Paz… Mas que paz?

Rui Barbosa

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Não participo, absolutamente, no entusiasmo, com que vejo receberem-se, em geral, as condições de paz delineadas na proposta alemã e nas notícias da encenação com que o governo do Kaiser procura dramatizá-la.

Sem dúvida nenhuma, por um lado, o seu valor não tem medida. É a mais estrondosa confissão, pela Alemanha, de que ela já não acredita na sua invencibilidade. Mas, ao mesmo tempo, é o mais hábil golpe diplomático e o mais estupendo ardil militar, que se poderia conceber. Ele remove a questão do terreno das armas, onde já estava irremediavelmente perdida pela Alemanha, para o da esgrima política, em que ela ainda se poderia salvar, se os seus adversários se deixassem enlear nos fios do admirável estratagema.

Permita Deus que não se deixem. Com três fiadores como esses gigantes que se chamam Wilson, Loyd George e Clemenceau, não devemos ter sustos. Mas, não fora isso, e os termos em que se acha estabelecido o problema, seriam para nos fazer recear o mais grave dos perigos.

Tal qual ele se acha posto, até agora, com efeito, em quase tudo o que tenho lido, a solução da matéria está subordinada unicamente à cláusula de que as forças teutônicas evacuem os territórios ocupados. Convindo o governo de Berlim em os desocupar, os aliados lhe outorgariam o armistício pedido, uma vez que o império alemão subscreva os quatorze artigos da fórmula Wilson.

Assim, o que se pressupõe, nesta maneira de encarar o assunto, é que a observância, pelo governo alemão, dos compromissos correspondentes a esses quatorze artigos encontra garantia cabal e decisiva “na evacuação pelos exércitos alemães dos territórios ocupados”.

Ora, semelhante suposição é de todo em todo e evidentemente errônea.

Quando a Alemanha, em 1871, impôs à França a célebre indenização dos cinco milhares de milhões de francos, não abandonou o território francês, confiando o pagamento do débito, assim contraído pela França debaixo da pressão dos invasores, à honra da nação vencida. Não. Estipulou “a ocupação do território”, até o resgate desse compromisso como condição essencial da paz ajustada.

Entretanto, a França não violara o território alemão, não o invadira, não o apropriara. Ela era, pelo contrário, a violada, a invadida, a espoliada; e, todavia, ainda por cima, teve de consentir na subsistência da invasão, da ocupação, da espoliação, enquanto se não quitasse dos ônus, que os vencedores lhe ditavam; porque, aos olhos deles, não havia outra fiança admissível da remissão desse encargo pela nação vencida.

Agora, não é de uma contribuição de guerra imposta ao vencido pelo vencedor, não é de tal que se trata. A vencida é a Alemanha; e o de que se trata, é das “restituições”, das “reintegrações”, das “reparações”, a que ela, juridicamente, se acha obrigada, por haver, durante a ocupação, contra todas as leis internacionais, talado e assolado a terra, destruído, arrasado e incendiado as cidades, vilas e povoações, sem deixar rasto de vida, exterminado as culturas, aniquilado as fábricas, esterilizado e inutilizado o próprio solo, convertendo-o em vasto deserto incultivável e inabitável, por toda a extensão das regiões que atravessa; — e tudo isto metodicamente, sistematicamente, ainda até agora, quando está implorando a paz.

Todas essas restituições e reposições, que constituem a mais sagrada e irrecusável das dívidas perante as mais elementares normas da justiça, estão contempladas nos artigos da fórmula Wilson.

A Alemanha não se pode a elas evadir.

Sem elas a devolução dos territórios ocupados deixaria lesadas, fraudadas, arruinadas, a Bélgica, a França, a Sérvia, e todas essas outras nações, por cujo território passou, devastando e calcinando tudo, o flagelo da ocupação germânica.

Aceitando, pois, as exigências da fórmula Wilson, os impérios centrais aceitariam, necessariamente, o encargo dessas restituições e reparações.

Mas qual a garantia do cumprimento dessas obrigações, assim por eles contraídas? Manifestamente, não há, não pode haver nenhuma, senão a mesma de que usou a Alemanha com a França: a ocupação do território dos devedores, nos limites de tempo e espaço que forem julgados necessários para a segurança dos direitos dos credores.

A Alemanha proclamou como princípio seu, no começo desta guerra, a doutrina de que os tratados não obrigam as potências contratantes, desde que lhes convenha a elas rompê-los e para os romperem lhes assista força bastante. Os governos aliados lembram todos os dias ao governo alemão esta sua profissão de fé, como documento de que na palavra desse governo não se pode estribar convenção alguma. Foi o próprio Sr. Wilson, se me não engano, quem, por essas e outras, lhe chamou governo “sem honra”.

