Um Parto

PUBLICIDADE

Clique nos links abaixo para navegar no capítulo desejado:

Qorpo Santo

Personagens

Cario

Florberta

Melquíades

Guindaste

Galante

Ruibarbo

Uma mulher

Uma criada

Uma voz

ATO PRIMEIRO

Cena Primeira

CÁRIO – (assentado a uma mesa, provando algumas leves comidinhas)
O sábio o beija, o néscio arqueja! Por que será que isto
se dá!? Eu sei: Aquele viveu em Deus, com Deus, por Deus e para Deus;
este, no diabo, com o diabo, pelo diabo e para o diabo! Eu me explico. Um
é observador e cumpridor da Lei que por aquele lhe foi dada, e por
Nosso Senhor Jesus Cristo – acrescentada. O outro, é cruel perseguidor
de seus sectários… ou daqueles que fiéis a observam, respeitam,
veneram. Eis porque, repito – quando Deus fala, o sábio se ri e se
cala; o néscio teme e se abala. Ou, aquele se enche de prazer; este
de medo vê-se tremer! Passando porém da religião a estas
cousas que agora como, não sei o que me parecem estas comidinhas. Dão-se
fatos a seu respeito; uns que me encantam, outros que me admiram; alguns que
me enojam, muitos que aborrecem, diversos ou vários que me repugnam,
milhares que me indignam; inúmeros para os quais não há
explicação nem qualificação exata, possível…
Quantas cousas me falaram hoje, ora pelo sono, ora pela forma, ora pelo gosto,
ora pela espécie, ora pela cor, e também pelo sabor! Vejo que
(pegando em uma estrelinha de massa) ninguém deve comer estrelas, mas
estrelas de carne ou de fogo! Como porém estas são de massa,
é de crer que mal me não façam (Come uma. Pegando em
outra, tira uma dentada, e a deixa quase pelo meio; olhando para ela:) Parece-me
uma coroa! Não comerei. Guardarei (Põe no prato.) Pelo gosto
(provando outra), cheiro e sabor, dir-se-á que – envenenada está.
Poremos também a um lado. Acho esta bebida (bebendo um cálix
de vinho), com quanto espírito, assaz fraca, ou como amolecida. É
cousa que também não me agrada. Não beberei mais deste
liquido: veremos algum mais forte, e por isso mesmo para mim – melhor. Quê!
(pegando em outro pedacinho de massa) Isto é imagem de um turíbulo!
Não comerei. Esta, de uma naveta, (pegando outra) também não
quero! Provarei esta fatia. (Corta dois ou três pedacinhos, e come.)
Que tal? É sempre igual. (Levantando-se um pouco.) Eis a barretinha
de um soldado, que ofendido ou maltratado em seus brios ou dignidade, na Vila
Nova do velho Triunfo, por um seu capitão, em princípios da
infausta, nefanda, prejudicial e mais que indigna revolução
de 1835, teve a precisa coragem para salvar sua honra e dignidade; para dar
um imitável exemplo a seus camaradas; para meter um dedo do pé
no pinguelo da espingarda, encostar a boca desta no peito em frente ao coração,
e disparar assim estrondoso tiro, que o transportou instantaneamente à
presença do Eterno. Feliz soldado, era de um batalhão cujo título
ou número não me lembro; suponho que paraense, e em o qual havia
um capitão com o nome – Chaguinhas, de péssima fama – que julgo
muito pouco tempo durou, bem como a maior parte desse corpo de infantaria,
destruída quase toda – poucos dias depois pelos generais Neto e Canabarro.
Estes corações (pegando em um coração) enchem-me
de benções; não os quero; estou deles assaz farto. A
estes gozos preferiria a companhia, que traz alegria… (Olhando com atenção
para um sinal em uma mesa.) Este sinal é feito por um pingo de espermacete;
isto porém não é o que admiro: uma cabeça perfeita,
um nariz afilado, com uma cara completa, queixo, barbas, um boné igual
ao de um oficial francês ou alemão que há tempos vi, e
até com um penacho – é o que realmente para mim não direi
mais que admirável, mas algum tanto espantoso… Enfim, paremos com
isto: são horas de dormir; vamos deitar-nos. (Levanta-se, dá
alguns passos e encosta-se a um sofá, cama, ou cadeira de balanço.)

