Machado de Assis
O DESFECHO
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Prometeu sacudiu os braços manietados
E súplice pediu a eterna compaixão,
Ao ver o desfilar dos séculos que vão
Pausadamente, como um dobre de finados.
Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilião,
Uns cingidos de luz, outros ensangüentados…
Súbito, sacudindo as asas de tufão,
Fita-lhe a água em cima os olhos espantados.
Pela primeira vez a víscera do herói,
Que a imensa ave do céu perpetuamente rói,
Deixou de renascer às raivas que a consomem.
Uma invisível mão as cadeias dilui;
Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;
Acabara o suplício e acabara o homem.
CÍRCULO VICIOSO
Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
“Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
“Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela”
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:
“Mísera! tivesse eu aquela enorme, àquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!”
Mas o sol, inclinando a rútila capela:
“Pesa-me esta brilhante auréola de nume…
Enfara-me esta azul e desmedida umbela…
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?”
UMA CRIATURA
Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas
Com a sofreguidão da fome insaciável.
Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.
Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.
Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.
Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.
Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as suas forças dobra.
Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.
A ARTUR DE OLIVEIRA, ENFERMO
Sabes tu de um poeta enorme
Que andar não usa
No chão, e cuja estranha musa,
Que nunca dorme,
Calça o pé, melindroso e leve,
Como uma pluma,
De folha e flor, de sol e neve,
Cristal e espuma;
E mergulha, como Leandro,
A forma rara
No Pó, no Sena, em Guanabara
E no Escamandro;
Ouve a Tupã e escuta a Momo,
Sem controvérsia,
E tanto ama o trabalho, como
Adora a inércia;
Ora do f’uste, ora da ogiva,
Sair parece;
Ora o Deus do ocidente esquece
Pelo deus Siva;
Gosta do estrépito infinito,
Gosta das longas
Solidões em que se ouve o grito
Das arapongas;
E, se ama o lépido besouro,
Que zumbe, zumbe,
E a mariposa que sucumbe
Na flama de ouro,
Vaga-lumes e borboletas,
Da cor da chama,
Roxas, brancas, rajadas, prestas,
Não menos ama
Os hipopótamos tranqüilos,
E os elefantes,
E mais os búfalos nadantes
E os crocodilos,
Como as girafas e as panteras,
Onças, condores,
Toda a casta de bestas-feras
E voadores.
Se não sabes quem ele seja
Trepa de um salto,
Azul acima, onde mais alto
A águia negreja;
Onde morre o clamor iníquo
Dos violentos,
Onde não chega o riso oblíquo
Dos fraudulentos;
Então, olha de cima posto
Para o oceano,
Verás num longo rosto humano
Teu próprio rosto.
E hás de rir, não do riso antigo,
Potente e largo,
Riso de eterno moço amigo,
Mas de outro amargo,
Como o riso de um deus enfermo
Que se aborrece
Da divindade, e que apetece
Também um termo…
MUNDO INTERIOR
Ouço que a Natureza é uma lauda eterna
De pompa, de fulgor, de movimento e lida,
Uma escala de luz, uma escala de vida
De sol à ínfima luzerna.
Ouço que a natureza, — a natureza externa, —
Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida
Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna
Entre as flores da bela Armida.
E contudo, se fecho os olhos, e mergulho
Dentro em mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo
Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho
Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,
E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme,
Um segredo que atrai, que desafia — e dorme.
O CORVO
( EDGAR POE )
Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
“É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais”.
Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.
E que ninguém chamará mais.
E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim., por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto, e: “Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais”.
Minh’alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: “Imploro de vós,— ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso
Batestes, não fui logo, prestemente,
Certificar-me que aí estais”.
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.
Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.
Entro coa alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
“Seguramente, há na janela
Alguma cousa que sussurra. Abramos,
Eia, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso,
Obra do vento e nada mais”.
Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.
Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: “O tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?”
E o corvo disse: “Nunca mais”.
Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Cousa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: “Nunca mais”.
No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: “Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora”.
E o corvo disse: “Nunca mais!”.
Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
“Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: “Nunca mais”.
Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: “Nunca mais”.
Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranqüilo a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.
Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: “Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora”.
E o corvo disse: “Nunca mais”.
“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?”
E o corvo disse: “Nunca mais”.
“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais,
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”
E o corvo disse: “Nunca mais”.
“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua.”
E o corvo disse: “Nunca mais”.
E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e, fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!
PERGUNTAS SEM RESPOSTA
Vênus Formosa, Vênus fulgurava
No azul do céu da tarde que morria,
Quando à janela os braços encostava
Pálida Maria.
Ao ver o noivo pela rua umbrosa,
Os longos olhos ávidos enfia,
E fica de repente cor-de-rosa
Pálida Maria.
Correndo vinha no cavalo baio,
Que ela de longe apenas distinguia,
Correndo vinha o noivo, como um raio…
Pálida Maria!
