.
HAMLET — Entra para um convento. Por que hás de gerar pecadores? Eu, de mim, considero-me mais ou menos honesto, mas poderia acusar-me de tais coisas, que teria sido melhor que minha mãe não me houvesse dado à luz. Sou orgulhoso, vingativo, cheio de ambição, e disponho de maior número de delitos do que de pensamentos para vesti-los, imaginação para dar-lhes forma, ou tempo para realizá-los. Para que rastejarem entre o céu e a terra tipos como eu? Todos somos consumados velhacos; não deves confiar em ninguém. Toma o caminho do convento. Onde se encontra teu pai?
OFÉLIA — Em casa, alteza
HAMLET — Que lhe fechem as portas, a fim de impedirem que faça papel de tolo, a não ser em sua própria casa. Adeus.
OFÉLIA — Ajuda-o, céu de bondade.
HAMLET — Se tiveres de casar, dou-te por dote a seguinte maldição: ainda que sejas casta como o gelo e pura como a neve, não escaparás à calúnia. Vai; entra para o convento; adeus. Ou então, se tiveres mesmo de casar, escolhe um néscio para marido, porque os assisados sabem perfeitamente em que monstros as mulheres os transformam. Para o convento, vai; e isso depressa. Adeus.
OFÉLIA — Poderes celestiais, restituí-lhe a razão!
HAMLET — Conheço muito bem vossas pinturas; Deus vos deu um rosto e arrumais outro; andais aos pulinhos e com requebros, falais cheias de esses e dais nomes indecentes às criaturas de Deus, fazendo vossa leviandade passar por inocência. Vai; não insisto, porque foi isso que me deixou louco. O que digo é que não teremos casamentos; os que já são casados, com exceção de um, hão de continuar vivos; os de mais, prosseguirão como estão. Para o convento; vai! (Sai)
OFÉLIA — Que nobre inteligência assim perdida! O olho do cortesão, a língua e o braço do sábio e do guerreiro, a mais florida esperança do Estado, o próprio exemplo da educação, o espelho da elegância, o alvo dos descontentes, tudo em nada! E eu, a mais desgraçada das mulheres, que saboreei o mel de suas juras musicais, ter de ver essa admirável razão perder o som, qual sino velho, essa forma sem par, a flor da idade, fanada pela insânia! Ó dor sem fim! Ter já visto o que vi, e vê-lo assim! (Entram o Rei e Polônio)
O REI — Qual amor! Sua doença não vem disso. Depois, o que ele disse, ainda que estranho, não parece loucura. Na alma dele algo a melancolia está chocando; e não duvido que o produto possa causar algum perigo, que é preciso prevenir. Daí eu ter nisto assentado depressa: mandá-lo-ei sem mais delongas à Inglaterra, a cobrar velhos tributos. É possível que o mar, o novo clima e a diferença dos objetos venham a libertá-lo dessa qualquer coisa com que o cérebro dele se preocupa, alheando-o de si mesmo. Que pensais?
POLÔNIO — Há de ganhar com isso; porém creio que a origem e o começo da tristeza vêm de amor desprezado. Então, Ofélia? Não precisas falar de lorde Hamlet; ouvimos tudo. Procedei, senhor, como entenderdes; mas, se achardes útil, fazei que ele se encontre com a rainha depois da peça, para, a sós, falar-lhe sobre o que o traz assim. E que ela seja franca. Eu, de mim, se o consentis, me ponho a ouvi-los escondido. Se ela nada conseguir, enviá-lo-ei sem mais demora para a Inglaterra, ou então mandareis pó-lo onde quer que a prudência vos indique.
O REI — Far-se-á dessa maneira. É sempre ousada a loucura dos grandes não vigiada. (Sai)
Cena II
Entram Hamlet e alguns atores.
HAMLET — Tem a bondade de dizer aquele trecho do jeito que eu ensinei, com naturalidade. Se encheres a boca, como costumam fazer muitos dos nossos atores, preferira ouvir os meus versos recitados pelo pregoeiro público. Não te ponhas a serrar o ar com as mãos, desta maneira; sê temperado nos gestos, por que até mesmo na torrente e na tempestade, direi melhor, no turbilhão das paixões, é de mister moderação para torná-las maleáveis. Oh! Dói-me até ao fundo da alma ver um latagão de cabeleira reduzir a frangalhos uma paixão, a verdadeiros trapos, trovejar no ouvido dos assistentes, que, na maioria, só apreciam barulho e pantomima sem significado. Dá gana de açoitar o indivíduo que se põe a exagerar no papel de Termagante e que pretende ser mais Herodes do que ele próprio. Por favor, evita isso.
PRIMEIRO ATOR — Vossa Alteza pode ficar tranqüilo.
HAMLET — Também não é preciso ser mole demais; que a discrição te sirva de guia; acomoda o gesto à palavra e a palavra ao gesto, tendo sempre em mira não ultrapassar a modéstia da natureza, porque o exagero é contrário aos propósitos da representação, cuja finalidade sempre foi, e continuará sendo, como que apresentar o espelho à natureza, mostrar à virtude suas próprias feições, à ignomínia sua imagem e ao corpo e idade do tempo a impressão de sua forma. O exagero ou o descuido, no ato de representar, podem provocar riso aos ignorantes, mas causam enfado às pessoas judiciosas, cuja censura deve pesar mais em tua apreciação do que os aplausos de quantos enchem o teatro. Oh! já vi serem calorosamente elogiados atores que, para falar com certa irreverência, nem na voz, nem no porte mostravam nada de cristãos, ou de pagãos, ou de homens sequer, e que de tal forma rugiam e se pavoneavam, que eu ficava a imaginar terem sido eles criados por algum aprendiz da natureza, e pessimamente criados, tão abominável era a maneira por que imitavam a humanidade.
PRIMEIRO ATOR — Quero crer que entre nós tudo isso está bem modificado.
HAMLET — Faze uma reforma radical! Que os truões não digam mais do que o que lhes compete, pois há deles que vão a ponto de rir, somente para provocarem riso aos parvos, até mesmo em passagens com algo merecedor de atenção. É vergonhoso, sobre revelar ambição estúpida por parte de quem se vale de semelhante recurso. Vai aprontar-te. (Entram Polônio, Rosencrantz e Guildenstern) Então, senhor, o rei irá ouvir a nossa peça?
POLÔNIO — E a rainha também, sem nenhum atraso.
HAMLET — Nesse caso, apressai os atores. (Sai Polônio) Não poderíeis ajudá-lo nessa tarefa?
ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN — Com todo o gosto meu príncipe.
HAMLET — Olá, Horácio! (Entra Horácio)
HORÁCIO — Aqui me tendes, senhor, às vossas ordens.
HAMLET — Horácio, és a pessoa mais talhada para meu companheiro e confidente.
HORÁCIO — Meu príncipe…
HAMLET — Não penses que é lisonja. Que fora de esperar que me emprestasses, se só tens como renda a tua alma grande, que te veste e alimenta? Por que a um pobre lisonjear? Não; a língua açucarada lambe as pompas estúpidas; os gonzos moles dos joelhos dobram-se onde lucros advêm do rastejar. Estás me ouvindo? Dês que minha alma cara foi senhora de julgar as pessoas, escolheu-te para si própria, pois tens sido um homem que mostra não sofrer, sofrendo muito, que aceita indiferente bens e males do destino. Abençoado quem revela tal mistura de sangue e julgamento, e por isso jamais pode ser pífaro com que a Fortuna se divirta. Mostra-me o homem liberto das paixôes; pó-lo-ei no coração, no próprio coração do coração, tal como o fiz contigo. Mas basta. Hoje há espetáculo ante o rei, com uma cena igual às circunstâncias da morte de meu pai, como eu te disse. Quando chegar essa passagem, peço-te que com todas as forças de tua alma observes a meu tio. Se seu crime não se manifestar ante um discurso, é que era alma penada o que nós vimos e mais negras as minhas fantasias que a forja de Vulcano. Observa-o bem. Hei de os olhos cravar-lhe no semblante; juntaremos depois nossos juízos para julgar-lhe o aspecto.
HORÁCIO — Bem, meu príncipe; se algo ele surrupiar durante a cena e conseguir fugir, pago o prejuízo.
HAMLET — Já vêm chegando; é urgente disfarçarmos; vai para o teu lugar. (Marcha dinamarquesa; clarins. Entram o Rei, a Rainha, Polônio, Ofélia, Rosencrantz, Guildenstern e outras pessoas)
O REI — Como vive o nosso primo Hamlet?
HAMLET — Otimamente, na verdade; da comida dos camaleões; alimento-me de ar e entupo-me com promessas. Desse jeito não podereis engordar capões.
O REI — Nada tenho que ver com semelhante resposta, Hamlet; essas palavras não me dizem respeito.
HAMLET — E já agora, nem a mim, também. (A Polônio) Já representastes uma vez na Universidade, não mo dissestes?
POLÔNIO — É certo, príncipe; e fui considerado bom ator.
HAMLET — E que representastes?
POLÔNIO — Júlio César; era assassinado no Capitólio; Bruto me matava.
HAMLET — Bem bruto era ele, para matar um bezerro capital desse porte. Os atores estão prontos?
ROSENCRANTZ — Estão, príncipe; aguardam apenas vossas ordens.
A RAINHA — Vem para o meu lado, querido Hamlet; senta-te perto de mim.
HAMLET — Não, minha mãe; o ímã deste metal tem mais poder.
POLÔNIO (ao Rei) — Oh! Oh! Observastes bem?
HAMLET — Senhorita, poderei sentar-me no vosso regaço? (Senta-se ao pé de Ofélia)
OFÉLIA — Não, príncipe.
HAMLET — Quero dizer, recostar a cabeça em vosso regaço?
OFÉLIA — Sim, príncipe.
HAMLET — Pensastes que eu estivesse usando linguagem do campo?
OFÉLIA — Não pensei nada, príncipe.
HAMLET — Bonita idéia, deitar-se a gente entre as pernas de uma donzela.
OFÉLIA — Que idéia, príncipe?
HAMLET — Nada.
OFÉLIA — O príncipe está hoje muito alegre.
HAMLET — Quem, eu?
OFÉLIA — O príncipe, pois não?
HAMLET — Sou apenas vosso bobo. Que pode uma pessoa fazer de melhor, a não ser ficar alegre? Vede minha mãe, como apresenta semblante prazenteiro; no entanto, meu pai morreu apenas há duas horas.
OFÉLIA — Não, príncipe; duas vezes dois meses.
HAMLET — Há tanto tempo assim? Então que o diabo se cubra de luto, que eu vou vestir-me de zibelina. Oh céus! Morto há dois meses e ainda não esquecido? Nesse caso, há esperança de que a memória de um grande homem lhe sobreviva meio ano. Por Nossa Senhora, que trate de fundar igrejas, ou ninguém pensará nele, como se deu com o cavalo de pau, cujo epitáfio rezava: Pois oh! Pois oh! O cavalo de pau ficou esquecido! (Clarins) Entra a pantomima: um rei e uma rainha, com mostras de muito afeto; a rainha abraça o rei e este a ela. A rainha se ajoelha diante do rei e por meio de gestos lhe assegura submissão. Ele a faz erguer-se e inclina a cabeça sobre seu ombro; depois, senta-se sobre um banco de flores. Ao vê-lo adormecido, ela o deixa. Logo depois, entra um indivíduo que lhe tira a coroa, beija-a, despeja veneno no ouvido do rei e sai. Volta a rainha e, ao verificar que o rei morrera, dá mostras de grande mágoa. O envenenador volta com duas ou três pessoas, parecendo lamentar-se com a rainha. O corpo é removido. O envenenador requesta a rainha com presentes; a princípio, a rainha parece relutar, mas acaba aceitando o seu amor. (Saem)
OFÉLIA — Que significa isso, príncipe?
HAMLET — Maroteira disfarçada; significa infortúnio.
OFÉLIA — Sem dúvida a pantomima serve de argumento à peça. (Entra o Prólogo)
HAMLET — É o que vamos ver por este freguês. Os atores não guardam segredo. Vereis como vão revelar tudo.
OFÉLIA — Irá dizer-nos o que significam aqueles gestos?
HAMLET — Não só aqueles, mas quantos quiserdes representar-lhe. Se não ficardes acanhada, ele também não o ficará, para explicar-lhes o sentido.
OFÉLIA — O príncipe é mau; o príncipe é mau; vou prestar atenção à peça.
O PRÓLOGO: Para nós toda a indulgência, para a tragédia e demência de vossa alta paciência.
HAMLET — Isso é prólogo ou emblema de anel?
OFÉLIA — Foi curto.
HAMLET — Tal como o amor das mulheres.
O REI DA PEÇA — Trinta vezes já o Sol o giro há feito por Télus e Netuno, e com perfeito cômputo trinta vezes doze vezes a lua assinalou ao mundo os meses, dês que as mãos Himeneu e Amor o afeto. nos ligaram num vínculo concreto.
A RAINHA DA PEÇA — Que a luz e o Sol nos dêem iguais jornadas, sem que as rosas do amor fiquem fanadas. Mas tão cansado te acho e tão mudado da alegria primeira, certo, o estado normal em ti, que o susto ora se apossa de mim, sem que isso, aliás, turvar-te possa, pois o amor, na mulher, se casa ao medo: ou grandes até ao fim, ou morrem cedo. Já dei provas de ser, no amor, constante, mas se o amor é tranqüilo, o medo é instante; um grande amor nos sustos se confirma; crescendo o medo, o amor também se afirma.
O REI DA PEÇA — Muito cedo deixar-te me é forçoso, que me oprime a fraqueza. No formoso mundo tens de viver, sempre acatada, porventura escolhida e muito amada por um segundo…
A RAINHA DA PEÇA — Basta! Basta! Um feito de tal negror me condenara o peito. Só se alegra com outro companheiro quem foi causa da morte do primeiro.
HAMLET (à parte) — Isso é absinto.
A RAINHA DA PEÇA — O interesse mesquinho, nunca o amor, do segundo consórcio é o causador. Fora o esposo matar do mesmo jeito a cada beijo do outro no seu leito.
