Luís Vaz de Camões
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Feito por Luís de Camões, em que entram as figuras seguintes: Filodemo, Vilardo, seu moço, Dionisa, Solina, sua moça, Venadoro, monteiro, um pastor Doriano. amigo de Filodemo, um Bobo, filho do pastor, Florimena, pastora, Dom Lusidardo, pai de Venadoro, três Pastores bailando, Doloroso, amigo de Vilardo
Argumento do Auto
Um fidalgo português, que a caso andava nos Reinos de Dinamarca, como por largos amores e maiores serviços tivesse alcançado o amor de üa filha del Rei, foi lhe necessário fugir com ela em üa galé, por quanto havia dias que a tinha prenhe; e de feito, sendo chegados à costa de Espanha, onde ele era Senhor de grande património, armou-se-lhe grande tromenta, que, sem nenhum remédio dando a galé à costa, se perderam todos miseravelmente, senão a Princesa, que em üa tábua foi à praia; a qual, como chegasse o tempo de seu parto, junto de üa fonte pariu duas crianças, macho e fêmea; e não tardou muito que um pastor castelhano, que naquelas partes morava, ouvindo os tenros gritos dos meninos, Ihe acudiu a tempo que a mãe já tinha espirado. Crecidas, enfim, as crianças debaixo da humanidade e criação daquele Pastor, o macho, que Filodemo se chamou à vontade de quem os bautizara, levado da natural inclinação, deixando o campo, se foi pera a Cidade, aonde por músico e discreto valeu muito em casa de Dom Lusidardo, irmão de seu Pai, a quem muitos anos serviu sem saber o parentesco que entre ambos havia. E como de seu Pai não tivesse herdado mais que os altos espritos, namorou se de Dionisa, filha de seu Senhor e Tio, que, incitada ao que por suas obras e boas partes merecia, ou porque elas nada enjeitam, Ihe não queria mal. Aconteceu mais que Venadoro, filho de Dom Lusidardo, mancebo fragueiro e muito dado ao exercício da caça, andando um dia no campo após um cervo, se perdeu dos seus; e indo dar em üa fonte, onde estava Florimena, irmã de Filodemo, que assim Ihe puseram o nome, enchendo üa talha de água, se perdeu de amores por ela, que se não soube dar a conselho, nem partir se donde ela estava, até que seu Pai o não foi buscar. O qual, informado pelo pastor que a criara (que era homem sábio na arte mágica) de como a achara e como a criara, não teve por mal de casar a Filodemo com Dionisa, sua filha, e prima de Filodemo, e a Venadoro, seu filho, com Florimena, sua sobrinha, irmã de Filodemo, pastor, e também pela muita renda que tinha que de seu Pai ficara, de que eles eram verdadeiros herdeiros. E das mais particularidades da Comédia, fará menção o Auto, que é, o seguinte:
Entra logo Filodemo e um seu moço Vilardo
Filodemo:
- Vilardo,
Moço:
- Ei lo vai
Filodemo:
- Falai eramá, falai,
- e sai cá pera a sala.
- O vilão como se cala!
Moço:
- Pois, Senhor, saio a meu pai,
- que quando dorme não fala.
Filodemo:
- Trazei cá üa cadeira.
- Ouvis, vilão?
Moço:
-
- Senhor, sim.
- Se m’ela não traz a mim,
- vejo lh’eu ruim maneira.
Filodemo:
- Acabai, vilão ruim.
- Que moço pera servir
- quem tem as tristezas minhas!
- Quem pudesse assi dormir!
Moço:
- Senhor, nestas menhãzinhas
- não há i senão cair:por demais é trabalhar,
- qu’este sono se me ausente.
Filodemo:
- Porquê ?
Moço:
- Porque há de assentar
- que se não for com pão quente,
- não há de desaferrar.
Filodemo:
- Ora i pelo que vos mando,
- vilão feito de formento.
- Triste do que vive amando
- sem ter outro mantimento,
- com qu’estê fantesiando!
- Só üa cousa me desculpa
- deste cuidado que sigo:ser de tamanho perigo,
- que cuido que a mesma culpa
- me fica sendo castigo.
- Vem o moço, e assenta se na cadeira
- Filodemo, e diz, avante
Filodemo:
- Ora quero praticar
- só comigo um pouco aqui,
- que despois que me perdi,
- desejo de me tomar
- estreita conta de mi.
- Vai pera fora, Vilardo.
- Torna cá: vai me saber
- se se quer já lá erguer
- o senhor Dom Lusidardo,
- e vem mo logo dizer.
- (Vai se o Moço:)
- Ora bem, minha ousadia!
- Sem asas, pouco segura,
- quem vos deu tanta valia,
- que subais a fantesia
- onde não sobe ventura?
- Por ventura eu não naci
- no mato, sem mais valer
- qu’o gado ao pasto trazer?
- Pois donde me veio a mi
- saber me tão bem perder?
- Eu , nacido antre pastares
- fui trazido dos currais,
- e d’ antre meus naturais
- pera casa dos Senhores,
- donde vima valer mais .
- Agora logo tão cedo
- quis mostrar a condição
- de rústico e de vilão!
- Dando me ventura o dedo,
- lhe quero tomar a mão!
