Recordações do Escrivão Isaías Caminha

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Lima Barreto

A Benedito de Souza meu compadre e meu amigo

BREVE NOTÍCIA

"Mon coeur profond ressemble à ces voútes
d’église Où le moindre bruit s’enfle en une immense voix."
(Vers d’un philosophe. Guyau.)

Quando comecei a publicar, na Floreal, uma pequena revista
que editei, pelos fins de 1907, as Recordações de meu amigo,
Isaías Caminha, escrivão da Coletoria Federal de Caxambí,
Estado do Espírito Santo, publiquei-as com um pequeno prefácio
do autor. Mais tarde, graças ao encorajamento que mereceu a modesta
obra do escrivão, tratei de publicá-la em volume.

O meu amigo e camarada Antônio Noronha Santos, indo à Europa,
ofereceu-se para arranjar, em Portugal, um editor.

João Pereira Barreto recomendou-me aos Senhores A. M. Teixeira &
Cia, livreiros em Lisboa, com a Livraria Clássica de lá; e elas
foram impressas sob as vistas dedicadas do Senhor Albino Forjaz de Sampaio,
a quem muito devem, em correção, as Recoroações.

A todos três, não posso, em nome do meu querido Isaías,
deixar de agradecer-lhes mais uma vez o serviço que prestaram à
obra.

Eu, porém, como tinha plena autorização do autor, por
ocasião de mandar o manuscrito para o prelo, suprimi o prefácio,
a donnée, que agora epigrafa estas linhas, e algumas coisas mais.

O meu intuito era lançar o livro do meu amigo, sem escoras ou pára-balas.

Assim foi. Hoje, porém, que faço uma segunda edição
dele, restabeleço o original tal e qual o Caminha me enviou, pois não
havia motivo para supressão de tanta coisa interessante que muito concorre
para a boa compreensão do livro.

E faço isso, porque julgo que foram elas um tanto que levaram aquele
espírito firme e independente, aquele sagaz crítico, com o seu
nobre amor pelos grandes ideais nas letras, que se chamou José Veríssimo,
a dizer na sua Revista Literária, às segundas-feiras, no Jornal
do Comércio, de 9 de dezembro de 1907, o seguinte, a respeito do que
lhe pareceu uma novela:

"Ai de mim, se fosse a ‘revistar’ aqui quanta revistinha por aí
aparece com presunção de literária, artística
e científica.

Não teria mãos a medir e descontentaria a quase todos; pois
a máxima parte delas me parecem sem o menor valor, por qualquer lado
que as encaremos. Abro uma justa exceção, que não desejo
fique como precedente, para uma magra brochurazinha que com o nome esperançoso
de Floreal veio ultimamente a público, e onde li um artigo "Spencerismo
e Anarquia", do Senhor M. Ribeiro de Almeida, e o começo de uma
novela Recordações do Escrivão Isaías Caminha,
pelo Senhor Lima Barreto, nos quais creio descobrir alguma cousa. E escritos
com uma simplicidade e sobriedade, e já tal qual sentimento de estilo
que corroboram essa impressão."

Como vêem, José Veríssimo disse estas palavras, logo
ao aparecerem os primeiros capítulos; e, pensando serem verdadeiras
as razões que expus, restabeleço o manuscrito, como me foi confiado,
passando a transcrever o prefácio inteiramente como saiu na inditosa
Floreal.

Ei-lo:

"Eu me lembrei de escrever estas recordações, há
dois anos, quando, um dia, por acaso, agarrei um fascículo de uma revista
nacional, esquecida sobre o sofá de minha sala humilde, pelo promotor
público da comarca.

Nela um dos seus colaboradores fazia multiplicadas considerações
desfavoráveis à natureza da inteligência das pessoas do
meu nascimento, notando a sua brilhante pujança nas primeiras idades,
desmentida mais tarde, na madureza, com a fraqueza dos produtos, quando os
havia, ou em regra geral, pela ausência deles.

Li-o a primeira vez com ódio, tive desejos de rasgar as páginas
e escrever algumas verrinas contra o autor.

Considerei melhor e vi que verrinas nada adiantam, não destroem; se,
acaso, conseguem afugentar, magoar o adversário, os argumentos deste
ficam vivos, de pé.

O melhor, pensei, seria opor argumentos a argumentos, pois se uns não
destruíssem os outros, ficariam ambos face a face, à mão
de adeptos de um e de outro partido.

Com essa reflexão, que me animo a chamar de bom conselho e excelente
inteligência, vieram-me recordações de minha vida, de
toda ela, do meu nascimento, infância, puerícia e mocidade.

Mentalmente comparei os meus extraordinários inícios nos mistérios
das letras e das ciências e os prognósticos dos meus professores
de então, com este meu triste e bastardo fim de escrivão de
coletoria de uma localidade esquecida.

Por instantes, dei razão ao autor do escrito.

Cheio de melancolia, daquela melancolia nativa que me ensombra nas horas
de alegria e mais me deprime nas de desalento, acendi nervosamente um cigarro,
fui à janela, olhei um momento o rio a correr e me pus a analisar detidamente
os fatos de meu passado, que me acabavam de passar pelos olhos.

Verifiquei, que, até ao curso secundário as minhas manifestações,
quaisquer, de inteligência e trabalho, de desejos e ambições,
tinham sido recebidas, senão com aplauso ou aprovação,
ao menos como coisa justa e do meu direito; e que daí por diante, dês
que me dispus a tomar na vida o lugar que parecia ser de meu dever ocupar,
não sei que hostilidade encontrei, não sei que estúpida
má vontade me veio ao encontro, que me fui abatendo, decaindo de mim
mesmo, sentindo fugir-me toda aquela soma de idéias e crenças
que me alentaram na minha adolescência e puerícia.

Cri-me fora de minha sociedade, fora do agrupamento a que tacitamente eu
concedia alguma coisa e que em troca me dava também alguma coisa.

Não sei bem o que cri; mas achei tão cerrado o cipoal, tão
intrincada a trama contra a qual me fui debater, que a representação
da minha personalidade na minha consciência, se fez outra, ou antes
esfacelou-se a que tinha construído.

Fiquei como um grande paquete moderno cujos tubos da caldeira se houvessem
rompido e deixado fugir o vapor que movia suas máquinas.

E foram tantos os casos dos quais essa minha conclusão ressaltava,
que resolvi narrar trechos de minha vida, sem reservas nem perífrases,
para de algum modo mostrar ao tal autor do artigo, que, sendo verdadeiras
as suas observações, a sentença geral que tirava, não
estava em nós, na nossa carne e nosso sangue, mas fora de nós,
na sociedade que nos cercava, as causas de tão feios fins de tão
belos começos.

Com isso, não foi minha tenção fazer obra d’arte, romance,
embora aquele Taine que, certa vez, o doutor Graciliano, o promotor público,
me deu a ler, dissesse que a obra d’arte tem por fim dizer aquilo que os simples
fatos não dizem.

Não é meu propósito também fazer uma obra de
ódio; de revolta enfim; mas uma defesa a acusações deduzidas
superficialmente de aparências cuja essência explicadora, as mais
das vezes, está na sociedade e não no indivíduo desprovido
de tudo, de família, de afetos, de simpatias, de fortuna, isolado contra
inimigos que o rodeiam, armados da velocidade da bala e da insídia
do veneno.

Perdoem-me os leitores a pobreza da minha narração.

Não sou propriamente um literato, não me inscrevi nos registros
da Livraria Garnier, do Rio, nunca vesti casaca e os grandes jornais da Capital
ainda não me aclamaram como tal – o que de sobra, me parece, são
motivos bastante sérios, para desculparem a minha falta de estilo e
capacidade literária.

Caxambí, Espírito Santo, 12 de julho de 1905.

Isaías Caminha

Escrivão da Coletoria.

* * *

Afora as coisas da "Garnier", e da "casaca" e dos "jornais",
que são preconceitos provincianos, o prefácio, penso eu, consolida
a obra e a explica, como os leitores irão ver.

Disse bem preconceitos, porque, após dez anos, tantos são os
que vão da composição das Recordações aos
dias que correm, o meu amigo perdeu muito da sua amargura, tem passeado pelo
Rio com belas fatiotas, já foi ao Municipal, freqüenta as casas
de chá; e, segundo me escreveu, vai deixar de ser representante do
Espírito Santo, na Assembléia Estadual, para ser, na próxima
legislatura, deputado federal. Ele não se incomoda mais com o livro;
tomou outro rumo. Hei de vê-lo em breve entre as encantadoras, fazendo
o tal footing domingueiro, no Flamengo, e figurando nas notícias elegantes
dos jornais. Isaías deixou de ser escrivão. Enviuvou sem filhos,
enriqueceu e será deputado. Basta.

Deus escreve direito por linhas tortas, dizem. Será mesmo isso ou
será de lamentar que a felicidade vulgar tenha afogado, asfixiado um
espírito tão singular? Quem sabe lá?

Para mim, no entanto, sem acreditar na intervenção de nenhuma
Dejanira, sou de opinião que ele está vestindo a túnica
de Néssus da Sociedade.

Todos os Santos, 31 de dezembro de 1916.

LIMA BARRETO.

I

A tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível mental
do meu meio familiar agiram sobre mim de um modo curioso: deram-me anseios
de inteligência. Meu pai, que era fortemente inteligente e ilustrado,
em começo, na minha primeira infância, estimulou-me pela obscuridade
de suas exortações. Eu não tinha ainda entrado para o
colégio, quando uma vez me disse: Você sabe que nasceu quando
Napoleão ganhou a Batalha de Marengo? Arregalei os olhos e perguntei:
Quem era Napoleão? Um grande homem, um grande general… E não
disse mais nada. Encostou-se à cadeira e continuou a ler o livro. Afastei-me
sem entrar na significação de suas palavras; contudo, a entonação
de voz, o gesto e o olhar ficaram-me eternamente. Um grande homem!…

O espetáculo de saber do meu pai, realçado pela ignorância
de minha mãe e de outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança,
como um deslumbramento.

Pareceu-me então que aquela sua faculdade de explicar tudo, aquele
seu desembaraço de linguagem, a sua capacidade de ler línguas
diversas e compreendê-las, constituíam, não só
uma razão de ser de felicidade, de abundância e riqueza, mas
também um título para o superior respeito dos homens e para
a superior consideração de toda a gente.

Sabendo, ficávamos de alguma maneira sagrados, deificados… Se minha
mãe me aparecia triste e humilde – pensava eu naquele tempo – era porque
não sabia, como meu pai, dizer os nomes das estrelas do céu
e explicar a natureza da chuva…

Foi com estes sentimentos que entrei para o curso primário. Dediquei-me
açodadamente ao estudo. Brilhei, e com o tempo foram-se desdobrando
as minhas primitivas noções sobre o saber.

Acentuaram-se-me tendências; pus-me a colimar glórias extraordinárias,
sem lhes avaliar ao certo a significação e a utilidade. Houve
na minha alma um tumultuar de desejos, de aspirações indefinidas.
Para mim era como se o mundo me estivesse esperando para continuar a evoluir…

Eu ouvia uma tentadora sibila falar-me, a toda a hora e a todo instante,
na minha glória futura. Agia desordenadamente e sentia a incoerência
dos meus atos, mas esperava que o preenchimento final do meu destino me explicasse
cabalmente. Veio-me a pose a necessidade de ser diferente. Relaxei-me no vestuário
e era preciso que minha mãe me repreendesse para que eu fosse mais
zeloso. Fugia aos brinquedos, evitava os grandes grupos, punha-me só
com um ou dois, à parte, no recreio do colégio; lá vinha
um dia, porém, que brincava doidamente, apaixonadamente. Causava com
isso espanto aos camaradas: Oh! Isaías brincando! Vai chover…

A minha energia no estudo não diminuiu com os anos, como era de esperar;
cresceu sempre progressivamente. A professora admirou-me e começou
a simpatizar comigo. De si para si (suspeito eu hoje), ela imaginou que lhe
passava pelas mãos um gênio. Correspondi-lhe à afeição
com tanta força d’alma, que tive ciúmes dela, dos seus
olhos azuis e dos seus cabelos castanhos, quando se casou. Tinha eu então
dois anos de escola e doze de idade. Daí a um ano, saí do colégio,
dando-me ela como recordação, um exemplar do "Poder da
Vontade", luxuosamente encadernado, com uma dedicatória afetuosa
e lisonjeira. Foi o meu livro de cabeceira. Li-o sempre com mão diurna
e noturna, durante o meu curso secundário, de cujos professores, poucas
recordações importantes conservo hoje. Eram banais! Nenhum deles
tinha os olhos azuis de D. Ester, tão meigos e transcendentais que
pareciam ler o meu destino, beijando as páginas em que estava escrito!…

Quando acabei o curso do Liceu, tinha uma boa reputação de
estudante, quatro aprovações plenas, uma distinção
e muitas sabatinas ótimas. Demorei-me na minha cidade natal ainda dois
anos, dois anos que passei fora de mim, excitado pelas notas ótimas
e pelos prognósticos da minha professora, a quem sempre visitava e
ouvia. Todas as manhãs, ao acordar-me, ainda com o espírito
acariciado pelos nevoentos sonhos de bom agouro, a sibila me dizia ao ouvido:
Vai, Isaías! vai!… Isto aqui não te basta… Vai para o Rio!
Então, durante horas, através das minhas ocupações
quotidianas, punha-me a medir as dificuldades, a considerar que o Rio era
uma cidade grande, cheia de riqueza, abarrotada de egoísmo, onde eu
não tinha conhecimentos, relações, protetores que me
pudessem valer…

Que faria lá, só, a contar com as minhas próprias forças?
Nada… Havia de ser como uma palha no redemoinho da vida – levado daqui,
tocado para ali, afinal engolido no sorvedouro… ladrão… bêbado…
tísico e quem sabe mais? Hesitava. De manhã, a minha resolução
era quase inabalável, mas, já à tarde, eu me acobardava
diante dos perigos que antevia.

Um dia, porém, li no "Diário de * * *" que o Felício,
meu antigo condiscípulo, se formara em Farmácia, tendo recebido
por isso uma estrondosa, dizia o "Diário", manifestação
dos seus colegas.