O REI DA PEÇA — Sei que és sincera; mas é bem freqüente não cumprirmos a jura mais ardente. Da memória a intenção é simples serva; forte ao nascer, o tempo a não conserva; fruto que está no galho por ser duro, para cair por si quando maduro. Parece necessário que no olvido se atire o que a nós próprios é devido. O que a paixão concebe de perfeito, suprimida a paixão fica desfeito. A violência da dor ou da alegria com sua própria atuação não dura um dia. Onde o prazer se exalta a dor se encolhe; um nada a dor extingue e o riso tolhe. O mundo passa; é natural, portanto, que com a fortuna o amor se altere tanto; pois é problema que ainda está sem norte, se a sorte guia o amor, ou o amor a sorte. Cai um dos grandes, somem-se os amigos; sobe um pequeno, adulam-no inimigos. Daí ligar-se o amor sempre à fortuna; tem amigos quem nunca a outro importuna; pois quem ao falso amigo pede, vê-se de um imigo aumentado, sem que o cresse. Mas, para terminar pelo começo, entre a vontade e a sorte há sempre empeço. Nossos planos são frutos só do acaso; a idéia é nossa; os fins, de cada caso. Não digas que de novo não te casas; morto o esposo, o propósíto bate asas.
A RAINHA DA PEÇA — Que a luz o céu me negue; a terra, o pão; a noite, a calma; o dia, distração; que a esperança se mude em desespero; penitência no cárcere é o que eu espero. Que quanto enturva o rosto da alegria se me antolhe a afligir-me noite e dia. Repudiada seja eu por todo o povo, se, chegando a enviuvar, casar, de novo.
HAMLET — E se ela quebrar o juramento?
O REI DA PEÇA — Palavras bem solenes; mas, querida, deixa-me; sinto a fronte dolorida; quero dormir. (Adormece)
A RAINHA DA PEÇA — Repousa sossegado; que nenhuma aflição nos dê cuidado. (Sai)
HAMLET — Que tal acha a peça, minha senhora?
A RAINHA — Parece-me que a dama faz protestos demasiados.
HAMLET — Oh! Mas ela é de palavra.
O REI — Ouviste o argumento? Não contém nenhuma ofensa?
HAMLET — Não, não; é tudo por brinquedo; envenenam por brinquedo; é o que não existe no mundo, ofensa.
O REI — Como se intitula a peça?
HAMLET — “A Ratoeira”; mas, já se vê, simples metáfora. A peça se baseia na história de um crime ocorrido em Viena; Gonzago é o nome do duque; Batista, o da mulher. Ides ver dentro de pouco: pura velhacaria. Mas, que importa? Nem Vossa Majestade, nem eu, que temos a consciência limpa, somos atingidos. Os sendeiros que esperneiem; não estamos com o lombo pisado. (Entra um ator, no papel de Luciano) Esse é um tal Luciano, sobrinho do rei.
OFÉLIA — O príncipe serve muito bom de coro.
HAMLET — Poderia servir de ponto numa vossa conversa com o namorado, se visse os movimentos dos títeres.
OFÉLIA — O príncipe está muito afiado hoje, muito afiado.
HAMLET — Havia de custar-vos gemidos embotar-me o fio.
OFÉLIA — De bem para melhor; de mal para pior.
HAMLET — Os maridos são desse jeito. Vamos, assassino, começa logo! Deixa tua cara amaldiçoada, peste, e principia de uma vez! Vamos. O corvo, em seu grasnar, chama a vingança!
LUCIANO — Pensamentos escuros, droga a jeito, tempo oportuno, mãos para esse feito, ninguém perto… Bebida desprezível, três vezes à meia-noite com a terrível maldição de Hécate mexida: neste corpo despeja os males que escondeste! (Despeja veneno no ouvido do Rei adormecido)
HAMLET — Envenena-o no jardim, por causa do reino; chama-se Gonzago. A história existe; foi escrita em italiano primoroso. Vereis dentro de pouco como o assassino obtém o amor da mulher de Gonzago.
OFÉLIA — O rei se levantou.
HAMLET — Que é isso? Medo de um falso alarma de fogo?
A RAINHA — Como passa o meu senhor?
POLÔNIO — Suspendam a representação!
O REI — Tragam-me luzes! Vamos-nos embora! (Saem todos, com exceção de Hamlet e Horácio)
HAMLET — Que sangre o veado e ponha-se a fugir, enquanto descansa; uns precisam velar, outros dormir; desta arte o mundo avança. Uma cena como essa e mais uma floresta de penas — se algum dia a Fortuna se me tornar madrasta — e um par de rosetas nos sapatos rasos, não me assegurariam um lugar em qualquer matilha de comediantes?
HORÁCIO — Com metade dos lucros, como não?
HAMLET — Nada disso, todo o lucro, pois bem sabes, Damon, que o próprio Jove este reino desfez; agora está no trono um verdadeiro… direi tudo?… um pavão.
HORÁCIO — Poderíeis ter rimado.
HAMLET — Meu bom Horácio! Aposto mil contra um na palavra do fantasma. Percebestes?
HORÁCIO — Perfeitamente, príncipe.
HAMLET — Na hora do veneno?
HORÁCIO — Com a máxima atenção.
HAMLET — Ah! Ah! Venha música! Tragam os fiajolés! Porque se a peça ao rei em nada agrada, não vale coisa alguma, está julgada. Vamos! Tragam música! (Entram Rosencrantz e Guildenstern)
GUILDENSTERN — Meu bom senhor, concedei-me uma palavra.
HAMLET — Até uma historia inteira.
GUILDENSTERN — O rei, senhor…
HAMLET — Como vai ele passando?
GUILDENSTERN — … recolheu-se indisposto para seus aposentos.
HAMLET — De bebida?
GUILDENSTERN — Não, senhor; de cólera.
HAMLET — Vossa sabedoria se revelaria mais opulenta, se contásseis isso ao seu médico; porque se eu lhe aplicar uma purga, talvez lhe faça aumentar ainda mais a cólera.
GUILDENSTERN — Ponde ordem, meu bom senhor, em vossas palavras, sem vos desviardes tanto do propósito.
HAMLET — Já amansei; podeis falar.
GUILDENSTERN — A rainha vossa mãe, que se acha muito consternada, mandou que vos procurasse.
HAMLET — Pois sede bem-vindo.
GUILDENSTERN — Essa cortesia não vem a propósito, príncipe. Se for de vosso agrado dar-me uma resposta sadia, desincumbir-me-ei do recado de vossa mãe; em caso contrário, com vosso perdão e minha retirada darei por finda a missão a que vim.
HAMLET — Não me é possível, senhor.
GUILDENSTERN — Que é que vos é impossível, príncipe?
HAMLET — Dar-vos uma resposta sadia. Meu espírito está doente. Mas ponho a vossas ordens a resposta que me for possível, ou, como o dissestes, às ordens de minha mãe. Por isso, entremos logo no assunto. Minha mãe, íeis dizendo…
ROSENCRANTZ — Manda dizer-vos que vossa conduta lhe causou assombro e admiração.
HAMLET — Oh filho estupendo, que chega a causar assombro à própria mãe! Mas no calcanhar da admiração da mãe não segue nenhuma conseqüência? Vamos lá.
ROSENCRANTZ — Deseja falar-vos em seus aposentos, antes de vos recolherdes.
HAMLET — Obedeceria, ainda que ela fosse dez vezes minha mãe. Não tendes nenhum outro assunto a tratar comigo?
ROSENCRANTZ — Houve tempo, príncipe, que me tínheis amizade.
HAMLET — Até hoje sou o mesmo; juro-o por estes gadanhos de ladrão.
ROSENCRANTZ — Meu bom senhor, qual é o motivo de vossa alteração? Pondes trancas em vossa liberdade, negando-vos a revelar a um amigo o motivo de vossa tristeza.
HAMLET — Falta-me ser promovido.
ROSENCRANTZ — Como é isso possível, se contais com a palavra do próprio rei de que o sucedereis no trono da Dinamarca?
HAMLET — É certo: mas, “Enquanto a grama cresce…” o provérbio já está enferrujado. (Entram alguns atores com flajolés) Oh, flajolés! Deixa-me ver um. Falando-vos em particular, por que motivo me rodeais desse jeito, a tomar o meu faro, como se quisésseis levar-me para alguma cilada?
GUILDENSTERN — Oh, príncipe! Se o meu dever é ousado, minha amizade é incivil.
HAMLET — Não atino bem com o sentido. Mas, não quereis tocar nesta flauta?
GUILDENSTERN — Não posso, príncipe.
HAMLET — Por obséquio.
GUILDENSTERN — Acreditai-me, príncipe, não posso.
HAMLET — Fazei-me esse favor.
GUILDENSTERN — Não conheço uma só posição, príncipe.
HAMLET — É tão fácil quanto mentir. Com os quatro dedos e o polegar regulais estes orifícios; depois, bastará soprar, para que saia música muito agradável. Vede: aqui estão as chaves.
GUILDENSTERN — Mas não está em mim tirar a menor harmonia, príncipe; não possuo essa habilidade.
HAMLET — Ora vede que coisa desprezível fazeis de mim. Pretendíeis que eu fosse um instrumento em que poderíeis tocar à vontade, por presumirdes que conhecíeis minhas chaves. Tínheis a intenção de penetrar no coração do meu segredo, para experimentar toda a escala dos meus sentimentos, da nota mais grave à mais aguda. No entanto, apesar de conter este instrumento bastante música e de ser dotado de excelente voz, não conseguis fazê-lo falar. Com a breca! Imaginais, então, que eu sou mais fácil de tocar do que esta flauta? Dai-me o nome do instrumento que quiserdes; conquanto voz seja fácil escalavrar-me, jamais me fareis produzir som. (Entra Polônio) Deus vos guarde, senhor.
POLÔNIO — Senhor, a rainha deseja falar-vos quanto antes.
HAMLET — Estais vendo aquela nuvem em forma de camelo?
POLÔNIO — Pela Santa Missa! Parece, de fato, um camelo!
HAMLET — Creio que parece mais uma doninha.
POLÔNIO — É certo; o dorso é de doninha.
HAMLET — Ou uma baleia?
POLÔNIO — Uma baleia, realmente; muito semelhante.
HAMLET — Bem; se assim é, irei ter com minha mãe neste momento. (À parte) Esta gente brinca de doido comigo, ao ponto de arrebentar-me a paciência. (Alto) Irei neste momento.
POLÔNIO — Dir-lhe-ei isso mesmo. (Sai)
HAMLET — Neste momento é fácil de dizer. Deixai-me, amigos. (Saem todos, menos Hamlet) Estamos na hora tétrica da noite em que se abrem os túmulos e o inferno lança no mundo a peste. Poderia beber, neste momento, sangue quente e realizar tais coisas que fariam tremer o próprio dia. Mas, silêncio! Procuremos agora minha mãe. Coração, não te esqueça o de quem és. Que neste peito firme jamais entre a alma de Nero; ríspido, mas nunca desnaturado; espadas, só na língua, sem que delas me valha: que se irmanem na hipocrisia a língua e o coração. Se a palavra sair demais pesada, minha alma, não lhe dês forma adequada. (Sai)
Cena III
Um quarto no castelo. Entram o Rei, Rosencrantz e Guildenstern.
O REI — Não me agrada. Além disso, constitui perigo para nós deixar sem peias sua loucura. Assim, ide aprontar-vos, que vossas instruções mandarei logo e ele para a Inglaterra irá convosco. Nossa real dignidade não comporta os riscos que a toda hora seus caprichos fazem nascer.
GUILDENSTERN — Iremos aprontar-nos. O medo religioso e santo cuida da salvação de tantas existências que se nutrem de Vossa Majestade.
ROSENCRANTZ — A própria vida singular precisa, com toda a força e as armas do intelecto, defender-se de danos. Que dizer-se da alma de que depende sempre a vida de tanta gente? Nunca a majestade morre sozinha; qual voragem, chupa quanto está perto; é roda gigantesca que nos raios contêm dez mil coisinhas encaixadas, e cuja queda implica a ruína fragorosa das menores peças que se lhe prendem. O gemido do rei sempre é geral, sempre é alarido.
O REI — Peço vos apresseis para a viagem; queremos pôr grilhetas nesse medo que passeia tão livre.
ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN — Já nos vamos. (Saem Rosencrantz e Guildenstern) (Entra Polônio)
POLÔNIO — Ele já foi, senhor, para o aposento da rainha. Por trás do reposteiro vou pôr-me a ouvi-los. É certeza, ela há de repreendê-lo; e, conforme sabiamente dissestes, é preciso que outro ouvido que não o materno, pois a natureza fê-lo parcial, escute o que falarem. Passai bem, meu senhor; chamar-vos-ei antes de vos deitardes, para dar-vos conta do que souber.
