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Medeiros e Albuquerque
I – QUE O REGIME PRESIDENCIAL FOI UMA SURPRESA E UM LOGRO
O regime presidencial não foi instituído no Brasil depois de
uma propaganda que tivesse mostrado suas vantagens e desvantagens. Ele foi
uma surpresa e um logro.
Às vezes, de entre várias soluções ao mesmo problema,
que estão simultaneamente em debate, há uma que consegue impor-se
inesperadamente. Uma maioria ocasional determina escolhas, que assombram a
maioria real; mas essas escolhas recaem sobre uma das soluções
em discussão e sabe-se bem do que se trata.
Não foi nem mesmo isso o que aconteceu. O regime presidencial não
suscitou nunca nenhum debate geral. Ele apareceu, um dia, em um projeto de
constituição decretado pelo Governo Provisório. Ninguém
o discutiu. Foi aceito, por assim dizer, em silêncio.
A propaganda republicana se tinha feito sobre uma base, que se pode chamar
“negativa”. O que se queria era destruir o regime monarquista.
Essa é aliás a regra em todas as propagandas revolucionárias;
o acordo se faz apenas acerca de um ponto: a necessidade de suprimir o que
há. Quanto ao que convém pôr no lugar, as opiniões
divergem. O caso é corrente mesmo em medicina, em que é muito
mais fácil que todos se entendem sobre a natureza da moléstia
do que sobre os processos de cura.
A moléstia que os republicanos queriam eliminar era a instituição
do poder pessoal nas mãos da princesa D. Isabel. Todos sabiam que o
imperador descurara a educação da filha: ela não tinha
a compreensão das altas questões sociais, que devia resolver.
Era um espírito estreito, fanático, que só se preocupava
deveras com a religião e a música.
É certo que assinara a lei de 13 de Maio, decretando a Abolição.
Mas todos haviam visto que o Imperador se afastara propositalmente a fim de
lhe dar ensejo a que fizesse esse ato, para o qual ela não concorrera
de modo eficaz, embora talvez o aplaudisse sinceramente, porque era uma questão,
em que o lado sentimental dominava tudo.
O que mostraria o talento de um estadista seria organizar as cousas, de modo
que a Abolição não causasse nenhum abalo econômico.
Disso a Princesa jamais cuidou.
Citavam-se fatos que mostravam a orientação do seu espírito.
Certo dia, por exemplo, tivera a estranha idéia de, como cumprimento
de uma “promessa”, ir varrer uma igreja de Petrópolis.
Via-se bem que ela tinha a mentalidade de uma burguesinha de classe média,
boa, honesta, virtuosa, mas sem nenhuma elevação.
Por outro lado, havia o Conde d’Eu. É uma figura estranha a
desse príncipe, que talvez tenha sido um caso único: o príncipe
que perdeu três coroas!
Quando a Bélgica andou à procura de um rei, foi no Duque de
Nemours, pai do Conde d’Eu, que pensou. A Inglaterra opôs a isso
o seu veto. Luiz Filipe viu que a aceitação dessa candidatura
seria a guerra e não permitiu que o irmão a adotasse.
Mais tarde, na Grécia, houve a mesma idéia. Também essa
nação quis um rei, também por lá não faltou
quem pensasse no Duque de Nemours. De novo, o veto da Inglaterra impediu que
o ato se consumasse.
Afinal, o Conde d’Eu ia ao menos ser príncipe consorte, imperador
não-reinante. Mesmo isso, porém, o destino não lhe permitiu.
O que o fazia antipático aos brasileiros era o espírito de
lucro — espírito bem francês, de economia, de atenção
ao dinheiro. Espírito absolutamente contrário à nossa
índole perdulária. O fato, que foi contestado mas que se tinha
como certo, de ter ele empregado grandes somas na aquisição
de habitações de gente pobre, habitações sem conforto
nem higiene, mas muito rendosas — os cortiços — prejudicara-o
muito no espírito popular. Contava-se de pessoas pobres que iam ao
paço receber esmolas da imperatriz e com essas esmolas pagavam os quartos
dos “cortiços” alugados pelo Conde d’Eu!
De mais, ele sempre conservara o sotaque estrangeiro.
Este pequeno pormenor, que parece insignificante e que, de fato, nada prova,
é um dos que causam sempre detestável impressão. Impressão
involuntária, injusta, mas profunda. Para o destino de Maria Antonieta,
para o modo brutal pelo qual foi tratada a mulher de Paulo I, da Rússia,
quando esse imperador foi assassinado, para muitos outros acontecimentos históricos,
contribuiu essa particularidade. Talvez não fosse descabido lembrar
que isso também influiu para a instalação da república
portuguesa, por causa de uma certa antipatia contra a rainha D. Amélia,
e mesmo contra D. Manuel, que, educado pela mãe e por professores franceses,
tinha o sotaque desses professores.
Um príncipe que fala a língua do país que dirige com
a pronúncia de outro, lembra a cada instante a sua origem estrangeira
e isso parece uma humilhação para os seus súditos.
Dir-se-á que afinal esse inconveniente não era considerável.
Mas é preciso ter sempre em vista o fato das multidões não
raciocinarem com a serenidade e a lógica dos indivíduos, que
meditam calma o sensatamente.
O Conde d’Eu tinha ainda o inconveniente de ser surdo. A surdez, alheando
os indivíduos do meio em que estão, lhes dá, às
vezes, a imputação de orgulhosos, porque não lhes permite
tomar parte na conversa com a cordialidade, que todos desejariam.
Os hábitos da corte, tais como D. Pedro II os instituíra, tinham
sido sempre de uma familiaridade bonacheirona. Nunca ocorreria a nenhum soberano
dar audiências populares, como as de D. Pedro, na Quinta de S. Cristóvão,
todos os sábados: num corredor, de pé, aceitando indistintamente
todos os que queriam entrar. O seu ideal parecia ser o do “bon petit
roi d’Yvetot”:
Joyeux, simple et croyant le bien
Pour toute garde, il riavait rien
Qu’un chien….
Isso provava um bom coração, uma grande amabilidade; mas era
incontestavelmente destituído de decoro. O Conde d’Eu educado
à francesa, não se ajeitava inteiramente com esse sistema e
os seus modos de agir, conquanto não fossem grosseiros nem orgulhosos,
o punham num destaque antipático.
Evidentemente uma revolução não se faz unicamente por
esses pequenos móveis, embora a soma de tais imponderáveis chegue,
às vezes, a totais espantosos. Há sempre, no fundo, os grandes
motivos sérios de descontentamento e mal-estar.
Já se tem dito que nunca se fez revolução alguma sem
graves razões de ordem econômica. Talvez isso seja uma fórmula
muito absoluta, sobretudo para nações com a constituição
étnica da nossa, em que as questões de sentimento primam muitas
vezes as de interesses reais. Mas nem mesmo esses motivos econômicos
faltavam em 1889, porque desde que começara a propaganda abolicionista,
o trabalho agrícola se desorganizara. E o trabalho agrícola
era então a nossa única fonte de riqueza. Por outro lado, a
excessiva centralização contrariava as províncias, sobretudo
as que mais produziam.
De tudo isso se fazia culpado o regime imperial, o poder pessoal do Imperador
e mesmo o parlamento. Acontecia que com a desorganização do
trabalho causada pela propaganda republicana ninguém se preocupava
com a do presidencialismo norte-americano, ninguém tratava disso, ninguém
sabia o que era.
Seria vão procurar se, nalgum livro, nalgum perdido artigo, se encontravam
alusões a ele. A verdade é que no forte da propaganda, nos artigos
de sensação, nos comícios populares não se falava
em tal cousa. Praticamente, o que todos queriam era, em vez da Princesa, um
Presidente de República! E mais nada.
De repente, no projeto de Constituição apresentado pelo Governo
Provisório surgiu o regime presidencial. O momento não comportava
muitas discussões teóricas. Não havia tempo para estudar
uma questão cuja gravidade ninguém aprendia bem.
Os que julgam os fatos daquela época precisam lembrar-se que era um
período de legislação a jacto contínuo. O Governo
Provisório concentrava todos os poderes e desenvolvia uma atividade
extraordinária em todos os domínios da administração
e do direito, sob todas as suas formas. Os decretos se sucediam. Era um frenesi
legislativo.
Não vai nisto censura. Nessas épocas não se pode agir
com a calma e a prudência dos tempos normais. Mas é preciso bem
evocar esse estado de espírito — o que não é muito
fácil — para compreender porque o projeto de Constituição
não teve discussão na imprensa.
Hoje isso parece estupendo. Na ocasião, era normal. Havia uma infinidade
de outras preocupações que absorviam a atenção
pública — preocupações urgentes, imediatas —
que a desviavam de cogitar em cousas, que pareciam mais teóricas, mais
remotas. Além disso é bom não esquecer que se estava
em plena ditadura, havia quase um ano. Um regime legal qualquer, mesmo o presidencial,
parecia liberal diante da ditadura franca, completa, absoluta.
Seja, porém, como for, justificada ou injustificadamente, o fato é
incontestável: o projeto da Constituição do Governo Provisório
não foi discutido. Apareceu; todos os jornais o inseriram; no dia seguinte,
ninguém falava mais nisso.
A Constituinte foi uma assembléia de calouros. A maioria dos seus
membros entrava por aí na vida pública. Um grande número
deles vinha dos quartéis: eram oficiais moços, que quase todos
se consideravam solidários com Benjamin Constant. Só havia nessa
assembléia um grupo realmente ativo, coerente, sabendo mais ou menos
o que queria: o grupo positivista. Embora pequeno, pesou muito — e nefastamente
— sobre a Constituinte. A ele aderiam em regra todos os militares, que
se julgavam obrigados a concordar com o positivismo, porque era a doutrina
de Benjamin Constant. A ignorância de quase todos sobre as questões
políticas mais elementares chegava a limites estupendos!
Ora, o positivismo, tendendo naturalmente para a ditadura, preferia o presidencialismo
ao regime parlamentar. Quando se lêem hoje os debates daquela assembléia,
vê-se bem que os próprios positivistas mais ilustrados, que mais
influência tiveram, ignoravam o mecanismo real do regime presidencial.
O que eles sabiam era que estava em antagonismo com o Regime Parlamentar detestado
por Augusto Comte e que se aproximava mais do sistema ditatorial. Era o que
os decidia.
Contra isso havia na Constituinte um pequeno número de políticos
do tempo do Império, infensos ao modo de governo que se queria implantar.
Mas para o combaterem faltava-lhes autoridade, por dois motivos. Primeiro,
porque também o não conheciam. Depois, porque não se
atreviam à luta, para não parecerem suspeitos. Os positivistas
faziam crer que o parlamentarismo era quase a mesma cousa que a monarquia
e os antigos monarquistas não ousavam defendê-lo, porque pareceriam
traidores à República. Daí a timidez dos seus protestos
em uma assembléia, em que a educação política
da maioria era inteiramente nula.
Nem ao menos a falta de discussão na Constituinte podia ser suprida
pela discussão na imprensa, porque, durante o tempo em que aquela assembléia
esteve reunida, o Governo Provisório continuava a legislar. Quanto
mais sentia que o seu poder ia acabar, mais usava dele. Instrução,
justiça, organização militar, tudo se reformava; códigos
variados se sucediam. Ainda depois da Constituição promulgada,
decretos do Governo Provisório antedatados apareceram!
A essas medidas, que feriam interesses imediatos, era impossível não
prestar atenção. Elas a monopolizavam quase inteiramente. E
durante esse tempo a Constituinte ia votando a instituição de
um regime, de cujo funcionamento a quase totalidade dos seus membros não
tinha a mínima notícia.
Depois, para muita gente, havia em favor dele uma razão verbal, que
pode parecer ridícula e fútil, uma razão desarrazoada
— se assim pode dizer-se. Era uma simples analogia verbal. Nós
tínhamos passado a ser os Estados Unidos do Brasil. Logo, devíamos
ter as instituições dos Estados Unidos.
Todos os que estudam a psicologia das multidões sabem como as analogias
verbais são poderosas e influentes. Não há aliás
nisso nenhuma aberração. Há uma falta de atenção,
uma falta de exame das questões. Só se deveriam dar nomes iguais
a cousas iguais. Não é, entretanto, o que sucede; mas uma infinidade
de pessoas raciocinam como se fosse essa a verdade. Havia, portanto, obscuramente
na cabeça de muita gente, este silogismo:
“Nações, que se chamam do mesmo modo, devem ter um governo
igual;
“Ora, a república norte-americana e a brasileira chamam-se agora
igualmente Estados Unidos;
“Logo, a república brasileira deve ter um governo igual ao da
norte-americana”.
Escrito, exposto em termos claros, analisado à luz da razão,
este pretenso silogismo é uma tolice monstruosa, porque ele parte da
identidade real inexistente das cousas de nome igual; mas ele pesou muito
na escolha do regime presidencial. Pesou, como tudo o que concorreu para o
seu estabelecimento, sem que ninguém o ousasse enunciar. Porque a verdade
é esta: a propaganda republicana se fez sem que a maioria pensasse
no regime presidencial; não se sabia o que era, não se falava
nele. O projeto de Constituição do Governo Provisório
não teve discussão na imprensa. Na Constituinte não a
teve também com a amplitude que merecia, porque os que podiam defender
o regime parlamentar não ousavam, para não parecerem suspeitos.
Assim, a instituição do presidencialismo entre nós se
fez por surpresa. Por surpresa — e graças à ignorância
geral em que todos estavam a seu respeito. Não foi uma escolha consciente
da Nação.
II – QUE O PROGRESSO DO BRASIL A PARTIR DE 1889 NÃO SE FEZ POR CAUSA
DO REGIME PRESIDENCIAL, MAS APESAR DELE…
A favor do regime presidencial ouvia-se, às vezes, em 1890, depois
que o Governo Provisório o propôs, uma alegação.
Ninguém a aprofundava. Aparecia, às vezes, aqui e ali, em artigos,
em discursos, em conversas. Dizia-se que o regime que tinha dado aos Estados
Unidos a sua magnífica prosperidade não podia deixar de fazer
o mesmo ao Brasil.
Quando se examina essa afirmação, verifica-se que ela é
o mais trivial dos sofismas: o que consiste em atribuir às seqüências
ou concomitâncias de fenômenos o valor de causas e efeitos. “Post
hoc. ergo propter hoc…”. Faltava demonstrar que a prosperidade dos
Estados Unidos era devida ao seu sistema de governo. Faltava, depois, demonstrar
que o mesmo efeito produzido lá se reproduziria no Brasil.
Nenhuma dessas demonstrações é possível.