Ora Felício! pensei de mim para mim. O Felício! Tão
burro! Tinha vitórias no Rio! Por que não as havia eu de ter
também – eu que lhe ensinara, na aula de português, de uma vez
para sempre, diferença entre o adjunto atributivo e o adverbial? Por
quê!? Li essa notícia na sexta-feira. Durante o sábado,
tudo enfileirei no meu espírito, as vantagens e as desvantagens de
uma partida. Hoje, já não me recordo bem das fases dessa batalha;
porém uma circunstância me ocorre das que me demoveram a partir.
Na tarde de sábado, saí pela estrada fora. Fazia mau tempo.
Uma chuva intermitente caía desde dois dias.

Saí sem destino, a esmo, melancolicamente aproveitando a estiada.

Passava por um largo descampado e olhei o céu. Pardas nuvens cinzentas
galopavam, e, ao longe, uma pequena mancha mais escura parecia correr engastada
nelas. A mancha aproximava-se e, pouco a pouco, via-a subdividir-se, multiplicar-se;
por fim, um bando de patos negros passou por sobre a minha cabeça,
bifurcado em dois ramos, divergentes de um pato que voara na frente, a formar
um V. Era a inicial de "Vai". Tomei isso como sinal animador, como
bom augúrio do meu propósito audacioso. No domingo, de manhã,
disse de um só jato à minha mãe: – Amanhã, mamãe,
vou para o Rio.

Minha mãe nada respondeu, limitou-se a olhar-me enigmaticamente,
sem aprovação nem reprovação; mas, minha tia,
que costurava em uma ponta de mesa, ergueu um tanto a cabeça, descansou
a costura no colo e falou persuasiva: – Veja lá o que vai fazer, rapaz!
Acho que você deve aconselhar-se com o Valentim! – Ora qual! fiz eu
com enfado. Para que Valentim? Não sou eu rapaz ilustrado? Não
tenho todo o curso de preparatórios? Para que conselhos? – Mas olhe,
Isaías! você é muito criança… Não têm
prática… O Valentim conhece mais a vida do que você. Tanto
mais que já esteve no Rio…

Minha tia, irmã mais velha de minha mãe, não tinha
acabado de dizer a última palavra, quando o Valentim entrou envolvido
num comprido capote de baeta.

Descansou alguns pacotes de jornais manchados de selos e carimbos; tirou
o boné com o emblema do Correio e pediu café.

– Você veio a propósito, Valentim. Isaías quer ir para
o Rio e eu acabo de recomendar que se aconselhasse com você.

– Quando você pretende ir, Isaías? indagou meu tio, sem surpresa
e imediatamente: – Amanhã, disse eu cheio de resolução.

Ele nada mais disse. Calamo-nos e minha tia saiu da sala, levando o capote
molhado e logo depois voltou, trazendo o café.

– Quer parati, Valentim? – Quero.

Revolvendo lentamente o açúcar no fundo da xícara,
meu tio continuou ainda calado por muito tempo. Tomou um gole de café,
depois um outro de aguardente, esteve com o cálice suspenso alguns
instantes, descansou-o na mesa automaticamente e, aos poucos, a sua fisionomia
de largos traços de ousadia, foi revelando um grande trabalho de concentração
interior. Minha mãe nada dissera até aí.

Num dado momento, pretextando qualquer coisa, levantou-se e foi aos fundos
da casa. Ao sair fez a minha tia uma insignificante pergunta sobre o arranjo
doméstico, sem aludir à minha resolução e sem
despertar meu tio da cisma profunda em que se engolfara.

Ansioso, deixei-me ficar à espera de uma resposta dele, notando-lhe
as menores contrações do rosto e decifrando os mais tênues
lampejos de seu olhar. Houve um segundo que ele me pareceu ter suspendido
todo o movimento exterior de sua pessoa. A respiração como que
parara, tinha o cenho carregado, as rugas da testa larga e quadrada fixadas,
como se tivessem sido vazadas em bronze, e os olhos imóveis, orientados
para uma fresta da mesa, brilhantes, extraordinariamente brilhantes e salientes,
como que a saltar das órbitas, para farejar o rasto provável
da minha vida na intrincada floresta dos acontecimentos. Gostava dele. Era
um homem leal, valoroso, de pouca instrução, mas de coração
aberto e generoso. Contavam-lhe façanhas, bravatas portentosas, levadas
ao cabo, pelos tempos em que fora, nas eleições, esteio do partido
liberal. Pelas portas das vendas, quando passava, cavalgando o seu simpático
cavalo magro, com um saco de cartas à garupa, murmuravam: "Que
songa-monga! Já liquidou dois…" Eu sabia do caso, estava mesmo
convencido de sua exatidão; entretando, apesar das minhas precoces
exigências de moral inflexível, não me envergonhava de
estimá-lo, amava-o até, sem mescla de terror, já pela
decisão de seu caráter, já pelo apoio certo que nos dera,
a mim e a minha mãe, quando veio a morrer meu pai, vigário da
freguesia de * * * . Animara a continuar meus estudos, fizera sacrifícios
para me dar vestuário e livros, desenvolvendo assim uma atividade acima
dos seus recursos e forças.

Durante os dois anos que passei, depois de ter concluído humanidades,
o seu caráter atrevido conseguia de quando em quando arranjar-me um
ou outro trabalho. Desse modo, eu ia vivendo uma doce e medíocre vida
roceira, sempre perturbada, porém, pelo estonteante propósito
de me largar para o Rio. Vai Isaías! Vai! Meu tio ergueu a cabeça,
pousou o olhar demoradamente sobre mim e disse: – Fazes bem! Acabou de tomar
o café, pediu o capote e convidou-me: – Vem comigo. Vamos ao coronel…
Quero pedir-lhe que te recomende ao dr. Castro, deputado.

Minha tia trouxe o capote, e quando íamos saindo apareceu também
minha mãe, recomendando: – Agasalha-te bem, Isaías! Levas o
chapéu de chuva? – Sim, senhora, respondi.

Durante quarenta minutos, patinhamos na lama do caminho, até à
casa do Coronel Belmiro. Mal tínhamos empurrado a porteira que dava
para a estrada, o vulto grande do fazendeiro assomou no portal da casa, redondo,
num longo capote e coberto de um largo chapéu de feltro preto. Aproximamo-nos…

– Oh! Valentim! fez preguiçosamente o Coronel. Você traz cartas?
Devem ser do Trajano, conhece? Sócio do Martins, da rua dos Pescadores…

– Não senhor, interrompeu meu tio.

– Ah! É seu sobrinho… Nem o conheci… Como vai, menino? Não
esperou minha resposta; continuou logo em seguida: – Então, quando
vai para o Rio? Não fique aqui… Vá… Olhe, o senhor conhece
o Azevedo? – É disso mesmo que vínhamos tratar. Isaías
quer ir para o Rio e eu vinha pedir a V. S…

– O quê? interrompeu assustado o coronel.

– Eu queria que, V. S., Sr. Coronel, gaguejou o tio Valentim, recomendasse
o rapaz ao doutor Castro.

O coronel esteve a pensar. Mirou-me de alto a baixo, finalmente falou: –
Você tem direito, seu Valentim… É… Você trabalhou pelo
Castro… Aqui para nós: se ele está eleito, deve-o a mim e
aos defuntos, e você que desenterrou alguns. Riu-se muito, cheio de
satisfação por ter repetido tão velha pilhéria
e perguntou amavelmente em seguida: – O que é que você quer que
lhe peça? – V. S. podia dizer na carta que o Isaías ia ao Rio
estudar, tendo já todos os preparatórios, e precisava, por ser
pobre, que o Dr. lhe arranjasse um emprego.

O Coronel não se deteve, fez-nos sentar, mandou vir café e
foi a um compartimento junto escrever a missiva.

Não se demorou muito; as suas noções gramaticais não
eram suficientemente fortes para retardar a redação de uma carta.
Demoramo-nos ainda um pouco e, quando nos despedíamos, o Coronel abraçou-me,
dizendo: – Faz bem, menino. Vá, trabalhe, estude, que isto aqui é
uma terra à-toa com licença da palavra, de m… O Castro deve
fazer alguma coisa por você. Ele foi assim também… O pai, você
o conheceu, seu Valentim? – Sim, Coronel, disse meu tio.

– …era muito pobre, muito mesmo… O Hermenegildo, o Castro, quis estudar.
Nós… nós não, eu principalmente que era presidente,
arranjei-lhe uma subvenção da Câmara… E foi assim. Hoje,
acrescentou o Coronel imediatamente, não é preciso, o Rio é
muito grande, há muitos recursos… Vá, menino! Não chovia
mais. As nuvens tinham corrido de um lado do horizonte, deixando ver uma nesga
de céu azul.

Um pouco de sol banhava aquelas colinas tristes e fatigadas por entre as
quais caminhávamos.

As cigarras puseram-se a estridular e vim vindo, de cabeça baixa,
sem apreensões, cheio de esperanças, exuberante de alegrias.

A minha situação no Rio estava garantida. Obteria um emprego.
Um dia pelos outros iria às aulas, e todo o fim de ano, durante seis,
faria os exames, ao fim dos quais seria doutor! Ah! Seria doutor! Resgataria
o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente,
cruciante e onímodo de minha cor… Nas dobras do pergaminho da carta,
traria presa a consideração de toda a gente. Seguro do respeito
à minha majestade de homem, andaria com ela mais firme pela vida em
fora. Não titubearia, não hesitaria, livremente poderia falar,
dizer bem alto os pensamentos que se estorciam no meu cérebro.

O flanco, que a minha pessoa, na batalha da vida, oferecia logo aos ataques
dos bons e dos maus, ficaria mascarado, disfarçado…

Ah! Doutor! Doutor!… Era mágico o título, tinha poderes
e alcances múltiplos, vários, polifórmicos… Era um
pallium, era alguma coisa como clâmide sagrada, tecida com um fio tênue
e quase imponderável, mas a cujo encontro os elementos, os maus olhares,
os exorcismos se quebravam. De posse dela, as gotas de chuva afastar-se-iam
transidas do meu corpo, não se animariam a tocar-me nas roupas, no
calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios solares escolheria
os mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexoráveis,
com o comum dos homens que não é doutor. Oh! Ser formado, de
anel no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo antes
de ferir a martelada à beira do brejo; andar assim pelas ruas, pelas
praças, pelas estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor,
como passou? Como está, doutor? Era sobre-humano!…

Estávamos quase a chegar…

Pelo caminho, viemos, os dois, calados. Eu todo entregue às minhas
reflexões, que meu tio, uma vez ou outra, veio perturbar com uma pergunta
qualquer. Era sem vontade de continuar a conversa que eu respondia; depois
da terceira tentativa para entabulá-la, não insistiu mais. O
sol fugia aos poucos, as cigarras deixaram de cantar e quando chegamos a casa,
a chuva caiu novamente.

Almocei, saí até à cidade próxima para fazer
as minhas despedidas, jantei e, sempre, aquela visão doutoral que não
me deixava. Uma face dela me aparecia, depois outra mais brilhante; esta provocava
uma consideração, aquela mais uma propriedade da carta onipotente.
De noite, no teto da minha sala baixa, pelos portais, eu via escrito pela
luz do lampião de petróleo – Doutor! Doutor! Quantas prerrogativas,
quantos direitos especiais, quantos privilégios esse título
dava! Pus-me a considerar que isso deveria ser antigo… Newton, César,
Platão e Miguel Ângelo deviam ter sido doutores! Foram os primeiros
legisladores que deram à carta esse prestígio extraterrestre…
Naturalmente, teriam escrito nos seus códigos: tudo o que há
no mundo é propriedade do doutor, e se de alguma coisa outros homens
gozam, devem-no à generosidade do doutor. Era uma outra casta, para
qual eu entraria, e desde que penetrasse nela, seria de osso, sangue e carne
diferente dos outros – tudo isso de uma qualidade transcendente, fora das
leis gerais do Universo e acima das fatalidades da vida comum.

– Levas toda a roupa, Isaías? veio interromper minha mãe.

– A que houver, mamãe.

Eu estava deitado num velho sofá amplo. Lá fora, a chuva caía
com redobrado rigor e ventava fortemente. A nossa casa frágil parecia
que, de um momento para outro, ia ser arrasada. Minha mãe ia e vinha
de um quarto próximo; removia baús, arcas; cosia, futicava.
Eu devaneava e ia-lhe vendo o perfil esquálido, o corpo magro, premido
de trabalhos, as faces cavadas com os malares salientes, tendo pela pele parda
manchas escuras, como se fossem de fumaça entranhada. De quando em
quando, ela lançava-me os seus olhos aveludados, redondos, passivamente
bons, onde havia raias de temor ao encarar-me. Supus que adivinhava os perigos
que eu tinha de passar; sofrimentos e dores que a educação e
inteligência, qualidades a mais na minha frágil consistência
social, haviam de atrair fatalmente. Não sei que de raro, excepcional
e delicado, e ao mesmo tempo perigoso, ela via em mim, para me deitar aqueles
olhares de amor e espanto, de piedade e orgulho. Aos seus olhos – muitas vezes
se me veio a afigurar – eu era como uma rapariga, do meu nascimento e condição,
extraordinariamente bonita, vivaz e perturbadora… Seria demais tudo isso;
cercá-la-ia logo o ambiente de sedução e corrupção,
e havia de acabar por aí, por essas ruas…

Por vezes, também acreditei que ela nada quisesse exprimir com eles;
que tinha por mim a indiferença da máquina pelo seu produto.
Que importa aos teares de Valenciennes o destino de suas rendas?! Eu cria-a,
então, resignada a ficar ali, nas proximidades de uma cidade de terceira
ordem, tendo, de onde em onde, notícias minhas naquela grande cidade
que a sua imaginação a custo havia de representar. E quem sabe
se as notícias seriam de ordem a provocar-lhe dúvidas sobre
sua maternidade?! Coitada! Pobre de minha mãe! – Olhe, mamãe,
disse eu, logo que me arrume mando-a buscar. A senhora está ouvindo?
– Sim, respondeu ela com fingida indiferença.

– Alugaremos uma casa. Todos os dias, quando eu for trabalhar, tomarei a
sua bênção; quando tiver de estudar até alta noite,
a senhora há de dar-me café, para espantar o sono… Sim, mamãe?
E me pus a abraçá-la efusivamente.

– É bom! Estuda Isaías, fez ela, desvencilhando-se de mim
brandamente. Não te importes comigo… Estuda, meu filho! Eu já
estou velha demais…

– Mamãe, não acredita em mim.

– Acredito, meu filho; mas… mas não quero sair daqui.

No dia seguinte, quando me despedi, ela deu-me um forte abraço, afastou-se
um pouco e olhou-me longamente, com aquele olhar que me lançava sempre,
fosse em que circunstância fosse, onde havia mesclados, terror, pena,
admiração e amor.

