Martins Pena
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Comédia em 1 ato
Personagens
MARIANA, mãe de
EUFRÁSIA.
LUÍSA, irmã de
JORGE, marido de Eufrásia.
TIBÚRCIO, amante de Luísa.
SOUSA, irmão das almas.
FELISBERTO.
Um irmão das almas.
Um cabo de Permanentes.
Quatro soldados.
(A cena passa-se na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1844, no dia de Finados)
Sala com cadeiras e mesa. Porta no fundo e à direita; à esquerda um armário grande. Durante todo o tempo da representação, ouvem-se ao longe dobres fúnebres.
ATO ÚNICO
CENA I
LUÍSA, sentada em uma cadeira junto á mesa – Não é possível viver assim muito tempo! Sofrer e calar é minha vida. Já não posso! (Levanta-se.) Sei que sou pesada a D. Mariana e que minha cunhada não me vê com bons olhas, mas quem tem culpa de tudo isto é o mano Jorge. Quem o mandou casar-se, e vir para a companhia de sua sogra? Pobre irmão; como tem pago essa loucura! Eu já podia estar livre de tudo isto, se não fosse o maldito segredo que descobri. Antes não soubesse de nada!
CENA II
EUFRÁSIA e LUÍSA.
EUFRÁSIA, entrando vestida de preto como quem vai visitar igrejas em dia de Finados – Luísa, tu não queres ir ver os finados?
LUÍSA – Não posso, estou incomodada. Quero ficar em casa.
EUFRÁSIA – Fazes mal. Dizem que este ano há muitas caixinhas e urnas em S. Francisco e no Carmo, e além disso, o dia está bonito e haverá muita gente.
LUÍSA – Sei o que perco. Bem quisera ouvir uma missa por alma de minha mãe e de meu pai, mas não posso.
EUFRÁSIA – Missas não hei-de eu ouvir hoje; missas em dia de Finados é maçada. Logo três! O que eu gosto é de ver as caixinhas dos ossos. Há agora muito luxo.
LUÍSA – Mal empregado.
EUFRÁSIA – Por quê? Cada um trata os seus defuntos como pode.
LUÍSA – Mas nem todos os choram.
EUFRÁSIA – Chorar? E para que serve chorar? Não lhes dá vida.
LUÍSA – E que lhes dão as ricas urnas?
EUFRÁSIA – O que lhes dão? Nada; mas ao menos fala-se nos parentes que as mandam fazer.
LUÍSA – E isso é uma grande consolação para os defuntos…
EUFRÁSIA – Não sei se é ou não consolação para os defuntos, mas posso-te afirmar que é divertimento para os vivos. Vai-te vestir e vamos.
LUÍSA – Já te disse que não posso.
EUFRÁSIA – Luísa, tu és muito velhaca!
LUÍSA – E por quê?
EUFRÁSIA – Queres ficar em casa para veres o teu namorado passar. Mas não sejas tola; vai à igreja, que lá é que se namora bem no aperto.
LUÍSA, com tristeza – Já lá se foi esse bom tempo de namoro!
EUFRÁSIA – Grande novidade! Brigaste com o teu apaixonado?
LUÍSA – Não; mas depois do que soube, não devo mais vê-lo.
EUFRÁSIA – E o que soubeste então?
LUÍSA – Que ele era… Até não me atrevo a dizê-lo.
EUFRÁSIA – Assustas-me!
LUÍSA – Considera a coisa mais horrorosa que pode ser um homem.
EUFRÁSIA Ladrão?
LUÍSA Pior.
EUFRÁSIA – Assassino?
LUÍSA – Ainda pior.
EUFRÁSIA – Ainda pior que assassino? Rebelde?
LUÍSA – Muito pior!
EUFRÁSIA – Muito pior que rebelde? Não sei o que seja.
LUÍSA – Não sabes? (Com mistério) Pedreiro-livre!
EUFRÁSIA – Pedreiro-livre? Santo breve da marca! Homem que fala com o diabo à meia-noite! (Benze-se.)
LUÍSA – Se fosse só falar com o diabo! Tua mãe diz que todos os que para eles se chegam ficam excomungados, e que antes quisera ver a peste em casa do que um pedreiro-livre. (Benze-se; o mesmo faz Eufrásia.) Não, não! Antes quero viver toda a minha vida de favores e acabrunhada, do que casar-me com um pedreiro-livre. (Benze-se.)
EUFRÁSIA – Tens razão. Eu tenho-lhes um medo de monte; e minha mãe quando os vê, fica tão fora de si que faz desatinos. Ora, quem havia dizer que o Sr. Tibúrcio era também da panelinha!
LUÍSA – Eu seria tão feliz com ele, se não fosse isso!…
EUFRÁSIA – Também… Perdes um marido; pouco perdes… Para que serve um marido?
LUÍSA – Para que serve um marido? Boa pergunta! Para muitas coisas.
EUFRÁSIA – Sim, para muitas coisas más.
LUÍSA – Dizes isso porque já estás casada.
EUFRÁSIA – Essa é que é a desgraça: não termos medo ao burro, senão depois do couce. Um marido! Sabes tu o que é um marido? É um animal exigente, impertinente e insuportável… A mulher que quiser viver bem com o seu, faça o que eu faço: bata o pé, grite mais do que ele, caia em desmaio, ralhe e quebre os trastes. Humilhar-se? Coitada da que se humilha! Então são eles leões. O meu homem será sendeiro toda sua vida… E se hás-de ter o trabalho de ensinares a esses animais, é melhor que te não cases.
LUÍSA – Isso é bom de se dizer…
EUFRÁSIA – E de se fazer. Vou acabar de me vestir. (Sai.)
CENA III
LUÍSA e depois JORGE.
LUÍSA, só – Pobre Jorge; com quem te foste casar! Como esta mulher te faz infeliz! Pedreiro-livre!… Quem o dissera! (Entra Jorge vestido com opa verde de irmão das almas; traz na mão uma bacia de prata com dinheiro, ovos e bananas. Logo que entra, põe a bacia sobre a mesa.)
JORGE, entrando – Adeus, mana Luísa.
LUÍSA – Já de volta?
JORGE – A colheita hoje é boa. É preciso esvaziar a salva. (Faz o que diz.) Guarda metade deste dinheiro antes que minha mulher o veja. que tudo é pouco para ela; e faze-me destes ovos uma fritada e dá estas bananas ao macaco.
LUÍSA – Tenho tanta repugnância de servir-me deste dinheiro…
JORGE – Por quê?