- Mas oh! qu’isto não é assi,
- nem são vilãos meus cuidados,
- como eu deles entendi;
- mas antes, de sublimados
- os não posso crer de mi.
- Porque como hei eu de crer
- que me faça minha estrela
- tão alta pena sofrer,
- que somente pola ter
- mereço a glória dela,
- senão se amor, d’atentado,
- porque me não queixe dele,
- tem por ventura ordenado
- que mereça o meu cuidado,
- só por ter cuidado nele ?
- Vem o moço e diz:O senhor Dom Lusidardo
- dorme com todo contento,
- e ele com o pensamento
- quer estar fazendo alardo
- de castelinhos de vento
- Pois tão cedo se vestiu,
- com seu dano se conforme,
- pesar de quem me pariu,
- ainda o sol não saiu,
- se vem à mão, também dorme.
- Ele quer se levantar
- assi pela menhãzinha?
- Pois quero o desenganar:que «por muito madrugar
- não amanhece mais asinha».
Filodemo:
- Traze me a viola cá.
Moço:
- Voto a tal que me vou rindo.
- Senhor, também dormirá.
Filodemo:
- Traze, moço.
Moço:
- Sim, virá,
- se não estiver dormindo.
Filodemo:
- Ora i polo que vos mando:não gracejeis.
- Eis me vou:pois, posar de São Fernando,
- por ventura sou eu grou?
- Sempre hei d’ estar vigiando?
- Vai se o moço e diz
Filodemo:
- Ah Senhora, que podeis
- ser remédio do que peno;
- quão mal ora cuidareis
- que viveis e que cabeis
- num coração tão pequeno!
- Se vos fosse apresentado
- este tromento em que vivo
- creríeis que foi ousado
- em este vosso criado
- tornar se vosso catigo.
- Vem o moço e traz a viola
Moço:
- Ora eu creio, se é verdade
- que estou de todo acordado,
- que meu amo é namorado;
- e a mim dá me na vontade
- que anda um pouco abalado.
- E se tal é, eu daria
- por conhecer a donzela
- a ração d’hoje este dia,
- porque a desenganaria,
- somente por ter dó dela.
- Havia lhe de perguntar:Senhora, de que comeis?
- se comeis d’ouvir cantar,
- de falar bem, de trovar,
- em boa hora casareis.
- Porém se vós comeis pão,
- tende, Senhora, resguardo,
- que eis aqui está Vilardo,
- que é um camaleão;
- por isso vós fazei fardo.
- E se vós sois das gamenhas
- e houverdes d’atentar
- por mais que por manducar,
- «Mi cama son duras penas,
- mi dormir siempre velar».
- A viola, Senhor, vem
- sem primas, nem derradeiras.
- Mas sabe o que lhe convém?
- Se quer, Senhor, tanger bem,
- há de haver mister terceiras.
- E se estas cantigas vossas
- não forem pera escutar,
- e não quiserdes espirar,
- há mister cordas mais grossas,
- porque não possam quebrar.
Filodemo:
- Vai pera fora.
Moço:
- Já venho.
Filodemo:
- Qu’eu só desta fantesia
- me sostenho e me mantenho.
Moço:
- Camanha vista que tenho,
- que vejo à estrela no dia!
- Vai se Vilardo e canta Filodemo:
- «Adó sube el pensamiento,
- sería una gloria inmensa
- si allá fuese quien lo piensa».
- Fala:Qual espírito divino
- me fará a mim sabedor,
- pois que tão alto imagino,
- deste meu mal, se é amor,
- se por dita desatino?
- Se é amor, diga me qual
- pode ser seu fundamento,
- ou qual é seu natural
- ou porque empregou tão mal
- um tão alto pensamento.
- Se é doudice, como em tudo
- a vida me abrasa e queima,
- ou quem viu num peito rudo
- desatino tão sesudo,
- que toma tão doce teima!
- Ah senhora Dionisa,
- onde a natureza humana
- se mostrou tão soberana,
- que o que vós valeis me avisa,
- e o qu’eu peno m’engana.
- Vem Solina, moça, e diz
Solina:
- Tomado estais vós agora,
- Senhor, com o furto nas mãos.
Filodemo:
- Solina, minha Senhora,
- quantos pensamentos vãos
- me ouviries lançar fora!
Solina:
- Oh senhor, e quão bem que soa
- o tanger de quando em quando!
- Bem sei eu üa pessoa,
- que há bem üa hora boa,
- que vos está escutando.
Filodemo:
- Por vida vossa, zombais?
- Quem é? quereis mo dizer?
Solina:
- Não no haveis vós de saber,
- bofé, se me não peitais.
Filodemo:
- Dar vos hei quanto tiver,
- pera tais tempos como estes.
- Quem tivera üa voz dos Céus,
- pois escutar me quisestes.
Solina:
- Assi pareça eu a Deus,
- como lhe vós parecestes.
Filodemo:
- A senhora Dionisa
- quer se já alevantar?
Solina:
- Assi me veja eu casar,
- como despida em camisa
- se ergueu por vos escutar.
Filodemo:
- Em camisa levantada!
- Tão ditosa é minha estrela,
- ou mo dizeis refalsada?
Solina:
- Pois bem me defendeu ela
- que vos não dissesse nada.