Todos os governos e todas as oposições argumentam com esse
sofisma. Quando se acusa um partido reacionário de ser nefasto a qualquer
país, em cuja direção ele está há muito
tempo, a resposta que sempre aparece é a de comparação
do estado do país, no momento em que o partido assumiu o poder e no
momento em que é feita a acusação. A compensação
a isso é dada pelas oposições, que não deixam
de tornar os governos responsáveis por tudo o que de mau ocorre durante
as suas gestões.
É exatamente a mesma falta de lógica nos dois casos.
Pelo fato de uma nação estar mais adiantada dez anos depois
de ter subido ao poder um certo governo, não quer dizer que o progresso
tenha sido promovido por esse governo. O mundo não pára. Mesmo
os governos mais retrógrados e nefastos não têm impedido
o progresso de certas nações.
Se fosse possível preceder experimentalmente e lidar com uma grande
nação como se lida com um animal de laboratório, seria
necessário submetê-la a um certo regime, notar os resultados
obtidos, repô-la no estado anterior e recomeçar a experiência
com outro regime, para então comparar o que se tivesse obtido com um
e com outro. Mas isso não se pode fazer. Não há remédio
senão recorrer a induções e deduções diversas:
imaginar o que se poderia passar nesta e naquela hipótese.
Em todo caso, ainda uma vez se repita: o mundo não pára. Submetido
ao pior dos governos, um país qualquer pode prosperar.
Há quem ache o absolutismo um governo detestável? No entanto,
a Rússia, mesmo sob esse odioso regime prosperou. Até 1911,
Mônaco não tinha nem ao menos, como hoje, o menor simulacro de
limitação aos poderes do Príncipe que a dirige. Dirá
alguém que a prosperidade desse principado prova as excelências
do absolutismo?
Dirá alguém que o mal é o clericalismo? Mas a Bélgica
fez, durante 40 anos de governo clerical, um admirável progresso.
Há detratores para os governos democráticos? Pode-se mostrar-lhes
que a França, a Suíça, a Nova Zelândia, não
têm cessado de progredir.
Como se vê, esse argumento serve para defender todas as causas possíveis
e imagináveis. Desde que uma nação tem um longo período
de paz, tudo se organiza, e, apesar da ação nefasta dos governos
mais detestáveis, ela vai progredindo.
Em cada caso particular, os que são partidários de um sistema
de governo diverso do que está em vigor, asseguram que, se se adotasse
a fórmula preconizada por eles. a situação teria mais
vantagens e muito menos inconvenientes — É uma questão
a discutir.
Pode-se mostrar — e mais para diante o faremos — como o regime
presidencial causou certos prejuízos aos Estados Unidos. Mas sem, por
ora, tratar disso, seria uma inépcia atribuir-lhe a riqueza e a prosperidade
econômica da grande república. Nenhum escritor norte-americano
se lembrou dessa bobagem.
O progresso dos Estados Unidos veio principalmente da riqueza de suas minas
— a começar pelas que mais interessavam: as de ferro e carvão
de pedra.
Não é preciso fazer um esforço muito grande de imaginação
para calcular como teria sido outro o destino daquela nação,
caso o carvão de pedra lhe houvesse faltado. Se, em compensação,
nós o tivéssemos, também a nossa situação
seria bem diversa — e bem melhor, embora o nosso governo fosse até
francamente absolutista.
O nervo da indústria moderna é o carvão de pedra. Só
são verdadeiramente ricas as nações que os possuem. Tudo
mais pode considerar-se relativamente secundário.
Às vezes, a prosperidade de uma nação resulta de um
fato longínquo para o qual ela em nada contribuiu. As guerras do Transwaal
e Russo-Japonesa serviram extraordinariamente à prosperidade da República
Argentina. De repente, foi necessário aumentar a exportação
de carnes conservadas, para os exércitos em campanha. E desde logo
a indústria pastoril na Argentina tomou um incremento formidável.
O país passou de um regime de moratória a um regime de incrível
abundância.
Se, na véspera das declarações daquelas guerras, a República
Argentina tivesse começado a ser uma monarquia ou até uma teocracia,
nem por isso os exércitos que se batiam na África e na Manchúria
comeriam um só carneiro a menos; e, feita a prosperidade da nação,
por causa daquele motivo, os turiferários do novo governo não
deixariam de alegar essa prosperidade como uma prova da excelência das
novas instituições.
Como e por que ganhou o Brasil o maior cliente da sua principal cultura:
do café? Porque foi precisamente, a propósito do imposto sobre
o chá, que a revolução para a independência norte-americana
começou. O café, sucedâneo do chá, achou o campo
desembaraçado do seu concorrente.
Não é preciso insistir em arrombar esta porta aberta.
A sério, de boa fé, ninguém dá argumentos dessa
ordem.
Em um discurso justamente célebre, Lauro Müller, querendo achar
méritos especiais para o regime presidencial, descobriu que foi ele
quem tornou possível a extinção da febre amarela no Rio
de Janeiro.
Todos sabem como Lauro Müller era um espírito culto e lúcido.
A República não teve muitos homens a quem se pudesse, como a
ele, dar, sem hesitação, o título de “estadista”.
Nenhum, portanto, compreendia mais facilmente a absoluta falta de valor da
alegação que fazia. Mas, se ele a fez, foi porque, como se poderia
dizer parodiando a frase de Pascal, a retórica tem razões que
a Razão não conhece.
Essa alegação é um exemplo característico, de
uma argumentação sofística que se encontra a cada passo,
sem que ninguém se dê ao trabalho de examiná-la. A todo
instante, se vêem algumas administrações louvadas porque
instalaram certos aperfeiçoamentos. E isso as põe em contraste
com as anteriores, que não o haviam feito.
Esquecem-se, porém, de dizer se as anteriores poderiam ter instituído
os tais aperfeiçoamentos.
Figurem um diretor dos telégrafos que, desejando apregoar os seus
méritos, apresentasse como seu principal título de glória
ter instituído no país a telegrafia sem fios.
Excelente idéia! Faltava, entretanto, acrescentar que ele tomara conta
do seu cargo em 1896. Ora, como antes dessa época a telegrafia sem
fios ainda não estava inventada, claro é que, se os seus antecessores
não a instalaram, isso não prova nada contra eles.
Um caso inteiramente análogo ocorreu com a febre amarela.
Todos sabem que a extinção da febre amarela no Rio de Janeiro
é um dos mais belos exemplos de aplicação legal sistemática
de uma doutrina científica. O que fez o grande mérito de Oswaldo
Cruz foi ter reconhecido a importância científica da doutrina
da transmissão da febre amarela pelos mosquitos e de ter sabido achar
as medidas administrativas necessárias para tirar desse conhecimento
todas as aplicações que comporta. Mas a teoria científica,
em que ele se baseou, só ficou fora de dúvida depois das memoráveis
experiências de Cuba — isto é, depois de 1898. Antes disso,
portanto, fosse o Brasil império, reino, teocracia, república
parlamentar ou presidencial, nenhum governo podia extinguir a febre amarela
no Rio de Janeiro. Só por acaso se tomariam as providências higiênicas
especialíssimas, que eram necessárias, porque ninguém
antes disso sabia o que era preciso fazer.
Evidentemente esse fato não tira em nada o mérito ao Presidente
da República do quatriênio de 1902 a 1906. Todos sabem que foi
ele — ele pessoalmente — quem por iniciativa própria sustentou
mansa, mas firmemente, com sua energia inquebrantável, o ilustre diretor
de saúde pública, que ousou as medidas necessárias para
a extinção da febre amarela. A execução das principais
levou apenas dois anos. Ao fim do primeiro, já a situação
mudara de tal modo, que ninguém se atreveria a voltar atrás.
Ora, não há quem possa dizer porque, se o Dr. Rodrigues Alves,
em vez de ser Presidente da República, tivesse sido Presidente do Conselho
ou Ministro do Interior de um regime parlamentar, não teria feito isso
mesmo. O mérito foi dele pessoalmente e não de regime. Nem do
regime presidencial, nem do regime republicano.
Pode-se até notar que ele foi um dos homens políticos que nos
veio já sagrado da monarquia. Se ela houvesse continuado, ele a teria
servido com a mesma alta dedicação patriótica com que
sempre serviu seu país.
É preciso, portanto, quando se elogia um sistema de governo pelos
progressos que realizou, procurando assim demonstrar a sua superioridade sobre
outro, fazer a prova de que esses progressos dependem de virtudes intrínsecas
do sistema e que, portanto, outro qualquer não os realizaria.
Assim, se os Estados Unidos se têm desenvolvido de um modo vertiginoso,
sob o regime presidencial, nada prova que não tivessem tido o mesmo
desenvolvimento sob o regime parlamentar. A Austrália, federação
parlamentar de Estados parlamentares, fundada em 1901, não tem tido
desenvolvimento menos vertiginoso que os Estados Unidos.
Era, entretanto, a visão da prosperidade norte-americana que, em 1890,
levava muita gente a preconizar para o Brasil o regime presidencial.
III – QUE HISTORICAMENTE O REGIME PRESIDENCIAL É UM ABORTO, POR PARADA
DE DESENVOLVIMENTO, DO REGIME PARLAMENTAR…
Se se pudesse falar sem muito pedantismo em uma definição “biológica”
do regime presidencial, dir-se-ia que ele era um aborto do regime parlamentar.
Um aborto por parada de desenvolvimento.
Figurem um ser vivo que, ainda em pleno período de crescimento, fosse
metido em um receptáculo férreo, apertado, que lhe tolhesse
a possibilidade de expandir-se e evoluir. É o caso do regime presidencial.
Ele não nasceu de uma concepção especial, visando criar
qualquer outra cousa nova e boa.
Não passou da utilização ocasional de um mau estado
de cousas, que, se se perpetuou, foi pelo poder paralisante que sempre exercem
os códigos e as leis escritas.
Quando se fez a independência dos Estados Unidos, ninguém pensou
em achar uma forma nova de governo. Summer Maine mostrou admiravelmente que
se tratou apenas de substituir o governador nomeado pelo rei, por um governador
eleito pelo povo. Ninguém tinha preocupação de inovar.
Ninguém pretendeu estabelecer uma divisão rigorosa de poderes
independentes. A prova disso é que o Senado norte-americano ficou tendo
o direito de aprovar ou reprovar todas as nomeações de funcionários
públicos, atribuição que ainda hoje conserva.
As colônias inglesas eram regidas por um governo idêntico ao
da metrópole: um representante do rei e um conselho com atribuições,
em parte legislativas, em parte executivas. Esse representante do rei tinha
poderes muito extensos: tão extensos na colônia, como os do próprio
rei na metrópole. Ora, nesse tempo, o rei era, de fato, absoluto. As
únicas restrições sérias ao seu poder diziam em
parte respeito ao levantamento de novos impostos. O mais, na prática,
não tinha importância.
Consumada a revolução nos Estados Unidos, era necessário
substituir o mandatário do rei por um mandatário do povo. Foi
o que se fez. Havia o Conselho, que assistia o governador. Converteu-se em
Senado com as atribuições que já tinha. Era necessário
criar um órgão equivalente à Câmara dos Comuns.
Criou-se. Summer Maine mostrou, fazendo o confronto da Constituição
dos Estados Unidos, com o regime colonial, que o precedeu e com o regime que
imperava na Inglaterra na mesma época, a absoluta analogia dos três.
Tomou-se o que havia, fazendo o mínimo de alterações,
necessitadas imperiosamente pelo fato da independência, e reduziu-se
tudo a escrito, principalmente porque os Estados queriam garantir-se contra
as invasões do poder central.
No meio de tudo, sem que, aliás, se tivesse procurado expressamente,
apareceu uma cousa maravilhosa: a constituição do Poder Judiciário.
Ainda aí, seguiu-se a tradição inglesa, dando-se-lhe
apenas a forma expressa da lei escrita.
A modificação, que ocorreu, dependeu mais dos primeiros homens
que exerceram os altos cargos judiciais que de qualquer outra cousa. Em parte
alguma, se encontra um só texto declarando que o Supremo Tribunal terá
qualquer supremacia sobre os outros poderes. A supremacia que ele veio a conseguir
decorreu do mérito pessoal dos primeiros ministros daquela alta corporação,
que firmaram praxes, de então em diante respeitadas.
Em resumo, ainda uma vez: o regime presidencial é a adaptação
a uma nação republicana, com o mínimo de modificações,
de um regime colonial, em que o chefe da colônia era um representante
do poder absoluto do rei.
Na metrópole esse regime foi-se modificando pouco a pouco —
ou antes — foi-se modificando muito rapidamente: em um século
depois chegava enfim ao regime parlamentar.
Na colônia emancipada e tornada uma nação independente,
não pôde seguir a mesma evolução por causa da dificuldade
que lhe opôs o texto da Constituição.
Todos sabem, de fato, como a simples circunstância de se formular por
escrito uma lei, um preceito qualquer, torna a sua revogação
mais difícil. As relações, que têm livros santos,
levantam logo numerosos dogmas. Esses dogmas, no momento em que são
formulados, não suscitam dificuldades. Estão de acordo com as
crenças, com as opiniões da maioria. Só algum tempo depois,
é que o antagonismo aparece e é dificílimo de resolver,
porque a letra escrita é de uma tenacidade terrível. Scripta
manent…
Com os códigos sucede o mesmo.
A Inglaterra não tinha esse embaraço. Pôde fazer a transição
suave do poder absoluto para o poder parlamentar. Os Estados Unidos ficaram
no molde que a revolução os forçara a adotar.
É neste sentido que se pode dizer que o sistema presidencial não
passa de um aborto por parada de desenvolvimento.
Em cada ocasião, um determinado país e suas colônias
tinham uma certa forma de governo. Uma dessas colônias, tornada independente,
reduziu a escrito esse sistema e parou nele. A metrópole e todas as
outras, na Europa, na América, na África e na Oceania evoluíram
para o regime parlamentar. Só os Estados Unidos ficaram imóveis.
Igualdade de raça, igualdade de tradições. É evidente
que, se os Estados Unidos não tivessem sido contrariados na sua marcha
progressiva pela rigidez de sua Constituição, teriam também
chegado ao regime parlamentar.
Nem ao menos se pode alegar que houve a influência do sistema federativo,
ou que foi uma questão de meio, especial à América. O
Canadá é federação. O Canadá é na
América. O Canadá é regido pelo sistema parlamentar.
Há exemplos de povos, outros, diversos, terem passado por uma evolução
normal, do regime presidencial para o parlamentar. A marcha contrária
só se deu no Brasil e ninguém dirá que tenha sido por
uma evolução normal; foi por uma revolução que
não visava de modo algum esse fim e só chegou a ele por surpresa.
Não foi marcha; foi salto. Salto e queda.
A Constituição do império era “presidencial”.
Pode-se bem dizer isto, sem gracejo nem paradoxo. A escolha dos ministros
devia depender unicamente do imperador. Em parte alguma se falava na confiança
do parlamento. Era assim que Pedro I, intérprete autêntico de
um texto que ele promulgara, entendia as cousas.
