A Cruz Mutilada

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Amo-te, ó cruz, no vértice, firmada
De esplêndidas igrejas;
Amo-te quando à noite, sobre a campa,
Junto ao cipreste alvejas;
Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos,
As preces te rodeiam;
Amo-te quando em préstito festivo
As multidões te hasteiam;
Amo-te erguida no cruzeiro antigo,
No adro do presbitério,
Ou quando o morto, impressa no ataúde,
Guias ao cemitério;
Amo-te, ó cruz, até, quando no vale
Negrejas triste e só,
Núncia do crime, a que deveu a terra
Do assassinado o pó:

Porém guando mais te amo,
Ó cruz do meu Senhor,
É, se te encontro à tarde,
Antes de o Sol se pôr,

Na clareira da serra,
Que o arvoredo assombra,
Quando à luz que fenece
Se estira a tua sombra,

E o dia últimos raios
Com o luar mistura,
E o seu hino da tarde
O pinheiral murmura.

*

E eu te encontrei, num alcantil agreste,
Meia quebrada, ó cruz. Sozinha estavas
Ao pôr do Sol, e ao elevar-se a Lua
Detrás do calvo cerro. A soledade
Não te pôde valer contra a mão ímpia,
Que te feriu sem dó. As linhas puras
De teu perfil, falhadas, tortuosas,
Ó mutilada cruz, falam de um crime
Sacrílego, brutal e ao ímpio inútil!
A tua sombra estampa-se no solo,
Como a sombra de antigo monumento,
Que o tempo quase derrocou, truncada.
No pedestal musgoso, em que te ergueram
Nossos avós, eu me assentei. Ao longe,
Do presbitério rústico mandava
O sino os simples sons pelas quebradas
Da cordilheira, anunciando o instante
Da ave-maria; da oração singela,
Mas solene, mas santa, em que a voz do homem
Se mistura nos cânticos saudosos,
Que a natureza envia ao Céu no extremo
Raio de sol, pasmado fugitivo
Na tangente deste orbe, ao qual trouxeste
Liberdade e progresso, e que te paga
Com a injúria e o desprezo, e que te inveja
Até, na solidão, o esquecimento!

*

Foi da ciência incrédula o sectário,
Acaso, ó cruz da serra, o que na face
Afrontas te gravou com mão profusa?
Não! Foi o homem do povo, a quem consolo
Na miséria e na dor constante hás sido
Por bem dezoito séculos: foi esse
Por cujo amor surgias qual remorso
Nos sonhos do abastado ou do tirano.
Bradando – esmola! a um; piedade! ao outro.

Ó cruz, se desde o Gólgota não foras
Símbolo eterno de urna crença eterna;
Se a nossa fé em ti fosse mentida,
Dos opressos de outrora os livres netos
Por sua ingratidão dignos de opróbio,
Se não te amassem, ainda assim seriam.
Mas és núncia do Céu, e eles te insultam,
Esquecidos das lágrimas perenes
Por trinta gerações, que guarda a campa.
Vertidas a teus pés nos dias torvos
Do seu viver d’escravidão! Deslembram-se

De que. se a paz doméstica, a pureza
Do leito conjugal bruta violência
Não vai contaminar, se a filha virgem
Do humilde camponês não é ludíbrio
Do opulento, do nobre, ó Cruz. to devem;
Que por ti o cultor de férteis campos
Colhe tranquilo da fadiga o prémio,
Sem que a voz de um senhor, qual dantes, dura
Lhe diga: «É meu, e és meu! A mim deleites,
Liberdade, abundância: a ti, escravo,
O trabalho. a miséria unido à terra,
Que o suor dessa fronte fertiliza,
Enquanto, em dia de furor ou tédio,
Não me apraz com teus restos fecundá-la.»