– Vai, meu filho, disse-me ela afinal! Adeus!… E não te mostres
muito, porque nós…

E não acabou. O choro a tomou convulsa e foi chorando que me afastei.

II

A viagem de trem correu enfadonha. Não sei se devido à falta
de comodidade do banco, não sei se às grandes emoções
por que passara, o certo é que me invadiu durante toda ela um letargo,
um torpor que me chumbou o corpo e me tornou a inteligência de difícil
penetração. Encostado ao espaldar do banco, viajava meio acordado,
meio dormindo; de quando em quando, um solavanco do carro abria-me violentamente
os olhos e obrigava-me a considerar mais detidamente a paisagem que fugia
pela portinhola do vagão.

Eram as mesmas charnecas úmidas ao sopé de morros de porte
médio, revestidos de um mato ralo, anêmico, verde-escuro, onde,
por vezes, uma árvore de mais vulto se erguia soberbamente, como se
o conseguisse pelo esforço de uma vontade própria.

O sol coava-se com dificuldade por entre grossos novelos de nuvens erradias,
distribuindo, sobre as coisas que eu ia vendo, uma luz amarelada e desigual.

Pelo declive suave de uma encosta, o tapete escuro do mato aparecia mosqueado,
com as manchas arredondadas, claras e escuras, salpicadas com relativa regularidade.
Por aqui, por ali, trechos foscos e baços contrastavam com tufos vivos,
profusamente iluminados – rebentos de vida numa pele doente…

O trem parara e eu abstinha-me de saltar. Uma vez, porém, o fiz;
não sei mesmo em que estação. Tive fome e dirigi-me ao
pequeno balcão onde havia café e bolos. Encontravam-se lá
muitos passageiros. Servi-me e dei uma pequena nota para pagar. Como se demorassem
em trazer-me o troco reclamei: "Oh! fez o caxeiro indignado e em tom
desabrido. Que pressa tem você?! Aqui não se rouba, fique sabendo?"
Ao mesmo tempo ao meu lado, um rapazola alourado, reclamava o dele, que lhe
foi prazenteiramente entregue. O contraste feriu-me, e com os olhares que
os presentes me lançaram, mais cresceu a minha indignação.
Curti durante segundos, uma raiva muda, e por pouco ela não rebentou
em pranto. Trôpego e tonto, embarquei e tentei decifrar a razão
da diferença dos dois tratamentos. Não atinei; em vão
passei em revista a minha roupa e a minha pessoa… Os meus dezenove anos
eram sadios e poupados, e o meu corpo regularmente talhado. Tinha os ombros
largos e os membros ágeis e elásticos. As minhas mãos
fidalgas com dedos afilados e esguios, eram herança de minha mãe,
que as tinha tão valentemente bonitas que se mantiveram assim, apesar
do trabalho manual a que a sua condição a obrigava. Mesmo de
rosto, se bem que os meus traços não fossem extraordinariamente
regulares, eu não era hediondo nem repugnante. Tinha-o perfeitamente
oval, e a tez de cor pronunciadamente azeitonada.

Além de tudo, eu sentia que a minha fisionomia era animada pelos
meus olhos castanhos, que brilhavam doces e ternos nas arcadas superciliares
profundas, traço de sagacidade que herdei do meu pai. Demais, a emanação
da minha pessoa, os desprendimentos da minha alma, deviam ser de mansuetude,
de timidez e bondade… Por que seria então, meu Deus? Os esforços
que fiz, mais espesso tornaram o capacete plúmbeo que me oprimia o
cérebro. O torpor tomou-me mais fortemente e por fim dormi, dormi não
sei quantas horas, não sei quantos minutos, pois que, ao despertar,
era boca da noite, e o crepúsculo cobria as coisas com uma capa de
melancolia por assim dizer tangível. Afagava, roçava pelas minhas
faces, tocava-me nas mãos de leve como uma pelúcia… Por entre
laranjais dourados de pomos maduros, a locomotiva corria célere…
Chegamos à estação terminal, mas não acabou aí
a viagem. Passamo-nos para uma barca que atravessou vagarosamente por entre
ilhotas até alcançar o largo da baía.

O espetáculo chocou-me. Repentinamente senti-me outro. Os meus sentidos
aguçaram-se; a minha inteligência entorpecida durante a viagem,
despertou com força, alegre e cantante… Eu via nitidamente as coisas
e elas penetraram em mim até ao âmago. Convergi todo o meu aparelho
de exame para o espetáculo que me surpreendia. Estive por instantes
espasmodicamente arrebatado, para um outro mundo, adivinhado além das
coisas sensíveis e materiais. Voluptuosamente, cerrei os olhos; depois,
aos poucos, descerrei as pálpebras para olhar embaixo o mar espelhento
e misterioso. A barca vogava, as águas negras abriam – fingindo resistência,
calculando a recusa.

O casario defronte – o da orla da praia, envolvido já nas brumas
da noite, e o do alto, queimando-se na púrpura do poente – surgia revolto
aos meus olhos, bizarramente disposto sem uma ordem geometricamente definida,
mas guardando com as montanhas que espreitavam a cidade, com as inflexões
caprichosas das colinas e o meandro dos vales, um acordo oculto, sutilmente
lógico.

Evolava-se do ambiente um perfume, uma poesia, alguma coisa de unificador,
a abraçar o mar, as casas, as montanhas e o céu; pareciam erguidos
por um só pensamento, afastados e aproximados por uma inteligência
coordenadora que calculasse a divisão dos planos, abrisse vales, recortasse
curvas, a fim de agitar viva e harmoniosamente aquele amontoado de coisas
diferentes… O aconchego, a tepidez da hora, a solenidade do lugar, o crenulado
das montanhas engastadas no céu côncavo, deram-me impressões
várias, fantásticas, discordantes e fugidias…

Havia um brando ar de sonho, e eu fiquei todo penetrado dele. Andamos. Agora,
a barca movia-se ao longo de uma comprida ilha pejada de edifícios.
Mais perto, mais longe, pequenas lanchas corriam, erguendo para a pureza do
céu irreverentes penachos de fumo; na linha horizontal de uma terra
baixa, ao fundo, onde, dolentemente agitado pela viração, um
esguio coqueiro, firme e orgulhoso, crescia solitário; grandes cascos
escuros de saveiros e galeras ruminavam placidamente; e botes velozes, cruzando
as respectivas derrotas, brincavam sobre as ondas como crianças travessas…

Um escaler aproximou-se da barca, bem perto; a tripulação
rubicunda entoava uma canção, um hino. O escaler afastou-se
logo, desdenhoso e superior.

Antes de atracar, a noite caiu de todo.

Na cidade longos riscos de fogo brilharam, juntos e espaçados, retos
e curvos, paralelos e emaranhados… Chegamos.

Quando saltei e me pus em plena cidade, na praça para onde dava a
estação, tive uma decepção. Aquela praça
inesperadamente feia, fechada em frente por um edifício sem gosto,
ofendeu-me como se levasse uma bofetada. Enganaram-me os que me representavam
a cidade bela e majestosa. Nas ruas, havia muito pouca gente e, do bonde em
que as ia atravessando, pareciam-me feias, estreitas, lamacentas, marginadas
de casas sujas e sem beleza alguma.

A rua do Ouvidor, que vi de longe, iluminada e transitada, em pouco diminuiu
a má impressão que me fez a cidade. Pouco antes de partir, havia-me
informado dos hotéis e, por essa ocasião, recomendaram-me o
Hotel Jenikalé, na praça da República, de módica
diária, me dirigi a ele, no propósito de me demorar os poucos
dias exigidos para obter a colocação que me daria o deputado
Castro. Fui jantar e sentei-me à mesa redonda, onde havia muita gente
a falar de tudo e de todas as coisas. Evitei travar conversa com qualquer
dos circunstantes. Jantei calado, de olhos desconfiados, baixos, erguendo-os
de quando em quando do prato para as gravuras que guarneciam a sala, sem me
animar a pousá-los na fisionomia de qualquer dos comensais. Não
obstante a isso, alguém, pelo fim do jantar, venceu minha obstinação:
– Creio que viemos juntos…

– Não me recorda, fiz eu polidamente.

– Perfeitamente. O senhor dormia quando embarquei.

– Pode ser…Viajei quase sempre assim… Alonguei a resposta a muito custo
e a medo; mas, arrependido, comecei a pesá-la bem e vi que por ela
o meu interlocutor não me poderia roubar o fraco pecúlio.

– Vim a negócios… O senhor sabe, continuou o desconhecido; o senhor
sabe: quem quer vai, quem não quer manda… Se me limito e encomendar
a farinha – é uma desgraça! Chega azeda e de péssima
qualidade – então é um inferno! Os fregueses reclamam; a pretexto
disso, não pagam. Para evitar essas e outras venho de dois em dois
meses comprá-la, eu mesmo… Veja o senhor só – é uma
despesa, mas que se há de fazer?!…

– O senhor está estabelecido? – Em Itaporanga, sim senhor; tenho
uma padaria, pequena sim, mas rende. O senhor sabe: o pobre não passa
sem pão.

Aproveitei um instante em que se virara para o vizinho, para analisar o
padeiro de Itaporanga.

Era um homem baixo, de membros fortes, que respirava com força e
desembaraçadamente. Falando, torcia, com a mão áspera
de antigo trabalhador, o bigode farto. Descobria-se que na sua mocidade se
entregara a trabalhos grosseiros, mas que, de uns tempos a esta parte, gozava
de uma vida mais fácil e leve. O seu olhar, inquieto e fugidio, mas
vivo, quando se fixava, era de velhaco mercadejante, bem com o código
e as leis.

– O senhor veio a passeio? perguntou-me – Não senhor, disse-lhe de
pronto. Vim estudar.

– Estudar! – De que se admira? – De nada.

Em seguida, abrindo o rosto queimado e ameigando a voz, em que havia longinquamente
o sotaque português, disse: – Venha comigo, doutor, vamos dar uma volta.

Não tive tempo de opor uma resposta. O padeiro voltou-se para os
fundos da sala e gritou ao caixeiro: – José! Charutos…

Aquele homem ia pondo em mim uma singular inquietação. A sua
admiração tão explosiva ao meu projeto de estudo, as
suas maneiras ambíguas e ao mesmo tempo desembaraçadas, o seu
olhar cauteloso, perscrutador e sagaz, junto ao seu ar bonacheirão
e simplório, provocavam-me desencontrados sentimentos de confiança
e desconfiança. Havia nele tanta coisa oposta à profissão
que dizia ter que me pus a desconfiar – Quem sabe! Entretanto, a sua afabilidade,
as suas mãos grossas…

– Ó José! Os charutos? fez impaciente o negociante.

O caixeiro veio capengando sobre umas amplas botinas, e estendeu-nos uma
caixa cheia de charutos claros, pimpantes, cujo aroma recendia e tentava a
fumá-los.

Sirva-se, doutor! São magníficos! O Machado recebe-os diretamente.

E com um franzir de sobrolhos, deu-me a entender a origem semicriminosa
dos charutos. Picou a ponta com os dentes, e não sem uma certa elegância,
chegou o fósforo aceso ao seu e depois de esperar que eu também
acendesse, falou-me: – O doutor conhece o Rio? – Não, fiz eu prazenteiramente,
pois que o tratamento me agradava. Era a primeira vez que o recebia; lisonjeava-me
naturalmente.

– Venha então comigo. Não saio nunca, mas posso acompanhá-lo
na primeira visita. Podemos ir ao teatro, são oito e meia. Em dois
minutos chego ali à confeitaria da Estrada, e antes das nove estamos
no Recreio…

– Mas, meu caro senhor…

– Laje da Silva, um seu criado.

– Mas, meu caro Sr. Laje da Silva, continuei, estou cansado. Seria melhor…

– Oh! o senhor! Um menino! Deixe-se disso… Vamos, doutor.

O doutor era mágico. Acedi e o Senhor Laje da Silva, negociante com
padaria em Itaporanga, muito orgulhosamente estendeu a perna esquerda, e dos
profundos refolhos da algibeira da calça respectiva tirou um maço
enorme de notas, escolheu uma e pagou os charutos que fumávamos.

III

"Os antigos bebiam pérolas dissolvidas em vinagre. Não
eram lá de gosto muito fino e a extravagância nada significava.
Eu bebo a verde esmeralda sadia, emblema da mater Natureza, num copo de Xerez.
Em vez da pérola mórbida, doença de um marisco, no acre
vinagre, bebo o verde dos prados, a magnífica coma das palmeiras, o
perfume das flores, tudo que o verde lembra da grande mãe augusta!"
Lembrei-me no dia seguinte dessa frase que o Raul Gusmão, um jovem
jornalista, da amizade do Laje da Silva, pronunciou solenemente devagar no
botequim do teatro, enquanto nos servíamos de bebidas. Disse-a com
a sua voz fanhosa, sem acento de sexo e emitida com grande esforço
doloroso. Falar era para a sua natureza obra difícil. Toda a sua pessoa
se movia, se esforçava extraordinariamente; todos os seus músculos
entravam em ação; toda a energia da sua vida se aplicava em
articular os sons e sempre, quando falava, era como se falasse pela primeira
vez, como indivíduo e como espécie. Essa sua voz de parto difícil,
esse espumar de sons ou gritos de um antropóide que há pouco
tivesse adquirido a palavra articulada, deu-me não sei que mal-estar,
que não mais falei até à sua despedida. Tive medo de
que me fosse preciso empregar o mesmo esforço, que a minha palavra
custasse também aquela grande dor já olvidada e vencida pela
nossa espécie; e fiquei a ouvi-lo respeitosamente, tanto mais que nos
tratou, a mim e ao padeiro, com tal desdém, com tal superioridade que
fiquei entibiado, esmagado, diante do retrato, que dele fiz intimamente, de
um grande literato, universal e aclamado, espécie de Balzac ou Dickens,
apesar da voz de Pithecanthropus.

Falava e não nos olhava quase; errava os olhos – os olhos pequeninos
dentro de umas órbitas quase circulares a lembrar vagamente uma raça
qualquer de suíno – errava os olhos, dizia, pelo pátio do teatro,
e quando nos fixava trazia uma expressão de escárnio que ele
mantinha num razoável dispêndio de energia muscular. Veio ter
à nossa mesa por instâncias do Laje da Silva. Ia passando um
pouco afastado, quando meu companheiro lhe correu ao encontro e, com os maiores
rogos, o trouxe para a mesa. Apresentou-nos e perguntou depois: – Que toma,
dr.? – Nada.