LUÍSA – Dinheiro de esmolas que pedes para as almas…
JORGE – E então o que tem isso? É verdade que peço para as almas, mas nós também não temos alma? Negar que a temos é ir contra a religião, e além disso, já lá deixei dous cruzados para se dizer missas para as outras almas. É bem que todas se salvem.
LUÍSA – Duvido que assim a tua se salve.
JORGE – Deixa-te de asneiras! Pois pensas que por alguns miseráveis dous vinténs, que já foram quatro, (pega em uma moeda de dous vinténs:) – olha, aqui está o carimbo… – um pai de família vá para o inferno? Ora! Supõe que amanhã afincam outro carimbo deste lado. Não desaparecem os dous vinténs e eu também não fico logrado? Nada, antes que me logrem, logro eu. E demais, tirar esmolas para almas e para os santos é um dos melhores e mais cômodos ofícios que eu conheço. Os santos sempre são credores que não falam… Tenho seis opas para os seis dias da semana; aqui as tenho. (Vai ao armário e tira seis opas.) No domingo descanso. Preferi tê-las minhas – é mais seguro; não dou satisfação a tesoureiro nenhum. As segundas-feiras visto esta verde que tenho no corpo; às terças, esta roxa; às quartas, esta branca; às quintas, esta encarnada; às sextas, esta roxa e branca e aos sábados esta azul.
LUÍSA – E não entregas dinheiro nenhum para os santos?
JORGE – Nada, o santo destas opas sou eu. Não tenho descanso, mas também o lucro não é mau.
LUÍSA – O lucro… Aquele pobre velho que morava defronte do paredão da Glória também pedia esmolas para os santos, e morreu à mingua.
JORGE – Minha rica, o fazer as coisas não é nada; o sabê-las fazer é que é tudo. O carola experiente deve conhecer as ruas por que anda, as casas em que entra e as portas a que bate. Ruas há em que se não pilha um real – essas são as da gente rica, civilizada e de bom-tom, que, ou nos conhecem, ou pouco se lhe dá que os santos se alumiem com velas de cera ou de sebo, ou mesmo que estejam às escuras. Enfim, pessoas que pensam que quando se tem dinheiro não se precisa de religião. Por essas ruas não passo eu. Falem-me dos becos aonde vive a gente pobre, das casas de rótulas, das quitandeiras; aí sim, é que a pipineira é grossa! (Vai guardar as opas.) Tenho aprendido à minha custa!
LUÍSA, sorrindo-se – À custa dos tolos, deves dizer.
JORGE – E quem os manda serem tolos? Mas, ah, neste mundo nem tudo são rosas. Eu vivia tão bem e tão feliz, e por desconto dos meus pecados dei a mais reverente das cabeçadas!
LUÍSA – Qual cabeçada?
JORGE – O casar-me. Ah, minha filha, o casamento é uma cabeçada que deixa o homem atordoado por toda a vida, se o não mata. Se eu soubesse…
LUÍSA – Agora é tarde o arrependimento; queixa-te de ti.
JORGE – Que queres? Um dia mete-se o diabo nas tripas de um homem e ei-lo casado. Ainda alguns são felizes, mas eu fui mesmo desgraçadíssimo! Esbarrei-me de focinhos! Encontrei com uma mulher linguaruda, preguiçosa, desavergonhada e atrevida… E para maior infelicidade, vim viver com minha sogra, que é um demônio; leva todo o dia a atiçar a filha contra mim. Vivo num tormento.
LUÍSA – Eu bem o vejo.
JORGE – Quando a roda principia a desandar, é assim. Dous meses depois de eu estar casado, morreu nossa mãe e tu te viste obrigada a vires para minha companhia, para aturares estas duas víboras. Ah, suportar uma mulher é um castigo, mas aturar também uma sogra é… nem eu sei o que seja!… E uma injustiça que Deus nos faz. E quando elas têm um conselheiro e compadre da laia do nosso vizinho Sousa… Isso… (Dá estalos com os dedos.)
LUÍSA – Dizes bem, Jorge, esse nosso vizinho é uma das causas do estado desgraçado em que vives com tua mulher, pelos conselhos que lhe dá.
JORGE – Velho infernal, mexeriqueiro baboso! Não te poder eu correr com um pau pela porta fora! Mas ainda isto não é o maior infortúnio… Olha, Luísa, há coisas que um marido, por mais prudente que seja, não pode tragar. Tens visto aqui nesta casa o Felisberto?
LUÍSA – Tenho sim.
JORGE – Pois esse patife, que ninguém sabe do que vive, que não tem ofício nem benefício, que está todo o santo dia no Largo do Rocio, metido na súcia dos meirinhos, com o pretexto de ser primo de minha mulher entra por esta casa a dentro com toda a sem-cerimônia, sem dizer tir-te, nem guar-te; anda de um quarto para outro com toda a frescura, conversa-se em segredo com minha mulher e cala-se quando eu chego.
LUÍSA – E por que o sofre, mano? Não é você o homem desta casa? Até quando há-de ter medo de sua mulher?
JORGE – Medo? Pois eu tenho medo dela? (Com riso forçado:) É o que me faltava! O que eu tenho é prudência; não quero desbaratar…
LUÍSA, à parte – Coitado!
JORGE – Ele já veio hoje?
LUÍSA – Ainda não.
JORGE – Admira-me!
CENA IV
FELISBERTO e os mesmos.
FELISBERTO, entrando – Vivório!
JORGE, à parte – Já tardava!
FELISBERTO, para Luísa, sem dar atenção a Jorge – Adeus, minha bela Luisinha. A prima Eufrásia está lá dentro?
LUÍSA, secamente – Está. (Felisberto encaminha-se para sair pela direita, sem dar atenção alguma a Jorge.)
JORGE, seguindo-o – Então assim se pergunta por minha mulher e vai-se entrando? (Felisberto sai.) E então? Querem-na mais clara? Que figura faço eu aqui? Que papel represento? (Passeia agitado de um para outro lado.)
LUÍSA, seguindo-o – Meu irmão, por que não fazes um esforço para saíres deste vexame em que vives? Cobre energia! Mostre que é homem! Isto é uma vergonha! Não se acredita! Que fraqueza!
JORGE, parando – É fraqueza?
LUÍSA – É, sim.
JORGE – Pois quero mostrar-te para que sirvo. Quero mostrar-te que sou homem e que nesta casa governo eu.
LUÍSA – Felizmente.
