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Voltaire
Apresentação
“O Ingênuo” se insere na onda de indianismo característica
de tantos romances que inundaram a França do século XVIII. De
certa forma, contém uma crítica às idéias de J.
J. Rousseau sobre o homem natural. Ingênuo é um hurão
honesto e sincero, espantado com as ridículas convenções
sociais; mas o texto conclui o oposto da concepção rousseauniana
de volta à natureza.
A obra revela a peculiar sensibilidade crítica de Voltaire. Ataca
o clero católico, principalmente os jesuítas, em relação
aos quais nunca escondeu sua ojeriza. O Papa tampouco passa incólume.
Nem deixa de ironizar os que se submetiam às normas da Igreja por simples
temor ou pelo interesse de obter vantagens.
Há uma diferença na forma de desenvolver as idéias.
Voltaire, geralmente, expressou suas concepções através
de um humor mordaz, cáustico e irreverente. Não deixou de fazer
isso, mas com parcimônia, dando ênfase a um estilo dramático
em que se mesclam dor e melancolia.
A respeito da morte da amada de Ingênuo, assim se expressa o autor:
“O terrível silêncio do Ingênuo, seus olhos sombrios,
seus lábios trementes, os frêmitos de seu corpo, incutiam, na
alma de todos aqueles que o contemplavam, essa mescla de compaixão
e terror que encadeia a alma, que impede a palavra e só se manifesta
por frases entrecortadas. A dona da casa e sua família haviam acorrido;
tremiam de seu desespero, guardavam-no à vista, observavam-lhe todos
os movimentos. Já o corpo gelado da bela St. Yves fora carregado para
longe dos olhos do Ingênuo, que ainda parecia procurá-la, embora
não estivesse em condições de distinguir o que quer que
fosse.”
Igualmente dramática é a conclusão a que chega Ingênuo,
após ler sobre a História:
“Leu livros de História, que o entristeceram. O mundo lhe pareceu
demasiado mau e demasiado miserável. A História, com efeito,
não é mais que o quadro dos crimes e das desgraças. A
multidão de homens inocentes e pacíficos sempre se apaga nesse
vasto cenário. Os principais papéis estão com os ambiciosos
e os perversos.”
Sem mudar o conhecido estilo, não perde a irreverência de certas
críticas. Sobre o clero menciona, por exemplo, o seguinte:
“O prior, já um tanto avançado em idade, era um excelente
eclesiástico, muito amado pelos seus paroquianos, depois de o ter sido
outrora pelas suas paroquianas.”
A crítica a certos costumes também não deixa de ser
incisiva:
“O Ingênuo, segundo o seu costume, acordou com o sol, ao cantar
do galo, que é chamado na Inglaterra e na Hurônia a trombeta
do dia. Não era como a gente da alta, que enlanguesce num preguiçoso
leito, até que o sol haja feito metade do seu curso, que não
pode nem dormir nem levantar-se, que perde tantas horas preciosas nesse estado
intermediário entre a vida e a morte, e ainda se queixa de que a vida
é demasiado curta.”
Sobre o conhecimento adquirido através de estudos, a ironia é
arrasadora, coloca nos lábios do velho Gordon a afirmação:
“Consumi cinqüenta anos em instruir-me – dizia ele consigo
– e teimo não poder atingir o natural bom senso deste menino
quase selvagem! Parece-me que apenas consegui fortalecer laboriosamente os
preconceitos, ao passo que ele só escuta a simples natureza”
Com maiores ou menores mudanças no estilo, é o mesmo Voltaire,
o pensador genial que nos leva a meditar sobre nossos hábitos, costumes,
religiões e, não raro, a rir deles.
Nélson Jahr Garcia
CAPÍTULO I
Como a prior de Nossa Senhora da Montanha e a senhorita sua irmã
encontraram um hurão.
Um dia S. Dunstan, irlandês de nacionalidade e santo de profissão,
partiu da Irlanda a bordo de uma pequena montanha que navegou para as costas
da França, indo arribar à baia de Saint-Malo. Depois do que,
deu ele a bênção à sua montanha, a qual lhe fez
profundas reverências e voltou para a Irlanda pelo mesmo caminho por
onde tinha vindo.
Dunstan fundou ali um pequeno priorado, dando-lhe o nome de priorado da
Montanha, denominação que ainda hoje conserva, como todos sabem.
Ora, na tarde de 15 de julho de 1689, o abade de Kerkabon, prior de Nossa
Senhora da Montanha, passeava à beira-mar com a senhorita de Kerkabon,
sua irmã, para tomar a fresca. O prior, já um tanto avançado
em idade, era um excelente eclesiástico, muito amado pelos seus paroquianos,
depois de o ter sido outrora pelas suas paroquianas. O que lhe valera sobretudo
grande consideração é que era o único clérigo
da província que não precisava ser carregado para o leito depois
de cear com os seus confrades. Sabia muito corretamente a sua teologia e,
quando cansado de ler Santo Agostinho, divertia-se com Rabelais: de modo que
todos diziam bem dele.
A senhorita de Kerkabon que jamais havia casado, embora vontade não
lhe faltasse, ainda não perdera o frescor aos quarenta e cinco anos;
boa e sensível de gênio, gostava de divertimentos e era devota.
Dizia o prior à irmã, olhando o mar:
— Ah! foi aqui que embarcou o nosso pobre irmão, com a nossa
querida cunhada, a senhora de Kerkabon, sua esposa, na fragata Hirondelle,
em 1669, para ir servir no Canadá. Se não o tivessem matado,
poderíamos ter a esperança de tornar a vê-lo.
— Acreditas – dizia a senhorita de Kerkabon – que a nossa
cunhada tenha sido devorada pelos iroqueses, como nos disseram? É certo
que, se não a tivessem comido, teria voltado à sua terra. Hei
de chorá-la toda a vida: era uma mulher encantadora; e nosso irmão,
que era bastante inteligente, teria feito uma bela fortuna.
Enquanto assim se comoviam a tais lembranças, viram entrar na baía
de Rance uma pequena embarcação que chegava com a maré:
eram ingleses que vinham vender alguns gêneros de seu país. Saltaram
em terra, sem preocupar-se com o senhor prior nem com a senhorita sua irmã,
que ficou muito chocada com a desatenção.
Não sucedeu o mesmo com um jovem de excelente compleição
que, saltando por cima da cabeça de seus companheiros, veio cair de
pé em frente à senhorita. Cumprimentou-a com a cabeça,
pois, pelos modos, não aprendera a fazer reverência. Seu aspecto
e sua indumentária atraíram os olhares do irmão e da
irmã. Tinha a cabeça descoberta, as pernas nuas, longas tranças,
pequenas sandálias, e um gibão que lhe modelava o talhe esbelto;
e um ar ao mesmo tempo viril e bondoso. Trazia numa das mãos uma pequena
garrafa de água de Barbados, e na outra uma espécie de bolsa
na qual havia uma caneca e bolachas. Falava francês de um modo bastante
inteligível. Ofereceu água de Barbados à senhorita de
Kerkabon e ao senhor seu irmão; bebeu com ambos; fê-los beber
de novo; e tudo isso com um ar tão simples e natural que o irmão
e a irmã ficaram encantados. Ofereceram-lhe seus préstimos,
perguntando-lhe quem era e aonde ia. O jovem lhes respondeu. que não
sabia ao certo, pois era um simples curioso que quisera saber como eram as
costas de França e que, como ali chegara, logo se retiraria.
Julgando, pelo seu acento, que ele não era inglês, tomou o
prior a liberdade de lhe perguntar qual o seu país de origem.
— Eu sou hurão – respondeu-lhe o jovem.
A senhorita de Kerkabon, espantada e encantada de ver um hurão que
a cumulara de atenções convidou o jovem para jantar; este não
se fez de rogado e dirigiram-se os três para o priorado de Nossa Senhora
da Montanha.
A miúda e rechonchuda senhorita não tirava dele os seus olhinhos
e dizia de vez em quando ao prior:
— Esse rapagão tem uma pele de lírio e rosas! Que bela
tez para um hurão!
— Tens razão, minha irmã – dizia o prior.
Ela fazia cem perguntas seguidas, a que o viajante sempre respondia com
toda a justeza.
Logo se espalhou o rumor de que havia um hurão no priorado. A alta
sociedade do cantão apressou-se em comparecer. O padre de St. Yves
veio acompanhado da senhorita sua irmã, jovem baixa-bretã, muito
bonita e muito bem educada. O bailio, o recebedor de impostos e suas respectivas
mulheres não faltaram à ceia. Colocaram o estrangeiro entre
a senhorita de Kerkabon e a senhorita de St. Yves. Todos o olhavam com admiração,
todos lhe falavam e interrogavam ao mesmo tempo; o hurão não
perdia a compostura. Parecia haver tomado por divisa a de milorde Bolingbroke:
nihil admirari. Afinal, cansado de tanto barulho, disse-lhes suavemente, mas
com firmeza:
— Senhores, na minha terra fala um depois do outro; como querem que
lhes responda, se me impedem de ouvi-los?
A razão sempre faz com que os homens se compenetrem por alguns momentos.
Estabeleceu-se um grande silêncio. O senhor bailio, que sempre se apoderava
dos estranhos em qualquer parte onde se achasse, e que era o maior perguntador
da província, indagou, abrindo uma boca de palmo e meio:
— Como se chama o senhor?
— Sempre me chamaram o Ingênuo, nome este que me foi confirmado
na Inglaterra, porque eu sempre digo singelamente o que penso e faço
tudo o que quero.
— Mas como, tendo nascido hurão, foi o senhor parar na Inglaterra?
— É que me levaram para lá. Em combate, fui feito prisioneiro
pelos ingleses, depois de me haver defendido o mais que pude. E os ingleses,
que apreciam a bravura, porque são bravos e tão direitos como
os hurões, propuseram-me devolver-me a meus país ou levar-me
para a Inglaterra. Aceitei a última oferta, pois gosto imenso de ver
terras novas.
— Mas – disse o bailio com o seu tom imponente – como
pôde o senhor abandonar assim o seu pai e a sua mãe?
— É que nunca conheci nem pai nem mãe – respondeu
o estrangeiro.
Não houve quem não se comovesse, e todos repetiam: Nem pai
nem mãe!
— Nós lhe serviremos de pai e mãe – disse a dona
da casa ao prior. – Como é interessante esse senhor hurão!
O Ingênuo agradeceu-lhe com uma nobre e altiva cordialidade, e deu-lhe
a entender que não tinha necessidade de coisa alguma.
— Vejo, senhor Ingênuo – disse o grave bailio, –
que o seu francês é excelente para um hurão.
— Um francês – disse ele que os hurões haviam aprisionado
quando eu era pequenino, e a quem dediquei grande amizade, ensinou-me a sua
língua; aprendo muito depressa o que quero aprender. Ao chegar em Plymouth,
encontrei um desses refugiados franceses a que chamam huguenotes, não
sei por quê; fiz com ele alguns progressos no conhecimento de vossa
língua e, logo que me pude exprimir inteligivelmente, vim visitar o
vosso país, pois aprecio bastante os franceses quando eles não
fazem muitas perguntas.
O abade de St. Yves, apesar dessa pequena advertência, perguntou-lhe
qual das três línguas preferia: o hurão, o inglês,
ou o francês.
— O hurão, sem dúvida nenhuma.
— Será possível? – exclamou a senhorita de Kerkabon.
– Eu sempre julguei que o francês fosse a mais bela de todas as
línguas, depois do baixo-bretão.
Choveram então as perguntas. Como se dizia fumo em hurão?
Taya, respondia o Ingênuo. Como se dizia comer? Essenter, respondia
ele. A senhorita de Kerkabon fez absoluta questão de saber como se
dizia amar; ele respondeu que isso era trovander, e sustentou, não
sem razão, que tais palavras nada ficavam a dever às suas correspondentes
em francês e inglês. Trovander pareceu muito bonito a todos os
convivas.
O prior, que tinha na biblioteca uma gramática da língua huronesa,
que lhe dera de presente o reverendo padre Sérgard-Théodat,
recoleto e famoso missionário, retirou-se da mesa um momento, para
ir consultá-la. Voltou arquejante de enternecimento e alegria. Reconheceu
o Ingênuo como um verdadeiro hurão. Discutiram um pouco sobre
a multiplicidade das línguas e chegaram à conclusão de
que, se não fora a aventura da torre de Babel, a terra inteira estaria
falando francês.
O interrogador bailio, que até então desconfiara um pouco
do personagem, começou a considerá-lo com profundo respeito;
falou-lhe com mais civilidade que antes, coisa de que o Ingênuo não
se apercebeu.
A senhorita de St. Yves estava muito curiosa por saber como se amava na
terra dos hurões.
— Praticando belas ações – respondeu ele –
para agradar às pessoas que se parecem com a senhorita.
Todos os convivas aplaudiram com admiração. A senhorita de
St. Yves enrubesceu, e sentiu-se muito bem. A senhorita de Kerkabon igualmente
enrubesceu, mas não se sentiu tão bem, um pouco melindrada de
que a galanteria não se dirigisse a ela, mas tinha tão bom coração
que isso em nada diminuiu o seu afeto pelo visitante. Perguntou-lhe amavelmente
quantas namoradas tivera ele na Hurônia.
— Só tive uma – respondeu o Ingênuo. – Era
Abacaba, a boa amiga de minha querida ama; os juncos não eram mais
retos, o arminho mais branco, as ovelhas menos macias, as águias menos
altivas, e nem os cervos mais rápidos do que Abacaba. Ela perseguia
um dia uma lebre pelas vizinhanças, a cerca de cinqüenta léguas
da nossa casa. Um algonquino mal educado, que habitava cem léguas além,
veto arrebatar-lhe a sua lebre; mal o soube, acorri, derrubei o algonquino
com um golpe de maça, amarrei-o e fui depô-lo aos pés
de Abacaba. Os pais de Abacaba queriam comê-lo; mas nunca me agradei
dessa espécie de festins; restitui-lhe a liberdade e fiz dele um amigo.
Abacaba ficou tão impressionada com a minha ação, que
me preferiu a todos os seus pretendentes. E ainda me amaria, se não
tivesse sido devorada por um urso. Castiguei o urso, usei durante muito tempo
a sua pele, mas isso não me consolou.
A senhorita de St. Yves sentia um secreto prazer ao ouvir que o Ingênuo
só tivera uma bem-amada e que Abacaba não mais existia; mas
não discernia a causa de seu prazer. Todos fixavam os olhos no Ingênuo;
louvavam-no muito por não haver permitido que os seus camaradas comessem
um algonquino.
O implacável bailio, incapaz de reprimir o seu furor inquisitivo,
levou a curiosidade ao ponto de se informar qual era a religião do
senhor hurão; se havia escolhido a religião anglicana, ou a
galicana, ou a huguenote.
Eu sou da minha religião – disse ele – como o senhor
é da sua.
— Ah! – exclamou a Kerkabon – bem se vê que esses
engraçados ingleses nem ao menos pensaram em batizá-lo-
— Meu Deus! – dizia a senhorita de St. Yves – como é
possível que os hurões não sejam católicos? Será
que os RR.PP jesuítas não os converteram a todos?
O Ingênuo assegurou que na sua terra não se convertia ninguém;
que nunca um verdadeiro hurão mudara de idéias, e que na sua
língua nem sequer havia um termo que significasse inconstância.
Estas últimas palavras agradaram extremamente à senhorita de
St. Yves.
— Nós o batizaremos, nós o batizaremos – dizia
a Kerkabon ao prior; – há de caber-te essa honra, meu caro irmão;
faço questão de ser sua madrinha; o senhor de St. Yves o levará
à pia; será uma brilhante cerimônia, de que se falará
em toda a Baixa Bretanha, o que nos trará grandes honras. Toda a companhia
secundou a dona da casa; todos os convivas gritavam:
— Nós o batizaremos!
O Ingênuo respondeu que na Inglaterra deixavam a gente viver como
bem quisesse. Deu a entender que a proposta não lhe agradava absolutamente,
e que a lei dos hurões valia pelo menos a lei dos baixo-bretões;
enfim, disse que iria embora no dia seguinte. Acabaram de esvaziar a sua garrafa
de água de Barbados e foram deitar-se.
Depois que o Ingênuo se recolheu ao quarto, a senhorita de Kerkabon
e sua amiga a senhorita de St. Yves não puderam deixar de espiar pelo
buraco da fechadura, para ver como dormia um hurão. Viram que havia
estendido a roupa do leito no soalho e que repousava na mais bela atitude
do mundo.
CAPÍTULO II
O hurão, chamado o Ingênuo, é reconhecido por seus
parentes.
O Ingênuo, segundo o seu costume, acordou com o sol, ao cantar do
galo, que é chamado na Inglaterra e na Hurônia a trombeta do
dia. Não era como a gente da alta., que enlanguesce num preguiçoso
leito, até que o sol haja feito metade do seu curso, que não
pode nem dormir nem levantar-se, que perde tantas horas preciosas nesse estado
intermediário entre a vida e a morte, e ainda se queixa de que a vida
é demasiado curta.
Já fizera duas ou três léguas, tendo abatido, a funda,
umas trinta peças de caça, quando, ao regressar, encontrou o
prior de Nossa Senhora da Montanha e sua discreta irmã, que passeavam
de touca de dormir pelo seu pequeno jardim. Apresentou-lhes a sua caça
e, tirando da camisa uma espécie de talismã que trazia sempre
ao pescoço, pediu-lhes que o aceitassem como agradecimento pela sua
boa recepção.