Filodemo:
- Se pena de tantos anos
- merecer algum favor,
- pera curar de meus danos
- fartai me desses enganos,
- que não quero mais do amor.
Solina:
- Agora quero eu falar
- neste caso com mais tento;
- quero agora perguntar:e de siso is vós tomar
- um tão alto pensamento?
- Certo é muita maravilha,
- se vós isto não sentis
- bem. Vós como não caís
- que Dionisa que é filha
- do Senhor a quem servis?
- Como? Vós não atentais
- dos grandes de que é pedida?
- Peço vos que me digais
- qual é o fim que esperais
- neste caso, em vossa vida.
- Que razão boa, ou que cor
- podeis dar a esta afeição?
- Dizei me vossa tenção.
Filodemo:
- Onde vistes vós amor
- que se guie por razão?
- e quereis saber de mim
- que fim, ou de que teor
- pretendo em minha dor,
- se eu neste amor quero fim,
- sem fim me atromente amor.
- Mas com glória fingida
- pretendeis de m’enganar,
- por assi mal me tratar:assi que me dais a vida
- somente por me matar.
Solina:
- Eu vos digo a verdade.
Filodemo:
- Da verdade fujo eu,
- porque só amor me deu
- pena de tal calidade,
- que assaz me custa do meu.
Solina:
- Folgo muito de saber
- que sais amante tão fino.
Filodemo:
- Pois mais vos quero dizer,
- que às vezes no que imagino
- não ouso de m’estender.
- Na hora que imaginei
- na causa de meu tormento,
- tamanha glória levei,
- que por onças desejei
- de lograr o pensamento.
Solina:
- Se me vós a mim jurardes
- de me terdes em segredo
- üa causa… mas hei medo
- de logo tudo cantardes.
Filodemo:
- A quem?
Solina:
- Àquele enxovedo.
Filodemo:
- Qual ?
Solina:
- Aquele mau pesar,
- que ontem convosco ia.
- Quem se fosse em vós fiar!
- O que vos disse o outro dia,
- tudo lhe fostes contar.
Filodemo:
- Que lhe contei?
Solina:
- Já lhe esquece?
Filodemo:
- Por certo qu’estou remoto.
Solina:
- Hi, que sois um cesto roto.
Filodemo:
- Esse homem tudo merece.
Solina:
- Vós sois muito seu devoto.
Filodemo:
- Senhora, não hajais medo;
- contai m’isso, e far m’hei mudo.
Solina:
- Senhor, o homem sesudo,
- se em tais cousas tem segredo,
- saiba que alcançará tudo,
- A senhora Dionisa
- crede que mal vos não quer.
- Não vos posso mais dizer.
- Isto tende por baliza
- com que vos saibais reger,
- que em mulheres, se atentais,
- o querer está visível:e se bem vos governais,
- não desespereis do mais,
- porque, enfim, tudo é possível.
Filodemo:
- Senhora, pode isso ser?
Solina:
- Si, que tudo o mundo tem,
- olhai não no saiba alguém.
Filodemo:
- E que maneira hei de ter
- pera em mim ter tanto bem?
Solina:
- Vós, Senhor, o sabereis;
- e já que vos descobri
- tamanho segredo aqui,
- üa mercê me fareis
- em que me vai muito a mi.
Filodemo:
- Senhora, a tudo me obrigo
- quanto for em minha mão.
Solina:
- Pois dizei a vosso amigo
- que não gaste tempo em vão,
- nem queira amores comigo,
- porque eu tenho parentes,
- que me podem bem casar;
- e mais que não quero andar
- agora em boca de gentes
- a quem s’ele vai gabar.
Filodemo:
- Senhora, mal conheceis
- o que vos quer Duriano;
- sabei, se o não sabeis,
- que em sua alma sente o dano
- do pouco que lhe quereis;
- e que outra cousa não quer,
- que ter vos sempre servida.
Solina:
- Pola sua negra vida,
- isso havia eu bem mister.
Filodemo:
- Vós sois desagradecida?
Solina:
- Si, que tudo são enganos
- em tudo quanto falais.
Filodemo:
- Não quero que me creais:crede o tempo, que há dous anos
- que vos serve, e inda mais.
Solina:
- Senhor, bem sei que m’engano;
- mas a vós, como a irmão,
- descubro este coração:sabei que a Duriano
- tenho sobeja afeição.
- Olhai que lhe não digais
- isto que vos aqui digo.
Filodemo:
- Senhora, mal me tratais:inda que sou seu amigo,
- sabei que vosso sou mais.
Solina:
- E já que vos confessei
- aquestas fraquezas minhas,
- que há tanto que de mim sei,
- fazei vós nas causas minhas
- o qu’eu nas vossas farei.
Filodemo:
- Vós enxergareis, Senhora,
- o qu’eu por vós sei fazer.
Solina:
- Como me deixo esquecer!
- Aqui estivera agora
- falando té anoutecer.
- Vou me, e olhai quanto val
- o que passou antre nós.
Filodemo:
- E porque vos ides vós?
Solina:
- Porque parece já mal
- estar aqui ambos sós.
- E mais vou vestir agora
- a quem vos dá tão má vida.
- Ficai vos, Senhor, embora.
Filodemo:
- E porque vos ides vós?
Solina:
- Porque parece já mal
- estar aqui ambos sós.