Cena Segunda

CÁRIO – (levantando-se.) Estou satisfazendo o desejo, ou cumprindo
o projeto que fiz de ir viajar à Europa, e de lá, cheio de ciência,
voltar a derramar sobre Os meus comprovincianos, compatriotas, e mais habitantes
do Império Brasileiro. Está se servindo Deus de mim para punição
de uns e prêmio de outros. Não me convém, não devo
escrever sobre os mortos, ou fazer nênias. Convém-me mais passear,
que estar em casa; passeando, me entretenho; me divirto; e fortifico; em casa
me enfraqueço, e sempre apeteço… Fora, não necessito
trabalhar, mas apenas conversar: em casa não posso deixar de o fazer
sem cessar… Ao homem convém caminhar, falar, pular, dançar,
palrar e o exercício de mais de um milhão de verbos acabados
em ar, ar, ar, ar, etc. etc. etc. etc. Como é difícil, e tantas
vezes impossível, a conciliação de interesses opostos!
Sente-se uma necessidade; é-se instado por um desejo; procura-se satisfazê-lo;
encontra-se uma dificuldade… Alguém geme, alguém chora, que
nos dói, que nos estorva. Mas por que lamentar? Se necessário,
vençamos; ou sigamos os impulsos de nossa inteligência; os conselhos
de nosso coração; ou os conselhos daquela, e os impulsos deste.
Façamos algum sacrifício, visto que ninguém (é
de conjecturar) há que viva sem os fazer. É preciso fortalecermo-nos;
é preciso não fraquecermo-nos. Se eu atendesse, direi neste
momento, aos desejos que tive (depois de haver passeado e meditado algum tempo
zangado), teria escangalhado, talvez destruído ou inutilizado um baluarte,
cujas forças já me não convém conservar. Se porém
lhe presto muito atenção, se me penalizo de seu sofrer, do que
se me representa à imaginação, terei de viver qual preso
em cadeia. Enquanto pois não tenho emprego, mais que o de compositor,
preciso me é buscar por toda a parte, onde houver melhor, ou mais me
agradar – aquilo que me falta e de que mais careço. (Olhando para o
ar.) O baluarte sibila! Não prestar-te-ei pois mais atenção,
enquanto de longe me falar teu coração! Assim triunfou (triunfarei
eu também de ti) um de meus amigos – de igual impertinência –
só útil n’aparência! (Pega o chapéu e sai.)

Cena Terceira

FLORBERTA – Que força tem o destino! Umas vezes cruel e destruidor
como o raio ou a tempestade; em outras vezes tão benigno como o amor
ou a saudade!

(Canta:)

Às vezes é tão cruel

O bárbaro, feroz destino,

Como horrosa tempestade,

Ou o raio destruidor

 

Em outras mais que fiel,

Tão amigo, tão benino,

Nos enche de flicidade,

De gratidão, e de amor.

Os malvados (atravessando o cenário depois que pro fere cada um período)
estão sempre condenados. Quem estará por ai se assoando, que
tanto me está enjoando! A Ciência, o ouro e a água são
cousas que quanto mais abundam, menos param ou mais velozes necessitam correr.
Quando sinto-me menos forte, ou temos destruição, ou é
morte. Quando o Estado carece para sustentar-se ou progressar – de uma parte
de nossos serviços é justo que lhes prestamos, bem como que
este, uma parte de seus benefícios a nós quando d’Ele carecemos.
É com esta reciprocidade de atenções, de benefícios,
de amparo – que os Estados e os súditos seus – conservam e prosperam.
Se eu tivesse disposição de escrever sobre relações
naturais, diria que ainda hoje o chá que tomei levou-me à presença
de alguém, de quem ouvi a mais tremenda descompostura!… Servir-me-á,
se pudermos continuar a escrever comédias, para uma bela cena de algum
dos Atos; mesmo para começo, parece excelente. Não foi nada
menos que o seguinte: Bati por duas vezes em uma porta, ouvi mandar a pessoa
a quem buscava abrir a porta; como se demorava o criado, empurrei-a, e entrei;
a pessoa era muito minha conhecida, e de baixa esfera. Quereis saber o que
ouvi dela? Eis: A Sra. é muito atrevida! Teve a audácia de entrar
em minha casa sem que eu fosse abrir4he a porta! Pensa que esta casa é
casa de prostitutos?9 Está muito enganada! Retire-se; e se está
louca, vá para a Caridade! Quereis saber o que lhe respondi? Eu vô-lo
digo. Eis: "Não se incomode, Sr. Bem sabe que não é
a primeira vez que eu venho à sua casa. Foi-me necessário cá
vir hoje; desculpe portanto: se a minha presença não lhe agrada,
eu me retiro. E retirei-me, sem mais cumprimentos. Fui, entretanto, opostamente,
recebida por pessoas da mesma casa, que para tal não tinha dever com
o maior afeto possível; notando em seus semblantes o maior desprazer
pela grosseria estúpida daquele que devia-me prestar atenção.
Há de entretanto servir para algum fim útil.