JORGE – Vou ensiná-las, botar este biltre pela porta a fora! Basta de humilhação! Vai tudo com os diabos! (Caminha intrepidamente e a passas largos para a porta da direita, mas aí chegando, pára.)
LUÍSA – Então, paras?
JORGE, voltando – Melhor é ter prudência. Tenho medo de fazer uma morte.
LUÍSA – Meu Deus, que fraqueza!
JORGE – E retiro-me, que não respondo por mim… e mesmo porque vou à botica buscar o sinapismo que minha sogra pediu. (Sai.)
CENA V
LUÍSA, só, e depois MARIANA.
LUÍSA – Isto contado não é crível! Ter um homem medo de sua mulher e de sua sogra a esse ponto! Ah, se eu fosse homem e tivesse uma mulher como esta!…
MARIANA, entrando – Vai coser a renda da minha mantilha! (Luísa sai. Mariana estará de vestido de riscado e saia de lila preta.) Pague o que come! É um trambolho que eu tenho em casa. A boa jóia do meu genro julga que eu também devo carregar com a irmã. Está enganado; hei-de atrapalhá-la até que a desgoste para sair daqui. Arre!
CENA VI
MARIANA e SOUSA.
SOUSA, entrando vestido de opa – Bons dias, comadre.
MARIANA – Oh, compadre Sousa, por cá?
SOUSA – Ando no meu fadário, comadre. É preciso ganhar a vida. (Põe a salva sobre a mesa.)
MARIANA – Isso é assim, compadre.
SOUSA – E como já estou velho, escolho o ofício que mais me serve… Tiro esmolas.
MARIANA – E as faz render, hem?
SOUSA – Nada, comadre. Ganho só duas patacas por dia, que me paga o tesoureiro da irmandade para quem tiro esmola.
MARIANA – Só duas patacas? Tão pouco, compadre?
SOUSA – Eu podia fazer como grande parte dos meus companheiros, que tiram as esmolas para si, mas isso não faço eu; quisera antes morrer de fome. Dinheiro sagrado! Talvez a comadre zombe do que eu digo…
MARIANA – Eu não, compadre.
SOUSA – Porque consta-me que seu genro…
MARIANA – Meu genro é um tratante.
SOUSA – Há em todas as profissões velhacos que as desacreditam.
MARIANA – Não se importe com isso, compadre.
SOUSA – Oh, eu vivo tranqüilo com a minha consciência.
MARIANA – Faz muito bem.
SOUSA – Como vai a comadrinha? (Aqui aparece à porta do fundo Jorge, que trará uma tigela na mão. Vendo MARIANA e Sousa, pára e escuta.)
MARIANA – Vai bem, compadre. Só o diabo do marido é que lhe dá desgostos; é uma besta que meti em casa…
SOUSA – Comadre, as bestas também se ensinam…
JORGE, à parte – Patife!
MARIANA – Deixe-o comigo, compadre.
SOUSA – A comadre é mãe e deve vigiar na felicidade de sua filha. Os maridos são o que as mulheres querem que eles sejam. Sou velho e tenho experiência do mundo. A comadrinha que não fraqueie, senão ele bota-lhe o pé no pescoço.
JORGE, à parte – Tratante!
MARIANA – Isso lhe digo eu sempre, e ela o faz. Olhe, compadre, quanto a isso puxou cá à pessoa… O meu defunto não via bóia comigo…
CENA VII
Os mesmos e FELISBERTO.
FELISBERTO – Adeus, tia; vou-me embora.
MARIANA – Vem cá, rapaz.
FELISBERTO – O que quer?
MARIANA – Ó compadre, você não achará um arranjo para este rapaz?
SOUSA – Fraco empenho sou eu, comadre.
FELISBERTO – Não preciso de arranjo.
MARIANA – É melhor trocar as pernas por essas ruas como um valdevinos, em risco de ser preso para soldado? Andar sempre pingando e sem vintém para comprar uma casaca nova? Vê como os cotovelos desta estão rotos, e esta calça, como está safada.
FELISBERTO – Assim mesmo é que eu gosto… É liberdade! Cada um faz o que quer e anda como lhe parece. Não nasci para me assujeitar a ninguém.
MARIANA – Ai, que modo de pensar é esse? Então, compadre, não descobre nada?
SOUSA – Eu? Só se ele quer também pedir esmolas; posso arranjar-lhe uma opa.
MARIANA – Lembra muito bem. Ó sobrinhozinho, queres pedir esmolas?
FELISBERTO, insultado – Pois tia Mariana, acha que eu nasci para pedir esmolas? Isto é insultar-me! E o Sr. Sousa…
SOUSA – Eu digo: no caso de querer…
MARIANA – Estou vendo que nasceste para príncipe… Já te não lembras que teu pai era malsim?
FELISBERTO – Isto foi meu pai; eu não tenho nada com isso.
SOUSA – Pedir para os santos é uma profissão honesta.
MARIANA – Que não desonra a ninguém. Veste-se uma opa, entra-se pelas casas…
FELISBERTO, á parte – Entra-se pelas casas…
MARIANA – … bate-se à escada, e se se demoram a vir saber quem é, assenta-se o homem um momento, descansa…
FELISBERTO, embebido numa idéia, sem ouvir a tia – Entra-se pelas casas…
MARIANA – … vem o moleque ou a rapariga trazer o vintenzinho…
FELISBERTO – Pois bem, tia, quero-lhe fazer o gosto; pedirei hoje esmola; até para ver se o ofício me agrada.
MARIANA – Sempre te conheci muito juízo, sobrinhozinho. O compadre arranja-lhe a opa?
SOUSA – Fica a meu cuidado.
MARIANA – Muito bem. E dê-me licença, que vou acabar de me vestir. (Sai.)
CENA VIII
SOUSA e FELISBERTO; (e depois JORGE.)
FELISBERTO, à parte – Não me lembrava que opa, às vezes, dá entrada até o interior das casas…
SOUSA – Vamos?
FELISBERTO – Quando quiser. (Encaminham para a porta do fundo; Jorge entra e passa por entre eles.)
SOUSA, para Jorge, quando passa – Um seu criado, Sr. Jorge. (Jorge não corresponde o cumprimento e dirige-se para a porta da direita.)
FELISBERTO, voltando-se – Malcriado! (Jorge, que está junto à porta para sair, volta-se.)
JORGE – Hem?
FELISBERTO, chegando-se para ele – Digo-lhe que é um malcriado!
JORGE, com energia – Isso é comigo?
FELISBERTO – É sim.