A despeito do texto, a evolução se fez para o regime parlamentar.
As leis constitucionais da França não dizem que os ministros
devem depender do parlamento. Dizem que eles dependem do presidente. Lida,
a Constituição é presidencial. Presidencialmente a queria
executar Mac-Mahon. A evolução se fez no sentido parlamentar.
Mesmo caso na Bélgica.
Os acontecimentos do Japão provam que os fatos estão seguindo
aí a mesma marcha. Também lá, a despeito do imperador
ser um deus — nada menos que um deus! — o parlamento vai ganhando
em autoridade e prestígio e impondo a sua vontade.
Assim, em toda parte, dado um regime presidencial — isto é,
um regime em que o Poder Executivo não dependa do legislativo —
o progresso consiste em fazê-lo depender.
O regime presidencial foi a parada de desenvolvimento de parte de um povo,
que passaria a outro sistema, se tivesse continuado a evolução,
que todas as outras partes desse mesmo povo fizeram.
IV – QUE A ACUSAÇÃO DE INSTABILIDADE FEITA AO REGIME PARLAMENTAR
É INJUSTA: O REGIME PRESIDENCIAL É ESTÁVEL PARA O MAL
E INSTÁVEL PARA O BEM
A grande objeção contra o regime parlamentar é a da
instabilidade dos ministérios. A isso se alude em todos os tons. E
isso é absolutamente falso.
Não há dificuldade alguma em mostrar que o governo instável
é o presidencial. Estável para o mal, instável para o
bem. Nele quando se elege um mau presidente, há que suportá-lo
por todo o período; em compensação, quando se tem um
presidente bom, há que pô-lo fora ao cabo desse período,
interrompendo o que estiver fazendo.
Dir-se-á que a reeleição daria remédio a este
mal? Não daria, porque ela seria também por prazo fixo. Nem
poderia ser de outro modo Ora, durante esse segundo prazo, a questão
se formularia do mesmo modo, e, se o presidente procedesse mal, haveria que
suportá-lo até o fim.
O regime parlamentar tem exatamente a vantagem de permitir, por um lado,
a permanência no poder “enquanto bem servirem”, por tempo
indefinido, e “sem perigo algum” dos bons governos; por outro
lado, a eliminação imediata dos maus.
O estúpido, o absurdo é dar tempos iguais de ação
aos que se mostram bons ou maus. A cada um, preste ou não preste, quatro
anos!
Mas ainda admitindo que os erros sejam só em número igual ao
dos acertos, todos sabem que para a destruição se pede muito
menos tempo que para a construção. O que uma série de
governos pacientemente ajuntou, elevando a fortuna pública, consolidando
o crédito, firmando o prestígio da Lei, outro destrói
em alguns meses. O mais boçal mestre de obras é capaz de destruir
em um segundo as pirâmides do Egito, que duram há tantos mil
anos. Basta que lhe dêem a carga precisa de dinamite e um gesto lhe
ser suficiente para fazê-las saltar!
Nada, portanto, mais irracional do que atribuir, de um modo fixo, o mesmo
prazo aos bons e aos maus governos, sem o mínimo discernimento. É
o que faz o regime presidencial: estável demais para os governos nefastos,
instável para os bons!
Sem, entretanto, fazer comparação alguma, julgando em si mesmo
o regime parlamentar, logo se verá que a alegação da
sua instabilidade, embora universal, é inteiramente falsa. A sua universalidade
se explica tão bem como a sua falsidade.
Quando se acompanha a política de um país qualquer, através
de todos os ministérios que nele se sucedem, o que se vê é
que ela se desenvolve sem sobressaltos. De um ministério para o que
se lhe segue a diferença é sempre em um ou outro ponto. De um
programa inteiro, varia um pormenor, um detalhe, o modo de encarar uma questão.
É o que se vê na França, é o que se vê na
Bélgica, era o que se via no Brasil.
Nem podia ser de outro modo. Pois se os ministérios dependem da maioria
das assembléias, não se compreende como essas maiorias estariam
constantemente mudando a todo tempo sobre numerosas questões.
O regime parlamentar traz sempre consigo uma importante organização
administrativa. Importante pela estabilidade e pela competência. Exatamente
porque muitos ministros se vão sucedendo em pouco tempo, eles precisam
achar os serviços administrativos aparelhados para lhes fornecerem
imediatamente todos os elementos de informação sobre os assuntos
mais variados. Um ministro, no regime parlamentar, está sujeito às
interpelações mais diversas. É preciso que as secretarias
competentes lhe permitam responder a elas. Demais, como cada um chega com
a sua orientação própria e se interessa, ora por uns,
ora por outros pormenores, as secretarias vêem-se forçadas a
estar bem ao par de todas as questões. Daí a força, o
prestígio, a estabilidade que adquirem os serviços administrativos
no regime parlamentar.
Na França, por exemplo, onde se vê freqüentemente falar
em instabilidade administrativa, a administração chega a ser
rotineira. Silveira Martins disse uma vez no Senado do império que
um amanuense podia mais que um ministro. Era, sob uma forma exagerada e paradoxal,
um meio de mostrar como a organização administrativa se mostrava
forte, disciplinada e poderosa.
Os que se impressionam com o grande número de ministros, que passam
pelas diversas pastas, perdem de vista que cada um desses ministros procura
apenas inovar um ponto. Nenhum põe em discussão todas as questões
do seu ministério. Alguns mesmo não buscam alterar nada —
o que, aliás, não parece que seja um ideal.
Os adversários do sistema parlamentar usam sempre na sua argumentação
de um meio simplista e grosseiro: fazem a estatística dos ministros
que ocuparam tal ou qual ministério. Isto não prova nada. O
essencial é examinar qual era o programa desses ministros. Se era o
mesmo, pouco importa que os atos fossem assinados por X, Y ou Z.
Há, porém, momentos de real instabilidade. Instabilidade de
pessoas e de programas. Ainda nesses casos, tudo concerne um ponto apenas
e é uma grande, uma imensa, uma formidável superioridade do
sistema parlamentar.
O exame de dois exemplo célebres bastará para prová-lo:
a questão abolicionista, no Brasil, e a questão Dreyfus, na
França.
Trata-se sempre nesses casos de um ponto muito discutido, muito combatido.
O país está dividido. Há uma forte agitação.
Cada um propõe uma solução diversa.
O resultado é que, não havendo ainda na maioria da nação
uma opinião nitidamente formada em nenhum sentido, cada ministério
que vem traz uma solução e procura fazê-la triunfar. Se
ela não serve, o ministério cai. Sobe outro, que sugere um alvitre
diverso. Sucede-lhe o mesmo. Durante esse tempo a questão vai progredindo,
a opinião vai tomando um rumo definido. Afinal, acha-se um governo
que consegue fazer votar a medida conveniente. Imediatamente tudo se acalma.
Foi o que sucedeu com a Abolição; foi o que sucedeu com o caso
Dreyfus.
Em uma como na outra hipótese, quando as questões começaram,
a solução que acabou por triunfar ainda não era aceita
pela opinião. Foi a propaganda intensa e a experiência malograda
de várias soluções inconvenientes ou insuficientes que
levou à descoberta da boa.
Para achá-la foram precisos dez ou vinte ministérios? —
Que importa isso?! Se se examina o conjunto da administração
durante um desses períodos de crise, logo se vê como ela se mostra
de uma estabilidade formidável. Tudo está quieto. Há
apenas discussão sobre o ponto que preocupa os espíritos. Os
ministros sobem, instalam-se, caem, são substituídos, mas a
administração geral continua tranqüilamente — mais
tranqüilamente até que nos outros períodos.
Graças a essa facilidade de substituir ministérios e deixar
que cada um proponha a solução que parece melhor, não
se força nem se contraria a evolução nas crises mais
graves Por isso mesmo, o regime parlamentar no Brasil fez a Abolição
pacificamente, ao passo que o regime presidencial nos Estados Unidos desencadeou
uma revolução tremenda.
De fato, o que acontece no regime presidencial quando, em uma dessas crises,
se tem de eleger o presidente, é que ele representa a opinião
dominante nesse momento. Quanto mais ele é um homem de honra, mais
se acha obrigado a manter essa opinião, em nome da qual foi elevado
ao poder. Mas o espírito público, trabalhado pela propaganda,
muda rapidamente, toma outro rumo. O presidente acha-se, porém, forçado,
por teima ou por coerência, a ficar no seu ponto de vista, que representa
uma fase já ultrapassada do sentimento nacional. Daí o conflito.
Com um regime presidencial, se, quando rebentou a questão Dreyfus
em França, houvesse uma eleição para chefe de Estado,
o eleito seria contrário à revisão do processo. E a propaganda
continuando, chegar-se-ia fatalmente à revolução.
Se, em 1887, o Brasil fosse república presidencial e tivesse de eleger
o seu presidente, não elegeria um abolicionista incondicional e sem
indenização. No entanto, um ano depois, esta solução
se impunha e se realizava suavemente; mas só se impunha e só
se realizava suavemente, porque foi possível sacrificar vários
ministérios. Todos viram assim que, esgotadas as outras soluções,
restava apenas a da abolição imediata e incondicional.
Poder-se-ia, se se quisesse levar a questão para outro terreno, mostrar
que o povo raciocina sempre antropomorficamente:
ele não compreende os assuntos de um modo inteiramente abstrato. É
preciso para que ele siga bem um debate que cada solução seja
representada por um nome próprio, por alguém que ele possa aplaudir
ou combater. Os ministérios, que se sucedem, são idéias
que vão passando diante do seu espírito: idéias encarnadas
em indivíduos. E ele não as pode acompanhar de outro modo.
Não é só, porém, nas graves questões nacionais
que a facilidade de mudança dos ministérios oferece grandes
vantagens: é também nas questões internacionais. Um governo
que oferece uma solução está obrigado a sustentá-la.
Abandonando-a, desmoraliza-se. Se, porém, um ministério sucede
a outro, ele vem com a possibilidade de encarar a questão de um modo
novo e sem desar. De um dia para o outro, o país pode apresentar propostas
novas, que na véspera, seriam inadmissíveis.
Por toda parte, se acha sempre esta mesma oposição entre os
dois regimes: o presidencial emperrado, difícil de manejar, sem soluções
fáceis — e rápidas; — o parlamentar suave, acomodatício,
plástico, sempre apto a encontrar a boa resolução, no
bom momento, com a simples substituição de meia dúzia
de pessoas.
Por que, entretanto, a famosa instabilidade ministerial é tão
apontada?
É que há sempre milhares de cidadãos a quem a queda
de um ministério não pode deixar de incomodar; a legião
infinita dos candidatos a cargos públicos.
Não se acredite que é amesquinhar a questão apresentá-la
deste ponto de vista. Basta que alguém pense que em cada país
há sempre algumas centenas de empregos, que estão vagos ou que
podem vagar de um momento para outro. E há milhares e milhares de indivíduos,
que os cobiçam e acreditam poder contar com a nomeação,
quanto tais ou quais ministros estão empossados Os ministros caem:
é todo o trabalho a recomeçar!
Para esses candidatos, a instabilidade ministerial é realmente uma
calamidade.
Mas que prejuízo sofre a nação com isso? Nenhum!
O serviço pode sofrer com o regime das derrubadas de funcionários;
mas essa é exatamente mais rara no regime parlamentar que no presidencial,
porque o regime parlamentar precisa de uma organização administrativa
forte. Nem na Inglaterra, nem na Bélgica, nem na França há
derrubadas. Há, porém, nos Estados Unidos. Lá o sistema
das grandes substituições de funcionários, a cada novo
presidente, foi mesmo elevada à altura de um princípio: o princípio
da “rotação dos empregos”.
Quando a República foi proclamada, em 1889, ela achou à frente
de todos os ministérios antigos funcionários, que tinham atravessado
gabinetes liberais e conservadores: Cupertino do Amaral, Gusmão Lobo,
o Visconde de Cabo-Frio, o Barão de Itaipú…
Por isso mesmo que o poder dos ministros é precário e transitório
e nenhum sabe quanto tempo durará — eles não têm
tendência a atos de violência.
Assim, a verdade é que há sempre milhares de pretendentes,
cujas esperanças estão continuamente oscilando, com as quedas
e subidas de ministérios. Isso explica a força com que a queixa
da instabilidade no regime parlamentar volta tão freqüentemente.
Mas isso não tem a mínima importância para a marcha dos
negócios públicos.
Há, porém, uma alegação grave: é que se
diz que o regime parlamentar não permite certas obras de longo fôlego.
Em uma apologia do sistema presidencial, Lauro Müller citou esse argumento
e mostrou o trabalho do Barão do Rio Branco, delimitando as fronteiras
do país.
Mas isso não prova nada.
Se o império não fez esse trabalho, não foi por causa
do regime parlamentar e sim por causa do regime imperial. Todos sabem como
eram grandes as prevenções de D. Pedro II com as repúblicas
vizinhas do Brasil. Mesmo assim, resta saber se o que foi possível,
nos últimos vinte anos, o teria sido há quarenta, há
cinqüenta, há sessenta.
A obra essencial do Barão do Rio Branco foi feita em cerca de sete
anos. Ora, ministérios de sete anos não são raros nos
governos parlamentares: o Brasil também os teve. A França, a
Inglaterra e a Bélgica já têm conservado o mesmo ministro
do exterior em vários gabinetes sucessivos.
Briand, o famoso ministro do Exterior, da França, ocupou o seu cargo
por mais de dez anos. Foram a doença e a idade que o desalojaram.
Na mais parlamentar das repúblicas, o Barão do Rio Branco poderia,
portanto, ter feito o que fez.
Quando se alega que o Brasil pôde limitar as suas fronteiras, por ser
república presidencial, há que responder que a França,
república parlamentar, fez mais do que isso: através de todos
os seus ministérios, subindo e caindo, ela conseguiu, não apenas
limitar, mas criar um império colonial mais vasto que o Brasil!
A guerra de 1914 deu ainda uma prova do que valem governos parlamentares.
Foram estes que venceram. Em pleno furor da luta, a Inglaterra, a França
e a Bélgica mudaram ministérios.
E foi um bem. Os ministros tinham de estar atentos à opinião
pública. Eles sabiam que os adversários, ou por patriotismo
ou por ambição pessoal, os espreitavam e à primeira descaída
os fariam apear do poder. Foi o que fizeram várias vezes e, por isso
mesmo, a luta, por parte dessas nações, se manteve sempre no
máximo de eficiência.
Nos países de governos muito estáveis, como a Alemanha e a
Áustria, ministros e generais, todos sabiam depender apenas da vontade
do imperador.
A objeção não vale, portanto, cousa alguma.
O argumento da instabilidade, feito do clamor dos candidatos a empregos públicos,
cujas esperanças são forçadas a oscilar a cada nova mudança
de ministério, é um argumento falso.
