Rui Barbosa
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Em 23 de abril de 1892
Senhores Juízes do Supremo Tribunal Federal,
Minha impressão, neste momento, é quase superior às minhas forças, é a maior, com que jamais me aproximei da tribuna, a mais profunda com que a grandeza de um dever público já me penetrou a consciência, assustada da fraqueza do seu órgão. Comoções não têm faltado à minha carreira acidentada, nem mesmo as que se ligam ao risco das tempestades revolucionárias. Mas nunca o sentimento da minha insuficiência pessoal ante as responsabilidades de uma ocasião extraordinária, nunca o meu instinto da pátria, sob a apreensão das contingências do seu futuro, momentaneamente associado aqui às ansiedades de uma grande expectativa, me afogaram o espírito em impressões transbordantes, como as que enchem a atmosfera deste recinto, povoado de temores sagrados e esperanças sublimes.
Subjugado pela vocação desta causa incomparável, custa-me, entretanto, a dominar o respeito, quase supersticioso, com que me acerco deste tribunal, o oráculo da nova Constituição, a encarnação viva das instituições federais. Sob a influência deste encontro, ante esta imagem do antigo areópago transfigurada pela distância dos tempos, consagrada pela América no Capitólio da sua democracia, ressurge-me, evocada pela imaginação, uma das maiores cenas da grande arte clássica, da idade misteriosa em que os imortais se misturavam com os homens: Atenas, a olímpica, desenhada em luz na obscuridade esquiliana, assentando, na rocha da colina de Arés, sobranceira ao horizonte helênico, para o regímen da lei nova, que devia substituir a contínua alternativa das reações trágicas, o rito das deusas estéreis da vingança, pelo culto da justiça humanizada, essa magistratura da consciência pública, soberana mediadora entre as paixões, que destronizou as Eumênides atrozes.
O sopro, a que a República vos evocou, a fórmula da vossa missão, repercute a tradição grega, divinamente prolongada através da nossa experiência política: “Eu instituo este tribunal venerando, severo, incorruptível, guarda vigilante desta terra através do sono de todos, e o anuncio aos cidadãos, para que assim seja de hoje pelo futuro adiante.”( 1)
Formulando para nossa pátria o pacto da reorganização nacional, sabíamos que os povos não amam as suas constituições senão pela segurança das liberdades que elas lhes prometem, mas que as constituições, entregues, como ficam, ao arbítrio dos parlamentos e à ambição dos governos, bem frágil anteparo oferecem a essas liberdades, e acabam, quase sempre, e quase sempre se desmoralizam, pelas invasões, graduais, ou violentas, do poder que representa a legislação e do poder que representa a força. Nós, os fundadores da Constituição, não queríamos que a liberdade individual pudesse ser diminuída pela força, nem mesmo pela lei. E por isso fizemos deste tribunal o sacrário da Constituição, demos-lhe a guarda da sua hermenêutica, pusemo-lo como um veto permanente aos sofismas opressores da Razão de Estado, resumimos- lhe a função específica nesta idéia. Se ela vos penetrar, e apoderar- se de vós, se for, como nos concebíamos, como os Estados Unidos conseguiram, o princípio animante deste tribunal, a revolução republicana estará salva. Se pelo contrário, se coagular, morta, no texto, como o sangue de um cadáver, a Constituição de 1891 estará perdida. Ora, é a primeira vez que essa aspiração se vai ver submetida à prova real. E aqui está por que eu tremo, senhores, receando que o julgamento desta causa venha a ser o julgamento desta instituição.
Não faltam à razão política interpretações interessadas, para figurar de outro modo o vosso papel, a vossa orientação natural neste pleito. Porém ela é parte no litígio, e é justamente como abrigo contra as seduções dela, os seus intérpretes, ou as suas ameaças, que vós constituís aqui o conselho nacional da razão jurídica. Vós sois o sacerdócio sumo dessa faculdade, atrofiada nos povos opressos, desenvolvida entre os povos livres na razão direta da sua liberdade. O espírito jurídico é o caráter geral das grandes nações senhoras de si mesmas. Dele nasce a grandeza da monarquia representativa na Inglaterra e a grandeza da república federal nos Estados Unidos. Cada cidadão inglês, cada cidadão americano é um constitucionalista quase provecto. Há entre nós antigas prevenções contra os juristas; mas essas prevenções caracterizam os povos, onde o sentimento jurídico não penetrou no comum dos indivíduos. O mal está na ausência desse sentimento, ou na sua degeneração. Os povos hão de ser governados pela força, ou pelo direito. A democracia mesma, não disciplinada pelo direito, é apenas uma das expressões da força, e talvez a pior delas. Daí o valor supremo dado pelos Estados Unidos ao culto do senso jurídico; daí a religião da verdade constitucional encarnada por eles na sua Corte Suprema; daí a preponderância do legismo nessa democracia, definida por eles mesmos como “a aristocracia da toga”.
Não fosse rara, como é, entre nós essa qualidade essencial, e o poder não seria tão audaz, e o povo não seria tão ludibriável. Oxalá fôssemos uma nação de juristas. Mas o que somos, é uma nação de retóricos.
Os nossos governos vivem a envolver num tecido de palavras os seus abusos, porque as maiores enormidades oficiais têm certeza de iludir, se forem lustrosamente fraseadas. O arbítrio palavreado, eis o regímen brasileiro. Agora mesmo, a usurpação de que me queixo perante vós, nunca se teria sonhado, se a espada, que nos governa, estivesse embainhada no elemento jurídico.
Mas a espada, parenta próxima da tirania, detesta instintivamente esse elemento. No começo do século atual, quando a França expiava, sob a ditadura de Bonaparte, os excessos do delírio revolucionário, uma das necessidades, que primeiro se impuseram ao tino dos seus administradores, foi a reconstituição da ordem dos advogados que a revolução condenara, e dispersara. Ela reapareceu com o decreto imperial de 1810. Mas, quando Cambacerès submeteu ao imperador o projeto desse ato, Napoleão, ao primeiro impulso do seu ânimo, o repeliu com um dos seus terríveis arremessos: “Enquanto eu trouxer ao lado esta espada, nunca assinarei tal decreto. Quero que se possa cortar a língua ao advogado, que a utilize contra os interesses do governo.”
Andará entre nós a alma dos Napoleões? Terá ela encarnado na legião dos nossos Césares, contrafeitos sob o manto republicano? Andará em metempsicose expiatória por estas paragens? Não seria sem fundamento a suspeita, a julgarmos pelas agressões, que me tem valido a interposição deste requerimento de habeas corpus. Que crime cometi, para que os sabres se embebam na tinta dos jornalistas, e a pena dos jornalistas escreva com o retinir dos sabres? Falo às ruas? Não: dirijo-me à autoridade judicial. Movo paixões? Não: apelo para a lei. E, todavia, por isto só me indigitam como inimigo da ordem, como provocador temerário de questões inoportunas.
Inoportuna, a reivindicação da liberdade pelos meios legais, quando o Poder Executivo semeia sobre a sociedade espavorida prisões e desterro? Mas por que havia este país de merecer tamanha humilhação, a humilhação deste medo à lei? Substituímos o Império pela República, malcontentes com a soma de liberdades, que o Império nos permitia; e, logo aos primeiros passos após a conquista da República, o uso de uma das garantias liberais que atravessaram o Império invioladas, alvorota o governo republicano. Que títulos deram a esses cortesãos do poder o direito de representar a República, e defendê-la contra nós, que a fizemos?
Eu disse, na publicidade agitada do jornalismo, e quero repeti- lo aqui, ante a majestade impassível da justiça: este país não seria uma nação, mas uma escravaria digna do seu vilipêndio, se o direito destas vítimas não encontrasse um patrono para este habeas corpus. Teríamos descido tanto, que o cumprimento deste dever trivial assuma as proporções dos grandes heroísmos? Por que se inquietam os agentes da ordem social? Que perigo os ameaça? A concessão do habeas corpus? Nessa hipótese, só uma coisa poderia enfraquecer o governo: a sua insubmissão à sentença do tribunal. Falsas noções da ordem nos levam a supor sempre que a força do poder está na ostentação da força. Mas em verdade, em verdade vos digo, senhores: o poder forte é aquele, cujo amor-próprio capitula à boa mente diante da lei. A força da força tem a sua fraqueza incurável na desestima da nação, que a odeia. Quereis a estabilidade do poder? Fazei-o dócil à justiça.
O recurso de que me valho pelos pacientes não representa conveniências particulares. É um instrumento da ordem pública. Os meus constituintes não são os presos da Laje, ou os desterrados de Cucuí. Detrás deles, acima deles, outra clientela mais alta me acompanha a este tribunal. A verdadeira impetrante deste habeas corpus é a nação. Conforme a decisão, que proferirdes, ela saberá se a República Brasileira é o regímen da liberdade legal, ou o da liberdade tolerada. E não esqueçais que a liberdade tolerada é a mais desbriadora e, portanto, a mais duradoura das formas do cativeiro; porque é o cativeiro, sem os estímulos que revoltam contra ele os povos oprimidos.
Das vítimas dos decretos de 10 e 12 de abril não trago procuratura.
O meu mandato nasce da minha consciência impessoal de cidadão.