Três dias são, três dias são apenas,
Antes que chegue o suspirado dia,
Em que eles porão termo às longas penas…
Pálida Maria!
De confusa, naquele sobressalto,
Que a presença do amado lhe trazia,
Olhos acesos levantou ao alto
Pálida Maria.
E foi subindo, foi subindo acima
No azul do céu da tarde que morria,
A ver se achava uma sonora rima…
Pálida Maria!
Rima de amor, ou rima de ventura,
As mesmas são na escala da harmonia.
Pousa os olhos em Vênus que fulgura
Pálida Maria.
E o coração, que de prazer lhe bate,
Acha no astro a fraterna melodia
Que à natureza inteira dá rebate…
Pálida Maria!
Maria pensa: “Também tu, decerto,
Esperas ver, neste final do dia,
Um noivo amado que cavalga perto.
Pálida Maria?”
Isto dizendo, súbito escutava
Um estrépito, um grito e vozeria,
E logo a frente em ânsias inclinava
Pálida Maria.
Era o cavalo, rábido, arrastando
Pelas pedras o noivo que morria;
Maria o viu e desmaiou gritando…
Pálida Maria !
Sobem o corpo, vestem-lhe a mortalha,
E a mesma noiva, semimorta e fria,
Sobre ele as folhas do noivado espalha.
Pálida Maria!
Cruzam-se as mãos, na derradeira prece
Muda que o homem para cima envia,
Antes que desça à terra em que apodrece.
Pálida Maria!
Seis homens tomam do caixão fechado
E vão levá-lo à cova que se abria;
Terra e cal e um responso recitado…
Pálida Maria!
Quando, três sóis passados, rutilava
A mesma Vênus, no morrer do dia,
Tristes olhos ao alto levantava
Pálida Maria.
E murmurou: “Tens a expressão do goivo,
Tens a mesma roaz melancolia;
Certamente perdeste o amor e o noivo,
Pálida Maria?”
Vênus, porém, Vênus brilhante e bela,
Que nada ouvia, nada respondia,
Deixa rir ou chorar numa janela
Pálida Maria.
TO BE OR NOT TO BE
(SHAKESPEARE)
E mais nobre a cerviz curvar aos golpes
Da ultrajosa fortuna, ou já lutando
Extenso mar vencer de acerbos males?
Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas,
Que as angústias extingue e à carne a herança
Da nossa dor eternamente acaba,
Sim, cabe ao homem suspirar por ele.
Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe?
Ai, eis a dúvida. Ao perpétuo sono,
Quando o lodo mortal despido houvermos,
Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre.
Essa a razão que os lutuosos dias
Alonga do infortúnio. Quem do tempo
Sofrer quisera ultrajes e castigos,
Injúrias da opressão, baldões do orgulho,
Do mal prezado amor choradas mágoas,
Das leis a inércia, dos mandões a afronta,
E o vão desdém que de rasteiras almas
O paciente mérito recebe,
Quem, se na ponta da despida lâmina
Lhe acenara o descanso? Quem ao peso
De uma vida de enfados e misérias
Quereria gemer, se não sentira
Terror de alguma não sabida cousa
Que aguarda o homem para lá da morte,
Esse eterno país misterioso
Donde um viajor sequer há regressado?
Este só pensamento enleia o homem;
Este nos leva a suportar as dores
Já sabidas de nós, em vez de abrirmos
Caminho aos males que o futuro esconde;
E a todos acovarda a consciência.
Assim da reflexão à luz mortiça
A viva cor da decisão desmaia;
E o firme, essencial cometimento,
Que esta idéia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de ação perder o nome.
LINDÓIA
Vem, vem das águas, mísera Moema,
Senta-te aqui. As vozes lastimosas
Troca pelas cantigas deleitosas,
Ao pé da doce e pálida Coema.
Vós, sombras de Iguaçu e de Iracema,
Trazei nas mãos, trazei no colo as rosas
Que o amor desabrochou e fez viçosas
Nas laudas de um poema e outro poema.
Chegai, folgai, cantai. É esta, é esta
De Lindóia, que a voz suave e forte
Do vate celebrou, a alegre festa.
Além do amável, gracioso porte,
Vede o mimo, a ternura que lhe resta.
Tanto inda é bela no seu rosto a morte
SUAVE MARI MAGNO
Lembra-me que, em certo dia,
Na rua, ao sol de verão,
Envenenado morria
Um pobre cão.
Arfava, espumava e ria,
De um riso espúrio e bufão,
Ventre e pernas sacudia
Na convulsão.
Nenhum, nenhum curioso
Passava, sem se deter,
Silencioso,
Junto ao cão que ia morrer,
Como se lhe desse gozo
Ver padecer.
A MOSCA AZUL
Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão,
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada,
Em certa noite de verão.
E zumbia, e voava, e voava, e zumbia
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua, — melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.
Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
“Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
Dize, quem foi que to ensinou?”