– Oh! Alguma coisa… Um licor… Um conhaque? – Vinho, Venha lá
um vinho! Hoje não há mais vinhos… O sr., acrescentou, voltando-se
para mim com o seu ar fingidamente insolente; o sr. porventura me dá
notícias dos vinhos de Esmirna e de Quios? Desviou o rosto sem esperar
a resposta, tirou uma preguiçosa fumaça do charuto e pôs-se
a olhar pausadamente o teatro, alçando a vista às vezes até
à varanda; e, por fim, cheio de insolência e com aquela voz de
parto difícil, chamou o caixeiro e encomendou meio cálice de
peppermint e uma dose de Xerez. Simulando não perceber o nosso espanto,
fez algumas considerações sobre os vinhos antigos, confrontando-os
com os modernos, no sabor, na cor e no preparo, com um exato conhecimento
de ambos. Vieram-lhe as garrafas e o jornalista, pegando na colherzinha com
dois dedos e estendendo os outros de sua mão polpuda, abacial, como
a qualificou mais tarde, misturou ritualmente o verde peppermint no Xerez
e foi por aí que disse: "Os antigos…" Diante dele, dos
seus gestos, das suas palavras, a impressão das mulheres, da agitação
do teatro, apagou-se-me completamente. Ele resumiu-me o teatro, e fiquei com
este encontro tão indelevelmente gravado que ainda agora, ao traçar
estas linhas, estou a vê-lo erguer-se da cadeira com visível
esforço, ficar um instante parado junto a nós, com o alentado
corpanzil encostado à bengala vergada, dizer cheio de profundo aborrecimento
– como isto é feio! – para então se afastar por fim, vagarosamente…

Mal saiu, pedi pormenorizadas informações ao Laje da Silva.
Nos confins da minha aldeia natal, eu não podia adivinhar que o Rio
contivesse exemplar tão curioso do gênero humano, uma desencontrada
mistura de porco e de símio adiantado, ainda por cima jornalista ou
coisa que o valha, exuberante de gestos inéditos e frases imprevistas.
Laje da Silva, porém, só sabia que ele tinha a Aurora à
sua disposição, jornal muito lido e antigo, respeitado e que,
no tempo do Império, derrubou mais de um Ministério. Escrevia
nos jornais; era o bastante. E essa sua admiração, se era de
fato esse o sentimento do padeiro pelos homens dos jornais, levava-o a respeitá-los
a todos desde o mais graduado, o redator-chefe, o polemista de talento, até
ao repórter de polícia, ao revisor e ao caixeiro de balcão.
Todos para ele eram sagrados, seres superiores ou necessários aos seus
negócios, pois viviam naquela oficina de ciclopes onde se forjavam
os temerosos raios capazes de ferir deuses e mortais, e os escudos capazes
também de proteger as traficâncias dos mortais e dos deuses.
Laje não lhe conhecia as obras, nem mesmo os artigos e ficou satisfeito
que um outro conhecido seu viesse sentar-se sem cerimônia alguma à
nossa mesa, obrigando-me a não lhe fazer mais perguntas sobre o Pithecanthropus
literato. Era o Oliveira – não me conhece? O Oliveira, do O Globo!…
tão conhecido!… Oh! O padeiro ofereceu-lhe alguma coisa e perguntou
amavelmente o que havia de novo.

– Uma inundação no Norte.

– Onde? – No forte S. Joaquim, no Purus.

– Perdão! fiz eu muito colegialmente. O forte S. Joaquim não
fica no Purus…

O Oliveira olhou-me com alguma raiva e eu tive que comprimir a alegria colegial
do quinau. Mas a sua raiva foi breve, o repórter Oliveira procurou
uma saída conveniente para a sua ignorância numa crítica
larga e patriótica: – Esta nossa geografia anda tão baralhada…
O governo não cuida nessas coisas. É só política
e "comidelas"… Tudo come… Uma vergonha! Do que o país
precisa não cuidam… O sr. com certeza não conhece o rio das
Capivaras? – Não, senhor, fiz satisfeito por mostrar a meu turno a
minha ignorância.

– Pois é um rio muito importante e nenhuma geografia dá! Eu
o conheço porque nasci perto, senão… Nós não
temos governo…

De manhã, pus-me a recapitular todos esses episódios; e sobre
todos pairava a figura inflada, mescla de suíno e de símio,
do célebre jornalista Raul Gusmão. O próprio Oliveira,
tão parvo e tão besta, tinha alguma coisa dele, do seu fingimento
de superioridade, dos seus gestos fabricados, da sua procura de frases de
efeito, de seu galope para o espanto e para a surpresa. Era já genial,
com quem viria travar conhecimento mais tarde, que me assombrava com o seu
maquinismo de pose e me colhia nos alçapões de apanhar os simples.
E senti também que o espantoso Gusmão e o bobo Oliveira me tinham
desviado da observação meticulosa a que vinha submetendo o padeiro
de Itaporanga. Achava extraordinário que um varejista de um vilarejo
longínquo cultivasse e mantivesse amizades tão fora do seu círculo;
não se explica bem aquele seu norteio para os jornalistas, a especial
admiração com que os cercava, o carinho com que tratava a todos.

No teatro e na rua, cumprimentou mais de uma dezena deles e apontou-me,
sem lhes falar, uma dúzia de outros. É de tal jornal diário,
dizia; é de tal semanário; faz guerra, faz marinha… Conhecia
minuciosamente toda a vida jornalística. Informava-me sobre os nomes
dos redatores, dos proprietários, dos colaboradores; sabia a tiragem
de cada um dos grandes jornais, como a de cada semanário de caricaturas…
Havia nisso uma mania pueril ou o que era? Não se manifestava homem
de leituras, político ou dado às letras; não lhe senti
a mais elementar preocupação intelectual; todo ele me pareceu
convergindo para os negócios, para as coisas de dinheiro, especulações…
Por isso, a sua jovialidade e sociabilidade não impediram que, aqui
e ali, repontassem em mim alguns propósitos sobre a sua honestidade.

Houve um fato que tornou um pouco mais consistentes as fluídicas
suspeitas que alimentava.

Acabando de cear, ao pagar a conta, o padeiro examinou com o cuidado especial
de entendido o papel, a estampa e a numeração das notas do troco.
Notando que eu reparava com insistência para o seu exame pericial, com
a mais tranqüila das vozes e cheio de uma linda ingenuidade, pediu-me:
– Faça o favor, dr.: veja-me de que estampa é esta… Não
posso ler direito…

E passava-me a cédula velha, mas ainda em bom estado, em que li:
estampa 9a – perfeitamente legível.

– Obrigado. É preciso muito cuidado, meu caro dr. A Casa da Moeda
tem muitas filiais por aí…

Com o seu gesto habitual, estendeu a perna, arrumou as notas no maço
e guardou-o no fundo da algibeira.

Daí em diante, não sei se com justeza, mas certamente com
muita segurança íntima, tive por afetadas a sua simplicidade
e bonomia, e julguei que escondiam algo de grave que se desenrolava na sua
vida e ainda não tivera termo.

Pelo almoço, a uma pergunta minha, o copeiro avisou-me que o padeiro
tinha ido aos subúrbios e não voltaria senão à
tarde. Almocei vagarosamente e tranqüilo. O dia estava fresco e azul.
Pela janela avistava os grandes relvados do jardim, muito verdes e macios,
de uma macieza de tapete e de um verde que afagava o olhar. Soavam onze horas
quando saí do hotel e vim a pé até às ruas centrais
da cidade. Era cedo; não fui logo à Câmara. Fiquei vagueando
pelas ruas à espera da hora conveniente. Cansado de andar pelo centro,
aventurei-me tomar um daqueles bondes pequenos; chegando ao termo, bebi um
refresco num botequim sórdido das proximidades e tomei outro bonde
que, me informaram, levava à Câmara. Não reparei que a
meu lado se sentara um homem acobreado, de cabelo liso mas de barba rala e
crespa, ar decidido e tórax forte; mas notara que, bancos adiante,
um senhor de cartola, fraque e calças brancas, tomara lugar à
direita de uma senhora, jovem ainda, cuja passagem pagara, sem que com ela
trocasse sequer um olhar. Observei-os intrigado; em meio da viagem o vizinho
segredou-me: – Está vendo que pouca-vergonha? Um senador bolinar! Não
entendi. Bolinar… Senador… O que era? O homem, entretanto, insistiu: –
Todo o dia é aquilo… Uma vergonha! Se fosse outro, mas um senador!
Por esse tempo, o par saltou, isto é, o senador um pouco antes, com
o veículo em movimento, e a senhora saltou adiante; e ambos, ao jeito
de desconhecidos, tomaram uma rua transversal. O meu vizinho não fez
mais nenhuma observação, não me deixando, porém,
de olhar durante a viagem toda e, quando saltei, mal tinha pisado o passeio,
cortou-me os passos interpelando-me: – Olhe, menino, deixe-se disso, senão…

– Mas, o quê? – Então não sabe! Ora, não se faça
de besta, continuou, atirando o chapéu para o alto da cabeça.

– Mas…

– É isto que lhe digo; não se meta na vida de "seu"
Carvalho… É um graúdo, pode ter lá "seus arranjos"
e não tem que dar satisfação a ninguém – fique
sabendo! – Eu! – Sim, você! Olhou-me durante instantes cheio de desafio
e perguntou-me com redobrado atrevimento: – Você não é
repórter do O Azeite, um jornaleco que anda por aí? – Eu, não
senhor.

E com a humildade que ditava a minha segurança, repliquei ao notável
Lucrécio "Barba de Bode", que havia chegado do interior,
que não conhecia o Senador Carvalho, que nada sabia dos "seus
arranjos", e que ia entregar uma carta (mostrei-lha) a um deputado na
Câmara, etc., etc.

O capanga acreditou, desculpou-se, disse-me o nome e ofereceu-me a casa.
Dirigi-me para a Câmara. A minha simplicidade tinha julgado fácil
falar a um deputado na Câmara. Era proibido; só se trouxesse
ingresso; contudo, o porteiro disse-me que era melhor procurar o dr. Castro
na sua residência, que me ensinou; e eu fui assistir à sessão
para encher o tempo e para travar conhecimento com o misterioso trabalho de
fazer leis para um país. De fato, subi pensando no ofício de
legislador que ia ver exercer pela primeira vez, em plena Câmara dos
Srs. Deputados – augustos e digníssimos representantes da Nação
Brasileira. Não foi sem espanto que descobri em mim um grande respeito
por esse alto e venerável ofício. Lembrei-me daqueles velhos
legisladores da lenda e da história: os Manus, os Licurgos, os Moisés.
Sólons, os Numas – esses nomes todos que os povos agradecidos pela
fecundidade e pela sabedoria de suas leis reverenciaram por dilatados anos,
ergueram-nos à altura de deuses, consagraram-lhes templos magníficos.

Embora não tendo mais a velha crença de que eles fossem inspirados
pelos deuses, o meu respeito baseava-se em motivos mais modernos, concordes
com o feitio de pensar do nosso tempo. Imaginava-os com uma tresdobrada força
de sentidos e inteligência, podendo prever, adivinhar, sentindo antes
de expressos os desejos, as necessidades de cada um dos milhões de
entes que sofriam e viviam, que pensavam e amavam pela vasta extensão
da pátria. Foi com grande surpresa que não senti naquele dr.
Castro, quando certa vez estive junto dele, nada que denunciasse tão
poderosas faculdades. Vi-o durante uma hora olhar tudo sem interesse e só
houve um movimento vivo e próprio, profundo e diferencial, na sua pessoa,
quando passou por perto uma fornida rapariga de grandes ancas, ofuscante de
sensualidade. Nada nele manifestava que tivesse um forte poder de pensar e
uma grande força de imaginar, capazes de analisar as condições
de vida de gentes que viviam sob céus tão diferentes e de resumir
depois o que era preciso para sua felicidade e para o seu bem-estar em leis
bastante gerais, para satisfazer a um tempo ao jagunço e ao seringueiro,
ao camarada e ao vaqueano, ao elegante da Rua do Ouvidor e ao semibugre dos
confins de Mato Grosso. Onde estava nele o poder de observação
e a simpatia necessária para entrar no mistério daquelas rudes
almas que o cercavam e o elegiam? Nada transpirava na sua preguiçosa
e baça personalidade.

Entrando na Câmara, verifiquei que a grandiosa representação
que eu fazia do legislador, não se me tinha diminuído com o
exame da opaca figura do dr. Castro. Era uma exceção, mas certamente
os outros deviam ser quase semi-deuses, mais que homens, pois eu queria-os
com força e com faculdades capazes de atender e de pesar tão
vários fatos, tão desencontradas considerações,
tantas e tão sutis condições da existência de cada
e da de todos. Para tirar regras seguras para a vida total desse entrechoque
de paixões, de desejos, de idéias e de vontades, o legislador
tinha que ter a ciência da terra e a clarividência do céu
e sentir bem nítido o alvo incerto para que marchamos, na bruma do
futuro fugidio. Quanta penetração! quanto amor! que estudo e
saber não lhe eram exigidos! Era preciso tudo, tudo! A quiromancia
e a matemática, a grafologia e a química, a teologia e a física,
a alquimia!… Era preciso saber tudo e sentir tudo! Era na verdade um vasto
e alevantado ofício! Pensando, subia a escada da Câmara dos deputados
da República dos Estados Unidos do Brasil. Ao transpor a porta que
dava para a galeria, vieram-me recordações dos grandes nomes
que aquela casa vira. Primeiro, as grandes figuras dos Andradas, orgulhosos
e soberbos, no meio daquela agitação dos nossos primeiros anos
de vida política. Foi uma rápida evocação: os
dados históricos faltavam-me e os da tradição nenhuns
eram: e eu, no momento, só relembrei a calma figura do patriarca que
os retratos dos compêndios nos dão, e a eloqüência
tumultuária de Antônio Carlos a que freqüentemente se alude.

