Comedores de Orelhas

Nelson Rodrigues

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Certa vez, numa de minhas “Confissões”, escrevi, por outras palavras, o seguinte: — “Na hipótese de uma guerra nuclear, acho que se perderia pouco, muito pouco”. Eu disse isso e não sei, até hoje, se me arrependo de o ter dito. De vez em quando, fico a pensar no fim do mundo. Imaginemos: — não há mais vida humana, foi raspado, com palha de aço, todo e qualquer vestígio de vida humana. Não sobrou nem mesmo uma folha de alface, ou de avenca, ou de couve. Não há mais nada, nem micróbios. Não existiriam nem mesmo as estrelas, porque ninguém viveria para vê-las.

Pensem na Terra de uma nudez mais árida que uma paisagem lunar. E eu pergunto se perderíamos alguma coisa, se tal acontecesse. Da minha parte, não sei o que responder. Hoje tudo se fez para degradar a vida e, pior, para degradar a morte. Alguém disse: — “Não vale a pena viver, nem vale a pena morrer”. É como se ambas, a vida e a morte, perdessem o sentido.

Se me perguntarem por que estou dizendo tudo isso, responderei: — por causa dos antropófagos dos Andes. Como se sabe, lá caiu um avião e houve sobreviventes. Alguns destes rnorreram debaixo de uma avalancha de neve. E os outros, que fizeram os outros? Comeram os companheiros, comeram os amigos. Vejam como se conseguiu, num só lance, aviltar a vida e aviltar a morte. Conta um correspondente de Montevidéu que o pai de um dos mortos perguntou: — “Como morreu meu filho?”. Ora, o rapaz tinha sido almoçado pelos amigos. Era uma pergunta sem resposta.

O co-piloto do avião conseguira sobreviver ao choque. Muito ferido, porém, pediu que o matassem com o seu próprio revólver. Diz a notícia, de maneira sucinta, impessoal, inapelável: — “O que foi feito”. Se as palavras têm um valor preciso, temos aí um assassinato. E não foi só. Os outros sobreviventes não só mataram como ainda o comeram.

E mais: — resgatados, os antropófagos voltaram de avião para sua terra. No meio da viagem, um patrulheiro descobre em pleno vôo que os sobreviventes ainda levavam carne humana. No seu espanto, perguntou: — “Porque vocês trazem isso?”. Explicaram: — na hipótese de que faltasse comida no avião, eles teriam com que se alimentar.

Cabe, então, a pergunta: — todos comeram carne humana? Havia, entre os sobreviventes, um estudante de medicina. E este, usando gilete, e com inexcedível virtuosismo cirúrgico, separou as melhores carnes e as piores. As melhores, macias, gostosas, eram as da nádega, da barriga, da perna etc. etc. Mas o que todos fingem esquecer é que houve um, entre tantos, entre todos, que disse: — “Eu não faço isso! Prefiro morrer, mas não faço isso!”. E não fez. Os outros tentaram convencê-lo. E quando ele, em estado de extrema fraqueza, arquejava na dispnéia pré-agônica, quiseram forçá-lo. Mas só de ver a carne, cortada como no açougue, ele tinha náuseas medonhas. Seu último suspiro foi também um último “não”.

Lembra-me Salim Simão que, segundo um famoso biólogo, só um animal come o semelhante: — a hiena come a hiena. O leão chora o leão que morreu e não o come. Afirma o sábio citado que também o homem não come homem. “Mas há antropófagos”, dirão os idiotas da objetividade. Realmente, há antropófagos que, por isso mesmo, porque o são, deixam de pertencer à condição humana. Mas reparem num detalhe desesperador: aquele que preferiu morrer a devorar o seu semelhante não merece nenhum interesse jornalístico. A reportagem dedica-lhe, no máximo, três linhas frívolas e estritamente informativas. Por sua vez, o público ignora o belo gesto que preservou, até o fim, a condição humana. Era homem e morreu homem.