Então ela, voando, e revoando, disse:
“Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
E mais a glória, e mais o amor”.
E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo
E tranqüilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.
Entre as asas do inseto, a voltear no espaço,
Uma cousa lhe pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço.
E viu um rosto, que era o seu.
Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o colo nu
Um imenso colar de opala, e uma safira
Tirada do corpo de Vichnu.
Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
E todo o amor que têm lhe dão.
Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios
Voluptuosamente nus.
Vinha a glória depois; — quatorze reis vencido:
E enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e os parabéns unidos
Das coroas ocidentais.
Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto
Via limpos os corações.
Então ele, estende a mão calosa e tosca,
Afeita a só carpintejar
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.
Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.
Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.
Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil,
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e subtil.
Hoje, quando ele aí vai, de aloé e cardamomo
Na cabeça, com ar taful,
Dizem que ensandeceu, e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.
ANTONIO JOSE
(21 de outubro de 1739)
Antônio, a sapiência da Escritura
Clama que há para a humana criatura
Tempo de rir e tempo de chorar,
Como há um sol no ocaso, e outro na aurora.
Tu, sangue de Efraim e de Issacar,
Pois que já riste, chora.
ESPINOSA
Gosto de ver-te, grave e solitário,
Sob o fumo de esquálida candeia,
Nas mãos a ferramenta de operário,
E na cabeça a coruscante idéia.
E enquanto o pensamento delineia
Uma filosofia, o pão diário
A tua mão a labutar granjeia
E achas na independência o teu salário.
Soem cá fora agitações e lutas,
Sibile o bafo aspérrimo do inverno,
Tu trabalhas, tu pensas, e executas
Sóbrio, tranqüilo, desvelado e terno,
A lei comum, e morres, e transmutas
O suado labor no prêmio eterno.
GONÇALVES CRESPO
Esta musa da pátria, esta saudosa
Niobe dolorida,
Esquece acaso a vida,
Mas não esquece a morte gloriosa.
E pálida, e chorosa,
Ao Tejo voa, onde no chão caída
Jaz aquela evadida
Lira da nossa América viçosa.
Com ela torna, e, dividindo os ares,
Trépido, mole, doce movimento
Sente nas frouxas cordas singulares.
Não é a asa do vento,
Mas a sombra do filho, no momento
De entrar perpetuamente os pátrios lares.
ALENCAR
Hão de anos volver, — não como as neves
De alheios climas, de geladas cores;
Hão de os anos volver, mas como as flores,
Sobre o teu nome, vívidos e leves…
Tu, cearense musa, que os amores
Meigos e tristes, rústicos e breves,
Da indiana escreveste,—ora os escreves
No volume dos pátrios esplendores.
E ao tornar este sol, que te há levado,
Já não acha a tristeza. Extinto é o dia
Da nossa dor, do nosso amargo espanto.
Porque o tempo implacável e pausado,
Que o homem consumiu na terra fria,
Não consumiu o engenho, a flor, o encanto…
CAMÕES
I
Tu quem és? Sou O século que passa.
Quem somos nós? A multidão fremente.
Que cantamos? A glória resplendente.
De quem? De quem mais soube a força e a graça.
Que cantou ele? A vossa mesma raça.
De que modo? Na lira alta e potente.
A quem amou? A sua forte gente.
Que lhe deram? Penúria, ermo, desgraça.
Nobremente sofreu? Como homem forte.
Esta imensa oblação?… É-lhe devida.
Paga?… Paga-lhe toda a adversa sorte.
Chama-se a isto? A glória apetecida.
Nós, que o cantamos?… Volvereis à morte.
Ele, que é morto?… Vive a eterna vida.
II
Quando, transposta a lúgubre morada
Dos castigos, ascende o florentino
A região onde o clarão divino
Enche de intensa luz a alma nublada,
A saudosa Beatriz, a antiga amada,
A mão lhe estende e guia o peregrino,
E aquele olhar etéreo e cristalino
Rompe agora da pálpebra sagrada.
Tu que também o Purgatório andaste
Tu que rompeste os círculos do Inferno,
Camões, se o teu amor fugir deixaste,
Ora o tens. como um guia alto e superno
Que a Natércia da vida que choraste
Chama-se Glória e tem o amor eterno.
III
Quando, torcendo a chave misteriosa
Que os cancelos fechava do Oriente,
O Gama abriu a nova terra ardente
Aos olhos da companha valorosa,
Talvez uma visão resplandecente
Lhe amostrou no futuro a sonorosa
Tuba. que cantaria a ação famosa
Aos ouvidos da própria e estranha gente.
E disse: “Se já noutra, antiga idade,
Tróia bastou aos homens, ora quero
Mostrar que é mais humana a humanidade.
Pois não serás herói de um canto fero,
Mas vencerás o tempo e a imensidade
Na voz de outro moderno e brando Homero”.
IV
Um dia, junto à foz de brando e amigo
Rio de estranhas gentes habitado,
Pelos mares aspérrimos levado,
Salvaste o livro que viveu contigo.