Estamos num desses casos, em que cada indivíduo é um órgão da lei. E, se para casos tais, a lei não instituiu uma função obrigatória, uma curatela especial, proposta à reclamação da justiça e à promoção do habeas corpus, é porque legisladores de povos livres não poderiam conceber que o executivo desterre e prenda cidadãos em massa, sem que do seio da sociedade, lacerada por essas explosões brutais da força, se levante espontaneamente ao menos uma voz de homem, um coração, uma consciência, lutando pela restituição do direito suprimido. O cidadão que se ergue, propugnando, contra o poder delirante, a liberdade extorquida, não representa uma vocação do seu egoísmo: exerce verdadeira magistratura. Os aduladores da opressão, os eunucos do cativeiro satisfeito argüirão de perturbadora a voz, que protesta. Mas a verdade é que ela trabalha pela pacificação, é que ela apostoliza a ordem, curando as chagas abertas pela força com o bálsamo da confiança na lei, apontando aos irritados, acima das violências administrativas e das violências populares, a onipotência imaterial da justiça. Os tiranizados carecem de um recurso: se lhes roubais o da legalidade, condená-los-eis ao da insurreição. Quando a decepção pública já não puder levantar as mãos para os tribunais, acabará por pedir inspirações ao desespero. É necessário termos baixado muito, e perdido tudo, para haver censura de imprudência contra uma tentativa, como esta, rigorosamente legalista. Trememos do nosso próprio direito público, como os negros, sob o tagante do feitor, se amedrontam de pensar que são homens. Nunca o meu país foi tão caluniado. Ele perece à sede dessa legalidade, com que não lhe acenaram, senão para o tantalizar. O arbítrio, eis o inimigo, senhores juízes! Não vos temais senão dele: fora da legalidade é que se escondem os grandes perigos, e se preparam os naufrágios irremediáveis.
Entretanto, eu, que me oponho à desordem oficial, para evitar a desordem popular, compareço diante de vós quase como réu.
Exploram-se contra mim circunstâncias, insensatamente apreciadas, para me convencerem de indiscrição. Revolve-se o meu passado, para me desautorarem com a tacha de incoerência. Eu sei, senhores juízes, que uma das primeiras necessidades de qualquer causa é a integridade moral do seu patrono, o prestígio da sua sinceridade. Devo, pois, reivindicar altamente a minha, e hei de reivindicá-la.
Que analogia pode haver, senhores juízes, entre as deportações de 1889 e os desterros de hoje? Entre o habeas corpus requerido então e o habeas corpus agora requerido? Arredamos temporariamente do país três cidadãos (três, não mais),(2) que, pela sua conspicuidade política na monarquia, pelas suas proeminentes responsabilidades no governo do império, pelo seu enérgico antagonismo à aspiração republicana, se consideravam incompatíveis com a revolução nas primeiras afirmações da sua iniciativa. Dois deles, o chefe do gabinete, que ela depusera, e seu irmão, tinham criado, pela questão militar, no elemento preponderante, rancores violentos, cujas conseqüências receávamos não possuir meios de acautelar. Essas vidas eram-nos sagradas. A conservação delas era ponto de honra para nós. Qualquer acidente, que lhes acontecesse, seria carregado à nossa conta. Em tais ocasiões não faltam perversos e miseráveis, para utilizar, a benefício das suas desforras, as garantias de irresponsabilidade, com que o crime então se lhes facilita. Nós não queríamos que a revolução se manchasse com uma gota de sangue. Outra coisa não tivemos em mente, com a remoção passageira desses nossos concidadãos.
Homens de governo, os dois ilustres estadistas abrangidos nessa medida, mais calmos hoje, hão de ter compreendido os nossos embaraços e feito justiça aos nossos sentimentos. Ninguém, a esse tempo, achou exagerado que, para derruir um trono, e fundar uma repúbli- ca, afastássemos do país, durante a comoção revolucionária, o presidente do conselho, de cujas mãos rolara a coroa do imperador, cuja honra não poderia assistir resignada à consolidação desse fato, e cuja segurança pessoal, ameaçada por uma onda imensa de impopularidade, devia necessariamente correr risco nas horas revoltas da transição.
Requerer habeas corpus a favor desses cidadãos, naquela conjuntura, não tinha senso comum. Estou certo de que eles mesmos, consultados, não autorizariam semelhante extravagância. O habeas corpus é um apelo à ordem constitucional; e a ordem constitucional estava suspensa.
O desterro daqueles eminentes brasileiros era um ato de revolução; e contra os atos de revolução não há recursos legais. Aliás por que não requererem também habeas corpus em nome da família imperial? Por serem príncipes, não deixavam de ser brasileiros os seus membros.
Eram brasileiros, que a ditadura revolucionária privava para sempre do domicílio em sua terra. Nós o fazíamos com a mais plena consciência da legitimidade dessa resolução, fundada na autoridade suprema da necessidade.
Ainda nenhum país destronou uma dinastia, permitindo aos seus representantes a residência no território nacional. Ainda nenhuma nação passou da monarquia para a república, autorizando o imperante deposto a permanecer no país, onde reinava. A própria Inglaterra, o asilo universal dos proscritos políticos, não procedeu de outro modo: a linhagem dos pretendentes varridos pela revolução de 1688 extinguiu-se no exílio.
Mas não havia lei escrita, que tal poder nos conferisse. Julgados perante as leis escritas os nossos atos, seriam passíveis de condenação e forca.
Se não tínhamos faculdade, para desterrar temporariamente alguns cidadãos, muito menos podíamos proceder na plenitude da mais alta soberania, banindo perpetuamente o imperador. O tribunal, que concedesse habeas corpus aos desterrados, não poderia recusá-lo aos banidos. A conseqüência imediata do seu ato seria desconhecer a autoridade da ditadura processar, em nome do Código Penal, os ditadores, e, em nome da Constituição, reassentar no trono a família imperial.
O Supremo Tribunal, pois, que não se compunha de néscios, percebeu, sem esforço, que o convidavam à prática de um disparate. E negou o habeas corpus. Negou-o livremente. Ele bem via que resolver noutro sentido seria desconhecer a própria autoridade, de que a sua emanava; porque, no interregno revolucionário, entre a Constituição, que desaparecera, e a Constituição, que se esperava, todas as funções públicas eram derivações da ditadura. Nós podíamos ter dissolvido os tribunais. Não o fizemos, para não transtornar as relações de direito civil, que não toleram solução de continuidade, e para não perturbar a continuidade às relações de direito penal. Mas, por isso mesmo, as faculdades da justiça ordinária tinham seu limite na ação política da ditadura, que as garantia.
E, depois, confrontando aquele caso com este, descobrireis contrastes singulares. O nosso procedimento, naquela época, é a confirmação mais frisante das minhas reclamações na hipótese atual.
Não tratamos como criminosos os nossos deportados. Não avocamos o direito de julgá-los, e sentenciá-los. Não lhes irrogamos penas.
Tínhamos a prisão, as fortalezas, o degredo para a morte nos pantanais abrasados do Amazonas, ou de Mato Grosso. Tudo isso, de que se serve hoje o governo. Mas tais suplícios nunca nos perpassaram pela mente.
Reduzimos a expatriação a uma viagem à Europa. Hoje, pelo contrário, o presidente da República assume formalmente a autoridade judicial. “Eu puno estes criminosos”, diz ele; e, vai procurar, abaixo da morte, a ameaça dela nos mais mortíferos climas do país, para a infligir às suas vítimas. E é contra essa usurpação da prerrogativa judiciária que eu venho bater, com o pedido de habeas corpus, às portas deste tribunal.
Ainda mais. Antes de resignarmos a ditadura, cuja abreviação era a nossa idéia fixa, para cuja abreviação trabalhamos posso dizer que heroicamente, resistindo a todas as tentações, e acumulando todos os sacrifícios, nós revogamos os decretos de expatriação. Dávamos assim documento expresso de não admitir a perduração dessas medidas repressivas além do período ditatorial. Que faz agora o governo? Justamente o contrário. Declara restauradas as garantias constitucionais; mas reserva-se o privilégio de perpetuar-lhes a suspensão em dano dos brasileiros, que lhe apraz excluir do direito comum. Contra este desdobramento do estado de sítio, contra esta sobrevivência do estado de sítio a si mesmo, clama diante de vós a minha petição de habeas corpus. Como estais vendo, os atos, com que me averbam de contraditório, são precisamente o mais positivo dos argumentos contra esta monstruosa superfetação política. Nós éramos a ditadura abdicando na Constituição; estes são o governo constitucional usurpando a ditadura.
Senhores juízes do Supremo Tribunal, de toda a altura da vossa justiça, a cujo lado me acho, desprezo as explicações malévolas ou míopes, com que tenho visto por aí assaltarem o meu procedimento, buscando-lhe a origem nas conveniências subalternas, em que a política trafica, ou em que a vaidade se apascenta.
Muitos, almas a cuja benevolência devo ser agradecido, lamentam a minha temeridade, e não acertam com interpretação razoável para ela. “Que interesse é o vosso nisto?”, interpelam-me os discretos.
Mas o homem não vive unicamente do interesse debaixo do céu. Ou, por outra, no próprio altruísmo há conveniências, de ordem superior, é certo, insensíveis ao tato grosseiro dos calejados, mas tão essenciais à existência normal de uma nação, como o ambiente que não se vê, à respiração das criaturas vivas. Se passar este precedente, se este habeas corpus não vingar, quem é mais o cidadão seguro da sua liberdade, quem é mais o homem livre por direito próprio neste País? De sua liberdade só? E por que não da sua honra? Não está ela entregue à ação difamatória dos decretos do Executivo? E a vida… a vida, ao menos, escapará? Mas quem poderá dizer ao degredo “Não matarás”? Quem pode assegurar que o desterro não envolva a morte? Quem tirará ao que inflige a masmorra fora da lei, o poder de cominar, fora da lei, a privação da vida?
E que direi dos que vão descobrir nas tortuosidades da preocupação política o fio desta iniciativa? Mas, senhores juízes, a propaganda política faz-se pela imprensa; e eu tenho evitado sistematicamente a imprensa, recusando a direção de vários jornais de primeira ordem nesta capital, postos recentemente à minha disposição absoluta.
A força política adquire-se na tribuna das assembléias deliberantes, ou no exercício dos altos cargos do governo; e eu, depois de renunciar espontaneamente a vice-chefia do Estado, e deixar a ditadura, quando não dependia senão da minha vontade manter-me nela, associado ao Marechal Deodoro, cuja confiança disputou os meus serviços até ao último momento, acabei por devolver aos meus eleitores o mandato de senador.
Não são essas as artes da ambição política. O agitador não repudia tais armas, as mais formidáveis na conquista do poder.