— É o que eu tenho de mais precioso – lhes disse ele.
Asseguraram-me que eu seria sempre feliz enquanto o usasse. E assim lhes faço
este presente, para que sejam sempre felizes.
O prior e sua irmã sorriram comovidos ante a simplicidade do Ingênuo.
O referido presente consistia em dois pequenos retratos muito mal feitos,
unidos por uma correia bastante sebenta
A senhorita de Kerkabon perguntou-lhe se havia pintores na Hurônia.
— Não – disse o Ingênuo, – esta raridade
me veio de parte de minha ama; o seu marido a adquirira por conquista, despojando
alguns franceses do Canadá que haviam travado batalha conosco. É
só o que eu sei.
O prior examinava atentamente aqueles retratos; mudou de cor, emocionou-se,
as mãos tremeram-lhe.
— Por Nossa Senhora da Montanha – exclamou ele, – creio
que é o meu irmão capitão e sua mulher.
A senhorita, depois de os haver examinado com igual emoção,
também achou o mesmo. Estavam ambos transidos de espanto e de uma alegria
mesclada de sofrimento; ambos se enterneciam; ambos choravam; palpitava-lhes
o coração; soltavam gritos; arrancavam um ao outro os retratos;
cada qual os tomava e devolvia vinte vezes por segundo devoravam com os olhos
os retratos e o hurão; perguntavam-lhe um após outro, e os dois
ao mesmo tempo, em que lugar, em que tempo, de que modo, tinham aquelas miniaturas
ido parar às mãos da sua ama; comparavam as datas; lembravam-se
de ter tido notícias do capitão até a sua chegada à
terra dos hurões; época em que mais nada souberam a seu respeito.
Dissera-lhes o Ingênuo que não conhecera nem pai nem mãe.
O prior, que era bom observador, notou que o Ingênuo tinha um pouco
de barba e sabia que os hurões não a têm. “Seu queixo
tem barba; o Ingênuo deve ser, portanto, filho de um europeu. Meu irmão
e a minha cunhada não mais apareceram depois da expedição
contra os hurões em 1669; meu sobrinho devia ser então criança
de peito; a ama huronesa lhe salvou a vida e serviu-lhe de mãe”.
Enfim, depois de cem perguntas e cem respostas, o prior e sua irmã
concluíram que o hurão era o seu próprio sobrinho. Beijavam-no
a chorar; e o Ingênuo ria, sem poder imaginar como é que um hurão
poderia ser sobrinho de um prior da Baixa Bretanha.
Acorreram todos; o senhor de St. Yves, que era grande fisionomista, comparou
os dois retratos com o rosto do Ingênuo; notou habilmente que ele tinha
os olhos da mãe, a testa e o nariz do falecido capitão de Kerkabon,
e as faces de ambos. A senhorita de St. Yves, que jamais vira o pai nem a
mãe, assegurou que o Ingênuo se lhes assemelhava perfeitamente.
Admiravam todos a Providência e o encadeamento dos sucessos deste mundo.
Estavam enfim tão persuadidos, tão convictos da origem do Ingênuo,
que ele próprio assentiu em ser sobrinho do senhor prior, dizendo que
gostaria tanto de o ter por tio como a qualquer outro.
Foram agradecer a Deus na igreja de Nossa Senhora da Montanha, enquanto
o hurão, com um ar indiferente, divertia-se em beber em casa.
Os ingleses que o tinham trazido, e que estavam prestes a zarpar, vieram
dizer-lhe que era tempo de partir.
— Pelo que vejo – lhes disse o hurão, – vocês
não encontraram os seus tios: eu fico por aqui; voltem para Plymouth;
dou-lhes de presente todos os meus trapos; não tenho necessidade de
mais nada no mundo, pois sou sobrinho de um prior.
Os ingleses velejaram, pouco se lhes dando que o hurão tivesse ou
não parentes na Baixa Bretanha.
Depois que o tio, a tia e todas as visitas cantaram o Te Deum; depois que
o bailio encheu o Ingênuo de novas perguntas; depois que esgotaram tudo
o que o espanto, a alegria e a ternura podem fazer dizer, o prior da Montanha
e o padre de St. Yves resolveram batizá-lo o mais depressa possível
Mas um hurão adulto de vinte e dois anos não estava no mesmo
caso de uma criança, a quem se regenera sem que esta fique sabendo
coisa alguma. Era preciso doutriná-lo, e isso parecia difícil;
pois o abade de St. Yves supunha que um homem que não nascera na França
não podia ter senso comum.
O prior observou à companhia que, se de fato o Ingênuo, seu
sobrinho, não tivera a ventura de nascer na Baixa Bretanha, nem por
isso deixava de ter espírito, o que se poderia avaliar por todas as
suas respostas, e que sem dúvida a natureza muito o favorecera, tanto
do lado paterno como do materno.
Perguntaram-lhe primeiro se ele já tinha lido algum livro. Respondeu
que lera Rabelais traduzido em inglês e alguns trechos de Shakespeare
que sabia de cor; que tinha encontrado esses livros com o capitão do
navio que o trouxera da América para Plymouth, e que muito lhe haviam
agradado. O bailio não deixou de interrogá-lo sobre os referidos
livros.
— Confesso – disse o Ingênuo – que julguei adivinhar
qualquer coisa, e não entendi o resto.
A estas palavras, o padre de St. Yves refletiu que era assim que ele próprio
sempre havia lido, e que a maioria dos homens não lia de outro modo.
— Com certeza já leu a Bíblia, não? – perguntou
ele ao Ingênuo.
— Absolutamente, senhor padre; não estava entre os livros do
meu capitão, nem nunca ouvi falar nisso.
— Eis como são esses malditos ingleses – gritava a senhorita
Kerkabon. – Farão mais caso de uma peça de Shakespeare,
de um plumpunding e de uma garrafa de rum do que do Pentateuco. É por
isso que jamais converteram ninguém na América. Certamente são
amaldiçoados de Deus; e dentro em pouco nós lhes tomaremos a
Jamaica e a Virgínia. Como quer que fosse, mandaram buscar o mais hábil
alfaiate de Saint-Malo para vestir o Ingênuo dos pés à
cabeça. O grupo separou-se; o bailio foi fazer suas perguntas noutra
parte. A senhorita de St. Yves, ao partir, voltou-se várias vezes,
a fim de olhar para o Ingênuo; e fez-lhe reverências mais profundas
do que nunca as fizera a ninguém em toda a vida.
Antes de partir, o bailio apresentou à senhorita de St. Yves um paspalhão
de filho que acabava de sair do colégio; ela, porém, mal lhe
dirigiu o olhar, tão preocupada estava com o hurão.
CAPÍTULO III
O hurão, chamado o Ingênuo, é convertido.
O senhor prior, vendo que envelhecia e que Deus lhe enviava um sobrinho
para seu consolo, considerou que poderia resignar-lhe o priorado se conseguisse
batizá-lo e fazê-lo tomar hábito.
O Ingênuo tinha excelente memória. A firmeza dos órgãos
bretão., fortificada pelo clima do Canadá, tornara-lhe a cabeça
tão vigorosa que, quando batiam nela, mal o sentia; e, tudo que lhe
gravavam dentro, nunca se apagava; jamais esquecera coisa alguma. E tanto
mais viva e nítida era a sua concepção, porquanto a sua
infância não fora sobrecarregada com as inutilidades e tolices
que acabrunham a nossa, de modo que as coisas penetravam num cérebro
sem nuvens. O prior resolveu enfim fazê-lo ler o Novo Testamento. O
Ingênuo devorou-o com grande prazer, mas, não sabendo em que
tempo nem em que local haviam acontecido as aventuras ali referidas, não
duvidou que o teatro dos acontecimentos fosse a Baixa Bretanha, e jurou que
cortaria o nariz e as orelhas a Caifás e a Pilatos, se algum dia encontrasse
esses marotos.
O tio, encantado com essas boas disposições, o esclareceu
em pouco tempo; louvou o seu zelo, mas fez-lhe ver que esse zelo era inútil,
visto que tais pessoas haviam morrido há cerca de mil seiscentos e
noventa anos. Em breve o Ingênuo sabia quase todo o livro de cor. Apresentava
algumas vezes objeções que deixavam o prior em grandes dificuldades,
obrigando-o a ir consultar o padre de St. Yves, o qual, não sabendo
o que responder, mandou chamar um jesuíta bretão para completar
a conversão do Ingênuo.
Enfim a graça operou; o Ingênuo prometeu fazer-se cristão;
e não teve a menor dúvida de que deveria começar por
ser circuncidado.
— Pois – dizia ele – não vejo no livro que me deram
a ler um único personagem que não o tenha sido; é, pois,
evidente que devo fazer o sacrifício do meu prepúcio: e quanto
mais cedo, melhor.
Não vacilou. Mandou chamar o cirurgião da aldeia e pediu-lhe
que lhe fizesse a operação, esperando alegrar infinitamente
a senhorita de Kerkabon e a toda a companhia, depois que o fato estivesse
consumado. O cirurgião, que nunca fizera a operação referida,
avisou a família, que bradou aos céus. A boa Kerkabon temeu
que seu sobrinho, que parecia resoluto e expedito, fizesse em si mesmo a operação
com desastrada imperícia, e disso resultassem tristes conseqüências
pelas quais as damas sempre se interessam por bondade de coração.
O prior retificou as idéias do hurão; fez-lhe ver que a circuncisão
não estava mais em moda, que o batismo era muito mais suave e salutar,
que a lei da graça não era como a lei da austeridade. O Ingênuo,
que tinha bastante bom-senso e retidão, discutiu, mas afinal reconheceu
o seu erro, coisa muito rara na Europa em gente que discute; prometeu enfim
submeter-se ao batismo quando bem quisessem.
Antes era preciso confessar-se, e ai estava a maior dificuldade. O Ingênuo,
que sempre trazia no bolso o livro que o tio lhe dera, não via ali
nenhum apóstolo que se houvesse jamais confessado, e isso o tornava
bastante rebelde. O prior fechou-lhe a boca, mostrando-lhe, na epístola
de S. Jaques o Moço, estas palavras que causam tanta espécie
aos heréticos: Confessei-vos uns aos outros. O hurão não
objetou mais nada e confessou-se a um recoleto. Terminada a confissão,
tirou o frade do confessionário, e, segurando vigorosamente o seu homem,
obrigou-o a pôr-se de joelhos, dizendo-lhe:
— Vamos, meu amigo. Está escrito: Confessai-vos uns aos outros.
Eu te contei os meus pecados; não sairá daqui sem que me hajas
contado os teus.
Assim falando, apoiava o joelho contra o peito da parte adversária.
O padre começa a soltar gritos que fazem reboar a igreja. Acodem ao
barulho, vêem o catecúmeno a esmurrar o monge em nome de S. Jaques
o Moço. Mas era tão grande a alegria de batizar um baixo-bretão
hurão e inglês, que passaram por alto essas singularidades. Houve
até muitos teólogos que pensaram não ser necessária
a confissão, visto que o batismo servia para tudo.
Combinaram a data com o bispo de Saint-Malo, que lisonjeado, como era de
esperar-se, por batizar um hurão, chegou em pomposa equipagem, acompanhado
da sua clerezia. A senhorita de St. Yves, bendizendo a Deus, pôs o seu
mais belo vestido e mandou chamar uma cabeleireira de St. Malo, para brilhar
na cerimônia. O inquiridor bailio acorreu com toda a província.
A igreja estava magnificamente paramentada; mas, quando chegou a hora de levar
o hurão para a pia batismal, nada de hurão.
O tio e a tia o procuraram por toda parte. Julgaram que estivesse a caçar,
segundo o seu costume. Todos os convidados percorreram os matos e aldeias
vizinhas: nem traços do hurão.
Começava-se a temer que tivesse ele voltado para a Inglaterra. Lembravam-se
de tê-lo ouvido dizer que gostava muito desse país. O prior e
a sua irmã achavam-se persuadidos de que ali não batizavam ninguém,
e tremiam pela alma do sobrinho. O bispo estava confuso e prestes a regressar;
o prior e o padre de St. Yves desesperavam-se. A senhorita de Kerkabon chorava;
a senhorita de St. Yves não chorava, mas lançava profundos suspiros
que pareciam testemunhar o seu gosto pelos sacramentos. Passeavam elas tristemente
ao longo dos salgueiros e caniços que marginam o ribeiro de Rance,
quando avistaram no meio da corrente um grande vulto branco com as mãos
cruzadas no peito. Soltaram um grito e desviaram-se. Mas a curiosidade venceu
logo qualquer outra consideração: puseram-se ambas a avançar
cautelosamente entre os caniços e, quando se asseguraram de que não
eram vistas, resolveram certificar-se do que se tratava.
CAPÍTULO IV
O Ingênuo batizado.
O prior e o abade, tendo acorrido, perguntaram ao Ingênuo o que estava
fazendo ali.
— Ora essa! Espero o batismo. Faz uma hora que estou dentro d’água.
E não é nada direito me deixarem aqui a gelar.
— Meu querido sobrinho – disse-lhe carinhosamente o prior, –
não é assim que se fazem batizados na Baixa Bretanha; veste
a tua roupa e vem conosco.
Ouvindo tais palavras, a senhorita de St. Yves disse baixinho à companheira:
— Será que ele já vai vestir-se?
O hurão, no entanto, retrucou ao prior:
— Agora o senhor não me convencerá como da outra vez;
desde então tenho estudado bastante e estou certo de que não
se batiza de outra maneira. O eunuco da rainha Candace foi batizado num rio:
desafio o senhor a que me mostre no livro que me deu se alguma vez se batizou
a não ser assim. Ou não serei batizado, ou serei batizado no
rio.
Não adiantou alegar que haviam mudado os costumes. O Ingênuo
era cabeçudo, pois era bretão e hurão. Voltava sempre
ao eunuco da rainha Candace. E, embora a senhorita sua tia e a senhorita de
St. Yves, que o tinham observado dentre os salgueiros, estivessem no direito
de dizer-lhe que não lhe competia citar semelhante homem, abstiveram-se
de qualquer interferência, tamanha era a sua discrição.
O próprio bispo veio falar-lhe, o que já era muito; mas não
adiantou: o hurão discutiu com o bispo.
— Mostre-me – lhe disse ele – no livro que o tio me deu,
um único homem que não se haja batizado no rio, e eu farei tudo
o que o senhor quiser.
A tia, desesperada, havia notado que o sobrinho fizera uma reverência
mais profunda à senhorita de St. Yves do que às outras pessoas,
e que nem ao senhor bispo saudara com aquele respeito mesclado de cordialidade
que testemunhara à formosa moça. A senhorita de Kerkabon tomou
o partido de dirigir-se a esta naquele grande embaraço; pediu-lhe que
usasse da sua influência para induzir o hurão a batizar-se à
maneira dos bretões, não acreditando que o seu sobrinho jamais
pudesse ser cristão se teimasse em ser batizado na água corrente.
A senhorita de St. Yves enrubesceu com o secreto prazer que sentia em ser
encarregada de tão importante missão. Aproximou-se modestamente
do Ingênuo e, apertando-lhe a mão com um nobre gesto, disse-lhe:
— Será que não fará nada por mim?
E, assim falando, baixava os olhos e erguia-os com enternecedora graça.
— Ah! farei tudo o que a senhorita quiser, tudo o que me ordenar:
batismo de água, batismo de fogo, batismo de sangue; não há
nada que eu possa recusar-lhe.
A senhorita de St. Yves teve a glória de conseguir com duas palavras
o que não haviam conseguido nem as solicitações do prior,
nem as sucessivas interrogações do bailio, nem as razões
do senhor arcebispo. Ela sentiu o seu triunfo; mas não lhe avaliava
ainda toda a extensão.
O batismo foi administrado e recebido com toda a decência, toda a
pompa, toda a distinção possível. O tio e a tia cederam
ao senhor padre de St. Yves e à sua irmã a honra de servir de
padrinhos ao Ingênuo. A senhorita de St. Yves radiava de alegria de
se ver madrinha. Não sabia ao que a sujeitava esse grande título;
aceitou a honra sem lhe conhecer as fatais conseqüências.
Como nunca houve cerimônia que não fosse seguida de um bródio,
sentaram-se à mesa ao sair do batismo. Os espirituosos da Baixa Bretanha
objetaram que o vinho não deveria ser batizado. O senhor prior dizia
que o vinho, segundo Salomão, alegra o coração do homem.
O senhor bispo acrescentava que o patriarca Juda amarrava o seu jumento à
vinha e mergulhava o manto no sangue da uva e que era uma triste coisa não
ser possível fazer o mesmo na Baixa Bretanha, a que Deus negara as
vinhas. Cada qual porfiava em dizer um gracejo sobre o batismo do Ingênuo
e dirigir galanteios à madrinha. O bailio, sempre interrogante, perguntava
ao hurão se este seria fiel às suas promessas.
— Como quer que eu falte às minhas promessas – disse
o hurão, – quando as fiz entre as mãos da senhorita de
St. Yves?
O hurão entusiasmou-se; bebeu à grande pela saúde da
madrinha.
— Se eu tivesse sido batizado por suas mãos – disse ele,
– a água fria que recebi sobre a nuca me teria queimado.
O bailio achou a frase muito poética; ignorava o quanto a alegoria
é corriqueira no Canadá. A madrinha, essa, sentiu-se extremamente
satisfeita.
— O Ingênuo recebera na pia batismal o nome de Hércules.