E esse que foi às ondas arrancado,
Já livre agora do mortal perigo,
Serve de arca imortal, de eterno abrigo,
Não só a ti, mas ao teu berço amado.
Assim, um homem só, naquele dia,
Naquele escasso ponto do universo,
Língua, história, nação, armas, poesia,
Salva das frias mãos do tempo adverso.
E tudo aquilo agora o desafia.
E tão sublime preço cabe em verso.
1802-1885
Um dia, celebrando o gênio e a eterna vida,
Vitor Hugo escreveu numa página forte
Estes nomes que vão galgando a eterna morte,
Isaías, a voz de bronze, alma saída
Da coxa de Davi; Ésquilo que a Orestes
E a Prometeu, que sofre as vinganças celestes
Deu a nota imortal que abala e persuade,
E transmite o terror, como excita a piedade.
Homero, que cantou a cólera potente
De Aquiles, e colheu as lágrimas troianas
Para glória maior da sua amada gente,
E com ele Virgílio e as graças virgilianas;
Juvenal que marcou com ferro em brasa o ombro
Dos tiranos, e o velho e grave florentino,
Que mergulha no abismo, e caminha no assombro,
Baixa humano ao inferno e regressa divino;
Logo após Calderón, e logo após Cervantes;
Voltaire, que mofava, e Rabelais que ria;
E, para coroar esses nomes vibrantes,
Shakespeare, que resume a universal poesia.
E agora que ele aí vai, galgando a eterna morte,
Pega a História da pena e na página forte,
Para continuar a série interrompida,
Escreve o nome dele, e dá-lhe a eterna vida.
JOSÉ DE ANCHIETA
Esse que as vestes ásperas cingia,
E a viva flor da ardente juventude
Dentro do peito a todos escondia;
Que em páginas de areia vasta e rude
Os versos escrevia e encomendava
A mente, como esforço de virtude;
Esse nos rios de Babel achava,
Jerusalém, os cantos primitivos,
E novamente aos ares os cantava.
Não procedia então como os cativos
De Sião, consumidos de saudade,
Velados de tristeza, e pensativos.
Os cantos de outro clima e de outra idade
Ensinava sorrindo às novas gentes
Pela língua do amor e da piedade.
E iam caindo os versos excelentes
No abençoado chão, e iam caindo
Do mesmo modo as místicas sementes.
Nas florestas os pássaros, ouvindo
O nome de Jesus e os seus louvores,
Iam cantando o mesmo canto lindo.
Eram as notas como alheias flores
Que verdejam no meio de verduras
De diversas origens e primores.
Anchieta, soltando as vozes puras,
Achas outra Sião neste hemisfério,
E a mesma fé e igual amor apuras.
Certo, ferindo as cordas do saltério,
Unicamente contas divulgá-la
A palavra cristã e o seu mistério.
Trepar não cuidas a luzente escala
Que os heróis cabe e leva à clara esfera
Onde eterna se faz a humana fala.
Onde os tempos não são esta quimera
Que apenas brilha e logo se esvaece,
Como folhas de escassa primavera.
Onde nada se perde nem se esquece,
E no dorso dos séculos trazido
O nome de Anchieta resplandece
Ao vivo nome do Brasil unido.
SONETO DE NATAL
Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno,—
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,
Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.
Escolheu o soneto… A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca.
A pena não acode ao gesto seu.
E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
“Mudaria o Natal ou mudei eu?”
OS ANIMAIS ISCADOS DA PESTE
( LA FONTAINE )
Mal que se espalha o terror e que a ira celeste
Inventou para castigar
Os pecados do mundo, a peste, em suma, a peste,
Capaz de abastecer o Aqueronte num dia
Veio entre os animais lavrar;
E, se nem tudo sucumbia,
Certo é que tudo adoecia.
Já nenhum, por dar mate ao moribundo alento,
Catava mais nenhum sustento,
Não havia manjar que o apetite abrisse,
Raposa ou lobo que saísse
Contra a presa inocente e mansa,
Rola que à rola não fugisse,
E onde amor falta, adeus, folgança.
O leão convocou uma assembléia e disse:
“Sócios meus, certamente este infortúnio veio
A castigar-nos de pecados.
Que, o mais culpado entre os culpados
Morra por aplacar a cólera divina.
Para a comum saúde esse é, talvez, o meio.
Em casos tais é de uso haver sacrificados;
Assim a história no-lo ensina.
Sem nenhuma ilusão, sem nenhuma indulgência,
Pesquisemos a consciência.
Quanto a mim, por dar mate ao ímpeto glutão,
Devorei muita carneirada.
Em que é que me ofendera? em nada.
E tive mesmo ocasião
De comer igualmente o guarda da manada.
Portanto, se é mister sacrificar-me, pronto.