O REI — Muito obrigado. (Sai Polônio) Está podre o meu crime; o céu já o sente. A maldição primeira pôs-lhe o estigma: fratricida. Rezar, não me é possível, muito embora o pendor siga à vontade; a culpa imana vence o belo intento. Tal como alguém que empreende dois negócios ao mesmo tempo, mostro-me indeciso sobre qual inicie, acontecendo vir ambos a perder. Se esta maldita mão de sangue fraterno se cobrisse, não haveria chuva suficiente no céu, para deixá-la como a neve? Para que serve a Graça, se não serve para enfrentar o rosto do pecado? E a oração, não contem dupla virtude, de prevenir a queda e obter completo perdão para os que caem? Alço os olhos. Meu crime já passou; mas, que modelo de oração servirá para o meu caso? “Perdoai-me o crime monstruoso e horrendo?” Não pode ser, que me acho, ainda, de posse de quanto me levou a praticá-lo: o trono, meus anelos e a rainha. Perdão alcança quem retêm o furto? Nos processos corruptos deste mundo pode a justiça ser desviada pela mão dourada do crime, e muitas vezes o prêmio compra a lei; mas não lá em cima, onde não valem manhas; o processo não padece artíficios, e até mesmo nos dentes e na fronte do delito teremos de depor. Que ainda me resta? Tentar o que o arrependimento pode. Oh! Como é poderoso! Mas que pode fazer com quem não sabe arrepender-se? Terrível situação! Ó peito mais escuro do que a morte! Ó alma viscosa, quanto mais te esforças, mais te sentes enleada! Anjos, socorro! Dobra-te, joelho altivo! Coração de aço, fica tão brando quanto os músculos de um recém-nato. Tudo talvez volte a ser como era. (Afasta-se e ajoelha) (Entra Hamlet)
HAMLET — É propícia a ocasião; acha-se orando. Vou fazê-lo. Desta arte, alcança o céu… E assim me vingaria? Em outros termos: mata um biltre a meu pai; e eu, seu filho único, despacho esse mesmíssimo velhaco para o céu. É soldo e recompensa, não vingança. Assassinou meu pai, quando este estava pesado de alimentos, com seus crimes floridos como maio. O céu somente saberá qual o estado de suas contas; mas, de acordo com nossas presunções, não será bom. Direi que estou vingado, se o matar quando tem a alma expungida e apta para fazer a grande viagem? Não. Aguarda, espada, um golpe mais terrível, no sono da embriaguez, ou em plena cólera, nos prazeres do tálamo incestuoso, no jogo, ao blasfemar, ou em qualquer ato que o arraste à perdição. Nessa hora, ataca-o; que para o céu vire ele os calcanhares, quando a alma estiver negra como o inferno, que é o seu destino. Espera-me a rainha; prolonga-te a doença esta mezinha. (Sai) (O Rei se levanta e adianta-se)
O REI — O som se evola; o pensamento cansa; um sem o outro jamais o céu alcança. (Sai)
Cena IV
Aposento da Rainha. (Entram a Rainha e Polônio)
POLÔNIO — Ele aí vem; repreendei-o asperamente; mostrai que se excedeu nas brincadeiras, e como se interpôs Vossa Grandeza entre ele e a grande cólera. Mais nada; somente vos reitero: sede ríspida.
HAMLET — (dentro) Mãe! Mãe!
A RAINHA — Podeis ficar tranqüilo; retirai-vos; está ele chegando. (Polônio se esconde atrás do reposteiro) (Entra Hamlet)
HAMLET — Então, mãe, que há de novo?
A RAINHA — Grande ofensa a teu pai fizeste, Hamlet.
HAMLET — Grande ofensa a meu pai fizeste, mãe.
A RAINHA — Devagar; respondeis com língua ociosa.
HAMLET — Vamos, que me falais com língua ociosa.
A RAINHA — Que é isso, Hamlet?
HAMLET — Que há de novo agora?
A RAINHA Esquecestes quem sou?
HAMLET — Não, pela Cruz! Não me esqueci. Sei bem que sois a rainha, casada com o irmão de vosso esposo e — prouvera o contrário — minha mãe.
A RAINHA Vou chamar quem convosco falar possa.
HAMLET — Vamos, sentai-vos; não saireis enquanto não vos apresentar eu um espelho que o recôndito da alma vos reflita.
A RAINHA Que pretendes fazer? Não vais matar-me? Socorro! Socorro!
POLÔNIO (atrás) — Que é que há? Socorro! Socorro!
HAMLET (desembainhando a espada) — Que é isso? Um rato? (Dando uma estocada no reposteiro) Aposto que o matei.
POLÔNIO (atrás) — Estou morto!
A RAINHA — Santo Deus, que fizeste!
HAMLET — Ignoro-o. Não era o rei?
A RAINHA — Que ação precipitada e sanguinária!
HAMLET — Ação precipitada e sanguinária? Tão ruim, boa mãe, quanto matar um rei e desposar o irmão do morto.
A RAINHA — Matar um rei?
HAMLET — Um rei; foi o que eu disse. (Levanta o reposteiro e descobre o corpo de Polônio) Adeus, bobo apressado e intrometido. Julguei que era o teu chefe; é o teu destino. Vês que o ser serviçal traz seus perigos. Não torçais tanto as mãos; sentai-vos; quero lutar com vosso coração; no caso de ser ele amolgável, se o maldito costume o não deixou duro como o aço, tornando-o resistente à persuasão.
A RAINHA — Que fiz eu para usares de linguagem tão grosseira?
HAMLET — Uma ação que mancha a graça e o rubor da modéstia, que a virtude transforma em falsidade, muda as rosas da fronte prazenteira do amor puro em chaga repugnante, e os juramentos dos cõnjuges em pragas de viciados. Uma ação que do corpo dos contratos tira a própria alma e muda em palavrório a doce religião; a própria face do céu cora de pejo; sim, o mundo compacto, nas feições mostra a tristeza do juízo final, diante desse ato.
A RAINHA — Ai! que ação tão monstruosa, que troveja estrondeando, com o simples enunciado?
HAMLET — Mirai este retrato e mais este outro, que dois irmãos fielmente representam; vede a graça que encima esta cabeça, cachos de Apolo, a fronte alta de Júpiter, o olhar de Marte, ao mando e à ameaça afeito, o porte de Mercúrio, o mensageiro, quando pousa nos cumes altanados; uma forma, em resumo, perfeitíssima, em que os deuses seus selos imprimiram para que o mundo visse o que era um homem: esse, foi vosso esposo. Agora o resto: eis vosso esposo, espiga definhada que o irmão sadio empesta. Tendes olhos? Deixastes a pastagem deste belo monte por um pau? Ah! tendes olhos? Não chameis a isso amor, que em vossa idade o sangue se arrefece, fica humilde e obedece à razão. E que razão passa deste para este? Sois sensível, pois vos moveis; mas tendes os sentidos paralisados. A loucura acerta; nunca os sentidos ficam subjugados pela paixão, a ponto de falharem totalmente na escolha. Que demônio vos logrou de uma vez na cabra-cega? O olho sem tato, o tato sem visão, o ouvido só por si, o olfato apenas, a menor parte, em suma, de um sentido verdadeiro, jamais se estontearia desse feitio. Pudor, por que não coras? Se nos ossos de uma matrona, inferno, te rebelas, que a continência fique, para os moços ardentes, como a cera, que amolece no próprio fogo; nem de mancha fales, quando no ataque se atirar o instinto, uma vez que é tão quente a própria geada e a razão é alcoveta da vontade.
A RAINHA — Não fales mais, Hamlet; a olhar me forças no mais íntimo da alma, onde acho manchas profundas e tão negras, que não perdem jamais a cor.
HAMLET — Viver num leito infecto que tresanda a fartum, onde fervilha a podridão, juntando-se em carícias num chiqueiro asqueroso!
A RAINHA — Oh! Não prossigas! Apunhalam-me o ouvido essas palavras. Basta, querido Hamlet!
HAMLET — Um assassino, um vil escravo, que não é um vigésimo do outro marido, um rei-bufão, um simples gatuno do governo desta terra, que a coroa empalmou da prateleira e a pôs no bolso.
A RAINHA — Basta!
HAMLET — Um rei-palhaço, em trajes de mendigo… (Entra o Fantasma) Estendei sobre mim, legiões celestes as asas protetoras! Que deseja vossa imagem graciosa.
A RAINHA — Ai de mim! Está louco.
HAMLET — Não viestes censurar o filho tardo, que deixa a ira assentar, e tão remisso se mostra no cumprir vossos preceitos? Oh, dizei!
O FANTASMA — Não te esqueças: minha vinda só visa a estimular-te o intento rombo. Mas vê que em tua mãe se assenta o espanto. Corre a interpor-te entre ela e a sua alma em luta, que nas pessoas fracas é terrível o estrago da ilusão. Fala-lhe, Hamlet.
HAMLET — Senhora, que sentis?
A RAINHA — Que se passa contigo, que os olhos assim pousas no vazio e com o ar incorpóreo deblateras? Como se te ilumina a alma nos olhos! E tais como soldados, quando o alarma vem tirá-los do sono, teus cabelos, parecendo com vida, se desmancham, se curiçam na tua fronte. Ó meu bom filho! Lança a fria paciência sobre as chamas e o fogo do teu mal. Mas, para onde olhas?
HAMLET — Para ele, sim; quão pálido nos fixa! Seu destino e sua forma, se influissem nas pedras, racionais as tornariam. Tirai de mim os olhos, para que esse gesto piedoso não transmude minhas ásperas intenções, pois o que tenho para fazer exige cores vivas. Necessito de sangue em vez de lágrimas.
A RAINHA — Para quem falas isso?
HAMLET — Ninguém vedes?
A RAINHA — Ninguém; no entanto vejo o que nos cerca.
HAMLET — E nada ouviste?
A RAINHA — Nada; a nós somente.
HAMLET — Vede ali! Vede! Já se afasta… Meu pai, tal como em vida se vestia. Acaba — vede-o! — de transpor a porta. (Sai o Fantasma)
A RAINHA — Isso é fruto, somente, de teu cérebro. É sempre muito fértil o delírio no inventar essas coisas.
HAMLET — Delírio! Meu pulso, como o vosso, é compassado; toca música sã. Não foi loucura quanto falei; ponde-me à prova: posso dizer tudo de novo. Um desvairado divagaria. Mãe, por vossa graça, não lisonjeeis vossa alma, acreditando que ouvis um louco e não vosso delito. A úlcera externa, assim, se fecharia, enquanto a corrupção minara tudo por dentro, sem ser vista. Ao céu volvei-vos; mostrai-vos do passado arrependida; evitai o futuro, sem que o joio adubeis e lhe deis, assim, mais viço. Perdoai-me esta virtude, que nesta época bem cevada e de fôlego cortado necessita a virtude rebaixar-se ao próprio vício e apresentar-lhe escusas por tudo o que de bem possa fazer-lhe.
RAINHA — Hamlet, o coração em dois me partes.
HAMLET — Jogai fora a metade que não presta, para com a outra parte serdes pura. Boa noite. Mas evitai a cama do meu tio; fazei-vos de virtuosa, se o não fordes. O hábito, esse demônio que devora todos os sentimentos, nisso é um anjo, pois para o uso de ações boas e belas empresta vestimenta ou capa externa que lhes vão bem. Abstende-vos por hoje, que isso há de conferir facilidade à próxima abstinência; a outra, mais fácil vos há de parecer, que o uso consegue quase modificar a natureza, dominar o demônio e até expeli-lo com poder prodigioso. Uma vez mais, boa noite. Hei de pedir a vossa bênção, quando dela também necessitardes. Enquanto a este homem, faz-me pena; qui-lo desta arte o céu: punir a mim por ele, e a ele por mim. Fui servo, a um tempo, e açoite. Vou cuidar dele; fico responsável por esta morte. E ainda uma vez: boa noite. Preciso ser cruel para ser bom; o ruim começa; o pior já se acha feito. Uma palavra mais, senhora.
A RAINHA — Que é preciso que eu faça?
HAMLET — Nada do que vos disse neste instante. Que outra vez para o leito o rei balofo, vos conduza e no rosto vos belisque vos chame de ratinha, e que dois beijos infectos e carícias com as mãos grossas em vossas costas pronto vos induzam a revelar-lhe que estou bom do juízo, mas que finjo loucura. Dizei-lhe isso. Que rainha sensata, bela e honesta esconderia coisas tão preciosas de um sapo, de um morcego? É concebível? Apesar do bom senso, abri a gaiola no telhado e deixai fugir o pássaro; depois, como o macaco conhecido, entrai nela e fazei logo a experiência para em baixo partirdes o pescoço.
A RAINHA — Fica tranqüilo; se o falar consiste em respirar, e o fôlego for vida, não terei vida alguma que respire quanto me revelaste.
HAMLET — Parto para a Inglaterra; já o sabíeis?
A RAINHA — Ai! que o esquecera… Assim ficou assentado.
HAMLET — Selaram cartas; meus dois companheiros de escola, em quem me fio como em dentes de víbora, se encontram com a incumbência de aplanar-me o caminho e conduzir-me direto ao cativeiro. Pois trabalhem! Há de ser engraçado ver a bomba fazer saltar o autor. Por mais dificil que seja, hei de cavar mais fundo ainda, para jogá-los no alto. Como é belo ver a astúcia vencer a própria astúcia! Este homem me ajudou a fazer as malas; vou pôr no quarto anexo esta barriga. Boa noite, mãe. Realmente, o conselheiro que era tão falador, está sisudo: quietinho, bem discreto, grave e mudo. Vamos, senhor, dar fim a este negócio. Boa noite, mãe. (Saem por lados diferentes, arrastando Hamlet o corpo de Polônio)
ATO IV
Cena I
Um quarto no castelo. Entram o Rei, a Rainha, Rosencrantz e Guildenstern.
O REI — Devem ter uma causa esses suspiros. Conta-ma; desejamos conhecê-la. Onde se acha teu filho?
A RAINHA (A Rosencrantz e Guildenstern) — Deixai-nos ficar sós por um momento. (Saem Rosencrantz e Guildenstern) Caro esposo, que coisa eu vi esta noite!
O REI — Que foi, Gertrudes? Como achaste Hamlet?
A RAINHA — Tão louco quanto o mar e o vento, quando lutam pelo primado. Em seu desvairo, vendo atrás da cortina algo mexer-se, saca da espada e grita: um rato! um rato! para matar no acume do delírio o bom velho que estava ali escondido.
O REI — Que triste coisa! O mesmo nos tocara, se estivéssemos lá. Sua liberdade implica para todos grande ameaça, para ti, para nós, para qualquer. Como explicar esse ato sanguinário? Hão de culpar-nos, por não termos tido a idéia de prender o desvairado moço, para evitar possíveis males. Mas nosso amor não permitiu sabermos o que quisesse ocultar um mal imundo, só fizemos deixar que nos corroesse a medula vital. Aonde foi ele?
A RAINHA — Foi sepultar o corpo de Polônio, de quem tirou a vida. E nisso a insânia, como grão de ouro em meio à ganga impura, se manifesta estreme: chora a morte que ele mesmo causou.