Cena Quarta

Casto – (entrando) Que mania de mil diabos! Querem por força que eu
viva amigado – sem que isso possa ser! Sim! Irra, irra! (Sacudindo os braços.)
O diabo que satisfaça semelhante gente! Hei de mandar à olaria
fazer de propósito uma mulher para com ela me ligar sem o preenchimento
das formalidades religiosas… e, pobre, – não me serve! Há
de ser rica, formosa, e asseada; senão, nem assim combino, me combino…
ou… concubino! Tri, tri, tri… (Faz duas ou três piroletas, tocando
castanholas, e sai aos pulinhos.)

CÁRIO – (depois que entra) Como se transtornam as cousas deste mundo!
Quando pensaria eu que indo à casa de um médico fazer uma ligeira
visita, havia de transtornar uma comédia!? Quanto é preciso
ao homem que se dedica a composições intelectuais, ter regime
certo ou invariável! Uma visita transtornou uma comédia; qualquer
ação obsta à conclusão do mais importante trabalho.
Quão bem foi começada esta comédia, e quão mal
acabada vai! Já nem posso chamar a isto mais comédia… Enfim,
vereis se posso concertar minhas idéias, e prosseguir então.
(Sai.)

ATO SEGUNDO

Quarto de estudantes

Cena Primeira

Melquíades, Guindaste, Galante e Ruibarbo.

MELQUÍADES – (deitado) Fiu! fiu! (Assoviando.) Não está:
tão cedo já sairia a passeio!? Quem sabe! Talvez; pode muito
bem ser. (Torna a chamar:) – Maria! Joana! Teresa! Antônia! Joaquina!
Michatas! (Pausa.) Que diabo! Não aparece nenhuma das criadas. Ainda
estarão dormindo. Que judias! São (abrindo o relógio)
nove horas do dia, cinco da tarde, duas da noite, seis da madrugada, e ainda
dormem! – É muito, muitíssimo grande, (figurando com as mãos
o tamanho) grandíssimo dormir! – Manuel! Antônio! Mercúrio!
Ninguém fala; está tudo em silêncio… em silêncio
profundo!… Profundíssimo! Pois – Résquiés d’impace
nas catacumbas do cemitério do Corpo-santo na cidade do Porto, Portugal
dos portugueses – para vocês todos! Que os levem 30.000 diabos e demônios
para os mais fundos infernos lá do outro mundo: pois cá nos
deste ainda vocês me poderiam incomodar!

GUINDASTE – (calçando as meias) Há três dias que ando
incomodado; ora do estômago, ora dos intestinos, ora das barrigas..
. ah! são duas, é plural – das pernas e da cabeça; e
ainda esta noite passei uma noite horrível. Não sei que é
isto! Até as águas-da-colônia que sempre me serviram de
remédio para estes males, desgraçadamente hoje parece que hão
produzido os efeitos contrários!…

GALANTE – Que diabo terei eu nestas cabeças (Tirando o barrete com
que havia dormido.) Parece que tem espinhos! Ora picam-me as pernas, ora as
coxas e até na cintura me importunam, ou me ferem. Safa! (Tirando a
calça.) O que havia de ser? (Pegando em um carrapicho e mostrando.)
Um carrapicho!… Malditas lavadeiras, que parece de propósito para
o mais lanoso entretimento dos néscios fregueses – porem na roupa estes
espinhos! (Atirando-o.) Lá vai, lavadeira de roupa, vê se o engoles
pelo nariz.

RUIBARBO – (andando) Como as lavadeiras não te hão de fazer
dessas, se tu não lhes pagas a lavagem e o engomado da roupa – como
elas desejam!

