Alguma Poesia

Machado de Assis

A Mosca Azul

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Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,

Filha da China ou do Indostão.

Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada.

Em certa noite de verão.

E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,

Refulgindo ao clarão do sol

E da lua — melhor do que refulgiria

Um brilhante do Grão-Mogol.

Flor da Mocidade

Eu conheço a mais bela flor;

És tu, rosa da mocidade,

Nascida aberta para o amor.

Eu conheço a mais bela flor.

Tem do céu a serena cor,

E o perfume da virgindade.

Eu conheço a mais bela flor,

És tu, rosa da mocidade.

Vive às vezes na solidão,

Como filha da brisa agreste.

Teme acaso indiscreta mão;

Vive às vezes na solidão.

Poupa a raiva do furacão

Suas folhas de azul celeste.

Vive às vezes na solidão,

Como filha da brisa agreste.

Colhe-se antes que venha o mal,

Colhe-se antes que chegue o inverno;

Que a flor morta já nada val.

Colhe-se antes que venha o mal.

Quando a terra é mais jovial

Todo o bem nos parece eterno.

Colhe-se antes que venha o mal,

Colhe-se antes que chegue o inverno.

Livros e Flores

Teus olhos são meus livros.

Que livro há aí melhor,

Em que melhor se leia

A página do amor?

Flores me são teus lábios.

Onde há mais bela flor,

Em que melhor se beba

O bálsamo do amor?

Menina e Moça

A Ernesto Cibrão

Está naquela idade inquieta e duvidosa,

Que não é dia claro e é já o alvorecer;

Entreaberto botão, entrefechada rosa,

Um pouco de menina e um pouco de mulher.

Às vezes recatada, outras estouvadinha,

Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor;

Tem cousas de criança e modos de mocinha,

Estuda o catecismo e lê versos de amor.

Outras vezes valsando, o seio lhe palpita,

De cansaço talvez, talvez de comoção.

Quando a boca vermelha os lábios abre e agita,

Não sei se pede um beijo ou faz uma oração.

Outras vezes beijando a boneca enfeitada,

Olha furtivamente o primo que sorri;

E se corre parece, à brisa enamorada,

Abrir as asas de um anjo e tranças de uma huri.

Quando a sala atravessa, é raro que não lance

Os olhos para o espelho; e raro que ao deitar

Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance

Em que a dama conjugue o eterno verbo amar.

Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia,

A cama da boneca ao pé do toucador;

Quando sonha, repete, em santa companhia,

Os livros do colégio e o nome de um doutor.

Alegra-se em ouvindo os compassos da orquestra;

E quando entra num baile, é já dama do tom;

Compensa-lhe a modista os enfados da mestra;

Tem respeito a Geslin, mas adora a Dazon.

Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo

Para ela é o estudo, excetuando-se talvez

A lição de sintaxe em que combina o verbo

To love, mas sorrindo ao professor de inglês.

Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço,

Parece acompanhar uma etérea visão;

Quantas cruzando ao seio o delicado braço

Comprime as pulsações do inquieto coração!

Ah! se nesse momento, alucinado, fores

Cair-lhe aos pés, confiar-lhe uma esperança vã,

Hás de vê-la zombar de teus tristes amores,

Rir da tua aventura e contá-la à mamã.

É que esta criatura, adorável, divina,

Nem se pode explicar, nem se pode entender:

Procura-se a mulher e encontra-se a menina,

Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!

A um Legista

Tu foges à cidade?

Feliz amigo! Vão

Contigo a liberdade,

A vida e o coração.

A estância que te espera

É feita para o amor

Do sol com a primavera,

No seio de uma flor.

Do paço de verdura

Transpõe-me esses umbrais;

Contempla a arquitetura

Dos verdes palmeirais.

Esquece o ardor funesto

Da vida cortesã;

Mais val que o teu Digesto

A rosa da manhã.

Rosa . . . que se enamora

Do amante colibri,

E desde a luz da aurora

Os seios lhe abre e ri.

Mas Zéfiro brejeiro

Opõe ao beija-flor

Embargos de terceiro

Senhor e possuidor.

Quer este possuí-la,

Também o outro a quer.