O REI — Ó Gertrudes! saiamos! O sol não beijará de novo os montes, sem que a Hamlet embarquemos. No que toca a esta ação vil, teremos de aceitá-la, justificando-a à custa de artifícios e de nossa grandeza. Ó Guildenstern! (Voltam Rosencrantz e Guildenstern) Amigos, procurai quem vos ajude. Hamlet a delirar matou Polônio, tendo o corpo tirado do aposento da rainha. Falai-lhe com bem jeito, e ponde na capela o pobre morto. Muita pressa, vos peço, nisso tudo. (Saem Rosencrantz e Guildenstern) Convoquemos, Gertrudes, os amigos, para participar-lhes nosso intento e o ato precipitado. É bem possível que desta arte a calúnia, que sussurra tão certeira de um pólo até outro pólo, quanto a bala que no alvo o canhão joga, nos poupe o nome e açoite apenas o ar, sem mais prejuízo. Vamo-nos; minha alma, em discórdia e terror, não se acha calma. (Saem)
Cena II
Outro quarto no castelo. Entra Hamlet.
HAMLET — Está em lugar seguro.
ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN — Hamlet! Lorde Hamlet!
HAMLET — Que barulho é esse? Quem chama por Hamlet? Oh! Ei-los que chegam. (Entram Rosencrantz e Guildenstern)
ROSENCRANTZ — Onde o corpo pusestes, lorde Hamlet?
HAMLET — Associei-o ao pó, de que é parente.
ROSENCRANTZ — Dizei-nos onde está, porque possamos depô-lo na capela.
HAMLET — Não deis crédito a semelhante coisa.
ROSENCRANTZ — A quê, meu príncipe?
HAMLET — Que eu possa guardar o vosso segredo e não o meu. Além do mais, ser interrogado por uma esponja! Que poderá responder-lhe um filho de rei?
ROSENCRANTZ — Tomais-me por uma esponja, príncipe?
HAMLET — Sim, senhor, que chupa os favores, as recompensas e a autoridade reais. Aliás, semelhantes cortesãos prestam ótimo serviço ao rei, que procede com eles como o macaco, conservando-os por algum tempo no canto da boca, antes de engoli-los. Quando tem necessidade do que acumulastes, basta espremer-vos, para que, esponjas, fiqueis novamente enxutos.
ROSENCRANTZ — Não compreendo o que dizeis, senhor.
HAMLET — O que muito me alegra. As sutilezas dormem no ouvido dos parvos.
ROSENCRANTZ — Príncipe, dizei-nos onde está o corpo e acompanhai-nos à presença do rei.
HAMLET — O corpo está com o rei, mas o rei não está com o corpo. O rei é uma coisa…
GUILDENSTERN — Uma coisa, príncipe?
HAMLET — …de nada. Levai-me à sua presença. Esconde-te, raposa! Um atrás do outro! (Saem)
Cena III
Outro quarto no castelo. Entram o Rei e criados.
O REI — Mandei chamá-lo e procurar o corpo. Que perigo deixar a esse homem solto! Contudo, é-me impossível ser severo, porque ele é amado pela turba néscia que escolhe tão-somente pela vista. Importa, nessas condições, apenas pensar na repressão, jamais na culpa. Para evitar desgostos, é preciso que esta viagem pareça ser produto de reflexão madura. Para males desesperados, só remédio enérgico, ou nenhum. (Entra Rosencrantz) Como então, que aconteceu?
ROSENCRANTZ — Não conseguimos que ele nos dissesse o lugar onde o corpo está enterrado.
O REI — E ele, onde se acha?
ROSENCRANTZ — Aí fora, majestade, bem guardado, esperando vossas ordens.
O REI — Pois a nossa presença o conduzi.
ROSENCRANTZ — Ó Guildenstern! Traze lorde Hamlet! (Entram Hamlet e Guildenstern)
O REI — Então, Hamlet, onde está Polônio?
HAMLET — Está ceando.
O REI — Ceando! Onde?
HAMLET — Não onde ele come, mas onde é comido. Certa assembléia de vermes políticos se ocupa justamente dele. Um verme desse gênero é o verdadeiro imperador da dieta. Engordamos as criaturas, para que nos engordem, e engordamo-nos para dar de comer aos gusanos. Um rei gordo e um mendigo magro são iguanas diferentes; dois pratos, mas para a mesma mesa: eis tudo.
O REI — Oh Deus!
HAMLET — Pode-se pescar com um verme que haja comido de um rei, e comer o peixe que se alimentou desse verme.
O REI — Que queres dizer com isso?
HAMLET — Nada; apenas mostrar-vos como um rei pode fazer um passeio pelos intestinos de um mendigo.
O REI — Onde está Polônio?
HAMLET — No céu; mandai procurá-lo lá, e, se o mensageiro não o encontrar, procurai vós mesmo em outra parte. Mas, se dentro de um mês ainda não o tiverdes achado, havereis de descobri-lo pelo olfato, quando subirdes a escada da galeria.
O REI (a alguns criados) — Procurem-no nesse lugar.
HAMLET — Ele espera até que chegueis. (Saem os criados)
O REI — Hamlet, para tua segurança, que tão cara nos é quão doloroso o ato que praticaste, é necessário que te ausentes daqui. Vai preparar-te. O navio está pronto, o vento a jeito, à espera os companheiros… tudo para a Inglaterra.
HAMLET — Inglaterra?
O REI — Sim, Hamlet.
HAMLET — Bem.
O REI — Bem, de fato, dirias, se soubesses dos nossos planos todos.
HAMLET — Vejo um querubim que os vê… Partamos, pois! Para a Inglaterra! Adeus, querida mãe.
O REI — E teu pai afetuoso, Hamlet?
HAMLET — Minha mãe. Pai e mãe são marido e mulher; marido e mulher, uma e a mesma carne. Logo, minha mãe. Vamos, para a Inglaterra! (Sai)
O REI — Levai-o para bordo sem detença. É mister que esta noite esteja longe. Ide; quanto respeita a este negócio já está selado e pronto. Ide depressa. (Saem Rosencrantz e Guildenstern) Se prezas, Inglaterra, nossa aliança — visto teres sentido minha força, que as cicatrizes ainda se acham frescas dos golpes infligidos pela espada dinamarquesa e preito voluntário nos renderes — não deves demorar-te no cumprir nossas ordens soberanas exaradas nas cartas e que exigem que Hamlet morra. Isso, Inglaterra, faze, que ele o sangue me queima tal qual a hética. Urge livrar-me deste mal. Realmente, ele vivo, não posso estar contente. (Sai)
Cena IV
Uma planície na Dinamarca. Entram Fortimbrás, um capitão e soldados, em marcha.
FORTIMBRÁS — Saudai de minha parte a Dinamarca, acrescentando que com sua licença Fortimbrás pede franco e livre trânsito por seu reino. Sabeis onde devemos encontrar-nos. Se Sua Majestade quiser falar-nos algo, em sua presença presto estaremos. Dai-lhe esse recado.
O CAPITÃO — Assim farei, senhor.
FORTIMBRÁS — Em frente, devagar. (Fortimbras e os soldados saem) (Entram Hamlet, Rosencrantz, Guildenstern e outros)
HAMLET — Amigo, de quem são esses soldados?
O CAPITÃO — Da Noruega Senhor.
HAMLET — Por obséquio, qual é o seu destino?
O CAPITÃO — Combater uma parte da Polônia.
HAMLET — Quem é o comandante?
O CAPITÃO — Fortimbrás, o sobrinho de Noruega.
HAMLET — Visam toda a Polônia, ou porventura um ponto da fronteira?
O CAPITÃO — Para falar verdade, sem acréscimo, vamos lutar por uma nesgazinha que outro lucro não deixa além da glória. Cinco ducados, cinco, eu não daria para arrendá-la, nem mais obteriam a Noruega e a Polônia, se a vendessem.
HAMLET — Nesse caso, o Polaco a não defende.
O CAPITÃO — Como não? Já se encontra guarnecida.
HAMLET — Duas mil almas, vinte ducados não perfazem o preço dessa palha; é o apostema da paz e da riqueza, que rompe para dentro, sem que nada por fora a morte inculque. Muito grato.
O CAPITÃO — Que Deus vos acompanhe. (Sai)
ROSENCRANTZ — Continuamos o caminho?
HAMLET — Segui, já vos alcanço. (Saem todos, com exceção de Hamlet) Como tudo me acusa, espicaçando-me à vingança! Que é o homem, se sua máxima ocupação e o bem maior não passam de comer e dormir? Um simples bruto. Decerto, quem nos criou com a faculdade que ao passado e ao futuro nos transporta, não nos deu a razão divina, para que fique inútil. Seja esquecimento bestial, ou mesmo escrúpulo covarde que me leva a pensar demais nas coisas — pensamento com um quarto de bom senso e três de covardia — ignoro a causa de ficar a dizer: “Devo fazê-lo”, se para tal me sobram meios, força, causa e disposição. Exemplos grandes como a terra me exortam: este exército de tal poder e número, chefiado por um príncipe moço e delicado, cuja coragem a ambição divina faz exaltar, levando-o a defrontar-se com os fatos invisíveis e a sua parte mortal e pouco firme a pôr em risco contra o que ousa a fortuna, o acaso e a morte, por uma casca de ovo. O ser, de fato, grande não é empenhar-se em grandes causas; grande é quem luta até por uma palha, quando a honra está em jogo. E eu, deste modo, com o pai assassinado, a mãe poluida — razões de estimular o sangue e o brio — nada me esperta? Vejo, envergonhado, vinte mil homens próximos da morte, que por simples capricho da vaidade caminham para o túmulo tal como se fossem para o leito, e lutam pela conquista de um terreno em que não cabem, e que como sepulcro ainda é pequeno para esconder sequer os que aí tombarem. Doravante terei só pensamentos de sangue ou sem valor, soltos aos ventos. (Sai)
Cena V
Elsinor. Um quarto no castelo. Entram a Rainha, Horácio e um nobre.
A RAINHA — Não quero falar a ela.
O NOBRE — De fato, ela é importuna no desvario. Compungem os seus modos.
A RAINHA — Que a preocupa?
O NOBRE — Fala muito no pai; diz ter sabido que o mundo é mau, bate no peito, e geme, zangando-se por nada. Diz palavras dúbias e sem sentido: nada, em suma, conquanto esse seu modo leve o ouvinte a tirar conclusões, interpretando-lhe as palavras ao jeito do que pensam, concluindo de seus gestos, da maneira de piscar, dos meneios da cabeça, que algo querem dizer. Ainda que sejam suposições, tudo desgraça inculca.
A RAINHA — Seria bom falar-lhe, que ela pode suscitar conjeturas dos maldosos. Fazei-a entrar. (Sai O nobre) Para a alma criminosa e feperjura, tudo anuncia alguma desventura. Tanto se agita o crime, em tal enredo, que a si mesmo se trai, de puro medo. (Volta o nobre, com Ofélia)
OFÉLIA — Onde se encontra a bela Majestade da Dinamarca?
A RAINHA — Que há de novo, Ofélia?
OFÉLIA (canta) — Como reconhecer em meio à turba o jovem meu amado? Pelo chapéu de conchas, as sandálias, e mais pelo cajado.
A RAINHA — Minha doce menina, a que vem isso?
OFÉLIA — Que dizeis? Escutais, vos peço, agora: (Canta) Senhora, ele se foi; não mais existe; morreu; nada mais ousa. À cabeça lhe nasce um tufo de erva; sobre o corpo uma lousa. Oh! Oh!
A RAINHA — Querida Ofélia, escuta…
OFÉLIA — Por favor, escutai: (Canta) Como um monte de neve era a mortalha (Entra o Rei) enfeitada de flor; orvalhada baixou para o sepulcro, pelo pranto do amor.
O REI — Como vai passando, gentil menina?
OFÉLIA Bem, graças a Deus. Dizem que a coruja era filha de um padeiro. Sabemos, senhor, o que somos, mas não o que viremos a ser. Deus assista na vossa mesa.
O REI — Alusão ao pai.
OFÉLIA — Por favor, não falemos mais disso; mas se vos perguntarem o que significa, dizei-lhes: (Canta) Raiou o dia de São Valentim; de pé todos estão. Para ser vossa Valentina, irei pôr-me à janela, então. Ela se alça depressa, a roupa veste e a porta lhe franqueou, fazendo entrar a virgem, que, assim, virgem, não mais ali passou.
O REI — Meiga Ofélia…
OFÉLIA Realmente, vou concluir sem nenhum juramento: (Canta) Pela Virgem e a Santa Caridade, que vergonha, meu Deus! Os moços o farão, se aí se encontrarem… Vergonha para os seus. Antes de ao chão tu me jogares, tinhas prometido casar. Fá-lo-ia, respondeu, caso ao meu leito não quisesses entrar.
O REI — Há quanto tempo está ela assim?
OFÉLIA — Espero que tudo corra bem. Precisamos de paciência, conquanto não possa deixar de chorar, ao pensamento de que vão depô-lo no chão frio. Meu irmão há de ficar sabendo disso. Muito obrigada pelo conselho amigo. Que venha o meu carro. Boa noite, senhoras! Boa noite, encantadoras senhoras! Boa noite! Boa noite! (Sai)
O REI — Ide-lhe em pós; vigiai-a com cuidado. (Sai Horácio) Dor profunda a envenena; provém tudo do traspasso do pai. Cara Gertrudes, as tristezas não andam como espias, mas sempre em batalhões. Primeiro, a morte do pai; depois, a ausência de teu filho, causador de seu próprio banimento; o povo alvoroçado, crasso e impuro, conjetura em cochichos sobre a morte do bom Polônio; foi inexperiência sepultá-lo às ocultas; ora, Ofélia, solitária de si e do próprio juízo, sem o qual somos brutos ou pinturas… Por último, o que vale mais que tudo, seu irmão que voltou secretamente, anda cheio de pasmo, vai às nuvens, sem que os murmuradores lhe faleçam com ditos pestilentos sobre a causa da morte do pai dele, sem falarmos que a própria confusão, não conhecendo como as coisas realmente se passaram, não deixará de envenenar-me o nome de ouvido para ouvido. Ó minha cara Gertrudes, isso tudo, como peça mortífera disposta em várias partes, morte sobeja ora vai dar-me. (Ouve-se barulho)
A RAINHA — Que houve? (Entra um nobre)
O REI — Onde estão meus suíços? Que defendam as portas. Que há de novo?
