Lima Barreto
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Em 1884, publicou-se aqui, neste Rio de Janeiro, a pequena revista quinzenal, intitulada Gazeta Literária. Não tinha o nome do diretor ou redator-chefe, mas havia no cabeçalho a indicação que se assinava e se vendia na livraria de Faro & Lino, à rua do Ouvidor n.0 74.
De nós que andamos hoje nessas coisas de jornais e revistas, poucos terão notícia dessa livraria e da Gazeta talvez nenhum.
O jornalzinho literário era, entretanto, bem feito e curioso. Impresso em bom papel e nas oficinas Leuzinger, muito cuidado na revisão, tinha um aspecto muito simpático e uma leitura variada, de forte cunho intelectual. Colaboravam nele nomes conhecidos, alguns cheios hoje de glória inesquecível, como Capistrano de Abreu, Raul Pompéia, João Ribeiro, Urbano Duarte, Valentim Magalhães, Araripe Júnior, e outros que, embora pouco conhecidos do grande público, ainda são, não obstante, muito estimados pelos que se interessam com as etapas do nosso acanhado desenvolvimento intelectual.
Teixeira de Melo, o amigo e êmulo de Casimiro de Abreu, que eu conheci velho e diretor da Biblioteca Nacional, quando a freqüentei ali, na Lapa, entre os meus 16 e os 20 anos, publicou na revistinha literária a sua famosa memória sobre a questão das Missões, que tanto devia ajudar o renome de Rio Branco, no dizer dos entendidos; e Beaurepaire Rohan dava nas suas colunas as primeiras páginas do seu Glossário de vocábulos brasileiros, tanto dos derivados de línguas conhecidas como daqueles cuja origem é ignorada. Esse trabalho que, ao que parece, foi publicado em volume, tem sido seguido de outros semelhantes e, ainda bem pouco tempo, vi em uma revista católica – Vozes de Petrópolis – um semelhante da autoria de um sacerdote dessa religião, cujo nome, embora não saiba agora escrevê-lo (o que lastimo), me pareceu ser de alemão. Como estes dois glossários de brasileirismos, há muitos outros, menos gerais talvez, mas que constituem um bom manancial para o famoso Dicionário de Brasileirismos que a Academia Brasileira de Letras se propôs a organizar, mas de que até hoje nada ou quase nada fez.
Voltando, porém, à Gazeta Literária, podemos dizer que, sem nome de diretor, sem talvez um programa definido (não tenho o número inicial), o espírito que a animava, como os leitores estão vendo, era de um grande nacionalismo.
Não era o do nacionalismo dos nossos dias, guerreiro, espingardeiro, “cantativo”, mas que acaba na comodidade das linhas de tiro de classes e repartições e deixa para as funções árduas do verdadeiro soldado a pobre gente que sempre as exerceu, com sorteio ou sem ele.
Era um patriotismo mais espiritual, que não tinha uma finalidade guerreira e pretendia tão-somente conhecer as coisas da nossa terra, a alma das suas populações, o seu passado, e transmitir tudo isto aos outros, para nos ligarmos mais fortemente no tempo e no espaço, em virtude desse próprio entendimento mútuo.
Nas suas notícias sobre o “Movimento Artístico e Literário”, há muita coisa curiosa e muita informação surpreendente. No número de 20 de maio de 1884, há a notícia de uma Fôlha Literária dos Srs. Alexandre Gasparoni Filho e Américo Guimarães – “ex-redatares do Cometa”; há também a de uma Revista Literária, do Sr. Múcio Teixeira. Múcio e Gasparoni – quem os não conhece hoje? Mas, a ambos, como a vida mudou! Pelos títulos de suas publicações de 1884, está se vendo que, em um, ainda não havia despertado o amor pela fotogravura ultramundana; e, no outro, não se poderia nunca adivinhar que, grande poeta que ele era, viesse a ser o Barão Ergonte dos dias atuais.