A pobre flor vacila,

Não sabe a que atender.

O sol, juiz tão grave

Como o melhor doutor,

Condena a brisa e a ave

Aos ósculos da flor.

Zéfiro ouve e apela.

Apela o colibri.

No entanto, a flor singela

Com ambos folga e ri.

Tal a formosa dama

Entre dois fogos, quer

Aproveitar a chama . . .

Rosa, tu és mulher!

Respira aqueles ares,

Amigo. Deita ao chão

Os tédios e os pesares.

Revive. O coração

É como o passarinho,

Que deixa sem cessar

A maciez do ninho

Pela amplidão do ar.

Pudesse eu ir contigo,

Gozar contigo a luz;

Sorver ao pé do amigo

Vida melhor e a flux!

Ir escrever nos campos,

Nas folhas dos rosais,

E à luz dos pirilampos,

Ó Flora, os teus jornais!

Da estrela que mais brilha

Tirar um raio, e então

Fazer a gazetilha

Da imensa solidão.

Vai tu, que podes. Deixa

Os que não podem ir,

Soltar a inútil queixa.

Mudar é reflorir.

Uma Criatura

Sei de uma criatura antiga e formidável,

Que a si mesma devora os membros e as entranhas,

Com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales e as montanhas;

E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,

Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo.

Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,

Parece uma expansão de amor e de egoísmo.

Friamente contempla o desespero e o gozo,

Gosta do colibri, como gosta do verme,

E cinge ao coração o belo e o monstruoso.

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;

E caminha na terra imperturbável, como

Pelo vasto areal um vasto paquiderme.

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo

Vem a folha, que lento e lento se desdobra,

Depois a flor, depois o suspirado pomo.

Pois esta criatura está em toda a obra;

Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;

E é nesse destruir que as forças dobra.

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;

Começa e recomeça uma perpétua lida,

E sorrindo obedece ao divino estatuto.

Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.

Soneto de Natal

Um homem, — era aquela noite amiga,

Noite cristã, berço do Nazareno, —

Ao relembrar os dias de pequeno,

E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno

As sensações da sua idade antiga,

Naquela mesma velha noite amiga,

Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto . . . A folha branca

Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,

A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,

Só lhe saiu este pequeno verso:

“Mudaria o Natal ou mudei eu?”

No Alto

O poeta chegara ao alto da montanha,

E quando ia a descer a vertente do oeste,

Viu uma cousa estranha,

Uma figura má.

Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste,

Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,

Num tom medroso e agreste

Pergunta o que será.

A uma Senhora que me Pediu Versos

Pensa em ti mesma, acharás

Melhor poesia,

Viveza, graça, alegria,

Doçura e paz.

Se já dei flores um dia,

Quando rapaz,

As que ora dou têm assaz

Melancolia.

Suave Mari Magno

Lembra-me que, em certo dia,
Na rua, ao sol de verão,
Envenenado morria
Um pobre cão.
Arfava, espumava e ria,
De um riso espúrio e bufão,
Ventre e pernas sacudia
Na convulsão.
Nenhum, nenhum curioso
Passava, sem se deter,
Silencioso,
Junto ao cão que ia morrer,
Como se lhe desse gozo
Ver padecer.

Círculo Vicioso

Bailando no ar, gemia inquieto vagalume:

“Quem me dera que eu fosse aquela loira estrela

Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”

Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

“Pudesse eu copiar-te o transparente lume,

Que, da grega coluna à gótica janela,

Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela”

Mas a lua, fitando o sol com azedume:

“Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela

Claridade imortal, que toda a luz resume”!

Mas o sol, inclinando a rútila capela:

Pesa-me esta brilhante auréola de nume…

Enfara-me esta luz e desmedida umbela…

Por que não nasci eu um simples vagalume?”…

Carolina

Querida, ao pé do leito derradeiro

Em que descansas dessa longa vida,

Aqui venho e virei, pobre querida,

Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro

Que, a despeito de toda a humana lida,

Fez a nossa existência apetecida

E num recanto pôs o mundo inteiro.