Talvez os piores não sejam os antropófagos. Estes poderão dizer nas entrevistas coletivas e na televisão: — “Nós estávamos nessas e nessas condições. Queríamos sobreviver”. Ora, é uma explicação. Mas vamos e venhamos: tudo tem explicação. Um célebre escritor arma a seguinte hipótese: — “Se um rato podre chega junto de mim e diz: ‘Cheiro mal por vários motivos, inclusive porque a natureza me deu o dom de cheirar mal; e, além disso, morri e estou podre’ “. Diz o escritor: — “São bem sólidas e procedentes as razões do rato. Nem por isso, deixarei de varrê-lo”. Os antropófagos têm as suas razões. Nem por isso deixam de ser hediondos.

Mas como eu ia dizendo: — o pior são os que não sofreram nada. Sim, os que estão aqui, bem comidos e bebidos, felizes da vida e que, limpando um imaginário pigarro, suspiram: — “Se eu estivesse lá, faria o mesmo”. Fiz uma enquete com mocinhas jornalistas. Perguntei-lhes: — “Vocês fariam o mesmo?”. Uma por uma, todas responderam numa risonha unanimidade: — “Com fome acho que faria”. Vocês ouviram? No Rio, bem alimentadas, se confessam dispostas a provar, em caso de necessidade, uma fatia de nádega humana, ou de coxa, ou da barriga da perna. Fui ouvir os homens da minha profissão. A mesma unanimidade. Eu queria argumentar: — “Mas houve um que preferiu morrer a comer o seu semelhante”. Para esse que não se desumanizou, há o desprezo da seguinte definição: “É um suicida”. Perguntei: — “Suicida, e daí?”. Uma coisa, acho maravilhosamente certa: — muitas vezes Deus prefere o suicida.

Como explicar essa unanimidade a favor dos antropófagos? Como explicar o alvoroço com que todos formam ao lado dos homens que comem homens? Até agora, até este minuto, não encontrei ninguém que dissesse: — “Eu preferia morrer a fazer isso”. Os que falam assim não sabem que a vida pode ser o mais degradado dos bens. Ah, outra coisa que ia esquecendo: — havia um pacto de honra entre os antropófagos: — nenhum deles falaria. E por que, em seguida, passaram a dizer tudo, com a maior prolixidade, sem omissão das minúcias mais abjetas?

Na neve, saboreando as fatias de nádega humana, eles achavam que comer a carne de cadáver era uma imitação de Cristo. E o mais singular é que teólogos chilenos adotaram a mesma interpretação. Cristo fizera isso. Evidente que são teólogos de passeata. E não sei se os acuso de obtusidade córnea, ou de má-fé cínica, ou de ambas.

Há, em Dostoievski, uma página que ninguém esquece. Está em Os possessos. É o caso de um rapaz, bonito, bem-amado por muitas e que, um dia, pede audiência ao governador de uma província russa qualquer. No dia e hora marcados, ele comparece. O governador era um velho petrificado na sua dignidade, quase sobre-humana. Só o czar estava acima dele. Muito bem. Levado à presença do representante do czar, o rapaz inclina-se, em reverência. E, ao inclinar-se, arranca com uma dentada a metade da orelha do governador. Tal foi a surpresa geral, que ninguém fez nada. A autoridade nem percebeu que estava com uma orelha pela metade. E o culpado pôde sair sem ser incomodado.

Quando a população soube, pensou em todas as hipóteses. Só uma hipótese não ocorreu a ninguém: — a da loucura. Sim, ninguém pensou: — “Se fez isso, é porque está louco”. Ao resumir o episódio acima, aqui mesmo, há dois ou três anos, escrevi: — “Em nossa época, os comedores de orelhas são em muito maior número do que se pensa”. Não deixa de ter semelhança com a página dostoievskiana a reação da opinião pública. Ninguém chama os antropófagos de antropófagos. Em sinal de respeito, os jornais só falam em “sobreviventes”.

Todo mundo é cego para o óbvio ululante. Ora, se a maioria, a quase unanimidade, está com os antropófagos, uma coisa é certa: — estamos realmente numa época de antropófagos. Se ninguém vê o horror como tal, se não se espanta e, pelo contrário, se solidariza, vamos tremer em cima dos sapatos. Somos muito mais do que simples “comedores de orelhas”.

[6/1/1973]

 

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