- E mais vou vestir agora
- a quem vos dá tão má vida.
- Ficai vos, Senhor, embora.
Filodemo:
- Nessa ide vós, Senhora,
- que já vos tenho entendida.
- Vai se Solina e diz Filodemo
Filodemo:
- Ora se pode isto ser
- do qu’ esta moça me avisa,
- que a senhora Dionisa,
- por me ouvir, se fosse erguer
- da sua cama em camisa!
- E diz que mal me não quer,
- Não queria maior glória;
- mas o que mais posso crer,
- que nem pera lhe esquecer
- lhe passo pela memória.
- Mas ter Solina também
- em Duriano o intento
- é levar me a lenha o vento,
- porque s’ela lhe quer bem,
- pera bem vai meu tormento.
- Mas foi se este homem perder
- neste tempo, de maneira,
- por üa mulher solteira,
- que não me atrevo a fazer
- que um pequeno bem lhe queira.
- Porém far lh’ei um partido,
- porqu’ela não se querele,
- que se mostre seu perdido,
- inda que seja fingido,
- como lh’ outrem faz a ele.
- E já que me satisfaz,
- e tanto nisto se alcança,
- dê lhe fingida esperança:do mal que lhe outrem faz,
- tomará nela vingança.
- Vai se Filodemo e vem Vilardo
Moço:
- Ora boa está a cilada
- de meu amo com sua ama,
- que se levantou da cama
- por ouvi lo! Está tomada,
- assi a tome má trama.
- E mais crede que quem canta
- ainda descantará.
- E quem do leito onde está,
- por ouvi lo se levanta,
- mor desatino fará.
- Quem havia de cuidar
- que dama formosa e bela
- saltasse o demónio nela,
- pera a fazer namorar
- de quem não é igual dela?
- Que me dizeis a Solina?
- como se faz Celestina,
- que por não lhe haver enveja
- também pera si deseja
- o que o desejo lh’ ensina!
- Crede que se me alvoroço,
- que a hei de tomar por dama;
- e não será grão destroço,
- pois o amo quer a ama,
- que à moça queira o moço.
- Vou me, que vejo lá vir
- Venadoro, apercebido
- pera a caça se partir;
- e voto a tal, que é partido
- pera ver e pera ouvir.
- Que é razão justa e rasa
- que seu folgar se desconte
- em quem arde como brasa;
- que se vai caçar ao monte,
- fique outrem caçando em casa.
- Vai se Vilardo e entra Venadoro
Venadoro:
- Aprovada antigamente
- foi, e muito de louvar,
- a ocupação do caçar,
- e da mais antiga gente
- havida por singular.
- É o mais contrário ofício
- que tem a ociosidade,
- mãe de todo o bruto vício.
- Por este limpo exercício
- se reserva a castidade.
- Este dos grandes Senhores
- foi sempre muito estimado;
- e é grande parte do estado
- ter monteiros, caçadores,
- como ofício que é prezado.
- Pois logo por que razão
- a meu pai há de pesar
- de me ver ir a caçar?
- E tão boa ocupação
- que mal me pode causar?
- Vem o Monteiro e diz
Monteiro:
- Senhor, venho alvoroçado,
- e mais com muita razão.
Venadoro:
- Como assi?
Monteiro:
- Que me é chegado
- mais estremado cão,
- que nunca caçou veado.
- Vejamos que me há de dar.
Venadoro:
- Dar vos hei quanto tiver;
- mas há-se d’exprimentar,
- pera se poder julgar
- as manhas que pode ter.
Monteiro:
- Pode assentar qu’este cão,
- que tem das manhas a chave:bem feito em admiração,
- pois em ligeiro é üa ave,
- em cometer, um leão.
- Com porcos, maravilhoso,
- com veados, estrumado.
- Sobeja lhe o ser manhoso.
Venadoro:
- Pois eu ando desejoso
- l’irmos matar um veado.
Monteiro:
- Pois, Senhor, como não vai?
Venadoro:
- Vamos, e vós mui ligeiro
- o necessário ordenai:qu’ eu quero chegar primeiro
- pedir licença a meu pai.
- Vão se e vem Duriano e diz
Duriano:
- Pois não creio eu em Sam Pisco do pau, se hei de pôr pé em ramo verde,
té - lhe dar trezentos açoutes. Despois te ter gastado perto de trezentos
cruzados com - ela, porque logo lhe não mandei o cetim pera as mangas, fez de mim mangas
ao - demo. Não desejo eu de saber senão qual é o galante que me sucedeu;
que se vo lo - eu colho a balravento, eu lhe farei botar ao mar quantas esperanças
lhe a fortuna - tem cortado à minha custa. Ora tenho assentado, que amor destas anda
co dinheiro, - como a maré co a lua: bolsa cheia, amor em águas vivas; mas se vaza,
vereis - espraiar este engano, e deixar em seco quantos gostos andavam como o
peixe - n’água.
- Entra Filodemo e dizFilodemo:
- Olá, cá sois vós ? Pois agora ia eu bater essas montas, para ver
se me - saíeis de algüa, porque quem vos quiser achar, é necessário que vos
tire como üa - alma.
