Poesias – Manoel de Barros

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Manoel de Barros

A Namorada

Havia um muro alto entre nossas casas.
Difícil de mandar recado para ela.
Não havia e-mail.
O pai era uma onça.
A gente amarrava o bilhete numa pedra presa por
um cordão
E pinchava a pedra no quintal da casa dela.
Se a namorada respondesse pela mesma pedra
Era uma glória!
Mas por vezes o bilhete enganchava nos galhos da goiabeira
E então era agonia.
No tempo do onça era assim.

Auto-Retrato Falado

Venho de um Cuiabá de garimpos e de ruelas entortadas.

Meu pai teve uma venda no Beco da Marinha, onde nasci.

Me criei no Pantanal de Corumbá entre bichos do chão,

aves, pessoas humildes, árvores e rios.

Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar

entre pedras e lagartos.

Já publiquei 10 livros de poesia: ao publicá-los me sinto

meio desonrado e fujo para o Pantanal onde sou

abençoado a garças.

Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo que

fui salvo.

Não estou na sarjeta porque herdei uma fazenda de gado.

Os bois me recriam.

Agora eu sou tão ocaso!

Estou na categoria de sofrer do moral porque só faço

coisas inúteis.

No meu morrer tem uma dor de árvore.

Diário de Bugrinha (Excertos)

1925

22.1

O nome de um passarinho que vive no cisco é joão­ninguém.
Ele parece com Bernardo.

23.2

Lagartixas têm odor verde.

2.3

Formiga é um ser tão pequeno que não agüenta nem
neblina. Bernardo me ensinou: Para infantilizar formigas é só
pingar um pouquinho de água no coração delas. Achei fácil.

23.2

Quem ama exerce Deus — a mãe disse. Uma açucena me ama.
Uma açucena exerce Deus?

2.3

Eu queria crescer pra passarinho…

5.3

A voz de meu avô arfa. Estava com um livro debaixo dos olhos. Vô!
o livro está de cabeça pra baixo. Estou deslendo.

5.6

O frio se encolheu nos passarinhos. Ó noite congelada de jacintos!
Eu estou transida de pétalas.

7.8

O pai trouxe do campo um filhote de urubu. Ele é branco e já
fede.

12.8

As garças descem nos brejos que nem brisas. Todas as manhãs.

10.9

Um sapo feneceu 3 borboletas de uma vez atrás de casa. Ele fazia uma
estultícia?

13.9

A mãe bateu no Mano Preto. Falou que eu não apanhava porque
não dei motivo. Subi no pico do telhado para dar motivo. Aqui de cima
do telhado a lua prateava. A mãe disse que aquilo não era motivo.

19.9

Uma égua iniciava meu irmão. O pai ralhou com ele. Meu irmão
foi entrando para inseto até desaparecer. Ficou dentro do mato até
amanhã.

1.1

O Bernardo fala com pedra, fala com nada, fala com árvore. As plantas
querem o corpo dele para crescer por sobre. Passarinho já faz poleiro
na sua cabeça.

2.2

A mãe disse que Bernardo é bocó. Uma pessoa sem pensa.

5.2

Sem chuvas, já reparei, as andorinhas perdem o poder de voar livres.

29.2

Hoje o Lara morreu picado de cobra. Fizeram seu caixão de costaneiras.
Meu avô encostou no caixão. Ué, eu que morri e quem está
no caixão é o Lara! Meu avô enxergava mal.

2.1.1926

Catre-Velho é um ser confortável para moscas. Ele nem espanta
algumas.

12.1

Choveu de noite até encostar em mim. O rio deve estar mais gordo.
Escutei um perfume de sol nas águas.

1.3

As árvores me começam.

1.4

Uma violeta me pensou. Me encostei no azul de sua tarde.

10.4

Os patos prolongam meu olhar… Quando passam levando a tarde para longe
eu acompanho…

21.4

Pensar que a gente cessa é íngreme. Minha alegria ficou sem
voz.

22.4

Hoje completei 10 anos. Fabriquei um brinquedo com palavras. Minha mãe
gostou. É assim:

De noite o silêncio estica os lírios.

Mundo Pequeno

I

O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.

II

Conheço de palma os dementes de rio.
Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzama
e de Rogaciano.
Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar
no horizonte.
Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas ruas
de Corumbá.
Me disse que as coisas que não existem são mais
bonitas.