A instabilidade das pessoas, que ocupam os cargos de ministros, não
acarreta a instabilidade dos programas, nem a da orientação
dos negócios públicos. De cada gabinete para o seguinte, a diferença
é sempre mínima e diz respeito a um ou outro ponto. Às
vezes, é apenas de uma nuance, de uma fórmula secundária.
Muitos teoristas do direito constitucional têm querido considerar a
parte do “poder executivo” e o “poder administrativo”.
O que interessa à boa marcha dos negócios é uma organização
administrativa sólida, competente, estável. É isso o
que se dá sempre nos governos parlamentares. Os ministros, exatamente
porque passam depressa, precisam achar uma organização burocrática
que não varie facilmente e esteja pronta a fornecer-lhes imediatamente
todos os elementos de trabalho. Não há país de regime
parlamentar em que isso não aconteça.
A instabilidade ministerial, nas ocasiões das grandes crises, é,
já o vimos, o único meio de experimentar e arredar rapidamente
as soluções más, para deixar que a boa possa realizar-se.
O regime de administração instável portanto, o presidencial:
nele o que é bom não pode durar, o que é mau dura demais.
Tanto tempo fica no poder o governo, que não presta, como o que presta.
E isso é absurdo. E isso é perfeitamente irracional.
V – QUE NÃO HÁ NENHUMA INCOMPATIBILIDADE ENTRE O REGIME FEDERATIVO
E O REGIME PARLAMENTAR: A MAIOR NAÇÃO DO MUNDO É UMA
FEDERAÇÃO PARLAMENTAR QUE ABRANGE VÁRIAS OUTRAS FEDERAÇCcedil;ÕES
PARLAMENTARES
Uma das objeções que em 1891 se faziam correntemente ao regime
parlamentar era da sua incompatibilidade com o sistema federativo. Isso se
dizia a todos os instantes, em tom dogmático — em tom positivista.
Ninguém procurava discutir o valor de tal asserção.
Os que o podiam fazer, ou estavam interessados em deixar que ela corresse,
ou não ousavam levantar a voz, com receio de se tornarem suspeitos.
O interessante é que, à força de ser repetida, essa
afirmação ainda hoje aparece freqüentemente mesmo na imprensa.
E fica-se a pensar; os que a formulam não terão conhecimento
algum de geografia? — Porque não é preciso nenhum outro
para combatê-la.
A simples circunstância de que um fato nunca ocorreu não prova
a sua impossibilidade. Todos os trabalhos de lógica demonstram de um
modo formal que as provas negativas são impossíveis, salvo em
questões matemáticas. Quando um milhão de experiências
tenha mostrado que um certo fenômeno não se produz, isso não
torna impossível que da milionésima primeira vez ele não
ocorra.
Por mais forte razão, quando de um certo fenômeno há
um, há dois, há muitos exemplos, não se compreende que
se fale na sua impossibilidade.
Teoricamente, examinando o conceito de governo parlamentar e o conceito de
federação, seria impossível mostrar em que é que
esses conceitos se opõem. O que distingue o governo parlamentar é
que nele o poder executivo é uma delegação do parlamento.
Em que essa idéia está em contraposição com a
de um regime federal? Em cousa alguma.
Mas não é preciso fazer esforço nenhum de raciocínio.
Basta abrir um compêndio de geografia e ver que a maior nação
do mundo é uma federação parlamentar, que engloba várias
outras federações também parlamentares.
É uma questão de fato.
A Inglaterra não passa de uma vasta federação. Ninguém,
por isso, descobriu que ela devesse abandonar o regime parlamentar.
Dentro da Inglaterra as federações não faltam. Há
o Canadá, há a Austrália, há a recente federação
da África do Sul. Em cada uma dessas, o que se vê é um
grupo de governos “parlamentares”, reunidos por um governo central
também “parlamentar”.
Praticamente trata-se de verdadeiras repúblicas, porque os governadores
dessas colônias não têm a mínima interferência
nos negócios. São apenas figuras simbólicas. Em qualquer
desses domínios ingleses se tem votado diversas leis, em oposição
aos interesses da metrópole, sem que o governador se tenha podido opor.
Afora isso, regem-se com a mais perfeita independência criando até
medidas protecionistas contra os produtos ingleses, sem que nada restrinja
a sua capacidade política.
A independência dos antigos domínios ingleses que passaram a
ter mesmo representação internacional, foi consagrada pelo Estatuto
de Westminster.
É curioso notar que dessas federações uma está
na América, outra na África, outra na Oceania e, se se pensa
que a Inglaterra está na Europa, vê-se bem que só falta
uma na Ásia, pra que haja ao menos um exemplo em cada parte do mundo.
Não se pode, portanto, querer fenômeno mais difícil de
negar que o da possibilidade de uma federação parlamentar.
Os exemplos são tanto mais probantes quanto eles se estendem a quatro
continentes e a várias raças.
No Canadá, antiga colônia francesa, os colonos de origem francesa
dominaram por muito tempo, praticando o regime sem a menor dificuldade.
Na África do Sul, são agora holandeses e ingleses — até
há pouco tempo inimigos — que se reúnem a elementos aborígines.
Há, por conseguinte, a máxima variedade e é tão
absurdo quanto ridículo falar na impossibilidade de um fato, que se
verifica na realidade, de um modo tão geral e tão brilhante.
O grande mal das monarquias é a constância dos chefes de Estado
que, mesmo quando constitucionalmente não devam ter nenhum poder efetivo,
acabam por adquiri-lo, pelo fato mesmo da constância. A um mau monarca,
que queira influir sobre os negócios públicos, ninguém
poderá impedir, ainda que a constituição lho vede, de
acabar influindo.
Depois dos incessantes testemunhos de todos os chefes de partidos da monarquia
brasileira, é impossível negar que D. Pedro II tivesse tido
uma influência permanente. E, se a que ele exerceu não foi muito
má, ninguém sabe o que seria a da princesa Izabel.
Já, entretanto, para contrabalançar o erro do sistema monárquico
o sr. Ruy Barbosa lembrara, no tempo do Império, a instituição
do sistema federativo. Se ele tivesse sido adotado, a monarquia teria escapado.
Em todo caso, ninguém naquela época objetou que o regime parlamentar
fosse incompatível com a federação. Foi por outros motivos
que a idéia do sr. Ruy Barbosa deixou de ser aceita.
Para ver como se exerceria na prática a sua ação salutar,
basta pensar em um caso.
No império, havia em cada província um presidente nomeado livremente
pelo governo central. Quando, portanto, a Câmara era dissolvida, os
vinte presidentes, delegados do poder central e dele dependentes, trabalhavam
todos em proveito desse poder. Eram, se assim se pode dizer, vinte fraudes
convergentes.
A federação, aplicada a um regime parlamentar, teria o mérito
de corrigir esse estado de cousas.
Admitindo que não se desse o mínimo melhoramento de costumes
e só a fraude continuasse a imperar, ainda assim as eleições
federais lucrariam em independência. O governo central não poderia
mais ajeitar toda a nação em um sentido único. Os detentores
do poder em cada um dos Estados ou províncias procurariam eleger os
seus adeptos. Em vez, portanto, de vinte fraudes convergentes, manipuladas
pelos presidentes nomeados pelo centro, haveria vinte fraudes divergentes,
cada uma inspirada em conveniências locais, particulares. E a resultante
disso seria qualquer cousa muito próxima da verdade.
O que se vê, portanto, é que a federação, longe
de ser um embaraço ao regime parlamentar, viria trazer remédio
ao mal que havia no tempo do Império. Quando se estabelecesse um antagonismo
sério entre o governo e a Câmara e fosse preciso dissolver esta,
a consulta à nação teria realmente valor. Representaria
pelo menos a opinião real dos vinte partidos dominantes nos vinte Estados.
É bom notar, entretanto, que hoje, quando se discute esta questão,
há muito quem pense no que poderia ser um regime federal “parlamentar”
de Estados “presidenciais”. Evidentemente é uma questão
mal formulada, porque o regime deveria ser o mesmo na União e nos Estados,
e não se vê porque o regime parlamentar não seria aplicável
mesmo ao mais pequeno dos Estados do Brasil. A maioria dos Estados teria apenas
dois ou três ministros. Bastar-lhes-ia. Ninguém pede para Sergipe
um ministro do Exterior, um ministro da Guerra, um ministro da Marinha…
Seria demais…
Mas, se até na minúscula República de San Marino é
a assembléia dos representantes do país que decide em última
análise de todas as questões, por que não poderia ser
assim em qualquer das unidades de que se compõe a federação
brasileira?
Em vez do poder achar-se concentrado nas mãos de um presidente, estaria
nas de uma assembléia, maior ou menor, conforme a importância
do referido Estado. A plasticidade do regime parlamentar se adapta a todos
os povos, a todas as raças; serve para os países minúsculos,
como a Bélgica, e para os países colossais, como a Inglaterra.
Assim, a objeção feita ao regime parlamentar da sua suposta
incompatibilidade com o regime federativo é um disparate, diante do
fato de que a maior nação do mundo é uma federação
parlamentar de federações parlamentares, por sua vez compostas
de Estados também parlamentares! É ainda um disparate, porque
ninguém é capaz de mostrar onde esteja o antagonismo entre os
dois termos: federação e parlamentarismo. A federação
traria ao regime parlamentar o grande corretivo de impedir que jamais o poder
central pudesse, em um caso de dissolução da Câmara, fazer
uma fraude uniforme em todo o país, como acontecia no tempo do Império.
VI – QUE O PRESIDENTE NO REGIME PRESIDENCIAL É, DE FATO, IRRESPONSÁVEL
O regime presidencial é o da absoluta irresponsabilidade dos depositários
de poder.
É certo que a Constituição estabelece essa responsabilidade.
É certo ainda que uma lei se fez, regulamentando minuciosamente o dispositivo
constitucional. Todos sentem, entretanto, que isso é no fim de contas,
uma comédia.
Há uma questão de fato: nunca em nenhuma república presidencial
nenhum presidente foi processado e condenado. Ora, ninguém dirá
que nunca, em nenhuma república presidencial, nenhum presidente cometeu
ilegalidades e violências.
Sempre que um castigo é excessivo, ou porque fere demais o castigado,
ou porque tem conseqüências muito graves, o resultado é
esse.
O que se passa no poder judiciário é característíco.
Também aí não faltam leis para punir os juízes,
que não dão os seus despachos em tempo útil. No entanto,
nenhum advogado requer essas penas, certo de que perderia seu tempo e criaria
para si uma animosidade terrível.
Ora, a punição de um juiz é cousa que não tem
comparação com a punição de um chefe de Estado,
que concentra nas suas mãos todo o poder executivo. Diante da gravidade
excepcional desse ato, quase todos recuam… Recuam mesmo os adversários
decididos do presidente, receosos de desencadearem complicações
terríveis.
Praticamente, portanto, a responsabilidade presidencial não existe.
Mesmo quando não fosse a consideração do receio de perturbações
graves em todo o governo do país, haveria a pensar que, se um presidente
fosse bastante criminoso para merecer um processo, não seria bastante
tolo para não ir um pouquinho mais longe e corromper os seus juízes.
Dir-se-á que seria preciso comprar duas assembléias inteiras!?
Não é exato. O presidente só pode ser condenado por
dois terços dos senadores presentes à sessão do julgamento.
Ora, tendo nas suas mãos o poder supremo, haveria presidente, que hesitasse
em corromper o número de senadores preciso para obter a seu favor 22
votos?
O Senado tem 63 membros. Em regra, eles nunca estão presentes. Alguns,
sem nenhum constrangimento, lisa e honestamente, seriam contrários
à condenação. Obter por corrupção o número
necessário para completar o terço seria um brinquedo para qualquer
presidente.
A regra é que o Senado funcione com uma média de 40 senadores.
O número a alcançar seria, portanto, de 14.
Note-se que, quando se fala aqui em corrupção, não se
quer dizer a compra direta, a dinheiro. O presidente poderia fazer também
essa, porque, se ele tirasse o dinheiro do Tesouro para comprar os juízes,
que o absolveriam, estaria garantido da impunidade. Mas há outros meios
menos cínicos: a dádiva de posições a parentes
e aderentes, o medo.
Depois, é bom sempre notar que, para o Congresso chegar a ousar o
processo de um presidente e decidir-se a afrontar todos os inconvenientes
decorrentes desse ato, seria preciso que ele fosse um grande criminoso. E,
sendo um grande criminoso, não recuaria de certo diante da corrupção
de meia dúzia de homens políticos.
A comparação disso com o que ocorre ao sistema parlamentar
é característica.
Neste, a responsabilidade é efetiva. O castigo se dá de um
modo simples. Exatamente porque ele não tem nada de desonroso, nem
de excepcionalmente grave, pode ser aplicado facilmente. Um ministro, que
procede mal em tal ou qual questão, é alijado por um voto de
desconfiança da Câmara.
Há quem diga que isso não é a responsabilidade como
ela se deveria entender: um castigo proporcional ao crime. Mas, no regime
presidencial, se algum presidente chegasse à aberração
contraditória e paradoxal de ser bastante criminoso, para que o Congresso
o processasse, e bastante inepto para não arranjar uma sentença
de absolvição, a que seria condenado? À perda do cargo.
O Congresso não lhe poderia infligir nenhuma, senão essa e,
em alguns casos, a impossibilidade de exercer qualquer outro cargo. É
o que diz a lei. O mais competiria à justiça ordinária
— segundo o que também ocorre no regime parlamentar.
Assim, depois de um longo e laborioso processo, que teria perturbado a marcha
dos negócios públicos e suspendido toda a vida administrativa,
chegar-se-ia apenas ao que chega o regime parlamentar com um voto da Câmara:
a eliminar do poder o que nele dá provas de incapacidade.
É de observar que no regime presidencial, para que se chegasse a processar
um chefe de Estado, seria necessário que ele já tivesse cometido
uma série de crimes extremamente graves. A experiência demonstrou
que, no Brasil, mesmo o bombardeio de uma cidade, em pleno período
de paz e o desrespeito às sentenças do Supremo Tribunal ainda
não constituem atos bastante graves para o Congresso se comover. Assim,
só a consumação de um número espantoso de crimes
levaria o Congresso àquele ato de desespero.
No regime parlamentar, exatamente porque não se espera tanto, não
há motivo para dar punições excepcionais. Desde que a
incapacidade dos depositários do poder se revela, eles são alijados
por um voto de desconfiança.
Sem dúvida, esse voto não os impede, tempos depois, às
vezes dentro de um prazo curtíssimo de voltar ao poder. Mas o voto
que daí os tirara queria apenas dizer que, na questão que se
discutia, eles estavam agindo mal. Agindo mal, ou por ser má a solução
que preconizavam, ou por ser inoportuna. Quando ela venha a ter oportunidade
ou quando se trate de outro assunto, nada mais explicável do que a
volta ao poder de homens que nele, em outros casos, mostraram aptidão.