Quisesse eu levantar escarcéus políticos, e não me dirigiria ao remanso deste tribunal, a este recanto de paz, abrigado contra todos os ventos, a esta enseada, a cuja beira vêm morrer as marulhadas do oceano, que brame lá fora. Aqui não podem entrar as paixões, que tumultuam na alma humana; porque este lugar é o refúgio da Justiça.
A Justiça é a minha ambição, senhores juízes: a Justiça, para a qual se voltam os interesses contemporâneos, mas que deve cobrir igualmente as gerações futuras, ou entregá-las indefesas às intempéries da força, se lhe faltar, de vossa parte, a proteção de um aresto reparador.
Meu único pensamento é arrancar às misérias de uma situação inconstitucional, cidadãos inculpados; e, se eles têm culpa, entregá-los, aos tribunais.
Às vítimas dessas medidas indefensáveis nenhuma dependência me vincula, a não ser as relações gerais de humanidade. Amigos quase os não tenho entre eles. Desafeiçoados, adversários, inimigos, isso sim, muitos. Dessa leva, atirada para as prisões e para o degredo, a parte mais numerosa, ou, pelo menos, a mais saliente, compõe-se de antagonistas do Governo Provisório, que, combatendo-o, o enfraqueceram, e, enfraquecendo-o, aparelharam a situação, de que é procedência a atualidade.
Fosse minha alma capaz de aninhar despeitos, e a minha vingança ter-se-ia feito agora em mel para a taça do ditador. É lá, no coro da lisonja, entre os escanções do triunfador, que estaria o meu lugar, se o meu temperamento me permitisse fazer da palavra instrumento de instintos inferiores, se o amor da pátria não fosse a grande paixão de minha vida.
Entre esses condenados, senhores juízes, há grandes influências sociais, potestades do alto comércio, opulentos capitalistas. Todo um mundo de interesses, subalternidades e afeições gravita em torno deles. Ninguém imaginaria que as forças desse círculo de relações, despertadas por um apelo à Justiça como este, não se agitassem vivamente no campo da ação, que entre elas e o patrono deste habeas corpus não se estabelecesse a mutualidade mais ativa de esforços pela causa comum.
Pois bem: a verdade é que não houve entre mim e elas, até hoje, comunicação alguma. Que circunstâncias poderiam explicar esta retração dos interessados, o silêncio dos parentes, das famílias, dos amigos, derredor desta tentativa legal de liberdade? O medo, senhores juízes, já teve força uma vez, para abrir este vazio entre o defensor e seus clientes! Debaixo desses tetos, a que o golpe ditatório arrebatou os chefes, penetrou o terror.
Mães, mulheres, filhas, irmãs, não sabem se a própria defesa não será, para os envolvidos na cólera do poder, um princípio de novos sofrimentos.
Cada uma delas, heroína capaz de todos os sacrifícios pelas grandes afeições domésticas, pelos grandes deveres do coração, treme, por isso mesmo, de que um movimento de energia, um grito público pela Justiça atue como provocação ao arbítrio daqueles cuja soberania não conhece limites. Ninguém sabe a que ponto se possa agravar a sorte dos flagelados. Ninguém pode prever as cabeças ameaçadas pelo raio, que se oculta nas mãos da ditadura. É o sentimento da escravidão na sua plenitude.
E depois (recebei na vossa magnanimidade esta franqueza como homenagem do meu respeito)… não se confia bastante na Justiça.
Ainda não se experimentou a autoridade deste Tribunal, ainda não se lhe sentiu a força amparadora contra os excessos do poder. Quer-se um exemplo; e esse exemplo reanimará a nação.
Meu contacto com os presos reduz-se, pois, à carta do deputado Seabra,(3) anexa à petição, e à carta do deputado Retumba,(4) que agora vos apresento. Uma e outra vereis que não foram lançadas, para a publicidade forense. A primeira é um simples bilhete, escrito sobre a amura do navio, ao partir para o exílio. A segunda, uma rápida missiva confidencial. Em ambas está, no seu desalinho íntimo, o espanto da inocência, a decepção da injustiça inopinada. Ambas vos dão a prova de que os detidos não passaram pela menor inquirição. Não se lhes perguntou, sequer, o nome. É pois, falsíssima falsidade a asserção, de origem oficial, que os dá como examinados, em longo interrogatório, por autoridades policiais.
Ia-me, porém, escapando uma circunstância da verdade, que vos devo relatar inteira. Não pode haver segredos para este tribunal nas minhas relações com os meus clientes. Com alguns deles tive ocasião de contacto mais direto. Foi, sobre a noite, à véspera da partida do Alagoas.
(Não esqueçais que essa turma de condenados políticos seguia para o degredo, a propósito, na data comemorativa da execução do Tiradentes.)( 5) O coração arrastou-se ao estabelecimento militar onde os designados do desterro aguardavam a execução do mandado supremo. Atravessei corredores de armas, e fui encontrá-los na prisão promíscua, que os encerrava. Lá os vi, em uma sala menor talvez que metade desta, seis, ou oito, sentados nas camas onde dormiam: deputados, senadores, almirantes, generais. Tranqüilos, erectos, confiantes, animados, como inocentes, como vítimas de um infortúnio imerecido, como consciências sem remorso, tão dignos da liberdade quanto vós, que me ouvis. Esqueci- me de separações pessoais, e apertei-os ao peito. Quis ter, nesse abraço, o meu pedaço de exílio, quis receber nesse abraço a transmissão moral do seu protesto silencioso contra a crueldade da injustiça, quis sentir nele uma impressão que eu pudesse comunicar noutro abraço a meus filhos, quando eles forem cidadãos, e carecerem de aprender a odiar o mal poderoso.
O que esses homens me referiram dos seus suplícios morais…
devo contar-vo-lo, chovam embora sobre mim os mesmos baldões, de que esta exposição pública vai vingá-los. Hão de surgir contestações. A degradação, que em tais baixezas se sacia, não teria a coerência de ratificá- la perante o país. Mas eu sou a testemunha, que não tem a liberdade de calar. O acento daquelas queixas, desafogadas com o adeus da partida para o exílio misterioso, não podia mentir. Não, não mentia! O depoimento apenas perderá em vividez, perdendo, na minha boca, a vibração da amargura dos humilhados. Eles não tinham, sequer, a faculdade de buscar uma inalação de ar livre pelas janelas da prisão. A cabeça, que ousasse essa imprudência, tinha que recolher imediatamente, frechada pelos remoques da vizinhança. As chufas faziam guarda aos presos, guarda mais lacerante que a das baionetas. Para que o concurso destas, quando o fuzilar do desrespeito, que cercava aqueles homens, tinha traçado em torno deles barreira insuperável ao seu pudor?
O que eles me contaram ainda… Clarindo de Queirós, ao passar para a prisão, sentiu silvarem-lhe ao ouvido, habituado, no combate, às balas leais do inimigo, estas palavras inenarráveis: “Lá vai o lixo do exército”. Ele ia sem espada, quando esta lama passou. O lixo do exérci- to! Quem lhe diria em face essa injúria, a peito descoberto? Lixo do exército, quem? Ele? Um bravo? Um dos espíritos mais cultos da sua classe? Uma espada carregada de louros na luta com o estrangeiro? Mas que boca vomitou isto sobre uma glória nacional? Lixo do exército! Mas o que o País sabe deste nome, é que ele tem após si a mais nobre fé de ofício, longa, brilhante, imaculada. Lixo do exército! Mas é um general; tem imunidades, que a Constituição lhe assegura; tem por foro de honra o tribunal de seus pares; e não foi sentenciado; e não foi julgado; e não foi ouvido, sequer. Quem terá então, num país regido por leis, a autoridade de degradá-lo? Se a sua reputação é uma pazada de lodo vil, porque o sonegam aos tribunais, vingadores do brio militar? Que restará do exército… desse exército vibrátil ainda ontem, à menor desconsideração da monarquia para com os seus direitos… que restará dos seus direitos…
que restará dos seus sentimentos disciplinares, do seu respeito para consigo mesmo, das tradições da sua hierarquia e da sua dignidade, se as mais altas patentes militares, após esbulho violento dos seus direitos constitucionais, podem ser assim impunemente esbofeteadas na rua pela mão da primeira covardia anônima, sem punho de homem, por onde a repulsa a decepe?
Um governo que subtrai cidadãos a todas as leis do Direito, que os bane de todas as condições da honra, que os arranca a todas as justiças da nação, e depois os entrega, desprotegidos, à vilania dos insultadores irresponsáveis, esse Governo arruína a autoridade pública, levanta contra ela todos os instintos humanos na alma popular, e prepara para os seus condenados um pedestal dessa simpatia, que aureola o martírio imerecido, e tece com o prestígio do sofrimento as mais perigosas glorificações.
Dias depois… Clarindo de Queirós seguia para o desterro, com uma andaina de roupa embrulhada numa folha. Eu ouvi esta circunstância ao Almirante Wandenkolk. Que sentimentos iriam por aquele espírito nesse doloroso abandono de si mesmo?
Outro preso, um oficial de elevada patente na marinha (carecerei declinar-lhe o nome?), um capitão-tenente, mostrava-me o seu quinhão de vilipêndio, reproduzindo os termos do decreto ditatório, que o reforma, impondo-lhe formalmente a tacha de oficial sem lealdade, nem honra. Aqui o látego da ditadura desceu até ao fundo do coração do soldado, e deixou-o em sangue para sempre. Por que estas afrontas irrepa- ráveis, que banem das almas a misericórdia, que semeiam na sociedade o ódio fatal, que eliminam das consciências o órgão do perdão? Quem deu ao Poder Executivo o direito de desonrar oficiais? Quem lhe conferiu o arbítrio de fulminar essas sentenças, reservadas, por lei imemorial, mesmo nos governos absolutos, aos tribunais militares?
Notai, senhores juízes. Não reclamo privilégios para essa classe.
