Lima Barreto
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No ano passado, estando eu nos arredores de Ouro Fino, passando tempos em casa de um amigo, empregado na colônia federal Inconfidentes, que fica distante oito quilômetros daquela pequena cidade do sul de Minas, tive ocasião de ler pela primeira vez um livro de Teo Filho.
O meu bom amigo era o Emílio Alvim, que havia sido durante anos secretário de jornais de péssima fortuna, e, como secretário, tinha organizado uma econômica biblioteca característica dos secretários de jornal.
Quem vive neles pode logo imaginar em que consistem elas. Constam de publicações oficiais, em geral do Ministério da Agricultura, de “plaquetes” de versos ou de discursos laudatórios, de obras de autores gabadas, mas que, em geral, ninguém as lê ou procura. Todas chegam aos jornais por oferecimento dos editores e autores.
Alvim tinha além de exemplares das edições dos Srs. Rodolfo de Miranda e Toledo, inclusive aquele famoso tratado de agricultura da Sra. Júlia Lopes – Correio da Roça – tinha, dizia eu, obras de Sr. Alberto Torres, do Sr. Oliveira Lima e, também, um romance do nosso Teo Filho – Mme. Bifteck-Paff.
Dos três, só conhecia bem o Sr. Oliveira Lima, a quem desde menino, desde a Revista Brasileira, do saudoso José Veríssimo, me habituei a ler com interesse e carinho; mas, dos dois outros, nada havia lido em livro. Li-os lá.
O Sr. Alberto Torres me pareceu um fabricante de constituições, uma espécie de Sieyès, à espera de uma nova revolução francesa com os seus desdobramentos inevitáveis.
Teo, porém, de quem eu tinha lido um artigo de jornal ou outro, mal lhe conhecendo a feição literária, por uma crônica de Patrocínio, em que me surgiu como um aprendiz de Casanova – Teo me surpreendeu.
Achei o seu romance raro, vivo, muito natural, perfumado de graça, à Willy; enfim, uma pintura da vida pernambucana com todos os aspectos de fidelidade, tanto no que toca às almas, como no que se refere ao ambiente em que elas se moviam; e tudo isto sem pedantismo de frase ou exibições de uma sabedoria de empréstimo.
Agora, tenho em mãos, e acabo de ler, um novo livro seu, escrito de colaboração com o Sr. Robert de Bedarieux, que deve ser um autor extraordináriamente novo. É o Anita e Plomark – aventureiros.
Confesso que a leitura deste não me deixou tão forte impressão quanto a do outro. O par de aventureiros agita-se em um meio de “rastas” parvos, de patifes de toda a sorte e origem, de gente que perdeu a alma ou nunca teve uma, formando uma corja que pode ser “sui-generis”, mas que me é visceralmente antipática. Perdôo os criminosos declarados; são menos cínicos.
Não posso compreender nem perdoar semelhantes vagabundos de caso pensado, a vida desses inúteis sem desculpa alguma, desses estéreis de todos os modos, sem nada de sério na cabeça, sem uma paixão, sem uma mania, sem se intimidarem diante do mistério da vida e sem uma ingenuidade sequer. São espíritos perversos demais e o cansaço da vida não lhes vem do trabalho próprio, nem dos seus ancestrais, mas de uma inata maldade aliada a uma perfeita incompreensão das altas coisas da natureza e da humanidade.
Para os machos como tais, o “gato de nove caudas” ou a roda das penitenciárias; para as fêmeas como essa Anita, que Teo parece querer exaltar, só lhes desejo a guilhotina. A “Nouvelle” seria menos gentil.
A prostituição na mulher é a expressão de sua maior desgraça, e a desgraça só merece compaixão quando é total, quando é fatal e nua. Não gosto dos disfarces, das intrujices, das falsificações e, sobretudo, do aproveitamento dessa sagrada marca do destino, para ludibriar os outros.
A prostituta só é digna da piedade e respeito dos homens de coração, quando ela o é em toda a força do seu deplorável estado, quando ela sabe com resignação e sofrimento arcar declaradamente com a sua tristíssima condição. Não é assim a heroína do romance de Teo Filho; não é mesmo o que os venezianos da Renascença chamavam, com tanto respeito, uma hetaira “onesta”, isto é, a cortesã eivada de arte, ensopada de poesia, com certo desinteresse natural e, talvez, uma tal e qual generosidade espontânea.
Ao contrário, Anita, como em geral, as mulheres públicas da nossa sociedade burguesa, é de uma estupidez assombrosa e sem nenhum traço superior de coração ou inteligência.