O bispo não cessava de perguntar quem era esse padroeiro de quem nunca
ouvira falar. O jesuíta, que era muito erudito, respondeu-lhe que se
tratava de um santo que, fizera doze milagres. Havia, na verdade, um décimo-terceiro
que valia os outros doze, mas não ficava bem a um jesuíta referi-lo:
era o de haver transformado cinqüenta donzelas em mulheres, numa única
noite. Um engraçado pôs-se a gabar entusiasticamente o referido
milagre. Todas as damas baixaram os olhos; e julgaram, pelo aspecto do Ingênuo,
que era este digno do santo de que trazia o nome.
CAPÍTULO V
O Ingênuo enamorado
Cumpre confessar que, depois daquele batizado e daquele banquete, a senhorita
de St. Yves começou a desejar ardentemente que o senhor bispo ainda
a fizesse participante de algum belo sacramento com o senhor Hércules
Ingênuo. No entanto, como era bem educada e muito recatada, não
ousava confessar a si mesma os seus ternos sentimentos; mas, se lhe escapava
um olhar, uma palavra, um gesto, um pensamento, envolvia tudo isso num véu
de pudor infinitamente amável Era terna, pressurosa, mas comedida.
Logo que o senhor bispo partiu, o Ingênuo e a senhorita de St. Yves
se encontraram sem dar tento que se procuravam. Falaram-se, sem imaginar o
que diriam. O Ingênuo lhe disse primeiro que a amava de todo o coração,
e que a bela Abacaba, por quem estivera louco na sua terra, não lhe
chegava aos pés. Respondeu-lhe a senhorita, com o seu ordinário
recato, que era preciso o quanto antes falar nisso ao senhor prior seu tio
e à senhorita sua tia, e que, da sua parte, ela iria dizer duas palavras
ao seu caro irmão, o padre de St. Yves, e que esperava um consentimento
geral.
O Ingênuo respondeu-lhe que não tinha necessidade do consentimento
de ninguém; que lhe parecia extremamente ridículo ir perguntar
a outros o que deviam fazer; que, quando dois estão de acordo, não
há necessidade de um terceiro para acomodá-los.
— Não consulto ninguém – alegou ele – quando
tenho vontade de comer, de caçar, ou de dormir. Bem sei que, em, amor,
é bom ter o consentimento da pessoa a quem se deseja: mas, como não
é nem do meu tio nem da minha tia que estou enamorado, não é
a eles que me devo dirigir neste assunto; e, quanto à, senhorita, poderá
muito bem dispensar o senhor padre de St. Yves.
A bela bretã, como é de imaginar, deve ter empregado toda
a delicadeza de seu espírito para limitar o hurão ao terreno
do decoro. Chegou até a agastar-se e logo se apaziguou. E não
se sabe como teria terminado tal conversação se, ao anoitecer,
o senhor abade não houvesse levado a irmã para a sua abadia.
O Ingênuo deixou que os tios se fossem deitar, pois estavam fatigados
da cerimônia e do longo banquete, e passou parte da noite a fazer versos
para a sua bem amada, em hurão: pois é sabido que não
há país no mundo em que o amor não torne poetas os namorados.
No dia seguinte, após o almoço, assim lhe falou o tio, em
presença da senhorita Kerkabon, que se achava toda comovida:
— Louvado seja Deus, meu querido sobrinho, por teres a honra de ser
cristão e bretão! Mas isso não basta; já estou
ficando velho; meu irmão apenas deixou um cantinho de terra que pouco
vale; tenho um bom priorado: se quiseres ao menos fazer-te subdiácono,
como o espero, resignarei meu priorado em teu favor, e viverás folgadamente,
depois de ter sido o consolo da minha velhice.
— Meu tio – respondeu-lhe o Ingênuo, – que bom proveito
lhe faça! Viva quanto puder. Quanto a mim, não sei o que é
subdiácono, nem o que quer dizer resignar; mas tudo me ficará
bem, desde que tenha a senhorita de St. Yves à minha disposição.
— Meu Deus, meu sobrinho! Que me dizes? Amas então loucamente
a essa linda senhorita?
— Sim, meu tio.
— Ai, meu sobrinho! É impossível casares com ela.
— Nada é mais possível, meu tio; pois ela, ao partir,
não só me apertou a mão significativamente, como prometeu
que me pediria em casamento; e sem dúvida nenhuma a desposarei.
—.Impossível, te digo eu; ela é tua madrinha; e é
um terrível pecado para uma madrinha apertar assim a mão do
afilhado; não é permitido casar com a própria madrinha;
a isto se opõem as leis divinas e as leis humanas.
— Hom’essa, meu tio! Deixe de brincadeira: por que há
de ser proibido casar com a madrinha, quando ela é moça e bonita?
Não vi no livro que o senhor me deu que não ficasse bem desposar
as moças que ajudam a gente a ser batizado. Todos os dias descubro
que fazem aqui uma infinidade de coisas que não estão no seu
livro, e que nada fazem de tudo o que ele diz. Confesso-lhe que isso me espanta
e aborrece. Se me privarem da bela St. Yves, sob pretexto de batismo, fique
o senhor avisado de que a tiro de casa e me desbatiso.
O prior ficou confuso; a irmã pôs-se a chorar.
— Meu caro irmão – disse ela, – o nosso sobrinho
não deve perder a alma; o nosso Santo Padre lhe poderá conceder
dispensa, e então ele poderá ser cristãmente feliz com
aquela a quem ama.
O Ingênuo beijou a tia.
— Quem é esse amável homem – disse ele ,- que
favorece tão bondosamente os amores dos jovens? Quero ir falar-lhe
imediatamente.
Explicaram-lhe o que era o Papa, e o Ingênuo ficou ainda mais espantado
do que antes:
— Não há uma palavra de tudo isso no seu livro, meu
estimado tio; tenho viajado, conheço o mar; estamos na costa do Oceano;
e eu vou deixar a senhorita de St. Yves para ir pedir permissão de
amá-la a um homem que mora além do Mediterrâneo, a quatrocentas
léguas daqui, e cuja língua desconheço?! Palavra, isso
é de um ridículo incompreensível. Vou é falar
imediatamente com o padre de St. Yves, que mora apenas a uma légua,
e garanto-lhe que desposarei hoje mesmo aquela a quem amo.
Estava ainda a falar quando entrou o bailio, o qual, segundo o seu costume,
lhe perguntou aonde ia.
— Vou casar-me – disse o Ingênuo, a correr. E dali a um
quarto de hora se achava ele em casa da sua bela e querida bretã, que
ainda estava dormindo.
— Ah, meu irmão – dizia a senhorita de Kerkabon ao prior,
– jamais farás um subdiácono do nosso sobrinho.
O bailio ficou descontentíssimo com tal viagem, pois pretendia casar
o seu filho com a St. Yves; e esse filho era ainda mais tolo e insuportável
que o pai.
CAPÍTULO VI
O Ingênuo chega à casa de sua amada e fica deveras furioso.
Logo que chegou, perguntara o Ingênuo a uma criada velha onde era
o quarto da sua querida, e, sem perda de tempo, empurrara fortemente a porta
mal fechada, correndo para o leito. Acordando-se em sobressalto, exclamara
a senhorita:
— Como?! És tu? Pára, pára! Que é que
estás fazendo? Estou casando contigo – respondera ele. E com
efeito a desposaria se ela não se houvesse debatido com toda a honestidade
de uma pessoa que recebeu educação.
O Ingênuo não queria saber de brincadeira; achava todas aquelas
gatimônias muito fora de propósito:
— Não era assim que fazia a senhorita Abacaba, a minha primeira
namorada; não tens nenhuma seriedade; prometeste-me casamento e não
queres casar: estás infringindo as leis mais elementares da honra;
hei de ensinar-te a manteres a tua palavra, e te porei no caminho da virtude.
O Ingênuo possuía uma virtude varonil e intrépida, digna
do seu padroeiro Hércules, cujo nome recebera na pia; ia exercê-la
em toda a sua extensão quando, aos lancinantes gritos da senhorita,
mais discretamente virtuosa, acudiu o honrado padre de St. Yves, com a sua
governante, um velho criado devoto e um padre da paróquia.
— Meu Deus, meu caro vizinho – lhe disse o abade, – que
vem a ser isso?
— É o meu dever – replicou o jovem. – Estou simplesmente
cumprindo a minha promessa, que é sagrada.
A senhorita de St. Yves recompôs-se, enrubescendo. Levaram o Ingênuo
para outro quarto. O abade censurou-lhe a monstruosidade do seu procedimento.
O Ingênuo defendeu-se, alegando os privilégios da lei natural,
que conhecia perfeitamente. O abade pôs-se a provar que a lei positiva
devia ter precedência e que, se não fossem as convenções
estabelecidas entre os homens, a lei da natureza seria quase sempre uma violação
natural.
— Fazem-se mister – disse ele – notários, padres,
testemunhas, contratos, dispensas.
— Respondeu-lhe o Ingênuo com a reflexão que sempre fizeram
os selvagens:
— Muito desonestos devem ser vocês, visto que é necessário
tomar tantas precauções.
Bastante trabalho teve o sacerdote em resolver tal dificuldade.
— Confesso – disse ele – que há muitos inconstantes
e velhacos entre nós, como haveria entre os hurões, se estes
estivessem reunidos em uma grande cidade; mas também há homens
sábios, honestos, esclarecidos, e foram estes que fizeram as leis.
Quanto mais honrado é um homem, mais deve submeter-se a elas; assim
se dá exemplo aos viciosos, que respeitam um freio que a virtude se
impôs a si mesma.
Tal resposta impressionou o Ingênuo. Já ficou dito que tinha
ele um espírito justo. Acalmaram-no com lisonjas; encheram-no de esperanças:
ciladas em que sempre caem os homens dos dois hemisférios; trouxeram
até, à sua presença, a senhorita de St Yves, depois que
esta fez convenientemente a sua toilette. Tudo se passou no maior decoro.
Mas, apesar de toda essa decência, os olhos flamejantes do Ingênuo
Hércules faziam baixar os da sua amada e tremer a assistência.
Tiveram imenso trabalho para o reconduzir a seus parentes. Ainda desta vez
foi preciso recorrer à influência da bela St. Yves; quanto mais
sentia esta o seu poder sobre ele, mais o amava. Obrigou-o a partir, com o
que ficou sinceramente aflita. Afinal, depois que ele se foi, o abade que,
além de irmão mais velho da senhorita de St. Yves, era também
seu tutor, tomou o partido de subtrair sua pupila às solicitudes daquele
terrível namorado. Foi aconselhar-se com o bailio, que, tendo sempre
em vista o casamento de seu filho com a irmã do abade, alvitrou que
se mandasse a pobre moça para um convento. Foi um golpe terrível:
uma indiferente que fosse metida num convento haveria de pôr-se aos
gritos; quanto mais uma enamorada, e tão apaixonada quanto honesta;
era mesmo de desesperar.
O Ingênuo, de volta ao priorado, contou tudo, o que acontecera com
a sua costumeira simplicidade. Recebeu as mesmas censuras, que lhe produziram
algum efeito no espírito e nenhum nos seus sentidos. Mas, no dia seguinte,
quando pretendeu voltar à casa de sua amada, para discutir com ela
sobre a lei natural e a lei convencional, disse-lhe o senhor bailio, com insultuosa
alegria, que a senhorita de St. Yves se achava num convento.
— Pois bem – disse ele, – irei discutir com ela nesse
convento.
— Impossível – disse o bailio. E longamente lhe explicou
que coisa era um convento; esclareceu que tal palavra vinha do latim conventus,
que significa assembléia; e o hurão não atinava por que
não poderia ser admitido numa assembléia. Ao saber que essa
assembléia era uma espécie de prisão onde mantinham encerradas
as moças – coisa horrível, desconhecida entre os hurões
e os ingleses, – ficou tão furioso como o seu padroeiro Hércules
quando Eurites, rei da Ecália, não menos cruel que o padre de
St. Yves, lhe recusou a linda Iola sua filha, não menos linda que a
irmã do padre. Queria incendiar o convento, roubar a namorada, ou morrer
com ela em meio às chamas.
A senhorita de Kerkabon, desesperada, renunciava mais do que nunca a todas
as esperanças de ver o seu sobrinho subdiácono, e dizia, a chorar,
que ele tinha o diabo no corpo depois que fora batizado.
CAPÍTULO VII
O Ingênuo repele os ingleses.
O Ingênuo, mergulhado em negra e profunda melancolia, foi passear
à beira mar, de fuzil às costas e facão à cinta,
atirando de tempos em tempos nalguns pássaros, e muita vez tentando
atirar em si mesmo; mas amava ainda a vida, por causa da senhorita de St.
Yves. Ora amaldiçoava o tio, a tia, e toda a Baixa Bretanha, e o seu
batismo; ora os abençoava, pois lhe haviam feito conhecer aquela a
quem amava. Tomava a resolução de ir incendiar o convento, e
subitamente desistia, por medo de queimar a sua amada. As ondas da Mancha
não são mais agitadas pelos ventos de leste a oeste do que o
era o seu coração por tantos movimentos contrários.
Marchava a grandes passadas, sem saber por onde, quando ouviu um rufar de
tambores. Viu ao longe uma multidão que corria metade para a margem
e metade fugia para o interior.
Mil gritos se elevavam de toda parte; a curiosidade e a coragem fazem-no
precipitar-se incontinenti para o local de onde partiam aqueles clamores;
em quatro saltos se aproxima.
O comandante da milícia, que ceara em casa do prior, logo o reconheceu;
corre a ele de braços abertos: “Ah! É o Ingênuo.
ele combaterá por nós”. E as milícias, que morriam
de medo, tranqüilizaram-se e gritaram também: “É
o Ingênuo! É o Ingênuo!”
— Senhores, de que se trata? Por que se acham todos tão desnorteados?
Meteram as suas noivas no convento?
Então cem vozes confusas exclamam:
— Não vês os ingleses que abordam?
— Bem – disse o Ingênuo, – são boa gente;
nunca pensaram em fazer-me subdiácono, nem me roubaram a noiva.
O comandante deu-lhe a entender que os ingleses vinham pilhar a abadia da
Montanha, beber o vinho de seu tio e talvez raptar a senhorita de St. Yves;
que o pequeno barco em que ele, Ingênuo, aportara na Bretanha, viera
apenas para fazer um reconhecimento; que os ingleses praticavam atos de hostilidade
sem haver declarado guerra ao rei de França, e que a província
se achava exposta.
— Ah! se é assim, eles violam a lei natural; deixem a coisa
comigo; morei muito tempo com os ingleses, conheço-lhes a língua
e vou falar com eles; não creio que possam ter tão más
intenções.
Durante essa conversação, a esquadra inglesa aproximava-se;
o nosso hurão toma um barco, vai a seu encontro, sobe à nau
capitânia, e pergunta se era verdade que eles vinham assolar o país
sem uma honesta declaração de guerra. O almirante e toda a sua
gente puseram-se a rir, serviram-lhe ponche e mandaram-no de volta.
O Ingênuo, espicaçado, só pensou em bater-se às
direitas contra os seus velhos amigos, por seus compatriotas e pelo senhor
prior. Os gentis-homens da vizinhança acorriam de toda parte; o Ingênuo
junta-se a eles; dispunham de alguns canhões; ele os carrega, os aponta,
os dispara um após outro. Os ingleses desembarcam; o Ingênuo
os acomete, mata uns três e fere o almirante que zombara dele. Sua coragem
anima toda a milícia, os ingleses reembarcam, toda a costa reboava
com os gritos de vitória: “Viva o Rei! Viva o Ingênuo!”
Todos o abraçam, todos se apressam em estancar-lhe o sangue de alguns
ferimentos leves que recebera. “Ah! – dizia ele, se a senhorita
de St. Yves estivesse aqui, me poria uma compressa”.
O bailio, que se escondera na sua adega durante o combate, veio cumprimentá-lo
como os outros. Mas muito se surpreendeu ao ouvir o Ingênuo dizer a
uma dúzia de homens de boa vontade que o cercavam: “Meus amigos,
não basta ter livrado a Abadia da Montanha; é preciso libertar
uma mulher”. Toda aquela vibrante mocidade prendeu fogo, a essas simples
palavras. Já o seguiam em multidão, já corriam para o
convento. Se o bailio não tivesse logo avisado o comandante, se não
tivessem corrido empós do alegre bando, estava tudo consumado. Trouxeram
o Ingênuo para a casa dos tios, que o inundaram de lágrimas de
ternura.
— Bem vejo que nunca serás nem subdiácono nem prior
– lhe disse o tio. – Serás um oficial ainda mais bravo
do que o meu irmão, e provavelmente tão necessitado quanto ele.
E a senhorita de Kerkabon continuava a abraçá-lo, a chorar e
a dizer:
— Ele vai expor-se à morte como o meu irmão; antes fosse
subdiácono!
O Ingênuo, durante o combate, apanhara uma gorda bolsa cheia de guinéus
que decerto o almirante deixara cair. E não tinha a menor dúvida
de que, com aquela bolsa, poderia comprar toda a Bretanha, e sobretudo fazer
da senhorita de St. Yves uma grande dama. Todos o exortaram a ir a Versalhes
receber o prêmio de seus serviços. O comandante e os primeiros
oficiais encheram-no de certificados. O tio e a tia aprovaram a viagem do
sobrinho. Ele devia ser, sem dificuldade, apresentado – ao rei: só
isso lhe daria uma prodigiosa importância na província. As duas
excelentes criaturas acrescentaram à bolsa inglesa um considerável
presente tirado das suas economias, O Ingênuo dizia consigo: “Quando
vir o Rei, vou pedir-lhe a senhorita de St. Yves em casamento, e ele não
mo negará”.