Falo em nome dos seus foros constitucionais. Se o poder já os não respeita nem ao elemento dominante, que esperança de legalidade pode mais restar ao elemento dominado? As reformas arbitrárias, aniquilando a segurança das patentes, e subvertendo o mecanismo normal das promoções, convertem a vida marcial em carreira de aventuras, inoculam no exército os dois mais rápidos fermentos de corruptibilidade – a sedução e o medo –, excluem da farda as altas qualidades do caráter, incompatíveis com a subserviência aos caprichos do poder agraciador, e acabariam por conduzir a Nação, através da caudilhagem, ao pretorianismo, a mais desgraçada forma da decomposição militar.
Quando generais do exército eram enxovalhados assim por essa indigna alegria de um triunfo sem nobreza, qual não seria a condição dos paisanos? À sua passagem, com efusões de aplausos ao sol nascente da ditadura se misturavam as vociferações vilipendiosas contra os proscritos, desarmados, escoltados, coactos. Labéus, de que os curiosos, nas ruas, têm o pudor de abster-se, ao passar dos ratoneiros vulgares, esfuziaram-lhes aos ouvidos. Uma dessas vítimas era o homem, que, nas primeiras celebrações de 13 de maio, toda a imprensa desta capital coroava como o libertador dos escravos.(6) Ah! Que palavras teve então para ele a mocidade! Que continências, o exército! Que distinções, o alto jornalismo!
Agora bastou que o aceno do poder lhe pusesse um sinal de suspeita, para que essas flores se transformassem em detritos. Mas que sociedade é esta, cuja consciência moral mergulha em lama, ao menor capricho da força, as estrelas da sua admiração? Era a semana da paixão de Jesus, quando a República se santificava nessas bravuras da covardia.
O injuriado perdeu o sentimento do perigo. Um relâmpago de loucura, ou de inspiração, passou-lhe pela mente, e a sua palavra esbraseada, verberante, fustigou os pusilânimes, como se a cruz do Calvário se transfi- gurasse no açoite do templo. Infelizmente os meus olhos não gozaram a bem-aventurança de assistir a esse capítulo vivo do nosso Evangelho.
Outro desterrado, senhores juízes, membro do Congresso, lente de uma faculdade jurídica, passou por convícios de tal ordem, que as lágrimas lhe arrasavam os olhos, e a mão, que não podia levantar-se contra os baldoadores seguros da superioridade material, mostrava, como a mais irrefragável das respostas ao insulto, uma cédula de vinte mil-réis, soma total da riqueza com que ele partia para o desterro indefinido.
Mas onde está então essa juventude cheia sempre de generosas simpatias pela causa da liberdade? Onde esse horror natural da mocidade aos triunfos da violência? Onde essa piedade daqueles cuja cabeça se aquece ainda nos carinhos maternos, essa piedade solícita sempre sem enxugar o pranto dos opressos, e oferecer amparo aos infelizes?
Onde essa coragem, que não desembainha a espada, senão contra o adversário armado para a repulsa imediata? Onde essa humanidade comum a todos os povos cristãos, que considera os próprios grilhetas como protegidos da Justiça?
Depois destas aviltações inexprimíveis, não haverá mais nada que inventar para o cálice desses perseguidos… senão a anistia. É a injúria suprema. Não me tacheis de paradoxo, senhores juízes. Com essa miragem procurarão talvez desarmar-vos a Justiça. Não vos iluda essa falsa misericórdia. A anistia, para os crimes da paixão revolucionária, julgados, ou notórios, confessados, ou flagrantes, é a mais formosa expressão da clemência cristã, aliada à sabedoria política. Mas, para as vítimas de uma comédia oficial, para cidadãos que protestam a sua inocência, e não pedem senão o julgamento, a anistia é uma ironia provocadora, é um corrosivo derramado nas feridas da injustiça, é a última tortura da inocência, privada, por esse artifício desleal, dos meios de justificar-se.
Neste caso, o verdadeiro anistiado é o Governo, que se esquiva aos tribunais, furtando à verificação judicial as provas da opressão, que exerce.
Falo-vos, senhores juízes, com a alma nas mãos. Se jamais me acontecesse a desdita de atravessar provações tais, e recebesse como redenção delas essa irrisão de uma insultuosa misericórdia, a minha dignidade não pactuaria com a concessão insidiosa. Eu cuspiria até ao sangue o fel do perdão provocador; e, a poder de engenho, a poder de audácia, a poder de intransigência, eu conquistaria, para a minha honra, nos tri- bunais, uma cadeira de réu, como se combate por um posto de glória, até que o Plenário solene, instituído, fosse como fosse, sobre a iníqua acusação, me permitisse a satisfação de um desagravo cabal. Porque, senhores juízes, o indulto é uma afronta para o inocente; e o cidadão sobre a pureza de cuja consciência a calúnia oficial estendeu uma nuvem de crime, condenando-o, pelo perdão político, à impossibilidade da defesa, é um sentenciado à mais aflitiva das agonias. Sua vida anoiteceu para sempre sob a tristeza de um infortúnio sem cura.
Nunca homem se viu levado por motivos mais imperiosos do que eu neste momento a reclamar das instituições de seu país uma prova de sua seriedade, um sinal de sua vida.
Profundamente cristão, se o cristianismo se resume no preceito de “não fazermos a outrem o que não quisermos que nos façam”, cristão por necessidade do meu temperamento, sem sacrifício, pois, nem virtude – a injustiça, por ínfima que seja a criatura vitimada, revolta-me, transmuda-me, incendeia-me, roubando-me a tranqüilidade do coração e a estima pela vida. Cidadão, vejo que, se passar este aresto da força, todas as garantias da liberdade individual terão acabado neste país, e a liberdade política, anulada na sua origem, ficará sendo apenas um colar de miçangas e lentejoilas, deixado por ornato desprezível à inconsciência boçal da nossa abdicação. Advogado, afeito a não ver na minha banca o balcão do mercenário, considero- me obrigado a honrar a minha profissão como um órgão subsidiário da justiça, como um instrumento espontâneo das grandes reivindicações do direito, quando os atentados contra ele ferirem diretamente, através do indivíduo, os interesses gerais da coletividade. Autor da Constituição republicana, estremecendo-a pelas afinidades morais da paternidade, sinto-me obrigado a defendê-la contra os sofistas armados, que a retalham, a pugnar pela integridade das suas intenções, a evidenciar que a teoria deste crime a difama na sua moralidade, no seu senso, no seu patriotismo. Conservador, sob a República, tão energicamente quanto fui radical sob o Império, acredito que, para o novo regímen, a condição capital de durabilidade é o amor do povo, mas que o povo acabará por abominar a legalidade republicana, se ela for, como o Governo se esforça por demonstrar, o sinônimo da proscrição irresponsável.
E é, sobretudo, por inspiração conservadora, senhores juízes, que eu compareço à vossa presença: é na rocha dos sentimentos conservadores, interessados na inviolabilidade da lei, que assento este habeas corpus, que procuro salvá-lo contra as imprudências de um governo de agitação e de combate.
Quem não conhece, na história parlamentar de França, um dos seus episódios mais dramáticos: a exclusão de Manuel?(7) O grande orador, por deliberação da câmara a que pertencia, viu-se intimado a deixar a cadeira de deputado por um ano. Foi-lhe notificada a ordem em plena sessão, diante de um auditório extraordinário, que afluíra atraído pela solenidade. O contínuo, que lha leu, tremia, e dizia depois: “Só a falta de pão obrigaria um homem a este ofício”. Em auxílio da medida violenta, acudiu então uma escolta da guarda nacional. Mas, a um aceno de Lafayette, o oficial perturbou-se, o sargento resistiu, os soldados retiraram- se, entre aplausos, entre vivas das galerias e do recinto. Um dos que aprovavam, era Royer Collard. Um dos que batiam palmas, era o duque de Broglie.(8) Dois dos doutrinários, dois dos espíritos mais conservadores da França. “É a primeira vez”, dizia o último deles, “que se via, num francês, o sentimento do direito, o respeito a uma força moral, o reconhecimento de uma autoridade armada com o simples poder da lei; em suma: o que constitui a liberdade, a consciência pública”. E, no dia seguinte, entre a multidão reunida às portas do sargento insubmisso, se destacavam as damas da mais alta aristocracia francesa, como a duquesa de Broglie, que, com o consentimento de seus maridos, iam apertar a mão ao guarda nacional pela sua desobediência à ordem profanadora do mandato popular. Toda a teoria da obediência passiva caía diante deste fato e diante desta autoridade. O duque de Broglie reputava insensata essa teoria. Sua opinião oscilou depois, mas acabou firmando-se na idéia primitiva: “Não mudei mais de parecer”, assegura ele nas suas Recordações, “e prouvera a Deus que, em 1851, por ocasião do golpe de Estado, tivéssemos sargentos Merciers no batalhão dos caçadores de Vincennes, que nos carregou à baioneta à porta do corpo legislativo, e depois nos conduziu, como a malfeitores, da mairie do X distrito ao quartel do cais d’Orsay. Eles teriam poupado à França um regímen de opróbrio, que dura há tantos anos, e não parece prestes a acabar”.
Vede bem, senhores juízes. Era em 1823, pelos tempos da Restauração, que certamente não foram o milênio do liberalismo. Tratava- se da expulsão temporária de um deputado por ato disciplinar da própria câmara, em que ele tinha assento. Pois bem: inteligências essencialmente conservadoras, como os doutrinários franceses, viram na desobediência dos agentes militares a essa deliberação da autoridade parlamentar, exercida no círculo dos seus próprios membros, o mais estrito ditame do dever, do patriotismo e da legalidade. Que diriam esses homens de Estado, se, em plena democracia, na mais viçosa eflorescência republicana, sob o céu do hemisfério iluminado pela constelação dos Estados Unidos, fossem chamados a sentenciar sobre o rapto militar de deputados e senadores, subtraídos em massa à representação nacional por atos políticos do Poder Executivo? Que diriam? Pelo menos o que disseram em relação ao crime de Luís Bonaparte e à servilidade criminosa da força militar. O tipo dos decretos de 10 e 12 do corrente, senhores juízes, está no atentado napoleônico de 2 de dezembro. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento deste habeas corpus, não tem senão que escolher entre o sargento Mercier e os caçadores de Vincennes. Com a diferença, senhores juízes, que os militares podem exagerar a obediência, por escrúpulo de disciplina, e vós sois a consciência da lei, que não obedece a ninguém.