Diz-se que as quedas de ministérios no regime parlamentar resultam
freqüentemente de ambições pessoais.
É perfeitamente verdade; mas é uma verdade explicável
— e louvável.
Não se descobriu até hoje nenhuma força maior para levar
os homens à ação. Desde a ambição do assassino,
que, para roubar, mata uma mulher e uma criança, até a ambição
do eremita, que passa algumas dezenas de anos no deserto, em penitência,
para conquistar bilhões de bilhões de séculos de uma
ventura infinita, no céu, — tudo é ambição,
tudo é, no fim de contas, egoísmo. Egoísmo imediato ou
egoísmo a prazo.
É necessário lidar com os homens como eles são e não
como poderiam ser. É necessário tirar das paixões humanas
normais o máximo de vantagem para a comunidade. Ninguém viu
ainda uma assembléia inteira e exclusivamente composta de puros, desinteressados
e altruístas patriotas, querendo apenas o bem teórico da Pátria.
No mínimo, os mais desinteressados gostariam de ter a glória
de contribuir para esse bem.
Nas assembléias parlamentares há, sem dúvida, a ambição
dos deputados, que desejam ser ministros. Ambição legitima.
Tanto melhor se, por isso mesmo, eles fiscalizam os atos dos que estão
no poder. Por causa de um intuito pessoal, talvez mesquinho, a comunidade
lucra. É o essencial.
No regime presidencial, de que serviria a um deputado, conhecendo embora
fatos bem delituosos, acusar o presidente? De nada. Seria, no fim de contas,
um ato sem sanção prática alguma, de que só resultariam
ao acusador contratempos e desgostos. Ocultando-os, defendendo o criminoso,
ele alcança numerosas vantagens.
Porque há este outro lado da questão: se no regime parlamentar
é por ambição que se atacam os ministros, — no
regime presidencial é por covardia que eles são poupados, mesmo
quando cometem os maiores abusos. Os acusadores possíveis, sentindo
a inutilidade ou o prejuízo que lhes adviria de qualquer acusação,
nem a tentam. Encolhem-se com medo.
Perguntas a fazer:
— Qual é o sentimento mais nobre: a ambição, mesmo
pessoal, ou a covardia?
— Com qual dos dois sistemas a sociedade lucra mais: com a fiscalização,
mesmo interesseira dos atos dos depositários do poder ou com a ocultação
das suas faltas, também por interesse, por medo ou, na melhor das hipóteses,
pela certeza prévia da inutilidade de tentar corrigi-las?
Parece que, mesmo aceitando as cousas com o máximo de desvantagem
para o regime parlamentar, não é possível deixar de proclamar
a sua superioridade.
É nele — e só nele — que existe realmente a responsabilidade
dos maus depositários do poder. Ainda quando se ache que o castigo
que eles recebem é mínimo, em todo caso não se pode negar
que, ao contrário do que sucede no regime presidencíal, sempre
há um castigo: eles são forçados a deixar o poder.
Mas os que desejam punições mais severas não devem esquecer
este confronto: nunca, cm nenhum regime presidencial, nenhum presidente foi
punido, ao passo que vários ministros de governos parlamentares têm
sido, além de alijados do governo, processados e condenados. Há
exemplos disso na França, na Suécia, na Itália.
É a questão de fato.
Assim, tanto na teoria, como na prática, tanto pelo que a priori se
podia supor, como pelo que realmente se tem visto, o regime parlamentar é
o único em que existe a responsabilidade dos depositários do
poder. O regime presidencial é o da completa irresponsabilidade.
VII – QUE O PRESIDENTE, NO REGIME PARLAMENTAR, PODE SER ESCOLHIDO CONSCIENTEMENTE;
NO PRESIDENCIAL, REPRESENTA SEMPRE UMA AVENTURA…
Quando se tenha de examinar o modo pelo qual se faz a escolha do chefe do
Estado no regime presidencial, não vale a pena lembrar o que sucede
entre nós.
Por um lado, todos estão de acordo que entre nós o que sucede
é uma vergonha, é uma desnaturação completa do
regime.
Por outro lado, o regime presidencial é tão ruim que, para
melhor mostrar-lhe os insanáveis defeitos, o que convém é
exatamente criticá-lo, mesmo na hipótese de vê-lo executado
em toda a sua perfeição.
Durante uma parte do século XIX pareceu a muitos teoristas da política
que o ideal em matéria de governo era a existência de dois partidos.
De dois — e não mais. Devia haver um grupo conservador; devia
haver um grupo liberal. Isso correspondia de fato a duas tendências
universais: a tendência dos que optam, de preferência, pelas forças
de progresso e a daqueles que optam pelas de conservação.
Todos os que têm estudado filosoficamente a idéia de progresso
mostraram que ela é recente. Sem dúvida, nunca deixou de haver
quem desejasse inovações. Mas a convicção de que
o normal, o regular e o desejável é que os povos mudem, adotem
novas instituições, vivam em um estado incessante de transformação
— não entrava no espírito popular. O ideal era, ao contrário,
a conservação do que existia. Sente-se disso um vestígio
no fato de quase todas as religiões terem feito alusão a uma
idade de ouro inicial. O paraíso estava para elas no princípio
do mundo. A mudança fora o mal.
Desse estado de espírito só agora, e ainda assim incompletamente,
alguns povos asiáticos estão despertando. Na Europa, pode-se
dizer que a crença no progresso começou a desenvolver-se no
fim do século XVIII.
Nessa época e durante algum tempo a divisão social em dois
grupos era mais ou menos, em grosso, aceitável: o grupo dos que desejavam
que se mudasse e o grupo dos que desejavam que não se alterasse a ordem
de cousas existente. Eram dois blocos que se opunham. Os primeiros sentiam
que desde que começassem as reformas, ninguém lhes poderia pôr
termo. Os segundos queriam exatamente que esse movimento começasse.
Poder-se-ia, se se quisesse levar mais longe a questão, mostrar que
isso representa duas tendências fundamentais de todos os organismos.
Mas não vale a pena parecer que se quer desviar o debate para uma vaga
ideologia. O mais recomendável é tomar os fatos tão simplesmente
quanto for possível e só fazer asserções imediatamente
verificáveis. E assim pode afirmar-se, sem receio de contestação:
durante muitas dezenas de anos a política de todos os grandes povos
livres dividiu-se em duas tendências fundamentais: a do progresso e
a da reação, a dos conservadores e a dos liberais. Hoje, essa
fase está passada; não há país algum, em que bastem
apenas dois partidos. Não há mesmo nenhum partido, do qual os
partidários não adotem, aqui e ali, idéias que pertencem
mais especialmente aos partidários opostos.
Entre nós, há ainda muito quem suspire pela constituição
de dois partidos. Essa dicotomia política se lhes afigura um ideal.
Isso dá apenas, ao mesmo tempo, a certidão de idade e a certidão
do estado de ignorância dos que promovem tais criações.
Vê-se que eles estão hoje no que aprenderam há trinta
ou quarenta anos atrás. Acham que a política deve ser uma gangorra
com duas pontas, da qual, ora uma, ora outra precisa estar no alto.
Quem vê o que sucede, não já em uma nação,
mais em uma família um pouco numerosa, logo percebe que em parte alguma
se encontra essa divisão binária das inteligências. Reunidos
pelos laços de parentesco o mais íntimo, pais e filhos revelam
sentimentos e idéias bem diversos. Uns são favoráveis
ao casamento, outros lhe são contrários. Os contrários
ao casamento podem também ser contrários ao divórcio,
ao passo que os outros o aceitam. Haverá entre eles protecionistas
e livre-cambistas; nacionalistas e internacionalistas; partidários
da concessão do voto político às mulheres e oposicionistas
a essa medida; religiosos e ateus; defensores do sufrágio universal
para todos os homens, defensores do sufrágio censitário.
Há milhares de questões sobre as quais as divergências
são possíveis e cada vez que se trata de uma delas, os grupos,
mesmo em uma família, se formam de modo diverso. Sabida a opinião
de qualquer pessoa sobre uma dessas questões, não se pode inferir
de modo algum como ela pensará sobre as outras. Quem, por exemplo,
conhece um cidadão notoriamente livre-cambista, pode inferir daí
o que ele pensa sobre o divórcio ou sobre a concessão do voto
político às mulheres, ou sobre a conveniência de haver
uma religião de Estado? É impossível.
Há tempos, a Câmara inglesa assistiu a um debate sobre a concessão
do direito de voto às mulheres.
Só os socialistas foram unânimes a favor da medida. Em todos
os outros partidos os votos se dividiram. Houve conservadores a favor e conservadores
contra, liberais a favor e liberais contra; houve enfim — o que foi
o caso mais interessante do debate — parte do ministério num
sentido e parte no outro. O presidente do Conselho votou contra e defendeu
também a sua opinião.
O Governo de União Nacional, em 1932, embora estivesse de acordo sobre
o maior número de cousas, não o estava sobre certas questões
de tarifas. Resolveu diante disso que os ministros dissidentes poderiam proclamar
a sua dissidência e pleiteá-la mesmo perante o Parlamento. Este
decidiria.
Ninguém compreenderia esse modo de agir no tempo em que se formou
— e em que, segundo parece, se petrificou — a inteligência
de certos diretores da política brasileira. Hoje, porém, todos
reconhecem que não há apenas em política dois grupos
de idéias, — idéias solidárias entre si e opostas
em bloco às idéias contrárias. Todas as combinações
são possíveis, de boa fé, lealmente. Nosso cérebro
é um mosaico, uma obra de marchetaria.
Por isso, nos parlamentos, ao trabalho dos grandes partidos políticos
tende a substituir-se o trabalho dos “grupos”. Para cada questão
especial, de certa importância, forma-se o grupo dos que defendem esta
ou aquela solução e os deputados se repartem livremente pelos
grupos que lhes interessam.
É o razoável.
E em resumo, o essencial é que se veja bem, que ninguém pensa
por grupos de idéias solidárias entre si e que as diferentes
idéias de cada pessoa não formam um todo. tão coeso e
forte, que, dada uma, por ela se possam concluir as outras. Todos conhecem
o gracejo célebre, que consiste em formular o problema seguinte: “Dada
a tonelagem de um navio e a altura de seus mastros, determinar a idade do
comandante”.
Um disparate não menor e absolutamente do mesmo gênero é
o do problema que procura resolver as eleições do presidente
nas repúblicas presidenciais. Esse problema se pode sempre formular
da mesma maneira: “Dado o modo de pensar de um certo indivíduo
sobre a questão, que se debate no momento que ele é eleito,
adivinhar como ele pensará acerca de todas as outras, que podem surgir
durante o seu governo”.
Sem dúvida, há certas indicações que permitem
— sobretudo no domínio moral — prever como um indivíduo
agirá. Pode-se ter como certo que, se ele deu numerosas provas de austeridade,
correção e desinteresse, continuará a agir honestamente.
Mas agir honestamente não basta. É indispensável, sem
que seja suficiente. Honestamente se podem adotar soluções muito
diversas, muito antagônicas, sobre todas as questões políticas.
Honestamente, os homens de maior talento podem errar.
Ora, hoje ninguém consegue prever que questões se vão
formular dentro de um período de quatro anos. Nem de quatro anos, nem
de quatro meses. Os casos mais graves da política aparecem sem que
ninguém os tenha suscitado propositadamente. São, às
vezes, as circunstâncias exteriores que os impõem. Um homem político,
de extraordinário descortino, que desejasse calcular os problemas que
vão surgir durante um período presidencial, para sobre todos
dar a sua opinião, nunca o conseguiria fazer. Essa adivinhação
seria impossível.
Por isso mesmo, o que sucederia de melhor em uma república presidencial,
cujos presidentes fossem honestamente eleitos, seria o seguinte: escolher-se-ia
o chefe do Estado, de acordo com a sua opinião sobre a questão
mais importante, que estivesse pendente.
Há por exemplo, um debate aceso sobre o livre-cambismo e o protecionismo.
A corrente popular é a favor do primeiro. Elege-se o presidente que
o favorece. Mas, à parte esse problema, que pode ficar resolvido nos
primeiros meses de governo, há outros, que vão surgir inesperadamente;
outros, que — ninguém, meses antes, dias antes, seria capaz de
imaginar.
Como da sua opinião sobre as pautas aduaneiras deduzir o que ele pensará
sobre tudo mais? Impossível. É o problema de determinar pela
tonelagem de um navio qual a idade do comandante! Não há relação
alguma entre o que se sabe e o que se pergunta.
O que ocorreu entre nós com a eleição do Sr. Wenceslau
Braz é característico.
Ele foi indicado como candidato à Presidência em outubro de
1913, eleito em março de 1914, reconhecido em maio desse mesmo ano.
Tratava-se de um homem honesto, respeitável por todos os motivos.
Tinha, porém, um defeito: a indecisão. Revelara-a muitas vezes
na Câmara, como leader de maioria. Comodista e pachorrento, passara
os quatro anos, em que fora vice-presidente, sem presidir uma só das
sessões do Senado. Divertia-se em Itajubá no seu esporte favorito:
a pesca.
Eleito, quando tudo estava em paz e, portanto, esses defeitos do seu temperamento
podiam não ser muito nocivos, eis que sobre ele desaba a guerra européia.
Não se podia imaginar pessoa alguma menos própria como presidente
de uma nação em tempo de guerra do que o pacífico pescador
de Itajubá. Ninguém, quando o elegeu, pensava nessa hipótese.
Mas o regime presidencial é esse absurdo: uma vez eleito, um governo
tem de servir por quatro anos, haja o que houver.
Wenceslau Braz passou perto de três anos hesitando, oscilando, não
sabendo bem o que fazer. Afinal decidiu-se pela declaração de
guerra, mas uma declaração vergonhosa, em que nós dissemos
só tomar parte na guerra porque os Estados Unidos o haviam feito. Não
entramos na luta, como uma nação soberana, mas os escudeiros
dos Estados Unidos.
Mesmo depois da declaração de nossa beligerância, o Brasil
continuou hesitando, hesitando, hesitando. Por cúmulo, no fim, como
nós tínhamos estado a favor dos Aliados, mandámos para
a Conferência da Paz um germanófilo!
Mas não vale a pena entrar em pormenores. É preciso pensar
apenas no que o caso tem de geral.
Vê-se por ele que se pode eleger um presidente, admiravelmente apto
para os labores calmos do tempo de paz. De repente, sobrevém uma guerra.
Apesar disso, não se tem o direito de mudar. Tem-se de ficar durante
quatro anos com o homem inapto para a guerra, incapaz de resoluções
enérgicas e prontas.
Ele pode não fazer nada de ilegal. Não há direito algum
de processá-lo. Mas será bambo, mole, indeciso. Fará,
enfim, embora com as melhores intenções, que percamos a guerra.
