Lima Barreto
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Houve quem dissesse que a superstição é a religião do homem que a não tem. Isto não quer dizer que todos os homens, as mulheres principalmente, desta ou daquela seita ou fé religiosa, não as tenham também.
Na Europa, em qualquer parte dela, as superstições abundam. Todos nós sabemos disso, mas é idéia feita que só os italianos o sejam e um pouco os espanhóis. Dá-se lá o que se dá entre nós, onde os sociólogos profundos atribuem as nossas, que, às vezes são bem européias, a depósitos na nossa consciência de crendices africanas, quando não tupaicas.
É própria da nossa fraqueza mental essa pressa em explicar com criações arbitrárias o que não podemos cabalmente elucidar de outra forma; daí essas simplistas generalizações de nossos falsos sábios, quanto às origens das nossas crendices e abusões.
O homem, cheio de mistério e cercado de mistério, vivendo aqui, ali e acolá, sempre procura nas coisas externas sinais seguros do seu destino e marcos certos para o seu roteiro na vida. É uma atividade fundamental do nosso espírito que se traduz de vários modos desde os samoiedas e esquimós até os araucânios e patagões. Os estudiosos de folclore já têm observado essa unidade espiritual da raça humana, vendo nos seus contos, fábulas, cantigas, ritos particulares e superstições uma relativa analogia substancial de temas a se manifestar com aparências narrativas de formas variadas.
O Sr Van Gennep diz que da Cendrillon de Perrault, conhecida por nós como A Gata Borralheira, há mais de quatrocentas variantes, de todos os tempos e todos os países, desde a Europa até ao Extremo-Oriente e à nossa América.
O que se dá com a conhecidíssima Gata Borralheira dá-se com quase toda a produção literária coletiva e anônima cujas manifestações são encontradas em todas e as mais diversas partes da Terra e na boca de raças diferentes, não se podendo, entretanto, determinar o foco de sua irradiação.
O autor que citei diz que a conquista da Argélia, com o estudo dos árabes e berberes, demonstrou a existência na África do Norte de múltiplos temas, gozando de uma extensa voga na Europa Central. A minha tenção, porém, não é a de fazer um estudo mais amplo sobre o assunto, mesmo porque não me sobra nem a competência nem a vasta leitura que ele exige.
Tento unicamente com o que tenho observado e ouvido, nas minhas conversas com pessoas do povo e gente humilde, registrar impressões, dar o meu depoimento individual, sem nenhuma outra pretensão mais elevada.
Nas manifestações da psicologia popular, uma das mais curiosas é a superstição caseira que se transmite de pais a filhos, atravessando gerações e as situações mais diversas de fortuna das respectivas famílias.
Desde menino, gosto muito de pombos; e, como sempre com os meus gostos, não distingo no objeto deles o que é de luxo ou o que é comum. Muitas vezes, quis, com os níqueis que ajuntava em um cofre, possuir um casal; e cheguei mesmo a projetar, em um caixão de sabão, o pombal. Nunca em casa me permitiram que eu os tivesse. É crença familiar entre nós que os pombos são, quando se reproduzem muito, sinal de prosperidade no lar; mas, desde que comecem a fugir, indicam que as coisas vão desandar.
É uma crendice geral que qualquer observador pode colher entre as famílias pobres e remediadas; mas para a qual será muito difícil achar uma razoável explicação. Os pombos, arrulhantes pombos das beiras das casas, que eram na antiguidade consagrados a Vênus e cuja posse no regime feudal constituía um privilégio de senhor, são perseguidos, ou eram no meu tempo de menino, por essa abusão familiar de nossa gente pobre.
Em toda a parte, pelo menos nos países europeus e os que surgiram deles, a coruja é tida como uma ave de mau agouro e o seu pio, ouvido à noite, vaticina grandes desgraças domésticas; entretanto, essa ave é na mitologia consagrada a um Deus ou Deusa que, segundo a minha fraca lembrança, nada tem de maléfico.