Os decretos de 10 e 12 de abril constituem o desmentido mais formal ao movimento de 23 de novembro. Esta maneira de entender o estado de sítio, esta maneira de aplicá-lo, esta maneira de explorá- lo, contra a qual se vos pede remédio na tentativa de habeas corpus, é a dissolução virtual do Congresso, mascarada sob aparências transparentes.
São dois golpes de Estado contra a representação nacional, dispersa pelo primeiro, mutilada pelo segundo. A mutilação equivale à dispersão.
Quando, em Inglaterra, se quis descobrir, para a Câmara dos Pares, um sucedâneo correspondente à dissolução da Câmara dos Comuns, que alvitre se imaginou, para estabelecer o equilíbrio entre o ramo eletivo e o ramo inamovível do parlamento? Este, senhores: aumentar as fileiras do pariato, criando o número de pares necessário à transformação de minoria em maioria. Os publicistas ingleses qualificam esse recurso como verdadeira equivalência da dissolução adaptada à câmara indissolúvel.
Aqui o artifício é diverso; mas a operação é a mesma. Não podendo nomear senadores, ou deputados, o governo os subtrai. Está conseguido o objeto da dissolução, com esta simples mudança no processo: em vez de engrossar a minoria, reduz-se a maioria. Há apenas uma diferença, senhores juízes. Ali a coroa exerce a mais inconcussa prerrogativa constitucional, e não usa dela senão para corrigir a oligarquia aristocrática, assegurando a última palavra, no governo do país, aos representantes diretos do povo. Aqui, pelo contrário, o chefe do Estado conculca manu militari a representação popular, levantando, no seio dela, a golpes de proscrição, o predomínio do Executivo.
Senhores juízes, não estou aqui em defesa de réus. Réus que fossem os meus clientes, teriam direito à presunção de inocência, antes da convicção judicial. A acusação é apenas um infortúnio, enquanto não verificada pela prova. Daí esse prolóquio sublime, com que a magistratura orna os seus brasões, desde que a justiça criminal deixou de ser a arte de perder inocentes: “Res sacra reus. O acusado é uma entidade sagrada”.
Mas aqui não há réus. Réus não se constituem, senão mediante interferência judicial. É preciso instaurar a causa, encetar o processo, enunciar, ao menos, em tribunal, a acusação, para converter em réu o acusado. Decretos do Poder Executivo não suprem essas formas, que nenhuma forma pode suprir. Não vejo réus. Vejo suspeitos ao juízo suspeito do governo. Fato apreciável, em toda esta encenação conspiratória, não há senão o dessa manifestação impotente e fútil, que a ciência penal do executivo qualificou de sediciosa. Mas onde está o laço de relação entre as circunstâncias desse caso e a responsabilidade que se atribui a todos estes cidadãos, notoriamente alheios a ele?
Suspeitos? Mas quais são os indícios, que os confundem, os documentos, que os comprometem, as testemunhas, que os argúem? Ninguém o sabe. Delações corrompidas, presunções parciais, conjecturas precipitadas; eis tudo o que tece em volta desses nomes a rede anônima, atroz dessa perseguição. A demagogia que ensangüentou a França, sob o Terror, não tinha outro catecismo penal. Lede Taine, e vereis como a violência se repete através dos séculos, como os sentimentos humanos passam pela mesma perversão em todas as ditaduras, nas ditaduras de multidão, ou nas ditaduras da espada. Sim, folheai o historiador das origens da França contemporânea: vereis que o sistema de condenar é o mesmo. Apenas havia algum resquício de superstição pelas formas, de cuja idéia o governo, entre nós, prescinde absolutamente. De que modo caíam ali as vítimas de facção dominante? “Como acusação, tudo o que contra elas se aduz, são mexericos de clube”.(9) Acusam-nos de ter querido restabelecer a realeza, de estarem de acordo com Pitt e Coburgo, de terem sublevado a Vendéia. Imputam-lhes a traição de Dumouriez, o assassínio de Lepelletier, o assassínio de Marat; e pretensas testemunhas, escolhidas entre os seus inimigos pessoais, vêm repetir, como tema convencional, a mesma fábula alinhavada. Só alegações vagas e contraverdades palpáveis. Nem um fato preciso, nem um documento probatório. A falta de provas é tal, que os acusadores se vêem obrigados a estrangular atropeladamente os processos. “Honrados animais, que compondes o tribunal”, escrevia Hébert, “não entreis tanto pela mostarda. Tantas cerimônias, para despachar perversos, que o povo já julgou?” A frase vaga de maquinações, de inteligências criminosas, basta para fulminar uma cabeça. Sob o sistema da suspeita generalizada, o próprio Danton sucumbe, condenado como conspirador para a destruição da república e a restauração da monarquia. O povo julgara-os.
Para que mais? Aqui julgou-os o presidente da República. Que mais queremos?
Tais exemplos de desprezo à Justiça, ficções tais, dadas do alto… é assustadora a rapidez, com que corrompem a opinião. Dir-se-ia um desses venenos, que, inoculados à circulação, operam no espaço de algumas horas a decomposição de um organismo inteiro, e que, eliminando, em minutos, todas as esperanças, preparam pela anarquia orgânica a morte irremediável e violenta. Qual será, senão essa, a origem de fenômenos morais de canceração, profunda, como esses espantos, essas agressões, esses ataques, suscitados por um simples ato de defesa elementar, qual a reclamação deste habeas corpus? Parece atravessarmos aquela noite da consciência moral, em que, na França, as deputações populares se admiravam de que fossem mister formas de processo e testemunhas, para condenar Brissot, uma das mais límpidas almas da revolução, em vez de fuzilá-lo sem cerimônias, e em que os juízes dos girondinos escreviam à Convenção que as formalidades da lei embaraçam o tribunal, que a loquacidade dos advogados retarda a justiça, que depoimentos e debates são inúteis perante um juiz de convicção formada.
Eu poderia dizer desta situação, senhores juízes, o que daquela época dizia Malesherbes, em seu país: “Se ao menos isto tivesse senso comum!” Entre os dois Terrores, a dessemelhança está meramente nos meios de aterrar: um era o terror pelo sangue; o outro é o terror pela asfixia.
Sangrar, ou sufocar: duas maneiras de extinguir a vida, moral, ou fisicamente. Para os povos pletóricos a lanceta; para as nações cloróticas a imobilidade. Eliminar os indivíduos pela morte, ou paralisar os indivíduos pelo medo, pela insegurança, pela supressão das defesas legais. É nessas defesas que eu procuro a tábua de salvação. No habeas corpus, jaz a primeira delas, a garantia de todas. E supor que ele não se fez para a hipótese vertente, é julgá-lo estabelecido para os pequenos abusos e inaplicável aos grandes.
Essa ausência de senso comum, que o virtuoso ministro de Luís XVI assacava aos terroristas do século passado, não desdenta a violência, não lhe minora os estragos. A pata do elefante não enxerga, e esmaga; o ventre do hipopótamo não raciocina, mas achata; as secreções da lagarta não escolhem, mas crestam. Os crimes da força, dessa força instintiva e bruta como os monstros que perpassam na treva pré-histórica, “além de infamarem o nome de República, ao ponto de torná-lo em si mesmo suspeito sempre à França, não obstante a diversidade dos tempos e das coisas, aparelharam, pela supressão de tudo o que era inteligente e considerável no país, o silêncio e a servilidade dos quinze anos seguintes. Todos os partidos, que figuraram na revolução, viram-se dizimados e esbulhados inteiramente da sua força e do seu gênio pelo cadafalso. Os tímidos, os indecisos, os hipócritas, os sapos do pântano, como era a sua alcunha, não corriam risco de proscrição. Mas tudo o que encerrava coragem, humanidade, justiça, estava exposto à morte. A nobre intolerância do mal, o horror da imbecilidade e do crime, o amor judicioso da pátria, todos os bons instintos, todas as paixões generosas eram títulos à perdição”. Tais as conseqüências do absolutismo das facções, da substituição da vontade da lei pela vontade dos homens.
E contra essa calamidade, numa democracia, como esta, inexperi- ente, embrionária, quase informe ainda, originariamente viciada pelos mais infelizes atavismos, só haveria uma barreira: a autoridade da Justiça, preservada pela independência dos tribunais. Essa barreira vai mostrar hoje para o que vale. Se ela ceder à pressão da torrente, onde passam, carreados pela violência tumultuosa, os destroços das mais preciosas liberdades constitucionais, quem poderá calcular para onde se precipitam os nossos destinos?
Longamente, e creio eu que concludentemente, demonstrado está, na minha petição, o direito dos meus clientes. Estou certo de que a lestes impressa. O honrado relator deu-vos a sua suma, em frase incisiva e animada, com fidelidade e lucidez. Desenvolvê-la, só o poderia eu, se me fosse possível prever as objeções, que o debate, nesta Casa, porventura lhe venha a opor. Porém o regimento do tribunal, infelizmente, não me permite a palavra, depois de manifestadas as vossas apreciações, para as combater, ou retificar. O meu papel, portanto, não devendo repetir- me, e não podendo adivinhar-vos, será simplesmente insistir na gravidade incalculável do despacho, que ides proferir. Essa decisão, senhores juízes, valerá, por si só, uma Constituição mais eficaz do que a nossa Constituição escrita, ou atirará a nossa Constituição escrita para o arquivo das aspirações mortas, dos compromissos malogrados.
Quaisquer que sejam acaso as divergências no grêmio deste Tribunal, quanto à constitucionalidade do estado de sítio, ou a possibilidade constitucional de penetrardes nessa questão, o direito de habeas corpus subsistirá sempre, “Toda a questão é a da constitucionalidade; não há outra”; – ouvi eu a um dos venerandos ministros, em aparte ao honrado relator.