Mas, assim como me acusei,
Bom é que cada um se acuse, de tal sorte
Que (devemos querê-lo, e é de todo ponto
Justo) caiba ao maior dos culpados a morte”.
“Meu senhor, acudiu a raposa, é ser rei
Bom demais; é provar melindre exagerado.
Pois então devorar carneiros,
Raça lorpa e vilã, pode lá ser pecado?
Não. Vós fizestes-lhes, senhor,
Em os comer, muito favor.
E no que toca aos pegureiros,
Toda a calamidade era bem merecida,
Pois são daquelas gentes tais
Que imaginaram ter posição mais subida
Que a de nós outros animais”.
Disse a raposa, e a corte aplaudiu-lhe o discurso.
Ninguém do tigre nem do urso,
Ninguém de outras iguais senhorias do mato,
Inda entre os atos mais daninhos,
Ousava esmerilhar um ato;
E até os últimos rafeiros,
Todos os bichos rezingueiros,
Não eram, no entender geral, mais que uns santinhos.
Eis chega o burro: “Tenho idéia que no prado
De um convento, indo eu a passar, e picado
Da ocasião, da fome e do capim viçoso,
E pode ser que do tinhoso,
Um bocadinho lambisquei
Da plantação. Foi um abuso, isso é verdade”.
Mal o ouviu, a assembléia exclama: “Aqui del-rei!”
Um lobo, algo letrado, arenga e persuade
Que era força imolar esse bicho nefando,
Empesteado autor de tal calamidade;
E o pecadilho foi julgado
Um atentado.
Pois comer erva alheia! ó crime abominando!
Era visto que só a morte
Poderia purgar um pecado tão duro.
E o burro foi ao reino escuro.
Segundo sejas tu miserável ou forte
Áulicos te farão detestável ou puro.
DANTE
(INFERNO, canto XXV)
Acabara o ladrão, e, ao ar erguendo
As mãos em figas, deste modo brada:
“Olha, Deus, para ti o estou fazendo!”
E desde então me foi a serpe amada,
Pois uma vi que o colo lhe prendia,
Como a dizer: “não falarás mais nada!”
Outra os braços na frente lhe cingia
Com tantas voltas e de tal maneira
Que ele fazer um gesto não podia.
Ah! Pistóia, por que numa fogueira
Não ardes tu, se a mais e mais impuros,
Teus filhos vão nessa mortal carreira?
Eu, em todos os círculos escuros
Do inferno, alma não vi tão rebelada.
Nem a que em Tebas resvalou dos muros.
E ele fugiu sem proferir mais nada.
Logo um centauro furioso assoma
A bradar: “Onde, aonde a alma danada?”
Marema não terá tamanha soma
De reptis quanta vi que lhe ouriçava
O dorso inteiro desde a humana coma.
Junto à nuca do monstro se elevava
De asas abertas um dragão que enchia
De fogo a quanto ali se aproximava.
“Aquele é Caco, — o Mestre me dizia, —
Que, sob as rochas do Aventino, ousado
Lagos de sangue tanta vez abria.
Não vai de seus irmãos acompanhado
Porque roubou malicioso o armento
Que ali pascia na campanha ao lado.
Hércules com a maça e golpes cento,
Sem lhe doer um décimo ao nefando,
Pôs remate a tamanho atrevimento”.
Ele falava, e o outro foi andando.
No entanto embaixo vinham para nós
Três espíritos que só vimos quando
Atroara este grito: “Quem sois vós?”
Nisto a conversa nossa interrompendo
Ele, como eu, no grupo os olhos pôs.
Eu não os conheci, mas sucedendo,
Como outras vezes suceder é certo,
Que o nome de um estava outro dizendo,
“Cianfa aonde ficou?” Eu, por que esperto
E atento fosse o Mestre em escutá-lo,
Pus sobre a minha boca o dedo aberto.
Leitor, não maravilha que aceitá-lo
Ora te custe o que vais ter presente
Pois eu, que o vi, mal ouso acreditá-lo.
Eu contemplava, quando uma serpente
De seis pés temerosa se lhe atira
A um dos três e o colhe de repente.
Com os pés do meio o ventre lhe cingira,
Com os da frente os braços lhe peava,
E ambas as faces lhe mordeu com ira.
Os outros dous às coxas lhe alongava,
E entre elas insinua a cauda que ia
Tocar-lhes os rins e dura os apertava.
A hera não se enrosca nem se enfia
Pela árvore, como a horrível fera
Ao pecador os membros envolvia.
Como se fossem derretida cera,
Um só vulto, uma cor iam tomando,
Quais tinham sido nenhum deles era.
Tal o papel, se o fogo o vai queimando,
Antes de negro estar, e já depois
Que o branco perde, fusco vai ficando.
Os outros dous bradavam: “Ora pois,
Agnel, ai triste, que mudança é essa?
Olha que já não és nem um nem dois!”