Duriano:
- Oh maravilhosa pessoa! Vós é certo que vos prezais de mais certo em
casa, - que pinheiro em porta de taverna; e trazeis, se vem à mão, os pensamentos
cos - focinhos quebrados de caírem onde vós sabeis. Pois sabeis, senhor Filodemo,
quais - são os que me matam: uns muito bem almofadados que, com dois ceitis,
fendem a - anca pelo meio, e se prezam de brandos na conversação, e de falarem
pouco e - sempre consigo, dizendo que não darão meia hora de triste pelo tesouro
de Veneza; - e gabam mais Garcilaso que Boscão; e ambos lhe saem das mãos virgens;
e tudo - isto por vos meterem em consciência que se não achou pera mais o Grão
Capitão - Gonçalo Fernandes. Ora, pois, desengano vos que a mor raparia do mundo
foram - altos espritos e eu não trocarei duas pescoçadas da minha, etc., despois
de ter feito - a trosquia a um frasco, e falar me por tu e fingir se me bêbada, porque
o não pareça, - por quantos Sonetos estão escritos polos troncos das árvores do Vale
Luso, nem por - quantas madamas Lauras vós idolatrais.
Filodemo:
- Tá, tá! não vades avante, que vos perdeis.
Duriano:
- Aposto que adivinho o que quereis fizer ?
Filodemo:
- Quê ?
Duriano:
- Que se me não acudíeis com batel, que me ia meus passos contados a
- herege de amor.
Filodemo:
- Oh que certeza tamanho, o muito pecador não se conhecer por esse!
Duriano:
- Mas oh que certeza maior, de muito enganado, esperar em sua opinião!
Mas - tornando a nosso porpósito, que é o pera que me buscais, que se é causa
de vossa - saúde, tudo farei?
Filodemo:
- Como templará el destemplado’ Quem poderá dar o que não tem, senhor
- Duriano ? Eu quero vos deixar comer tudo; não pode ser que a natureza
não faça - em vós o que a razão não pode; o caso é este, dir vo lo hei; porém é
necessário que - primeiro vos limpeis como marmelo, e que ajunteis para um canto de casa
todos - esses maus pensamentos, porque, segundo andais mal avinhado, danareis
tudo - aquilo que agora lançarem em vós. Já vos dei conta da pouca que tenha
com toda a - outra cousa que não é servir a senhora Dionisa; e posto que a desigualdade
dos - estados o não consinta eu não pertendo dela mais que o não pretender
dela nada, - porque o que lhe quero consigo mesmo se paga, que este meu amor é como
a ave - Fénix, que de si só nace, e não de outro nenhum interesse.
Duriano:
- Bem praticada está isso, mas dias há que eu não creio em sonhos.
Filodemo:
- Porquê ?
Duriano:
- Eu vo lo direi: porque todos vós outros, os que amais pela passiva,
dizei’ que - o amor fino como melão, não há de querer mais de sua dama que amá la;
e virá logo - o vosso Petrarca, e vosso Petro Bembo, ateado a trezentos Platões, mais
çafado - que as luvas d’ um pajem d’arte, mostrando razões verisímeis e aparentes,
para não - quererdes mais de vossa dama que vê la; e ao mais até falar com ela.
Pois inda - acha reis outros esquadrinhadores d’ amor mais especulativos, que defenderão
. - justa por não emprenhar o desejo e eu, faço vos voto solene, se a qual
quer destes - lhe entregassem sua dama tosada e aparelhada entre dous pratos eu fico
que não - ficasse pedra sobre pedra, e eu já de mim vos sei confessar que os meus
amores - hão de se pela activa, e que ela há de ser a paciente e eu agente, porque
esta é a - verdade mas contudo, vá v. m. co a história por diante.
Filodemo:
- Vou, porque vos confesso que neste aso há muita dúvida entre os Doutores:assi
que vos conto que, estando esta noite com a viola na mão, bem trinta ou - quarenta léguas pelo sertão dentro de um pensamento, senso quando me
tomou à - treição Solina; e antre muitas palavras que tivemos me descobriu que
a senhora - Dionisa se levantara da cama por me ouvir, e que estivera pela greta
da porta - espreitando quase hora e meia.
Duriano:
- Cobras e tostões, sinal de terra; pois inda vos não fazia tanto avante.
Filodemo:
- Finalmente, veio me a descobrir, que me não queria mal, que foi para
mim D - maior bem do mundo; que eu estava já concertado com minha pena a sofrer
por sua - causa, e não tenho agora sujeito pera tamanho bem.
Duriano:
- Grande parte da saúde é pera o doente trabalhar por ser são. Se vos
- leixardes manquecer na estrebaria com essas finezas de namorado, nunca
- chegareis onde chegou Rui de Sande. Por isso boas esperanças ao leme,
que eu - vos faço bom que às duas enxadadas acheis água. E que mais passastes?
Filodemo:
- A maior graça do mundo: veio me descobrir que era perdida por vós; e
assi - me quis dar a entender que faria por mim tudo o que lhe vós mereceis.
Duriano:
- Santa Maria! Quantos dias há que nos olhos lhe vejo marejar esse amor
- Porque o fechar de janelas que essa mulher me faz, e outros enojos que
dizer - poderia, no son sino corredores del amor, e a cilada em que ela quer
que eu caia.
