Canais e Lagoas

Lima Barreto

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Com este título, pela Livraria Jacinto Ribeiro dos Santos, acaba de ser editado um curioso volume da autoria do Sr. Otávio Brandão.

O objeto do livro, primeiro volume de urna série de três, é o estudo, sob o aspecto orográfico, potamográfico, mineralógico, geológico, etc., de uma curiosa região de Alagoas, crivada de canais e lagoas, que, segundo o prefaciador, vai da lagoa Manguaba até a do Norte.

É uma curiosidade corográfica que só pode ser bem conhecida por especialistas ou pelos naturais da região.

Quando estudei corografia do Brasil, aí pelos meus doze ou treze anos, ela me passou completamente desapercebida, e isto deve ter acontecido a muitos outros.

O Sr. Otávio Brandão, que tão entusiasmado se mostra pelas belezas, singularidades e possibilidades daquela parte do seu Estado natal, publicando o seu interessante livro, devia fazê-lo acompanhar da carta respectiva.

O seu estudo, que é de uma minúcia extraordinária e feito com uma exaltação místico-lírica, ressente-se da falta de um mapa, uma planta, um “croquis” topográfico, que ao menos marcasse, não direi todos os acidentes topográficos, os termos geológicos, mas as linhas gerais da potamografia, da corografia, etc., e também a situação dos povoados, cidades, vilas, aldeias, para uma mais perfeita compreensão de seu trabalho, por parte dos estranhos à região que fossem ler a sua original obra.

O autor que percorreu esse pedaço de terra brasileira, diz mesmo que muito lhe custou compreender tanta complicação de lagoas e canais. Que diremos nós, os seus leitores, então?

Concebida com uma largueza de vistas muito notável na sua idade, a execução do seu trabalho ressente-se, entretanto, aqui e ali, perdendo a diretriz científica que sempre devia obedecer, de certas efusões pessoais inoportunas e de uma exagerada avaliação do merecimento e valor dos lugares, mundos, como diz o autor estudado.

Ele os compara; irá, à Holanda, com os seus canais; irá, à Caldéia; irá à Amazônia; e o próprio Oiticica, no prefácio, dragando, aprofundando canais e construindo muros protetores, numa obscura lagoa, até agora somente sulcada por canoas, transforma-a no papel, em instantes, num dos primeiros pontos do mundo!

Há evidentemente exagero de bairrista nessa hidráulica papeleira e rápida, e eu não queria ver a alta capacidade do observador, a força de estudioso do Sr. Otávio Brandão perturbada por tão infantil sentimento de um patriotismo, por assim dizer, comarquense ou distrital.

O Sr. Brandão que, com tão poucos recursos, se mostrou capaz de profundos estudos de geologia, de mineralogia, de climatologia e, aqui e ali, denuncia um etnógrafo de valor, um analista de usanças, costumes e folclore devia abandonar a visão literária de altas regiões clímicas, como o Egito e o Nilo, para unicamente ver o seu Cadiz e o seu humilíssimo Paraíba, tal qual são.

A Natureza apresenta frescos aspectos semelhantes e muitos menos iguais; e o Sr. Brandão diz uma parecida no seu livro.

É ideante e diversa. No Brasil se encontra o diamante de uma forma; na África do Sul, de outra.

O Nilo é ele e só ele, porque tem entre ele mesmo e suas nascentes, uma planície de imersão, o Bahr-el-Gagol, onde durante meses apodrecem ao sol inclemente toda a sorte de matérias orgânicas, as quais, quando vem a força das águas dos lagos, donde ele se origina, são compelidas, em forma de lodo em suspensão nas águas para o verdadeiro Nilo, inundando e adubando o velho país dos Faraós.

Uma tal disposição geográfica, ao que me consta, não se encontra em nenhum rio da terra; nenhum deles tem um reservatório de adubo, de húmus que se reserva anualmente, e as enchentes arrastam em certas épocas do ano.

Com o avanço da idade o Sr. Otávio Brandão que, tantas qualidades de escritor apresenta neste livro, que tantas qualidades de observador demonstra, que uma rara capacidade de estudo revela, há de abandonar os processos de um otimismo livresco sobre a nossa Natureza que lhe inoculou Euclides da Cunha, para examinar a terra diretamente com o maçarico e o bico de Bunsen, com a balança de Jolly, pesquisar rochas com o microscópio próprio e fazer, enfim, o que aconselha aos letrados, no art. 19, no capítulo que intitula

— “Uma síntese”.

Não me quero despedir do Sr. Otávio Brandão, sem lamentar e lavrar o meu protesto pelos tormentos e perseguições que sofreu, por parte do Governo de Alagoas.

É incrível o que ele narra, mas não tenho dúvida nenhuma em aceitar como verdade.

O governante do Brasil, não se trata desse ou daquele, mas de todos, resvalam pelo caminho perigoso da coação ao pensamento alheio, para o despotismo espiritual.

Ninguém sabe até que ponto pode pensar desta ou daquela maneira; até que ponto não pode pensar. Daí vem que bacharéis ou não, investidos de funções policiais, sem instrução nenhuma e muito menos cultura, encontram na mais leve crítica às teorias governamentais vigentes manifestações de doutrinas perversas, tendentes a matar, roubar, violar e estuprar. Na sua imbecilidade nativa e na sua ignorância total de doutores que fizeram os seus estudos em cadernos, pontos, apostilas, etc., arrastarem para enxovias nauseabundas, doces sonhadores, como este bom Otávio Brandão, que nem ao menos tem um vício.

Com a violência dos antigos processos do governo dos reis absolutos, eles ressuscitaram o crime de lesa-majestade e a razão de Estado.

Um tal estado de coisas não pode continuar; e não há lei que permita essa indigna opressão ao pensamento nacional, tanto mais que a Constituição dá a cada um a mais ampla liberdade de pensar e exprimir as suas idéias, por todos os meios adequados.

Argos, n.0 11, dezembro de 1919

 

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