O NOBRE — Majestade, fugi! O oceano, quando rompe os diques, não devora a planície com mais ímpeto do que Laertes, à testa dos rebeldes, vence a tropa legal. O populacho lhe chama lorde, e tal como se o mundo fosse recomeçar, sem que mais lembrem tradições, esquecidos os costumes — sustentáculos firmes das palavras — grita: Elejamos rei! Seja Laertes! As línguas e os chapéus, as mãos o aplaudem até às nuvens: Laertes, nosso rei!
A RAINHA — Como ladram joviais na pista falsa! Errastes, falsos cães dinamarqueses!
O REI — Arrombaram as portas. (Ouve-se barulho) (Entra Laertes, armado, seguido de dinamarqueses)
LAERTES — Onde está o rei? Senhores, ficai fora!
DINAMARQUESES — Não; entremos.
LAERTES — Suplico-vos, deixai-nos!
DINAMARQUESES — Pois não! Pois não! (Afastam-se para trás da porta)
LAERTES — Obrigado; guardai todas as portas. Rei desprezível, dai-me o meu bom pai.
O REI — Calma, meu bom Laertes.
LAERTES — A gota de meu sangue que ficasse calma, me insultaria de bastardo, mancharia meu pai, lançando a pecha de meretriz na fronte imaculada de minha santa mãe.
O REI — Qual é o motivo, Laertes, de assumir ares gigantes essa rebelião? Deixa-o, Gertrudes; nada temas por nós. De tal maneira o caráter divino ao rei protege, que a traição mal espreita o que almejara, sem nada conseguir… Dizei, Laertes, o que vos pôs assim. Gertrudes, deixa-o. Falai, jovem.
LAERTES — Meu pai, que é dele?
O REI — Morto.
A RAINHA — Mas não por ele.
O REI — Deixa que me fale.
LAERTES — Como morreu? Não quero ser ludíbrio de ninguém. Para o inferno os juramentos! Fidelidade, os diabos a carreguem! Consciência e graça, o abismo as sorva logo! Venha a condenação! Chego até ao ponto de arriscar esta vida e a porvindoira, sem medir conseqüências, tão-somente para a meu pai vingar.
O REI — Que vos detém?
LAERTES — Afora o meu querer, nem todo o mundo. Quanto aos recursos, hei de encontrar jeito de obter muito com pouco.
O REI — Ouvi, Laertes; se desejais, de fato, saber como vosso pai faleceu, acha-se escrito nos vossos planos, que deveis num lance, sem distinção de amigos e inimigos, arrastar os culpados e inocentes?
LAERTES — Não, só seus inimigos.
O REI — Desejais conhecê-los?
LAERTES — A quantos se mostrarem seus amigos, os braços tenho abertos e, como o pelicano, com meu sangue lhes darei vida e alento.
O REI — Essas palavras são de bom filho e bravo gentil-homem. Minha inocência relativa à morte de vosso pai, e a mágoa de perdê-lo hão de ao juízo tão claro aparecer-vos como aos olhos a luz.
DINAMARQUESES (dentro) — Deixai-a entrar.
LAERTES — Que significa esse barulho? (Entra Ofélia) Febre. seca-me o cérebro! Corroei-me, lágrimas sete vezes salgadas, a virtude dos olhos! Pelo céu! tua loucura será pesada até que desça o prato da balança. Rosa de maio, irmã, doce menina, querida Ofélia! Ó céu! É então possível que a razão de uma jovem seja frágil como o alento de um velho? A natureza se depura no amor e, florescendo, empresta à coisa amada algo da essência preciosa de si mesma.
OFÉLIA (canta) — Levaram-no a enterrar sem cobertura… Tra-lá, la-rá! Quanto choro lhe rega a sepultura! Adeus, pombinho!
LAERTES — Se com toda a razão me concitasses a vingar-te, nem tanto me abalaras.
OFÉLIA — Deveríeis cantar: “Abaixo! abaixo! Chamai-o para baixo!” Oh! Como a roda lhe vai bem! É da canção do intendente falso que raptou a filha do amo.
LAERTES — Este nada vale mais do que tudo.
OFÉLIA — Aqui está rosmaninho, para lembrança. Não te esqueças de mim, querido. Estes amores-perfeitos são para o pensamento.
LAERTES — Uma sentença na loucura: a lembrança e o pensamento harmonizados!
OFÉLIA — Para vós, funcho e aquiléia; arruda para vós, e um pouco para mim, também. Poderemos chamar-lhe erva da graça dos domingos, mas a vossa deverá ser usada de outro jeito. Eis aqui uma margarida. Quisera dar-vos algumas violetas, mas murcharam todas, quando meu pai morreu. Dizem que ele teve um fim muito bonito. (Canta) Para o doce pintarroxo é toda minha alegria!
LAERTES — À tristeza, à paixão, ao próprio inferno, a tudo ela dá graça e empresta encanto.
OFÉLIA (canta) — Nunca mais o veremos? Não mais retornará? Sumiu deste mundo; baixai para o fundo, que ele não voltará. Barba branca de neve, de linho a cabeleira. Já foi, sem parar; é inútil chorar; que no céu Deus o queira e a todas as almas cristãs, é o que eu rogo a Deus. Deus seja convosco! (Sai)
LAERTES — Vedes isto, ó Deus?
O REI — De vossa mágoa, Laertes, compartilho; é meu direito. Agora retirai-vos por uns momentos e os mais ajuizados amigos escolhei, porque nos ouçam, para entre mim e vós serem juízes. Se achardes culpa em nós, mediata embora, será vossa a coroa, nosso reino, a própria vida e tudo quanto é nosso, como satisfação. No caso oposto, contentai-vos de ouvir-nos com paciência, que, a vossa alma associados, cuidaremos de ressarcir-lhe a dor.
LAERTES — Seja. A maneira por que morreu, o enterro misterioso, sem brasão, nem espada sobre o túmulo, a ausência do ritual e pompas fúnebres, clamam, como atroando o céu e a terra, pedindo explicações.
O REI — Ser-vos-ão dadas. E onde houver culpa, caia a machadinha. Vinde comigo, peço-vos. (Saem)
CENA VI
Outro quarto no castelo. Entram Horácio e um criado.
HORÁCIO — Quem quer falar comigo?
O CRIADO: Marinheiros, senhor; são portadores de umas cartas.
HORÁCIO — Que entrem, pois. (Sai o criado) Tirando lorde Hamlet, em todo o mundo não sei quem poderia enviar-me cartas. (Entra um marinheiro)
MARINHEIRO — Deus vos abençoe, senhor.
HORÁCIO — E a ti também.
MARINHEIRO — Assim o fará, senhor, se for de sua vontade. Esta carta, senhor, é para vós; vem da parte do embaixador que deveria ir para a Inglaterra, se vos chamardes Horácio, como me afirmaram.
HORÁCIO (lê) — “Horácio, quando passares os olhos por esta, proporciona a esses homens meios de chegarem até ao rei; são portadores de cartas para ele, também. Não havia ainda dois dias que nos encontravámos no mar, quando nos deu caça um corsário de grande aparelhagem bélica. A morosidade das velas nos tornou valentes à força, havendo eu saltado para a tolda do inimigo logo que o abordamos. No mesmo instante conseguiram desvencilhar-se de nosso navio, ficando eu como único prisioneiro. Procedem comigo como ladrões misericordiosos; mas eles sabem o que fazem, pois esperam tirar de mim grande proveito. Faze chegar ao rei as cartas que lhe envio e vem ter comigo com a pressa que empregarias em fugir da morte. Tenho a dizer-te ao ouvido palavras que te deixarão mudo, muito embora ainda sejam leves demais para o calibre do assunto. Essa boa gente há de informar-te onde me encontro. Rosencrantz e Guildenstern continuam a caminho da Inglaterra. Tenho muito que contar-te a respeito deles. Aquele que conheces como te pertencendo, Hamlet.” Vinde comigo: vou facilitar-vos a entrega dessas cartas, porque logo me leveis à pessoa que as enviou. (Saem)
Cena VII
Outro quarto no castelo. Entram o Rei e Laertes.
O REI — Vossa consciência, agora, me confirma quitação mais que plena. Podeis mesmo ao peito aconchegar-me como amigo, pois já sabeis, de ouvir de ciência certa, que quem matou a vosso nobre pai também me quis matar.
LAERTES — É o que parece. Mas, por que não punistes esses atos, de si tão criminosos, como a vossa dignidade o obrigava, a segurança, tudo, em suma?
O REI — Oh! São duas as razões, que talvez vos pareçam despiciendas, mas que pesam. Sua mãe vive somente de seus olhares. Quanto ao que me toca — seja virtude ou doença, pouco monta — de alma e corpo me sinto a ela tão preso, que assim como não sai da órbita a estrela, sem ela me não mexo. O outro motivo que me impede de com ele justar contas é o grande amor que lhe devota a plebe, que, na afeição banhando seus defeitos, como as fontes que o lenho em pedra mudam, de ferros faz relíquias. Minhas setas, talhadas em madeira muito leve para tão forte vento, voltariam para o arco, sem que no alvo se encravassem.
LAERTES — E assim perdi meu nobre pai, e vejo caída na demência minha irmã, cujo valor, se é lícito falar-se do que já foi, nenhum outro acharia que pudesse igualá-lo em perfeição. Mas espero vingar-me.
O REI — Vosso sono não perturbeis com semelhante idéia, nem penseis, porventura, que sejamos composto de matéria tão grosseira, que deixemos puxar-nos pela barba com violência e ainda achemos que é brinquedo. Breve ouvireis o resto. Era afeiçoado a vosso pai; amamos a nós mesmos, por isso espero que havereis de, em breve… (Entra um mensageiro) Que há de novo?
MENSAGEIRO — Senhor, cartas de Hamlet, para a rainha e Vossa Majestade.
O REI — De Hamlet? Quem as trouxe?
MENSAGEIRO — Marinheiros, senhor, segundo dizem não lhes falei; foi Cláudio quem mas deu; a este é que o portador as entrega.
O REI — Laertes, vais ouvi-las. Podes ir. (Sai o mensageiro) (Lê) “Alto e poderoso senhor: sabei que fui trazido nu para vosso reino. Amanhã vos pedirei permissão para contemplar vossos reais olhos, quando pretendo, depois de obtido consentimento, relatar-vos os motivos de meu inesperado e muito estranho regresso. Hamlet.” Que é isso? E os companheiros, voltariam? Não será tudo apenas uma farsa?
LAERTES — E a letra?
O REI — Os traços são de Hamlet: “Nu”; e adiante, em pós-escrito, diz: “Sozinho”. Podeis aconselhar-me?
LAERTES — Não sei também que faça. Mas que venha. Sinto que se me inflama o peito à idéia de viver e poder dizer-lhe aos dentes: Assim fizeste!
O REI — Se assim é, Laertes, e por que não? Por que de outra maneira? Quereis que vos oriente?
LAERTES — Então, senhor! Contanto que de paz não seja o assunto.
O REI — Vossa paz, simplesmente. Já que a viagem ficou frustrada e que ele já não cuida de reiniciá-la, penso em concitá-lo a um feito em que de há muito estou pensando, que a morte dele implica, sem que vento de censura nenhum nos incomode; a própria mãe verá no efeito o acaso, chamando-lhe acidente.
LAERTES — Estou de acordo e mais ainda estarei, se dispuserdes que seja eu o instrumento.
O REI — Vem a tempo. Dês que viajastes, fostes elogiado na presença de Hamlet por um dote em que, se diz, primais. Todas as outras qualidades, reunidas, não tiveram o poder de espertar-lhe tanto a inveja, como essa, que, a meu ver, é a mais modesta.
LAERTES — Que talento, senhor, gabaram tanto?
O REI — Um laço no chapéu da juventude, conquanto necessário; porque aos moços cai bem a vestimenta leve e simples, como peles e mantos à velhice, que a protegem, tornando-a circunspecta. Aqui esteve, há dois meses, um normando. Lutei contra os franceses; sei, de viso, que são bons cavaleiros. Esse bravo, contudo, fez milagres, de tal modo se unia à sela, e tais e tantas coisas ao cavalo obrigava. Pareciam um só corpo e que meia natureza do formoso animal ele possuísse. De tal modo excedeu meu pensamento, que só de imaginar voltas e saltos fico aquém de seus efeitos.
LAERTES — Um normando?
O REI — Normando, sim.
LAERTES — Lamord, por minha vida!
O REI — Esse mesmo.
LAERTES — Conheço-o bem; é a pérola e a jóia de seu povo.
O REI — Fez-vos grandes encômios, elogiando-vos de tal maneira na arte e no manejo das armas, sobretudo do florete, que proclamavam digno de ser visto, se alguém vos desafiasse. Os esgrimistas de sua pátria, jurava, careciam de vista, precaução e agilidade, quando em jogo convosco. Esses encômios envenenaram tanto a alma de Hamlet, que vivia a querer que regressásseis porque logo convosco se medisse. Ora, assim sendo…
LAERTES — Sendo assim, senhor?
O REI — Laertes, vosso pai vos era caro, ou sois tal como a imagem da tristeza, rosto sem coração?
LAERTES — Por que isso agora?
O REI — Não penso que esse amor vos falecesse; mas sei que o amor no tempo se origina, sobre haver-me a experiência demonstrado que o tempo lhe modera o ardor e o brilho. No centro dessa chama se acha sempre uma mecha ou pavio que a amortece. Nada conserva sempre o mesmo aspecto; que até mesmo a bondade, em demasia, morre do próprio excesso. O que queremos, deve ser feito, que o querer varia, mostrando tantas quedas e delongas quantas línguas existem, mãos e casos, e o “devia” se muda num suspiro que alivia e faz mal. Mas vamos à úlcera: Hamlet volta; como demonstráreis que de tal pai sois filho, mais com atos do que simples palavras?
LAERTES — Cortar-lhe-ia o pescoço na igreja.