Filodemo:
- Nem eu não quero que lho queirais mas que lhe façais crer que lho quereis
Duriano:
- Não… cant’ a dessa maneira me ofereço a romper meia dúzia de serviços
- alinhavados às panderetas, que bastem assemtar me em soldo pelo mais
fiel - amante que nunca calçou esporas; e se isto não bastar, salgan las palabras
mas - sangrientas del corazón, entoadas de feição, que digam que sou um Mancias,
e pior - ainda.
Filodemo:
- Ora dais me a vida. Vamos ver se por ventura aparece, porque Venadoro,
- irmão da senhora Dionisia, é fora à casca, e sem ele fica a casa despejada;
e o - senhor Dom Lusidardo anda no pomar todo o dia; que todo o seu passatempo
é - enxertar e dispor, e outros exercícios d’agricultura, naturais a velhos;
e pois o tempo - nos vem à medida do desejo, vamo nos lá; e se lhe puderdes falar, fazei
de vós mil - manjares, porque lhe façais crer que sais mais esperdiçado d’amor que
um Brás - Quadrado.
Duriano:
- Ora vamos, que agora estou de vez, e cuido d’hoje fazer mil maravilhas,
com - que vosso feito venha à luz.
- Vão se e entra Dionisa e Salina, e diz,
Dionísa:
- Solina, mana.
Solina:
- Senhora.
Dionísa:
- Trazei me cá a almofada, que a casa está despejada, e esta varanda cá
fora - está milhor assombrada. Trazei a vossa também pera estarmos cá lavrando;
- enquanto meu pai não vem, estaremos praticando, sem nos estorvar ninguém.
- Este é o mesmo lugar onde estava o bem logrado, tal que de muito enlevado
- se esquecia do cantar por se enlevar no cuidado
Dionísa:
- Vós, mana, sais mui ruim!
- Logo lhe fostes contar
- que me ergui polo escutar.
Solina:
- Eu o disse?
Dionísa:
- Eu não no ouvi?
- como mo quereis negar?
Solina:
- E pois isso que releva?
- Que se perde nisso agora?
Dionísa:
- Que se perde? Assi, Senhora,
- folgareis vós que se atreva
- a contá lo lá por fora?
- Que se lhe meta em cabeça
- alguma párvoa tenção?
- Que faça, se vem à mão,
- Algüa cousa que pareça?
Solina:
- Senhora, não tem razão.
Dionísa:
- Eu sei mui bem atentar
- do que se há de ter receio,
- e do que é pera estimar.
Solina:
- «Não é o demo tão feio
- como alguém o quer pintar»;
- e não se espera isso dele,
- que não é ora tão moço.
- E vossa mercê assele que
- qualquer segredo nele
- é como üa pedra em poço.
Dionísa:
- E eu que segredo quero
- com um criado de meu pai?
Solina:
- E vós, mana, fazeis fera:ao diante vos espero,
- se adiante o caso vai.
Dionísa:
- O madraço, quem no vir
- falar de siso co ela…
- Então vós, gentil donzela,
- folgais muito de o ouvir?
Solina:
- Si, porque me fala nela.
- eu como ouço falar
- nela, como quem não sente,
- folgo de o escutar,
- só pera lhe vir contar
- o que dela diz a gente.
- Que eu não quero nada dele.
- E mais, porque está falando?
- Não m’ esteve ela rogando
- que fosse falar com ele?
Dionísa:
- Dissevo lo assi zombando.
- Vós logo tomais em grosso
- tudo quanto me escutais.
- Parvo! Que vê lo não posso.
Solina:
- inda isto há de vir a mais.
- Pois que tal ódio lhe tem,
- falemos, Senhora, em al;
- mas eu digo que ninguém
- merece por querer bem
- que a quem lho quer, queira mal.
Dionísa:
- Deixai o vós doudejer.
- Se meu pai ou meu irmão,
- o vierem a aventar,
- não há ele de folgar.
Solina:
- Deus meterá nisso a mão.
Dionísa:
- Ora i polas almofadas,
- que quero um pouco lavrar,
- por ter em que me ocupar,
- que em cousas tão mal olhadas
- não se há o tempo de gastar.
Vai Solina dizendo:
- Que cousas somos mulheres!
- Como somos perigosas!
- E mais estas tão viçosas
- que estão a boca que queres?
- e adoecem de mimosas!
- Se eu não caminho agora
- a seu desejo e vontade,
- como faz esta Senhora,
- fazem se logo nessa hora
- na volta da honestidade
- Quem a vira o outro dia
- um poucochinho agastada,
- dar no chão co almofada,
- e enlevar a fantesia,
- toda noutra trasformada!
- Outro dia lhe ouvirão
- lançar suspiros a molhos,
- e com a imaginação
- cair lhe agulha da mão,
- e as lágrimas dos olhos.
- Ouvir lh’ heis à derradeira
- a ventura maldizer,
- porque a foi fazer mulher.
- Então diz que quer ser freira
- e não se sabe entender.
- Então gaba o de discreto,
- de músico e bem disposto,
- de bom corpo e de bom rosto,
- quant’a então eu vos prometo
- que não tem dele desgosto.
- Despois, se vem atentar,
- diz que é muito malfeito
- amar homem deste jeito,
- e que não pode alcançar
- pôr seu desejo em efeito.
- Logo se faz tão Senhora,
- logo lhe ameaça a vida,
- logo se mostra nessa hora
- muito segura de fora,
- de dentro está sentida.