GALANTE – Essa é boa! Essa é bem boa! Essa ainda é melhor!…
Ainda ontem paguei seis mil e tantos réis, e dizes que eu não
pago!?

RUIBARBO – Mas não é assim que elas querem!…

GALANTE – Pois de outro modo, não sei. Não o entendo. Eu sou
inglês, e inglês de muito boas raças! Portanto não
vivo… vivo de mistérios.

RUIBARBO – Pois és um tolo. Estuda a lavadeira, faz- lhe elogios,
mostra-te a ela afeiçoado, e verás como ela te trata, te lava,
te goma admiravelmente!

MELQUÍADES – (para Galante) Que hei de eu estudar hoje?

GALANTE – Estuda disciplina.

MELQUÍADES – Assim eu sou tolo!

RUIBARBO – Pois ainda pensas em estudos, depois de velho, com a prática
dos homens, e mesmo das mulheres!?

MELQUÍADES – Que queres? Nasci mais para estudar que para vadiar!

GALANTE – És um pateta! Com as disciplinas escangalhavas tudo. Triunfavas
dos amigos e dos inimigos! Sem elas, não sei como te haverás;
quer com uns, quer com outros! Enfim tu lá sabes.

MELQUÍADES – Estou me resolvendo um dia a atirar com os livros ás
ventas dos mestres. Com os temas às dos lentes! E finalmente, com as
botas às dos criados! (Pega nestas, atira nos companheiros e sai.)

GUINDASTE – É bem atrevido este meu sogro!

GALANTE – (para Guindaste) Pois tu és casado!? Ainda agora é
que sei! Pois o Melquíades já tinha filhas moças!? Ainda
mais esta – estudante casado e com filhos!

GUINDASTE – Se o não sou, ainda hei de ser. Se as não tem,
ainda há de ter. E por isso se ainda o não sou, em breve hei
de ser, e posso portanto desde já il~o tratando de sogro.

GALANTE – És o primeiro calculista do Mundo!

RUIBARBO – Vocês querem passar o dia de hoje em conversa!? Não
querem estudar, pensar, meditar sobre o que há de extraordinário
da Revolução Francesa, livro mais que todos apreciável
pela grande exemplar lição que transmite à humanidade!

MELQUÍADES – (chegando à porta do dormitório com boa
porção de livras em baixo do braço esquerdo, muito apressado.)
Vamos para as aulas! São horas! Se se demoram, perdem a lição
de hoje! Andem! Andem! Saiam! Venham!

(Guindaste e Galante pegam em vários livros, dão duas voltas
e saem.)

GUINDASTE – (arrumando a cama) Vão indo que eu já vou!

GUINDASTE – Não te demores, que eu preciso de ti!

RUIBARBO – Sim; sim. Vão indo; eu lá irei logo! (Saem.) Estes
meus colegas são o diabo em figura de homens, ou de rapazes! Tudo desarrumam!
É preciso uma… não: paciência de Jó, ou de algum
outro Santo para aturá-los! Enfim, (depois de todo o quarto arrumado)
é preciso aturá-los! É melhor que andar com eles aos
tombos, puxões ou cabeçadas. (Pega em um livro.) São
horas, vou às minhas lições de Retórica! E logo
continuarei a escrever a minha encantadora comédia – a Ilustríssima
Senhora Dona Anália de Campos Leão Carolina dos Santos Beltrão
Josefina Maria Leitão História das Dores Patão, ou Bulhão,
etc. etc. Dizem os médicos, e confirmam os lógicos: As cousas
que têm de trabalhar, apertadas, não poderão fazer tão
bom serviço como – desembaraçadas; e eu o creio pia e firmemente.
Exemplifiquemos com os próprios homens e seus órgãos.
Suponha-se que estão a trabalhar em uma sala vinte pessoas, e que na
mesma não o podem fazer livre ou desembaraçadamente mais que
dez ou doze. Pergunto: seu serviço, obra, ou trabalho, sairá
tão perfeito, como se trabalhassem aqueles que – bem – só o
podiam fazer? É de crer que não. Outro: Temos órgãos
– da vista, do ouvido, do olfato, que por certo oprimidos, ninguém
dirá que – bem funcionam. Assim pois devem ser os do nosso estômago,
intestinos, etc. Apertados, não poderão funcionar, transformar
ou digerir os alimentos ou cousas de que nos alimentamos, com aquela facilidade
com que o fazem ou devem fazer não opressos ou desembaraçados.
Se aperto os meus dedos, não posso escrever, nem com a mão cousa
alguma fazer! Se porém esta está desembaraçada, com ela
faço o que quero, ou o que posso. Logo – não convém a
opressão; se se quer trabalho abundante e perfeito!