Partiu, pois, sob as aclamações de todo o cantão, afogado
de abraços, banhado pelas lágrimas da tia, abençoado
pelo tio, e recomendando-se à bela St. Yves.
CAPÍTULO VIII
O Ingênuo vai à Corte. Janta em caminho, com huguenotes.
O Ingênuo seguiu de coche pela estrada de Saumur, porque não
havia então outra comodidade. Chegado a esta cidade, espantou-se de
encontrá-la quase deserta e de ver várias famílias que
se mudavam. Disseram-lhe que Saumur, seis anos antes, continha mais de quinze
mil almas, e que agora não contava mais de seis mil. Não deixou
de falar nisso, à mesa da hospedaria. Vários protestantes ali
se achavam; Uns queixavam-se amargamente, outros fremiam de cólera,
outros choravam, dizendo: Nos dulcia linquimus arva, nos patriam fugimus.
O Ingênuo, que não sabia latim, pediu explicação
de tais palavras, que significam: Abandonamos as nossas suaves campanhas,
fugimos da nossa pátria.
— E por que fogem de sua pátria, senhores?
— É porque querem que reconheçamos o Papa.
— E por que não o reconhecem? Não têm, então,
madrinhas com quem desejam casar? Pois me disseram que é o Papa que
dá licença para isso.
— Ah! esse Papa diz que é senhor do domínio dos reis.
— Mas qual é a profissão dos senhores?
— Somos, na maioria, tecelões e fabricantes.
— Se o Papa alega que é senhor dos tecidos e das fábricas,
fazem muito bem em não reconhecê-lo; mas, quanto aos reis, isso
é com eles; por que se metem os senhores em tais assuntos?
Um homenzinho de preto tomou então a palavra e expôs habilmente
as queixas da companhia. Referiu-se com tanta energia à revogação
do édito de Nantes, deplorou de modo tão patético a sorte
de cinqüenta mil famílias fugitivas e de cinqüenta mil outras
convertidas pelos dragões, que o Ingênuo por sua vez desatou
em pranto.
— Como se explica então – dizia ele – que tão
grande rei, cuja glória se estende até os hurões, se
prive de tantos corações que poderiam amá-lo e de tantos
braços que poderiam servi-lo?
— É que o enganaram, como aos outros grandes reis. Convenceram-no
de que, logo que dissesse uma palavra, todos os homens pensariam como ele,
e que nos faria mudar de religião como o seu músico Lulli muda
em um instante os cenários de suas óperas. Não só
perde ele quinhentos a seiscentos mil súditos muito úteis, como
os faz inimigos seus; e o rei Guilherme, que é atualmente senhor da
Inglaterra, constituiu vários regimentos desses mesmos franceses que
poderiam combater por seu monarca. Tanto mais espantoso é esse desastre,
porquanto o Papa reinante, a quem Luís XIV sacrifica parte do povo,
é seu inimigo declarado. Vêm ambos mantendo, há nove anos,
uma querela violenta, a qual atingiu a tais extremos, que a França
pensou ver enfim quebrar-se o jugo que há tantos séculos a submete
a esse estrangeiro, e que, principalmente não lhe mandaria mais dinheiro,
o que é o primeiro móvel dos assuntos deste mundo. Parece, pois,
evidente que enganaram a esse grande rei no tocante aos seus interesses e
à extensão de seu poder, frustrando-lhe também a magnanimidade
do coração.
O Ingênuo, cada vez mais impressionado, perguntou quais eram os franceses
que assim enganavam um monarca tão caro aos hurões.
— São os jesuítas – responderam-lhe – e
principalmente o padre de La Chaise, confessor de Sua Majestade. Esperemos
que Deus os castigue um dia e que sejam caçados como agora nos caçam.
Haverá desgraça igual à nossa? De toda parte, Mons. de
Louvois nos envia jesuítas e dragões.
— Pois bem, senhores – replicou o Ingênuo, que não
mais podia conter-se, – eu vou a Versalhes receber a devida recompensa
a meus serviços; falarei a esse Mons. de Louvois; – disseram-me
que é ele que dirige a guerra, de seu gabinete. Vou falar com o Rei
e dar-lhe a conhecer a verdade; não há quem não termine
por se render a essa evidência. Em breve estarei de volta para desposar
a senhorita de St. Yves, e convido-os a todos para o casamento.
Aquela boa gente o tomou então por um grão-senhor que viajava
incógnito. Alguns pensavam que fosse o bobo do Rei.
Havia entre os convivas um jesuíta disfarçado que servia de
espião ao reverendo padre de La Chaise. Trazia-o a par de tudo, e o
padre de La Chaise remetia as informações a Monsenhor de Louvois.
O espião escreveu. O Ingênuo e a carta chegaram quase ao mesmo
tempo em Versalhes.
CAPÍTULO IX
Chegada do Ingênuo a Versalhes. Sua recepção.
O Ingênuo desceu no pátio das cozinhas reais. Pergunta aos
portadores da liteira a que horas pode falar com o Rei. Os portadores riem-lhe
na cara, como o fizera o almirante inglês. Ingênuo revidou como
a este último; bateu-lhes. Quiseram dar-lhe o troco. E ia haver uma
cena de sangue, quando passou um guarda do corpo, gentil-homem bretão,
que dispersou a canalha.
— O senhor me parece um homem às direitas – lhe disse
Ingênuo. – Sou sobrinho do prior de Nossa Senhora da Montanha;
matei ingleses, venho falar ao rei.
O guarda, encantado de encontrar um bravo da sua província que não
parecia a par dos usos da Corte, disse-lhe que não era assim que se
falava com o rei, e que era preciso ser apresentado a monsenhor de Louvois.
— Pois bem, leve-me então a esse monsenhor de Louvois, que
sem dúvida me conduzirá a sua Majestade.
— É ainda mais difícil – replicou o guarda –
falar a monsenhor de Louvois do que a Sua Majestade. Mas vou conduzi-lo ao
senhor Alexandre, primeiro oficial: é como falar ao ministro.
Vão pois a esse senhor Alexandre, e não podem ser admitidos;
estava ele em conferência com uma dama da corte e dera ordens para que
não deixassem entrar ninguém.
— Bem – disse o guarda, – ainda há remédio.
Vamos ao primeiro oficial do senhor Alexandre: é como falar ao próprio
senhor Alexandre.
O hurão, espantado, o acompanha; permanecem meia hora numa pequena
sala de espera.
— Que quer dizer isso? – exclamou o Ingênuo. – Será
que todos são invisíveis aqui? É mais fácil lutar
na Bretanha contra ingleses do que encontrar em Versalhes as pessoas com quem
se precisa falar.
Distraiu-se contando seus amores ao companheiro. Mas o guarda teve de ir
a seus deveres. Prometeram encontrar-se no dia seguinte; e o Ingênuo
ficou ainda outra meia hora na sala-de-espera, pensando na senhorita de St.
Yves e na dificuldade de falar aos reis e aos oficiais.
Afinal o oficial apareceu.
— Senhor – disse-lhe o Ingênuo, – se eu tivesse
esperado, para expulsar os ingleses, tanto tempo quanto me fez esperar por
minha audiência, eles agora estariam assolando à vontade toda
a Bretanha.
Tais palavras impressionaram o alto funcionário, que disse afinal
ao bretão:
— Que quer o senhor?
— Recompensa – respondeu o outro. – Eis aqui as minhas
credenciais.
E mostrou-lhe todos os certificados, O funcionário os leu e disse
que provavelmente lhe concederiam permissão para comprar um posto de
lugar-tenente.
— Como! Que eu dê dinheiro por haver rechaçado os ingleses?!
Que eu pague o direito de expor a vida pelo senhor, enquanto o amigo dá
tranqüilamente as suas audiências?! Deixe-se de gracejos. Quero
uma companhia de cavalaria gratuitamente. Quero que o Rei faça sair
a senhorita de St. Yves do convento e me conceda a sua mão. Quero falar
ao rei em favor de cinqüenta mil famílias que pretendo devolver-lhe.
Numa palavra, quero ser útil: que me empreguem e me promovam.
— E como se chama o senhor, que assim fala tão alto?
— Oh! Oh! – tornou o Ingênuo. – Não leu então
os meus certificados? É assim que tratam a gente? Chamo-me Hércules
de Kerkabon; sou batizado, paro no Quadrante Azul, e me queixarei do senhor
a Sua Majestade.
O funcionário concluiu, como o pessoal de Saumur, que o Ingênuo
não ia muito bem da cabeça, e não lhe deu maior atenção.
Naquele mesmo dia, o reverendo padre La Chaise, confessor de Luís XIV,
recebera a carta de seu espião que acusava Kerkabon de simpatizar com
os huguenotes e ser contrário à orientação dos
jesuítas. O senhor de Louvois, por seu lado, recebera uma carta do
interrogativo bailio, na qual o Ingênuo era apresentado como um valdevinos
que queria incendiar conventos e raptar donzelas.
Este, depois de passear pelos jardins de Versalhes, onde se aborreceu, depois
de haver jantado como um hurão e como bretão, deitara-se na
doce esperança de ver ao Rei no dia seguinte, de conseguir a mão
da senhorita de St. Yves, de obter ao menos uma companhia de cavalaria e fazer
cessar a perseguição contra os huguenotes. Embalava-se nesses
fagueiros pensamentos, quando a polícia lhe penetrou no quarto. Apoderaram-se
primeiro do seu fuzil de dois tiros e do seu grande sabre. Fizeram um inventário
do seu dinheiro de bolso, e levaram-no para o castelo que o rei Carlos V,
filho de João II, mandou construir nas proximidades da rua de Santo
Antônio, à porta das Tournelles.
Qual não foi o espanto do Ingênuo, é coisa que deixo
à vossa imaginação. Julgou, a princípio, que se
tratava apenas de um sonho. E permaneceu em uma espécie de modorra.
Depois, de súbito, acometido de um furor que lhe duplicava as forças,
pega pela garganta dois de seus condutores que estavam com ele no carro, lança-os
pela portinhola, atira-se por sua vez, arrastando o terceiro, que o queria
deter. Tomba com o esforço, amarram-no fortemente, levam-no de novo
para o veículo. “Eis – pensava ele – o que se ganha
em expulsar os ingleses! Que não dirias tu, minha bela St. Yves, se
me visses em tal estado?r“
Chegam enfim ao local de seu destino. Levam-no em silêncio para a
cela onde devia ser encerrado, como um morto que carregam para o cemitério.
A cela estava já ocupada por um velho solitário de Port-Royal,
chamado Gordon, que há dois anos ali definhava. “Olhe! –
disse a este o chefe dos esbirros. – Trago-lhe aqui um companheiro”.
E imediatamente baixaram os enormes ferrolhos da porta maciça, revestida
de largas barras. Os cativos ficaram separados do universo inteiro.
CAPÍTULO X
O Ingênuo encarcerado na Bastilha com um jansenista.
Gordon era um velhote bem conservado e sereno, que sabia duas grandes coisas:
suportar a adversidade e consolar os infelizes. Avançou com fisionomia
aberta e compassiva para o seu companheiro, e disse-lhe, abraçando-o:
— Quem quer que sejas tu que vens partilhar do meu túmulo,
fica certo de que sempre esquecerei a mim mesmo, para suavizar os teus tormentos
no abismo infernal em que estamos mergulhados. Adoremos a Providência
que para aqui nos trouxe, soframos em paz e esperemos.
Tais palavras causaram na alma do Ingênuo o efeito das Gotas da Inglaterra,
que chamam um moribundo à vida e o fazem entreabrir os olhos espantados.
Após os primeiros cumprimentos, Gordon, sem o apressar a dizer-lhe
a causa da sua desgraça, inspirou-lhe, pela brandura de suas palavras
e esse interesse que têm um pelo outro dois infelizes, o desejo de abrir
o coração e aliviar-se do fardo que o oprimia. Mas o Ingênuo
não podia adivinhar o motivo da sua prisão: aquilo lhe parecia
um efeito sem causa, e Gordon achava-se tão espantado quanto ele.
— É fora de dúvida – disse o jansenista ao hurão,
que Deus deve ter grandes desígnios a teu respeito, pois te conduziu
do lago Ontário à Inglaterra e à França, fez-te
batizar na Bretanha, encerrando-te depois aqui, para salvação
de tua alma.
— Palavra – retrucou o Ingênuo, – creio que foi
apenas o diabo que se meteu no meu destino. Meus compatriotas da América
jamais me tratariam com esta selvageria; eles não têm a mínima
idéia disto. Chamava-lhes selvagens; são, de fato, criaturas
bastante grosseiras, ao passo que os homens daqui são uns refinados
patifes. Sinto-me, na verdade, muito surpreso de ter vindo do outro mundo
para ser trancafiado neste, em companhia de um padre; mas penso no prodigioso
número de homens que partem de um hemisfério para serem mortos
no outro, ou que naufragam em caminho e são devorados pelos peixes:
não atino quais sejam os graciosos desígnios de Deus a respeito
de toda essa gente.
— Alcançaram-lhes comida por um postigo. A conversação
versou sobre a Providência, as cartas de prego, e sobre a arte de não
sucumbir às desgraças a que todo homem se vê exposto neste
mundo.
— Há dois anos que estou aqui – disse o velho, –
sem outra consolação a não ser eu próprio e alguns
livros; e até agora não tive um só momento de mau humor.
— Ah! o senhor não ama a sua madrinha, então! –
exclamou o Ingênuo. – Mas se conhecesse, como eu, a senhorita
de St. Yves, estaria no maior desespero.
A estas palavras, não pode conter as lágrimas, e sentiu-se
então um pouco menos opresso.
— Mas por que será que as lágrimas aliviam? –
observou ele. – Quer-me parecer que deveriam produzir efeito contrário.
— Meu filho, tudo em nós é de natureza física
– disse o bom do velho. – Toda secreção faz bem
ao corpo, e tudo o que o alivia alivia a alma; nós somos as máquinas
da Providência.
O Ingênuo que, como várias vezes o dissemos, tinha grande profundeza
de espírito, refletiu muito sobre essa idéia, cuja semente dir-se-ia
jazer-lhe na alma. Perguntou depois ao companheiro por que a sua máquina
se achava há dois anos aprisionada.
— É devido à graça eficaz – respondeu Gordon.
– Passo por jansenista: conheci Arnauld e Nicole; os jesuítas
nos perseguiram. Nós cremos que o Papa não é mais que
um vigário como qualquer outro, e foi por isso que o padre de La Chaise
obteve do rei, seu penitente, a ordem de me arrebatarem, sem nenhuma formalidade
legal, o mais precioso bem dos homens, a liberdade.
— Eis uma coisa bastante estranha – ponderou o Ingênuo;
– todos os infelizes que tenho encontrado só o são por
causa do Papa. E, quanto à sua graça eficaz, confesso que nada
entendo; mas considero uma grande graça que Deus me tenha feito encontrar,
na minha desventura, um homem como o senhor, que lança em minh’alma
consolação de que eu me julgava incapaz.
Cada dia a conversação se tornava mais interessante e instrutiva.
As almas dos dois cativos ligavam-se uma à outra. O velho sabia muito,
e o jovem muito desejava aprender. Dentro em um mês, estava estudando
geometria: devorava-a. Gordon lhe deu a ler a Física de Rohault, que
ainda estava em moda, e ele teve o bom senso de ali só encontrar incertezas.
Leu depois o primeiro volume da Pesquisa da Verdade. Essa nova luz esclareceu-lhe
multa coisa. “Como! – dizia ele. – A tal ponto nos enganam
os nossos sentidos e a nossa imaginação!? Então os objetos
não formam as nossas idéias e nem nós próprios
as podemos arquitetar!?” Depois de ler o segundo volume, já não
ficou tão satisfeito e concluiu que era mais fácil destruir
que edificar.
O padre, espantado de que um jovem ignorante fizesse uma reflexão
tão própria de almas experientes, teve em grande consideração
o seu espírito e mais se afeiçoou ao companheiro.
— Este seu Malebranche – disse-lhe um dia o Ingênuo –
me parece ter escrito a metade do livro com a razão, e a outra com
a sua imaginação e os seus preconceitos.
Alguns dias depois, perguntou-lhe Gordon:
— Que pensas então da alma, da maneira como recebemos as nossas
idéias, da nossa vontade, da graça, do livre arbítrio?
— Nada – respondeu o Ingênuo. – Se alguma cousa
penso é que estamos sob o poder do Ser Eterno, como os astros e os
elementos, que Ele faz tudo em nós, pequenas engrenagens que somos
na imensa máquina de que Ele é a alma; que Ele exerce a sua
ação por leis gerais e não com objetivos particulares;
só isto me parece inteligível, o resto é para mim um
abismo de trevas.
— Mas, meu filho, isso seria fazer de Deus autor do pecado.
— No entanto, meu padre, a sua graça eficaz também faria
de Deus autor do pecado: pois é certo que todos aqueles a quem a sua
graça seria recusada pecariam; e quem nos abandona ao mal não
é autor do nosso mal?