Faziam ambas uma só cabeça,
E na única face um rosto misto,
Onde eram dois, a aparecer começa
Dos quatro braços dous restavam, e isto,
Pernas, coxas e o mais ia mudado
Num tal composto que jamais foi visto.
Todo o primeiro aspecto era acabado;
Dous e nenhum era a cruel figura,
E tal se foi a passo demorado.
Qual cameleão, que variar procura
De sebe às horas em que o sol esquenta,
E correndo parece que fulgura,
Tal uma curta serpe se apresenta,
Para o ventre dos dous corre acendida,
Lívida e cor de um bago de pimenta.
E essa parte por onde foi nutrida
Tenra criança antes que à luz saísse,
Num deles morde, e cai toda estendida.
O ferido a encarou, mas nada disse;
Firme nos pés, apenas bocejava,
Qual se de febre ou sono ali caísse.
Frente a frente, um ao outro contemplava,
E à chaga de um, e à boca de outro, forte
Fumo saía e no ar se misturava.
Cale agora Lucano a triste morte
De Sabelo e Nasídio, e atento esteja
Que o que lhe vou dizer é de outra sorte.
Cale-se Ovídio e neste quadro veja
Que, se Aretusa em fonte nos há posto
E Cadmo em serpe, não lhe tenho inveja.
Pois duas naturezas rosto a rosto
Não transmudou, com que elas de repente
Trocassem a matéria e o ser oposto.
Tal era o acordo entre ambas que a serpente
A cauda em duas caudas fez partidas
E a alma os pés ajuntava estreitamente.
Pernas e coxas vi-as tão unidas
Que nem leve sinal dava a juntura
De que tivessem sido divididas.
Imita a cauda bífida a figura
Que ali se perde, e a pele abranda, ao passo
Que a pele do homem se tornava dura.
Em cada axila vi entrar um braço,
A tempo que iam esticando à fera.
Os dous pés que eram de tamanho escasso.
Os pés de trás a serpe os retorcera
Até formarem-lhe a encoberta parte
Que no infeliz em pés se convertera.
Enquanto o fumo os cobre, e de tal arte
A cor lhes muda e põe à serpe o velo
Que já da pele do homem se lhe parte,
Um caiu, o outro ergueu-se, sem torcê-lo
Aquele torvo olhar com que ambos iam
A trocar entre si o rosto e a vê-lo.
Ao que era em pé as carnes lhe fugiam
Para as fontes, e ali do que abundava
Duas orelhas de homem lhe saíam.
E o que de sobra ainda lhe ficava
O nariz lhe compõe e lhe perfaz
E o lábio lhe engrossou quanto bastava.
A boca estende o que por terra jaz
E as orelhas recolhe na cabeça,
Bem como o caracol às pontas faz.
A língua, que era então de uma só peça,
E prestes a falar, fendida vi-a,
Enquanto a do outro se une, e o fumo cessa.
A alma, que assim tornado em serpe havia,
Pelo vale fugiu assobiando,
E esta lhe ia falando e lhe cuspia.
Logo a recente espádua lhe foi dando
E à outra disse: “Ora com Buoso mudo,
Rasteje, como eu vinha rastejando!”
Assim na cova sétima vi tudo
Mudar e transmudar; a novidade
Me absolva o estilo desornado e rudo.
Mas que um tanto perdesse a claridade
Dos olhos meus, e turva a mente houvesse,
ão fugiram com tanta brevidade,
Nem tão ocultos, que eu não conhecesse
Puccio Sciancato, única ali vinda
Alma que a forma própria não perdesse;
O outro chora-lo tu, Gaville, ainda.
A FELÍCIO DOS SANTOS
Felício amigo, se eu disser que os anos
Passam correndo ou passam vagarosos,
Segundo são alegres ou penosos,
Tecidos de afeições ou desenganos,
“Filosofia é esta de rançosos!”
Dirás. Mas não há outra entre os humanos.
Não se contam sorrisos pelos danos,
Nem das tristezas desabrocham gozos.
Banal, confesso. O precioso e o raro
É, seja o céu nublado ou seja claro,
Tragam os tempos amargura ou gosto,
Não desdizer do mesmo velho amigo,
Ser com os teus o que eles são contigo,
Ter um só coração, ter um só rosto.
MARIA
Maria, há no seu gesto airoso e nobre,
Nos olhos meigos e no andar tão brando,
Um não sei quê suave que descobre,
Que lembra um grande pássaro marchando.
Quero, às vezes, pedir-lhe que desdobre
As asas, mas não peço, reparando
Que, desdobradas, podem ir voando
Levá-la ao tecto azul que a terra cobre.
E penso então, e digo então comigo:
“Ao céu, que vê passar todas as gentes
Bastem outros primores de valia.
Pássaro ou moça, fique o olhar amigo,
O nobre gesto e as graças excelentes
Da nossa cara e lépida Maria”.