Os fisiologistas às vezes, para vencer certas dificuldades, estudam de preferência o órgão doente para lhe descobrir a função em estado normal; por Anitas e outras, nós poderíamos muito bem estabelecer o funcionamento normal da mentalidade feminina na nossa sociedade.
O assassínio que ela pratica tem tanto de útil quanto de estupidamente executado.
Há mesmo quem diga que, a não ser por defeito orgânico, a mulher só se prostitui por estupidez. Não será tanto assim, mas há muitos estados intermediários entre a senhora de família e a meretriz, estados que as mais atiladas aproveitam muitas vezes para sair da prostituição declarada.
É verdade que a riqueza e o luxo tentam, mas o luxo e a riqueza, quando verdadeiros e francos, são acidentes na carreira das hetairas.
Geralmente, o primeiro amante não é o velho rico da lenda. É da camada delas, dos seus recursos, mais ou menos; e as raparigas do prazer se recrutam, em geral, nas modestas classes.
Creio que foi Maxime du Camp quem demonstrou isto em um estudo sobre a prostituição em Paris.
E depois deste primeiro amante, seguem-se outros equivalentes, e e “sorte grande” o amásio rico e gastador constante.
Não é pois admirável que uma inteligência lúcida espere retirar de tão degradante estado as fortunas que, por exemplo, homens medíocres sabem sacar de oportunidades, “convênios, defesas, valorizações, auxílios às usinas de açúcar” e outros sutis expedientes honestos da gente progressista de São Paulo.
Os homens têm tais recursos, dirão; mas as mulheres?
Que procurem tais homens, pois, para elas, são eles muito fáceis. Anita faz isto, dir-me-á Teo. Não, meu caro; ela mata e rouba, sem necessidade de tal. Mas… vi que aí seria discutir o livro no meu ponto de vista – o que é coisa bastante impertinente, senão idiota. Tenho que aceitá-lo tal qual é, em bloco; e olha, nada perde com isto.
Há, no novo romance de Teo Filho, e talvez o próprio autor não tenha percebido, um aspecto que o torna notável e muito me interessou. É como ele mostra o mecanismo espiritual pelo qual se dá esse estranho fenômeno do caftinismo, essa abdicação da vontade da mulher, toda inteira, na de um homem, esse domínio de corpo e alma do rufião sobre a meretriz, esse ascendente, quase sempre unicamente determinado por laços psicológicos, em que não entra a mínima violência.
Teotônio analisa muito bem como uma mesquinha alma de mulher, abandonada no vício, perdida, já meio-criminosa, sente o vazio ao redor dela e tem medo desse vácuo moral, espiritual e sentimental. Ah! Essa solidão…
Não terá mais afeições, e as que vai obtendo aqui e ali, só são mantidas graças à ignorância do seu verdadeiro estado, dos seus antecedentes; e, por mais que ela possua força de amor em uma delas, está certa que o resfriamento virá, desde que o afeiçoado saiba quem ela é. Só lhe resta o cáften. É ele o seu único apoio moral, a única alma que se interessa, sem indagação, por ela, e a aceita como ela é. No caso, é Plomarck. Estranha Cavalaria… Ela o ama? A bem dizer, não; mas precisa dele no mundo, na vida, onde uma mulher, ao que parece, não pode existir sem o apoio de um homem qualquer, seja ele marido, pai, irmão, filho, amante ou mesmo cáften.
Sob este aspecto, o livro é notável como análise de um dos mais curiosos fenômenos da psicologia mórbida dos nossos tempos. Não afirmo que seja peculiar à época atual, pois há quem diga que ele é tão geral entre judeus, pelo simples motivo de que o Velho Testamento está recheado de exemplos de alguma coisa análoga e são conhecidos de nós todos; mas, seja como for, com dados atuais, a análise é sagaz no livro de Teotônio.
Anita e Plomarck, aventureiros – é um livro singular e curioso por todos os aspectos que se o encare. Descrevendo esse meio de “parvenus” e “toquées”. de todos os países e côres; desenrolando-se quase todo nas paisagens delambidas e ajeitadas, “ad usum Delphini”, da Côrte D’Azur; retratando a estupidez de recentes ricos, de damas “chics” e gatunos de alto coturno, que não atinamos para que roubam; evidenciando o sáfaro de todos eles – a novela nos prende pela estranheza do assunto, e sempre pela vivacidade dos matizes que o autor emprega nas breves e firmes descrições de que está cheio. É, de fato, um livro: e basta isto, creio eu, para torná-lo digno de atenção.
A.B.C., 16-2-1918
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