Lima Barreto
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O Sr. deputado Ildefonso Albano mandou-nos a 2.a edição, como já mandara a primeira, do seu excelente discurso sobre O Secular problema do nordeste. Não é bem o que nós, merecidamente, com os nossos costumes de Assembléias e Câmaras Legislativas, chamamos discurso. É aquilo que os antigos chamavam por esse nome, isto é, uma dissertação, menos do que um “tratado”, mas que toca em todos os pontos do tema presente.
E eu me atrevo a lembrar, para elucidar o que afirmo, o Discours sur 1’histoire universelie, de Bossuet; e o Discours sur la méthode, de Descartes. Ambas essas obras são clássicas e conhecidas de todos; e creio não haver a mínima exibição de sabença, ao citá-las aqui.
A obra do Sr. Ildefonso Albano é, pois, um quadro muito vasto desse atroz problema das secas chamadas do Ceará, que de há muito deviam ter preocupado todos nós brasileiros, de norte a sul, de leste a este, em todos os pontos do nosso território.
Nós não podemos estar limitados a, quando elas aparecem, organizarmos bandos precatórios, festivais de caridade, mais ou menos mundanos, oferecer terra e trabalho aos “retirantes”, despovoando uma grande região do Brasil, para povoar ou encher de necessitados outras.
Todas as que têm aparecido já deviam ter nos ensinado que o caminho era outro e os trabalhos que lá se têm feito e não têm resultado palpável, já nos deviam também ter ensinado que tais trabalhos, por serem mofinos e mesquinhos, deviam ter seguido outra orientação mais ampla e audaciosa.
Os trabalhos dos ingleses no Egito; dos franceses, na Argélia; dos americanos no Colorado, creio, mostram que nós podíamos seguir no Ceará e proximidades esse mesmo rumo de audácia eficaz que tem dado tão bons resultados àqueles.
Se nós temos tido não sei quantas centenas de mil contos para valorizar, de quando em quando, quase anualmente, o café, por que não temos outro tanto para tornar fecunda uma grande região do país que é das mais férteis, exigindo só uma correção, relativamente mínima, na sua distribuição de águas ou na correção da declividade de seus rios, para que venha a sê-lo de fato?
Devido à inclinação do seu solo, como explica o Sr. Dr. Ildefonso Albano, conjuntamente com a fraca espessura do seu solo permeável, o Ceará vê o seu subsolo pouco infiltrado e os seus rios correrem somente três ou quatro meses no ano.
De forma que, quando a chuva é escassa, a terra fica ressequida e os rios tão secos, e é então que se desenrola toda aquela lancinante tragédia do Ceará e proximidades.
Como em geral nos fenômenos meteorológicos não se pode determinar o seu período de sucessão, de modo que nunca se pode prever quando é o ano de chuvas escassas e o ano de chuvas abundantes.
Sendo assim, os habitantes daquelas flageladas regiões são tomados de surpresa, hoje, apesar das nossas pretensões de termos decifrado a natureza, por meio da ciência, como já no começo do século XVII foram também os primeiros conquistadores do Ceará. Tomo a citação do Sr. Ildefonso Albano.
“Rezam as crônicas antigas que em 1603, Pêro Coelho de Sousa, homem nobre, morador na Praiva (?) do Estado do Brasil, com Diogo Campos Moreno, 80 brancos e 800 índios, marchou até o Jaguaribe, onde no Siará ajuntou a si todos aqueles índios moradores, foi até a serra de Buapava e teve grandes recontros com os tabajaras de Mel Redondo, e deu-lhe Deus grandes vitórias. Por falta de provimento e socorro, voltou ao Jaguaribe, onde fundou uma povoação com o nome de Nova Lisboa. De volta para Pernambuco, se veio deixando tudo miseramente a pé com sua mulher e filhos pequenos, parte dos quais pereceram de fome.
“Daí para cá se têm sucedido com cruel periodicidade os tétricos fenômenos, que expulsaram do Ceará o primeiro civilizado, depois de lhe arrebatar os inocentes filhinhos, cujos nomes encimam a lista fúnebre das vítimas da seca, lista longa e interminável, que ainda está por encerrar.
Desde essa primeira notícia, que esse vale do Jaguaribe, sem que o seja em prazo de tempo regular, tem sido assolado pelas secas e mal convalesce de uma, cai-lhe outra em cima. Teimoso que é de continuar a mostrar nos seus constantes renascimentos que é capaz das maiores possibilidades, ele continua a pedir sábios trabalhos hidráulicos, para produzir o melhor algodão do mundo.
É preciso que eles se façam, não só aí, mas em todas as partes que eles forem precisos, não timidamente, como é dos nossos costumes, tanto de engenheiros, como de outra profissão, mas com largueza qualquer e audácia.
É preciso que façamos cessar, todos nós brasileiros, esse horrível espetáculo, que o Sr. Ildefonso Albano ilustra com os mais dolorosos documentos tanto iconográficos, como literais.
Como isto aqui é uma simples notícia de vulgarização de um trabalho que precisa ser divulgado e não uma crítica que não tenho competência nem estudos especiais para fazer, não me furto ao dever, na impossibilidade de também reproduzir as gravuras que um amigo do Dr. Albano queria fossem reproduzidas, de transcrever algumas cartas e outros documentos particulares, para comover o coração dos mais duros.
Em data de 16 de fevereiro de 1916 o padre Raimundo Bezerra, vigário de Jaguaribe-mirim, acusa a recepçao de 400$ e diz:
“Como é grande a necessidade do povo, encontrando-se pessoas caídas de fome, resolvi socorrê-las e empregar o resto do dinheiro em sementes. O povo não pode mais resistir e nesses dias morrerão muitos de fome.”
Mais outro: O vigário de Ipueiras, padre J. de Lima Ferreira, em data de 26 de agosto de 1915, agradecendo a remessa de 300$, escrevia:
“Os famintos aqui se acham em extrema miséria. Muitos estão quase completamente nus. Ipueiras sempre foi um município pobre; demais acha-se alojada aqui uma grande porção de emigrantes de outras freguesias.”
Eu poderia tirar do livro do Dr. Ildefonso Albano mais outros depoimentos simples e tocantes do que é uma seca; mas os que aí vão já bastam para que todos procurem na sua obra uma imagem bem viva do que ela é.
Registro, ainda uma vez, que este pequeno escrito tem unicamente por escopo chamar para ela toda a atenção dos brasileiros.
Todos nós nos devemos interessar por esse problema e de interessa todos nós. Se se pode compreender – Pátria – é como um laço moral e esse laço não nos pode permitir que deixemos à míngua, de épocas em épocas, milhares de patrícios a morrer miseravelmente…
Nada de paliativos; grandes obras para que elas cessem ou sejam atenuadas antes que aquilo lá fique um Saara, sem oásis.
Para isso toda a propaganda é pouca. Eu fiz aqui o que pude.
A.B.C., 21-9-1918
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