Com mais insistência, em seguida, as conversas caseiras fizeram-me
ver ali vultos mais próximos dos meus dias. Deles, me falava meu pai,
em raros dias, quando deixava a reserva eclesiástica e narrava paternalmente
à minha infância curiosa, cenas e fatos da vida política
do Império. Foi com palavras suas que me recordei de Cotegipe, ágil
e destro de espírito; do impetuoso Silveira Martins, cheio de vigor,
mas difuso na aplicação de sua força; de José
Bonifácio, o moço, com a sua solenidade grandiosa e seus amplos
períodos de grande estilo; mas, sobretudo, do que mais me recordei
naquele instante, foi da graça, da elegância, da sutileza e da
medida, desse aticismo que me pintaram em Francisco Otaviano de Almeida Rosa…

Sentei-me no último degrau de uma arquibancada grosseira, junto à
balaustrada, tendo embaixo o vazio da sala das sessões. Faziam a chamada.
Ouvi repetir uma chusma de nomes anódinos e obscuros. Eu tinha na cabeça
uma numerosidade de nomes de reis assírios, de faraós, de filósofos
gregos, de generais romanos, de romancistas franceses, de poetas nacionais,
de navegadores portugueses; entretanto dos legisladores da Pátria só
um tinha na memória: era o do dr. Castro, quase meu vizinho! Feita
a chamada, as bancadas começaram a povoar-se. Junto ao Presidente –
a seu lado, nas costas, junto aos secretários – foi-se fazendo uma
aglomeração imprevista. No espaço desguarnecido entre
a mesa do Presidente e a primeira das bancadas, havia o trânsito de
rua freqüentada; numa porta ao fundo, um ajuntamento de guichet de teatro
em enchente.

Um grande deputado de óculos e barba quadrada tonitruou: "Peço
a palavra para uma explicação pessoal." O Presidente voltou-se
para um ajudante em pé, atrás e à direita, ouviu-o e,
depois de tê-lo ouvido, retrucou. "Tem a palavra o doutor Carlos
Barromeu." Com certeza, pensei, esse homem foi ofendido e vai defender-se.
. "Senhor Presidente", começou, "há uma patologia
social como há uma individual…" Em resumo: o seu discurso afirmava
que o chefe de polícia de Santa Catarina era um homem honesto e o jornalista
que o insultara, um verme asqueroso e um réptil nojento.

O deputado sentou-se; a desordem aumentou. Encostado à primeira bancada,
um rapaz lia um folheto; ao longo da mesa presidencial, na frente, atrás,
dos lados, havia um vaivém continuado. Num momento dado, por entre
aquela mó de gente, surgiu toda de branco a híbrida figura de
Raul Gusmão, com a sua fisionomia de porco Yorkshire e o seu corpo
alentado de elefante indiano, tendo sempre nos lábios aquele sorriso
afetado, um horroroso ríctus, decerto o jeito de sorrir do Pithecanthropus
erectus.

Um tímpano soou forte e rouco; fez-se um pouco de silêncio.
O Presidente disse algumas palavras, das quais as últimas davam a palavra
ao deputado Jerônimo Fagot. O miúdo deputado subiu à tribuna,
limpou o suor, arrumou os livros ao lado e preparou-se para falar. Fez-se
silêncio, depois de uma infernal contradança no recinto. Fagot
começou: "É sabido que a moeda boa expele a má.
Desde 1842, pela lei no 1.425, de 30 de Setembro desse ano, que o meio circulante
nacional…" Durante cinco minutos, a Câmara ouviu-o atenciosamente;
dentro em breve, porém, o zunzum recomeçou. Não havia
o ruído do começo, mas a desatenção era geral.
Para a mesa da presidência enxameava uma multidão; o presidente
já não era o mesmo; era um moço louro e magro.

Parecia que as palavras de Fagot lhe morriam nos lábios: movia a
boca e gesticulava como um doido furioso. Os colegas desapegados da sua eloqüência
dividiam-se em grupos. À esquerda, lá ao longe, quase na minha
frente, alguns viam cartões-postais; um outro, sob os meus pés,
isolado no burburinho, escrevia febrilmente, erguendo, de quando em quando,
a caneta para pensar; uma roda de três, à esquerda e ao fundo,
conversava sorrindo; ao fundo, ainda, mas um pouco à direita, um deputado
gordo, com o calor que com o correr do dia se fizera forte, esquecido no sono,
por detrás de um par de óculos azuis, roncava perceptivelmente.
Fagot falou cerca de meia hora ou mais, e, quando deixou a tribuna, o presidente
já era um terceiro deputado, um velho com pince-nez de aros de ouro.

Preparei-me para sair e, quando voltava as costas para o recinto, vi encostado
a uma janela no andar do recinto, a figura espertalhona do Senhor Laje da
Silva. Saímos eu e um outro popular, a quem perguntei: Que faz essa
gente, hoje, aqui? Que fazem, respondeu-me, sei lá… Isto é,
explicou-me logo o que fazem sempre: leis. Estávamos na rua. O dia
que amanhecera lindo, e relativamente fresco, esquentara e o calor por aquela
hora era forte como se estivéssemos em pleno verão.

Atravessei o largo do Paço. A fachada do velho convento do Carmo
apresentava uma grande calma; os anos já lhe tinham dado a suficiente
resignação para suportar o sol terrível dos trópicos;
o cavalo da estátua, porém, parecia ter um movimento de impaciência
para lhe fugir aos ardores implacáveis.

O ar fizera-se rarefeito e percebia-se a poeira que flutuava na sua massa.
As montanhas de Niterói recortavam-se nitidamente sobre o céu
azul e fino, que começava a ser manchado, lá no fundo da baía,
por cima do casario da Alfândega e do Mercado, por grandes pastas de
nuvens brancas. Ainda pouco familiarizado com o trânsito pesado da rua,
atravessei a rua Direita cheio de susto, cercando-me de mil cautelas, olhando
para aqui e para ali, admirado que aquela porção de gente trabalhasse
sob o sol tão ardente, sem examinar que valor tinham as suas câmaras
e o seu governo. E a facilidade com que as aceitava, pareceu-me sentimento
mais profundo, mais espontâneo, mais natural que a minha ponta de crítica
que já começava a duvidar delas. Aventurei-me pela rua do Ouvidor
já preso a outros pensamentos. Agora, tinha rápidas recordações
de minha casa. Por momentos, em face daquelas damas a arrastar toilettes de
baile pela poeira da rua, lembrei-me dos tristes vestidos de minha mãe,
da sua cassa eterna, da sua chita e do seu morim… Mas não pude continuar
por aí. Do interior de um café, o Laje chamou-me. Não
estava só; acompanhava-o o doutor Michel Michaelowsky, jornalista brasileiro
a quem fui apresentado.

– Do Jornal do Brasil? perguntei.

– Não, senhor. Trabalhei no O Combate, de Belém; na Gazeta
de Leopoldina; no "Deutsches Tageblatt", de Blumenau; no "Al-Barid",
de S. Paulo e aqui, no Rio, no "Harun-al-Raschid", órgão
da colônia síria. Pretendo, porém, acrescentou, entrar
em breve para o O Globo, onde vou fazer o artigo de fundo e tratarei da política
interna.

– Escreve em muitas línguas?! – Em dez.

– É extraordinário, fiz eu, não podendo conter a minha
parva admiração.

– Tive sempre sempre muito jeito… Logo, em menino, pelas primeiras lições
de francês, comecei a escrever… Depois, houve sempre em mim um desejo
de ver povos, de andar à aventura… Logo que saí da universidade,
parti para a Índia. Queria servir a um Rajá, mas não
há mais Rajás. Fui à China, ver se entrava como instrutor
do Exército do Vice-rei de Cantão. Não consegui. Parti
para o Japão, onde fui chefe de uma fábrica de pólvora…
Tenho viajado muito.

– Você já esteve em Paris, Michaelowsky? indagou o padeiro.

– Ora! fez o jornalista. Quem já não esteve lá! Estive
na Índia, em Calcutá, onde trabalhei do lado do grande Rai Kisto
– conhece dr.? – Não.

– Quem? indagou o Laje.

– Rai Kisto Das Pal Beader, um grande jornalista hindu… Admira-me que
o dr. não o conheça; na Europa já se fala nele. O professor
Bruglé, de Toulouse, cita o seu nome em uma das sua últimas
obras…

– É vivo? indaguei.

– Não. Morreu há alguns anos.

O caixeiro veio servir-nos café e o jornalista depois de sorver um
trago, perguntou-me.

– Já está formado? – Vou matricular-me ainda, respondi sob
o olhar de censura do Laje da Silva.

– Direito? – Medicina…

– Não é mau… Toda a carreira serve, mas…

– O dr. é formado em Direito? indaguei por minha vez.

– Não. Formei-me em línguas orientais e exegese bíblica,
na Universidade de Sófia.

Disfarcei a vontade que me deu de rir, ouvindo tão extravagante título
escolar. Havia alguma coisa de opereta, mas o homem era tão simpático,
tinha sido tão amável e parecia tão ilustrado que me
esforcei por sujeitar o meu ímpeto de rir, soltando uma frase à
toa: – Na Europa, o homem de estudo tem campo, sabe onde deve chegar; aqui…

– Qual, dr.! Não há como a sua terra! A questão é
pendurar, quando se entra, a sobrecasaca de cavalheiro no Pão de Açúcar;
e no mais – tudo vai às mil maravilhas! O padeiro ficou atônito
com a cínica franqueza do julgamento do jornalista. Teve um assomo
de virtude e objetou pudicamente: – Nem tanto, doutor! Nem tanto! Olhe que
ainda há homens honestos nesta terra e em altas posições
– o que é mais raro! O dr. Michaelowsky dardejou-lhe um breve olhar
sarcástico e, expelindo uma longa fumaça cheia de dúvida
e de troça, disse devagar: – Pode ser, Laje! Quem sabe? Só,
subindo a rua movimentada, pus-me a interrogar-me sobre o tal Gregoróvitch.
De que nacionalidade era? Que espécie de moralidade seria a sua? Com
que aquele título burlesco de doutor em línguas orientais e
exegese bíblica, quem poderia ser ao certo? Um bandido? Um aventureiro
simplesmente? Ou um homem honesto, de sensibilidade, pronto a fatigar-se logo
o espetáculo diário e que por isso corria o mundo? Quem seria?
E jornalista! Jornalista em dez línguas desencontradas! Mas era simpático
o diabo, de fisionomia inteligente…

Subia a rua. Evitando os grupos parados no centro e nas calçadas,
eu ia caminhando como quem navega entre escolhos, recolhendo frases soltas,
ditos, pilhérias e grossos palavrões também. Cruzava
com mulheres bonitas e feias, grandes e pequenas, de plumas e laçarotes,
farfalhantes de sedas; eram como grandes e pequenas embarcações
movidas por um vento brando que lhes enfunasse igualmente o velame. Se uma
roçava por mim, eu ficava entontecido, agradavelmente entontecido dentro
da atmosfera de perfumes que exalava. Era um gozo olhá-las, a elas
e à rua, com sombra protetora, marginada de altas vitrinas atapetadas
de jóias e de sedas macias.

Eu parava diante de uma e de outra, fascinado por aquelas coisas frágeis
e caras. As botinas, os chapéus petulantes, as linhas das roupas brancas,
as gravatas ligeiras, pareciam dizer-me: Veste-me, ó idiota! nós
somos a civilização, a honestidade, a consideração,
a beleza e o saber. Sem nós não há nada disso; nós
somos, além de tudo, a majestade e o domínio! O ruído
de uma fanfarra militar, enchendo a rua, veio agitar a multidão que
passava. As janelas povoaram-se e os grupos arrimaram-se às paredes
e às portas das lojas. São os fuzileiros, disse alguém
que ouvi. O batalhão começou a passar: na frente os pequenos
garotos; depois a música esturgindo a todo o pulmão um dobrado
canalha. Logo em seguida o Comandante, mal disfarçando o azedume que
lhe causava aquela inocente exibição militar. Veio por fim o
batalhão. Os oficiais muito cheios de si, arrogantes, apurando a sua
elegância militar; e as praças bambas, moles e trôpegas
arrastando o passo sem amor, sem convicção, indiferentemente,
passivamente, tendo as carabinas mortíferas com as baionetas caladas,
sobre os ombros, como um instrumento de castigo. Os oficiais pareceram-me
de um país e as praças de outro. Era como se fosse um batalhão
de sipaios ou de atiradores senegaleses.

Era talvez a primeira vez que eu vi a força armada de meu país.
Dela, só tinha até então vagas notícias. Uma,
quando encontrei, num portal de uma venda, semi-embriagado, vestido escandalosamente
de uma maneira hibridamente civil e militar, um velho soldado; a outra, quando
vi a viúva do General Bernardes receber na Coletoria um conto e tanto
de pensões a vários títulos, que lhe deixara o marido,
um plácido general que envelhecera em várias comissões
pacíficas e bem retribuídas…

O batalhão passou de todo; e até a própria bandeira
que passara, me deixou perfeitamente indiferente…

IV

Se os senhores algum dia quiserem encontrar um representante da grande nação
brasileira, não o procurem nunca na sua residência. Seja a hora
que for, de manhã, ao amanhecer mesmo, à hora de jantar, quando
quiserem enfim, se o procurarem, o criado há de dizer-lhes secamente:
Não está. Falo-lhes de experiência própria, porque,
durante as inúmeras vezes, a toda a hora do dia, em que fui ao Hotel
Términus procurar o deputado Castro, apalpando a carta do Coronel,
tive o desprazer de ouvir estas duas palavras do porteiro indiferente. Nas
últimas vezes, antes mesmo de acabar a pergunta, já o homenzinho
respondia invariavelmente da mesma desesperadora forma negativa.

É bem fácil de imaginar com que sorte de cogitações
eu ia passando esses dias. O meu dinheiro dentro em breve, pago o hotel, ficaria
reduzido a alguns mil-réis insignificantes. Não conhecia ninguém,
não tinha a mínima relação que me pudesse socorrer,
dar-me qualquer coisa, casa ao menos, até que me arranjasse. Saíra
de meus penates, cheio de entusiasmo, certo de que aquela carta, mal fosse
apresentada, me daria uma situação qualquer. Era essa a minha
convicção, dos meus e do próprio Coronel. Tinha-se lá,
por aquelas alturas, em grande conta a força do doutor Castro nas decisões
dos governantes e a influência do velho fazendeiro sobre o ânimo
do deputado.

