Rui Barbosa
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Filosofava do púlpito um dia o padre Vieira: “Não há maior delito no mundo que o ser melhor.
Ao menos eu a quem amara das telhas abaixo, antes lhe desejara um grande delito que um grande merecimento. Um grande delito muitas vezes achou piedade: um grande merecimento nunca lhe faltou a inveja. Bem se vê hoje no mundo: os delitos com carta de seguro, os merecimentos homiziados”.
Mas a generalidade dos aplausos com que foi acolhida a escolha do Sr. Joaquim Nabuco para a nossa representação no arbitramento sobre a pendência anglo-brasileira, aí está deixando ver, por uma exceção bem-vinda, que nem sempre se verifica o pessimismo, ainda mal quase sempre certo, do grande pregador.
Não era de nossa parte, que o ato do Governo podia ter dúvida na aprovação. Muito há que aconselhamos à República a seleção das capacidades em todas as opiniões, e em todos os partidos. Por outro lado, em todos os tempos, o autor destas linhas tem sido um dos que mais admiração professam pelo mérito do nomeado, cuja carreira ascendente acompanha desde os primeiros surtos. Lamentávamos a muralha, aparentemente insuperável, que o separava do serviço do país, sob as instituições atuais. Não podíamos, portanto, deixar de estimar a ocasião patriótica que lhe estendeu afinal, por sobre o fosso das prevenções ordinárias a ponte de honra, considerada, com razão, pelo nosso eminente conterrâneo, como “um presente da fortuna”.
As qualidades orgânicas do Sr. Joaquim Nabuco não lhe permitiam, por mais que quisesse, furtar-se à atividade política. Sobre a compressão que lha vedava, ela irrompia a miúdo, nos seus escritos, em juízos, sentimentos, sugestões de atualidade que involuntariamente o punham em contacto com os homens, as coisas e os fatos correntes. Na Vida monumental de seu Pai e na encantadora História de sua Formação, transborda a exuberância de uma personalidade, cujo poder de ação não lograva conter-se no refúgio meditativo da religião e das letras, a que o idealismo do artista supunha ter disciplinado as exigências dos lutadores. Acedendo, logo, pelo que não há senão louvá-lo, ao convite do Governo, o patriota cedia, ao mesmo tempo, insensivelmente, a uma necessidade da sua têmpera, a uma força interior da sua vocação e expansão inevitável da sua individualidade, a um impulso do seu destino que o não criou só para escrever com a sua pena a história, senão também para a elaborar com os seus atos. Habituado a proceder “como seu próprio chefe”, não faz cabedal o Dr. Joaquim Nabuco da sentença, em que o hão de julgar entre as intransigências e os fanatismos de um e outro extremo. Com tais independências não se acomoda a política de partido. Bem fez, porém, o ilustre Brasileiro em não proceder como homem deste ou daquele bando militante, mas como amigo de sua pátria, cuja existência e honra, superiores a todos os regimens, não se ligam essencialmente à sorte de nenhum.
Nem sempre se pode servir à nossa terra, sem desservir aos nossos correligionários. Nas conveniências dos seus, desfechou considerável golpe a atitude isenta e livre do Dr. Joaquim Nabuco, pondo acima de todos eles as do Brasil, as da sua nacionalidade, as da sua perpetuidade, as da sua integridade. Ainda que se não inspirasse, porém, senão nos supremos interesses desta causa suprema, a colaboração de um monarquista de tamanha valia, nas responsabilidades da tarefa republicana, há de, necessariamente, atuar como um jato de água fria no fervor das esperanças imperialistas.
O comum dos espíritos não é capaz dessas discriminações delicadas. Para os membros da sua comunhão política, este nome, que o novo regímen acaba de incorporar ao escasso pecúlio das suas utilidades, era um desses cimos inacessíveis, que hipnotizam a confiança dos últimos confiantes. Que o zelo destes, pois, se sinta profundamente magoado no melindre de seu exclusivismo e o abalo da surpresa lhes invada o derradeiro presídio da sua fé, suscitando amargos ressentimentos, mui natural será, muito humano. Nem faltará no acervo das queixas o concurso dos lógicos da escola, em cuja balança, pesadas, no desenlace eventual da missão, as duas hipóteses, se dirá talvez que a vitória viria aproveitar unicamente à consolidação da República, ao passo que o revés comprometeria a aspiração monarquista, comprometendo-lhe a popularidade na pessoa de um dos seus mais altos representantes.
Como essa comoção influirá no seio do monarquismo, se operando como reativo, para o decantar dos elementos duvidosos, precipitar os princípios jovens, e promover entre eles a homogeneidade, a coesão, a solidez, se lavrando, pelo contrário, como dissolvente, para apressar a sua realização na massa republicana, só o tempo o dirá, pronunciando-se entre as conjeturas de hoje.
Seja, porém, como for, um incontestável serviço, ao menos, terá prestado, com este proceder, o Dr. Joaquim Nabuco, à situação dos seus correligionários políticos neste regímen. E esse benefício é, simultaneamente, um benefício ao país. A tolerância, que até hoje tão dificilmente se lhes tem concedido, através de suspeitas e perseguições, deve-lhes estar assegurada agora na extensão da mais plena liberdade. No hábil convite do governo republicano ao preclaro monarquista, na anuência do monarquista ao convite republicano, está implicitamente selado um pacto inviolável de reconhecimento dos direitos constitucionais da opinião política, a cuja porta a república foi bater em busca de um auxiliar para a solução das dificuldades nacionais. E tanto maior vem a ser o alcance dessa aliança, a sua expressão, e sua inquebrantabilidade, quanto a iniciativa nasceu espontaneamente de um governo, cujo chefe, noutro teatro, se assinalou pela dureza de um político de reação desabrida contra a propaganda monarquista. A evolução do Sr. Campos Sales é inteligente, é patriótica, e serve melhor aos sãos interesses da república do que os mesquinhos recursos do intolerantismo oficial, cuja crônica de brutalidades e sangue tanto nos envergonha. Esperemos que, de ora em diante, o país não continue dividido em bons e maus cidadãos, pela ortodoxia do poder, e que, sob uma constituição, cujas garantias nos permitem discutir a Deus, não se tire a Brasileiros a faculdade de questionar a república. Esta não tem o direito de negar a liberdade de um partido do valor de um de cujos próceres se utilize em matéria de tão alta gravidade. Destarte se habituarão a servir em comum à nação as duas opiniões opostas, combatendo-se no terreno dos interesses contingentes, e completando-se na esfera dos deveres superiores*.
A Imprensa, 13 de março, 1899.
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