Tal simplicidade embaraçava o bom do velho; ele próprio sentia
os seus vãos esforços para safar-se do atoleiro e acumulava
tantas palavras que pareciam ter sentido e não o tinham (no gênero
da premonição física, por exemplo) que o Ingênuo
chegava a sentir piedade. Tal questão evidentemente se ligava à
origem do bem e do mal; e o pobre Gordon punha-se então a passar em
revista o cofre de Pandora, o ovo de Orosmade furado por Arimânio, a
inimizade entre Tífon e Osiris, e enfim o pecado original; e ambos
corriam nessa noite profunda, sem jamais se encontrarem um ao outro. Mas afinal
aquele romance da alma lhes desviava o espírito da contemplação
da sua própria miséria; e, por um estranho encantamento, a multidão
das calamidades esparsas no universo diminuía a sensação
das suas penas: não ousavam queixar-se quando tudo sofria.
Mas, no descanso da noite, a imagem da bela St. Yves apagava no espírito
de seu enamorado todas as idéias de metafísica e de moral. Ele
acordava com os olhos úmidos de lágrimas. E o velho jansenista
esquecia a sua graça eficaz e o abade de Saint Cyran e Jansenius, para
consolar um jovem a quem supunha em pecado mortal.
Depois de lerem, de discutirem, tornavam a falar de suas aventuras; e depois
de terem falado inutilmente sobre elas, punham-se a ler juntos ou separadamente.
Cada vez mais se fortalecia o espírito do jovem. E iria muito longe
em matemática, se não fossem as distrações que
lhe causava a senhorita de St Yves.
Leu livros de História, que o entristeceram. O mundo lhe pareceu
demasiado mau e demasiado miserável. A História, com efeito,
não é mais que o quadro dos crimes e das desgraças. A
multidão de homens inocentes e pacíficos sempre se apaga nesse
vasto cenário. Os principais papéis estão com os ambiciosos
e os perversos. Parece que a História .só agrada como nos agrada
a tragédia, que aborrece quando não é animada pelas paixões,
os crimes, e os grandes infortúnios. E preciso armar a Clio de um punhal,
como Melpômene.
Embora seja a história da França tão cheia de horrores
como todas as outras, pareceu-lhe, no entanto, tão enfadonha no princípio,
tão seca no meio, tão pequena enfim, mesmo no tempo de Henrique
IV, tão desprovida sempre de grandes momentos, tão estranha
a essas belas descobertas que ilustraram outras nações, que
se via obrigado a lutar contra o tédio para ler todos aqueles detalhes
de obscuras calamidades delimitadas num canto do mundo.
Gordon pensava como ele. Riam ambos de piedade ante aqueles soberanos de
Fezensac, de Fezensaguet e de Astarac. Tal estudo, enfim, só aproveitaria
aos herdeiros destes, se os tivessem. Os belos séculos da república
romana deixaram-no por algum tempo indiferente ao resto da terra. O espetáculo
da Roma vitoriosa e legisladora das nações ocupava-lhe a alma
inteira. Arrebatava-se ao contemplar aquele povo que foi governado setecentos
anos pelo entusiasmo da liberdade e da glória.
Assim se passavam os dias, as semanas, os meses; e ele até se julgaria
feliz na morada do desespero, se não amasse.
Sua bondosa alma enternecia-se à lembrança do prior e da sensível
Kerkabon. “Que pensarão eles – repetia seguidamente, –
sem notícias minhas? Hão de julgar-me um ingrato”. Esse
pensamento atormentava-o; lamentava aqueles que o amavam, muito mais do que
a si mesmo.
CAPÍTULO XI
Como o Ingênuo desenvolve o seu espírito.
A leitura eleva a alma, e um amigo esclarecido a consola. O nosso cativo
gozava dessas duas vantagens que antes não havia suspeitado. “Sinto-me
tentado – disse ele – a crer nas metamorfoses, pois fui transformado
de bruto em homem”. Formou uma biblioteca escolhida, com parte de seu
dinheiro de que lhe permitiam dispor. O amigo o induziu a deitar por escrito
as suas reflexões. Eis o que escreveu sobre a história antiga:
“Imagino que as nações foram por muito tempo como eu:
só se instruíram muito tarde e, durante séculos, só
se ocuparam do momento presente, muito pouco do passado, e jamais do futuro.
Percorri quinhentas ou seiscentas léguas do Canadá, sem encontrar
um único monumento; ninguém, por lá, sabe o que fez seu
bisavô. Não será esse o estado natural do homem? A espécie
que habita este continente parece-me superior à do outro. Há
séculos vem ela ampliando o seu espírito, por intermédio
das artes e dos conhecimentos. Será porque têm eles barba no
queixo e Deus a recusou aos americanos? Não o creio, pois vejo que
os chineses quase não têm barba e cultivam as artes há
mais de cinco mil anos. E, se possuem quarenta séculos de anais,- é
forçoso que a nação já estivesse unida e florescente
há cinqüenta mil anos.
O que principalmente me impressiona na história antiga da China,
é que tudo nela é verossímil e natural. O que mais me
admira é que nada tenha de maravilhoso.
Por que será que todas as nações se atribuíram
origens fabulosas? Os antigos cronistas da história de França,
que não são antigos, fazem provir os franceses de um Francus,
filho de Heitor. Diziam-se os romanos descendentes de um frígio, embora
não houvesse na sua língua uma única palavra que tivesse
a mais remota. relação com a língua frígia. Os
deuses haviam habitado dez mil anos no Egito e os diabos na Cítia,
onde haviam engendrado os hurões. Antes de Tucidides, não vejo
senão romanos semelhantes aos Amadis, e muito menos divertidos. São,
por toda parte, aparições, oráculos, prodígios,
sortilégios, metamorfoses, sonhos interpretados, e que ditam o destino
dos maiores Impérios e dos menores Estados: aqui animais que falam,
ali animais que são adorados, deuses transformados em homens e homens
transformados em deuses. Ah! se é necessário que haja fábulas,
que estas pelo menos sejam o emblema da verdade Amo as fábulas dos
filósofos, rio com as das crianças, odeio a dos impostores”.
Veio-lhe um dia às mãos uma história do imperador Justiniano.
Lia-se ali que os apedeutas de Constantinopla haviam baixado, em péssimo
grego, um édito contra o maior capitão do século, porque
este herói pronunciara as seguintes palavras, no calor da discussão:
A verdade brilha com a sua própria luz, e não se alumiam os
espíritos com as chamas das fogueiras. Asseveraram os apedeutas que
tal proposição era herética, ou cheirava a heresia, e
que o axioma contrário era católico, universal e grego: Só
se alumiam os espíritos com a chama das fogueiras, e a verdade não
pode brilhar com luz própria. Assim, condenaram os referidos linóstolos
várias frases do capitão, e baixaram um édito.
— Como! – exclamou o Ingênuo. – Essa gente a baixar
éditos?!
— Não eram éditos – replicou Gordon, – eram
contraéditos, de que todo o mundo ria em Constantinopla, a começar
pelo imperador: era este um sábio príncipe que soubera reduzir
os apedeutas linóstolos a mão fazerem senão o bem. Sabia
que esses senhores e vários outros pastóforos haviam esgotado
a paciência de seus predecessores, à força de contraéditos,
em matéria mais grave.
— Fez muito bem – disse o Ingênuo. – Cumpre apoiar
os pastóforon e contê-los.
Pôs por escrito muitas – outras reflexões que espantaram
o velho Gordon. “Consumi cinqüenta anos em instruir-me –
dizia ele consigo – e teimo não poder atingir o natural bom senso
deste menino quase selvagem! Parece-me que apenas consegui fortalecer laboriosamente
os preconceitos, ao passo que ele só escuta a simples natureza”.
Tinha ele alguns desses opúsculos de crítica, dessas brochuras
periódicas onde homens incapazes de produzir o quer que seja denigrem
as produções dos outros, onde os Visé insultam os Racine,
e os Faydit os Fénelon. O Ingênuo percorreu alguns desses livrecos.
“Comparo-os – dizia ele – a certas moscas que vão
desovar no traseiro dos mais belos cavalos: isso não os impede de correrem”.
Os dois filósofos mal se dignaram a lançar os olhos sobre esses
excrementos da literatura.
Leram juntos os elementos da astronomia; o Ingênuo mandou buscar esferas:
aquele grande espetáculo o transportava. Como é duro –
dizia ele – só começar a conhecer o céu depois
que me arrebataram o direito de o contemplar! Júpiter e Saturno rolam
nesses espaços imensos; milhões de sois iluminam miríades
de mundos; e, na porção de terra onde fui lançado, existem
seres que me privam, a mim, ser vidente e pensante, de todos esses mundos
que a minha vista poderia atingir, e daquele onde Deus me fez nascer! A luz
feita para todo o universo está perdida para mim. Não ma ocultavam
no horizonte setentrional onde passei a infância e a juventude. Sem
ti, meu querido Gordon, eu estaria aqui no vácuo.
CAPÍTULO XII
O que pensa o Ingênuo das peças de teatro.
Assemelhava-se o Ingênuo a uma dessas árvores vigorosas que,
nascidas num solo ingrato, distendem em pouco tempo az raízes e os
ramos quando transportadas para terreno favorável; e era bastante estranho
que esse terreno fosse uma prisão.
Entre os livros que ocupavam os lazeres dos dois cativos, havia poesias,
traduções de tragédias gregas, e algumas peças
do teatro francês. Os versos que falavam de amor encheram, ao mesmo
tempo, a alma do Ingênuo, de prazer e sofrimento.
Todos lhe falavam da sua querida St. Yves. À fábula dos Dois
Pombos cortou-lhe o coração: bem longe estava ele de poder regressar
a seu pombal.
Moliere encantou-o. Fazia-lhe conhecer os costumes de Paris e do gênero
humano.
— Qual das suas comédias preferes?
— O Tartufo, sem dúvida alguma.
— Penso o mesmo – disse Gordon. – Foi um tartufo quem
me meteu neste calabouço e talvez sejam uns tartufos os que te desgraçaram.
— E que achas dessas tragédias gregas?
— Boas para os gregos – respondeu o Ingênuo.
Mas quando leu a Ifigênia moderna, Pedra, Andrômaca, Atalia,
ficou num verdadeiro êxtase, suspirou, chorou, decorava-as sem querer.
— Lê Rodogune – recomendou-lhe Gordon. – Dizem que
é a obra-prima do teatro; as outras peças, que tanto prazer
te causaram, nada são comparadas com ela.
O jovem, logo à primeira página, lhe disse:
— Isto não é do mesmo autor.
— Como o descobriste?
— Ainda não sei. Mas estes versos não me tocam nem o
ouvido nem o coração.
— Oh! os versos não importam – observou Gordon.
— Para que então fazê-los? – retrucou o Ingênuo.
Depois de ter lido atentamente a peça, sem outro fim que o de sentir
prazer, fitava o amigo com os olhos secos e espantados, sem saber o que dissesse.
Mas, instado a dizer o que experimentara, assim respondeu:
— Do começo, nada entendo; o meio deixou-me revoltado; a última
cena comoveu-me, embora me parecesse pouco verossímil; não me
interessei por ninguém e não retive nem vinte versos, eu que
os retenho todos, quando me agradam.
E no entanto, esta peça é considerada a melhor que nós
possuímos.
— Se assim é – replicou ele, – talvez seja como
muitas pessoas que não merecem o seu lugar. Afinal de contas, é
uma questão de gosto; com certeza o meu ainda não está
formado; pode ser que me engane; mas bem sabes que costumo dizer o que penso,
ou antes, o que sinto. Nos juízos dos homens, há muito de ilusão,
de moda, ou de capricho, creio eu. Falei segundo a natureza: pode ser que
em mim a natureza se mostre muito imperfeita; mas também pode ser que
ela seja às vezes pouco consultada pela maioria dos homens.
Pôs-se então a recitar versos de Ifigênia e, embora não
declamasse bem, emprestou-lhe tanta verdade e unção, que fez
chorar o velho jansenista. Em seguida leu Cinna: não chorou, mas admirou.
CAPÍTULO XIII
A bela St. Yves vai a Versalhes.
Enquanto o nosso desgraçado mais se esclarecia do que se consolava;
enquanto o seu gênio, por tanto tempo abafado, se desenvolvia com tamanha
rapidez e força; enquanto a natureza, que nele se aperfeiçoava,
o vingava dos ultrajes da fortuna, que faziam o senhor prior e a sua boa irmã,
e a bela reclusa St. Yves? No primeiro mês, inquietaram-se, e no terceiro
estavam mergulhados no desespero: alarmavam-nos falsas conjeturas e rumores
sem fundamento; ao cabo de seis meses, estavam convencidos da morte do Ingênuo.
Afinal, por uma velha carta de um guarda real, o senhor e a senhorita de Kerkabon
vieram a saber que um jovem parecido com o Ingênuo chegara uma tarde
a Versalhes, mas fora detido à noite, e desde então ninguém
mais ouvira falar nele.
— Ai! – suspirou a senhorita Kerkabon, – vai ver que o
nosso sobrinho fez alguma tolice e está pagando por isso! É
jovem, é bretão, não pode saber como se comportar na.
Corte. Meu querido irmão, não conheço Versalhes nem Paris;
eis uma bela ocasião, e talvez encontremos o nosso pobre sobrinho;
é filho do nosso irmão, e o nosso dever é socorrê-lo.
Quem sabe se não poderemos afinal fazê-lo subdiácono,
depois que se houver apaziguado o ardor da juventude? Tinha bastante inclinação
para as ciências. Não te lembras como ele discorria sobre o Velho
e o Novo Testamento? Somos responsáveis por sua alma; fomos nós
que o batizamos; e a sua querida St. Yves passa o dia a chorá-lo. Na
verdade, temos de ir a Paris. Se ele está escondido nalguma dessas
casas alegres de que tanto me falaram, de lá o tiraremos.
O prior comoveu-se com as palavras da irmã. Foi falar com o bispo
de Saint-Malo, que batizara o hurão, e pediu-lhe proteção
e conselho. O prelado aprovou a viagem. Deu-lhe cartas de recomendação
para o padre de La Chaise, confessor do rei, que era a mais alta dignidade
do reino, para o arcebispo de Paris, Harlay, e para o bispo de Meaux, Bossuet.
Afinal os dois irmãos partiram; mas, chegados em Paris, viram-se
perdidos como num vasto labirinto. Suas posses eram medíocres; todos
os dias necessitavam de carros para sair à descoberta, e não
descobriam coisa alguma.
O prior foi apresentar-se ao reverendo padre de La Chaise: achava-se este
com a senhorita Du Thron, e não podia dar audiência a priores.
Foi bater à porta do arcebispo; achava-se este encerrado com a bela
senhora le Lesdiguières, tratando de assuntos da Igreja. Correu à
casa de campo do bispo de Meaux: este examinava, com a senhorita de Mauléon,
o amor místico da senhora Guyon.
No entanto, chegou a fazer-se ouvir pelos dois últimos prelados,
que lhe declararam nada poderem fazer pelo seu sobrinho, visto não
ser este subdiácono.
Até que conseguiu avistar-se com o jesuíta: este o recebeu
de braços abertos, protestando que sempre lhe dedicara particular estima,
embora jamais o tivesse visto. Jurou que a Sociedade dos Jesuítas sempre
fora muito ligada aos bretões.
— Mas – acrescentou ele, – será. que o seu sobrinho
não tem a desgraça de ser huguenote?
— Certamente que não, Reverendo Padre.
— E não será jansenista?
— Posso assegurar a Vossa Reverendíssima que é cristão
recente. Faz uns onze meses que o batizamos.
— Muito bem, muito bem, nós nos ocuparemos dele. E os seus
honorários, senhor prior, são consideráveis?
— Oh, pouca coisa! E o meu sobrinho me sai muito caro.
— E há alguns jansenistas pela vizinhança? Tome cuidado,
meu caro prior, eles são mais perigosos que os huguenotes e os ateus.
— Não há nenhum, Reverendo. Nem se sabe o que é
jansenismo em Nossa Senhora da Montanha.
— Tanto melhor; pode ir, e esteja certo de que não há
nada que eu não faça pelo senhor.
Despediu afetuosamente o prior e não pensou mais no caso.
Corria o tempo, e o prior e a boa irmã se desesperavam.
Entrementes, o maldito bailio apressava o casamento do palerma do filho
com a bela St. Yves, que tinham feito sair expressamente do convento. Continuava
a amar o seu afilhado tanto quanto detestava o marido que lhe ofereciam. A
afronta de ter sido recolhida a um convento aumentava a sua paixão,
que a ordem de desposar o filho do bailio elevava ao cúmulo. O pesar,
a ternura e o horror lhe abalavam a alma, O amor, como se sabe, é muito
mais engenhoso e ousado em uma donzela do que a amizade em um velho prior
e uma tia passante dos quarenta e cinco. De resto, formara o espírito
no convento, com os romances que lera às escondidas.
A bela St. Yves lembrava-se da carta que um guarda escrevera para a Baixa-Bretanha
e da qual muito se havia falado. Resolveu ir pessoalmente obter informações
em Versalhes, lançar-se aos pés dos ministros se o Ingênuo
estivesse preso, como lhe diziam, e alcançar justiça para ele,
Não sei que secreto sentimento a advertia de que na Corte não
se recusa nada a uma bela moça. Não sabia, porém, o que
isso custava.
Tomada essa resolução, ela se mostra conformada, tranqüiliza-se,
não mais evita o lorpa do noivo; acolhe o detestável sogro,
acaricia o irmão, espalha alegria pela casa; depois, no dia destinado
à cerimônia, parte secretamente às quatro da madrugada
com os seus presentes de núpcias e tudo o que pode juntar. Tão
bem tomara as suas providências, que estava já a dez léguas
quando entraram no seu quarto, por volta do meio dia. Imagine-se qual não
foi a surpresa e consternação! O interrogativo bailio fez naquele
dia mais perguntas do que em toda a semana; o noivo ficou mais tolo do que
nunca. O abade de St. Yves, encolerizado, tomou a resolução
de partir em busca da irmã. O bailio e o filho decidiram acompanhá-lo.