Cena Segunda

MELQUÍADES – (entrando, atrás Guindaste, e após este,
Galante. O primeiro com muito desembaraço, e atirando com os livros
com estouvamento, quer de gesto, quer de palavras) Ó Ruibarbo, não
foste hoje à lição!? És o diabo em figura de estudante!
Pois sabe que eu fui, vim e estou aqui! Pus por terra todos os troianos! Foi
o lado que hoje perdeu nas sabatinas o mais vergonhosamente que é possível.
Nem a batalha que inutilizou Napoleão I; nem as melhores vencidas por
Alexandre o Grande; nem finalmente a em que César destruiu Pompeu –
se podem comparar à que hoje venci dos nossos amigos Paraguaios!

RUIBARBO – Pois eu declaro-vos que não fui à aula! E se quiserem
saber o porquê, dir-vos-ei: – Primeiro, porque não quis. Segundo,
porque estou ocupado com algumas lições de Medicina. Terceiro,
porque vocês são pouco cuidadosos de nosso quarto, e eu não
posso tolerar porcaria, desarrumação, etc. Quarto, porque…

MELQUÍADES – (com muita desenvoltura, assentando-se em outro lugar,
ou mudando de assunto) Já sei, já sei. Tu és um estudante
privilegiado. Tens até um breve do Papa. Quando te apertam fora da
Igreja, entras para a Igreja, e quando te aborreces muito desta, safas-te
com a maior sem-cerimônia! (Batendo-lhe no ombro.) És muito feliz,
felicíssimo mesmo. (Os outros: cada qual acomoda seus livros e senta-se).

MELQUÍADES – (pegando em um papel, em que Ruibarbo havia escrito)
Oh! este Ruibarbo, quanto mais estuda, menos aprende! Pois ele ainda suprime
letras quando escreve!

RUIBARBO – Doutor! Você não vê que quando assim procedo
faço um grande bem ao Estado!?

MELQUÍADES – Geral bem!?

GALANTE – São cousas do Ruibarbo! Tudo quanto ele faz diferente de
outros homens, sempre protesta ser por fazer bem, ou por conveniência
do Estado. Não é mau modo de se fazer o que se quer! É
uma capa maior que a de Satanás! É uma espécie de Céu
que ele tem, com que costuma abrir a terra!

RUIBARBO – Eu me explico: Quando escrevo, penso, e procuro conhecer o que
é necessário, e o que não é; e assim como, quando
me é necessário gastar cinco, por exemplo, não gasto
seis, nem duas vezes cinco; assim também quando preciso escrever palavras
em que usam letras dobradas, mas em que uma delas é inútil,
suprimo uma e digo: diminua-se com esta letra um inimigo do Império
do Brasil! Além disso, pergunto: que mulher veste dois vestidos, um
por cima do outro!? Que homem, duas calças!? Quem põe dois chapéus
para cobrir uma só cabeça!? Quem usará ou que militar
trará à cinta duas espadas! Eis por que também muitas
vezes eu deixo de escrever certas inutilidades! Bem sei que a razão
é – assim se escreve no Grego; no Latim, e em outras línguas
de que tais palavras se derivam; mas vocês que querem, se eu penso ser
assim mais fácil e cômodo a todos!? Finalmente, fixemos a nossa
Língua; e não nos importemos com as origens!

MELQUÍADES – Enquanto passares bem assim, continua; mas logo que te
deres mal, é melhor seguir a opinião geral. (Ouve-se tocar a
sineta, que convida a jantar; aos saltos; pondo as mãos na cabeça;
e outras extravagâncias.) São horas! São horas! (Puxa
Ruibarbo.) Vamos! (Este se deixa estar assentado. Puxa outro; convida; salta;
pula; pega em um rebenque.) Ah! vocês até para comer têm
preguiça!? (Dá uma pancada com o chicote sobre urna mesa, os
outros saltam ligeiramente à porta; e saem todos.)