O que é curioso observar na interessante publicação dos livreiros Faro & Lino é que, há trinta anos, se tentavam publicações da mesma natureza que ainda hoje se tentam. Nas suas “Publicações recebidas” há notícia de uma União Médica, com artigos do Dr. Moncorvo, em francês, e do Dr. Pacífico Pereira, em português, e um parecer do professor Rebourgeon a respeito dos trabalhos sobre a febre amarela do Dr. Domingos Freire, que o sucesso do Sr. Osvaldo Cruz fez esquecer totalmente; há também de uma Revista do Exército Brasileiro que já trata do que hoje parece novidade – o jogo de guerra – num artigo do Sr. F. A. de Moura; há, além de outra revista, a “da Liga do Ensino”, “redigida pelo Sr. Rui Barbosa”, com um artigo desse espírito inquieto e de tudo curioso que foi o Dr. Luís Conty, professor contratado de uma espécie de Missão, que, em 1874, por aí assim, veio para ensinar disciplinas, entre nós novas, na Escola Politécnica do Rio de Janeiro.
Seria um nunca acabar, enumerar, através das páginas da revistinha de 1884, coisas velhas e notar a transformação espiritual dos homens. Uma coisa, porém, se nota: é que as nossas tentativas de hoje têm pouca novidade e se nós não as encadearmos com as que nos precederam, deixam de ter alguma força e são destinadas a morrer no esquecimento como as anteriores. Todo brasileiro julga-se um inovador…
Tenho esses números da Gazeta Literária desde a minha meninice e desde a minha meninice que os leio, com o espírito dos anos que o tempo vai-me pondo às costas. Muita sugestão lhes devo e muito desejo eles me despertaram. Uma delas foi o conhecimento das coisas do folclore nacional e esse desejo até hoje não pude cumprir honestamente. Muita coisa há sobre o assunto, mas anda esparsa em obras tão difíceis de encontrar que me resignei ao acaso das leituras para ganhar uma noção mais ou menos exata da poesia e outras criações da imaginação anônima da nossa terra.
Sei bem que há em Couto Magalhães, Capistrano de Abreu, Sílvio Romero, João Ribeiro muita coisa a ler; mas há também nos viajantes estrangeiros outras coisas mais e, também, em modestos outros provincianos, tantas outras que o meu precário viver não me permite consultar e estudar, tudo e todos.
Dos viajantes estrangeiros, ainda há bem pouco tempo, o Sr. João Ribeiro, no O Imparcial, deu a tradução de um conto popular amazonense que vem no livro de viagem de Wallace. Era tão interessante que eu imaginei que messe de fábulas e narrativas, algo originais e denunciadoras do nosso gênio, dos nossos defeitos e qualidades morais, nós poderíamos encontrar nas obras desses sábios pesquisadores que, sem deixarem de ser profundos nas suas especialidades de ciências naturais, sondavam a alma e a inteligência do povo, que os via catar pedras e ervas, com o mesmo método que os seus hábitos científicos lhes tinham imposto à inteligência.
No número 11 da Gazeta Literária, que é datado de 20 de março de 1884, há um artigo de Vale Cabral, intitulado Algumas canções populares da Bahia. Este Vale Cabral, pouco conhecido e muito menos lembrado atualmente, foi funcionário da Biblioteca Nacional e um dos mais ativos reveladores de coisas da nossa história, só até então conhecidas pelos pacientes eruditos. Ele publicou as cartas do padre Nóbrega, os Anais da Imprensa Nacional, com precisas informações sobre os primeiros livros nela impressos, e nos números da Gazeta que possuo há trechos das famosas Memórias de Drummond sobre o primeiro reinado, José Bonifácio, etc., que suponho terem sido publicados por ele, pela primeira vez.
O seu artigo sobre as canções populares da Bahia muito me impressionou e há maia de vinte anos que não folheio a coleção mutilada da Gazeta que não o leia com este ou outro espírito.