O REI — De fato, não devia haver santuário que o homicida amparasse, nem limites para a vingança. Mas, bondoso Laertes, se concordais, ficai no vosso quarto. Hamlet vai saber que já voltastes; cuidarei que de vós lhe falem muito, pondo duplo verniz nos elogios do francês. Em resumo: aproximamo-nos e faremos apostas. Desatento como ele é, sobre nobre e sem suspeita, as armas não verá. Daí ser fácil, na confusão, ficardes com o florete não protegido, o que vos ensejará, num bote calculado, compensá-lo por vos ter morto o pai.
LAERTES — Aceito o alvitre, e ainda mais: enveneno minha espada. Comprei de um charlatão certa mistura tão mortal que, banhando nela a faca, uma vez feito o sangue, não há emplastro, ainda que preparado só de simples virtuosos sob a lua, que consiga dar vida a quem tocado for de leve. Vou pôr esse veneno na minha arma, porque esflorar o contendor já seja para ele a morte.
O REI — Vamos tratar disso. Pesemos ora o tempo e as circunstâncias adequadas ao caso. Se essa traça falhar, transparecendo nosso intento por falecer-nos jeito, melhor fora não ter tentado. Daí o ser preciso novo plano, numa espécie de reforço, para o caso de a prova não dar certo. Esperai… Quero ver… Apostaremos por maneira solene na arte de ambos… Eis aqui! Quando a luta vos der calor e sede — esforçai-vos para isso nos ataques — e ele quiser beber, hei de uma taça ter à mão. Bastará que nela molhe de leve os lábios, caso ele consiga livrar-se do florete envenenado, porque o plano dê certo. Mas, que é isso? (Entra a Rainha) Então, meiga rainha?
A RAINHA — Tanto as desgraças correm, que se enleiam no encalço umas das outras. Vossa irmã afogou-se, Laertes.
LAERTES — Afogou-se? Onde? Como?
A RAINHA — Um salgueiro reflete na ribeira cristalina sua copa acinzentada. Para aí foi Ofélia sobraçando grinaldas esquisitas de rainúnculas, margaridas, urtigas e de flores de púrpura, alongadas, a que os nossos campônios chamam nome bem grosseiro, e as nossas jovens “dedos de defunto”. Ao tentar pendurar suas coroas nos galhos inclinados, um dos ramos invejosos quebrou, lançando na água chorosa seus troféus de erva e a ela própria. Seus vestidos se abriram, sustentando-a por algum tempo, qual a uma sereia, enquanto ela cantava antigos trechos, sem revelar consciência da desgraça, como criatura ali nascida e feita para aquele elemento. Muito tempo, porém, não demorou, sem que os vestidos se tornassem pesados de tanta água e que de seus cantares arrancassem a infeliz para a morte lamacenta.
LAERTES — Afogou-se, dissestes?
A RAINHA — Afogou-se.
LAERTES — Querida irmã, já tens água de sobra; não te darei mais lágrimas. Contudo, somos assim, que a natureza o obriga, sem que importe a vergonha; uma vez fora, deixou de ser mulher. Adeus, senhor. Com as palavras, só chamas me sairiam, se não fosse apagá-las a tolice. (Sai)
O REI — Sigamo-lo, Gertrudes. Que trabalho me custou para a cólera acalmar-lhe! Receio que de novo a explodir venha. Sigamo-lo, portanto. (Saem)
ATO V
Cena I
Um cemitério. Entram dois coveiros, com alviões e pás.
PRIMEIRO COVEIRO — Poderá ser-lhe dada sepultura cristã, se foi ela quem procurou a salvação?
SEGUNDO COVEIRO — Digo-te que sim: por isso, trata de abrir logo a sepultura; o magistrado já fez investigações, tendo concluído pelo sepultamento em chão sagrado.
PRIMEIRO COVEIRO — Como assim, se ela não se afogou em defesa própria?
SEGUNDO COVEIRO — Foi o que decidiram.
PRIMEIRO COVEIRO — Então foi se ofendendo; não pode ter sido de outro modo, que o ponto principal é o seguinte: se eu me afogar voluntariamente, pratico um ato; um ato é composto de três partes: agir, fazer e realizar. Logo afogou-se porque quis.
SEGUNDO COVEIRO Mas ouvi, compadre coveiro…
PRIMEIRO COVEIRO — Com licença. Aqui está a água; bem. Aqui está o homem; bem. Se o homem vai para a água e se afoga, é ele, quer o queira quer não, que vai até lá. Toma nota. Mas se a água vem para ele e o afoga, não é ele que se afoga. Logo, quem não é culpado de sua própria morte, não encurta a vida.
SEGUNDO COVEIRO — E isso é lei?
PRIMEIRO COVEIRO — É, de acordo com as conclusões do magistrado.
SEGUNDO COVEIRO — Quereis que vos seja franco? Se não se tratasse de uma senhorinha de importância, não lhe dariam sepultura cristã.
PRIMEIRO COVEIRO — Tu o disseste; é pena que neste mundo os grandes tenham mais direito de se enforcarem e afogarem do que os seus irmãos em Cristo. Dá-me a pá. Não há nobreza mais antiga do que a dos jardineiros, dos abridores de fossas e dos coveiros; todos exercem a profissão de Adão.
SEGUNDO COVEIRO — Adão era nobre?
PRIMEIRO COVEIRO — Foi quem primeiro usou armas.
SEGUNDO COVEIRO — Como, se não as possuía?
PRIMEIRO COVEIRO — Quê! És pagão? Como é que interpretas a Escritura? A Escritura diz que Adão cavou. Como poderia ele cavar, se não possuisse armas? Vou fazer-te outra pergunta; se não responderes certo, terás de confessar que és…
SEGUNDO COVEIRO — Pois que venha a pergunta.
PRIMEIRO COVEIRO — Quem é que constrói mais solidamente do que o pedreiro, o carpinteiro e o construtor de navios?
SEGUNDO COVEIRO — O que levanta cadafalsos, porque suas construções sobrevivem a milhares de inquilinos.
PRIMEIRO COVEIRO — Realmente, aprecio a tua vivacidade. O cadafalso faz bem. Mas, para quem faz ele bem? Para os que fazem mal. Por isso, fizeste mal em dizer que o cadafalso é mais sólido do que a Igreja. Logo o cadafalso te faria bem. Vamos, responde logo.
SEGUNDO COVEIRO — Quem é que constrói mais solidamente do que o pedreiro, o carpinteiro e o construtor de navios?
PRIMEIRO COVEIRO — Justamente. Responde isso e sai da canga.
SEGUNDO COVEIRO — Desta vez vou acertar.
PRIMEIRO COVEIRO — Veremos.
SEGUNDO COVEIRO — Com a breca! Não o consigo. (Hamlet e Horácio aparecem no fundo)
PRIMEIRO COVEIRO — Não dês tratos à bola, que o teu asno preguiçoso não andará mais depressa com as chibatadas. Quando te fizerem de novo essa pergunta, responde que é o coveiro, porque a casa que êle constrói dura até o dia do Juízo. Corre à hospedaria e traze-me uma caneca de aguardente. (Sai o segundo coveiro)
PRIMEIRO COVEIRO (canta, continuando a cavar):
Quando rapaz amei, amei bastante
Quão doce me sabia
tudo aquilo! Que tempo! Um só instante
mais que tudo valia.
HAMLET — Esse sujeito não terá o sentimento da profissão, para cantar, quando está abrindo uma sepultura?
HORÁCIO — O hábito facilitou-lhe a tarefa.
HAMLET — É isso; as mãos que trabalham pouco são mais sensíveis.
PRIMEIRO COVEIRO (canta):
Mas a idade, com passo de ladrão,
nas garras me apanhou,
tirando-me do mundo folgazão;
e tudo se acabou.
(Joga um crânio)
HAMLET — Tempo houve em que aquele crânio teve língua e podia cantar; agora, esse velhaco o atira ao solo, como se se tratasse da mandíbula de Caim, o primeiro homicida. É bem possível que a cabeça que esse asno maltrata desse jeito seja de algum político que enganava ao próprio Deus, não te parece?
HORÁCIO — É bem possível, milorde.
HAMLET — Ou de algum cortesão que sabia dizer: “Bom dia, meu doce senhor! Como vai passando, meu bom senhor?” Talvez a de lorde Fulano, que elogiava o cavalo de lorde Cicrano, quando tinha a intenção de pedir-lho, não é verdade?
HORÁCIO — É isso mesmo.
HAMLET — E agora, depois de pertencer a lorde Verme, que lhe comeu as carnes, este sujeito lhe bate com a enxada no maxilar. Se pudéssemos acompanhá-lo em todas as fases, surpreenderíamos nisso uma bela revolução. Levarem tanto tempo esses ossos para se formarem, só para virem a servir de bola! Só de pensar em tal coisa, sinto doer os meus.
PRIMEIRO COVEIRO (canta)
Uma enxada e uma pá bem resistente,
mais um lençol bem-feito
e uma cova de lama indiferente,
fazem do hóspede o leito.
(Joga outro crânio)
HAMLET — Mais um crânio. Por que não há de ser o de um jurista? Onde foram parar as sutilezas, os equívocos, os casos, as enfiteuses, todas as suas chicanas? Por que consente que este maroto rústico lhe bata com a enxada suja, e não lhe arma um processo por lesões pessoais? Hum! É bem possível que esse sujeito tivesse sido um grande comprador de terras, com suas escrituras, hipotecas, multas, endossos e recuperações. Consistirá a multa das multas e a recuperação das recuperações em ficarmos com a bela cabeça assim cheia de tão bonito lodo? Não lhe arranjaram seus fiadores, com as fianças duplas, mais espaço do que o de seus contratos? Os títulos de suas propriedades não caberiam em seu caixão; não obterão os herdeiros mais do que isso?
HORÁCIO — Nada mais, milorde.
HAMLET — Pergaminho não é feito de pele de carneiro?
HORÁCIO — Perfeitamente, príncipe; e também de bezerro.
HAMLET — Não passam de carneiros e de bezerros os que procuram segurar-se nisso. Vou dirigir-me a esse maroto. De quem é essa cova, camarada?
PRIMEIRO COVEIRO — É minha, senhor. e uma cova de lama indiferente fazem do hóspede o leito.
HAMLET — Estou vendo que é tua, de fato, porque te encontras dentro dela.
PRIMEIRO COVEIRO — Estais fora dela, senhor; logo, não vos pertence. Enquanto a mim, muito embora não esteja deitado nela, posso dizer que é minha.
HAMLET — Não é certo dizeres que te pertence porque estás dentro dela. Sepultura é para os mortos, não para os que estão com vida. Logo, estás mentindo.
PRIMEIRO COVEIRO — Uma mentira viva, senhor, que voltará de mim para vós.
HAMLET — Para que homem estás cavando essa sepultura?
PRIMEIRO COVEIRO — Não é para nenhum homem, senhor.
HAMLET — Para que mulher, então?
PRIMEIRO COVEIRO — Não é para mulher, tampouco.
HAMLET — Quem é que vai ser enterrado nela?
PRIMEIRO COVEIRO — Alguém que foi mulher, senhor, e que — Deus a tenha em sua santa guarda — já faleceu.
HAMLET — Como esse sujeito é meticuloso! Precisamos falar-lhe com a bússola na mão; qualquer equivoco poderá ser-nos fatal. Por Deus, Horácio, tenho observado que nestes três últimos anos o mundo se torna cada vez mais sutil. O pé do campônio toca tão de perto no calcanhar do nobre, que causa esfoladuras. Há quanto tempo és coveiro?
PRIMEIRO COVEIRO — Entre todos os dias do ano, iniciei a profissão no dia em que o nosso defunto Rei Hamlet venceu a Fortimbrás.
HAMLET — E quanto tempo faz isso?
PRIMEIRO COVEIRO — Não sabeis? Qualquer bobo poderia dizer-vos: foi no dia em que nasceu o moço Hamlet, aquele que ficou louco e que mandaram para a Inglaterra.
HAMLET — Ah, sim? E por que o mandaram para a Inglaterra?
PRIMEIRO COVEIRO — Ora, porque enloqueceu. Lá, ele há de recuperar o juízo; mas se o não fizer, importa pouco.
HAMLET — Por que razão?
PRIMEIRO COVEIRO — É que ninguém se aperceberá disso; todos por lá são tão loucos quanto ele.
HAMLET — E como foi que ele enloqueceu?
PRIMEIRO COVEIRO — Por maneira muito estranha, dizem.
HAMLET — Como estranha?
PRIMEIRO COVEIRO — Ora, perdendo o juízo.
HAMLET — E onde foi isso?
PRIMEIRO COVEIRO — Ora, aqui na Dinamarca. Entre rapaz e homem feito, sou coveiro há trinta anos.
HAMLET — Quanto tempo pode uma pessoa ficar na terra, sem apodrecer?
PRIMEIRO COVEIRO — A la fé, se já não começara a apodrecer em vida, que hoje em dia há muitos bexiguentos que mal esperam pela inumação, poderá durar-vos coisa de oito anos ou nove; um curtidor demora nove anos.
HAMLET — E por que ele mais tempo do que os outros?
PRIMEIRO COVEIRO — Ora, senhor, é que a profissão lhe endurece a pele, tornando-a impermeável à água, que é o mais ativo destruidor do bandido do cadáver. Temos aqui outro crânio, que vos ficou na terra seus vinte e três anos.
HAMLET — De quem era este?
PRIMEIRO COVEIRO — Do mais extravagante louco que já se viu. Quem pensais que ele fosse?
HAMLET — Não posso sabê-lo.
PRIMEIRO COVEIRO — Para o diabo com sua loucura! Certa vez atirou-me à cabeça uma botija de vinho do Reno. Esse crânio aí, senhor, esse crânio ai, senhor, era o crânio de Yorick, o bobo do rei.
HAMLET — Este?
PRIMEIRO COVEIRO — Precisamente.