Mas, senhores, nessa apreciação anda equívoco palpável, que com poucas palavras se dilucidará. Dou de barato, na questão da constitucionalidade, todo o terreno, que me queiram disputar. A declaração de sítio foi perfeitamente constitucional. Seja. O Supremo Tribunal Federal não tem a menor competência, para intervir no exame desta questão. Admito. Concedo, pois, se quiserem, a legalidade da suspensão de garantias. Se entenderem, concordo com a incompetência da Justiça ante esse aspecto do assunto.
Aceito mesmo, se o exigirem, a opinião contrária à minha, num e noutro ponto: o Tribunal é incompetente, e o estado de sítio é regular. Mas, nesse caso, o problema apenas se desloca: não se resolve.
Desloca-se unicamente, senhores juízes; porque, deixando então de ventilar a natureza do estado de sítio e o vosso direito de contrasteá- la, teremos que discutir, desde logo, os efeitos do estado de sítio e a vossa faculdade de defini-los. Os efeitos do estado de sítio acabam com ele? Projetam-se além dele? Aqui não pode entrar em dúvida, ainda para os zelosos defensores das prerrogativas do Governo, a vossa autoridade de sentenciar. Por mais que se converta em matéria discricionária, para o Executivo, ou para o Congresso, a apreciação das circunstâncias capazes de legitimar a suspensão de garantias, – a demarcação dos efeitos jurídicos dessa medida, não será objeto político, mas simples interpretação da lei orgânica e, por conseqüência, jurisdição privativa da Justiça Federal.
As medidas repressivas adotadas no decurso do estado de sítio podem ser perpétuas? Evidentemente a solução de tais questões não podia ter sido reservada pela Constituição ao arbítrio do Executivo.
Logo, há de estar nos textos, por intuição, ou por interpretação. Mas, se está nos textos, não vos podeis negar a interpretá-los; porque essa é a função específica da vossa magistratura. Quando cidadãos, que se consideram com direito à liberdade, pela cessação do regímen excepcional que dela os privou, comparecem ante vós, em nome de preceitos constitucionais, que eles supõem contrários à sua seqüestração do número dos livres, – não tendes o direito de remeter a questão a outro poder. O poder da hermenêutica constitucional sois vós.
Será perpétua a privação da liberdade, imposta pelo Governo aos presos durante o estado de sítio? Manifestamente não pode ser. Perpetuidade é elemento de penalidade; e a penalidade é função exclusiva da Justiça. Essa privação há de ser, pois, temporária. Mas quem lhe limitará o termo? O ato do Executivo, ao impô-la? Ou o arbítrio do Executivo, quando se saciar? Por outra: é prefixa, ou indefinida a duração da medida isoladora?
Se é indefinida, então representa um gênero de sofrimento mais árduo que a pena, uma espécie de função mais severa que a de julgar.
Nesse caso, ao passo que a ciência criminal não admite aos tribunais irrogação de pena, sem prefixação do seu prazo na sentença, o direito político teria autorizado o Governo à imposição de castigos por indeterminado prazo. Seria uma justiça fora da Justiça e acima dela: absurdo, anomalia, despropósito.
Mas, se essas cominações não podem ser perpétuas, e se, transitórias, hão de ter duração predefinida no ato que as impuser, algures há de estar, na lei, o máximo da sua durabilidade possível. Nem mesmo à judicatura se deixa, no uso das penas, autoridade arbitrária, quanto ao seu tempo. Tudo o que diminui a liberdade, tem forçosamente a sua delimitação nos textos legislativos. Essa discrição, pois, que aos próprios tribunais não se admite, não podia admitir-se ao Executivo. Mas em vão procurareis uma cláusula constitucional, que prescreva explicitamente a extensão máxima da prisão, ou do desterro, impostos durante o estado de sítio. Logo, se a hipótese da duração indefinida é insensata, se essa duração tem necessariamente confins, – não se achando eles expressos na Carta Federal, é que o legislador constituinte os considerou traçados, pela própria natureza da suspensão de garantias, no círculo de duração delas.
Senhores, esta questão não é nova. Já sob a Constituição imperial foi debatida no parlamento. Era ainda no início do primeiro reinado.
Tinham cessado as suspensões de garantias, com que Pedro I reagira contra a revolução de 1824 e os movimentos insurrecionais, que nos abalavam o solo de província em província. Tratava-se de saber se os presos durante a interrupção das garantias constitucionais podiam ficar nas mãos do Governo, ou deviam ser entregues para logo aos tribunais.
Suscitou-se a controvérsia no Senado, quando tínhamos apenas três anos de existência extracolonial. Era o regímen de uma carta recentemente outorgada. O déspota que a concedera com todas as reservas mentais desses presentes do despotismo, tinha os olhos abertos, desconfiados, para as primeiras veleidades do nosso parlamentarismo em embrião, e frementes na destra os copos da espada, que dissolvera a Constituinte. Pois bem: sobre esse terreno vacilante, nesse meio hostil, sob esse horizonte carregado de ameaças, os estadistas mais conservadores do Senado não trepidaram em afirmar, quase rosto a rosto, ao Imperador a mesma doutrina, que venho hoje sustentar em vossa presença, e que esta República de hoje argúi de anárquica na minha boca. Esses princípios, advogados na minha petição de habeas corpus, de que as seqüestrações da liberdade, impostas durante o estado de sítio, findam com ele, de que, terminado o estado de sítio, começa imediatamente a ação dos tribunais, são os mesmos, identicamente os mesmos, que os senadores de Pedro I defendiam na casa do conde dos Arcos, quando o império nascente cheirava ainda ao colonialismo de D. João VI.
Eis, senhores juízes, as próprias palavras ditas no Senado imperial, em sessão de 30 de maio de 1827, por Bernardo Pereira de Vasconcelos: (Lê) “Se o Governo pode suspender as formalidades, deve, contudo, fazer processar os culpados nos juízos estabelecidos. A Constituição declara expressamente que ninguém será julgado por uma lei posterior ao delito, nem por um tribunal desconhecido nas leis, nem por meio de um processo, em que não é ouvido o réu. Isto tem sido um modo de assassinar os cidadãos.”
Ora, aí está, senhores juízes, como os senadores das primeiras fornadas imperiais e os chefes do antigo Partido Conservador interpretavam a carta do fundador da monarquia mais republicanamente do que os históricos do republicanismo destes nossos dias entendem a República em 1892. O progresso é grande, sem dúvida.
Mas não eram só os carranças da velha escola conservadora.
Os próprios espadas, dignidades militares das mais altas no estado- maior imperial, oficiais da mais íntima confiança do tirano destronizado em 1831 não compreendiam que, sob o regímen constitucional, a coroa pudesse retardar o julgamento, pelos tribunais ordinários, dos cidadãos presos durante a suspensão de garantias.
Eis, senhores juízes, textualmente, as observações, que, a esse respeito, dirigia ao Governo, em ofício de 13 de fevereiro de 1825, o general Francisco de Lima e Silva:
“Tendo medeado mais de três meses, desde que se depuseram as armas, até à execução dos primeiros réus, e havendo-se já feito alguns exemplos, parece mais conforme com o sistema constitucional, mandado adotar por Sua Majestade, que todos os que se acham compreendidos nos crimes de rebelião, sejam julgados pelos tribunais de justiça.”
Moralidade da história, senhores juízes: fizemos duas revoluções, destronizamos dois imperadores, substituímos o governo dos reis pelo dos presidentes de eleição popular, para ver sustentadas pela política republicana, em 1892, as blasfêmias constitucionais, que os presidentes das comissões militares de Pedro I renegavam como tirânicas em 1825. Grande caminho andado, senhores juízes! E que sentenciareis vós agora, depois deste confronto? Subscrevereis, em nome da Constituição republicana de 1891, as sobrevivências do absolutismo colonial, denunciadas com horror à própria coroa nos dias mais escuros do império, pelos seus servidores mais insuspeitos, pelos magnates do seu pariato, pelos mais altos instrumentos das suas medidas de exceção? Será possível, senhores juízes? Mas então que tereis feito da República?
Prossigamos, porém, no raciocínio. Se as prisões, se os desterros impostos durante o estado de sítio perduram depois dele, então essas restrições à liberdade constituem verdadeiras penas. Porque, senhores juízes, só a vigência de uma pena, ou a ação de um processo penal pode subtrair a um indivíduo, em tempos normais, a sua liberdade. O próprio Governo reconheceu que, para protrair o desterro e a prisão além do estado de sítio, era mister imprimir-lhes o caráter de penalidades. Neste sentido procedeu, capitulando com esse nome as fulminações vibradas no decreto de 12 do corrente. Aí está essa averbação, inequívoca, expressa, categórica, no Diário Oficial de 16, que apensei ao requerimento.
Mas, se esses atos são penais, deixaram de ser o que a Constituição prescreveu no art. 80, quando os reduz a “medidas de repressão”.
Primeiro impossível.
Se são penas, então o Governo é juiz. E, em tal caso, já a função judiciária não constitui domínio privativo dos tribunais. Segundo atentado contra a Constituição.
Se são penas, há de haver uma lei que as gradue, um processo, de que resulte a sua aplicação. Onde essa lei? Onde esse processo?
Apelo outra vez, senhores juízes, para Bernardo Pereira de Vasconcelos. Este refinado conservador há de receber o estigma póstumo de anarquista, que, pelo crime desta petição de habeas corpus, talvez me esteja indigitando aos réus da mais próxima suspensão de garantias. Ou esta República aceita praticamente as instituições, cuja fórmula adotou, ou há de ser reduzida a confessar que a sua dieta de liberdade arrastaria à revolta os estadistas mais conservadores do primeiro reinado.
Eis a linguagem de Bernardo Pereira de Vasconcelos, na carta, que, em 1828, endereçou aos eleitores mineiros: (Lê)
“Para punir algumas províncias, foram suspensas as garantias constitucionais; criaram-se comissões militares, contra as leis e a Constituição; e a liberdade e vida de milhares de famílias brasileiras foram postas à discrição de militares, bravos, sim, e cobertos de glória marcial, mas alheios aos princípios de direito e muito mais alheios à prática de julgar.”