Destarte conduzia o Destino a Paris quase todo aquele cantão da Bretanha.
Bem desconfiava a bela St. Yves de que a estavam seguindo; informava-se
discretamente com os correios se não haviam encontrado um gordo abade,
um enorme. bailio e um jovem palerma, a caminho de Paris Tendo sabido, no
terceiro dia, que estes não se achavam longe, tomou um caminho diferente,
tendo a habilidade e a sorte de chegar em Versalhes enquanto a procuravam
inutilmente em Paris.
Mas como conduzir-se em Versalhes? Jovem, bela, sem conselho, sem apoio,
desconhecida, exposta a tudo, como atrever-se a procurar um guarda do rei?
Pensou em dirigir-se a um jesuíta de baixa categoria; havia-os para
todas as condições da vida, tal como Deus, diziam eles, dera
diferentes alimentos às diversas espécies de animais. Dera ao
rei o seu confessor, a quem todos os solicitadores de benefícios chamavam
o chefe da igreja galicana; em seguida vinham os confessores das princesas;
os ministros não os tinham: não eram tolos para isso. Havia
os jesuítas do vulgo, e principalmente os jesuítas das criadas
de quarto, pelas quais se sabiam os segredos das patroas, e que não
era pequeno cargo. A bela St. Yves dirigiu-se a um destes últimos,
que se chamava o padre Tout-à-tous. Confessou-se a ele, expôs-lhe
suas aventuras, seu estado, seu perigo, conjurando-o a alojá-la em
casa de alguma boa devota, que a pusesse a abrigo das tentações.
O padre Tout-à-tous a acomodou na casa da mulher de um oficial da
copa, uma das suas mais fiéis penitentes. Logo de chegada, apressou-se
em ganhar a confiança e amizade dessa mulher; informou-se acerca do
guarda bretão, a quem mandou chamar. Tendo sabido por ele que o seu
amado fora preso depois de falar com um primeiro secretário, dirigiu-se
à casa deste: a vista de uma bela mulher o abrandou, pois cumpre confessar
que Deus só criou as mulheres para domesticarem os homens.
O funcionário, enternecido, confessou-lhe tudo.
— O seu enamorado está na Bastilha há cerca de um ano,
e, se não fosse a senhorita, ele talvez ficasse por lá toda
a vida.
A sensível St. Yves desmaiou. Quando voltou a si, disse-lhe o funcionário:
— Não tenho atribuições para fazer o bem. Todo
o meu poder se limita a fazer o mal algumas vezes. Vá ter com o senhor
de Saint Pouange, que faz o bem e o mal, e é primo e favorito de monsenhor
de Louvois. Esse ministro tem duas almas: o senhor de St. Pouange é
uma delas; a senhora Du Beloy, a outra; mas esta não se acha agora
em Versalhes; só lhe resta o protetor que lhe indico.
A bela St. Yves, dividida entre um pouco de alegria e pesares extremos,
entre algumas esperanças e tristes receios, perseguida pelo irmão,
sempre adorando o seu amado, enxugando as lágrimas e vertendo-as de
novo, trêmula, desencorajada e dali a pouco cheia de ânimo, assim
correu a falar com o senhor de St. Pouange.
CAPÍTULO XIV
Progressos do espírito do Ingênuo
O Ingênuo fazia rápidos progressos nas ciências, e sobretudo
na ciência do homem. Esse rápido desenvolvimento de seu espírito
era devido quase tanto à sua educação selvagem como à
têmpera de sua alma. Pois, nada tendo aprendido na infância, não
aprendera preconceitos. E seu entendimento, não tendo sido curvado
pelo erro, permanecera em toda a sua retidão. Via as coisas como são,
ao passo que as idéias que nos inculcam na infância fazem com
que as vejamos, durante toda a vida, como não são.
— Teus perseguidores são abomináveis – dizia ele
a seu amigo Gordon. – Lamento que te oprimam, mas também lamento
que sejas jansenista. Toda seita me parece uma condição de erro.
Há, por acaso, seitas em geometria?
— Não, meu filho – disse-lhe, suspirando, o bom Gordon;
– todos os homens estão de acordo sobre a verdade quando ela
é demonstrada, mas acham-se muito divididos quanto às verdades
obscuras.
Seria melhor dizer “as falsidades obscuras” Se houvesse uma
única verdade oculta nesse montão de argumentos que se repisam
há tantos séculos, sem dúvida a teriam descoberto; e,
ao menos nesse ponto, o universo estaria de acordo. Se essa verdade fosse
necessária como o sol o é à terra, seria brilhante como
ele. É um absurdo, é um ultraje ao gênero humano, é
um atentado contra o Ser Infinito e Supremo dizer: “Há uma verdade
essencial ao homem, e Deus a ocultou”. Tudo o que dizia o jovem ignorante,
instruído pela natureza, causava profunda impressão no espírito
do velho sábio infortunado.
Será mesmo verdade – exclamou ele – que eu me haja desgraçado
por causa de quimeras? Tenho muito mais certeza do meu infortúnio do
que da graça eficaz. Consumi meus dias a raciocinar sobre a liberdade
de Deus e do gênero humano, e perdi a minha; nem Santo Agostinho nem
S. Próspero me tirarão do abismo onde estou.
O Ingênuo, entregue a seu gênio, disse enfim:
—.Queres que eu te fale com ousada confiança? Os que se deixam
perseguir por essas vis disputas escolásticas me parecem pouco sensatos;
os que os perseguem me parecem monstros.
Os cativos estavam ambos de acordo sobre a injustiça de seu cativeiro.
—.Sou mil vezes mais digno de lástima – dizia o Ingênuo.
– Nasci livre como o ar; tinha duas vidas, a liberdade e o objeto do
meu amor: e ambas me são tiradas. Eis-nos os dois a ferros, sem saber
o motivo e sem poder perguntá-lo. Vinte anos vivi como os hurões;
dizem que são bárbaros porque se vinguem de seus inimigos mas
jamais oprimiram os seus amigos. Mal pus os pés em França, verti
meu sangue por ela; salvei talvez uma província e, como recompensa,
fui metido neste túmulo de vivos, onde teria morrido de desespero,
se não fosses tu. Então não há leis neste país?!
Condenam os homens sem ouvi-los?! Na Inglaterra não é assim.
Ah! não era contra os ingleses que eu deveria bater-me!
Assim a nascente filosofia era incapaz de dominar a natureza ultrajada no
primeiro dos seus direitos, deixando livre curso à sua justa cólera.
Seu companheiro não o contradisse. A ausência sempre aumenta
o amor que não é satisfeito, e a filosofia não o diminui.
Seguidamente falava ele da sua querida St. Yves, tanto quanto de moral e metafísica.
Quanto mais se depuravam seus sentimentos, mais ele amava. Leu alguns novos
romances; poucos achou que lhe pintassem o seu estado d’alma. Sentia
que o seu coração ia sempre além do que lia. “Ah!
– dizia ele. – Quase todos esses autores apenas têm espírito
e arte.”
E o bom do padre jansenista insensivelmente se ia tornando confidente do
seu amor. Antes, só conhecia o amor como um pecado de que a gente se
acusa em confissão. Aprendeu a conhecê-lo como um sentimento
tão nobre quão delicado, que pode elevar a alma tanto quanto
enlanguescê-la e que, algumas vezes, até produz virtudes.
Enfim, para derradeiro prodígio, um hurão convertia um jansenista.
CAPÍTULO XV
A bela St. Yves resiste a propostas delicadas.
A bela St. Yves, mais apaixonada ainda que o seu namorado, foi ter com o
senhor de St. Pouange, em companhia da amiga que a hospedava, ambas ocultas
nos seus chales. A primeira pessoa que viu à porta foi o abade de St.
Yves, seu irmão, que se retirava. Assustou-se, mas a devota amiga tranqüilizou-a.
— Exatamente porque falaram contra ti é que é preciso
que fales. Fica certa de que neste país os acusadores têm sempre
razão se a gente não se apressa em confundi-los. De resto, ou
eu me engano muito ou a tua presença causará maior efeito que
as palavras de teu irmão.
Por pouco que a gente a encoraje, uma mulher que ama sabe ser intrépida.
A St. Yves apresenta-se à audiência. Sua juventude, seus encantos,
seus brandos olhos, umedecidos de algumas lágrimas, atraíram
todos os olhares. Cada cortesão do subministro esqueceu por um momento
o ídolo do poder para contemplar o da beleza. St. Pouange fe-la entrar
num gabinete; ela falou com emoção e graça. St. Pouange
sentiu-se comovido. Ela tremia, ele tranqüilizou-a.
— Volte esta noite – disse-lhe ele. – Seus assuntos merecem
um demorado exame. Aqui há muita gente. As audiências são
despachadas muito às pressas. Tenho de lhe falar a fundo de tudo o
que lhe toca.
E depois de elogiar-lhe a beleza e os sentimentos, recomendou-lhe que voltasse
às sete horas da noite.
Não faltou à entrevista; a devota amiga também a acompanhou
desta vez, mas conservou-se na sala, a ler Le Pédagogue Chrétien,
enquanto St. Pouange e a. bela St. Yves se achavam no gabinete contíguo.
— Acredita que o seu irmão me veio pedir uma carta-de-prego
contra a senhorita? Eu de bom grado expediria uma para mandá-lo de
volta à Bretanha.
— Ah, Senhor! Muito liberal deve ser o governo em cartas-de-prego,
para que as venham solicitar do fundo do reino, como pensões. Longe
estou de pedir uma contra meu irmão. Tenho muitas queixas dele, mas
respeito a liberdade dos homens; peço a de um homem a quem quero desposar,
de um homem a quem deve o Rei a conservação de uma província,
que pode servi-lo utilmente e que é filho de um oficial morto a seu
serviço. De que é ele acusado? Como o puderam tratar tão
cruelmente, sem ouvi-lo?
Mostrou-lhe então o subministro a carta do jesuíta espião
e a do pérfido bailio.
Como! Há tais monstros na terra? E querem obrigar-me a desposar o
ridículo filho de um homem ridículo e mau?! E é sob tais
informes que se decidem aqui os destinos dos cidadãos?!
Lançou-se de joelhos, pediu entre soluços a liberdade do bravo
que a adorava. Seus atrativos, naquele estado, se evidenciaram com maior encanto.
Tão bela estava, que St. Pouange, perdendo qualquer escrúpulo,
insinuou-lhe que ela havia de conseguir tudo se começasse por lhe dar
as primícias do que reservava a seu noivo. A St. Yves, aterrada e confusa,
fingiu muito tempo não compreendê-lo; foi preciso explicar-se
mais claramente. Uma frase largada a princípio com certa reserva, provocava
outra mais forte, seguida de uma terceira mais expressiva. Não apenas
a revogação da carta-de-prego lhe foi oferecida, mas recompensas,
dinheiro, honrarias, posições. E, quanto mais ele prometia,
mais aumentava o desejo de não ser recusado.
A St. Yves chorava, arquejante, meio tombada num sofá, mal acreditando
no que via e no que ouvia. St. Pouange, por sua vez, lançou-se-lhe
aos pés. Atrativos não lhe faltavam, e bem poderia não
espantar um coração menos prevenido. Mas St. Yves adorava o
seu amado e julgava um crime horrível traí-lo para o servir.
St. Pouange redobrava os rogos e promessas. Afinal tresvariou a ponto de declarar
que era aquele o único meio de tirar da prisão o homem pelo
qual tomava ela tão violento e apaixonado interesse. A estranha entrevista
prolongava-se indefinidamente. A devota da antecâmara, lendo o seu Pédagogue
Chrétien, pensava: “Meu Deus! Que podem eles estar fazendo há
duas horas? Nunca monsenhor de St. Pouange me deu tão longa audiência;
com certeza ele recusou tudo a essa pobre moça, visto que até
agora ela lhe está rogando”.
Enfim a sua companheira saiu do gabinete, desvairada, sem poder falar, a
refletir profundamente sobre o caráter dos grandes e dos semigrandes
que tão levianamente sacrificam a liberdade dos homens e a honra das
mulheres.
Não disse palavra durante todo o caminho. Chegada à casa da
amiga, desabafou e contou-lhe tudo. A devota fez grandes sinais da cruz.
— Minha querida, devemos consultar amanhã o padre Tout-à-tous,
nosso diretor; goza de muito crédito junto ao senhor de St. Pouange;
confessa várias criadas de sua casa; é um homem pio e complacente,
que também dirige damas de qualidade. Abandona-te a ele, é assim
que faço; e sempre me dei muito bem com isso. Nós, pobres mulheres,
temos necessidade de ser conduzidas por um homem.
— Pois bem, minha querida amiga, irei amanhã falar com o padre
Tout-à-tous.
CAPÍTULO XVI
Ela consulta um jesuíta.
Logo que a bela e consternada St. Yves se viu com o seu bom confessor, contou-lhe
que um homem poderoso e lúbrico lhe propunha tirar da prisão
aquele a quem ela deveria desposar legitimamente, e que lhe pedia um alto
preço pelo seu serviço; que tal infidelidade lhe causava tremenda
repugnância e que, se apenas se tratasse da sua própria vida,
preferiria perdê-la a sucumbir.
— Que abominável pecador! – exclamou o padre Tout-à-tous.
– Deve dizer-me o nome desse vilão; é sem dúvida
algum jansenista; eu o denunciarei a Sua Reverendíssima o padre de
La Chaise, que o mandará meter no calabouço onde se acha agora
a amável criatura que a senhorita deve desposar. A pobre moça,
depois de longo embaraço e muitas hesitações, revelou
enfim o nome de St. Pouange.
— Monsenhor de St. Pouange! – exclamou o jesuíta. –
Ah, minha filha, isso é outra coisa; ele é primo do maior ministro
que jamais tivemos, homem de bem, protetor da boa causa, bom cristão;
não pode ter tido tal pensamento: com certeza a senhorita compreendeu
mal.
— Ah, meu padre, entendi muito bem! Qualquer coisa que eu faça,
estou perdida; só tenho a escolher entre a desgraça e a vergonha;
ou o meu noivo permanecerá enterrado vivo ou eu me tornarei indigna
de viver. Não posso deixá-lo perecer, e não posso salvá-lo.
O padre Tout-à-tous tratou de acalmá-la com estas doces palavras:
— Primeiramente, minha filha, nunca diga meu noivo; tem qualquer coisa
de mundano, que poderia ofender a Deus. Diga meu esposo, pois, embora ainda
o não seja, considera-o como tal, e nada é mais decente.
Por outro lado, embora seja ele seu esposo em pensamento, em esperança,
não o é de fato: e assim não cometeria adultério,
pecado enorme que cumpre sempre evitar na medida do possível.
Em terceiro lugar, as ações não têm malícia
de culpa quando a intenção é pura.
Por último, existem na santa antigüidade alguns exemplos que
servem à maravilha para nortear seu procedimento. Refere Santo Agostinho
que, sob o pró-consulado de Septimius Acindynus, no ano 340 da nossa
salvação, um pobre homem, não podendo pagar a César
o que pertencia a César, foi condenado à morte, como é
justo, apesar da máxima: Onde não há nada, o rei perde
os seus direitos. Tratava-se de uma libra de ouro. Tinha o réu uma
esposa a quem Deus aquinhoara com a beleza e a prudência. Um velho ricaço
prometeu dar-lhe uma libra de ouro, e até mais, sob a condição
de praticar com ela o pecado imundo. A dama não julgou que fizesse
mal nenhum em salvar a vida. ao marido. Santo Agostinho encarece grandemente
a sua generosa resignação. É verdade que o velho ricaço
a enganou e talvez o marido não tenha deixado de ir para a forca; mas
a esposa fizera tudo o que estava a seu alcance para salvar-lhe a vida. Esteja
certa, minha filha, de que, quando um jesuíta chega a citar-lhe Santo
Agostinho, é que esse santo está mesmo com a razão. Não
lhe aconselho nada; juízo não lhe falta; é de presumir
que saberá ser útil a seu esposo. Monsenhor de St. Pouange é
um homem honrado, não a enganará; é o mais que lhe posso
dizer; rezarei pela senhorita, e espero que tudo se passará para maior
glória de Deus.
A bela St. Yves, não menos estarrecida com estas palavras do que
com as propostas do subministro, voltou completamente desnorteada para junto
da amiga. Sentia-se tentada a livrar-se, pela morte, do horror de deixar num
horrendo cativeiro aquele a quem adorava, e da vergonha de o libertar à
custa do que ela possuía de mais caro e que só devia pertencer
àquele desgraçado amante.
CAPÍTULO XVII
Ela sucumbe por virtude.
Pedia à amiga que a matasse; mas esta mulher, não menos indulgente
que o jesuíta, falou-lhe ainda com mais clareza.
— Ai! – suspirou ela. – Os negócios não
se arranjam de outra maneira nesta Corte tão amável, tão
galante e afamada. Os lugares mais medíocres, e os mais consideráveis,
muitas vezes não foram concedidos senão pelo preço que
exigem de ti. Escuta, tu me inspiraste amizade e confiança; pois confesso-te
que, se me houvesse mostrado tão difícil como tu, meu marido
não teria o pequeno cargo de que vive; ele bem o sabe e, longe de se
agastar com isso, vê em mim a sua benfeitora e considera-se criatura
minha. Pensas que todos aqueles que estiveram à testa das províncias,
ou mesmo dos exércitos, tenham devido as honrarias e a fortuna unicamente
a seus serviços? Há os que o devem às senhoras suas esposas.