JORGE, vindo para a frente da cena – Há muito tempo que eu procuro esta ocasião para nos entendermos.
FELISBERTO – Muito estimo. (Arregaça as mangas da casaca.)
SOUSA – Acomodem-se…
JORGE – O senhor tem tomado muitas liberdades em minha casa.
FELISBERTO – Primeiramente, a casa não é sua; e segundo, hei-de tomar as liberdades que bem me parecerem.
SOUSA – Sr. Felisberto!…
JORGE – O senhor entra por aqui e não faz caso de mim?
FELISBERTO – E que figura é o senhor para eu fazer caso?
SOUSA – Sr. Jorge!… (Metendo-se no meio.)
JORGE – Chegue-se para lá; deixe-me, que estou zangado. O senhor fala com minha mulher em segredo, na minha presença…
FELISBERTO – Faço muito bem, porque é minha prima.
JORGE, gritando e batendo com os pés – Mas é minha mulher! E sabe que mais? É por consideração a ela que agora mesmo não lhe esmurro estas ventas. (Sai com passos largos.)
FELISBERTO – Anda cá! (Quer segui-lo; Sousa o retém.)
SOUSA – Aonde vai?
FELISBERTO, rindo-se – Ah, ah, ah! Não sei aonde foi a prima achar este côdea para marido. Tenho-lhe dito muitas vezes que é a vergonha da família.
SOUSA – É um homem sem princípios!
FELISBERTO – Eu regalo-me de não fazer caso nenhum dele… (Ouvem-se gritos dentro.) Ouça, ouça! Não ouve esses gritos? E a tia e a prima que andam com ele às voltas. Ah, ah!
SOUSA – Deixa-lo, e vamos, que se vai fazendo tarde. (Saem ambos, rindo-se.)
CENA IX
Entra JORGE desesperado.
JORGE – Os diabos que as carreguem, corujas do diabo! Assim não vai longe; desanda tudo em muita pancadaria. Ora cebolório! Que culpa tenho eu que o boticário se demorasse em fazer o sinapismo? É bem feito, Sr. Jorge, é bem feito! Quem o mandou ser tolo? Agora agüente… (Gritos dentro.) Grita, grita, canalha, até que arrebentem pelas ilhargas! Triste sorte… Que sogra, que mulher! Ah, diabos! Maldita seja a hora em que eu te dei a minha mão; antes te tivesse dado o pé, e um couce que arrebentasse a ti, a tua mãe e a toda a tua geração passada e por passar. É preciso eu tomar uma resolução. A mana Luísa tem razão; isto é fraqueza. Vou ensinar àquelas víboras! (Diz as últimas palavras caminhando com resolução para a porta; aí aparece Eufrásia e ele recua.)
CENA X
JORGE e EUFRÁSIA.
EUFRÁSIA – Quem é víbora? (Eufrásia caminha para ele, que vai recuando.)
JORGE – Não falo contigo… (Recua.)
EUFRÁSIA, seguindo-o – Quem é víbora?
JORGE, recuando sempre, e encosta-se no bastidor da esquerda –Já disse que não falo contigo!
EUFRÁSIA, junto dele – Então quem é? Sou eu? Fala!
JORGE, querendo mostrar-se forte – Eufrásia!…
EUFRÁSIA – Qual Eufrásia! Sou um raio que te parta!…
JORGE – Retira-te! Olha que te perco o respeito!
EUFRÁSIA, com desprezo – Pedaço de asno!
JORGE – Pedaço de asno? Olha que te… (Faz menção de dar uma bofetada.)
EUFRÁSIA volta para trás, gritando – Minha mãe, minha mãe!
JORGE, seguindo-a – Cala-te, demônio!
EUFRÁSIA, junto à porta – Venha cá!
CENA XI
MARIANA e os mesmos.
MARIANA, entrando com um pano de sinapismo na mão – O que é? O que é?
JORGE, recuando – Agora sim!
EUFRÁSIA – Só Jorge está-me maltratando!
MARIANA – Grandissíssimo sacripante!
JORGE – Sacripante?
EUFRÁSIA – Deu-me uma bofetada!
MARIANA – Uma bofetada na minha filha?
JORGE atravessa por diante de Mariana e chega-se, rancoroso, para Eufrásia – Dei-te uma bofetada, hem?
MARIANA, puxando-o pelo braço – Que atrevimento é esse, grandissíssimo patife?
JORGE, desesperado – Hoje aqui há morte!
EUFRÁSIA – Morte! Queres-me matar?
MARIANA – Ameaças, grandissíssimo traste?
JORGE, para Mariana – Grandississima tartaruga!
MARIANA – Tartaruga! A mim?
EUFRÁSIA, puxando-lhe pelo braço – Insultas a minha mãe?
JORGE, para Eufrásia – Grandissíssima lampreia!
EUFRÁSIA – Que afronta! Ai, ai, que morro… (Vai cair sentada em uma cadeira e finge-se desmaiada.)
JORGE – Morre, arrebenta, que te leve a breca! (Quer sair; Mariana o retém pela opa.)
MARIANA – Tu matas minha filha, patifão, mas eu hei-de arrancar-te os olhos da cara…
JORGE – Largue a opa!
MARIANA – … encher essa cara de bofetões!
JORGE – Largue a opa!
MARIANA – Pensas que minha filha não tem mãe?
JORGE – Largue a opa!
MARIANA – Pensas que eu hei-de aturar a ti, e a lambisgóia da lua irmã?
JORGE, com raiva – Senhora!…
MARIANA – Queres-me matar também, mariola?
JORGE, cerrando os dentes de raiva e metendo a cara diante da de Mariana – Senhora!… Diabo!…
MARIANA – Ah! (Dá-lhe com o pano de sinapismo na cara. JORGE dá um grito de dor, leva as mãos a cara e sai gritando.)
JORGE – Estou cego! Água, água!… (Sai pelo fundo. Mariana desfecha a rir às gargalhadas, e o mesmo faz Eufrásia, que se levanta da cadeira. Conservam-se a rir por alguns instantes, sem poderem falar. Luísa aparece à porta.)
EUFRÁSIA – Que boa lembrança! Ah, ah!
LUÍSA, à parte – O que será?
MARIANA – Que bela receita para maridos desavergonhados! Ah. ah!
EUFRÁSIA – Já não posso rir-me… Ah, ah!
MARIANA – Que cara fez ele (Vendo Luísa:) O que queres?