IV

Caçador, nos barrancos, de rãs entardecidas,
Sombra-Boa entardece. Caminha sobre estratos
de um mar extinto. Caminha sobre as conchas
dos caracóis da terra. Certa vez encontrou uma
voz sem boca. Era uma voz pequena e azul. Não
tinha boca mesmo. “Sonora voz de uma concha”,
ele disse. Sombra-Boa ainda ouve nestes lugares
conversamentos de gaivotas. E passam navios
caranguejeiros por ele, carregados de lodo.
Sombra-Boa tem hora que entra em pura
decomposição lírica: “Aromas de tomilhos dementam
cigarras.” Conversava em Guató, em Português, e em
Pássaro.
Me disse em Iíngua-pássaro: “Anhumas premunem
mulheres grávidas, 3 dias antes do inturgescer”.
Sombra-Boa ainda fala de suas descobertas:
“Borboletas de franjas amarelas são fascinadas
por dejectos.” Foi sempre um ente abençoado a
garças. Nascera engrandecido de nadezas.

VI

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
– Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre
me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por
nadas…
E se riu.
Você não é de bugre? – ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas –
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns
maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
gramática.

VI

Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das
lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou
de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.

Nos Primórdios

Era só água e sol de primeiro este recanto. Meninos cangavam
sapos. Brincavam de primo com prima. Tordo ensinava o brinquedo “primo
com prima não faz mal: finca finca”. Não havia instrumento
musical. Os homens tocavam gado. As coisas ainda inominadas. Como no começo
dos tempos.

Logo se fez a piranha. Em seguida os domingos e feriados. Depois os cuiabanos
e os beira-corgos. Por fim o cavalo e o anta batizado.

Nem precisaram dizer crescei e multiplicai. Pois já se faziam filhos
e piadas com muita animosidade.

Conhecimentos vinham por infusão pelo faro dos bugres pelos mascates.

O homem havia sido posto ali nos inícios para campear e hortar. Porém
só pensava em lombo de cavalo. De forma que só campeava e não
hortava.

Daí que campear se fez de preferência por ser atividade livre
e andeja. Enquanto que hortar prendia o ente no cabo da enxada. O que não
era bom.

No começo contudo enxada teve seu lugar. Prestava para o peão
encostar-se nela a fim de prover seu cigarrinho de palha. Depois, com o desaparecimento
do cigarro de palha, constatou-se a inutilidade das enxadas.

— O homem tinha mais o que não fazer!

Foi muito soberano mesmo no começo dos tempos este cortado. Burro
não entrava em seus pastos. Só porque burro não pega
perto.* Porém já hoje há quem trate os burros como cavalo.
O que é uma distinção.

*Burro não pega perto é expressão pantaneira. Nas lides
de campear o pantaneiro usa o cavalo, que é veloz e alcança
a rês desgarrada rapidamente. O cavalo pega perto. Mas o burro, não
sendo veloz, alcança longe a rês desgarrada. Por isso se diz
que o burro não pega perto. (N. do A.)

O Catador

Poesias - Manoel de Barros

Um homem catava pregos no chão.

Sempre os encontrava deitados de comprido, ou de lado, ou de joelhos no
chão.

Nunca de ponta.

Assim eles não furam mais – o homem pensava.

Eles não exercem mais a função de pregar.

São patrimônios inúteis da humanidade.

Ganharam o privilégio do abandono.

O homem passava o dia inteiro nessa função de catar pregos
enferrujados.

Acho que essa tarefa lhe dava algum estado.

Estado de pessoas que se enfeitam a trapos.

Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser.

Garante a soberania de Ser mais do que Ter.

O Guardador de Águas

I

O aparelho de ser inútil estava jogado no chão, quase
coberto de limos –
Entram coaxos por ele dentro.
Crescem jacintos sobre palavras.
(O rio funciona atrás de um jacinto.)
Correm águas agradecidas sobre latas…
O som do novilúnio sobre as latas será plano.
E o cheiro azul do escaravelho, tátil.
De pulo em pulo um ente abeira as pedras.
Tem um cago de ave no chapéu.
Seria um idiota de estrada?
Urubus se ajoelham pra ele.
Luar tem gula de seus trapos.