Ora quando não se pode confiar nem na palavra, nem nos escritos do devedor, o remédio jurídico de proteção para os direitos creditórios é o ônus real, o penhor, a hipoteca, ou, em direito internacional, a ocupação do território da nação devedora. Se desta garantia prescindissem, portanto, agora, os aliados, os seus direitos, no que lhes é mais substancial, na restituição do que lhe foi barbaramente extorquido e roubado, ficariam de todo em todo entregues ao arbítrio dos autores dessas extorsões e depredações inauditas. A paz não teria estabilidade nenhuma. Os ardis utilizados para baldar esses compromissos suscitariam e renovariam conflitos intermináveis. E a única situação cômoda seria a dos devedores, a quem, destarte, se houvessem deixado os meios fáceis de iludir esses compromissos desgarantidos.

Qual é, presentemente, a situação da Alemanha? A do mais total desbarato. Os restos dos seus exércitos estão-se fundindo todos os dias a olhos vistos. Não tem mais homens, nem material, para sustentar a guerra. Vê-se que está vencida. Sente-se vencida. Vencida já se confessa. Não há mais nada, que possa reter a inundação de que a estão ameaçando, pelo ocidente e pelo oriente, os seus inimigos. Metz já se acha sob os canhões aliados. Essa evacuação da Bélgica e da França, oferecida pelo Kaiser, como concessão contratual, voluntária, está-se operando (mau grado seu), com uma rapidez vertiginosa, pela energia irresistível dos canhões e baionetas da Entente. A vitória aliada marcha a passos fantásticos contra a fronteira germânica. A distância já é de meses, ou semanas, se não de dias.

Portanto, os exércitos alemães estão perdidos.

Portanto, o território alemão está em véspera de expiar, com a invasão reivindicatória, a invasão criminosa, de que o seu governo e as suas tropas deram ao mundo o medonho exemplo.

Portanto, foi um dia a glória alemã, a lenda alemã da sua invencibilidade, a honra da Alemanha prussiana.

E que viria fazer, agora, essa paz, contratada com ela de igual a igual entre os vencedores e a vencida, e a ela liberalizada unicamente a troco dessa evacuação dos territórios ocupados, para a qual já não necessitamos senão de mais algumas semanas de triunfos inevitáveis?

Viria tão-somente restituir à Alemanha “tudo o que ela já perdeu e já é dos aliados”.

Viria salvar os exércitos alemães, já vencidos e tangidos em acelerada fuga da Bélgica e da França.

Viria salvar o território alemão, já na contingência iminente da invasão aliada.

Viria salvar a honra nacional da Alemanha, o seu prestígio, a sua soberba, a presunção da sua invencibilidade.

Viria salvar os grandes responsáveis por este cataclismo, viria salvá-los da expiação necessária, exemplar, reparadora, a que a opinião pública, nos países aliados, aspira ardentemente, não por espírito de vingança, mas por um sentimento imperioso de justiça e humanidade.

Isso tudo ganharia a Alemanha, isso tudo por ela já perdido. E que ganhariam em troco os aliados? Uma paz mutilada, precária, desgarantida, em vez da paz cabal, inteira e segura, de que lhes dá certeza, dentro em muito breve tempo, a torrente caudalosa dos seus triunfos.

Com os seus exércitos salvos, com o seu território intacto, com o seu amor-próprio nacional reerguido, a vencida recolheria as suas forças, para ter, daí a pouco, exigências de vencedora, e, brevemente, dar, outra vez, que fazer às potências liberais, vítimas da sua excessiva generosidade.

Dir-se-á que, renunciando as garantias “reais”, os aliados ficariam sobejamente seguros com a garantia “moral” de um contrato celebrado, já não com a vontade autocrática do Kaiser, mas com a soberania do povo alemão.

Tal o objeto da última interrogação formulada no questionário da resposta Wilson.

A essa inquirição vai responder comodamente a Alemanha. Um rescrito do Kaiser substitui as formas do governo pessoal pelas do governo parlamentar. Os príncipes do império, convocados pelo autocrata, referendam os atos imperiais. Uma votação, enfim, unânime ou geral, do Reichstag soleniza esses atos com a chancela do povo alemão. Eis aí. Nada mais.

Ora, em tudo isso haveria apenas um elemento considerável: o voto do Reichstag. Mas esse Reichstag, eleito antes da guerra, esposou essa guerra com entusiasmo, sustentou-a em todos os seus horrores, abraçou-se, nela, com o Kaiser em todos os seus crimes; e, se, uma vez, teve certas veleidades de paz, foi para se retratar logo depois, assim que uma aragem de vitória veio reanimar as hostes de Hindenburg. Tão identificado, pois, com a guerra quanto o próprio Kaiser, e com ele absolutamente solidário em toda ela, como poderia essa assembléia, agora, dele emancipar-se, para assumir as funções de seu abonador, e falar ao mundo em nome da nação alemã?

Mandato para tanto não tem. Era mister que ela lho desse; e, para isso, necessária seria uma eleição, que enviasse ao novo parlamento, realmente tal, os verdadeiros representantes do povo alemão, eleitos com a incumbência de exprimirem o seu voto.