LUÍSA, tímida – Eu…
MARIANA – Bisbilhoteira! Vai buscar minha mantilha e o leque de tua cunhada! (Luísa sai.)
EUFRÁSIA – Já sei o remédio daqui por diante.
MARIANA – Sinapismo nele.
EUFRÁSIA – Mas não vá ele ficar cego.
MARIANA – Melhor para ti! (Entra Luísa com uma mantilha na mão e um leque, que entrega a Eufrásia.) Dá cá; não podias trazê-la sem machucar? Desazada! (Põe a mantilha sobre a cabeça.) Vamos que vai ficando tarde. Iremos primeiro a S. Francisco, que está aqui pertinho. (Para Luísa:) E tu, fica tomando conta na casa, já que não tens préstimo para nada… Pague o que come; não sou burra de ninguém. Vamos, menina.
CENA XII
LUÍSA e depois TIBÚRCIO.
LUÍSA, só – Não tenho préstimo… Sempre insultos! Sou a criada de todos nesta casa. Vou pedir ao mano que me meta no Convento da Ajuda.
TIBÚRCIO, dentro – Esmola para missas das almas.
LUÍSA – Quem é? (Tibúrcio aparece à porta, vestido de irmão das almas.)
TIBÚRCIO – Esmola para missas das almas.
LUÍSA, sem o reconhecer – Deus o favoreça!
TIBÚRCIO – Amém. (Adianta-se.)
LUÍSA – O senhor o que quer?
TIBÚRCIO – Deus me favorece…
LUÍSA – O senhor Tibúrcio!
TIBÚRCIO – Ele mesmo, que morria longe de ti.
LUÍSA – Vá-se embora!
TIBÚRCIO – Cruel, que te fiz eu?
LUÍSA – Não fez nada, mas vá-se embora.
TIBÚRCIO – Há oito dias que te não vejo. Tenho tanto que te dizer… Oito dias e oito noutes levei a passar pela tua porta, e tu não me aparecias; até que tomei a resolução de vestir esta opa para poder entrar aqui sem causar desconfiança. Seremos felizes; nossa sorte mudou. (Põe a bacia sobre a mesa.)
LUÍSA – Mudou?
TIBÚRCIO – Bem sabes que há muito tempo que ando atrás de um lugar de guarda da Alfândega, e que não tenho podido alcançar; mas agora já não preciso.
LUÍSA – Não precisa?
TIBÚRCIO – Comprei uma cautela de vigésimo, na “Casa da Fama”, do Largo de Santa Rita, e saiu-me um conto de réis.
LUÍSA – Ah!
TIBÚRCIO – Vou abrir um armarinho. Agora posso pedir-te a teu irmão.
LUÍSA – Não, não, não pode ser!
TIBÚRCIO – Não queres ser minha mulher? Terás mudado? Ingrata!
LUÍSA – Não posso, não posso! Meu Deus!
TIBÚRCIO – Ah, já sei, amas a outro. Pois bem; casa-te com ele. Quem o diria?
LUÍSA, chorando – Escuta-me…
TIBÚRCIO – Não tenho que escutar. Vou-me embora, vou-me meter em uma das barcas de vapor da Praia Grande, até que ela arrebente. (Falsa saída.)
LUÍSA – Quanto sou infeliz!
TIBÚRCIO, voltando – Ainda me amas?
LUÍSA – Ainda.
TIBÚRCIO – Então por que não queres casar comigo?
LUÍSA – Oh, acredita-me, é que eu não devo…
TIBÚRCIO – Não deves? Pois adeus, vou para o Rio Grande. (Falsa saída.)
LUÍSA – Isto é um tormento que eu sofro!
TIBÚRCIO, voltando – Então, queres que eu vá para o Rio Grande?
LUÍSA – Bem sabes quanto eu te amava, Tibúrcio; tenho disto te dado provas bastantes, e se…
TIBÚRCIO – Pois dá-me a única que te peço: casa-te comigo. Ah, não respondes? Adeus, vou para Montevidéu. (Sai pelo fundo.)
LUÍSA, só – Nasci para ser desgraçada! Eu seria tão feliz com ele: mas é pedreiro-livre… Foi bom que ele se fosse embora. Eu não poderia resistir…
TIBÚRCIO, aparecendo à porta – Então, queres que eu vá para Montevidéu?
LUÍSA – Meu Deus!
TIBÚRCIO, caminhando para frente – Antes que eu parta desta terra ingrata; antes que eu vá afrontar esses mares, um só favor te peço, em nome de nosso antigo amor. Dize-me, por que não queres casar comigo? Disseram-te que eu era aleijado, que tinha algum defeito oculto? Se foi isso, é mentira.
LUÍSA – Nada disso me disseram.
TIBÚRCIO – Então por que é?
LUÍSA – É porque… (Hesita.)
TIBÚRCIO – Acaba, dize…
LUÍSA – Porque és… pedreiro-livre. (Benze-se.)
TIBÚRCIO – Ah, ah, ah! (Rindo-se às gargalhadas.)
LUÍSA – E ri-se?
TIBÚRCIO – Pois não me hei-de rir? Meu amor, isto são caraminholas que te meteram na cabeça.
LUÍSA – Eu bem sei o que é. Falas com o diabo à meia-noite: matas as crianças para lhes beber o sangue; entregaste tua alma ao diabo; freqüentas as…
TIBÚRCIO, interrompendo-a – Ta, ta, ta! O que ai vai de asneiras! Não sejas pateta; não acredites nestas baboseiras.
LUÍSA – Baboseiras, sim!
TIBÚRCIO – Um pedreiro-livre, minha Luísa, é um homem como outro qualquer; nunca comeu crianças nem falou com o diabo à meia-noite.
LUÍSA – Visto isso, não é verdade o que te digo?
TIBÚRCIO – Qual! São carapetões que te meteram nos miolos para talvez te indisporem comigo. A maçonaria é uma instituição…
LUÍSA – Dá-me a sua palavra de honra que nunca falou com o diabo?
TIBÚRCIO – Juro-te que é sujeitinho com quem nunca me encontrei.
LUÍSA – Hoje ouviu missa?
TIBÚRCIO – Nem menos de três.
LUÍSA – Ah, que peso me tiraste do coração!
TIBÚRCIO – Consentes que eu fale a teu mano?
LUÍSA, vergonhosa – Não sei…
TIBÚRCIO, beijando-lhe a mão – Malditos tagarelas, que iam-me fazendo perder este torrão de açúcar! Minha Luísa, nós seremos muito felizes, e eu te…
MARIANA, dentro – Devagar, devagar, que não posso.