Não era ele o seu grande eleitor? Não era ele o seu banqueiro
para os efeitos eleitorais? E nós, lá na roça, tínhamos
quase a convicção de que o verdadeiro deputado era o Coronel
e o doutor Castro um simples preposto seu. As minhas idas e vindas ao hotel
repetiam-se e não o encontrava. Vinham-me então os terrores
sombrios da falta de dinheiro, da falta absoluta. Voltava para o hotel taciturno,
preocupado, cortado de angústias. Sentia-me só, só naquele
grande e imenso formigueiro humano, só, sem parentes, sem amigos, sem
conhecidos que uma desgraça pudesse fazer amigos. Os meus únicos
amigos eram aquelas notas sujas, encardidas; eram elas o meu único
apoio; eram elas que me evitavam as humilhações, os sofrimentos,
os insultos de toda a sorte; e quando eu trocava uma delas, quando as dava
ao condutor do bonde, ao homem do café, era como se perdesse um amigo,
era como se me separasse de uma pessoa bem-amada… Eu nunca compreendi tanto
a avareza como naqueles dias que dei alma ao dinheiro, e o senti tão
forte para os elementos da nossa felicidade externa ou interna…

A minha ignorância de viver e falta de experiência quase deixavam
transparecer a natureza das minhas preocupações. O gerente do
hotel pareceu-me que as farejava. De quando em quando, procurava na conversação
amedrontar-me com o seu poderio, proveniente de estreitas relações
que mantinha com as autoridades. Assim entendi ser o sentido das anedotas
que contava. Uma vez – narrou ele – depois de uma longa hospedagem, um hóspede
quisera furtar-se ao pagamento. Não tivera dúvidas, fora ao
delegado-auxiliar, um seu amigo, o doutor Arnolpho, contara-lhe o caso e o
homem teve que pagar, se quis tirar as malas. Com ele, era assim; não
dormia. Nada de justiça, de pretorias… Qual! Com a polícia
a coisa vai mais depressa, a questão é ter amigos bons e ele
tinha-os excelentes; e, em seguida, interrogando-me diretamente: O senhor
não viu, ontem, aquele homem gordo que jantou na cabeceira? É
o escrivão da "X". Os escrivães, fique o senhor sabendo,
é que são as verdadeiras autoridades. Os delegados não
fazem senão o que eles querem; tecem os pauzinhos e… E o italiano
rematou com um olhar canalha aquela sua informação sobre a onipotência
dos escrivães.

Foram de imensa angústia esses meus primeiros dias no Rio de Janeiro.
Eu era como uma árvore cuja raiz não encontra mais terra em
que se apoie e donde tire vida; era como um molusco que perdeu a concha protetora
e que se vê a toda a hora esmagado pela menor pressão.

Oprimido com uma antevisão de misérias a passar, de humilhações
a tragar, o meu espírito deformava tudo que via. Os menores fatos que
lhe caíam ao alcance, eram aumentados de um lado, diminuídos
de outro; fazia-se outra coisa muito diversa para minha sensibilidade enfermiça,
que a imaginação guiava para sentir todos os terrores e ameaças.
Perdia a realidade da vista e vivia subdelirante num mundo de coisas grotescas,
absurdas e não existentes. Punha-me a apelar para o Acaso, como se
tivesse predileções. Esperava encontrar fortunas perdidas, imaginava
impossíveis combinações de acontecimentos que me favorecessem
e cheguei mesmo, por instantes, a supor que atos de generosidade de minha
parte bem podiam trazer-me o favor de gênios benfazejos. Pelo correr
do dia, depois do almoço, quando me vinha o pensamento da minha situação,
entrava no jardim, dia alto e morno. Aqui e ali, gozando o viço educado
do parque, encontrava fisionomias fatigadas, tristes, tendo estampadas na
comissura dos lábios sem forças a irreparável derrota
na vida. Ao sol do meio-dia, dormitavam pelos bancos, sob a sombra de árvores
vigorosas. Sentava-me por minha vez, sonhava alguns minutos, em seguida catava
com o olhar o chão, esquadrinhava-o bem. Era então com o coração
palpitante que me abaixava junto à relva para levantar do chão
uma velha caixa de fósforos, lavada e desbotada pelas chuvas, já
sem rótulo, humilde objeto que tenazmente resistira às vassouradas
e às intempéries para atrair o meu olhar maravilhoso. Como se
fosse um furto, um crime, apanhava-a a medo e, depois de inspecionar com cuidado
os arredores, abria-a com respeito, comovido, trêmulo, esperando – oh!
meu Deus! – que dentro dela houvesse uma nota de quinhentos mil-réis.

Oh! quantas vezes não apelei para o Acaso, para o Milagre! Quantas!
Os deuses vinham-me ao pensamento com o seu indispensável cortejo de
fadas e de anjos… Uma noite, andando eu deambulando por umas ruas desertas
do interior da cidade, fui dar não sei a que praça, em que havia
ao fundo uma grande casa; ia distraído, completamente entregue às
minhas preocupações, cabisbaixo, quando alguém me tomou
os passos e me falou com uma voz de apiedar. Era uma mulher andrajosa; parei
e ouvia-a. Balbuciante, contou-me misérias, a fome dos filhos, moléstias,
por fim, não pôde mais falar – prorrompeu em choro… Evoquei
logo aquelas histórias de fadas e gnomos, aquelas histórias
morais em que os gênios misteriosos vêm pela Terra em disfarce,
para experimentar os corações dos mortais e eu… e eu dei uma
nota de esmola uma nota graúda que me sangrou fortemente a algibeira
linfática. Mesmo depois que saí daquela praça erma, e
que de mim se foi a comoção da surpresa, eu esperei a recompensa,
a recompensa dos céus para aquele meu ato generoso. Alternativamente
apelava para o Mistério e para as potências terrestres. Aferrara-me
a duas amarras, uma no Mistério e outra nas coisas do mundo. Todo o
dia ia ao hotel, cheio de alacridade, figurando comigo mesmo o encontro com
o deputado, imaginava-lhe a bondade do acolhimento, a piedade e a simpatia
pelo meu estado e pelos meus desejos. Imaginava-me daí a dias empregado,
num lugar modesto, de renda certa, dentro de um mês indo à faculdade,
as atribuições do trote, os apertos do Exame, os anos seguindo-se,
as notas, os lentes, a tese, a formatura.

Ia assim risonho, cheio de mim, contente de viver, chegava ao hotel, falava
ao porteiro e voltava amargurado sobre os meus passos felizes. De tarde, repetia
a visita, e mais uma vez voltava desalentado, para ficar na janela do hotel
desanimado, oprimido de saudades do sossego, da quietude, da segurança
do meu lar originário. Era quando me encontrava com os outros hóspedes.
Laje da Silva andava sempre fora, mas os outros lá estavam depois do
jantar. Ao pôr-me à janela, lá vinha o velho Coronel Figueira,
um fazendeiro, sem bigode, à antiga portuguesa, cheio de mansidão
na voz e orgulho no tratar.

– Está vendo a tarde, hein, menino? – Estou.

– Como isto está mudado! Conheci quando ainda era um brejo, um depósito
de cisco… Havia barrancos, covas, capinzais… As lavadeiras faziam disto
coradouro… Acolá (apontou) estava o teatro, o Provisório…
Oh! o Provisório… Eu me lembro que… (eu era muito rapaz, muito…)
Vim com meu pai assistir à "Sonâmbula"… Nunca vi
uma sala tão bonita… A Stoltz cantava… Nunca ouviu falar nela?
– Não senhor! E perguntei logo: O senhor é do Rio? – Não,
mas vinha quase sempre aqui. Meu pai tinha fazenda na Raiz da Serra… Hoje,
aquilo não vale nada, mas no tempo dele a estrada a não tinha
matado e era lugar rico… Conheço muito o Rio… Quando fui para o
Sul em 65, passei por aqui… O Imperador veio ver o desfilar do batalhão…
Eu ia triste, pensava em morrer… Não morri, voltei, estou aqui…
Está tudo mudado: abolição, república… Como
isso mudou! Então de uns tempos para cá, parece que essa gente
está doida; botam abaixo, demolem casas, levantam outras, tampam umas
ruas, abrem outras… Estão doidos!!! – Há quanto tempo não
vem ao Rio, coronel? – Desde 1882.

Semivazios, os bondes passavam ao chouto das bestas. Pelas calçadas,
um vaivém de gente animava a praça. À direita, a grande
e acaçapada fachada do quartel-general começava a recolher-se
na sombra. Mulheres maltrapilhas, aos grupos, negras, mulatas, brancas, bamboleando
as ancas, eram seguidas por soldados gingando. As calças pareciam mais
vermelhas e as mulheres mais sujas. Um coche de enterro arrancava respeitosamente
os chapéus aos transeuntes; um caminhão, pejado de fardos, por
instantes interceptava a marcha dos bondes, ao desviar-se de uma andorinha
que vomitava móveis, mal suspensos por cordas à sua traseira…
Passava tudo isto sob os meus olhos tristes e desalentados.

O Coronel tinha-se ido; e eu deixava-me a ver e a meditar na solução
do meu problema de vida. O meu olhar ia de baixo para o alto, onde flocos
de nuvens alvadias, esgarçadas, flutuavam e se tingiam de ouro, de
púrpura, de laranja, em rápidas mutações de teatro.
Vinha a noite aos poucos e eu continuava a pensar, acariciando cismas, excitando
recordações, rememorando a minha infância, as fisionomias
que ela viu e os fatos que presenciou. Meu pai, o seu corpo anguloso, seco,
a sua dor contida, que se escapava no seu olhar e na sua fisionomia transtornada.
Via-os às tardes, nos dias de bom humor, mudá-la de chofre,
fazer-se risonho, vir para mim, sentar-se à mesa, e, à luz do
lampião de querosene, explicar-me pitorescamente as lições
do dia seguinte. Ou então, da cadeira de balanço, contar-me
as maravilhosas coisas do movimento da Terra, dos antípodas, da gravitação
universal, e, enleado, minha pergunta se Deus podia parar a Terra, responder
com hesitação – Pode, sim.

Às oito horas, depois dessas efusões, dessa raras manifestações
da sua paternidade, minha mãe punha, na mesa da sala de jantar, o chá
que ele tomava em geral sozinho no quarto.

– Pode tirar o chá, "seu" padre? – Pode, minha filha.

Era assim que se falavam. Encontrei sempre esse tratamento distante entre
eles. Pareceu-me que o seu encontro fora rápido, o bastante para me
dar nascimento. Uma crise violenta do sexo fizera esquecer os votos de seu
sacerdócio, vencera a sua vontade, mas, passada ela, viera, com o arrependimento
da quebra do seu voto, a dor inqualificável de não poder confessar
a sua paternidade.

Ele amou-me sempre, talvez me quisesse mais por causa das condições
que envolviam o meu nascimento. Em público, olhava-me de soslaio, media
as carícias, esforçava-se por fazê-las banais; em casa,
porém, quando não havia testemunhas, beijava-me e afagava-me
com transporte. Ele temia o murmúrio, temia dar-lhe força com
os atos ou palavras públicas; entretanto toda a redondeza quase seria
capaz de atestar em papel timbrado a minha filiação…

Vinha o chá, nós ficávamos a toma-lo e ao menor ruído
minha mãe vinha do interior da casa para saber se meu pai queria alguma
coisa. Acabado o chá, eu ainda ouvia histórias da tia Benedita,
uma preta velha, antiga escrava do meu reverendo pai. Eram cândidas
histórias da Europa, causas delicadas de paixões de príncipes
e pastoras formosas que a sua imaginação selvagem transformava
ou exertava com combates de gênios maus, com malefícios de feiticeiras,
toda uma ronda de forças poderosas e inimigas da vida feliz dos homens.
Tal fora a minha infância, que, nas dobras da saudade, aquela tarde
carregada de cogitações vitais à minha vida, me vinha
trazendo à memória com uma nitidez assombrosa. Cansado de olhar
a rua e de pensar, desci ao pavimento térreo, à sala de jantar
onde o Coronel Figueira e o Senhor Laje da Silva conversavam. Mal entrava,
prazenteiramente, este exclamou: – Oh doutor! Era assim sempre que ele falava
ao encontrar-me. Tinha sempre atenções, pequenas delicadezas;
tratava-me como se eu fosse um "doutor" de fato, com influência,
inquirindo sobre os meus amigos e as minhas relações. Se me
encontrava na rua, obsequiava-me, apresentava-me aos amigos, gabava-me o talento
de que ele não tinha a mínima notícia. Quase sempre pela
conversa, indagava das minhas amizades, das minhas relações;
se eu era colega de F., se me dava com Beltrano, se estudava isto ou aquilo.
Eu respondia-lhe simplesmente, ingenuamente que não, que não
conhecia ninguém a não ser o doutor Castro, o deputado. Ele
não deixava transpirar nada, nem uma contração, nem uma
ruga que fizesse descobrir como recebia essas minhas respostas; mas também
em coisa alguma modificava o tratamento; continuava a ser o mesmo, o mesmo
Laje da Silva, mesuroso, afável, informado e loquaz a seu jeito. Não
sei o que esperava de mim, o certo é que, durante os meus primeiros
dias no Rio, recebi dele as mais respeitosas homenagens, as maiores considerações.
Embora ensoberbecesse a minha vaidade de colegial, eu continuava a sentir
no padeiro muito de desonesto, de falcatrueiro, para me ligar inteiramente
a ele. Evitava-o, fugia-lhe, mas não tinha coragem para lhe dar a entender
francamente que não lhe queria a amizade. Aceitava-lhe as homenagens,
os refrescos, conversava, mas sempre com um pequeno medo de que ele me metesse
n’alguma embrulhada com a polícia.

Foi com grande surpresa que o encontrei: supunha-o fora e não pude
reprimir o espanto que isso me causara. Ele não se alterou, respondeu-me
cheio de bonacheirice: – É verdade, doutor… sim, não há
nada que fazer… tudo por aí está explorado… Uma miséria!
Já se colocou? A pergunta desagradava-me e ele fazia-ma sempre. Ensaiei
diversas respostas e por fim respondi-lhe capaciosamente: – Ainda não;
mas dentro em breve, creio…

O Coronel Figueira, que falava quando entrei, desejoso de continuar a palestra
interrompida, logo que percebeu acabados os cumprimentos, dirigiu-se a mim
de supetão: – Dr., pode haver ladroeira na loteria? Pensei um instante,
mas sem encontrar base para uma resposta segura, respondi dubitativamente:
– Pode.

E logo o velho Coronel, com a sua voz nasal e cheia, em que havia no momento
uma grande satisfação: – Eu não dizia?… É, sim…
Como não pode? – Mas por que, coronel? Então explicou-me que
discutia isso com Laje e como ele me soubesse um rapaz preparado, apelara
para mim.