RUIBARBO (atrás.) O Melquíades hoje está limpo, lavado,
engomado, escovado, e penteado!

GALANTE – Ele triunfou dos Paraguaios! É preciso obedecê-lo!

GUINDASTE – Eu o faço para tal fim, com muito prazer!

ATO TERCEIRO

Cena Primeira

UMA MULHER – (muito atenta, ouvindo alguns gemidos) Quem gemera? Quem estará
doente? Será minha avó, ou meu avô!? Sabe-o Deus; eu apenas
desconfio, e nada posso afirmar! Entretanto, convém indagar. (Aproxima-se
de uma porta, escuta, e volta.) Ah! quem há de ser? (Arrastando.) É
a cabritinha de minha avó, tia, e irmã, que acaba de parir três
cabritos. Ei-los (Atira-os ao cenário.)

MELQUÍADES – (entrando.) Oh! que espetáculo é este!
Cabritos em meu quarto de dormir! Oh! mulher, donde veio isto!?

A MULHER – Ora, de onde havia de vir! Boa pergunta! O Sr. não sabe
que seus avós têm o luxo de criar cabras!? E que criando-as por
força hão de parir!?

MELQUÍADES – Que têm parido, e hão de parir, sei eu muito
bem! Mas o que me espanta é que a parição, parto, ou
como quiserem chamar, tivesse lugar em meu quarto de dormir! É isto
o que assaz me admira!

A MULHER – Não foi aqui; mas eu ouvi gemer, e cuidei que era sua avó
ou seu avô; fui ver; encontrei-os; trouxe-os; e aqui estão!

MELQUÍADES – Pois bem; agora vá preparar um para a ceia.

A MULHER – (cheia de nojo) Eu, fazer? Deus me livre! Isto tem um cheiro…
Seria preciso, para se poder comer, pôr de molho três dias em
alho, cebola, vinagre e cuentro.

MELQUÍADES – Pois então, (muito zangado) tire-me daqui estas
porcarias, que já me estão causando nojo! Anda! Anda! Tira isto
daqui!

UMA CRIADA – (puxando a cabra pelos chifres) Vem, vem, vem cá, cabritinha,
cabritinha!

MELQUÍADES – Isto está demorando muito! (Dá um pontapé
na cabra, que a atira; os cabritos esforçam-se por correr, ele pega
em um, e esfrega na cara da criada.) Que tal, Sra. D. Nojenta! Cheira ou fede?

CRIADA – Nunca gostei destas graças! (Larga a cabra e sai.)

Cena Segunda

(Entram Ruibarbo Galante e Guindaste)

RUIBARBO – Isto é admirável! Gatos ensopados pelo soalho derramados!

GALANTE – Ensopados! (Reparando com muita atenção.) Só
se o foram na barriga da mãe! Oh! e não me enganei; ei-la (Apontando
para a cabra.)

GUINDASTE – Vocês são os mais extravagantes estudantes que eu
tenho conhecido. Se fôssemos de Medicina, que bom estava para desenojar,
mas somos de Direito, não nos pode aproveitar! O que é mais
interessante é a lembrança de que estavam ensopados, achando-se
em pé, e em estado de perfeição.

RUIBARBO – Não admira! Bem perfeitos são os animais, e as aves
cheias, entretanto não estão vivas.

GUINDASTE – Mas não se diz que crê que foram ensopadas.

RUIBARBO – Sim, Sr… Mas quem não poderia dizer que estivessem assados?

Galante – Ainda vocês ignoram uma cousa: Sabem o que é? É
que o nosso amigo Melquíades deu esta lição à
criada, que tão pacificamente e bem sempre nos serve – esfregou-lhe
com um destes cabritos: cara, boca, nariz, olhos, e não sei que mais
– saiu daqui tão enjoada, que não corria; qual águia;
voava; ou ia qual avestruz avoada!

MELQUÍADES – Sabem o que mais?… Eu não quero estar vendo
aqui estas imundícies! (Chamando.) Rigoleto! Rigoleto!

UMA VOZ – Não está! Peguem vocês cada uma no seu, e os
ponham longe daqui!