LUÍSA, assustada – É D. Mariana!
TIBÚRCIO – Vou-me embora!
LUÍSA – Não, não, que o podem encontrar no corredor! Minha cunhada o conhece… Esconda-se até que elas entrem, e depois saia!
TIBÚRCIO – Mas aonde?
LUÍSA – Neste armário. (Tíbúrcio esconde-se no armário, deixando bacia sobre a mesa.)
CENA XIII
Entra MARIANA, apoiada nos braços de EUFRÁSIA e de SOUSA.
Mariana – Ai, quase morri… Tira-me esta mantilha. (Luísa tira-lhe a mantilha.) Ai! (Senta-se.) Muito obrigada, compadre.
SOUSA – Não há de quê, comadre.
EUFRÁSIA – Acha-se melhor, minha mãe?
MARIANA – Um pouco. Se o compadre não estivesse lá à porta da igreja para tirar-me do aperto, eu morria, certamente.
SOUSA – Aquilo é um desaforo!
MARIANA – é assim, é. Ajuntam-se esses brejeiros nos corredores das catacumbas para apertarem as velhas e darem beliscões nas moças.
SOUSA – E nos rasgarem as opas e darem caçoletas.
EUFRÁSIA – É uma indecência!
MARIANA – Espremeram-me de tal modo, que ia botando a alma pela boca a fora.
EUFRÁSIA – E a mim deram um beliscão, que quase arrancaram carne.
MARIANA – É insuportável!
SOUSA – Principalmente, comadre, em S. Francisco de Paula.
MARIANA – Estão horas inteiras num vaivém, só para fazerem patifarias.
EUFRÁSIA – A policia não vê isso?
MARIANA – Ai, estou que não posso. Compadre, dê-me licença, que vou-me deitar um pouco.
SOUSA – Essa é boa, comadre!
MARIANA levanta-se – Já arranjou a opa para meu sobrinho?
SOUSA – A esta hora já está tirando esmolas.
MARIANA – Muito obrigada, compadre. Não se vá embora, jante hoje conosco.
SOUSA – A comadre manda, não pede.
MARIANA – Até já; descanse. (Saem Mariana, Eufrásia e Luísa.)
CENA XIV
SOUSA e depois FELISBERTO.
SOUSA, só – Estou estafado! (Senta-se.) A pobre da comadre, se não sou eu, morre; já estava vermelha como um camarão. (Ouvem-se dentro gritos de pega ladrão!) O que será? (Levanta-se; os gritos continuam.) E pega ladrão! (Vai para a porta do fundo; nesse instante entra Felisberto, que virá de opa e bacia, precipitadamente. Esbarra-se com Sousa e salta-lhe o dinheiro da bacia no chão.)
FELISBERTO – Salve-me, salve-me, colega! (Trazendo-o para frente da cena.)
SOUSA – O que é isto, homem? Explique-se!
FELISBERTO, tirando um relógio da algibeira – Tome este relógio. guarde-o. (Sousa toma o relógio maquinalmente.)
SOUSA – Que relógio é esse?
FELISBERTO – O povo aí vem atrás de mim, gritando: Pega ladrão! – mas creio que o logrei.
SOUSA – E o senhor roubou este relógio?
FELISBERTO – Não senhor! Entrei em uma casa para pedir esmola, e quando saí, achei-me com este relógio na mão, sem saber como… (Vozearia dentro.) Aí vêm eles! (Corre e esconde-se no armário.)
SOUSA, com o relógio na mão – E me meteu em boas, deixando-me com o relógio na mão! Se assim me pilham estou perdido. (Põe o relógio sobre a mesa.) Antes que aqui me encontrem, safo-me. (Vai a sair; ao chegará porta, pára para ouvir a voz de Jorge.)
JORGE, dentro – Isto é um insulto! Não sou ladrão! Em minha casa não entrou ladrão nenhum!
SOUSA, voltando – Aí vêm!… E este relógio que me acusa… Pelo menos prendem-me como cúmplice. (Corre e esconde-se no armário.)
CENA XV
Entra JORGE.
JORGE – Não se dá maior pouca vergonha… Julgarem que eu era ladrão! Creio que algum tratante aproveita-se da opa para entrar com liberdade nas casas e surripiar alguma cousa, e os mais que andam de opa, que paguem!… Eu, roubar relógio!… Pois olhem, precisava bem de um. (Vê o relógio sobre a mesa.) Um relógio! Que diabo! (Pegando no relógio:) De quem será? Será roubado? Quatro bacias com esmolas! E então! E então tenho três homens dentro de casa? Oh, com os diabos! E todos três irmãos das almas… E ladrões ainda em cima! Vou saber como é isto. Mas, não; se eu perguntar, não me dizem nada. (Aqui aparece à porta da direita Eufrásia, sem que ele a veja.) É melhor que eu veja com meus próprios olhos. Vou esconder-me no armário e de lá espreitarei. (Vai para o armário; Eufrásia o segue pé ante pé. Logo que entra no armário, ela dá um pulo e fecha o armário com a chave.)
EUFRÁSIA – Está preso! Minha mãe, venha ver o canário! (Sai.)
CENA XVI
Ouve-se dentro do armário uma questão de palavras, gritos e pancadas nas portas; isto dura por alguns instantes. Entram Mariana e Eufrásia.
EUFRÁSIA – Está ali, minha mãe, eu o prendi!
MARIANA – Fizeste muito bem. (Chega-se para o armário.)
EUFRÁSIA – Como grita! Que bulha faz!
MARIANA – Aqui há mais de uma pessoa…
EUFRÁSIA – Não senhora. (Os gritos dentro redobram e ouve-se muitas vezes a palavra – ladrão! – pronunciada por Jorge.)
MARIANA – São ladrões! (Ambas gritam pela sala de um lado para outro.) Ladrões, ladrões, ladrões! (Luísa aparece à porta.)
LUÍSA, entrando – O que é isto?
EUFRÁSIA – Ladrões em casa! As três, correndo pela sala – Ladrões, ladrões! Quem nos acode? Ladrões!
CENA XVII
Entra uma patrulha de quatro permanentes e um cabo. Virão de fardeta branca, cinturão e pistolas.
CABO, entrando – Que gritos são esses?
MARIANA – Temos ladrões em casa!
CABO – Aonde estão?
EUFRÁSIA – Ali no armário!
LUÍSA, à parte – No armário! Que fiz eu? Está perdido… (O cabo dirige-se para o armário com os soldados. MARIANA, Eufrásia e Luísa encostam-se para a esquerda, junto à porta.)