II

Esse é Bernardo. Bernardo da Mata. Apresento.
Ele faz encurtamento de águas.
Apanha um pouco de rio com as mãos e espreme nos vidros
Até que as águas se ajoelhem
Do tamanho de uma lagarta nos vidros.

No falar com as águas rás o
exercitam.
Tentou encolher o horizonte
No olho de um inseto – e obteve!
Prende o silêncio com fivela.
Até os caranguejos querem ele para chão.
Viu as formigas carreando na estrada 2 pernas de ocaso
para dentro de um oco… E deixou.
Essas formigas pensavam em seu olho.
É homem percorrido de existências.
Estão favoráveis a ele os camaleões.
Espraiado na tarde –
Como a foz de um rio – Bernardo se inventa…
Lugarejos cobertos de limo o imitam.
Passarinhos aveludam seus cantos quando o vêem.

V

Eles enverdam jia nas auroras.
São viventes de ermo. Sujeitos
Que magnificam moscas – e que oram
Devante uma procissão de formigas…
São vezeiros de brenhas e gravanhas.
São donos de nadifúndios.
(Nadifúndio é lugar em que nadas
Lugar em que osso de ovo
E em que latas com vermes emprenhados na boca.
Porém.
O nada destes nadifúndios não alude ao infinito menor
de ninguém.
Nem ao Néant de Sartre.
E nem mesmo ao que dizem os dicionários:

coisa que não existe.
O nada destes nadifúndios existe e se escreve com letra
minúscula.)
Se trata de um trastal.
Aqui pardais descascam larvas.
Vê-se um relógio com o tempo enferrujado dentro.
E uma concha com olho de osso que chora.
Aqui, o luar desova…
Insetos umedecem couros
E sapos batem palmas compridas…
Aqui, as palavras se esgarçam de lodo.

VIII

Idiotas de estradas gostam de urinar em morrinhos de
formigas. Apreciam de ver as formigas correndo de
um canto para o outro, maluquinhas, sem calças, como
crianças. Dizem eles que estão infantilizando as
formigas. Pode ser.

XX

Com 100 anos de escória uma lata aprende a rezar.
Com 100 anos de escombros um sapo vira árvore e cresce
por cima das pedras até dar leite.
Insetos levam mais de 100 anos para uma folha sê-los.
Uma pedra de arroio leva mais de 100 anos para ter murmúrios.
Em seixal de cor seca estrelas pousam despidas.
Mariposas que pousam em osso de porco preferem melhor
as cores tortas.
Com menos de 3 meses mosquitos completam a sua
eternidade.
Um ente enfermo de árvore, com menos de 100 anos, perde
o contorno das folhas.
Aranha com olho de estame no lodo se despedra.
Quando chove nos braços da formiga o horizonte diminui.
Os cardos que vivem nos pedrouços têm a mesma sintaxe
que os escorpiões de areia.
A jia, quando chove, tinge de azul o seu coaxo.
Lagartos empernam as pedras de preferência no inverno.
O vôo do jaburu é mais encorpado do que o vôo das horas.
Besouro só entra em amavios se encontra a fêmea dele
vagando por escórias…
A 15 metros do arco-íris o sol é cheiroso.
Caracóis não aplicam saliva em vidros; mas, nos brejos,
se embutem até o latejo.
Nas brisas vem sempre um silêncio de garças.
Mais alto que o escuro é o rumor dos peixes.
Uma árvore bem gorjeada, com poucos segundos, passa a
fazer parte dos pássaros que a gorjeiam.
Quando a rã de cor palha está para ter – ela espicha os
olhinhos para Deus.
De cada 20 calangos, enlanguescidos por estrelas, 15 perdem
o rumo das grotas.
Todas estas informações têm uma soberba desimportância
científica – como andar de costas.

O Livro Sobre Nada

Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.

Tudo que não invento é falso.

Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só
a poesia é verdadeira.

Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique
desamparada do ser que a revelou.

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.

Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas se
não desejo contar nada, faço poesia.

Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário.

A inércia é o meu ato principal.

Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece
que são inventadas.

O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.

A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que
ela expresse nossos mais fundos desejos.

Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.

Por pudor sou impuro.

Não preciso do fim para chegar.

De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo de
coisa esquecida na terra — Como um lápis numa península.

Do lugar onde estou já fui embora.