A de 1914 só nos atingiu indiretamente. Se, porém, tivesse havido
um motivo, que nos impelisse súbita e diretamente à luta, a
uma luta no nosso continente, contra nós? Perderíamos tudo,
mas a inominável estupidez do regime presidencial nos condenaria a
não mudar de governo durante quatro anos.
O contrario pode também ocorrer. Em um momento de guerra, elege-se
um presidente que conviria muito bem para dirigi-la. Será por exemplo,
um general intrépido. Mas, de repente, como isso acontece nas guerras,
a luta cessa. Vencidos ou vencedores, passamos a precisar de alguém
próprio para os labores pacíficos da reconstrução
financeira do país. Em vez disso, o regime presidencial pede que fiquemos
quatro anos com o chefe de Estado, que seria ótimo em tempo de guerra,
mas pouco entende de economia e finanças.
Dar o mesmo tempo de poder a um governo, quer ele seja bom, quer ele seja
mau, é um absurdo incrível.
Não há mesmo possibilidade de constituir o programa real do
que, nos nossos agitados tempos, em que a vida política de cada nação
depende mais ou menos da de todas as outras, um governo fará ou não
fará no período de quatro anos. Frases vagas, assegurando que
o eleito agirá “patrioticamente” procurará fazer
“o bem do povo”, conciliará às “necessidades
do progresso com as necessidades da conservação social”,
não valem nada, não dizem nada de preciso sobre as soluções
práticas, imediatas, concretas, que ele trará para os casos
novos, imprevistos, que reclamarem a sua decisão patriótica.
Tolstoi dizia a alguém: “A verdade é uma só”.
O interlocutor lhe respondeu: “Mas, as maneiras de entendê-la
são diversas”. Dois indivíduos igualmente honestos, igualmente
dispostos a obedecer à vontade do povo, decidirão de modos opostos
a mesma questão.
Por isso, mesmo admitindo um regime presidencial idealmente praticado, a
eleição do chefe de Estado será sempre uma aventura,
um risco a correr, um salto no desconhecido. A nação fica arrendada
à vontade de um homem por um prazo fixo, quer ele pense bem quer ele
pense mal.
Não se trata, quando aqui se fala em pensar mal, de pensar ou agir
criminosamente. De boa fé, os melhores podem errar. E como o presidente,
cujos vetos só são revogáveis por dois terços
do Congresso, basta para se opor à vontade da maioria da nação,
— a nação fica sujeita a ele por um prazo, que nenhum
recurso legal pode diminuir.
No regime parlamentar não há isso. O Presidente pode ser eleito
com conhecimento de causa por quatro ou por sete anos, porque o que se lhe
pede são apenas qualidades morais. Desde que o saibam honesto, digno,
tolerante, é o necessário. Não é ele quem governa.
Ele constitui apenas um centro neutro de agrupamento, uma representação
teórica da nação. Se aparecem problemas imprevistos,
a solução incumbe aos ministros, que estão em contacto
direto com o parlamento e são facilmente substituíveis. Surgindo
a questão nova, procuram-se logo os homens novos, aptos para a resolverem.
Nenhum perigo, nenhuma surpresa. O presidente tem apenas uma importância
decorativa, para uso externo. Não entra nas lutas interiores, não
se amesquinha.
E, se, por acaso, o chefe real do governo — isto é, o presidente
do Conselho — faz um ato qualquer incorreto, nada mais fácil
do que pô-lo à margem. Sua desmoralização não
acarreta a desmoralização do país. De um dia para outro,
sem a mínima perturbação da vida nacional, surge um ministério
novo.
Não acontece o mesmo no regime presidencial em que o chefe de Estado
é sempre e deve ser o mais discutido. Se a crítica revela a
sua incapacidade, o homem que é a mais alta representação
do país, deslustra e desmoraliza a nação inteira.
Não é possível pedir aos políticos nacionais,
em nome do decoro do país, que se abstenham disso, porque o presidente
é que tem toda a força; é ele que age. Em vez de estar,
como no regime parlamentar, fora e acima de todo debate, deve sempre achar-se
no foco de todas as discussões. É do seu ofício. É
da natureza do sistema.
O resultado é o que se vê nos Estados Unidos, onde certas lutas
presidenciais têm sido de tal ordem, que tanto o vencido como o vencedor
saem delas desmoralizados.
Na melhor das hipóteses, admitindo um presidente bem escolhido, ele
chega sempre ao fim de seu período diminuído de prestígio.
Até hoje, entre nós só houve a exceção
do Sr. Rodrigues Alves. Mas com exceções não se argumenta.
A regra é que os erros façam um mal maior e os acertos sejam
facilmente esquecidos. Ao terminar o período, é, portanto, natural
que o presidente veja contra si tudo aquilo em que possa ter-se enganado.
A república presidencial não prepara estadistas. Não
os pode preparar. Durante cada período só há “um
homem” — um só — que dirige a nação.
Erre ou acerte, ele tem de ficar todo o prazo constitucional. Haja embora
muitos, que tenham talento e competência para resolver melhor do que
ele diversos problemas, esses talentos não se podem revelar. Só
há uma autoridade: a do presidente. O regime parlamentar, com o que
se chama a sua “instabilidade”, tem o mérito de tatear
e procurar até achar o homem próprio para cada situação.
Forma estadistas. Experimenta-os. Põe-nos à prova. Conserva
os que prestam e elimina os outros.
O regime presidencial, desde que, pelo acaso de uma questão de momento,
pôs um homem no poder, junge a nação ao destino desse
homem, embora ele multiplique os desacertos.
Cada vez que se trata de escolher um presidente com o nosso atual sistema,
nós verificamos a penúria de candidatos dignos dessa candidatura.
Na teoria ou na prática, bem ou mal aplicado, o presidencialismo revela
sempre a sua inferioridade. Na melhor das hipóteses, o que se poderia
ter seria sempre uma aventura: escolher-se-ia um homem pelos seus antecedentes
morais e pela sua orientação acerca do problema que mais apaixonasse
os espíritos no momento da eleição. Quando se tivesse
acertado em tudo isso, nada garantiria o mérito da escolha, no dia
seguinte ao da sua realização, diante de problemas novos e imprevistos,
que a cada instante estão aparecendo.
O regime presidencial pede ao chefe do Estado a onisciência. Ele deve
entender de tudo, decidir de tudo. O regime parlamentar dá a chefia
do governo, em cada momento, ao homem que nesse momento melhor pode defender
a solução conveniente do problema que está em debate.
Nos diversos domínios da atividade humana sente-se a necessidade da
especialização. Não há um homem de ciência
que possa, como no tempo de Aristóteles, abranger todas as ciências.
Dentro de cada ciência, as especializações são
indispensáveis. Nenhum médico pode ter a pretensão de
verdadeira competência em todos os domínios da medicina e da
cirurgia. Nenhum industrial entende de todas as indústrias.
No domínio político, que envolve uma infinita variedade de
questões sobre direito, sobre higiene, sobre comércio e indústria,
sobre guerra, sobre marinha, sobre tudo, enfim, pode-se achar um homem que
de tudo isso entenda? — É claro que não!
No entanto, é esse absurdo que se pede ao presidente da república
presidencial. Ele é o signatário responsável de todos
os atos acerca de todas essas questões.
Não é lícito dizer que basta que ele tenha um conhecimento
vago das questões. Não se pode querer responsabilidade sem competência,
sem consciência exata dos atos praticados.
Na república parlamentar, o presidente não é responsável.
A responsabilidade é dos ministros. Basta, portanto, que o presidente
tenha disso uma noção superficial. A sua assinatura é
uma formalidade. Ele tem que assinar, mesmo quando não concorde.
É bom notar um fato universal. Em todos os grandes países civilizados,
a especialização crescente dos serviços públicos
vai exigindo a criação de novos ministérios: do trabalho,
da assistência pública, da terra, etc. É a confissão
de que se precisam de competências especiais para cada ramo dos serviços
públicos.
Só o regime presidencial firma como princípio, que o presidente
deve ser onisciente!
Poder-se-ia aqui discutir o método eleitoral: se convém mais
a eleição do presidente pelo voto direto ou pelo Congresso;
mas isso não é essencial a nenhum regime. No regime presidencial,
nada impediria a eleição de ser feita pelo Congresso e no parlamentar
pelo sufrágio direto.
Não há, entretanto, quem não veja como a situação
atual — a comédia da escolha pelo sufrágio direto —
é perturbadora da vida nacional. Todos sentem que, no dia em que se
achasse no Congresso uma maioria favorável a qualquer candidato, não
eleito de fato, nenhuma dificuldade haveria em, apesar disso, ajeitar as atas
e proclamá-lo eleito… Essa hipocrisia de dois graus, primeiro nas
urnas e depois na apuração final, só serve para perturbar
a vida nacional. Há pelo menos, um período de oito meses e meio,
em que o presidente efetivo já não tem todo o prestígio
preciso e o presidente eleito, ainda não tem todo o que seria desejável.
O primeiro sente-se com o direito de querer governar com toda a força
até o fim — e luta por isso. O segundo sente-se com o direito
de não querer achar uma situação muito perturbada, e
começa logo a intervir, mais ou menos veladamente.
Tudo, portanto, na escolha dos presidentes do regime presidencial é
nefasto.
VIII – QUE OS DEFENSORES DO PRESIDENCIALISMO ENTRE NÓS OBEDECEM A
MÓVEIS FÁCEIS DE DETERMINAR…
Não é difícil adivinhar os verdadeiros motivos que guiam
a maioria dos defensores do presidencialismo entre nós.
Há em primeiro lugar os que sentem como lhes seria impossível
manter o prestígio em um regime parlamentar.
Pode-se falar de Pinheiro Machado como de uma figura histórica. É
mesmo impossível escrever a história da República do
Brasil, sem mencionar o nome do homem, que acabou por concentrar em suas mãos
todo o poder.
E é um fato característico para o julgamento de um regime.
Era um homem inteligente, ativo, audacioso. Faltava-lhe, porém, o
largo descortino. Faltava-lhe instrução. O que sabia, sabia
de oitiva, por viver, em rodas de pessoas cultas.
Tendo tido um tão longo e tão absoluto domínio na política
nacional, nunca defendeu na tribuna uma medida de ordem geral, nunca teve
qualquer iniciativa. Quando entrava em campo era para fazer votar a lei que
melhorava a reforma do general X, a lei que chamava à atividade o tenente
reformado Y, a lei que concedia pensão a Fulano ou Sicrano…
Todos sabiam, sentiam, viam que ele seria incapaz de expor uma grande questão
social, de qualquer natureza: reforma financeira, reforma judiciária,
reforma de instrução. Suas decisões eram sempre tomadas
por considerações pessoais. Quando apoiava ou quando combatia
um projeto, era para dar prestígio ou enfraquecer o respectivo autor.
Não há nisto azedume ou oposição apaixonada.
Ninguém é capaz de encontrar em nenhum país civilizado
um homem que tenha exercido tanto prestígio efetivo, como o que o Sr.
Pinheiro Machado exerceu no Brasil. Chegou a ser o dono da terra. Ninguém,
em compensação, é capaz de citar uma reforma política,
social, industrial ou financeira, que tenha partido de sua iniciativa ou que
por ele tenha sido exposta e defendida.
Isso basta — ainda uma vez se pode dizer — para julgar um regime.
A monarquia entre nós teve muitos ministros e presidentes de Conselho,
que eram personagens sem valor. É possível — é
mesmo certo que alguns foram menos inteligentes que o Sr. Pinheiro Machado.
Mas qualquer deles, mesmo o mais nulo, sabia expor as questões, sabia
mostrar as várias soluções possíveis. Era forçoso.
Era do ofício. O menos que se pede a um ministro no regime parlamentar,
é que ele saiba como os problemas se formulam, em que termos podem
ser apresentados. Os homens de valor escolhem as melhores soluções
ou acham soluções novas. Os nulos aceitam as soluções
batidas. Mas uns e outros, no mínimo, sabem o que há sobre cada
problema. Sem isso, é possível ser um cabo eleitoral, uma influência
de corredor, mas não se chega a ministro, a presidente do Conselho,
a grande chefe político.
Compreende-se, portanto, muito bem que os que estão no caso de Pinheiro
Machado sejam defensores intransigentes do regime presidencial. É o
único que lhes serve. É o único em que não se
precisa dar prova de capacidade para tomar conta da política nacional.
Corra alguém, que conheça a política brasileira, o nome
dos que estão à frente dos vários Estados da União.
Imediatamente verá que, se tais Estados fossem regidos pelo sistema
parlamentar, apenas dois ou três desses cavalheiros poderiam estar nos
postos que ocupam.
O regime parlamentar não tem o dom de fazer cogumelar estadistas geniais.
Há nulidades em todos os domínios da atividade humana. Mas o
incontestável é que esse regime não admite que um tenentinho
ignorante pule da tarimba para a chefia do poder, sem preparo, sem conhecimentos
de qualquer espécie.
Assim, o primeiro grupo dos defensores do presidencialismo se faz dos incapazes.
Mas há homens de grande valor, que o defendem. Seria injustiça
negá-lo.
Fá-lo-ão sinceramente? Talvez… É, entretanto, bem
difícil acreditar nisso. O que se vê é que, tendo a esperança
de chegar ao poder supremo, eles desejam, quando isso aconteça, ter
esse poder inteiro, absoluto, incontestado. O regime presidencial é
o da onipotência do chefe do Estado. A isso eles aspiram.
Passam-se anos. A cada renovação presidencial recomeçam
a ter esperanças, que facilmente se transformam em decepções.
Não importa! De todos os sentimentos o mais tenaz é a esperança.
Guardam-no ainda.
Afinal esses políticos, entre os quais há alguns espíritos
de primeira ordem, realizam a fábula do cachorro, que perdeu a carne
pela sombra. Pela sombra de um poder quase absoluto, eles deixam a realidade
de um poder, que lhes seria fácil alcançar, se o Brasil estivesse
sob o regime parlamentar.
Sob o regime parlamentar alguns deles teriam sido várias vezes ministros
e presidentes do Conselho. Sonhando o poder supremo da República presidencial,
eles acabam por não ser nem isso, nem nada. Vegetam no Congresso, obrigados
a apoiar atos abusivos, ilegais e violentos, sempre acreditando que no próximo
período poderão, por sua vez, fazer o que quiserem. E o logro
recomeça de quatro em quatro anos…
Resta um terceiro grupo de apoiadores do regime presidencial: os que o fazem
por simples coerência. Esse grupo não é grande. A coerência
não é atualmente uma virtude muito prezada. Em todo caso, alguns
há entre os republicanos, que tendo aceitado com um entusiasmo irrefletido
o sistema político da Constituição de 1891, não
querem parecer volúveis e declaram-se dispostos a sustentá-lo.