Quando calada a humanidade ouvia
Este atroz blasfemar, tu te elevaste
Lá do Oriente, ó Cruz, envolta em glória,
E bradaste, tremenda, ao forte, ao rico:
«Mentira!», e o servo alevantou os olhos,
Onde a esperança cintilava, a medo,
E viu as faces do senhor retintas
Em palidez mortal, e errar-lhe a vista
Trépida, vaga. A cruz no céu do Oriente
Da liberdade anunciara a vinda.

Cansado, o ancião guerreiro, que a existência
Desgastou no volver de cem combates,
Ao ver que, enfim, o seu país querido
Já não ousam calcar os pés d’estranhos,
Vem assentar-se à luz meiga da tarde,
Na tarde do viver, junto do teixo
Da montanha natal. Na fronte calva,
Que o sol tostou e que enrugaram anos,
Há um como fulgor sereno e santo.
Da aldeia semideus, devem-lhe todos
D tecto, a liberdade, e a honra e vida.
Ao perpassar do veterano, os velhos
A mão que os protegeu apertam gratos;
Com amorosa timidez os moços
Saúdam-no qual pai. Nus largas noites
Da gelada estação, sobre a lareira
Nunca lhe falta o cepo incendiado;
Sobre a mesa frugal nunca, no estio,
Refrigerante pomo. Assim do velho
Pelejador os derradeiros dias
Derivam paru o túmulo suaves,
Rodeados de afecto, e quando à terra
A mão do tempo gastador o guia,
Sobre a lousa a saudade ainda lhe esparze
Flores, lágrimas, bênçãos, que consolem
Do defensor do fraco as cinzas frias.

Pobre cruz! Pelejaste mil combates,
Os gigantes combates dos tiranos,
E venceste. No solo libertado,
Que pediste? Um retiro no deserto,
Um píncaro granítico, açoutado
Pelas asas do vento e enegrecido
Por chuvas e por sóis. Para ameigar-te
Este ar húmido e gélido a segure
Não foi ferir do bosque o rei. Do Estio
No ardor canicular nunca disseste:
«Dai-me, sequer, do bravo medronheiro
O desprezado fruto!» O teu vestido
Era o musgo, que tece a mão do Inverno
E Deus criou para trajar as rochas.
Filha do céu, o céu era o seu tecto,
Teu escabelo o dorso da montanha.
Tempo houve em que esses braços te adornava
C’roa viçosa de gentis boninas,
E o pedestal te rodeavam preces.
Ficaste em breve só, e a voz humana
Fez, pouco a pouco, junto a ti silêncio.
Que te importava? As árvores da encosta
Curvavam-se a saudar-te, e revoando
As aves vinham circundar-te de hinos.
Afagava-te o raio derradeiro,
Frouxo do Sul ao mergulhar nos mares.
E esperavas o túmulo. O teu túmulo
Devera ser o seio destas serras,
Quando, em Génesis novo, à voz do Eterno,
Do orbe ao núcleo fervente, que as gerara,
Elas nus fauces dos bolcões descessem.
Então para essa campa flores, bênçãos,
Ou é saudade lágrimas vertidas,
Qual do velho soldado a lousa pede,
Não pediras à ingrata raça humana,
Ao pé de ti no seu sudário envolta.

*

Este longo esperar do dia extremo,
No esquecimento do ermo abandonada,
Foi duro de sofrer aos teus remidos,
Ó redentora cruz. Eras, acaso,
Como um remorso e acusação perene
No teu rochedo alpestre, onde te viam
Pousar tristonha e só? Acaso, à noite,
Quando a procela no pinhal rugia,
Criam ouvir-te a voz acusadora
Sobreelevar à voz da tempestade?
Que lhes dizias tu? De Deus falavas,
E do seu Cristo, do divino mártir,
Que a ti, suplício e afronta, a ti maldita
Ergueu, purificou, clamando ao servo,
No seu transe: «Ergue-te, escravo!
És livre, como é pura a cruz da infâmia.
Ela vil e tu vil, santos, sublimes
Sereis ante meu Pai. Ergue-te, escravo!
Abraça tua irmã: segue-a sem susto
No caminho dos séculos. Da Terra
Pertence-lhe o porvir, e o seu triunfo
Trará da tua liberdade o dia.»