– Mas como pode haver ladroeira… É impossível… As rodas
são examinadas, suspensas do solo… Se houvesse qualquer fio, dava-se
logo com ele – não acha? – Mas então, "seu" Laje,
como explica que o "gato" possa ficar "preso" três
meses? – É a sorte, objetou Laje.

– Qual sorte, fez o Coronel furioso. É bandalheira; é eletricidade…
Ninguém me tira disso… Olhe: há vinte dias sigo a "Borboleta"…
Dava sempre, agora não dá mais… Vejo os jornais, a Joaninha,
a Chapinha, compro o Palpite, a Mascote, a Ronda – todos dão a "Borboleta".
Jogo… "Borboleta" não dá. Faça o favor, doutor,
veja aqui o Jornal do Brasil.

Desdobrou com cuidado a folha popular e apresentou-me o lugar em posição
conveniente. Eu não cogitava que aquele assunto pudesse apaixonar tão
intensamente o velho Coronel que me parecia ser um homem rico; mesmo não
entendia daquilo, mas embora admirado e fora de matéria, prestei-me
graciosamente: – Procure, disse ele, à esquerda o número 154…
Viu? – Sim senhor.

– Junte o "Peru"… Não é "Peru" que está
pintado? – É… Mas como? – Junte o "Peru".

– Como? – Ora, some o "Peru", grupo 20.

– Ahn! 174.

– Inverta.

– 471.

– Qual! nada! 714, borboleta – não é? E sem esperar a resposta
continuou: Está aí o jornal dá, a gazeta dá também
e o bicho não sai há vinte dias… O dr. não joga? –
Não senhor.

– Por quê? – Não gosto; depois, é proibido.

– Proibido! A polícia! exclamou Laje.

– Não é isso, fiz eu vexado daquela minha confissão.
Temo perder dinheiro.

– Ah, bom! Diga isso! Pela polícia, não; ela vive com os bicheiros…
Não serve pra nada, fique certo.

– Eu pensava que…

– Qual! Para o que foi feita, não serve. Serve para perseguir, executar
vinganças, como eu já fui…

– O senhor! dissemos os dois a um só tempo.

– Exato! eu! exclamou um tanto exaltado.

– Como! – Ora, como?! Uma cilada… Vinha no trem, e, num dado lugar, um
sujeito sentou-se a meu lado e pôs o seu chapéu de sol junto
à janela. Eu viajava desse lado. Saltou e levou o meu, deixando o dele.
Quando chegamos, entrou pelo trem um magote de policiais, prenderam-me, revistaram-me
e foram dar com o tal chapéu cheio de notas falsas de cem mil-réis.

– Foi preso? – Preso, só?! Fui esbordoado, metido numa enxovia, gastei
dinheiro… O diabo! E sabe por que tudo isso? – Não.

– Porque eu apoiava a oposição lá no meu município…
É isso: a polícia, no Brasil… Eu posso falar: sou brasileiro…
A polícia no Brasil só serve para exercer viganças, e
mais nada.

– Por que não processou as autoridades, "seu" Laje? perguntei.

– Qual, menino! você é muito ingênuo… Crê na
justiça, ora! – O Coronel Figueira continuou as suas queixas contra
as loterias e eu aproveitei uma calma na conversa para me retirar. Conforme
o meu hábito roceiro, dormia cedo. Dirigi-me logo para o quarto. A
minha situação obcecava-me. Se não arranjasse o emprego,
que faria? Vinha-me sempre essa pergunta, depois afigurava-se-me impossível
a sua condicional. Não era a carta de pessoa influente?! Por que não
havia de obter o emprego? Se até então eu não lograra
falar ao deputado, a culpa era minha: não lhe indagara os costumes;
não sabia ao certo a que horas se recolhia ou saía. Devia tê-lo
feito com cuidado e não limitar-me a ir lá todos os dias, às
mesmas horas, como estava fazendo há tantos dias. E logo concluí:
amanhã, ao acordar-me, posto-me à porta do hotel; ficarei lá
o dia inteiro até vê-lo sair ou entrar, e então, cheio
de decisão, abordá-lo-ei como o meu estado exige. Fiquei admirado
de que um alvitre tão simples só me tivesse lembrado tantos
dias depois. Deitado, tive uma imensa alegria, de quem acaba de descobrir
a solução de um problema, que preocupa a atenção
de quatro gerações de sábios. Dormi satisfeito, de um
sono profundo e sem sonhos. Pela manhã, prescindi o café e pus-me
a caminho.

O hotel Términus estava ainda fechado. Esperei junto a um café
aberto. Daí a instantes, aproximou-se da porta a carrocinha que vai
ao mercado. Da boléia, saltou um rapazinho vivaz, simpático
e ligeiro, com o cocheiro e veio em direção ao café.
Tomei-lhe os passo e perguntei-lhe pelo dr. Castro.

– O deputado? – Sim! O deputado…

– Mora, não há dúvida; mas quase nunca dorme no hotel.
Lá é sua residência oficial; mas de fato onde ele mora,
é na Rua dos Irmãos Araújos, 27, Vila Isabel.

– Ué! Por quê? – O senhor é do Rio? fez, sem responder-me
diretamente o criado.

– Não.

– Está se vendo, se não não se admirava. O senhor sabe:
esses homens têm seus arranjos e não querem que ninguém
saiba. É por isso. Agora, não vá dizer que eu… Veja
lá! Eu não conhecia bem os bairros da cidade. Não lhes
sabia a importância, o valor, nem as suas vias de comunicações
com o centro, donde não me tinha afastado até ali, senão
para fazer um passeio de pragmática a Botafogo, de que não gostei.
Tive que indagar o caminho e o bonde, depois então corri ao ponto respectivo.
Viajei cheio de ansiedade, com o sangue a correr aceleradamente pelas artérias,
repetindo mentalmente o nome da rua e o número da casa do dr. Castro.
Houve uma vez que me saltaram pela boca fora, com grande espanto do meu vizinho
da esquerda. As ruas estavam animadas, havia um grande trânsito de veículos,
criadas com cestos, quitandeiros, vendedores de peixe. Aqui e ali, com os
cestos arriados, à porta de uma ou outra casa, discutiam a venda das
suas mercadorias com as donas das casas ainda quase em traje de dormir. Pelas
esquinas, as vendas estavam cheias. O condutor ensinou-me a rua e eu segui
a pé na direção indicada. Não seriam ainda nove
horas quando bati no número vinte e sete, uma casa apalacetada, afastada
da rua, no centro do terreno, entrada do lado e varanda, jardim na frente
e bojudas compoteiras no telhado. A casa erguia-se do solo sobre um porão
de boa altura, com mezaninos gradeados e as janelas, de sacadas, a olhar para
os pequenos canteiros do jardim, a essa hora povoados de flores que desabrochavam,
murchas por aquela manhã quente.

Bati. Quem é? – perguntou uma senhora do alto da escada, à
soleira da porta de entrada. Que podia responder?! Quem era eu? Sei lá…
dizer o meu nome?… como responder?… Afinal, disse bem idiotamente: Sou
eu. Suba, respondeu-me ela. Entrei e subi. Que deseja? Era uma rapariga moça,
entre vinte e cinco ou trinta anos, de grandes quadris e seios altos; vinha
envolta num roupão rosado e tinha o cabelo, curto e pouco abundante,
desnastrado por sobre uma toalha alvadia. Toda ela deu-me uma impressão
de veludo, de pelúcia, de coxim macio e acariciante. Logo que me aproximei,
de novo, me perguntou languidamente, deixando ver os dentes imaculados: –
Que deseja? Expliquei-lhe rapidamente que vinha ao distrito do deputado e
lhe queria falar. Fez-me entrar na sala, descansou o jornal que até
então conservara na mão esquerda, e explicou-me com bondade:
– O dr. ainda não se levantou; mas não tarda… Esteve trabalhando
até tarde… O sr. sabe: são pareceres sobre pareceres… Há
de esperá-lo um pouco, sim? – Pois não, minha senhora.

Não disse a resposta com naturalidade, esforcei-me por fazê-la
polida e amável, e saiu-me por isso completamente desajeitada. Sempre
fui assim diante das senhoras, qualquer que seja a sua condição;
desde que as veja num ambiente de sala, são todas para mim marquesas
e grandes damas. É um sentimento perfeitamente imbecil, de que até
hoje não me pude libertar. Certa ocasião mesmo fui por isso
de um ridículo sem nome. Michaelowsky ceava comigo num restaurante
da moda. Era da meia-noite para uma hora; a sala estava cheia de raparigas
de vida airada. Tendo esbarrado a minha cadeira na de uma delas, pedi com
grande humildade cortesã: – Desculpe-me V. Exª. A mulher, grande
espanhola cheia de rugas e pó-de-arroz, olhou-me cheia de raiva e desandou-me
uma descompostura, julgando que eu a troçava. Michaelowsky, porém,
interveio e deu-lhe explicações cabais na sua língua
de origem. Ela riu-se muito, contou à companheira e em breve a sala
toda me olhava, com uma risota nos lábios.

Diante daquela mulher, na casa particular do deputado, cuja situação
nela era fácil de descobrir, eu fiquei nessa atitude de menino tímido
que me invade, sempre que estou em presença de mulheres, numa sala
qualquer. Não lhe falei: não pude provocar a palestra; ela fatigou-se
de olhar, levantou-se desculpando-se: – O senhor há de me desculpar…
Tenho que fazer, vou até lá dentro e o doutor não há
de tardar.

Ainda hoje, depois de tantos anos de desgostos, dessa relação
contínua pela minha luta íntima, precocemente velho pelo entrechoque
de forças da minha imaginação desencontrada, desproporcionada
e monstruosa, lembro-me – com saudade! com que frenesi! – do inebriamento
que essa mulher deu aos meus sentidos, com o seu perfume violentamente sexual,
acre e estonteante, espécie de requeime das especiarias das Índias…
Ergueu-se e foi lentamente pelo corredor em fora; e eu segui com o olhar a
sua nuca tentadora com tonalidade de bronze novo.

Eu conhecia a legítima esposa do Castro. Que diferença! Era
quase uma velha encarquilhada, cheia de pelancas e fatuidade…

Quando a perdi de vista, pus-me a reparar na sala, com umas oleogravuras
sentimentais e uns bibelots de pacotilha. Demorei-me assim uma meia hora;
por fim, o homem veio. Entreguei-lhe a carta. Leu-a num instante, tendo na
testa uma ruga de aborrecimento; depois perguntou-me: – É o senhor?
– Sim senhor.

– Você (mudou logo de tratamento) sabe perfeitamente como as coisas
vão: o país está em crise, em apuros financeiros, estão
extinguindo repartições, cortando despesas; é difícil
arranjar qualquer coisa; entretanto…

– Mas doutor eu não queria grande coisa… Cem mil-réis por
mês me bastava… Todos por aí arranjam e eu…

– Sim… Sim…. Mas têm grandes recomendações, poderosos
padrinhos – eu, o que valho? Nada! Ainda agora o Ministro do Interior não
nomeou o meu candidato para juiz do júri…

– Se V. Exª quisesse…

– Você, por que não faz um concurso? – Não posso, não
os há anunciados e eu preciso qualquer coisa já…

E assim fomos conversando: ele falsamente paternal e eu, à medida
que o diálogo se prolongava, caloroso e eloqüente. Houve ocasião
em que ele exprobrou essa nossa mania de empregos e doutorado, citando os
ingleses e os americanos. – Todo o mundo quer ser doutor… Corei indignado
e respondi com alguma lógica, que me era impossível romper com
ela; se os fortes, os aparentados, os relacionados para ela apelavam, como
havia eu, mesquinho, semi-aceito, de fazer exceção? Recomendou-me
que o procurasse no escritório, que havia de ver…

Se bem que me tivesse acolhido com polidez, senti que o coronel nada decidia
no ânimo do deputado. Julguei que mais do que pela carta o seu acolhimento
fora ditado por uma frouxidão de caráter, por certa preguiça
de vontade e desejo de mentir a si mesmo. A sua fisionomia empastada, o seu
olhar morto e a sua economia de movimentos deram-me essa impressão.
Demais aquela ruga na testa quando deu comigo…

No bonde, comprei um jornal. O veículo ia-se enchendo: meninas da
Escola normal, cheias de livros, de lápis e réguas; funcionários
de roupas surradas; pequenos militares com uniformes desbotados…

Conversavam; discutiam os casos políticos e os de polícia,
enquanto eu lia. Num dado momento, na segunda página, dei com esta
notícia: "Parte hoje para São Paulo, onde vai estudar a
cultura do café, o dr. H. de Castro Pedreira, deputado federal. S.
Ex.ª demorar-se-á…" Patife! Patife! A minha indignação
veio encontrar os palestradores no máximo de entusiasmo. O meu ódio,
brotando naquele meio de satisfação, ganhou mais força.
Num relâmpago, passaram-me pelos olhos todas as misérias que
me esperavam, a minha irremediável derrota, a minha queda aos poucos
– até onde? até onde? E ficava assombrado que aquela gente não
notasse o meu desespero, não sentisse a minha angústia… Imbecis!
pensei eu. Idiotas que vão pela vida sem examinar, vivendo quase por
obrigação, acorrentados às suas misérias como
galerianos à calceta! Gente miserável que dá sanção
aos deputados, que os respeita e prestigia! Por que não lhes examinam
as ações, o que fazem e para que servem? Se o fizessem… Ah!
se o fizessem! Que surpresa! Riem-se, enquanto do suor, da resignação
de vocês, das privações de todos tiram ócios de
nababo e uma vida de sultão… Veio-me um assomo de ódio, de
raiva má, assassina e destruidora; um baixo desejo de matar, de matar
muita gente, para ter assim o critério da minha existência de
fato. Depois dessa violenta sensação na minha natureza, invadiu-me
uma grande covardia e um pavor sem nome: fiquei amedrontado em face das cordas,
das roldanas, dos contrapesos da sociedade; senti-os por toda a parte, graduando
os meus atos, anulando os meus esforços; senti-os insuperáveis
e destinados a esmagar-me, reduzir-me ao mínimo, a achatar-me completamente…
Continuei a leitura. As letras dançavam sob meus olhos, a compreensão
faltava-me… Saltara dos meus desejos heróicos para imaginar expedientes
com que me saísse da miséria em perspectiva. Aceitaria qualquer
coisa, qualquer emprego… Recordei-me das minhas leituras, daquele Poder
da Vontade, das suas biografias heróicas: Palissy, Watt, Franklin…
Sorri satisfeito, orgulhoso; havia de fazer como eles. De novo, voltei à
leitura do jornal. Ao fim de uma coluna, lá estava um nome conhecido.
Senhor Manuel Laje da Silva, capitalista e industrial… Que acontecera? Recebera
a bênção papal até a décima quinta geração.
A notícia vinha cheia de gabos à sua atividade e à sua
honestidade…

Um sujeito entrou no bonde, deu-me um grande safanão, atirando-me
o jornal ao colo, e não se desculpou. Esse incidente fez-me voltar
de novo aos meus pensamentos amargos, ao ódio já sopitado, ao
sentimento de opressão da sociedade inteira… Até hoje não
me esqueci desse episódio insignificante que veio reacender na minha
alma o desejo feroz de reivindicação. Senti-me humilhado, esmagado,
enfraquecido por uma vida de estudo, a servir de joguete, de irrisão
a esses poderosos todos por aí. Hoje que sou um tanto letrado sei que
Stendhal dissera que são esses momentos que fazem os Robespierres.
O nome não me veio à memória, mas foi isso que eu desejei
chegar ser um dia.