Corra-se a esponja sobre os horrores cometidos por algumas dessas comissões, menos por culpa de seus membros, que por causa das instruções, ou, para melhor dizer, pela natureza de tais tribunais militares.
Sim, senhores, as comissões militares são invento infernal. A história judiciária basta a convencer-vos de que o juiz conhecido antes do ato de julgar nem sempre se guia pelas leis e pela razão natural; todos os peitos não são inacessíveis às paixões e à corrupção, e muito custa a resistir aos embates do poder, empenhado nas decisões judiciais; mas o pior de todos os juízes é o escolhido pelo Governo, para sentenciar os que considera seus inimigos. Entre juízes assim escolhidos e assassinos uma só diferença noto; e é que os primeiros matam com os aparatos judiciários, e sem estes os segundos. E como em um regímen constitucional, se ousa abreviar as fórmulas do processo?
Por que não tolerava o estadista conservador as comissões militares? Por quê? Ele mesmo o diz: porque, sob um regímen constitucional, lhe parecia inadmissível a abreviação das fórmulas do processo, e porque o pior de todos os juízes é o escolhido pelo Governo, empenhado, em assuntos políticos, nas decisões judiciais. Imaginemos agora que o Governo do rei despisse essa derradeira aparência de julgamento, e, avocando às secretarias de Estado as causas dos revoltosos, exercesse majestaticamente a função judicial, convertesse os seus decretos em sentenças, infligisse diretamente penas, funcionando, ao mesmo tempo, como parte e juiz – acusador, processador, condenador ele só. Que diria o estadista imperial? Diria provavelmente que entre o vice-reinado português e a monarquia brasileira da carta medeava apenas de distância a espessura de uma máscara, ou a troca de um nome.
Na própria organização das comissões militares estava a confissão oficial de que o Governo se reputava incompetente, para condenar, e considerava imprescindível ao exercício desse poder o aparato, ao menos, da justiça, uma forma qualquer de tribunal. Era uma magistratu- ra, irregular, inidônea, iníqua; mas era sempre uma magistratura; e não condenava senão pela investidura, que recebia, de processar, e julgar.
Eis a série desses decretos famosos:
Decreto de 26 de julho de 1824. Criando uma comissão militar, na província de Pernambuco, para processar sumaríssima e verbalmente os comprometidos na revolução dessa data.
Decreto de 5 de outubro de 1824. Suspendendo as garantias individuais, na província do Ceará, e tornando extensiva a essa província a comissão militar criada por decreto de 26 de julho do mesmo ano.
Decreto de 16 de novembro de 1824. Suspendendo as garantias individuais na província da Bahia, e criando uma comissão militar, para julgar breve e sumariamente os assassinos do governador das armas e os cabeças da revolta de 25 de outubro do mesmo ano.
Decreto de 19 de maio de 1825. Criando uma comissão militar na província Cisplatina, para julgar breve, verbal e sumariamente todos os réus convencidos de rebeldia.
Decreto de 19 de maio de 1825. Criando uma comissão militar na província do Rio Grande do Sul, para os mesmos fins do decreto anterior.
Decreto de 20 de maio de 1825. Criando outra comissão militar na província Cisplatina, para julgar indivíduos da armada nacional.
Decreto de 20 de maio de 1825. Fazendo extensivas as comissões militares criadas na província Cisplatina aos paisanos, que fossem julgados réus na sublevação.
Decreto de 27 de fevereiro de 1829. Criando uma comissão militar na província de Pernambuco, para julgar verbal e sumariamente os comprometidos em uma rebelião de facciosos contra a forma do Governo monárquico constitucional.
O imperador não julgava em pessoa os indiciados. Nem confiava esse encargo aos seus ministros. Outros cidadãos, apontados pela mais tremenda responsabilidade à opinião pública, recebiam essa missão como judicatura especial. Estreitavam-se as formas; mas não se extinguiam.
Acelerava-se o processo; mas não se dispensava. Havia notificação da culpa ao acusado, interrogatório, defesa. Tudo isso desapareceu agora. O presidente da República julga, e justiça. Forma a culpa, sem, audiência do réu. Qualifica, sem debate. Condena, sem audiência. Executa, sem processo. É o ex-informata vestindo a farda de Governo, e empunhando a vara da justiça. Por que, senhores juízes? Por serem políticos esses delitos? Mas é precisamente nos delitos políticos, delitos de opinião, delitos eminentemente relativos, que o júri, usual nos crimes comuns, representa uma garantia ainda mais indispensável à liberdade.
A regência e o segundo reinado, cortado de revoluções no seu primeiro período, não recusava ao tribunal popular os sediosos. E eram insurgentes, apanhados com as armas na mão. A revolução de 1837, na Bahia, acabou em 1838, estendendo-se de novembro do primeiro ano a março do segundo. Os revolucionários foram esmagados, em combate renhido, pelas forças legalistas. Que fez o Governo imperial com os implicados no movimento criminoso? Mandou-os acaso julgar pelas secretarias dos ministros? Não. Entregou-os ao júri. Na minha família encontrei a tradição de parentes, que passaram por essa prova. Meu pai mesmo, estudante de medicina, foi submetido a julgamento, e absolvido. Na revolta praieira de 1848, em Pernambuco, a mesma coisa se deu. A luta foi cruentíssima. Correram rios de sangue. Pereceram milhares de combatentes, por um e outro lado. Mas foi o júri, não foi o Governo, quem puniu os delinqüentes.
Que nova demência, pois, é esta de confundir o Governo com a justiça, e castigar sem julgar? O Terror de 93 em França falseou todas as molas da justiça; mas não se atreveu a aboli-las. A publicidade dos debates, a presença de um defensor, a intervenção dos jurados, eram outros tantos elementos de uma paródia abominável. Mas essas mesmas contrafeições da legalidade adulterada exprimiam o tributo mais eloqüente à necessidade dessas garantias, em cuja aparência a mais atroz orgia da força que o mundo já presenciou não ousava tocar. Nesses mesmos simulacros se preservava o símbolo do direito, cuja realidade, na essência, era execrandamente sacrificada.
Comparai, ainda, essa teoria da justiça política inventada agora entre nós, ad usum reipublicae, com os espécimens russos, e ainda teremos que nos envergonhar. Basta recordar-vos a questão de Vera Zasoulitch, a Carlota Corday do niilismo eslavo, a assassina do prefeito de S.
Petersburgo. O júri da capital julgou-a, e absolveu-a. O Governo, dis- posto a não admitir a impunidade do crime, interpôs um recurso anômalo para o Senado. Este, dando-lhe provimento, mandou submeter o processo a outro júri na província.
Os próprios assassinos de Alexandre II, em 1882, tiveram julgamento, a cujas sessões foram admitidos os parentes mais próximos dos acusados. Pois bem: essas garantias, inalienáveis como a própria natureza humana, essas garantias que o despotismo do Czar não tira aos regicidas niilistas, o presidente da República brasileira não as tolera aos inofensivos comparsas de uma demonstração palratória e aos indigitados cúmplices de uma conspiração, em cujo segredo o Governo parece mais interessado que os conspiradores. Que insondável abismo de loucura!
E não haverá remédio na justiça para esta inaudita forma de opressão? Mas para que ficaria servindo a justiça, venerandos juízes, depois de nos entregar sem recurso a uma espoliação jurídica, de que não há símile nos governos mais distantes da República e nas épocas mais hostis à liberdade?
Dizem: “Este assunto é vedado à justiça, pela natureza política das atribuições que envolvem”. Não vos enredeis em tal sofisma.
Qual é a disposição constitucional, onde se ache essa exceção limitativa à vossa autoridade geral de negar execução às leis inconstitucionais e aos atos inconstitucionais do Poder Executivo? Se a suspensão de garantias envolvesse unicamente interesses políticos, se pelos direitos que interessa constituísse um fato de ordem exclusivamente política, nesse caso sim.
Com os atos de puro governo não têm que ver os tribunais.
Mas aqui não. Vós, Tribunal Supremo, fostes instituído para guarda aos direitos individuais, especialmente contra os abusos políticos; porque são pelos abusos políticos que esses direitos costumam perecer.
Para amparar essa categoria de direitos contra os excessos de origem particular, contra as invasões de caráter privado, não careceríeis dessa prerrogativa, a função específica do vosso papel, que vos manda recusar obediência aos atos do Governo, ou às deliberações do Congresso, quando contravierem à Carta Federal. Logo, senhores juízes, a circunstância de abrigar-se em formas políticas o atentado não o subtrai ao vosso poder equilibrador, se uma liberdade ferida, nega- da, conculcada pelo Governo, se levanta diante de vós, exigindo reparação.
O Congresso resolverá, e só ele pode resolver: é a evasiva oficial.
Frívola cavilação, senhores juízes! Essas prisões em fornada, em fogo de bateria, na linguagem atroz de Fouquier Tinville a respeito dos suplícios revolucionários, essas descargas de proscrições tiveram manifestamente por objeto converter o Congresso em chancela deste crime, dizimando as fileiras oposicionistas.
Ajuizai pela última batalha campal, travada, no Senado, entre a oposição e o Governo, na véspera do encerramento dos trabalhos legislativos.
O Governo contou vinte e dois votos; a oposição, vinte. Diferença a favor do Governo, dois votos. Ora, o estado de sítio prendeu e desterrou quatro senadores. A inferioridade oposicionista cresceu assim de dois a seis votos. Rompeu-se francamente a favor do Governo o equilíbrio, que estava resvés a se romper contra o Governo. Que cálculo mais transparente? Que operação mais brutal?
Falam-me ainda em apelar para o Congresso! É um escárnio.