A UMA SENHORA QUE ME PEDIU VERSOS
Pensa em ti mesma, acharás
Melhor poesia,
Viveza, graça, alegria,
Doçura e paz.
Se já dei flores um dia,
Quando rapaz,
As que ora dou têm assaz
Melancolia.
Uma só das horas tuas
Valem um mês
Das almas já ressequidas.
Os sóis e as luas
Creio bem que Deus os fez
Para outras vidas.
CLÓDIA
Era Clódia a vergôntea ilustre e rara
De uma família antiga. Tez morena,
Como a casca do pêssego, deixava
Transparecer o sangue e a juventude.
Era a romana ardente e imperiosa
Que os ecos fatigou de Roma inteira
Coa narração das longas aventuras.
Nunca mais gentil fronte o sol da Itália
Amoroso beijou, nem mais gracioso
Corpo envolveram túnicas de Tiro.
Sombrios, como a morte, os olhos eram.
A vermelha botina em si guardava
Breve, divino pé. Úmida boca,
Como a rosa que os zéfiros convida,
Os beijos convidava. Era o modelo
Da luxuosa Lâmia, — aquela moça
Que o marido esqueceu, e amou sem pejo
O músico Polião. De mais, fazia
A ilustre Clódia trabalhados versos;
A cabeça curvava pensativa
Sobre as tabelas nuas; invocava
Do clássico Parnaso as musas belas,
E, se não mente linguaruda fama
Davam-lhe inspiração vadias musas.
O ideal da matrona austera e fria,
Caseira e nada mais, esse acabava.
Bem hajas tu, patrícia desligada
De preconceitos vãos, tu que presides
Ao festim dos rapazes, tu que estendes
Sobre verdes coxins airosas formas,
Enquanto o esposo, consultando os dados,
Perde risonho válidos sestércios…
E tu, viúva mísera, deixada
Na flor dos anos, merencória e triste,
Que seria de ti, se o gozo e o luxo
Não te alegrassem a alma? Cedo esquece
A memória de um óbito. E bem hajas,
Discreto esposo, que morreste a tempo.
Perdes, bem sei, dos teus rivais sem conta
Os custosos presentes, as ceatas,
Os jantares opíparos. Contudo,
Não verás cheia a casa de crianças
Loiras obras de artífices estranhos.
Baias recebe a celebrada moça
Entre festins e júbilos. Faltava
Ao pomposo jardim das lácias flores
Esta rosa de Paestum. Chega; é ela,
É ela, a amável dona. O céu ostenta
A larga face azul, que o sol no ocaso
Coos frouxos raios desmaiado tinge.
Terno e brando abre o mar o espúmeo seio;
Moles respiram virações do golfo.
Clódia chega. Tremei, moças amadas;
Ovelhinhas dos plácidos idílios,
Roma vos manda esta faminta loba.
Prendei, prendei com vínculos de ferro,
Os volúveis amantes, que os não veja
Esta formosa Páris. Inventai-lhes
Um filtro protetor, um filtro ardente,
Que o fogo leve aos corações rendidos,
E aos vossos pés eternamente os prenda;
Clódia… Mas, quem pudera, a frio e a salvo,
Um requebro afrontar daqueles olhos
Ver-lhe o túrgido seio, as mãos, o talhe,
O andar, a voz, ficar mármore frio
Ante as súplices graças? Menor pasmo
Fora, se ao gladiador, em pleno circo,
A pantera africana os pés lambesse,
Ou se, à cauda de indômito cavalo,
Ovantes hostes arrastassem César.
Coroados de rosas os convivas
Entram. Trajam com graça vestes novas
Tafuis de Itália, finos e galhardos
Patrícios da república expirante,
E madamas faceiras. Vem entre eles
Célio, a flor dos vadios, nobre moço,
E opulento, o que é mais. Ambicioso
Quer triunfar na clássica tribuna
E honras aspira até do consulado,
Mais custoso lavor não vestem damas,
Nem aroma melhor do seio exalam.
Tem na altivez do olhar sincero orgulho,
E certo que o merece. Entre os rapazes
Que à noite correm solitárias ruas,
Ou nos jardins de Roma o luxo ostentam,
Nenhum como ele, com mais ternas falas,
Galanteou, vencendo, as raparigas.
Entra: pregam-se nele cobiçosos
Olhos que amor venceu, que amor domina,
Olhos fiéis ao férvido Catulo.
O poeta estremece. Brando e frio,
O marido de Clódia os olhos lança
Ao mancebo, e um sorriso complacente
A boca lhe abre. Imparcial na luta,
Vença Catulo ou Célio, ou vençam ambos,
Não se lhe opõe o dono: o aresto aceita.
Vistes já como as ondas tumultuosas,
Uma após outra, vêm morrer à praia,
E mal se rompe o espúmeo seio àquela,
Já esta corre e expira? Tal no peito
Da calorosa Lésbia nascem, morrem
As volúveis paixões. Vestal do crime,
Dos amores vigia a chama eterna,
Não a deixa apagar; pronto lhe lança
Óleo com que a alimente. Enrubescido
De ternura e desejo o rosto volve
Ao mancebo gentil. Baldado empenho!