HAMLET — Deixa-me vê-lo. (Toma o crânio) Pobre Yorick! Conheci-o, Horácio; um sujeito de chistes inesgotáveis e de uma fantasia soberba. Carregou-me muitas vezes às costas. E agora, como me atemoriza a imaginação! Sinto engulhos. Era aqui que se encontravam os lábios que eu beijei não sei quantas vezes. Onde estão agora os chistes, as cabriolas, as canções, os rasgos de alegria que faziam explodir a mesa em gargalhadas? Não sobrou uma ao menos, para rir de tua própria careta? Tudo descarnado! Vai agora aos aposentos da senhora e dize-lhe que embora se retoque com uma camada de um dedo de espessura, algum dia ficará deste jeito. Faze-a rir com semelhante pilhéria. Dize-me uma coisa, Horácio, por obséquio.
HORÁCIO — Que é, príncipe?
HAMLET — Acreditas que Alexandre, depois de enterrado, tivesse este mesmo aspecto?
HORÁCIO — Igual, igual, príncipe.
HAMLET — E este cheiro? Puá! (Joga o crânio)
HORÁCIO — O mesmo, príncipe.
HAMLET — A que usos ínfimos temos de prestar-nos, Horácio. Por que não acompanhar a imaginação as nobres cinzas de Alexandre, até encontrá-las servindo para tapar um barril?
HORÁCIO — É ir muito longe, considerar as coisas por esse modo.
HAMLET — De forma alguma. Acompanhemo-las com bastante modéstia, deixando-nos guiar apenas pela verossimilhança. Mais ou menos deste jeito: Alexandre morreu; Alexandre foi enterrado; Alexandre tornou-se pó. O pó é terra; da terra faz-se argila; por que, então, não se poderá tapar um barril de cerveja com a argila em que ele se converteu? O grande César morto e em pó tornado, pode a fenda vedar ao vento irado. O pó que o mundo inteiro trouxe atento, ora o muro protege contra o vento. Mas, silêncio; cautela. Afastemo-nos. Aí vem o rei. (Entram padres, etc. em procissão. O corpo de Ofélia, Laertes, as carpideiras; o Rei, a Rainha, séquito, etc) A corte toda, a rainha! A quem sepultam com ritos incompletos? Isso indica que a pessoa a que trazem suicidou-se com mão desesperada. E era de estado. Vamo-nos ocultar para observá-los. (Retira-se com Horácio)
LAERTES — Que cerimônia mais?
HAMLET — Esse é Laertes, jovem da alta prosápia; observa-o bem.
LAERTES — Que cerimônia mais?
PRIMEIRO PADRE — Quanto nos foi possível, prolongamos-lhe as obséquias. Sua morte foi suspeita, e a não ser a pressão sobre nossa ordem, seria sepultada em chão profano até ao clarim final. Em vez de pias orações, lhe teríamos jogado seixos, tições e cardos. Ao invés disso, consentimos nas flores sobre a tumba, a coroa de virgem e no dobre de finados durante o saimento.
LAERTES — Não se fará mais nada?
PRIMEIRO PADRE — Nada mais; mancharíamos agora esse serviço se cantássemos Réquiem, como em casos de morte em santa paz.
LAERTES — Ponde-a na terra! Que de sua carne pura e não manchada nasçam violetas. Padre bronco, digo-te que minha irmã vai ser um anjo, enquanto tu ficarás a contorcer-te em urros.
HAMLET — Que ouço? A bela Ofélia?
A RAINHA — Para a fragrância, mais perfume. Adeus. Sempre esperei que viesses a casar-te com meu Hamlet; imaginara o leito de núpcias enfeitar-te, doce criança, jamais a sepultura.
LAERTES — Maldição tríplice, triplicada mais dez vezes, caia sobre a cabeça amaldiçoada do infame causador de teu desvairo. Parai com a terra, até que nestes braços a aperte novamente. (Salta na cova) Agora ponde sobre o vivo e o cadáver vossa poeira, até que o chão transformeis numa montanha que vença o velho Pélio ou a azul cabeça do celestial Olimpo.
HAMLET — Quem se queixa com ênfase tão grande e com palavras que detêm as estrelas em seu curso como ouvintes pasmados? Sou Hamlet, sim, o Dinamarquês. (Salta na cova)
LAERTES — O diabo te leve a alma! (Atraca-se com ele)
HAMLET — Não rezaste direito. Digo-te que me soltes a garganta, pois embora eu não seja nem furioso nem frenético, posso conter algo de que deves recear-te. Tira as mãos!
O REI — Separem-nos!
A RAINHA — Hamlet! Hamlet!
TODOS — Calma!
HORÁCIO — Príncipe, por favor… (Alguns dos presentes os apartam; saem da sepultura)
HAMLET — Por tal motivo lutarei com ele enquanto eu conseguir mover as pálpebras.
A RAINHA Que motivo, meu filho?
HAMLET — Amava Ofélia; quarenta mil irmãos não poderiam, com todo o seu amor multiplicado, perfazer o total do que eu lhe tinha. Que farias por ela?
O REI — Laertes, está louco.
A RAINHA — Evitai-o, por Deus.
HAMLET — Com os diabos! Dize logo o que farias. Chorar? Brigar? Jejuar? Fazer-te em tiras? Beber vinagre e até engolir inteiro um crocodilo? Tudo isso eu posso. Que vieste aqui fazer? Gemer apenas? Desafiar-me na cova? Se desejas que te enterrem, também posso imitar-te. Se falas de montanhas, que despejem sobre nós milhões de acres, até que o solo vá queimar-se de encontro à zona ardente, deixando o Ossa tornar-se uma verruga. Como vês, eu também falo empolado.
A RAINHA — É da loucura; o acesso dura pouco; mas logo, tão quietinho como a pomba, quando os gêmeos lhe nascem de cor de ouro, as asas o silêncio lhe adormece.
HAMLET — Respondei-me, senhor: por que motivo me tratais desse modo? Amei-vos sempre. Mas isso pouco importa; deixai que Hércules faça como entender; o gato mia; o cachorro também terá seu dia. (Sai)
O REI — Meu caro Horácio, peço-te, acompanha-o. (Sai Horácio) (A Laertes) Fortifica a paciência no que à noite conversamos, que breve decidimos esse assunto. (À Rainha) Boa Gertrudes, cuida de teu filho. (À parte) Esta cova há de ter movimento vivo. Uma hora de sossego ainda virá; com paciência esperemos até lá. (Saem todos)
Cena II
Uma sala no castelo. Entram Hamlet e Horácio.
HAMLET — Sobre esse assunto, é quanto basta; agora cuidemos do outro. Lembras-te de todas as particularidades?
HORÁCIO — Se me lembro!
HAMLET — Uma luta travou-se-me no peito, que o sono me tirou; sofria como revoltosos em ferro. De repente — Viva a temeridade! — É muito certo que a indiscrição por vezes nos ampara, quando a trama periga. Isso nos mostra que um deus aperfeiçoa nossos planos, ainda que mal traçados.
HORÁCIO — É bem certo.
HAMLET — Saí do camarote envolto às pressas no meu roupão de viagem, para achá-los na escuridão. Consigo o intento, lanço mão do pacote e me retiro para meu quarto novamente. Com audácia, que o medo vence o brio, os selos quebro da grande comissão, achando, Horácio — oh banditismo real! — uma ordem clara, com vários argumentos relativos ao bem da Dinamarca e da Inglaterra e não sei mais que duendes e fantasmas, no caso de com vida me deixarem, para que na mesma hora, sem delongas, nem sequer a de afiar a machadinha, me degolassem.
HORÁCIO — Quê! É então possível?
HAMLET — Aqui tens o mandato. Podes lê-lo com vagar. Mas não queres que te conte como me decidi?
HORÁCIO — Com todo o gosto.
HAMLET — Cercado assim por tantas vilanias, mesmo antes de eu poder dizer o prólogo, representava o cérebro. Sentei-me e escrevi com capricho nova carta. Já pensei, como os nossos estadistas, que é feio escrever bem, tendo insistido, até, em desaprendê-lo; mas, nessa hora muito bom me foi isso. Quererias saber qual o conteúdo da mensagem?
HORÁCIO — Com todo o gosto, príncipe.
HAMLET — Rogo instante do rei, considerando que a Inglaterra era fiel subordinada, que o amor entre os dois povos deveria florescer como a palma, que a concórdia a grinalda de trigo apresentava como traço-de-união entre as coroas, e outros considerandos de igual porte, para que, conhecido o teor da carta, fossem mortos depressa os portadores, sem delongas, e até sem dar-lhes tempo de confessar as culpas.
HORÁCIO — Bem; e o selo?
HAMLET — Nisto o céu me ajudou. Tinha na bolsa o sinete que fora de meu pai e que serviu de norma para o selo da Dinamarca. Após, dobrada a carta, subscritada e impresso nela o timbre, pu-la no lugar da outra, sem vestígio deixar da troca. Deu-se no outro dia o combate. Já sabes tudo o mais.
HORÁCIO — Desta arte, Rosencrantz e Guildenstern seguiram seu caminho.
HAMLET — Ora, homem; foram eles que namoraram esse emprego. Remorso algum me vem por ter feito isso. Caem, por terem sido intrometidos. É perigoso, para a gente baixa, ficar entre os floretes inflamados de dois opositores poderosos.
HORÁCIO — E dizer-se que é rei!
HAMLET — Não achas que fiz bem? Ele privou-me do meu pai, prostituiu-me a mãe, meteu-se entre a escolha do povo e meus anelos, jogou o laço, visando até a matar-me, e com tanta perfídia… Em sã consciência, não cabe a este meu braço dar-lhe o troco? Não é crime deixar um verme desses corroer-me por mais tempo a própria carne?
HORÁCIO — Dentro de pouco tempo hão de chegar-lhe notícias da Inglaterra sobre o caso.
HAMLET — Até lá o tempo é meu. A vida humana não dura mais do que a contagem de um. Mas, meu bondoso Horácio, fico triste por me haver esquecido de mim mesmo, frente a Laertes; vejo em minha causa representada a sua. Estimo-o muito; mas, realmente, as bravatas nos lamentos deixaram-me furioso.
HORÁCIO — Basta. Vede quem vem chegando. (Entra Osrico)
OSRICO — Vossa Alteza é muito bem-vindo à Dinamarca.
HAMLET — Humildemente vos agradeço, meu senhor. (À parte, a Horácio) Conheces esse mosquito?
HORÁCIO — (à parte, a Hamlet) Não, caro príncipe.
HAMLET — Tanto melhor para a tua salvação, porque é vício conhecê-lo. Possui muitas terras e todas férteis. Se fosse animal o rei dos animais, a manjedoura deste ficaria sempre ao lado da mesa do rei. É um bisbórria, mas, como disse, dono de grandes extensões de lama.
OSRICO — Meu doce senhor, se Vossa Alteza dispuser de tempo, farei uma comunicação da parte de Sua Majestade.
HAMLET — Recebê-la-ei com a máxima atenção. Usai vosso chapéu de acordo com a sua finalidade; foi feito para a cabeça.
OSRICO — Agradeço a Vossa Senhoria; mas faz muito calor.
HAMLET — Ao contrário, podeis crer-me; faz muito frio; é vento norte.
OSRICO — Realmente, príncipe, está fazendo bastante frio.
HAMLET — Conquanto me pareça que o tempo está abafado e quente para a minha compleição.
OSRICO — Sim, não há dúvida, algo abafado, de certo modo… Não sei como me exprima. Mas, senhor, Sua Majestade me incumbiu de comunicar-vos que apostou uma grande quantia sobre vossa pessoa. O caso é o seguinte…
HAMLET (concitando a cobrir-se) — Peço-vos, não vos esqueçais…
OSRICO — Deixai, meu caso senhor; estou à vontade. Mas senhor, Laertes chegou à corte há pouco tempo; um cavalheiro, podeis crer-me, na acepção lata do termo, com excelentes qualidades, boa presença e conversação agradável. De fato, para falar dele com toda a propriedade, é a carta ou almanaque da cortesania, por encontrar-se nele a súmula de todos os dotes que pode um gentil-homem ambicionar.
HAMLET — O seu elogio nada perdeu em vossa boca, conquanto eu saiba que se fôssemos fazer um inventário de suas qualidades, padeceria a aritmética da memória sem que na rota em que ele vai se observasse a menor guinada. Para exaltá-lo com toda a sinceridade, considero-o um espírito muito aberto, com dotes tão preciosos e raros, que, para tudo dizer em uma só palavra, igual a ele, só poderá encontrar em seu próprio espelho. Qualquer outra tentativa para retratá-lo redundaria em sua simples sombra.
OSRICO — Vossa Alteza fala com convicção.
HAMLET — A que respeito, senhor? Mas, afinal, porque motivo estamos a envolver esse cavalheiro em nosso grosseiro fôlego?
OSRICO — Senhor?
HORÁCIO — Não seria possível fazerem-se ambos compreender em outra língua? Decerto o podem.
HAMLET — A que vem agora o nome desse cavalheiro?
OSRICO — De Laertes?
HORÁCIO — Esvaziou-se-lhe a bolsa; estão gastas todas as palavras de ouro.
HAMLET — Dele mesmo, senhor.
OSRICO — Sei que não ignorais…
HAMLET — Folgo com isso, conquanto não me recomende muito o fato de o saberdes. Prossegui, senhor.
OSRICO — … não ignorais a que ponto Laertes prima…
HAMLET — Não me atrevo a dizer que sim, com medo de comparar-me ao seu merecimento; conhecermos bem uma pessoa, é conhecermos a nós mesmos.
OSRICO — Refiro-me à sua habilidade de manejar arma; o conceito de que desfruta nesse terreno não lhe permite competidor.
HAMLET — E qual é a sua arma?
OSRICO — Florete e adaga.
HAMLET — Seriam, então, duas. Mas, prossegui.
OSRICO — O rei, senhor, empenhou seis cavalos berberes, contra os quais, se diz, Laertes joga seis espadas francesas com todas as suas pertenças: cinturões, talabartes e o resto. Três desses trens são realmente soberbos, bem adaptados aos punhos, trabalhados com esmero e de invenção admirável.
HAMLET — A que dais o nome de trem?
HORÁCIO — Já sabia que haveríeis de recorrer à nota marginal, antes de chegar ele ao fim.