GUINDASTE – (para os outros) É mesmo, isto é muito enjoativo!
Nem eu posso abrir um livro com eles diante de mim. Pega no teu, Galante!
Ruibarbo, leva o outro! (Pega cada um no seu e os põe fora de cena).

RUIBARBO – (para os outros) Não há remédio, senão
aturá-los.

MELQUÍADES – E eu que o diga! Mas, que faremos nós aqui metidos?
Não era melhor que fôssemos passear, ver as moças, e também
algumas velhas? Hem? Hem? Falem, que estou desesperado! Come-me hoje este
corpo; sinto nele tal coisa… certo prurido… e não sei que mais
– que não posso estar parado um momento!

RUIBARBO – Cruzes! contigo, Melquíades.

MELQUÍADES – Comigo – não quero cruzes! Mas, se for algum cruzeiro,
ainda poderei aceitar. Quanto a cruzes, bastam estas (apontando para os livros)
que aqui vedes.

GALANTE – Pois eu quero tudo: cruzes, cruzeiros, cruzados, cruzinhas, cruzadas,
e tudo o mais que me oferecem, e que eu posso gozar sem perder!

GUINDASTE – Sem perder, não, Galante. Sem padecer ou sofrer, sim!
Por força que gozando..

GALANTE – Não sabes o que dizes: há homens que quanto mais
gozam, mais ganham! Portanto, avancei uma proposição as mais
das vezes verdadeira, inda que algumas vezes falível.

MELQUÍADES – Sabem o que convém – e me entretém? Passear,
conversar, ver as moças. (Pegando o chapéu.) Os que me quiserem
acompanhar, sigam-me! Vamos, vamos todos! (Puxa um, puxa outro; nenhum quer
sair; ele pega na bengala e sai.)

GUINDASTE (para Galante:) Este Melquíades mudou completamente! Passou
de estudante ao mais extravagante do seu século. Cruzes! Abrenúncio!
Está atrevido como o diabo!

RUIBARBO – Isto é porque ele fez anos hoje! Amanhã…

GUINDASTE – Então diga-me isso! Eu logo vi.

MELQUÍADES – (entrando, passados alguns minutos) Já sabem,
rapazes – que passeei, andei, virei, mexi, e revolvi. E que nada resolvi sobre
o que buscava e o que vi! Pois é verdade, e tão certo como o
Carneiro de Cão estar com os olhos abertos. (Aponta para Galante.)
E apenas duas cousas aprendi, ou dois pensamentos colhi! Primeiro, que há
dois modos de viver em sociedade; um de que só se freqüenta mulheres
de certa classe, a casas de jogo, etc.; outro em que olha-se com grande indiferença
para tudo isto, e até muitas vezes com repugnância e só
se freqüenta casas de família, ou gente de classe mais alta, ou
mais distinta! Há também esta diferença, e é que
os que querem ser verdadeiros constitucionais, e não têm família,
isto é – não são casados, ou sendo não vivem com
suas mulheres, são forçados a freqüentar aquelas; e os
que nenhum caso fazem da Constituição, e os que mais e melhor
gozam! Já vêem portanto que não perdi o tempo.

GUINDASTE – (para Galante e Ruibarbo:) Sempre o nosso Pai dá provas
de que ainda é estudante! Sempre nos traz alguma cousa… descobertas
de cousas que ignorávamos colhidas de suas experiências filosóficas!
E com isso faz também de Lente, pois leciona-nos.