A verdade é que, em 1891, eles não sabiam o que era o presidencialismo,
não lhe conheciam na prática o mecanismo. Agora o vêem,
o conhecem, o reprovam, mas não desejam mostrar-se incoerentes.
E surge então o mais corrente dos sofismas, com que se defende o presidencialismo:
que ele não é bem compreendido, nem bem aplicado.
Isso, entretanto, não é defesa: é acusação.
É mesmo a mais forte das acusações.
Se nós somos uma democracia, uma república, e se, por definição,
a república é o governo do povo pelo povo, — um sistema,
que, embora votado há mais de 20 anos, ainda não conseguiu ser
compreendido, não pode ser um sistema republicano e democrático
Há nisso a confissão de que não foi o povo que o quis.
O povo não poderia querer uma cousa que ele não sabia e continua
a não saber o que é.
Não há, aliás, nenhum sistema político que seja
idealmente bem aplicado. Todos sofrem deformações, com as quais
é necessário contar. Se se pudesse esperar a execução
perfeita de um sistema qualquer de governo, o melhor seria o que Renan chamou
o do “bom tirano”.
Caso se encontrasse um homem, com a capacidade precisa para bem compreender
todos os altos problemas sociais e para os resolver com justiça e desinteresse,
o ideal seria confiar-lhe a direção do país. Governo
rápido. Governo perfeito.
Mas até hoje ainda não se encontrou o “bom tirano”,
que fosse bom por muito tempo. A perfeição não é
um atributo humano.
Isso não basta para se dizer que, nesse caso, a questão de
forma de governo, não tem importância e todos os sistemas se
equivalem. Ao contrário! Pois que se verifica que há sempre
a certeza de erros, melhor será aquele sistema, em que estes puderem
ser corrigidos mais facilmente.
No regime absoluto, em que a vontade de um só predomina sem contraste
durante toda a vida de um indivíduo, a dificuldade está no seu
máximo.
No regime presidencial, que é o do quase absolutismo, por períodos
certos, taxativos, limitados, já há a esperança de que
cada presidente novo desfaça os erros do anterior. Dentro, porém,
do período todas as fiscalizações são ilusórias.
Nenhum erro se corrige.
No regime parlamentar, assim que o erro se produz, é possível
repará-lo, simples, sumária, suave e imediatamente.
É isso o que lhe dá a sua manifesta superioridade.
Cada vez, portanto, que se acha quem julgue defender o regime presidencial
com a alegação de que ele não é “bem aplicado”,
o que se acha, de fato, é um acusador inconsciente desse sistema nefasto.
De resto, qual é o pior inconveniente do presidencialismo? A má
escolha do presidente Dele decorre tudo mais. Tudo mais é relativamente
secundário, diante disso. Ora, para se julgar entre nós a aplicação
que tem tido o regime atual, basta perguntar: “Com o regime parlamentar,
seria possível a elevação ao poder do marechal Hermes?”
Evidentemente, não. Mas os defensores do presidencialismo, reconhecendo
embora que, com essa escolha, o governo do Brasil desceu a abismos em que
ninguém ousaria crer, desculpam-se com a eterna alegação:
“Mas com o sistema presidencial bem aplicado, também não
se faria tal escolha”. A superioridade do regime parlamentar ainda uma
vez aparece nitidamente, porque, com o sistema parlamentar, mesmo mal aplicado,
nunca se poderia imaginar essa hipótese!
É que — ainda uma vez se deve dizer — o regime parlamentar,
por mais que o falsifiquem e desnaturem, exige um mínimo de competência
dos homens que aspiram ao poder supremo. O regime presidencial não
tem, para baixo, nenhum limite… A experiência está feita!
Assim, os defensores do regime presidencial entre nós se grupam em
três categorias principais:
— os que estão atualmente com o poder e sentem que, com outro
regime, não o conseguiriam alcançar;
— os que, esperando um dia chegar à presidência, não
querem ver-lhe diminuídas as prerrogativas. Muitos deles, que teriam
mérito bastante para alcançar e exercer de fato o poder freqüentes
vezes, no regime parlamentar, passam o tempo a aspirar por uma quimera que
nunca se realiza;
— os coerentes, que, ou por terem aceitado com entusiasmo sincero em
1891 o novo sistema, ou, por terem feito parte do grupo de pretendentes falhados
a que acima se aludiu, defenderam em outros tempos o presidencialismo e sentem
agora acanhamento de mudar de opinião.
Há enfim — mas esses não têm importância
— a massa que se acarneira em torno dos que pertencem àquelas
três categorias. Vão com os outros mecanicamente. São
satélites. Não manifestam opinião pessoal.
Um argumento de ordem prática domina toda a questão para nós.
Com o regime parlamentar, nenhum dos homens de valor da República teria
sido impedido de exercer o poder. Pensem nos presidentes que se assinalaram
pelo seu mérito e verão, que, na república parlamentar,
mais de uma vez lhes teria sido possível chegar à presidência
do Conselho. Em compensação, com o regime parlamentar, mesmo
desnaturado, mesmo aplicado do pior modo, o Brasil nunca chegaria a um ministério
Hermes, nunca teria certos chefes políticos que o desgraçam
e infelicitam.
Isso basta para, no nosso caso, julgar os dois sistemas.
IX – QUE O REGIME PRESIDENCIAL TROUXE, COMO CONSEQÜÊNCIA FATAL
DO SEU MECANISMO, UMA CORRUPÇÃO MORAL INOMINÁVEL: ELE
É O REGIME DAS ADESÕES E TRAIÇÕES
Se há um domínio, em que o regime presidencial se tenha mostrado
absolutamente nefasto, é o domínio moral. Já houve quem
definisse a república atual uma ditadura hereditária, corrigida
pelas traições dos sucessores aos antecessores.
Em regra, os presidentes fazem os seus sucessores. Em regra, também
esses sucessores acabam por tomar uma orientação inteiramente
oposta. Ninguém mais estranha esse estado de cousas.
É forçoso convir que isso não ocorria outrora. Tempo
houve no Brasil, em que havia famílias tradicionalmente ligadas a um
partido, com o qual subiam, com o qual passavam ao ostracismo durante longos
anos.
Tudo isso saiu da moda.
No tempo do Império, por ocasião de discutir-se a Abolição,
houve o caso de um deputado mudar de partido. Um só! Em torno disso
se fez um escândalo enorme. Ainda hoje, os velhos políticos da
monarquia não hesitam, assim que se lhes fala nisso: o nome do deputado
a que se alude e que ainda é vivo lhes acode imediatamente.
Hoje quem quisesse lembrar-se dessas bruscas conversões precisaria
ter na memória um formidável repositório de nomes! Nos
Estados, a cada momento, se vêem assembléias, que eram unânimes
a favor de um governador, ser, no dia seguinte ao da sua deposição,
igualmente unânimes contra ele! Ninguém se peja, ninguém
se envergonha disso! É do regime.
Não se trata, realmente de desfalecimentos individuais inexplicáveis.
Afinal, não há razão nenhuma para que a psicologia geral
dos brasileiros tivesse mudado, por motivos — se assim se pode dizer
— orgânicos. O clima, a raça, o meio não alteraram
a composição e a conformação dos cérebros.
Os homens são os mesmos. Só o que mudou foi o regime político.
No regime parlamentar, o partidário que cai, sabe que pelo seu esforço,
mantendo-se firme nas suas convicções, pode voltar ao poder.
É uma questão de propaganda de idéias. O partido que
está na direção dos negócios gasta-se, enfraquece-se.
No regime presidencial, mesmo quando ele é bem aplicado, o partidário
que cai sabe que tem de ficar fora do poder pelo menos por quatro anos. Ainda
que ele transforme completamente a opinião pública antes disso,
não adianta nada. O país está arrendado a um cavalheiro,
que o pode governar como quiser durante um prazo fixo, erre ou acerte.
E desde logo os fracos, que são sempre a maioria, só vêem
uma solução diante do fato consumado: aderir.
Os homens de hoje não são nem mais nem menos canalhas que os
da monarquia. O que há é que a “função cria
o órgão”. A função — o regime presidencial
— é nefasta. Daí vem essa corrupção geral
de caracteres.
Só há um meio de um oposicionista coerente voltar ao poder:
esperar que o chefe do governo traia os seus amigos. De fato, a cousa acontece
freqüentemente e por um mecanismo muito curioso. Curioso e miserável.
Às vezes, um indivíduo qualquer sobe, embora não tenha
por si a maioria da opinião. Os que estão de acordo com essa
maioria deviam hostilizá-lo. Ao contrário: aderem. Aderem em
massas tão compactas, que muito freqüentemente o presidente ou
governador começa a governar de acordo com eles, quase inconscientemente,
sem dar por isso, porque os aderentes, apresentando idéias contrárias
aos seus primitivos amigos, o cercam tão de perto, que ele os acompanha,
traindo então aqueles!
A traição é a regra, é a norma e tende até
a tornar-se a plataforma natural das eleições presidenciais.
Viram-se, por exemplo, quando se pleiteou a eleição do Marechal
Hermes, partidos políticos opostos — mais do que opostos: violentamente
inimigos — apoiá-lo calorosamente Era manifesto que cada um esperava
que ele traísse o outro. O fato não podia ter outra explicação.
Foi a base, foi a razão de ser da eleição do Marechal
Hermes.
Diz-se, é certo, que podem achar-se candidatos “de conciliação”.
Mas, em um regime presidencial um candidato de “conciliação”
é fatalmente, forçosamente, necessariamente um candidato “de
traição”.
No regime parlamentar, é lícito fazer-se um presidente de república
de conciliação, porque o presidente não governa. Dois
partidos em presença podem reconhecer em um indivíduo as necessárias
qualidades de imparcialidade para assumir a presidência.
Ainda no regime parlamentar, pode-se admitir um ministério de conciliação.
Há, de fato, momentos em que duas tendências estão frente
a frente, sem que nenhuma tenha bastante força para vencer. Faz-se
então um ministério de transação, até que
uma das duas correntes se torne bastante forte para tomar a si a direção
exclusiva dos negócios.
Mas um ministério é um grupo de homens. A transação
resulta de que uns pensam de um modo e outros de modo diverso. Como eles têm
de resolver as questões em comum, é sempre necessário
achar fórmulas transacionais, fórmulas de meio-termo, que não
firam nem uns nem outros. As decisões são, nesses casos, resultantes
de tendências opostas reunidas no ministério.
No regime presidencial a situação é diversa. Quem governa
é um homem só. Ou ele pensa de um modo ou do modo oposto. Não
lhe é possível partir o cérebro em varias frações,
estabelecer dentro do crânio um pequeno conselho e achar para as diversas
questões fórmulas transacionais. Não lhe é possível
decidir às segundas, quartas e sextas de um modo e às terças,
quintas e sábados, do modo contrário. É preciso que o
governo de um país tenha uma orientação definida.
Todos sabem, todos vêem isto, que é da mais irrecusável
evidência. O que, pois, se chama um candidato de “conciliação”
no regime presidencial só pode ser um candidato feito por vários
partidos, dos quais cada um supõe que esse candidato trairá
o partido oposto.
A gangrena moral vai crescendo, vai ganhando…
Dantes, o presidente fazia o seu sucessor, esperando que ele continuasse
a sua política. Quando ele não a continuava, era uma surpresa.
Agora, já se perdeu a cerimônia: os candidatos desde o princípio
começam por ser lançados em nome de uma dupla esperança
de traição, cada partido esperando que ele traia o outro.
É a simples, a lógica, a natural conseqüência do
regime. Cada um pergunta a si mesmo: “Para que lutar? Não serve
de nada…”
E aderem.
No regime parlamentar, se um governo sobe hoje, é bem capaz de cair
amanhã. Cair sem revolução, sem violência, normalmente.
A opinião pode forçá-lo a isso. Os seus adversários
devem, portanto, procurar conquistá-la, mostrando-se intransigentes.
Mas, no regime presidencial, quem subiu, subiu, haja o que houver, por quatro
anos. Por quatro anos, pelo menos, porque, com a força de que dispõe,
nada lhe é mais fácil do que fazer o seu sucessor. Não
serve de nada que os adversários modifiquem a opinião pública,
a menos que não cheguem até a revolução. Os únicos
meios legais de um oposicionista voltar ao poder são: ou trair as suas
convicções e seus amigos, aderindo, ou obter a traição
do presidente.
Dir-se-á que um homem digno pode resignar-se a ficar perpetuamente
na oposição, se tanto for preciso.
É belo, é nobre, é heróico… Mas não
é possível pedir à maioria essas cousas heróicas.
Deve-se lidar com os homens, como os homens são: com todas as suas
fraquezas habituais. As formas de governo devem ser adaptadas ao caráter
do povo como ele é e não como deveria ser. Um regime que, para
ser bem executado, começasse por exigir uma transformação
completa do caráter nacional, é um regime que, por isso mesmo,
prova a sua imprestabilidade.
Quando se citam as adesões de deputados e senadores passando a cada
instante de um partido para outro, as conversões em bloco de assembléias
inteiras, há muito quem objete que, com o regime parlamentar, nada
se adiantaria, porque os representantes seriam mais ou menos os que hoje compõem
as assembléias federais e estaduais.
Os que dizem isso esquecem o velho princípio tantas vezes aqui citado:
“a função cria o órgão”. Se muitos
desses representantes nada tentam atualmente, é porque nada há
a tentar. Todo esforço é inútil. Eles se sentem vencidos
de antemão. Ainda uma vez se deve repetir: só há atualmente
um meio para um oposicionista vencer: traição. Ou ele trairá
ou esperará a traição do presidente.
Afinal, seria de um pessimismo injustificável achar que estamos tão
podres que nada nos pode salvar. Esses mesmos, que hoje agem de tão
estranho e vergonhoso modo, não multiplicam as traições
por prazer: multiplicam-nas, porque não há outra cousa a fazer.
Para ver a influência deletéria do regime sobre os homens basta
comparar o que foram os primeiros congressos republicanos com o que são
os atuais.
A Constituinte durou somente três meses. Era uma assembléia,
na sua maioria, de neófitos. Quando ela acabou o seu trabalho, estava
apenas começando a tomar consciência de si mesma.
Veio o período presidencial do Marechal Deodoro. O Congresso fez frente
ao chefe de Estado. Evidentemente, os senadores e deputados daquele tempo,
não tendo a mínima prática do novo regime, tomavam-se
ao sério, acreditavam que valiam alguma cousa. Foram por isso muito
acusados — o próprio presidente os acusou no manifesto com que
deu o golpe de Estado de 1891 — de estar fazendo “parlamentarismo”.
E a verdade é que estavam…
No governo do Marechal Floriano a oposição ainda foi tremenda.
Raramente, entretanto, conseguiu as maiorias de dois terços necessárias
para vencer a resistência do presidente.