A serpente também, a nossa cobra, tão cheia de legendas aterradoras e de habilidades cruéis, é consagrada a Minerva, a Atena grega, e o bramanismo simboliza nela o infinito, quando a representa mordendo a própria cauda.
É artigo de fé entre a nossa gente roceira que ela não morde mulher grávida, e perde o poder de locomoção desde que a mulher dê três voltas no cordão que lhe amarra as saias.
Os roceiros dizem que a cobra salta para morder o indivíduo que a afronta; mas os sábios negam isso. Há até, entre os matutos a recomendação de que se deve visá-la bem quando se a quer matar a tiro, pois, errando este, a cobra vem certa pela fumaça do deflagrar da carga da espingarda e morde o atirador.
Negam observadores autorizados essas proezas da cobra, como negam também que ela atraia o passarinho que quer engolir.
O certo é que quem tem vivido na roça ouve, às vezes, um modo particular de gemer dos passarinhos, pousados nas árvores, que não é o vulgar. Já o notei, mas disso a afirmar que seja devido ao “magnetismo” da cobra a atraí-lo, vai uma grande distância.
Todas as superstições caseiras ou familiares têm quase sempre por base o temor dos gênios, das forças, misteriosas contrárias à nossa felicidade. Todas elas se dirigem contra o Azar, que acarreta moléstias, mortes, perdas de emprego e outros acontecimentos nefastos à vida satisfeita do lar; algumas, porém, têm por fim invocar a felicidade e pedir a prosperidade para ele.
A ferradura, apanhada ainda quente dos pés do cavalo quando a perde, pregada atrás da porta da entrada, tem a virtude, dizem, de trazer a satisfação para a casa que a possui.
Na sua generalidade, porém, as crendices populares visam evitar, afastar o “mau olhado”, a “coisa feita”, o “azar” , espontâneo e inexplicável ou provocado pela inveja de inimigos e desafetos.
Para evitar tais coisas, há a figa-de-guiné, que os indivíduos usam, mas os lares também têm. Além desse amuleto e dos santinhos, devem-se trazer, pendurados no pescoço, para afastar desgraças e feitiços, os “breves”.
Chamam a isto pequenos saquinhos, coisas misteriosas, às vezes mesmo orações com a invocação de certos santos ou palavras cabalísticas.
No que toca a orações, há também o costume de escrevê-las e enviar pelo correio aos amigos, com a recomendação de repeti-las tantas vezes e passá-las adiante. Tenho nos meus papéis um espécime dessas; e, se não as transcrevo aqui, é porque não as encontro à mão.
A luta contra o azar, contra a incerteza do dia seguinte, nascida da convicção de que a nossa sorte é insegura e que somos cercados de entidades superiores e pouco amigas da nossa felicidade e repouso, leva-nos às mais curiosas e inesperadas superstições domésticas.
Ninguém derrame tinta ou azeite no chão, porque traz azar; ninguém quebre um espelho, porque traz azar; ninguém ponha uma vassoura “de pernas para o ar”, porque traz azar; ninguém deixe um calçado com a sola voltada para cima, porque traz azar; ninguém vista uma meia ou outra peça de roupa pelo avesso, porque traz azar; e assim são inúmeras as superstições que procuram evitar o azar e todas elas são obedecidas cegamente, mesmo por aqueles que se julgam livres de tais crendices.
Nesse debater nas trevas da nossa vida terrena, que é como caminhamos na nossa breve existência, sem marcos, sem certeza do que fomos, do que somos e do que seremos, a nossa mais urgente necessidade é estar bem com o mistério; e, quando as religiões não nos satisfazem, quando elas, à custa de regrarem a nossa sede e fome de Infinito e de Deus, nos abarrotam de tolices e patranhas manhosas a enfarar, é para essas pequenas e ingênuas crendices que ficaram guardadas na nossa memória, desde a meninice mais tenra, que nos voltamos para que a obscuridade do viver não nos cegue de todo, e elas nos guiem na nossa vida e nos desculpem, depois da nossa morte, perante o que vier…
Eu não deixo nunca o meu chinelo virado com a sola para o ar…
Hoje, 27-3-1919
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