Ou então, mais abreviadamente, seria necessário que a nação teutônica, levantando-se num rápido movimento de sua soberania, mudasse a face do seu regímen, dando ao mundo o testemunho irrecusável de que rompera com o seu passado nesta guerra, ou nunca o havia esposado.

A não ser por um destes dois meios, todas as negociações que agora se entabulassem e concluíssem com o Império Alemão, seriam travadas e ultimadas com o próprio governo do Kaiser, seus agentes, seus magnatas, seus instrumentos, com esse governo, em suma, com o qual têm declarado constantemente os governos aliados ser impossível entrar em relações no terreno da boa-fé, da honra e da confiança internacional.

Quer-se saber (dizem) se as propostas da Alemanha são sinceras.

Mas como averiguar a sinceridade da Alemanha, interrogando o governo do Kaiser? Ou como passar por sobre o governo do Kaiser, para interrogar diretamente a Alemanha? Ou como saber se é da Alemanha, ou do Kaiser, a resposta dada por ele e seus colaboradores em nome da Alemanha?

Honesta, a proposta alemã!? Sincera, essa proposta! Mas as arras da sua sinceridade e honestidade aí estão dadas materialmente, em fatos que não deixariam vacilar a consciência ao mais timorato dos juízes. Se com a direita implora a paz, em nome da humanidade, a Alemanha, com a esquerda, continua a brandir o facho implacável dos incêndios, a reduzir a cinza todas as cidades, que evacua, todas as aldeias donde sai, todos os povoados, por onde passa, às dezenas e dezenas, dia a dia, invariavelmente, ostentosamente, insolentemente, sem perdão nem exceção alguma, ao mesmo passo que as populações inermes vão tangidas à frente dos incendiários, no atropelo da fuga desabalada, como rebanhos de escravos, ou bestas de carga.

Pois então!? Mais honestas súplicas de paz já se viram neste mundo? Quem é que impetra a paz? É o povo alemão. E quem é que põe fogo a Saint-Quentin, a Douai, a Cambrai, a Laon, quem é que passa como as lavas de um vulcão inexorável por sobre todas essas cidades francesas ou belgas, que ardem todos os dias no horrendo panorama da retirada germânica? Será também o povo alemão? Não: é o Kaiser.

De sorte que, simultaneamente, o Kaiser rege a guerra, para afogar em chamas o território da Bélgica e da França, ao mesmo tempo que o povo alemão rege o governo, para solicitar dos Estados Unidos o armistício a bem das hordas, cuja bandeira leva diante de si a conflagração universal.

A mim, senhores, me parece (ou de todo perdi a razão) que a simultaneidade entre esses dois fatos, a sistematização do incêndio na retirada alemã e o panegírico da paz na nota germânica aos Estados Unidos, sobejam, para mostrar, com o seu prodigioso contraste, que nunca a política de Berlim foi menos sincera, menos leal, menos digna da confiança do mundo.

É uma cartada, que a sua diplomacia está jogando. Não lhe conheço igual em astúcia e arrojo. Até agora a sua “marotte” era esmagar o mundo com as suas armas. Agora é empalmá-lo com as suas tramóias. A hiena fez-se raposa, e quer apanhar o queijo. Cuidado!

Nas extremidades a que, por fim, acaba ela de chegar, a salvação da Alemanha, hoje, consistiria em se refugiar dentro nas suas fronteiras, encurtando, assim, a sua frente, e preservando os seus meios de guerra. Os seus próprios críticos militares já estão dizendo que este seria doravante o seu melhor plano da campanha. Destarte os seus exércitos estariam livres e seguras as suas armas, as suas munições, os seus recursos restantes, para o que desse e viesse.

Pois bem: esse grande movimento estratégico de reorganização militar é, justamente, o que a proposta alemã pretende obter que se consume sob a proteção dos aliados, mediante a concessão do armistício, para a evacuação dos territórios invadidos. Eis, em sua substância, a paz alvitrada.

Depois… depois, ao abrigo das suas fronteiras, das suas praças de guerra, a astuta potência, numa situação bem diversa da de hoje, “conversaria” com os aliados.

Será essa a paz, a que aspira o mundo? a que esperam os aliados? a que lhes prometem as resoluções entre eles assentadas, os seus princípios, os seus compromissos?

Eis as minhas impressões e convicções. Dito-as com esforço, na doença, para não deixar a minha consciência sem desencargo. Bem sei que nada valem. Mas, valham pelo que valerem, são as opiniões de um espírito que, há quatro anos, espera da sorte desta guerra a sorte futura da humanidade, e não desejaria vê-la posta em risco por uma paz, onde tanto perdessem as vítimas, e tanto ganhassem os algozes.

Publicado originalmente em O Imparcial, em 14 de outubro de 1918.

 

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