As dignidades da guerra foram solicitadas pelo amor; e o lugar concedido ao
esposo da mais bela. Tu estás em uma situação muito mais
interessante: o fim é libertares teu noivo e desposá-lo; trata-se
de um dever sagrado a que não podes faltar. Ninguém censurou
as belas e grandes damas de quem te falo; a ti, hão de aplaudir-te
e dirão que só te permitiste uma fraqueza por excesso de virtude.
— Ah! que virtude! – exclamou a bela. St. Yves. – Que
labirinto de iniquidades! Que país! E como aprendo a conhecer os homens!
Um padre de La Chaise e um bailio ridículo mandam meu noivo para a
prisão; minha família me persegue; e só me estendem a
mão, na desgraça, para desonrar-me. Um jesuíta perdeu
a um bravo, outro jesuíta quer perder-me; estou cercada de armadilhas
e aproxima-se o instante fatal! Devo matar-me, ou ir falar ao Rei. Eu me jogarei
a seus pés quando ele passar para a missa ou para o teatro.
— Não deixarão que te aproximes dele – disse-lhe
a boa amiga. – E, se tivesses a desgraça de falar, monsenhor
de Louvois e o padre de La Chaise poderiam enterrar-te num convento para o
resto da vida.
Enquanto a excelente criatura assim aumentava as perplexidades daquela alma
em desespero e lhe afundava o punhal no coração, eis que chega
um enviado do senhor de St. Pouange, com uma carta e dois belíssimos
brincos. St. Yves recusou tudo, chorando, mas a amiga recebeu o presente e
a carta.
Logo que o mensageiro partiu, a nossa confidente pôs-se a ler a carta,
na qual são convidadas as duas amigas para uma pequena ceia, naquela
mesma noite. St. Yves jura que não irá. A devota procura experimentar-lhe
o par de brincos de diamante; St. Yves não o permite, e luta o dia
inteiro.
Afinal, só tendo em vista o noivo, vencida, arrastada, sem saber
aonde a levam, deixa-se conduzir à ceia fatal. Nada pudera fazer com
que ela usasse os brincos; a confidente os levou consigo e ajustou-lhos contra
a sua vontade antes que se sentassem à mesa. St. Yves estava tão
confusa, tão perturbada, que se deixava atormentar; e o anfitrião
tirava disso um excelente augúrio. Pelo fim da ceia, a amiga retirou-se
discretamente. St. Pouange mostrou então a revogação
da carta-de-prego, o certificado de uma considerável gratificação,
o da concessão de uma companhia, e não poupou as mais belas
promessas.
— Ah! – disse-lhe a St. Yves. – Como eu o estimaria se
o senhor não quisesse ser tão estimado!
Afinal, após. uma longa resistência, e soluços, gritos,
lágrimas, exausta da luta, alucinada, desfalecente, teve de render-se.
Não teve outro recurso senão prometer a si mesma que só
pensaria no Ingênuo enquanto o cruel desfrutasse impiedosamente da necessidade
a que se via reduzida.
CAPÍTULO XVIII
Ela liberta o noivo e um jansenista.
Ao clarear do dia, corre a Paris, munida da ordem do ministro. Difícil
pintar o que lhe ia no coração durante aquela viagem. Imagine-se
uma alma. virtuosa e nobre, humilhada com o seu opróbrio, embriagada
de paixão, lacerada pelos remorsos de haver traído o seu amado,
cheia da alegria de libertar aquele a quem adora. Suas amarguras, suas lutas,
seu triunfo lhe partilhavam todas as reflexões. Não era mais
aquela jovem simples a quem uma educação provinciana acanhara
as idéias. O amor e a desgraça a tinham formado. Tantos progressos
fizera nela o sentimento como os fizera a razão no espírito
do seu desventurado noivo. As moças aprendem a sentir com muito mais
facilidade do que os homens a pensar. A sua aventura era mais instrutiva que
quatro anos de convento.
Seu traje era de extrema singeleza. Considerava com horror os adereços
com que se apresentara a seu funesto benfeitor; deixara os brincos para a
companheira, sem ao menos lançar-lhes um olhar. Confusa e encantada,
idolatrando o Ingênuo e odiando a si mesma; chega enfim à porta
“Desse horrível castelo, palácio da vingança,
Que freqüentemente conteve o crime e a inocência.”
Quando foi para descer da carruagem, faltavam-lhe as forças; tiveram
de ajudá-la; ela entrou, com o coração palpitante, os
olhos úmidos, a fisionomia consternada. Apresentam-na ao governador;
ela quer falar-lhe, sua voz expira; mostra a sua ordem, articulando a custo
algumas palavras. O governador, que estimava o prisioneiro, mostrou-se muito
satisfeito com a liberação. Seu coração não
estava endurecido como o de alguns honrados carcereiros seus confrades, que,
só pensando nos proventos que lhe traz a guarda dos cativos, baseando
as rendas nas suas vítimas e vivendo da desgraça alheia, sentiam
em segredo uma horrenda alegria com as lágrimas dos desgraçados.
Mandou trazer o prisioneiro a seu gabinete. Os dois enamorados dão
com os olhos um no outro e desmaiam. A bela St. Yves permaneceu longo tempo
sem movimento e sem vida: o outro logo se refez.
— Pelo que vejo, é a senhora sua esposa – disse-lhe o
– governador. – O senhor não me havia dito que era casado.
Sei que é à sua generosa interferência que deve o senhor
a liberdade.
— Ah! eu não sou digna de ser sua esposa – disse a bela
St. Yves com voz trêmula, e desmaiou de novo.
Quando voltou a si, apresentou, sempre trêmula, o certificado da gratificação
e a promessa, por escrito, de uma companhia. O Ingênuo, tão espantado
como enternecido, despertava de um sonho para cair em outro.
—.Por que fui encerrado aqui? Como pudeste libertar-me? Onde estão
os monstros que me perseguiram? Tu és uma divindade baixada do céu
em meu auxílio.
A bela St. Yves baixava o olhar, depois fitava o amado, enrubescia, e logo
desviava os olhos úmidos de pranto. Contou-lhe afinal tudo o que sabia
e tudo o que experimentara, exceto aquilo que desejaria ocultar a si mesma
para sempre e que qualquer outro que não o Ingênuo, mais acostumado
ao mundo e mais a par dos costumes da Corte, teria logo adivinhado.
— Será possível que um miserável como esse bailio
tenha tido o poder de arrebatar-me a liberdade? Ah! bem vejo que com os homens
acontece o mesmo que com os mais desprezíveis animais: todos podem
causar dano. Mas será possível que um monge, um jesuíta
confessor do rei, tenha contribuído para o meu infortúnio tanto
quanto o bailio, sem que eu possa imaginar sob que pretexto me perseguiu esse
detestável tratante? Fez-me passar por jansenista? E como te foste
lembrar de mim? Eu não o merecia, eu não passava então
de um selvagem. E pudeste, sem conselho, sem auxílio, ir até
Versalhes! Lá apareceste, e quebram-se as minhas cadeias! Há,
pois, na beleza e na virtude um invencível encanto que faz tombarem
as portas de ferro e abrandarem os corações de bronze!
A esta palavra virtude, escaparam soluços à bela St. Yves.
Não sabia o quanto era virtuosa no crime de que se acusava.
O Ingênuo assim continuou:
— Ó anjo que rompeste os meus grilhões, se tiveste bastante
influência (o que eu ainda não compreendo) para obrigar a me
fazerem justiça, intercede para que também a façam a
um velho que me ensinou a pensar, como tu me ensinaste a amar. A desgraça
nos uniu; estimo-o como a um pai; não posso viver sem ele, como não
posso viver sem ti.
— Que eu vá. pedir ao mesmo homem que…!
— Sim, quero dever tudo a ti, e só a ti: escreve a esse homem
poderoso, cumula-me de teus benefícios, termina o que começaste,
completa os teus prodígios.
Sentia que devia fazer tudo quanto exigia o seu amado. Quis escrever, a
mão não obedecia. Três vezes começou a carta, três
vezes a rasgou. Afinal escreveu. E os dois noivos se retiraram após
haver abraçado o velho mártir da graça eficaz.
A feliz e desolada St. Yves sabia onde morava o irmão; para lá
se dirigiu; seu noivo tomou um apartamento na mesma casa.
Mal haviam chegado, seu protetor enviou-lhe a ordem de soltura de Gordon,
e marcou-lhe encontro para o dia seguinte. Assim, a cada ação
honesta e generosa que praticava, a desonra era o seu preço. Execrava
esse costume de vender a desgraça e a felicidade dos homens. Entregou
a ordem de soltura ao Ingênuo e recusou o encontro com um benfeitor
com quem não mais poderia avistar-se sem morrer de dor e vergonha.
O Ingênuo só poderia separar-se dela para ir libertar um amigo.
Correu sem demora. E cumpriu esse dever, refletindo sobre os estranhos acontecimentos
deste mundo e admirando a corajosa virtude de uma rapariga a quem dois infelizes
deviam mais que a vida.
CAPÍTULO XIX
O Ingênuo, a bela St. Yves e seus parentes se reúnem.
A generosa e respeitável infiel achava-se com o seu irmão,
o padre de St. Yves, com o bom prior da Montanha e a dama de Kerkabon. Todos
estavam igualmente espantados, mas bem diversos eram seus sentimentos e situações.
O abade de St. Yves chorava suas culpas aos pés da irmã, que
lhas perdoava.
O prior e sua terna irmã também choravam, mas de alegria.
O maldito bailio e seu insuportável filho não perturbavam absolutamente
a comovedora cena: tinham partido aos primeiros rumores da libertação
do seu inimigo; corriam a sepultar na província a sua tolice e o seu
temor.
Os quatro personagens, agitados de mil sentimentos diversos, esperavam que
o jovem voltasse com o amigo a quem fora libertar. O abade de St. Yves não
ousava erguer os olhos diante da irmã.
Tornarei a ver o meu querido sobrinho – dizia a boa Kerkabon.
— Há de revê-lo – respondeu-lhe – a encantadora
St. Yves, – mas já não é o mesmo homem. Sua atitude,
seu tom, suas idéias, seu espírito, tudo está mudado.
Tornou-se tão respeitável quanto era simplório e estranho
a tudo. Ele será a honra e o consolo da sua família; quem me
dera sê-lo também da minha!
— Nem tu és tampouco a mesma – observou o prior. –
Que foi que houve contigo para assim te causar tamanha mudança?
Em meio dessa conversa, chega o Ingênuo, trazendo pela mão
o seu jansenista. A cena então adquire maior novidade e interesse.
Começou pelos ternos abraços do tio e da tia.
O padre de St. Yves quase se lançara aos joelhos do Ingênuo,
que não era mais o Ingênuo. Os dois enamorados falavam-se com
olhares que exprimiam todos os sentimentos que os dominavam. Na face de um
brilhava a satisfação, o reconhecimento; nos olhos de outro,
ternos e preocupados, lia-se o embaraço. Espantavam-se do que ela pudesse
mesclar desgosto a tanta alegria.
O velho Gordon se tornou em poucos momentos estimado de toda a família.
Tinha sido infeliz com o jovem prisioneiro, e isso era um grande título.
Devia ele sua libertação aos dois enamorados, e isto bastava
para reconciliá-lo com o amor; abandonava-o a rigidez das antigas convicções;
achava-se, como o hurão, transformado em homem. Cada um contou suas
aventuras antes da ceia. Os dois padres e a tia escutavam como crianças
que ouvem histórias de fantasmas, e como humanos que se interessavam
todos por tantas desgraças.
— Há provavelmente – dizia Gordon – mais de quinhentas
pessoas virtuosas que se acham agora nas mesmas cadeias que a senhorita de
St. Yves quebrou: suas desgraças são desconhecidas. Encontram-se
muitas mãos para bater na multidão dos infelizes, e raramente
uma que os socorra.
Essa reflexão tão verdadeira lhe aumentava a sensibilidade
e o reconhecimento; tudo encarecia a vitória da bela St. Yves; todos
admiravam a magnitude e firmeza de sua alma. À admiração
juntava-se esse respeito que a gente, sem querer, dedica às pessoas
com influência na Corte. Mas o abade de St. Yves pensava às vezes:
“Que terá feito a minha irmã para conseguir tão
depressa todo esse crédito?”
Iam sentar-se à mesa, quando chega a boa amiga de Versalhes, sem
nada saber do que se passara. Vinha numa carruagem de seis cavalos, e bem
se via a quem pertencia a equipagem. Entra com o ar imponente de uma pessoa
de Corte que tem altas preocupações, saúda ligeiramente
a companhia e, chamando à parte a bela St. Yves:
— Por que te fazes esperar assim? Acompanha-me. Eis os diamantes que
esqueceste.
Não pode dizer tais palavras tão baixo que o Ingênuo
as não ouvisse. Ele viu os diamantes. O irmão ficou embaraçado.
O tio e a tia apenas experimentaram uma surpresa de boas criaturas que jamais
haviam contemplado tal magnificência. O jovem, que amadurecera em um
ano de reflexões, fe-las malgrado seu, e pareceu perturbar-se um momento.
A St. Yves o percebeu; uma palidez mortal espalhou-se lhe no belo rosto; pôs-se
a tremer, e mantinha-se a custo.
— Ah! disse ela à fatal amiga. – Tu me perdeste! –
Tu me dás a morte!
Estas palavras traspassaram o coração do Ingênuo; mas
já tinha aprendido a conter-se; nada disse, por medo de inquietar a
noiva diante do irmão, mas empalideceu como ela.
A St. Yves, transtornada com a alteração que via no rosto
do Ingênuo, arrasta a amiga para um corredor e atira-lhe os diamantes
aos pés:
— Ah! não foram esses diamantes que me seduziram, tu bem o
sabes; mas aquele que mos deu nunca mais me tornará a ver.
Enquanto a amiga os recolhia, a St. Yves acrescentava:
— Ele que fique com os diamantes, ou os presenteie a ti; vai-te, não
me faças ter ainda maior vergonha de mim mesma.
A embaixatriz retirou-se, sem compreender os remorsos de que era testemunha.
A bela St. Yves, opressa, doente, sufocada, foi obrigada a meter-se no leito.
Mas, para não alarmar ninguém com o que sentia, e apenas pretextando
cansaço, pediu licença para repousar, mas isso depois de haver
tranqüilizado a companhia com palavras afetuosas e dirigido ao amado
olhares que lhe incendiavam o coração.
A ceia, que ela não animava, foi triste no princípio, mas
dessa grave tristeza que induz a conversações atraentes e úteis,
tão superiores a essa frívola alegria que todos procuram e que
não passa, em geral, de um importuno rumor.
Gordon traçou em poucas palavras a história do jansenismo
e do molinismo, das perseguições com que um partido afligia
ao outro e da irredutibilidade de ambos. O Ingênuo fez-lhes a crítica
e lamentou os homens que, não satisfeitos da discórdia que os
seus interesses provocam, arranjam novos males procedentes de interesses quiméricos
e ininteligíveis absurdos. Gordon narrava, o outro julgava; os convivas
ouviam com emoção, esclarecendo-se de novas luzes. Falou-se
da extensão de nossos infortúnios e da brevidade da vida. Observou-se
que cada condição tem um vício e um perigo que lhe são
peculiares, e que, desde o príncipe ao último dos mendigos,
tudo parece acusar a natureza. Como se encontram tantos homens que, por tão
pouco dinheiro, se tornam perseguidores, satélites, carrascos dos outros
homens? Com que inumana indiferença um homem de posição
assina o aniquilamento de uma família, e com que bárbara alegria
os mercenários o executam!
— Na minha mocidade – disse Gordon, – conheci um parente
do marechal de Marsillac que, perseguido na sua província por causa
daquele ilustre desgraçado, ocultava-se em Paris sob um nome suposto.
Era um velho de setenta e dois anos. Acompanhava-o a esposa, mais ou menos
da sua idade. Haviam tido um filho libertino que, aos quatorze anos, fugira
da casa paterna. Soldado, depois desertor, passara por todos os graus do deboche
e da miséria Afinal, sob outro nome, entrara para a guarda do cardeal
de Richelieu (pois esse sacerdote, como Mazarino, tinha guardas); obtivera
um bastão de ajudante nessa companhia de satélites. Esse aventureiro
foi encarregado de prender o casal de velhos, o que desempenhou com toda a
dureza de um homem desejoso de agradar a seu amo. Enquanto os conduzia, ouviu
as duas vítimas deplorarem a longa seqüência dos males que
haviam experimentado desde o berço. O pai e a mãe contavam entre
os seus maiores infortúnios os desmandos e a perda do filho. Reconheceu-os;
mas nem por isso deixou de os conduzir à prisão, assegurando-lhes
que acima de tudo estava o serviço de Sua Eminência. Sua Eminência
recompensou-lhe o zelo.
Vi um espião do padre de La Chaise trair o próprio irmão,
na esperança de um pequeno benefício, que não obteve;
e vi-o morrer, não de remorsos, mas do pesar de haver sido enganado
por um jesuíta.
O cargo de confessor, que por muito tempo exerci, fez-me conhecer o íntimo
das famílias; não vi quase nenhuma que não estivesse
mergulhada na amargura, muito embora, afivelando a máscara da felicidade,
parecessem nadar em alegria, e sempre notei que os grandes desgostos eram
fruto da nossa desenfreada cupidez.