CABO, junto ao armário – Quem está ai?
JORGE, dentro – Abra, com todos os diabos!
CABO – Sentido, camaradas! (O cabo abre a parta do armário; por ela sai Jorge, e torna a fechar a porta com presteza. O cabo agarra-lhe na gola da casaca.) Está preso.
JORGE, depois de ter fechado o armário – Que diabo é isto?
CABO – Nada de resistência.
JORGE – O ladrão não sou eu.
EUFRÁSIA, do lugar onde está – Senhor permanente, este é meu marido.
JORGE – Sim senhor. Eu tenho a honra de ser o marido da senhora.
EUFRÁSIA – Fui eu que o fechei no armário, e por isso é que se deu com os ladrões que ainda estão lá dentro.
JORGE – Sim senhor, a senhora fez-me o favor de me fechar aqui dentro, e por isso é que se deu com os ladrões… que aqui estão ainda…
CABO – Pois abra. (O cabo diz estas palavras a Jorge porque ele conserva-se, enquanto fala, com as costas apoiado no armário. Jorge abre a porta, sai Sousa; o cabo segura em Sousa. Jorge torna fechar o armário e encosta-se. Sousa e o cabo que o segura caminham um pouco para a frente.)
JORGE – Este que é o ladrão.
SOUSA – Não sou ladrão. Deixe-me!
MARIANA – O compadre!
SOUSA – Comadre… (Mariana chega-se para ele.)
JORGE – Segure-o bem, senão foge.
SOUSA – Fale por mim, comadre. Diga ao senhor que eu não sou ladrão.
JORGE – é ele mesmo, e outro que aqui está dentro.
CABO – Vamos.
SOUSA – Espere.
MARIANA – Como é que você, compadre, estava ali dentro?
SOUSA – Por causa de um maldito relógio que…
JORGE – Vê? Esta confessando que roubou o relógio. Ali está sobre a mesa.
CABO – Siga-me.
SOUSA – Espere!
MARIANA – Um momento.
CABO – Senão vai à força. Camaradas!
JORGE – Duro com ele! (Chegam-se dous soldados e agarram em Sousa.)
CABO – Levem este homem para o quartel.
SOUSA, debatendo-se – Deixem-me falar…
CABO – Lã falará. (Os soldados levam Sousa à força.)
SOUSA – Comadre! Comadre!
JORGE – Sim, sim; lá falará! Patife, ladrão!
MARIANA – Estou confusa!
JORGE – Vamos aos outros que cá estão.
EUFRÁSIA – Não explico isto! (Jorge abre a porta do armário; sai por ela, com impetuosidade, Felisberto. Atira com Jorge no chão e foge pela porta do fundo. O cabo e os dois soldados correm em seu alcance.)
CABO – Pega, pega! (Sai, assim como os soldados. Jorge levanta-se) Jorge – Pega ladrão! Pega ladrão! (Sai atrás, correndo.)
CENA XVIII
MARIANA, EUFRÁSIA e LUÍSA.
MARIANA – É meu sobrinho!
EUFRÁSIA – É o primo!
LUÍSA, à parte – Terá ele saído?
MARIANA – Não sei como foi isto.
EUFRÁSIA – Nem eu.
MARIANA – Deixei o compadre aqui sentado.
EUFRÁSIA – O primo estava pedindo esmolas.
MARIANA – Isto foi traição do patife do meu genro.
EUFRÁSIA – Não pode ser outra coisa.
MARIANA – Mas deixe-o voltar…
EUFRÁSIA – Eu lhe ensinarei… (Durante este pequeno diálogo, Luísa, que está um pouco mais para o fundo, vê Tibúrcio, que da porta do armário lhe faz acenos.)
MARIANA – O que estás tu a fazer acenos? Vem cá. (Pega-lhe pelo braço.) Viste o que fez o belo do teu irmão? Como ele não está aqui, tu é que me hás-de pagar.
LUÍSA – Eu? E por quê?
MARIANA – Ainda pergunta por quê? Não viste como ele fez prender a meu compadre e a meu sobrinho? Isto são cousas arranjadas por ele e por ti.
LUÍSA – Por mim?
EUFRÁSIA – Sim, por ti mesma.
LUÍSA – Oh!
MARIANA – Faze-te de nova! Não bastava aturar eu o desavergonhado do irmão; hei-de também sofrer as poucas vergonhas desta deslambida. (Luísa chora. Aqui aparece à porta do fundo Jorge; vendo o que se passa, pára em observação.) Hoje mesmo não me dorme em casa. Não quero. Vai ajuntar a tua roupa, e rua! (Tibúrcio sai do armário e encaminha-se para elas.)
TIBÚRCIO – Não ficará desamparada. (Mariana e Eufrásia assustam-se.)
LUÍSA – Que fazes?
TIBÚRCIO – Vem, Luísa.
MARIANA – Quem é o senhor?
TIBÚRCIO, para Luísa – Vamos procurar teu irmão.
LUÍSA – Espera. (Eufrásia observa com atenção a Tibúrcio.)
MARIANA – Isto está galante. Muito bem! Com que a menina tem os amantéticos escondidos. Está adiantada…
TIBÚRCIO – Senhora, mais respeito!
MARIANA – Olá!
LUÍSA – Tibúrcio!…
EUFRÁSIA – Tibúrcio! É ele mesmo! Fuja, minha mãe!… (Recua.)
MARIANA – O que é?
EUFRÁSIA – Fuja, que é um pedreiro-livre! (Deita a correr para dentro.)
MARIANA, aterrorizada – Santa Barbara, São Jerônimo, acudam-me! (Sai correndo.)
TIBÚRCIO, admirado – E esta!…
CENA XIX
JORGE, que da porta tem observado tudo, logo que MARIANA sai, corre e abraça-se com TIBÚRCIO.
JORGE – Meu Salvador! Meu libertador!
TIBÚRCIO – O que é lá isso? Temos outra?
JORGE – Homem incomparável!
LUÍSA – Mano!
TIBÚRCIO – O senhor está doudo?
JORGE, abraçando-se com os pés de Tibúrcio – Deixe-me beijar seus pés, vigésima maravilha do mundo!
TIBÚRCIO – Levante-se, homem!
LUÍSA – O que é isto, Jorge?
JORGE, de joelhos – E adorar-te como o maior descobridor dos tempos modernos.
TIBÚRCIO – Não há dúvida, está doudo!