Trago-te flores – restos arrancados

Da terra que nos viu passar unidos

E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos

Pensamentos de vida formulados,

São pensamentos idos e vividos.
1906

Relíquia Íntima

Ilustríssimo, caro e velho amigo,

Saberás que, por um motivo urgente,

Na quinta-feira, nove do corrente,

Preciso muito de falar contigo.

E aproveitando o portador te digo,

Que nessa ocasião terás presente,

A esperada gravura de patente

Em que o Dante regressa do Inimigo.

Manda-me pois dizer pelo bombeiro

Se às três e meia te acharás postado

Junto à porta do Garnier livreiro:

Senão, escolhe outro lugar azado;

Mas dá logo a resposta ao mensageiro,

E continua a crer no teu Machado

Visio

Eras pálida. E os cabelos,

Aéreos, soltos novelos,

Sobre as espáduas caíam . . .

Os olhos meio-cerrados

De volúpia e de ternura

Entre lágrimas luziam . . .

E os braços entrelaçados,

Como cingindo a ventura,

Ao teu seio me cingiram . . .

Depois, naquele delírio,

Suave, doce martírio

De pouquíssimos instantes

Os teus lábios sequiosos,

Frios trêmulos, trocavam

Os beijos mais delirantes,

E no supremo dos gozos

Ante os anjos se casavam

Nossas almas palpitantes . . .

Depois . . . depois a verdade,

A fria realidade,

A solidão, a tristeza;

Daquele sonho desperto,

Olhei . . . silêncio de morte

Respirava a natureza —

Era a terra, era o deserto,

Fora-se o doce transporte,

Restava a fria certeza.

Desfizera-se a mentira:

Tudo aos meus olhos fugira;

Tu e o teu olhar ardente,

Lábios trêmulos e frios,

O abraço longo e apertado,

O beijo doce e veemente;

Restavam meus desvarios,

E o incessante cuidado,

E a fantasia doente.

E agora te vejo. E fria

Tão outra estás da que eu via

Naquele sonho encantado!

És outra, calma, discreta,

Com o olhar indiferente,

Tão outro do olhar sonhado,

Que a minha alma de poeta

Não vê se a imagem presente

Foi a imagem do passado.

Foi, sim, mas visão apenas;

Daquelas visões amenas

Que à mente dos infelizes

Descem vivas e animadas,

Cheias de luz e esperança

E de celestes matizes:

Mas, apenas dissipadas,

Fica uma leve lembrança,

Não ficam outras raízes.

Inda assim, embora sonho,

Mas sonho doce e risonho,

Desse-me Deus que fingida

Tivesse aquela ventura

Noite por noite, hora a hora,

No que me resta de vida,

Que, já livre da amargura,

Alma, que em dores me chora,

Chorara de agradecida!

Stella

Já raro e mais escasso

A noite arrasta o manto,

E verte o último pranto

Por todo o vasto espaço.

Tíbio clarão já cora

A tela do horizonte,

E já de sobre o monte

Vem debruçar-se a aurora

À muda e torva irmã,

Dormida de cansaço,

Lá vem tomar o espaço

A virgem da manhã.

Uma por uma, vão

As pálidas estrelas,

E vão, e vão com elas

Teus sonhos, coração.

Mas tu, que o devaneio

Inspiras do poeta,

Não vês que a vaga inquieta

Abre-te o úmido seio?

Vai. Radioso e ardente,

Em breve o astro do dia,

Rompendo a névoa fria,

Virá do roxo oriente.

Dos íntimos sonhares

Que a noite protegera,

De tanto que eu vertera.

Em lágrimas a pares.

Do amor silencioso.

Místico, doce, puro,

Dos sonhos do futuro,

Da paz, do etéreo gozo,

De tudo nos desperta

Luz de importuno dia;

Do amor que tanto a enchia

Minha alma está deserta.

A virgem da manhã

Já todo o céu domina . . .

Espero-te, divina,

Espero-te, amanhã.

Horas Vivas

Noite: abrem-se as flores . . .

Que esplendores!

Cíntia sonha seus amores

Pelo céu.

Tênues as neblinas

Às campinas

Descem das colinas,

Como um véu.

Mãos em mãos travadas,

Animadas,

Vão aquelas fadas

Pelo ar;

Soltos os cabelos,

Em novelos,

Puros, louros, belos,

A voar.