- Bofé, segundo vou vendo,
- se esta postema vier,
- como eu suspeito, a crecer,
- muito há que dela entendo
- ao fim que pode vir ter.
- Vai se Solina e entra Duriano
- e Filodemo, e diz,
Duriano:
- Ora deixai a ir,
- que à vinda lhe falaremos;
- entretanto, cuidarei
- o como lei de fazer,
- que não há mor trabalho
- para üa pessoa que fingir se.
Filodemo:
- Dar lhe heis esta carta,
- e fazei muito co ela
- que a dê à Senhora Dionisia,
- que e vai nisso muito.
Duriano:
- Por mulher de tão bom engenho
- a tendes?
Filodemo:
- E porque me perguntais isso?
Duriano:
- Porque ainda ontem
- entrou pelo A, B, C,
- e já quereis que leia
- carta mandadeira;
- fá la heis cedo
- escrever matéria junta.
Filodemo:
- Não lhe digais que vos disse nada,
- porque cuidará
- que por isso lhe falais;
- mas fingi que de puro amor
- a andais buscando a tempos
- que façam à vossa tenção.
Duriano:
- Deixai me vós a mi com o caso,
- que eu sei milhor as pancadas
- a estes vintes que vós;
- e eu vo la farei hoje
- a nós sem Rafas;
- e vós entretanto
- acolhei vos a sagrado,
- porque ei la lá vem.
Filodemo:
- Olhai lá, fazei que a não vedes,
- fingi que falais convosco;
- que faz nosso caso.
Duriano:
- Dizeis bem.
- Yo sigo tristeza,
- remedio de tristes:la terrible pena mia la
- espero remediar.
- Pois não devia as de ser,
- pelos santos Evangelhos;
- mas muitos dias há
- que eu sei que o amor
- e os cangrejos andam às vessas.
- Ora, enfim, las tristezas
- no me espanten,
- porque suelen aflojar
- cuanto mas duelen.
- Entra Solina e vai se Filodemo e dia,
- Solina co a almofada
Solina:
- Aqui anda passeando
- Duriano, e só consigo
- pensamentos praticando.
- Daqui posso estar notando
- com quem sonha, se é comigo.
Duriano:
- Ah quão longe estará agora
- minha Senhora Solina
- de saber que estou bem fora
- de ter outra por senhora,
- segundo o amor determina!
- Porém se determinasse
- minha bem aventurança
- que de meu mal lhe pesasse,
- atá que nela tomasse
- do que lhe quero vingança!…
Solina:
- Comigo sonha por certo.
- Ora quero me mostrar,
- assi como por acerto.
- Chegar me hei mais ao perto,
- por ver se me quer falar.
- Sempre esta casa há d’estar
- acompanhada de gente,
- que não possa homem passar*
Duriano:
- treição vindes tomar
- quem já feridas não sente?
Solina:
- Logo me a mi parecia
- que era ele o que passeava.
Duriano:
- E eu mal adivinhava
- que me viesse este dia,
- que há tantos que desejava.
- Se uns olhos por vos servir,
- com o amor que vos conquista,
- se atreveram a subir
- os muros de vossa vista,
- que culpa tem quem vos vir?
- E se esta minha afeição,
- que vos serve de giolhos,
- não fez erro na tenção,
- tomai vingança nos olhos,
- e deixai o coração.
Solina:
- Ora agora me vem riso.
- Assi que vós sois, Senhor,
- de siso meu servidor?
Duriano:
- De siso não, porque o siso
- de tem tirado o amor.
- Porque o amor, se atentais,
- num tão verdadeiro amante
- não deixa siso bastante,
- senão se siso chamais
- a doudice tão galante.
Solina:
- Como Deus está nos Céus,
- que se é verdade o que temo,
- que fez isto Filodemo.
Duriano:
- Mas fê lo o demo, que Deus
- não faz mal tanto em estremo.
Solina:
- Bem. Vós, senhor Duriano,
- porque zombareis de mim?
Duriano:
- Eu zombo ?
Solina:
- Eu não me engano.
Duriano:
- S’eu zombo, inda em meu dano
- vejais vós mui cedo a fim.
- Mas vós, senhora Salina,
- porque me querereis mal?
Solina:
- Sou mofina.
Duriano:
- Oh! real!
- Assi que minha mofina
- é minha imiga mortal.
- Dias há qu’ eu imagino
- que em vos amar e servir
- não há amador mais fino;
- mas sinto que de mofino
- me fino sem no sentir
Solina:
- Bem derivais: quant’a assi
- à popa o dito vos veio.
Duriano:
- Vir me há de vós, porque creio
- que vós falais dentro em mim,
- como esprito em corpo alheio.
- E assi que em estas piós
- a cair, Senhora, vim,
- bem parecerá antre nós,
- pois vós andais dentro em mim,
- que and’eu também dentro em vós.
Solina:
- E bem! Que falar é esse?
Duriano:
- Dentro na vossa alma, digo,
- Lá andasse, e lá morresse!
- E se isto mal vos parece,
- dai me a morte por castigo.
Solina:
- Ah mau! Como sois malvado!
Duriano:
- as vós como sois malvada,
- que de um pouco mais de nada
- fazeis um homem armado,
- como quem está sempre armada!