— Quanto a mim – disse o Ingênuo, – penso que uma
alma nobre, reconhecida e sensível pode viver feliz; e conto desfrutar
de uma felicidade sem nuvens com a bela e generosa St. Yves. Pois espero –
acrescentou, dirigindo ao irmão desta um amistoso sorriso – que
não ma recusarás, como o ano passado, e garanto que me portarei
com mais decência.
O padre desmanchou-se em desculpas quanto ao passado e em protestos de eterna
amizade.
O tio Kerkabon disse que seria aquele o mais belo dia da sua vida. A boa
tia, extasiada e chorando de júbilo, exclamava:
— Bem te dizia eu que nunca havias de ser subdiácono; este
sacramento vale mais que o outro; prouvera a Deus que eu fosse honrada com
ele! Em todo caso, te servirei de mãe. E cada qual porfiava em louvar
a adorável St. Yves.
O Ingênuo tinha o coração bastante compenetrado de tudo
a que a St. Yves fizera por ele, e muito a amava para que a aventura dos diamantes
pudesse desvanecer tudo o mais. Mas estas palavras que não deixara
de ouvir, tu me dás a morte, ainda o aterravam secretamente e lhe corrompiam
toda a alegria, ao passo que os elogios à sua querida aumentavam ainda
mais o seu amor. Agora não se ocupava senão dela; só
se falava da felicidade que ambos mereciam; combinavam viver todos juntos
em Paris, faziam projetos de fortuna e engrandecimento, entregavam-se a todas
essas esperanças que o mínimo lampejo de ventura faz brotar
com tamanha facilidade.
Mas o Ingênuo, no íntimo, experimentava um sentimento que repelia
essa ilusão. Relia as promessas assinadas por St. Pouange, e as nomeações
assinadas por Louvois. Descreveram-lhe esses homens tais como eram, ou como
os julgavam. Todos se referiram aos ministros e ao ministério com essa
“liberdade de mesa” considerada em França como a mais preciosa
liberdade que se possa gozar sobre a face da terra.
— Se eu fosse rei de França – disse o Ingênuo,
– eis como escolheria o ministro da guerra: havia de ser um homem do
mais alto nascimento, pois assim daria ordens à nobreza. Desejaria
que fosse ele próprio oficial, que tivesse percorrido todos os postos,
que fosse pelo menos tenente-general e digno de ser marechal de França;
pois não é necessário ter servido, para melhor conhecer
todos os detalhes do serviço! E os oficiais não obedecem mil
vezes com mais disposição a um militar que se haja, como eles,
assinalado pela coragem, do que a um homem de gabinete que, quando muito,
só pode adivinhar as operações de uma campanha, por mais
inteligente que seja? Não me incomodaria se o meu ministro fosse generoso,
embora isso, às vezes, embaraçasse um pouco o meu tesoureiro
real. Gostaria que trabalhasse com facilidade e que se distinguisse por essa
alegria de espírito, apanágio de um homem superior, tão
do agrado da nação e que torna todos os deveres menos penosos.
Desejava ele que um ministro tivesse esse caráter, porque sempre
notara que o bom-humor é incompatível com a crueldade. Monsenhor
de Louvois talvez não se agradasse dos desejos do Ingênuo: possuía
outra espécie de mérito.
Mas, enquanto se achavam à mesa, a doença da infeliz assumia
um caráter funesto; atacara-a uma febre devoradora; sofria, mas não
se queixava, para não perturbar a alegria dos convivas.
O irmão, sabendo que ela não dormia, foi até seus aposentos;
ficou surpreso com o seu estado. Todos acorreram, o noivo em primeiro lugar.
Estava sem dúvida mais alarmado e comovido do que todos os outros;
mas aprendera a acrescentar a discrição a todos os felizes dons
que lhe prodigalizara a natureza, e começava a dominar-lhe o espírito
o sentimento imediato das conveniências.
Mandaram chamar um médico da vizinhança. Era um desses que
visitam os doentes a correr, que confundem a doença que acabam de ver
com a que estão examinando, que exercem uma cega rotina em uma ciência
à qual nem toda a madureza de um espírito são e refletido
poderá tirar seus perigos e incertezas. Aumentou o mal com sua precipitação
em prescrever um remédio em moda na época. Modas até
na medicina! Essa mania era muito comum em Paris. A triste St. Yves ainda
contribuía mais do que o médico para agravar o seu estado. A
alma consumia o corpo. A multidão dos pensamentos que a agitavam vertia-lhe
nas veias um veneno mais perigoso que o da febre.
CAPÍTULO XX
A morte da bela St. Yves suas conseqüências.
Chamaram outro médico. Este, em vez de auxiliar a natureza e deixá-la
agir em uma jovem criatura cujos órgãos a solicitavam todos
para a vida, só se preocupou em contrariar o seu confrade. Em dois
dias a doença se declarou mortal. O cérebro, que se supõe
a sede do entendimento, foi tão violentamente atacado quanto o coração,
que é, ao que dizem, a sede das paixões.
Que incompreensível mecânica submeteu os órgãos
ao sentimento e ao espírito? Como pode uma única idéia
dolorosa desarranjar a circulação do sangue? Como é que
o sangue, por sua vez, comunica suas irregularidades ao entendimento humano?
Que fluido é esse, desconhecido de nós, mas cuja existência
é inegável, e que, mais rápido, mais ativo do que a luz,
percorre num ápice todos os canais da vida, produz sensações,
lembranças, tristeza ou alegria, razão ou delírio, evoca,
com horror, o que se desejaria esquecer e que faz, de um animal pensante,
ou um objeto de admiração, ou um motivo de piedade e lágrimas?
Era o que dizia o bom Gordon; e essa reflexão tão natural,
que raramente os homens fazem, em nada lhe afetava o sofrimento; pois não
era desses desgraçados filósofos que se esforçam por
se mostrar insensíveis. Comovia-se com a sorte daquela moça,
como um pai que vê lentamente morrer o seu filho querido.
O padre de St. Yves estava desesperado, o prior e a irmã derramavam
rios de lágrimas. Mas quem poderia descrever o estado de seu noivo?
Nenhuma língua possui expressões que correspondam àquele
auge do sofrimento; são muito imperfeitas as línguas.
A tia, quase sem vida, sustentava nos frágeis braços a cabeça
da moribunda, o tio estava de joelhos ao pé do leito. O noivo apertava-lhe
a mão, que banhava de lágrimas, e rompia em soluços;
chamava-a sua benfeitora, sua esperança, sua vida, metade de si mesmo,
sua senhora, sua esposa. A essa palavra esposa, ela suspirou, olhou-o com
inexprimível ternura, e de súbito lançou um grito de
horror. Depois, num desses intervalos em que a prostração e
o enfraquecimento dos sentidos, e as dores suspensas, deixam à alma
toda a sua liberdade e força, ela exclamou:
—.Eu, tua esposa! Ah! meu querido, esse nome, essa felicidade, esse
prêmio não eram mais para mim; eu morro, e o mereço. O
deus de meu coração, que eu sacrifiquei aos demônios infernais,
tudo está acabado, eis-me punida, e possas tu viver feliz.
Essas apaixonadas e terríveis palavras, não podiam ser compreendidas,
mas lançavam em todos os peitos o horror e a comoção;
ela teve a coragem de explicar-se. Cada palavra fazia os assistentes fremirem
de espanto, de dor a de piedade. Todos confraternizavam para execrar o homem
poderoso que só reparara uma injustiça com um crime, e que forçara
a mais venerável inocência a ser sua cúmplice.
— Tu, culpada? – exclamou o noivo. – Não, tu não
és culpada; o crime só pode estar no coração,
e o teu cotação pertence à virtude e a mim.
Ele confirmava esse sentimento com palavras que pareciam ressuscitar a bela
St. Yves. Ela sentia-se consolada, e espantava-se de ser ainda amada. O velho
Gordon a teria condenado no tempo em que era apenas jansenista; mas, tendo-se
tornado sábio, estimava-a e só fazia chorar.
Em meio de tantas lágrimas e temores, enquanto o perigo daquele querido
ente enchia todos os corações, quando era tudo consternação,
anunciam um correio da Corte. Um correio! E de quem? E por que? Era da parte
do confessor do rei para o prior da Montanha. Quem escrevia não era
o padre de La Chaise, mas o irmão Vadbled, seu criado de quarto, homem
muito importante naquela época: era ele quem comunicava aos arcebispos
as decisões de Sua Reverendíssima, ele quem dava audiência,
quem prometia benefícios, quem expedia às vezes as cartas-de-prego.
Escrevia ele ao prior da Montanha que Sua Reverendíssima se achava
informado das aventuras de seu sobrinho, o hurão, que a prisão
deste último fora apenas um engano, que essas pequenas desgraças
sucediam freqüentemente, que não se devia dar ,maior importância
a tal coisa e que, enfim, concedia que ele, prior, lhe viesse apresentar o
referido sobrinho no dia seguinte, que também devia trazer consigo
esse Gordon, que ele, irmão Vadbled apresentaria a Sua Reverendíssima
e a Monsenhor de Louvois, o qual lhes diria uma palavra na sua antecâmara.
Acrescentava que a história do Ingênuo e do seu combate com
os ingleses havia sido referida ao rei, o qual certamente se dignaria notá-lo
quando passasse pela galeria, e talvez até lhe fizesse um aceno de
cabeça. Terminava a carta com a lisonjeira esperança de que
todas as damas da Corte se apressariam em chamar o seu sobrinho ao toucador,
e que várias dentre elas lhe diriam: “Bom dia, senhor Ingênuo”;
e que seguramente falariam a seu respeito durante a ceia do rei. A carta vinha
assinada: Seu afeiçoado Vadbled, irmão jesuíta.
Tendo o prior lido a carta em voz alta, o sobrinho, furioso, e retendo um
momento a cólera, nada disse ao portador, mas, voltando-se para o seu
companheiro de infortúnio, perguntou-lhe o que pensava daquele estilo.
Gordon lhe respondeu: “É que tratam os homens como macacos: batem-lhes
e fazem-nos dançar”. O Ingênuo, recuperando o antigo gênio,
que volta sempre nas grandes comoções, rasgou a carta em pedaços
e lançou-os à cara do portador: “Eis a minha resposta”.
O tio espantado, julgou ver o raio e vinte cartas-de-prego tombarem-lhe em
cima. Foi logo escrever, desculpando, como podia, aquilo que ele tomava como
um arrebatamento de moço, mas que era o desabafo incontido de uma grande
alma. No entretanto, mais dolorosos cuidados se apossavam de todos os corações.
A bela e desgraçada St. Yves sentia já aproximar-se o fim; estava
tranqüila, mas dessa terrível tranqüilidade da natureza exausta
que não têm mais forças para combater.
Ó meu querido – disse ela com voz desfalecente, – a morte
me castiga pela minha fraqueza; mas expiro com o consolo de saber-te livre.
Eu te adorei quando te traía, e adoro-te quando te digo o adeus eterno.
Não ostentava uma vã firmeza; não tinha essa miserável
vaidade de fazer com que alguns vizinhos comentassem; “Ela morreu corajosamente”.
Quem é que pode, aos vinte anos, perder sem pesar e sofrimento, o seu
amado, a sua vida, e aquilo a que chamam a honra? Sentia todo o horror do
seu estado, e fazia-o sentir com essas palavra, e olhares moribundos que falam
com tanto império. Chorava, enfim, como os outros, nos momentos em
que tinha forças para fazê-lo. Louvem outros a morte faustosa
daqueles que entram com toda a insensibilidade no aniquilamento: é
a sorte de todos os animais. Só morremos com a sua mesma indiferença
quando a idade ou a doença nos torna semelhantes a eles devido à
estupidez de nossos sentidos. Quem quer que sofra uma grande perda, sente-o
imensamente; se abafa o seu pesar, é que leva a vaidade até
os braços da morte.
Chegado o fatal instante, todos os assistentes romperam em lágrimas
e ais. O Ingênuo perdeu os sentidos. As almas fortes tem reações
muito mais violentas que as outras quando se comovem. O bom Gordon, que muito
bem o conhecia, temia que ele se matasse, ao voltar a si. Afastaram de seu
alcance todas as armas; o infeliz o percebeu; e disse a seus parentes e a
Gordon, sem chorar, sem gemer, sem alterar-se:
— Pensam então que existe alguém no mundo que tenha
o direito e o poder de me impedir que eu acabe com a vida?
Gordon não procurou impingir-lhe esses fastidiosos lugares-comuns
com os quais tentam provar que não devemos a usar da própria
liberdade para deixar a vida quando nos sentimos horrivelmente mal e que não
é licito abandonarmos a própria casa quando esta se torna inabitável,
e que o homem está no mundo como um soldado no seu posto: como se importasse
ao ser dos seres que a assembléia de algumas partes de matéria
estivesse num lugar ou noutro; impotentes razões que um desespero firme
e refletido desdenha ouvir, e às quais Catão só respondeu
com um punhal.
O terrível silêncio do Ingênuo, seus olhos sombrios,
seus lábios trementes, os frêmitos de seu corpo, incutiam, na
alma de todos aqueles que o contemplavam, essa mescla de compaixão
e terror que encadeia a alma, que impede a palavra e só se manifesta
por frases entrecortadas. A dona da casa e sua família haviam acorrido;
tremiam de seu desespero, guardavam-no à vista, observavam-lhe todos
os movimentos. Já o corpo gelado da bela St. Yves fora carregado para
longe dos olhos do Ingênuo, que ainda parecia procurá-la, embora
não estivesse em condições de distinguir o que quer que
fosse.
Em meio desse fúnebre espetáculo, enquanto se acha o corpo
exposto à porta da casa, e dois padres, junto a uma pia, recitam orações
com ar distraído, enquanto alguns passantes, por ociosidade, lançam
água benta sobre a eça e outros prosseguem indiferentemente
o seu caminho, enquanto os parentes choram e um noivo está prestes
a matar-se, chega St. Pouange com a amiga de Versalhes.
Sua passageira inclinação, apenas uma vez satisfeita, transformara-se
em amor. Espicaçara-o a recusa de seus presentes. O padre de La Chaise
jamais teria pensado em ir àquela casa; mas St. Pouange, tendo todos
os dias diante dos olhos a imagem da bela St. Yves, ardendo por aplacar uma
paixão que, por uma função única, o aferroara
com o aguilhão dos desejo, não hesitou em ir procurar pessoalmente
aquela a quem talvez não quisesse rever três vezes se ela própria
houvesse comparecido.
Desce da carruagem; o primeiro objeto que se lhe depara é um esquife;
ele desvia os olhos com esse simples desgosto de um homem afeito aos prazeres
que julga lhe deva ser poupado todo espetáculo capaz de o obrigar à
contemplação da miséria humana. Faz menção
de subir. A mulher de Versalhes pergunta, por curiosidade, a quem vão
enterrar; pronunciam o nome da senhorita de St. Yves. A esse nome, ela empalidece
e solta um grito; St. Pouange volta-se; a surpresa e a dor lhe avassalam a
alma. Ali se achava o bom Gordon, com os olhos rasos de lágrimas. Interrompe
as suas tristes preces para narrar ao cortesão toda aquela horrível
catástrofe. Fala-lhe com esse império que dão o sofrimento
e a virtude. St. Pouange não nascera mau; a torrente das intrigas e
diversões havia arrebatado a sua alma, que ainda se desconhecia. Não
havia atingido à velhice, que de ordinário endurece o coração
dos ministros; escutava Gordon de olhos baixos e enxugava algumas lágrimas
que estava atônito de derramar: conheceu o arrependimento.
— Faço absoluta questão de ver – disse ele –
esse homem extraordinário de quem o senhor me falou; ele me comove
quase tanto como essa inocente vítima cuja morte causei.
Gordon o acompanhou até o quarto onde o prior, a Kerkabon, o padre
de St. Yves e alguns vizinhos tudo faziam para reanimar o jovem que de novo
desmaiara.
— Causei sua desgraça – disse-lhe o sub-ministro. –
Empregarei a minha vida em reparar o mal que lhe fiz.
A primeira idéia que ocorreu ao Ingênuo foi matá-lo
e matar-se depois. Nada mais cabível; mas achava-se sem armas e estreitamente
vigiado. St. Pouange não se chocou com a repulsa, acompanhada da censura,
desprezo e horror que ele bem merecia e não lhe foram poupados. O tempo
abranda tudo. Monsenhor de Louvois conseguiu afinal fazer um excelente oficial
do Ingênuo, que apareceu sob outro nome em Paria e no exército,
com o aplauso de todas as pessoas de bem, e que foi ao mesmo tempo um guerreiro
e um filósofo intrépido.
— Jamais se referia a essa aventura sem gemer; e no entanto o seu
consolo era falar nela. Cultuou a memória da bela St. Yves até
o último instante de vida. O padre de St. Yves e o prior conseguiram
cada qual um bom benefício; a boa Kerkabon estimou mais ver o sobrinho
nas honrarias militares do que no subdiaconato. A devota de Versalhes ficou
com os brincos e recebeu ainda um belo presente. O padre Tout-à-tous
ganhou latas de chocolate, de café, de açúcar-cândi,
de frutas em compota, com as Meditações do Reverendo Padre Croiset
e a Flor dos Santos encadernados em marroquim. O bom Gordon viveu com o Ingênuo
até a morte, na mais íntima amizade; também conseguiu
um benefício e esqueceu para sempre a graça eficaz e o concurso
concomitante.
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