Retrato Quase Apagado em que Se Pode Ver Nada

I

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
– Imagens são palavras que nos faltaram.
– Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
– Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos,
retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

II

Todos os caminhos – nenhum caminho
Muitos caminhos – nenhum caminho
Nenhum caminho – a maldição dos poetas.

III

Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.

Baratas passeiam nas formas de bolo…

A casa tem um dono em letras.

Agora ele está pensando –

no silêncio Iíquido
com que as águas escurecem as pedras…

Um tordo avisou que é março.

IV

Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.
Ela pode ser o germe de uma apagada existência.
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao
fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.
Andei nas pedras negras de Alfama.
Errante e preso por uma fonte recôndita.
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!

V

Escrever nem uma coisa Nem outra –
A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar –
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

VI

No que o homem se torne coisal,
corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.

VII

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.

VII

Nas Metamorfoses, em 240 fábulas,
Ovídio mostra seres humanos transformados
em pedras vegetais bichos coisas
Um novo estágio seria que os entes já transformados
falassem um dialeto coisal, larval,
pedral, etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural

– Que os poetas aprenderiam –
desde que voltassem às crianças que foram
às rãs que foram
às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de
reaprender a errar
a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma
nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.

IX

Eu sou o medo da lucidez
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.
Peguei umas idéias com as mãos – como a peixes.
Nem era muito que eu me arrumasse por versos.
Aquele arame do horizonte
Que separava o morro do céu estava rubro.
Um rengo estacionou entre duas frases.
Uma descor
Quase uma ilação do branco.
Tinha um palor atormentado a hora.
O pato dejetava liquidamente ali.

Uma Didática da Invenção

I

Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:

a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) 0 modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm
devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem
salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um
rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g)
Qual o lado da noite que umedece primeiro.
Etc.
etc.
etc.

Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

IV

No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para
Dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras

IX

Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz.

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

IX

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta
que o rio faz por trás de sua casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

Seis ou Treze Coisas que Aprendi Sozinho

1

Gravata de urubu não tem cor.
Fincando na sombra um prego ermo, ele nasce.
Luar em cima de casa exorta cachorro.
Em perna de mosca salobra as águas se cristalizam.
Besouros não ocupam asas para andar sobre fezes.
Poeta &eaceacute; um ente que lambe as palavras e depois se alucina.
No osso da fala dos loucos têm lírios.

3

Tem 4 teorias de árvore que eu conheço.
Primeira: que arbusto de monturo agüenta mais formiga.
Segunda: que uma planta de borra produz frutos ardentes.
Terceira: nas plantas que vingam por rachaduras lavra um poder mais lúbrico
de antros.
Quarta: que há nas árvores avulsas uma assimilação
maior de horizontes.

7

Uma chuva é íntima
Se o homem a vê de uma parede umedecida de moscas;
Se aparecem besouros nas folhagens;
Se as lagartixas se fixam nos espelhos;
Se as cigarras se perdem de amor pelas árvores;
E o escuro se umedeça em nosso corpo.

9

Em passar sua vagínula sobre as pobres coisas do chão, a
lesma deixa risquinhos líquidos…
A lesma influi muito em meu desejo de gosmar sobre as
palavras
Neste coito com letras!
Na áspera secura de uma pedra a lesma esfrega-se
Na avidez de deserto que é a vida de uma pedra a lesma
escorre. . .
Ela fode a pedra.
Ela precisa desse deserto para viver.

11

Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância,
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdomen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas – com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.

12

Seu França não presta pra nada –
Só pra tocar violão.
De beber água no chapéu as formigas já sabem quem ele
é.
Não presta pra nada.
Mesmo que dizer:
– Povo que gosta de resto de sopa é mosca.
Disse que precisa de não ser ninguém toda vida.
De ser o nada desenvolvido.
E disse que o artista tem origem nesse ato suicida.

13

Lugar em que há decadência.
Em que as casas começam a morrer e são habitadas por
morcegos.
Em que os capins lhes entram, aos homens, casas portas
a dentro.
Em que os capins lhes subam pernas acima, seres a
dentro.
Luares encontrarão só pedras mendigos cachorros.
Terrenos sitiados pelo abandono, apropriados à indigência.
Onde os homens terão a força da indigência.
E as ruínas darão frutos

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