MELQUÍADES – A outra verdade, ou o outro fato, é que muitas
vezes isto provém de comermos dos hotéis, ou de mandarmos fazer
as comidas em nossas próprias casas! Aquelas nos conduzem às
primeiras; ordinariamente estas as mais das vezes às segundas! Contudo,
há nesta regra numerosas exceções, e é também
conforme são os hotéis. Notai bem que muitas vezes se observa
uma verdadeira confusão. O que porém é indubitável,
é que as comidas e as bebidas nos conduzem a este ou àquele
trabalho, a esta ou àquela casa, a este ou àquele indivíduo,
a este ou àquele negócio! Podem até conduzir-nos a um
crime! Como o podem fazer, e muitas vezes o fazem, a um ato de virtude, a
uma ação heróica, a uma ação vil ou indigna.
(Continuando.) Sinto às vezes certo estreitamento no canal que conduz
ao estômago. Tenho querido atribuir à falta de certo ato… Mas
ao mesmo tempo lembra-me que as crianças, os velhos, as velhas, os
doentes, os que viajam pelas campanhas, os que estão em guerra – não
praticam tais atos, entretanto sei de muitos que padecem igual incômodo.
Consequentemente devemos crer que a razão principal não é
essa. Talvez provenha das qualidades dos próprios líquidos e
das carnes de que nos alimentamos, e até das casas em que moramos,
e mesmo das pessoas que nos servem, ou a quem mais praticamos. Meninos! quero
contar-vos mais uma verdade médica por mim descoberta hoje; e é
– que é sempre um mal que incomoda, sair por cima o que deve sair por
baixo! Se soubésseis quanto me… que desagradável efeito me
produz algumas vezes o cuspir! Se ao menos eqüivaler ao que escrevo,
ou ser substituído pelos pensamentos! Mas quê! Tenho experimentado,
e sempre acho desagrado. – Outra descoberta: Certa pessoa até certo
tempo – não podia passar, quando comia ou bebia alguma cousa, sem procurar
uma pessoa, que se parecesse com o objeto ou cousa, de que se servia; entretanto
em um dia – o que havia de pensar, de que se havia de convencer: – que devia
proceder de modo diametralmente oposto, isto é, que quando tomasse
chá, por exemplo, não devia para isso como antes procurar pessoas
que tivessem essa cor: e assim a outros preceitos! Acho porém bonito
que pratiquemos, ou procedamos – se isso nos não causar algum desgosto
– conforme esta nos aconselham; ainda que só espiritualmente, o que
se faz de milhares de modos. Meninos! vou descansar! (Deita-se; e enrola-se
no cobertor. Para os companheiros de quarto:) Se alguém me procurar,
dizei-lhe que durmo!

RUIBARBO – Galante, que te parece o nosso Pai Melquíades!? É
um homem divino! É o maior sábio do Universo! Valente como os
mais valentes, ativo como o sol, amável como a mais amável Princesa,
interessante como o firmamento, bom como o melhor dos Pais.

GALANTE – Tu não te enganas, mas esqueceste acrescentar – extravagante
e desenvolto, às vezes, como uma provocadora cobrinha!

GUINDASTE – E para prova de tudo isto, vejam o que ele fez hoje: saltou;
pulou; dançou; fez o diabo, como estudante! Depois aconselhou, ensinou,
pregou, fez-se santo, como Filósofo! Ultimamente, relampagou, iluminou
como rei! E agora, como acabam de ver, atirou-se naquela cama, como um cansado
estudante; ou qualquer outro ente de vida pouco séria, e bruscamente
no cobertor se enrolou.

MELQUÍADES – (levantando-se rapidamente e atirando o cobertor à
cara dos companheiros e discípulos) Nem todos os momentos podem ser
agradáveis: deitei-me; procurou alguém por ventura por mim?…
Estava em um tão agradável sonho… quando de repente senti
um movimento em meu cérebro que assaz me contristou. Levantem-se, rapazes!
Vocês são a Quinta-essência dos preguiçosos!

TODOS – (levantando-se) Que é isto, Melquíades!? Estás
desassisado?

MELQUÍADES – Ó diabo, pois vocês que faziam assentados!?
(Gritando.) Vamos! São horas de escola! Caminhem, saiam! Saiam! (Os
outros levantam-se, e ele os faz sair rapidamente caindo livros de uns; outros
de chinelos; enfim, é uma desordem completa entre os quatro; como se
um incêndio, ou alguma cobra venenosa se visse no quarto.)

(E assim parece dever terminar este Ato – com as seguintes palavras de Melquíades)
Se eu não espanto estes madraços – nem para o chá ganhariam
hoje!

FIM DA COMÉDIA

Porto Alegre, Junho 16 de 1866
Por: José Joaquim de Campos Leão Qorpo-Santo.

Veja também

Os Reis Magos

PUBLICIDADE Diz a Sagrada Escritura Que, quando Jesus nasceu, No céu, fulgurante e pura, Uma …

O Lobo e o Cão

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Encontraram-se na estrada Um cão e um lobo. …

O Leão e o Camundongo

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Um camundongo humilde e pobre Foi um dia …

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site é protegido por reCAPTCHA e pelo Googlepolítica de Privacidade eTermos de serviço aplicar.