OSRICO — Trens, meu senhor, são os sustentáculos.
HAMLET — A expressão assentaria, se usássemos canhões à cinta. Até lá, fiquemos com sustentáculos. Mas, prossegui: seis cavalos berberes contra seis espadas com todos os seus acessórios e mais três desses trens de elevada invenção: uma aposta da França contra a Dinamarca. Mas, por que motivo, para usar de vossa expressão, empenharam tudo isso?
OSRICO — O rei, senhor, apostou que em doze botes entre Laertes e Vossa Alteza, aquele não levará mais do que três de vantagem; Laertes aposta que vos tocará nove vezes em doze, o que poderá ser posto imediatamente à prova, se Vossa Alteza se dignar de responder-lhes.
HAMLET — E se eu me decidir pela negativa?
OSRICO — Quero dizer, príncipe, no caso de quererdes expor vossa pessoa.
HAMLET — Senhor, vou pôr-me a passear nesta sala; se for do agrado de Sua Majestade, estarei na hora de tomar um pouco de ar fresco. Tragam os floretes, uma vez que o cavalheiro consinta; se o rei persiste em seu intento, ganharei para ele o que puder; em caso contrário, lucrarei apenas a vergonha e os golpes sobressalentes.
OSRICO — Posso transmitir vossa resposta nesses termos?
HAMLET — O sentido é esse, senhor, ficando-vos facultado florear de acordo com vossa capacidade.
OSRICO — Minha gratidão se recomenda a Vossa Alteza.
HAMLET — A minha, a minha. (Sai Osrico) Fez ele muito bem em recomendar-se, que não há línguas que pudessem fazê-lo.
HORÁCIO — Esse abibe fugiu do ninho com a casca do ovo na cabeça.
HAMLET — Para mamar ele fazia mesuras aos peitos da ama; como os muitos do mesmo rebanho, que constituem o encanto de nossa época superficial, adquiriu apenas o tom da moda e o verniz da sociedade, que, como espuma fina, o fazem passar através das opiniões mais joeiradas e batidas. Mas bastará soprar, para que as bolhas se desfaçam. (Entra um nobre)
O NOBRE — Alteza, Sua Majestade se recomendou a vós pelo moço Osrico, que de vossa parte lhe disse o aguardaríeis na sala. Agora manda-me saber se é de vosso agrado medir-vos logo com Laertes, ou se preferes adiar a partida.
HAMLET — Sou constante em meus intentos; meus intentos seguem o prazer do rei. Se falar a sua conveniência, a minha nada terá a objetar: agora, ou em qualquer tempo, uma vez que me encontre tão forte como agora.
O NOBRE — O rei, a rainha e toda a corte se encaminham para cá.
HAMLET — Em boa hora.
O NOBRE — É desejo da rainha que Vossa Alteza dirija palavras de cortesia a Laertes, antes de iniciardes a partida.
HAMLET — É razoável o que aconselha. (Sai o nobre)
HORÁCIO — Ides perder essa partida, príncipe.
HAMLET — Não creio; desde que ele foi para a França, não deixei de praticar a esgrima; vou ganhar dentro da margem que me concede. Mas não fazes idéia de como sinto apertar-se-me o coração. Não importa…
HORÁCIO — Se assim é, príncipe…
HAMLET — Tolice… Um pressentimento apenas, mas que bastaria para preocupar uma mulher.
HORÁCIO — Se vosso espírito revela qualquer repugnância, convém obedecer-lhe, irei ao encontro deles, para dizer-lhes que vos achais indisposto.
HAMLET — De forma alguma; desafio os presságios. Há uma especial Providência na queda de um pardal. Se tem de ser já, não será depois; se não for depois, é que vai ser agora; se não for agora, é que poderá ser mais tarde. O principal é estarmos preparados, Uma vez que ninguém sabe o que deixa, que importa que seja logo? que seja! (Entram o Rei, a Rainha, Laertes, nobres, Osrico, e ajudantes, com floretes, etc)
O REI — Recebe, Hamlet, a mão que te apresento. (O Rei coloca a mão de Laertes sobre a de Hamlet)
HAMLET — Perdoai, senhor; causei-vos grande ofensa. Sabem-no os circunstantes, e decerto já ouvistes comentar, que estou sofrendo de atroz melancolia. Tudo o que fiz, que a vossa natureza porventura ofendesse, e a honra e o caráter, proclamo-o: foi loucura. Foi Hamlet que a Laertes magoou? Jamais. Se Hamlet de si mesmo se abstrai e, sem ser ele, causa a Laertes uma ofensa, Hamlet não foi o causador, pode afirmá-lo. Quem foi, então? Sua loucura. Logo, Hamlet está do lado do ofendido; seu maior inimigo é a própria doença. Deixai, senhor, que, em face dos presentes, o franco renegar de maus intentos me absolva ante vossa alma generosa. É como se uma flecha eu disparasse por sobre a casa e o irmão, sem ver, ferisse.
LAERTES — Declaro satisfeita a natureza que razões encontrava de à vingança concitar-me. No campo estrito da honra, contudo, impugnarei qualquer proposta de reconciliação, até que mestres idosos, de lealdade comprovada, firmados na experiência, me declarem limpo o meu nome. Antes, porém, que chegue essa hora, aceitarei vossa amizade, qual é, sem a magoar.
HAMLET — Isso me alegra. Encetarei lealmente esta compita fraternal. Os floretes!
LAERTES — Vamos; quero um, também.
HAMLET — Vou servir de fundo para vosso brilho, Laertes. Minha inépcia fará luzir vossa arte, como a noite a uma estrela fulgente.
LAERTES — Estais zombando.
HAMLET — Por estas mãos o juro.
O REI — Jovem Osrico, entrega-lhes as armas. Conheces, primo Hamlet, as condições?
HAMLET — Conheço-as. Vossa Graça dá vantagens para o mais fraco.
O REI — Não receio nada; já os vi lutar; mais se ele fez progressos, que seja para nós a diferença.
LAERTES — Este é muito pesado; mostrai-me outro.
HAMLET — Este é bom; todos são de igual tamanho?
OSRICO — Todos, meu bom senhor. (Colocam-se)
O REI — Ponde as jarras de vinho sobre a mesa. Se Hamlet da primeira ou da segunda vez o tocar, ou se aparar o golpe na terceira investida, que abram fogo todas as baterias, O rei bebe à saúde de Hamlet, pondo dentro de sua taça uma pérola mais rica do que as que em seus diademas ostentaram os quatro últimos reis da Dinamarca. Tragam taças. Transmitam os timbales a notícia às trombetas, estas logo aos canhoneiros fora o sinal levem, os canhões para o céu, o céu à terra: à saúde de Hamlet que o rei bebe! Vamos logo! E vós, juizes, olho atento!
HAMLET — Vamos.
LAERTES — Em guarda, príncipe.
HAMLET — Uma.
LAERTES — Não.
HAMLET — O juiz que o decida.
OSRICO — Tocado, não há dúvida.
LAERTES — De novo.
O REI — Descansem; tragam vinho. Hamlet, a pérola é em teu louvor. Saúde! Dêem-lhe a taça. (Soam trombetas; disparos de canhões no fundo)
HAMLET — Depois; primeiro novo assalto. Vamos. (Lutam) Novamente tocado; que dizeis?
LAERTES — Fui tocado, confesso-o.
O REI — Nosso filho vai ganhar.
A RAINHA — Está suando e perde o fôlego. Toma o meu lenço, Hamlet; limpa a fronte. A rainha ora bebe ao teu bom êxito.
HAMLET — Nobre senhora!
O REI — Não, não bebas, Gertrudes.
A RAINHA — Consenti, caro esposo; é meu desejo.
O REI (à parte) — A taça envenenada; é muito tarde.
HAMLET — Não quero ainda, senhora; mais um pouco.
A RAINHA — Vem até aqui, para enxugar-te o rosto.
LAERTES — Pretendo desta vez, senhor, tocá-lo.
O REI — Não creio.
LAERTES (à parte) — Contudo, é quase contra minha própria consciência.
HAMLET — Vinde, Laertes, para o terceiro assalto. Estais brincando. Peço-vos que empregueis toda a perícia. Temo que me trateis como a uma criança.
LAERTES — É assim? Pois bem. (Lutam)
OSRICO — De parte a parte, nada.
LAERTES — Tomai cuidado agora. (Laertes fere a Hamlet; depois, no afogo da luta, trocam as armas e Hamlet fere a Laertes)
O REI — Separem-nos! Excedem-se!
HAMLET — Não! Não! Em guarda! (A Rainha cai)
OSRICO — Oh! A rainha! Vede-a!
HORÁCIO — Ambos se acham feridos. Como estais, príncipe?
OSRICO — Como estais vós, Laertes?
LAERTES — Como um galo silvestre, Osrico, preso no seu laço; fui vítima de minha felonia.
HAMLET — Que é que houve com a rainha?
O REI — Desmaiou por ter visto sangue em ambos.
A RAINHA — Não é isso… a bebida… Oh! caro Hamlet! A bebida… a bebida… envenenada… (Morre)
HAMLET — Oh! Vilania! Fechem bem as portas! Traição! Ah! Procuremos os culpados! (Laertes cai)
LAERTES — Aqui, Hamlet, aqui! Estás perdido; nada no mundo existe que te salve; não tens nem meia hora mais de vida. O instrumento fatal se acha em tuas mãos, sem guarda e envenenado. Minha astúcia se virou contra mim. Jazo por terra para sempre. Tua mãe.., envenenada. Não posso mais… O rei… É ele o culpado.
HAMLET — A ponta envenenada? Então, veneno, prossegue em teu trabalho. (Fere o Rei)
TODOS — Traição! Traição!
O REI — Amigos, defendei-me! Estou apenas ferido.
HAMLET — Incestuoso assassino, Dinamarquês maldito, bebe, bebe tua parte, também. Contém tua pérola? Vai, vai com minha mãe. (O Rei morre)
LAERTES — É justo! É justo! O veneno, ele mesmo o preparara. Perdoemo-nos, agora, nobre Hamlet. Que minha morte e a de meu pai não caiam sobre ti, nem a tua sobre mim.(Morre)
HAMLET — O céu te absolva; sigo-te. Estou morto, Horácio. Infeliz mãe, adeus, adeus. Vós que empalideceis a esta catástrofe, que não passais de mudos assistentes desta cena… Se o tempo me sobrasse — que a Morte, o beleguim que não conhece contemplações, é sempre rigorosa — Se pudesse contar-vos! Que importa! Horácio, eu morro, mas tu vives; perante os descontentes, justifica-me e à minha causa.
HORÁCIO — Não; não penseis nisso; sou mais romano antigo do que mesmo dinamarquês. Na taça ainda há veneno.
HAMLET — Como o homem que és, entrega-me essa taça. Entrega-ma, por Deus! Larga-a! Desejo-a! Ó Deus! Que nome eu deixo, Horácio caso continuem confusas essas coisas. Se algum dia em teu peito me abrigaste, priva-te por um tempo da ventura e respira cansado mais um pouco neste mundo tão duro, para a todos contares minha história. (Marcha ao longe; tiros de canhão por trás da cena) Que barulho marcial se está ouvindo?
OSRICO — É o jovem Fortimbrás que da Polônia retorna vitorioso e os emissários da Inglaterra saúda desse modo.
HAMLET — Morro, Horácio; o veneno me domina já quase todo o espírito; não posso viver para saber o que nos chega da Inglaterra. Contudo, profetizo que há de ser escolhido Fortimbras. Meu voto moribundo é também dele. Dize-lhe isso e lhe conta mais ou menos quanto ora aconteceu… O resto é silêncio. (Morre)
HORÁCIO — Um nobre coração que assim se parte. Boa noite, meu bom príncipe. Que os anjos com seu canto ao repouso te acompanhem. E esse tambor agora? (Entram Fortimbrás, os embaixadores da Inglaterra e outros)
FORTIMBRÁS — Onde é esta cena?
HORÁCIO — Que espécie procurais? Se de infortúnio, ou de assombro, parai com vossas buscas.
FORTIMBRÁS — Destroço é o que se vê. Ó feroz Morte! Que festim se processa em tua cela, para que de um só golpe tantos príncipes banhes em sangue?
PRIMEIRO EMBAIXADOR — A vista é pavorosa. Chegamos atrasados; surdos se acham os ouvidos que audiência deveriam conceder-nos, a fim de lhes contarmos da execução de seu mandado: mortos se encontram Rosencrantz e Guildenstern. Quem há de agradecer-nos?
HORÁCIO — Não o rei, certamente, ainda que vida lhe sobrasse para isso, pois não dera ordem no que respeita à morte de ambos. Mas, uma vez chegados a esta cena sangrenta, um da Inglaterra, outro da guerra da Polônia, ordenai que os corpos sejam expostos num tablado bem à vista, que eu contarei ao mundo, que ainda o ignora, como tudo se deu. Ouvireis todos falar de atos carnais, de incestos, sangue, julgamentos casuais, mortes fortuitas, de crimes por acaso ou pela astúcia, e de planos gorados, que caíram sobre os próprios autores. Com verdade, tudo isso contarei.
FORTIMBRÁS — Que seja logo. Convoquemos os nobres ao conselho Enquanto a mim, com dor abraço a sorte: tenho sobre este reino alguns direitos, que o interesse me faz ora lembrados.
HORÁCIO — Tenho algo que dizer também sobre isso, em nome de uma boca cujo voto muitos há de arrastar. Ponhamos pressa na execução de tudo, enquanto inquietos os espíritos se acham, para novas desgraças evitar, oriundas de erros ou de tramas conscientes.
FORTIMBRÁS — Que quatro capitães a Hamlet levem como a um soldado e o ponham sobre o leito. Se o trono ele alcançasse, tudo o indica, seria um grande rei. Que à sua passagem música militar e salvas bélicas falem alto por ele. Removei logo os corpos; esta vista é própria só dos campos de batalha; neste lugar, porém, é em tudo falha. Uma salva geral! (Marcha fúnebre. Saem carregando os corpos, depois do que se ouve uma salva de artilharia)
Fonte: www.ebooksbrasil.or
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