Eis porque teus irmãos te arrojam pedras,
Ao perpassar, ó cruz! Pensam ouvir-te
Nos rumores da noite, a antiga história
Recontando do Gólgota, lembrando-lhes
Que só ao Cristo a liberdade devem,
E que ímpio o povo ser é ser infame.
Mutilado por ele, a pouco e pouco,
Tu em fragmentos tombarás do cerro,
Símbolo sacrossanto. Hão-de os humanos
Aos pés pisar-te; e esquecerás no mundo.
Da gratidão a dívida não paga
Ficará, ó tremenda acusadora,
Sem que as faces lhes tinja a cor do pejo;
Sem que o remorso os corações lhes rasgue.
Do Cristo o nome passará na Terra.

*

Não! Quando, em pó desfeita, a cruz divina
Deixar de ser perene testemunha
Da avita crença, os montes, a espessura,
O mar, a Lua, o murmurar da fonte,
Da natureza as vagas harmonias,
Da cruz em nome, falarão do Verbo.

Dela no pedestal, então deserto,
Do deserto no seio, ainda o poeta
Virá, talvez, ao pôr do Sol sentar-se;
E a voz da selva lhe dirá que é santo
Este rochedo nu, e um hino pio
A solidão lhe ensinará e a noite.

Do cântico futuro unta toada
Não sentes vir, ó cruz, de além dos tempos
Da brisa do crepúsculo nus asas?
É o porvir que te proclama eterna;
É a voz do poeta a saudar-te.

*

Montanha do Oriente,
Que, sobre as nuvens elevando o cume,
Divisas logo o Sol, surgindo a aurora,
E que, lá no Ocidente,
Última vez seu radioso lume,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Rochedo, que descansas
No promontório nu e solitário,
Como atalaia que o oceano explora,
Alheio ás mil mudanças
Que o mundo agitam turbulento e vário,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Sobros, robles frondentes,
Cuja sombra procura o viandante,
Fugindo ao Sol a prumo que o devora,
Nesses dias ardentes
Em que o Leão nos céus passa radiante,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Ó mato variado,
De rosmaninho e murta entretecido,
De cujas ténues flores se evapora
Aroma delicado,
Quando és por leve aragem sacudido,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Ó mar, que vais quebrando
Rolo após rolo pela praia fria,
E fremes som de paz consoladora,
Dormente murmurando
Na caverna marítima sombria,
Em li minha alma a eterna cruz adora.

Ó Lua silenciosa,
Que em perpétuo volver. seguindo a Terra,
Esparzes tua luz ameigadora
Pela serra formosa,
E pelos lagos que em seu seio encerra,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Debalde o servo ingrato
No pó te derribou
E os restos te insultou,
Ó veneranda cruz:

Embora eu te não veja
Neste ermo pedestal;
És santa, és imortal;
Tu és a minha luz!

Nas almas generosas
Gravou-te a mão de Deus,
E, à noite, fez nos céus
Teu vulto cintilar.

Os raios das estrelas
Cruzam o seu fulgor;
Nas horas do furor
As vagas cruza o mar.

Os ramos enlaçados
Do roble, choupo e til
Cruzando em modos mil,
Se vão entretecer.

Ferido, abre-o guerreiro
Os braços, solta um ai,
Pára, vacila, e cai
Para não mais se erguer.

Cruzado aperta ao seio
A mãe o filho seu,
Que busca, mal nasceu,
Fontes da vida e amor.

Surges; símbolo eterno,
No Céu, na Terra e mar,
Do forte no expirar,
E do viver no alvor!

Fonte: bibvirt.futuro.usp.br

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