- Dizei me, Solina mana
Solina:
- Que é isso? Tirai lá a mão.
- E vós sois mau cortesão.
Duriano:
- O que vos quero m’ engana,
- mas que desejo, não.
- Aqui não há senão paredes,
- as quais não falam, nem vem.
Solina:
- Está isso muito bem
- Bem: e vós, Senhor, não vedes
- que poderá vir alguém?
Duriano:
- Que vos custam dous abraços?
Solina:
- Não quero tantos despejos.
Duriano:
- Pois que farão meus desejos,
- que querem ter vos nos braços,
- e dar vos trezentos beijos?
Solina:
- Olhai que pouca vergonha!
- I vos d’i, boca de praga.
Duriano:
- Eu não sei certo a que ponha
- mostrardes me a triaga,
- e virdes me a dar peçonha.
Solina:
- Ora ide rir à feira,
- e não sejais dessa laia.
Duriano:
- Se vedes minha canseira,
- porque lhe não dais maneira?
Solina:
- Que maneira?
Duriano:
- A da saia.
Solina:
- Por minha alma, [hei ]de vos
- dar meia dúzia de porradas.
Duriano:
- Oh que gostosas pancadas!
- mui bem vos podeis vingar,
- que em mim são bem empregadas.
Solina:
- Ó diabo que o eu dou.
- Como me doeu a mão!
Duriano:
- Mostrai cá, minha afeição,
- que essa dor me magoou
- dentro no meu coração
Solina:
- Ora i vos embora asinha.
Duriano:
- Por amor de mi, Senhora,
- não fareis uma cousinha?
Solina:
- Digo que vades embora.
- Que cousa?
Duriano:
- Esta cartinha
Solina:
- Que carta?
Duriano:
- De Filodemo
- Dionisa, vossa ama
Solina:
- Dizei que tome outra dama,
- dê os amores ao demo.
Duriano:
- Não andemos pola rama,
- Senhora, aqui para nós,
- que sentis dela com ele?
Solina:
- Grandes alforges sois vós!
- Pois i lhe dizer que apele
Duriano:
- Falai, que aqui estamos sós
Solina:
- Qualquer honesta se abala,
- como sabe que é querida
- Ela é por ele perdida,
- nunca noutra cousa fala.
Duriano:
- Ora vou lhe dar a vida
Solina:
- E eu não lhe disse já
- quanta afeição lh’ ela tem?
Duriano:
- Não se fia de ninguém,
- nem crê que para ele há
- no mundo tamanho bem.
Solina:
- Dir vos hia de mim lá
- o que lh’eu disse zombando?
Duriano:
- Não disse, por Sam Fernando!
Solina:
- Ora ide vos.
Duriano:
- Que me vá?
- E mandais que torne? Quando?
Solina:
- Quando eu cá vir lugar,
- vo lo mandarei dizer.
Duriano:
- Se o quiserdes buscar,
- não vos deve de faltar,
- se não faltar o querer.
Solina:
- Não falta.
Duriano:
- Dai me um abraço
- Em sinal do que quereis.
Solina:
- Tá, que o não levareis.
Duriano:
- De quantos serviços faço
- Nenhum pagar me quereis?
Solina:
- Pagar vos hão algü’ hora,
- Que isso a mi também me toca;
- as agora i vos embora
Duriano:
- Essas mãos beijo, Senhora,
- enquanto não posso a boca
- Vai se Duriano e fala Solina com
- Dionisa, que lhe traz a almofada,
- e diz, Solina
Solina:
- Já vossa mercê dirá
- que estive muito tardando
Dionísa:
- Bem vos detivestes lá.
- Bofé, que estava cuidando
- em não sei quê
Solina:
- Que será?
- Aqui somos. Quant’ agora
- está ela trasportada.
Dionísa:
- Que rosnais vós lá, Senhora?
Solina:
- Digo que tardei lá fora
- em buscar esta almofada.
- Qu’estava ela agora só
- consigo fantesiando?
Dionísa:
- Bofé, que estava cuidando
- que é muito pera haver dó
- da mulher que vive amando.
- Que um homem pode passar
- a vida mais ocupado:com passear, com caçar,
- com correr, com cavalgar,
- forra parte do cuidado.
- Mas a coitada
- da mulher, sempre encerrada,
- que não tem contentamento,
- nem tem desenfadamento
- mais que agulha e almofada!
- Então isto vem parir
- os grandes erros da gente;
- em que já antigamente
- foram mil vezes cair
- princesas d’alta semente.
- Lembra me que ouvi contar
- de tantas afeiçoadas
- em baixo e pobre lugar,
- que as que agora vão errar
- podem ficar desculpadas.
Solina:
- Senhora, a muita afeição
- nas Princesas d’alto estado
- não é muita admiração,
- que no sangue delicado
- faz o amor mais impressão.
- Mas deixando isto à parte,
- se m’ela quiser peitar,
- prometo de lhe mostrar
- üa cousa muito d’arte,
- que lá dentro fui achar.
Dionísa:
- Que cousa?
Solina:
- Cousa d’esprito.
Dionísa:
- Algum pano de lavores?
Solina:
- Inda ela não deu no fito.
- Cartinha sem sobrescrito,
- que parece ser d’amores.
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