LUÍSA – Doudo? Faltava-me esta desgraça!
JORGE levanta-se – Pedro Alves Cabral quando descobriu a Índia, Camões quando descobriu o Brasil, não foram mais felizes do que eu sou por ter descoberto o meio de meter medo a minha sogra e a minha mulher. E a quem devo eu esta felicidade? A ti, homem sublime.
TIBÚRCIO – E é só por isso?
JORGE – Acha pouco? Sabe o que é uma sogra e uma mulher? O senhor gosta da mana?
TIBÚRCIO – Fazia tenção de o procurar hoje mesmo, para falar-lhe a este respeito.
JORGE – Quer casar-se com ela?
LUÍSA – Jorge!
TIBÚRCIO – Seria minha maior ventura.
JORGE – Pois bem, pratique com minha sogra o que eu praticar com minha mulher.
TIBÚRCIO – Como é lá isso?
LUÍSA – Que loucura!
JORGE – Quer-se casar? É decidir, e depressa.
TIBÚRCIO – Homem, se a cousa não é impossível…
JORGE – Qual impossível! Minha sogra é uma velha.
TIBÚRCIO – Por isso mesmo.
JORGE – Luísa, vai chamá-las. Dize-lhes que estou só e que preciso muito falar-lhes. E tu não apareças enquanto elas cá estiverem. Anda! (Luísa sai.)
CENA XX
JORGE e TIBÚRCIO.
TIBÚRCIO – O que quer fazer?
JORGE – Saberá. Esconda-se outra vez no armário, e quando eu bater com o pé e gritar: Satanás!, salte para fora, agarre-se a minha sogra e faça quanto eu fizer.
TIBÚRCIO – Aqui mesmo nesta saía?
JORGE – Sim, sim. E avie-se, que elas não tardam.
TIBÚRCIO – Vá feito! Como é para ao depois casar-me… (Esconde-se no armário.)
JORGE, á parte – Toleirão! Casa-te e depois dá-me novas. (Senta-se.) Hoje é dia de felicidades para mim. Achei um marido para a mana; dei com os dous tratantes no xilindró, e para coroar a obra vim a descobrir o meio de me fazer respeitar nesta casa. Ainda bem que eu tinha meus receios de encontrar-me com elas… Hão-de estar danadas.
CENA XXI
MARIANA e EUFRÁSIA aparecem à porta e, receosas, espreitam para a cena.
JORGE – Podem entrar.
MARIANA, adiantando-se – Podem entrar? A casa é tua?
EUFRÁSIA – De hoje em diante hás-de tu e a desavergonhada da tua irmã porem os quartos na rua.
JORGE – Veremos…
MARIANA – Que desaforo é esse? Ai, que arrebento!
JORGE levanta-se e coloca-se entre as duas – Até aqui tenho vivido nesta casa como um cão…
EUFRÁSIA – Assim o merecias.
MARIANA – E ainda mais.
JORGE – Mas como tudo neste mundo tem fim, o meu tratamento de cão também o terá.
MARIANA – Agora também digo eu – veremos!
JORGE – Até agora não tenho sido homem, mas era preciso sê-lo. E o que havia eu de fazer para ser homem. (Com exaltação:) Entrar nessa sociedade portentosa, universal e sesquipedal, aonde se aprendem os verdadeiros direitos do homem. (Faz momices e sinais extravagantes com as mãos.)
EUFRÁSIA – O que quer isto dizer?
MARIANA – Ai, o que está ele a fazer?
JORGE – Estes são os sinais da ordem. (Faz os sinais.)
MARIANA – Está doudo!
JORGE, segurando-as pelos punhos – A senhora tem feito de mim seu gato-sapato; e a senhora, seu moleque; mas isto acabou-se! (Levanta os braços das duas, que dão um grito.) Acabou-se! Sou pedreiro-livre! Satanás!
MARIANA – Misericórdia!
EUFRÁSIA – Jesus! (Tibúrcio salta do armário. Jorge deixa o braço de Mariana e, segurando em ambos os de Eufrásia, gira com ela pela sala, gritando: Sou pedreiro-livre! O diabo é meu compadre! Tibúrcio faz com Mariana tudo quanto vê Jorge fazer. As duas gritam aterrorizadas. Jorge larga a Eufrásia, que corre para dentro. Tibúrcio, que nessa ocasião está do lado esquerdo da cena, larga também a Mariana, que atravessa a cena para acompanhar Eufrásia; encontra-se no caminho com Jorge, que faz-lhe uma careta e a obriga a fazer um rodeio para sair. Os dous desatam a rir.)
JORGE – Bem diz o ditado, que ri-se com gosto quem se ri por último. Luísa? Luísa? (Para Tibúrcio:) Um abraço. Que achado!
CENA XXII
Entra LUÍSA.
JORGE – Vem cá. (Conduzindo-a para Tibúrcio:) Eis aqui a paga do serviço que acaba de fazer-me. Sejam felizes se o puderem, que eu de hoje em diante, se não for feliz, hei-de ao menos ser senhor em minha casa. (Aqui entram correndo Mariana e Eufrásia, como querendo fugirem de casa. Mariana trará a mantilha na cabeça e uma trouxa de roupa debaixo do braço; o mesmo trará Eufrásia. JORGE, vendo-as:) Pega nelas! (Jorge diz estas palavras logo que as vê. Corre de encontro a elas e fica por conseguinte junto à porta que dá para o interior, quando elas )á estão quase junto à porta da rua. Aparece da porta um irmão das almas.)
IRMÃO – Esmola para missas das almas! (As duas quase que se esbarram, na carreira que levam, contra o irmão. Dão um grito e voltam correndo para saírem por onde entraram, mas aí encontrando Jorge, que lhes fecha a saída, atravessam a cena e, esbarrando-se do outro lado com Tibúrcio, largam as trouxas no chão e caem de joelhos a tremer.)
EUFRÁSIA – Estamos cercadas!
MARIANA – Meus senhorezinhos, não nos levem para o inferno!
JORGE – Descansem, que para lá irão sem que ninguém as leve…
AMBAS – Piedade! Piedade!
JORGE – Bravo! Sou senhor em minha casa! E eu que pensava que era mais difícil governar mulheres! (Mariana e Eufrásia conservam-se de joelhos, no meio de Jorge, Tibúrcio e Luísa, que riem-se às gargalhadas até abaixar o pano.)
IRMÃO, enquanto eles riem e desce o pano – Esmola para missas das almas! (Cai o pano.)
FIM
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