Hoje, por exemplo, é para matar saudades e lembrar os meus bons tempos de menino que leio:
Menina, quando tu fôres
Escreve-me pelo caminho.
Se não tiveres papel,
Nas asas dum passarinho.
Da bôca, fazei tinteiro,
Da língua pena aparada;
Dos dentes, letras miúdas,
Dos olhos carta fechada.
Embora o passarinho da canção fosse um pouco extravagante com os seus dentes, estas quadrinhas, que sempre ouvi e recitei em criança, muito me comoveram e comovem e ainda as guardo na memória. Se, como as retive, tivesse retido as “histórias” que me contavam naquela idade, tirando as que Perrault registra e dando-lhes forma, como a “Gata Borralheira”, poderia fazer um volumezito bem aproveitável. Mas não as guardei e pouco retive de cor dessa arte oral e anônima, afora essas quadrinhas e outros versos como o do famoso “chula”:
Onde vai, senhor Pereira de Morais?
Você vai, não vem cá mais;
As mulatinhas ficam dando aism,
Falando baixo, etc. etc.
Todas essas coisas ingênuas de contos, anedotas, anexins, quadrinhas, lendas, foram soterradas na minha memória por uma avalanche de regras de gramática, de temas, de teorias de química, de princípios de física, disto e daquilo, que, aos poucos, me vão morrendo na lembrança, para deixar emergir nela as histórias humildes do Compadre Macaco, do Mestre Simão e da Comadre Onça, dos meus pobres sete anos de idade.
Nessas confusas recordações que tenho das fábulas e “histórias” populares que me contaram entram animais. O macaco é o símbolo da malignidade, da esperteza, da pessoa “boa na língua”, em luta com a onça, cheia de força, mas traiçoeira e ingrata. Não me fio nas minhas lembranças, mas sempre me pareceu assim. Os estudiosos dessas coisas que verifiquem se a minha generalização é cabível.
Em uns dos meus modestos livros, eu transcrevo uma das “histórias do macaco”, em que ele aparece mais ou menos com essa feição. Não sei se ele figura em alguns dos nossos florilégios e estudos desses assuntos de folclore. Quem me contou, foi um contínuo da Secretaria da Guerra, onde fui empregado, ex-praça do Exército e natural do Rio Grande do Norte, não sei de que localidade: o Sr. Antônio Higino.
A onça aí figura perfeitamente com o feitio moral a que aludi, mas a manha do macaco, para vencê-lo, socorre-se da cumplicidade do Cágado ou Jabuti.
Apesar das manhas, planos e esperteza do macaco, os contos populares lhe emprestam também alguma generosidade e alguma graça e uma filosofia de matuto “tinguejador”. Há mesmo em todas elas, ao que me parece, uma grande simpatia por ele. Se o nosso povo não o fez o seu “totem”, de alguma forma o faz o seu herói epônimo.
Os estrangeiros, talvez, tenham alguma razão quando nos chamam de “macaquitos” ou “little monkeys”, como me ensinou esse singular “totalista” que é o meu amigo Tigre.
Contudo, devido à ignorância, já confessada, que tenho dessas coisas de folclore, eu não me animo a asseverar que a minha generalização possa ser de qualquer forma certa; e o intuito dessas linhas não é esse. O que elas visam, é explicar as razões por que fui levado a procurar, na conversa com homens e raparigas do povo, obter narrações, contos, etc, de origem popular, sem mesmo indagar se eles foram publicados, e dar nesta revista o resultado das minhas conversações com gente de toda a parte.
Sou homem da cidade, nasci, criei-me e eduquei-me no Rio de Janeiro; e, nele, em que se encontra gente de todo o Brasil, vale a pena fazer um trabalho destes, em que se mostre que a nossa cidade não é só a capital política do país, mas também a espiritual, onde se vem resumir todas as mágoas, todos os sonhos, todas as dores dos brasileiros, revelado tudo isso na sua arte anônima e popular.
Queira Deus que leve avante o meu inquérito! Amém.
Hoje, 20-3-1919
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