Se o Executivo pode furtar, sem este corretivo que vos venho pedir, um voto, que seja, à representação nacional, essa unidade de arbítrio, de invasão bastar-lhe-á, para anular a independência da legislatura. A República, em França, não prevaleceu por um voto apenas de maioria? A atual Constituição dos Estados Unidos não deveu o seu triunfo, na convenção do Estado de Nova Iorque, apenas à maioria de três votos? O Governo que puder arrancar a uma assembléia um só dos seus membros, é senhor da sua maioria. O recurso contra esse abuso há de estar, pois, necessariamente fora dessa corporação, que ele se arrogou a faculdade de retalhar.
Se a autoridade exclusiva nas questões suscitadas pelo estado de sítio fosse o Congresso, a conseqüência fatal, irresistível, evidente como a vida e como a morte, seria a imunidade absoluta dos representantes da nação às medidas repressivas do Governo durante o estado de sítio. Porque, senhores juízes, repugna ao mais rasteiro senso comum constituir um tribunal, para julgar os atos de um poder, e dar a esse poder o direito de seqüestrar os membros desse tribunal.
Se isto não é obvio, se isto não é inquestionável, então toda a justiça é ludíbrio, toda a lógica é mentira. Sustentar que fora do Con- gresso não há recurso contra as aberrações da suspensão de garantias, abusada pelo Governo, e admitir, ao mesmo tempo, ao Governo a faculdade de riscar desse corpo os votos suspeitos de hostilidade ao abuso, é mofar da nação, que nos ouve, ou fazer da Constituição republicana um tipo alvar de ridículo e imbecilidade entre as mais grotescas invenções do cretinismo político.
Não importa o número dos votos inabilitados. O que importa, é a possibilidade, reconhecida ao presidente da República, de inabilitá- los. Se essa possibilidade é legal, a Constituição é uma indignidade; porque põe a legislatura aos pés do Executivo, e reduz o Poder Judiciário a testemunha inútil dessa farsa democrática. Se é ilegal, mas não tem o corretivo da Justiça, nesse caso, pela mesma faculdade com que limitou a 11 as seqüestrações, o Governo podia, poderá, quando quiser, estender- lhes o número a cinqüenta, a cem, a duzentas, absorver a maioria constitucional do Congresso, inibindo-o de funcionar, e condenar, se lhe convier, à reclusão policial a totalidade dele. Por que não? Onde está o limite jurídico a esse arbítrio, se esse arbítrio é jurídico? E, se há limite, onde pode estar ele, racionalmente, a não ser em um poder estranho à esfera das demasias desse arbítrio?
É incomensurável a absurdidade contida nestas conseqüências.
Escapa quase à razão, perde-se nas regiões da loucura. Mas nasce fatalmente (viste-lo agora mesmo) da premissa monstruosa, que vos recusa o direito de sentenciar neste atentado. E em que se funda essa premissa?
Em textos formais? Não: em uma inferência apenas; porque não é senão por inferência que se vos procura tornar defeso o conhecimento das violações da liberdade individual praticadas sob o pretexto do estado de sítio, e até após ele, por agentes do Governo. Dizem: “Aqui é o domínio da apreciação política; e neste domínio não tem ingresso a justiça”. Mas qual é a fórmula constitucional que abriu esse valo, que ergueu essa trincheira aos abusos da força política contra o direito privado e a ordem geral das instituições republicanas? Ora, a regularidade orgânica das instituições republicanas e a inviolabilidade dos direitos particulares foram- vos entregues em custódia, estão-vos confiados em depósito, são a matéria peculiar da vossa autoridade. Tudo o que atente contra elas, toca ao vosso poder, desde que se defina perante vós sob as formas de questão judicial. Só uma proibição explícita da Carta Federal poderia restringir esse poder. E eu não vejo, não me mostram essa proibição.
Vejo apenas ilações, isto é, apreciações de natureza conjectural, fundadas num jogo hábil entre o adjetivo político e o substantivo justiça, mas esmagadoramente destruídas pela massa colossal de absurdos, que dessa ilação promanariam.
Nem se diga que ponho em dúvida a honorabilidade do Congresso, supondo-o accessível à influência de sentimentos inferiores ao caráter do seu mandato. Uma Constituição sensata não pode contemplar o heroísmo como elemento ordinário no cálculo dos seus freios e contrapesos. As instituições planejam-se para a humanidade com as suas contingências e as suas fraquezas, contando especialmente com elas, e tendo particularmente em mira as violências, as mancomunações, as corruptelas, que possam ameaçá-las, ou explorá-las. Quando a facção jacobina quis apoderar-se da Convenção (e era uma assembléia de gigantes) como conseguiu absorvê-la? Pela eliminação dos representantes girondinos, entregues sucessivamente ao patíbulo. O resultado não seria diverso, se, em lugar do patíbulo, se recorresse ao degredo. A Convenção não soube reagir. Uma atmosfera de espanto envolveu-a, e abafou- a. Os tímidos retraíram-se. Os membros conspícuos do partido fadado ao extermínio sentiram-se impotentes. As sessões mais numerosas não reuniam, daí em diante, mais de cem membros. E a vida inteira da França caiu nas mãos dessa potência satânica, que a esflorou da mais bela abrolhada de gênio e de virtudes heróicas, em que já se viu desabotoar a renascença política de uma grande nação… e o temporal da opressão varreu-lhe desenfreado a superfície… até que a máquina do Terror estoirou, como devia estoirar, pela sorte de todas as tiranias improvisadas e violentas, matando, com seus estilhaços, na cena final, todos os que tinham representado papel na tragédia, protagonistas, comparsas, ou figurantes, juízes, jurados, acusadores, testemunhas.
Se os representantes do país verificarem, pela denegação deste habeas corpus, que não há entre eles e a sua independência a muralha tutelar da justiça, as veleidades de resistência à soberania sem praias do Executivo serão uma a uma engolidas pela onda do desalento moral, ou obrigadas a dissimular as revoltas internas da consciência, ante essa ameaça de suspensão de garantias, desenhada sempre ao longe, no inter- regno parlamentar, como lição e recompensa aos atrevimentos oposicionistas.
E ia-me escapando, senhores juízes, um dos aspectos mais sérios e positivos da questão. Há senadores presos e degredados. Ora, nesta forma de governo, o caráter do mandato senatório tem uma significação suprema. Os senadores constituem uma espécie de embaixatura dos Estados perante a União. O número de representantes do povo na Câmara fixa-se e altera-se por lei. Mas a igualdade da representação dos estados no Senado foi estabelecida pela Constituição, e não pode ser modificada nem por Constituinte. É o art. 90, § 4º, da Carta Federal que o prescreve, ocupando-se com as reformas constitucionais: “Não poderão ser admitidos como objeto de deliberação no Congresso projetos, que tendam a abolir a forma republicana federativa, ou a igualdade da representação dos estados no Senado”. Mas essa inalterabilidade, assegurada até contra a soberania da nação como cláusula primordial do pacto com que os estados celebraram a União, cairia perante o arbítrio do Executivo, autorizado agora pelos sofismas de camarilha a contrariar, a desfalcar, a suprimir a igualdade representativa dos estados naquela casa do Congresso. A Capital Federal está reduzida a dois senadores, Mato Grosso a dois, Paraíba a um. Por decreto do Poder Executivo!
Esse poder pode agora, portanto, o que, pela nossa Constituição, a própria soberania nacional não pode. A União Federal está ferida no coração.
A União Federal já não existe. Procurem-lhe os farrapos nos decretos ditatórios do Governo.
Não há mais justiça; porque o Governo a absorveu. Não há mais processo porque o Governo o tranca. Não há mais defesa; porque o Governo a recusa. Não há mais código penal; porque o arbítrio do Governo o substitui. Não há mais Congresso; porque o Governo é o senhor da liberdade dos deputados. Não há mais federação; porque a equivalência dos estados no Senado acabou, a um aceno do Governo. O Governo… o Governo, o oceano de arbítrio, em e cuja soberania se despenham todos os poderes, se afogam todas as liberdades, se dispersam todas as leis. Anarquia vaga, incomensurável, tenebrosa como os pesadelos das noites de crime.
Como esse rio carregado de densos sedimentos, que, nas suas cheias, se precipita dos planaltos do norte sobre a China, trans- formando-lhe de improviso a face, abrindo-lhe vastos mediterrâneos na superfície povoada, cavando instantâneo algares e torrentes, submergindo campos e cidades, a força, a inundação cega, que não conhece o direito, cobre agora as instituições republicanas. Não estamos na América. Estamos, moralmente, no Império do Meio, alagado pelo rio Amarelo.
De toda a parte, a desordem, por todos os lados a violência.
E flutuando apenas à sua tona, expostas à ironia do inimigo, as formas violadas de uma Constituição, que os seus primeiros executores condenaram ao descrédito imerecido e à ruína precoce.
Está em vossas mãos reparar a falha da barranca, por onde a corrente indisciplinada irrompeu do leito, e transborda sobre o país. É restabelecerdes a confiança na justiça, firmardes por um aresto inolvidável a jurisprudência da liberdade, mostrardes resplandecente, acima de todos os poderes da força, a supremacia desta autoridade desarmada e espiritual: o direito. Será o maior dos serviços à causa da ordem, enfraquecida pelas intemperanças do Governo.
Em nome da conservação da República, a bem dos grandes interesses conservadores, eu vos suplico, senhores juízes. Eles pendem todos deste habeas corpus. E, se o não concederdes, como a lei quer, – que milagre salvará o país das misérias desse desengano?
— (1) Ésquilo: As Eumênides.
(2) Visconde de Ouro Preto, o seu irmão, Conselheiro Carlos Afonso de Assis Figueiredo, e o Senador Gaspar Silveira Martins.
(3) José Joaquim Seabra.
(4) Primeiro-Tenente João da Silva Retumba.
(5) 21 de abril de 1892.
(6) José do Patrocínio.
(7) Jacques Antoine Manuel.
(8) Broglie, Achille Charles Léonce Victor, duc de Souvenirs, 1785-1870. Paris: Calmann Lévy, 1886, pág. 321-35.
(9) Taine, H. Les Origines de la France Contemporaine. Lá révolution. 9. ed. Paris: Hachette, 1885, t. 3, pág. 57.
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