De Cascadura ao Garnier

Lima Barreto

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Embarco em Cascadura. É de manhã. O bonde se enche de moças de todas as cores com os vestuários de todas as cores. Vou ocupar o banco da frente, junto ao motorneiro. Quem é ele? É o mais popular da linha. É o “Titio Arrelia” – um crioulo forte, espadaúdo, feio, mas simpático. Ele vai manobrando com as manivelas e deitando pilhérias, para um lado e para outro.

Os garotos, zombando da velocidade do veículo, trepam no bonde e dizem uma chalaça ao ‘Titio”. Ele os faz descer sem bulha nem matinada, graças a uma graçola que sublinha, como todas as outras, com o estribilho:

— É pau!

Esse estribilho tornou-o conhecido em todo o longo trajeto desse interessante bonde que é o Cascadura. Ele percorre uma parte da cidade que até agora era completamente desconhecida. Em grande trecho, perlustra a velha Estrada Real de Santa Cruz, que até bem pouco vivia esquecida.

Entretanto, essa trilha lamacenta que, preguiçosamente, a Prefeitura Municipal vai melhorando, viu carruagens de reis, de príncipes e imperadores. Veio a Estrada de Ferro e matou-a, como diz o povo. Assim aconteceu com Inhomerim, Estrela e outros “portos” do fundo da baía. A Light, porém, com o seu bonde de “Cascadura” descobriu-a de novo e hoje, por ela toda, há um sopro de renascimento, uma palpitação de vida urbana, embora os bacorinhos, a fuçar a lama, e as cabras, a pastar pelas suas margens, ainda lhe dêem muito do seu primitivo ar rural de antanho.

Mas… o bonde de Cascadura corre; “Titio Arrelia”, manejando o “controle”, vai deitando pilhérias, para a direita e para a esquerda; ele já não se contenta com o tímpano; assovia como os cocheiros dos tempos dos bondes de burro; e eu vejo delinear-se uma nova e irregular cidade, por aqueles capinzais que já foram canaviais; contemplo aquelas velhas casas de fazenda que se erguem no cimo das meias-laranjas; e penso no passado.

No passado! Mas… o passado é um veneno. Fujo dele, de pensar nele e o bonde entra com toda a força na embocadura do Mangue. A usina do Gás fica ali e olho aquelas chaminés, aqueles guindastes, aquele amontoado de carvão de pedra. Mais adiante, meus olhos topam com medas de manganês… E o bonde corre, mas “Titio Arrelia” não diz mais pilhérias, nem assovia. Limita-se muito civilizadamente a tanger o tímpano regulamentar. Estamos em pleno Mangue, cujas palmeiras farfalham mansamente, sob um céu ingratamente nevoento. Estamos no Largo de São Francisco. Desço. Penetro pela rua do Ouvidor. Onde os seus bácoros, as suas cabras, os seus galos e os seus capinzais? Não sei ou esqueci-me. Entro na Garnier e logo topo um poeta, que me recita:

— Minh’alma é triste como a rôla aflita, etc.

Então de novo me lembro da Estrada Real, dos seus porcos, das suas cabras, dos seus galos, dos capinzais…

Careta, 29-7-1922.

 

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