— “Homem, nos teus dias

Que agonias,

Sonhos, utopias,

Ambições;

Vivas e fagueiras,

As primeiras,

Como as derradeiras

Ilusões!

— “Quantas, quantas vidas

Vão perdidas,

Pombas mal feridas

Pelo mal!

Anos após anos,

Tão insanos,

Vêm os desenganos

Afinal.

— “Dorme: se os pesares

Repousares,

Vês? — por estes ares

Vamos rir;

Mortas, não; festivas,

E lascivas,

Somos — horas vivas

De dormir. —”

O Dilúvio
(1863)

E caiu a chuva sobre a terra

quarenta dias e quarenta noites

Gênesis — c. VII, v. 12

Do sol ao raio esplêndido,

Fecundo, abençoado,

A terra exausta e úmida

Surge, revive já;

Que a morte inteira e rápida

Dos filhos do pecado

Pôs termo à imensa cólera

Do imenso Jeová!

Que mar não foi! que túmidas

As águas não rolavam!

Montanhas e planícies

Tudo tornou-se mar;

E nesta cena lúgubre

Os gritos que soavam

Era um clamor uníssono

Que a terra ia acabar.

Em vão, ó pai atônito,

Ao seio o filho estreitas;

Filhos, esposos, míseros,

Em vão tentais fugir!

Que as águas do dilúvio

Crescidas e refeitas,

Vão da planície aos píncaros

Subir, subir, subir!

Só, como a idéia única

De um mundo que se acaba,

Erma, boiava intrépida,

A arca de Noé;

Pura das velhas nódoas

De tudo o que desaba,

Leva no seio incólumes

A virgindade e a fé.

Lá vai! Que um vento alígero,

Entre os contrários ventos,

Ao lenho calmo e impávido

Abre caminho além . . .

Lá vai! Em torno angústias,

Clamores, lamentos;

Dentro a esperança, os cânticos,

A calma, a paz e o bem.

Cheio de amor, solícito,

O olhar da divindade,

Vela aos escapos náufragos

Da imensa aluvião.

Assim, por sobre o túmulo

Da extinta humanidade

Salva-se um berço; o vínculo

Da nova creação.

Íris, da paz o núncio,

O núncio do concerto,

Riso do Eterno em júbilo,

Nuvens do céu rasgou;

E a pomba, a pomba mística,

Volando ao lenho aberto,

Do arbusto da planície

Um ramo despencou.

Ao sol e às brisas tépidas

Respira a terra um hausto,

Viçam de novo as árvores,

Brota de novo a flor;

E ao som de nossos cânticos,

Ao fumo do holocausto

Desaparece a cólera

Do rosto do Senhor.

Os Dois Horizontes

A M. Ferreira Guimarães

(1863)

Dous horizonte fecham nossa vid:
Um horizonte, — a saudade

Do que não há de voltar;

Outro horizonte, — a esperança

Dos tempos que hão de chegar;

No presente, — sempre escuro, —

Vive a alma ambiciosa

Na ilusão voluptuosa

Do passado e do futuro.

Os doces brincos da infância

Sob as asas maternais,

O vôo das andorinhas,

A onda viva e os rosais.

O gozo do amor, sonhado

Num olhar profundo e ardente,

Tal é na hora presente

O horizonte do passado.

Ou ambição de grandeza

Que no espírito calou,

Desejo de amor sincero

Que o coração não gozou;

Ou um viver calmo e puro

À alma convalescente,

Tal é na hora presente

O horizonte do futuro.

No breve correr dos dias

Sob o azul do céu, — tais são

Limites no mar da vida:

Saudade ou aspiração;

Ao nosso espírito ardente,

Na avidez do bem sonhado,

Nunca o presente é passado,

Nunca o futuro é presente.

Que cismas, homem? — Perdido

No mar das recordações,

Escuto um eco sentido

Das passadas ilusões.

Que buscas, homem? — Procuro,

Através da imensidade,

Ler a doce realidade

Das ilusões do futuro.

Dous horizontes fecham nossa vida

Fonte: www.suigeneris.pro.br

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