Indiferente aos mágicos encantos,
Célio contempla a moça. Olhar mais frio,
Ninguém deitou jamais a graças tantas.
Ela insiste; ele foge-lhe. Vexada,
A moça inclina lânguida a cabeça…
Tu nada vês, desapegado esposo,
Mas o amante vê tudo.
Clódia arranca
Uma rosa da fronte, e as folhas deita
Na taça que enche generoso vinho.
“Célio, um brinde aos amores!”, diz, e entrega-lha.
O cortejado moço os olhos lança,
Não à Clódia, que a taça lhe oferece
Mas a outra não menos afamada,
Dama de igual prosápia e iguais campanhas,
E taça igual lhe aceita. Afronta é esta
Que à moça faz subir o sangue às faces,
Aquele sangue antigo, e raro, e ilustre,
Que atravessou puríssimo e sem mescla
A corrente dos tempos… Uma Clódia!
Tamanha injúria! Ai, não! mais que a vaidade,
Mais que o orgulho de raça, o que te pesa,
O que te faz doer, viciosa dama,
É ver que um rival merece o zelo
Deste pimpão de amores e aventuras.
Pega na taça o néscio esposo e bebe,
Com o vinho, a vergonha. Sombra triste,
Sombra de ocultas e profundas mágoas,
Tolda a fronte ao poeta.
Os mais, alegres,
Vão ruminando a saborosa ceia;
Circula o dito equívoco e chistoso,
Comentam-se os decretos do senado,
O molho mais da moda, os versos últimos
De Catulo, os leões mandados de África
E as vitórias de César. O epigrama
Rasga a pele ao caudilho triunfante;
Chama-lhe este: “O larápio endividado”,
Aquele: “Vênus calva”, outro: “O bitínio…”
Oposição de ceias e jantares,
Que a marcha não impede ao crime e à glória.
Sem liteira, nem líbicos escravos,
Clódia vai consultar armênio arúspice.
Quer saber se há de Célio amá-la um dia
Ou desprezá-la sempre. O armênio estava
Meditabundo, à luz escassa e incerta
De uma candeia etrusca; aos ombros dele
Decrépita coruja os olhos abre.
“Velho, aqui tens dinheiro (a moça fala),
Se à tua inspiração é dado agora
Adivinhar as cousas do futuro,
Conta-me…” O resto expõe. Ergue-se o velho
Súbito. Os olhos lança cobiçosos
À fulgente moeda. “Saber queres
Se te há de amar esse mancebo esquivo?”
“Sim”. Cochilava a um canto descuidada
A avezinha de Vênus, branca pomba.
Lança mão dela o arúspice, e de um golpe
Das entranhas lhe arranca o sangue e a vida,
Olhos fitos no velho a moça aguarda
A sentença da sorte; empalidece
Ou ri, conforme do ancião no rosto
Ocultas impressões vem debuxar-se.
“Bem haja Vênus! A vitória é tua!
O coração da vítima palpita
Inda que morto já…”
Não eram ditas.
Estas palavras, entra um vulto… É ele?
És tu, cioso amante!
A voz lhes falta
Aos dous (contemplam-se ambos, interrogam-se);
Rompe afinal o lúgubre silêncio…
Quando o vate acabou, tinha nos braços
A namorada moça. Lacrimosa,
Tudo confessa. Tudo lhe perdoa
O desvairado amante. “Nuvem leve
Isto foi; deixa lá memórias tristes,
Erros que te perdôo; amemos, Lésbia;
A vida é nossa; é nossa a juventude”.
“Oh! tu és bom!” “Não sei; amo e mais nada.
Foge o mal donde amor plantou seus lares.
Amar é ser do céu”. Súplices olhos
Que a dor umedecera e que umedecem
Lágrimas de ternura, os olhos buscam
Do poeta; um sorriso lhes responde,
E um beijo sela esta aliança nova.
Quem jamais construiu sólida torre
Sobre a areia volúvel? Poucos dias
Decorreram; viçosas esperanças
Súbito renascidas, folha a folha,
Alastraram a terra. Ingrata e fria,
Lésbia esqueceu Catulo. Outro lhe pede
Prêmio à recente, abrasadora chama;
Faz-se agora importuno o que era esquivo.
Vitória é dela; o arúspice acertara.
NO ALTO
O poeta chegara ao alto da montanha,
E quando ia a descer a vertente do oeste,
Viu uma cousa estranha,
Uma figura má.
Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta o que será.
Como se perde no ar um som festivo e doce,
Ou bem como se fosse
Um pensamento vão,
Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.
Para descer a encosta
O outro estendeu-lhe a mão.
FIM
DE “OCIDENTAIS”
Fonte: www.cce.ufsc.br
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