Com o Dr. Prudente de Moraes, ainda houve oposição, mas já
menor, muito menor. Pouco a pouco, o Congresso ia verificando que não
podia nada, que todo o seu esforço era inútil. Caía…
Baixava… Humilhava-se…
Chega o governo do Dr. Campos Salles: a queda é completa, o presidente
inaugura o que se chamou “a política dos governadores”.
Cada vez se discute menos no Congresso. Para que? Se o governo não
quer, é inútil discutir. Se o governo quer, mais inútil
ainda. A datar daí, não há Congresso.
Os mais fortes, mais ativos, mais enérgicos abdicam, sentindo a absoluta
inutilidade do seu esforço.
Se alguém tivesse de fazer um “gráfico” do valor
decrescente do Congresso de 1891 até hoje, verificaria que não
era nem uma curva nem uma linha oblíqua: era uma vertical, caindo sempre…
A função fez o órgão… O Congresso é
a miséria que aí se vê, porque as suas funções
e a sua importância são pura e simplesmente miseráveis.
Não valem nada. Dessem ao Congresso, como sucede no regime parlamentar,
atribuições eficazes, os mesmos homens que aí estão
portar-se-iam de modo bem diferente.
O interessante é ver a atitude da imprensa diante destes fatos.
Ninguém ignora que raros são os jornais que dispensam auxílio
do governo. Os grandes, aqueles que têm instalações mais
caras, são freqüentemente os que menos podem dispensar tal apoio.
Às vezes, ousam insurgir-se contra um ministro; mas continuam a apoiar
os outros. Às vezes, levam a audácia a combater o governo federal;
mas, nesse caso, algum governo estadual os subvenciona…
Há, é certo, alguns jornais realmente populares. Que influência
têm eles sobre a marcha dos negócios públicos? Nenhuma!
Atacam, agridem, insultam, às vezes sem razão, às vezes
com razão; mas tudo é inútil, quer num, quer noutro caso.
Dantes, no regime parlamentar, até os apedidos anônimos do Jornal
do Comércio eram freqüentemente suficientes para fazer cair um
ministério: bastava que exprimissem uma opinião justa e que
um deputado dela se fizesse eco na Câmara. Hoje, apedidos e artigos
de fundo perdem tempo, vagar e paciência. A opinião pode modificar-se;
mas o governo não faz caso dela. É do regime. O regime presidencial
é aquele em que um tipo qualquer, uma vez eleito, tem o direito de
governar ou desgovernar, como lhe pareça bem, durante o prazo pelo
qual a nação lhe ficou arrendada. É a isso que se chama
a admirável “estabilidade” do regime presidencial, —
estabilidade, que se contrapõe à “instabilidade”
do regime parlamentar, na qual os governos devem obedecer à opinião
pública.
A imprensa, órgão desta última, devia sentir que o seu
interesse estava em defender o regime, em que a sua palavra tem importância.
Prefere, porém, em regra, vender-se aos governos. E como o Congresso
não paga nada, como o Congresso não dá subvenções,
como o Congresso não lhe manda editais, anúncios, publicações
diversas, é contra o Congresso que ela se volta!
Negue quem quiser a evidência da relação de causa a efeito
que há entre o regime presidencial no Brasil e a miséria dos
nossos costumes políticos. Em todo caso, o que não se pode negar
é essa miséria. O que também não se pode negar
é que, pelo menos, ela coincidiu com o estabelecimento desse regime.
Quanto à imprensa, também não se pode contestar que
o jornal o mais bem feito, exprimindo o mais nobremente possível a
opinião, é absolutamente incapaz de fazê-la triunfar,
contra a vontade do governo. Só o regime parlamentar faria cessar o
abaixamento moral dos nossos costumes. Só ele restituiria à
imprensa a sua dignidade perdida.
X – QUE O REGIME PARLAMENTAR JÁ PROVOU DE UM MODO DECISIVO SER O
ÚNICO QUE SE ADAPTA À ÍNDOLE DO POVO BRASILEIRO…
O característico das boas leis é serem reclamadas pelos costumes
públicos e, portanto, se adaptarem facilmente a eles. Em alguns casos,
elas se limitam a sancioná-los. Por isso mesmo, certas leis inconvenientes,
incompatíveis com o caráter dos povos, nunca são bem
entendidas, nem bem praticadas. Em compensação, há hábitos,
há costumes, há aspirações tão de acordo
com a índole nacional, que não precisam ser formulados em textos
legais. E, quando há textos legais, que os contrariam, esses hábitos,
esses costumes, essas aspirações continuam a predominar, apesar
das leis, por mais categóricas que elas sejam.
A prova de que o regime presidencial não foi decretado de acordo com
o sentimento nacional é que, ainda hoje, mais de vinte anos após
a sua promulgação em termos claros e expressos, os seus melhores
defensores confessam que ele não é bem aplicado nem bem entendido!
A par dessa observação, já anteriormente feita, há
uma comparação que se impõe. O regime presidencial só
existe em quatro países no mundo: os Estados Unidos, o México,
a Argentina e o Brasil.
Ele nasceu no primeiro, como uma adaptação do regime monárquico
a uma nação que, tornando-se de súbito independente,
limitou-se a trocar o representante do rei absoluto por um presidente, quase
igualmente absoluto, eleito por períodos determinados. Nas outras três
nações, esse regime foi uma cópia dos Estados Unidos.
Cópia confessada, cópia expressa. Não veio, em nenhuma
delas, por uma evolução natural. Houve, em cada uma, certa ocasião
na qual pareceu útil tomar a Constituição dos Estados
Unidos e copiar-lhe os artigos, com ligeiras alterações.
Os resultados têm sido o que todos podem ver. A situação
atual do México e do Brasil, as inúmeras revoluções
e “pronunciamentos” da Argentina, que só agora descansa
um pouco, porque subitamente lhe adveio uma excepcional prosperidade econômica,
tudo isso prova como a fórmula norte-americana é inadaptável.
Em todo caso, mesmo para ser mal executada, ela só existe onde foi
promulgada, decretada, escrita capítulo a capítulo, artigo por
artigo, letra por letra. A cada passo, os povos tentam libertar-se de seu
jugo, e é preciso trazê-los para o que está redigido,
escrito, formulado em termos imperativos…
Comparação curiosa com o que sucede no regime parlamentar:
ele não está formulado em parte alguma!
Nenhuma das nações, que se governam por ele o precisou escrever
para observar. Algumas até escreveram o contrário — exatamente
o contrário.
Apesar disso, a despeito de tudo, ele apareceu, ele se impôs!
Todos sabem que a Inglaterra não tem Constituição escrita.
Ela já foi, se assim se pode dizer, presidencial. Evoluiu, sem precisar
a decretação de texto algum, para o parlamentarismo.
As leis constitucionais francesas são presidencialistas. Em nenhum
dos seus artigos se diz que os ministros dependem da confiança do parlamento.
Ao contrário: o que elas declaram é que eles dependem da do
presidente.
O mesmo sucede, já anteriormente o lembramos, na Bélgica, no
Chile, por toda parte…
Mas o que dá lugar a um paralelo interessante é o caso do Brasil.
O regime parlamentar se coaduna tão naturalmente com a nossa índole
que, apesar da Constituição do Império ser absolutamente
antiparlamentarista, ele se impôs. Impôs-se tão bem, que,
sete anos depois da decretação da Constituição,
forçava o Imperador a abdicar. E a abdicar, por que? Porque não
queria reconhecer a supremacia do parlamento.
O presidencialismo foi decretado solenemente, miudamente, taxativamente,
em um texto bem expresso. Vinte e dois anos após, todos confessam que
ele não é aplicado!
Que prova se pode pedir melhor do que essa de que o regime parlamentar é
o que se coaduna com a nossa índole?
Embora sem lei e mesmo contra a lei, ele se impôs de tal modo, que
sete anos depois da decretação de uma Constituição,
que não o admitia, ele era executado — enquanto o presidencialismo,
vinte e dois anos após ter sido escrito, decretado, promulgado formalmente,
não conseguiu que o compreendam e executem; apenas alguns dos seus
fiéis têm uma vaga, indefinida e inexplicável esperança
de que isso venha a ocorrer no futuro…
O regime parlamentar passa por ser de invenção inglesa. Talvez
se pudesse mostrar que ele é de feitura universal. Para ele tenderam
todas as organizações dos povos livres. As assembléias,
que se reuniam para colaborar com os reis no que dizia respeito ao levantamento
de tropas e à cobrança de impostos, foram tendendo a aumentar
as suas atribuições e chegaram naturalmente ao regime parlamentar.
Os positivistas entre nós descobriram que o progresso seria reduzir
o parlamento à simples função de decretador do orçamento,
o que, segundo eles, constitui a sua função essencial.
Nisso, como em tantas outras cousas, o nosso positivismo ortodoxo mostra
como é absurdo e retrógrado.
A função orçamentária é a mais velha dos
parlamentos. Os estados gerais da França já a tinham sob o domínio
dos reis absolutos. O mesmo acontecia na Espanha e Portugal, o mesmo na Inglaterra,
o mesmo em vários outros países. Por aí se começou.
Voltar a essa limitação seria retroceder e não progredir.
Mas, enfim, o certo é que todas as invenções, quer no
domínio intelectual, quer no moral, quer no industrial, quer no político,
precisam ter um autor. O dizer-se, portanto, que o parlamentarismo é
uma invenção inglesa não basta para significar que seja
incompatível com os outros povos. A máquina a vapor também
é uma invenção inglesa; mas a indústria do mundo
inteiro a emprega.
Ninguém censuraria o presidencialismo só pelo fato de ter tido
origem nos Estados Unidos. O mal é que ele tenha nascido de um conjunto
excepcional de circunstâncias ocasionais. O mal é que ele seja
a perpetuação do poder de um governador colonial, representante
de um rei absoluto, em uma democracia. O mal é que ele se tenha revelado
inadaptável.
Com o regime parlamentar, sucede justamente o inverso. Ele se tem revelado
de uma plasticidade e adaptabilidade imensas, em todos os continentes, todas
as raças, todas as formas do governo: as monárquicas como as
republicanas, as unitárias como as federativas.
Sem mesmo sair da Inglaterra e suas colônias, essa verdade fica provada.
É uma tolice, que ninguém de certo dirá, afirmar que
o sucesso do regime parlamentar se explica no parlamento inglês, e,
por exemplo, no parlamento australiano ou da Nova Zelândia, porque em
todos eles reina o “mesmo espírito”. Nada mais fundamentalmente
oposto que o sentimento nacional na Grã-Bretanha, sentimento conservador
e tradicionalista, e o sentimento desabusadamente reformista da Austrália
ou da Nova Zelândia, onde os legisladores não recuam diante de
nada! Bastaria, portanto, ver o regime parlamentar funcionar perfeitamente
na Europa, em Londres, na América, em Ottawa, na África, em
Capetown e até na Oceania, para ver que ele se presta ao governo dos
povos os mais diversos, com índoles e aspirações também
as mais diferentes!
Aliás há a França, há a Bélgica, há
a Itália, há o Chile, há até o Japão que
evolui a passos largos para o regime parlamentar.
Com o Chile sucede em geral entre nós um caso curioso. Há muito
quem o aponte precisamente como uma prova de que o regime parlamentar é
mau. Mas ninguém é capaz de justificar o seu modo de pensar,
ninguém poderá provar que o regime parlamentar constituiu para
o Chile um motivo de regresso.
O que houve foi o seguinte. Exatamente em 1891, quando nós votámos
desastradamente o regime presidencial, os chilenos desembaraçavam-se
de Balmaceda e firmavam o regime parlamentar.
Esse fato fez com que nós seguíssemos com atenção
as peripécias da luta e, como acabávamos de fazer triunfar a
fórmula oposta, ficamos convencidos de que o Chile ia afundar-se na
anarquia. Os positivistas foram os mais ardentes a espalhar essa idéia,
que se arraigou em muita gente.
É bom notar que em face da Constituição chilena quem
tinha razão era Balmaceda. Essa Constituição opunha um
obstáculo ainda mais forte que a francesa, ou a brasileira, do tempo
do Império, à instituição do regime parlamentar,
porque ela admite a responsabilidade presidencial. Mais uma vez, por conseguinte,
o regime parlamentar provou a sua força de adaptação,
sobrepondo-se pelos costumes a um texto, que lhe é, por assim dizer,
violentamente hostil. Mas apesar disso o parlamentarismo tem dado ao Chile
vinte anos de paz e progresso.
De 1891 datam — no Chile, a instituição franca do regime
parlamentar; — no Brasil, a do presidencial.
Quando, porém, se ouvem brasileiros falar mal do parlamentarismo chileno,
basta fazer-lhes as seguintes perguntas:
— Quantas revoluções houve no Brasil de 1891 até
hoje? — Diversas!
— Quantas, durante esse mesmo período, no Chile? — Nenhuma!
— Qual das duas nações abriu falência? —
O Brasil, que precisou votar uma moratória.
Aumento de população, de comércio, de instrução,
tudo tem ido seguindo no Chile uma progressão ascendente constante.
É bom notar que o Chile, faixa estreitíssima de terreno acidentado
entre o mar e os Andes, não pode ter os recursos do Brasil, nem da
Argentina; mas ninguém é capaz de mostrar uma parada ou um regresso
em nenhuma esfera do seu desenvolvimento.
Tendo duas questões internacionais gravíssimas uma com a Argentina
e outra com o Peru, já resolveu a primeira e tudo faz crer que resolverá
a segunda.
E isto prova mais uma vez que é um disparate ligar o sucesso do Barão
do Rio Branco na solução dos nossos litígios internacionais
ao regime que nós temos.
O Chile soube criar um exército e uma marinha temíveis. Tão
temíveis que impuseram o respeito à República Argentina.
E tudo se tem feito com o regime parlamentar.
De tempos a tempos, caem ministérios, sobem ministérios. Os
nossos jornais enchem-se de telegramas anunciando essas alterações.
Que mal há nisso? Nenhum. É o funcionamento pacífico
do regime.
Como a escolha de ministros deve ser feita de acordo com a maioria do parlamento,
isso é um pouco mais lento do que seria entre nós. Não
acarreta, porém, nenhuma perturbação da ordem. Nada pára.
Assim, o que se vê é que no confronto entre os dois regimes,
nos dois países, durante o mesmo lapso de tempo, o regime parlamentar
no Chile é que se mostra superior: ele tem dado à nobre nação
do Pacífico vinte anos de paz.
O regime parlamentar não desmentiu aí os seus créditos.
Adaptável aos povos de índoles, de raças, de continentes
mais diversos, ele não precisa de leis para ser executado. Basta que
não lhe impeçam o advento. O regime presidencial só tem
aparecido, onde as constituições o têm imposto e, assim
mesmo, não consegue ser nem entendido, nem aplicado
FIM
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