Escrevendo estas linhas, com que saudades me não recordo desse heróico
anseio dos meus dezoito anos esmagados e pisados! Hoje!… É noite.
Descanso a pena. No interior da casa, minha mulher acalenta meu filho mais
moço. A sua cantiga chega-me aos ouvidos cheia de um grande acento
de resignação. Saiu, e vou à varanda. A lua, no crescente,
banha-me com meiguice, a mim e a minha humilde casa roceira. Por momentos
deixo-me ficar sem pensamentos, envolto na fria luz da lua, e embalado pela
ingênua cantilena de minha mulher. Correm alguns instantes; ela cessa
de cantar e o brilho do luar é empanado por uma nuvem passageira. Volto
às minhas reminiscências: vejo o bonde, a gente que o enchia,
os sofrimentos que me agitavam, a rua agitada…

Os meus desejos de vingança fazem-me agora sorrir e não sei
por que, do fundo da minha memória, com essas recordações
todas, chega-me também a imagem de uma pesada carroça, com um
grande lajedo suspenso por fortes correntes de ferro, vagarosamente arrastada
pelos paralelepípedos, por uma junta de bois enormes, que o carreteiro
fazia andar com gritos e ferroadas desapiedadas…

V – A sua intimação era para as onze horas

– Não me foi possível vir a essa hora. Só a recebi
às duas… Estive fora…

– Entretanto, segundo disseram no hotel, o sr. costuma almoçar lá
e sai pouco antes das onze, não é? – É verdade; mas,
excepcionalmente, hoje, saí muito cedo, almocei com um amigo e…

– Bem. Sente-se e espere o Delegado…

Falava a verdade. Era de fato meu hábito sair do hotel pouco antes
das onze, para ir rondar as proximidades da Câmara. Nesse dia, porém,
aquela súbita inspiração de ir procurar de madrugada
o deputado, tinha-me feito quebrar o hábito. Acresce que, ao voltar,
vim a encontrar o dr. Michaelowsky. Estivemos instantes conversando e ele
convidou-me para almoçar. Não era a primeira vez que o fazia;
o meu orgulho obrigava-me sempre a recusar. Dessa feita acedi. Estava deprimido,
desalentado; a minha vontade era frouxa; os meus sentimentos tinham-se enfraquecido
durante aquela longa viagem de bonde a pensar na vida, a curtir ódios,
a arquitetar vinganças e a farejar a miséria próxima.
Fui desejoso de encontrar uma afeição, uma simpatia, naquele
estrangeiro, um aventureiro, um ente cujos precedentes não conhecia,
cuja lhaneza de trato, comunicabilidade especial e generosidade, porém,
me atraíam e solicitavam fortemente. Foi almoço de camaradas,
rico de confidências, trocamos idéias, contou-me um pouco de
sua vida e eu contei-lhe a minha. Era da România. Seu pai era um emigrado
russo; sua mãe, grega. Estudara no Cairo, correra a Europa, a Ásia
e América. Tinha 45 anos e sentia-se absolutamente sem pátria,
livre de todas as tiranias morais e psicológicas que essa noção
contém em si. Era capaz de aprender todas as línguas, escrevê-las,
falá-las em três ou quatro meses. Em cada país demorava-se
pouco, cinco ou seis anos; procurava os jornais, defendia esta ou aquela questão,
ganhava dinheiro e vivia. Contava-me isso bebendo e à proporção
que bebia vinhos franceses os seus olhos de conta e azuis com reflexos metálicos
ficavam mais brilhantes e mais penetrantes. Falou-me em poetas, em filósofos;
traçou, a grandes golpes, o destino da humanidade, provocou-me grandes
e consoladoras visões patrióticas, e só vim a deixá-lo
saudoso pelas duas horas, quando me dirigi ao hotel. Ali recebi a intimação
do delegado e corri à delegacia obedientemente, depois desse delicioso
almoço que quase me fez esquecer os dolorosos momentos da manhã.

Troquei as necessárias explicações com o inspetor de
dia. O seu autoritarismo não me amedrontou. A sua pessoa era sem força,
combalida, desanimada, muito pálido, com lindos cabelos negros e uma
miséria física de penalizar. Transpirava desgostos, resignação
e um pouco de bondade no seu olhar semi-aberto e nos seus lábios frouxos.

Obecedendo à sua ordem, sentei-me entre outras pessoas de cujas fisionomias
não fiz grande reparo. Pus-me a olhar pela janela aberta uma nesga
do céu. As nuvens pardacentas que, pelo caminho, eu vira subirem por
detrás da cortina de montanhas, só deixavam agora ver, do céu,
um rasgão irregular.

Até então, eu não sabia ao certo o que viera fazer
àquela delegacia. O copeiro que me transmitira a ordem da autoridade,
falou-me por alto num roubo que houvera no hotel pela noite última.
Ao Coronel Figueira, furtaram cerca de seis contos em dinheiro, afora objetos
de valor.

– Que vou fazer lá? indaguei do copeiro.

– Depor, naturalmente.

Sentado na estação policial é que me lembrei que ele
sublinhara a resposta com um piscar de olhos cheio de canalhice… Seria possível?
Qual! Eu era estudante, rapaz premiado… Qual! Nem por sombras!…

A delegacia continuava silenciosa e as pessoas sentadas pelas cadeiras não
ousavam entreolhar-se. Não havia duas horas que eu, no restaurant,
me pusera a imaginar grandes coisas. Michaelowsky incitara-me a trabalhar
pela grandeza do Brasil; fez-me notar que era preciso difundir na consciência
coletiva um ideal de força, de vigor, de violência mesmo, destinado
a corrigir a doçura nativa de todos nós. Pela primeira vez de
lábios humanos, ouvi dizer mal da piedade e da caridade: sentimentos
anti-sociais, enfraquecedores dos indivíduos e das nações…
Virtudes dos fracos e dos covardes – resumia ele. Houve um grande estupor
em mim; eu tinha do meu natural um grande respeito por essas virtudes e a
minha educação isolada, comprida, órfã de afetos,
só fizera estimular e aumentar esse meu respeito. Não sei como
a conversa foi variar para beleza. Ele riu-se do nosso critério habitual
dela, da insignificância do critério dos nossos literatos. Gente,
disse-me ele, que vive perturbada, desejosa de realizar ideais de povos mortos,
ideais que já se esgotaram; prisioneira da arqueologia, e muito certa
de que a verdade está aí, como se houvesse uma beleza absoluta,
existindo fora de nós e independente de nós? Por aí ele
fez uma formidável charge aos nossos intelectuais. Eu sinto não
poder reproduzi-la aqui. Estávamos em meio do almoço e o vinho
dava asas às suas palavras e tornara mais lúcido o meu espírito.
Referindo-se ao Laje, chamou-o de águia, homem de presa, super-homem
e por mais que eu quisesse tirar informações sobre o padeiro,
ele se limitou sempre a ditos sibilinos que mais me aumentaram as velhas suspeitas.

O meu conhecimento com o doutor Michaelowsky, se bem que recente, vinha
sendo mantido e fortalecido com freqüentes encontros na rua do Ouvidor.
O meu provincianismo e acanhamento davam-se perfeitamente no tumulto que a
anima. Nela, eu combinava as minhas necessidades de sociabilidade com o meu
temperamento delicado e desconfiado, ao qual uma sociabilidade mais perfeita
expunha a ofensas e a indelicadezas dolorosas. Depois, olhava, olhava a fartar:
homens, moços e velhos, mulheres, senhoras. Quando acontecia encontrar
o jornalista internacional, trocávamos cumprimentos com os chapéus,
polidamente, atenciosamente. O gênio comunicativo do russo e o hábito
de viajante de adquirir rapidamente relações e camaradas, foram
vencendo aos poucos a minha reserva e a desconfiança. Convite como
este, já me fora feito várias vezes e eu sempre recusara com
delicadeza e dignidade. Entrando no hotel, logo ao sentar-me, tive ímpetos
de confessar os meus desgostos ao jornalista; o meu orgulho irracional fez-me
calar…

Por esse tempo, passos fortes na escada vieram perturbar os meus pensamentos.
Todos nos viramos para a porta de entrada. Pela sala adentro entrou aquele
senhor de cartola e calças brancas que me disseram Senador, num bonde
de barcas. Tirou a cartola com repugnância, enquanto o inspetor levantava-se
respeitosamente.

– V. Exª?! – Boa tarde. O Barros não está? – Não,
senhor. Saiu e só voltará para a audiência das seis horas.

– Que diabo! fez aborrecido o Senador.

– Se V. Exª quer alguma coisa urgente, pode procurá-lo agora
no Pascoal… Ele disse-me que ia para lá…

O alto dignitário da nação fez menção
de retirar-se e o inspetor já se tinha sentado, quando subitamente
o Senador se voltou dizendo: – Era coisa urgente… você bem me podia
informar se…

Olhou ao redor cautelosamente e depois continuou a falar naturalmente: –
Você bem me podia dizer se o "Nove-dedos" está preso
aqui? – Aqui, não. senhor Senador. Até agora, só temos
no xadrez um ébrio…

– Mas… disseram-me que tinha feito um roubo… Esse rapaz é um
doido! – Onde foi, Exª? – No Largo de São Francisco.

– Ahn! Não é aqui conosco; é com a nona.

– Obrigado.

Apertou a mão do rapaz cheio de agradecimento e saiu murmurando de
modo que fosse ouvido por todos nós: Aquele doido só me leva
a incomodar! A sala da delegacia voltou novamente ao seu silêncio primitivo.
Um soldado veio apresentar-se, trocando rápidas palavras com o inspetor.
Um relógio próximo bateu quatro horas. Dos compartimentos do
fundo, chegou um personagem ventrudo, meão de altura, de pernas curtas,
furta-cor, tendo atravessado no peito um grilhão de ouro, donde pendia
uma imensa medalha cravejada de brilhantes. Dirigiu-se ao inspetor: – Raposo,
vou sair: há alguma coisa? – Nada. Capitão Viveiros.

– E o caso do Jenikalé? Já apareceu o tal "mulatinho"?
Não tenho pejo em confessar hoje que quando me ouvi tratado assim,
as lágrimas me vieram aos olhos. Eu saíra do colégio,
vivera sempre num ambiente artificial de consideração, de respeito,
de atenções comigo; a minha sensibilidade, portanto, estava
cultivada e tinha uma delicadeza extrema que se juntava ao meu orgulho de
inteligente e estudioso, para me dar não sei que exaltada representação
de mim mesmo, espécie de homem diferente do que era na realidade, ente
superior e digno a quem um epíteto daqueles feria como uma bofetada.
Hoje, agora, depois não sei de quantos pontapés destes e outros
mais brutais, sou outro, insensível e cínico, mais forte talvez;
aos meus olhos, porém, muito diminuído de mim próprio,
do meu primitivo ideal, caído dos meus sonhos, sujo, imperfeito, deformado,
mutilado e lodoso. Não sei a quem me compare, não sei mesmo
se poderia ter sido inteiriço até ao fim da vida; mas choro
agora, choro hoje quando me lembro que uma palavra desprezível dessas
não me torna a fazer chorar. Entretanto, isso tudo é uma questão
de semântica: amanhã, dentro de um século, não
terá mais significação injuriosa. Essa reflexão,
porém, não me confortava naquele tempo, porque sentia na baixeza
do tratamento, todo o desconhecimento das minhas qualidades, o julgamento
anterior da minha personalidade que não queriam ouvir, sentir e examinar.
O que mais me feriu, foi que ele partisse de um funcionário, de um
representante do governo, da administração que devia ter tão
perfeitamente, como eu, a consciência jurídica dos meus direitos
ao Brasil e como tal merecia dele um tratamento respeitoso.

As lágrimas secaram-se nos olhos, antes que o inspetor me apresentasse
ao escrivão Viveiros. Olhou-me ele algum tempo, examinou-me com olhar
de entendido. Creio que sondava as minhas algibeiras detidamente, antes de
me fazer esta pergunta: – O senhor é o moço do Hotel Jenikalé?
– Sou um deles.

– Qual é sua profissão? – Estudante.

Houve algum espanto na sua fisionomia deslavada. Conteve-se e continuou-me
a perguntar: – Tem documentos? – Alguns.

– Ah! Pode-se justificar perfeitamente.

– Como? – Com testemunhas e documentos.

– Se não conheço ninguém aqui no Rio…

– Eu lhe arranjo.

– Aceito e obrigado.

– Mas custa-lhe trinta mil-réis.

– Não posso pagar, Capitão. Não tenho dinheiro.

– E o seu correspondente? – Não tenho.

– Então meu caro…

Encolheu os ombros, afastou-se cheio de indiferença, sem olhar qualquer
dos circunstantes. O inspetor continuou a escrever o seu interminável
livro. De onde em onde, muito policialmente, passeava o olhar dissimuladamente
sobre cada um de nós. Nuvens plúmbeas já de todo tinham
coberto a nesga do céu vista pela janela. Havia como que fuligem na
atmosfera e a luz do sol tornara-se de um amarelo pardacento e fúnebre.
A temperatura continuava elevada e o ar abafado da sala incomodava-me. A ressonância
especial das ruas subia até nós cada vez mais nitidamente. O
bimbalho das campainhas era mais agudo, o rolar dos veículos mais redondo
e mais dissonante, o ranger das ferragens dos bondes, os estalos dos chicotes
e os apitos caprichosos dos cocheiros. Da delegacia, por entre essa bulha,
percebemos que um vozeiro se aproximava. O inspetor levantou a pena e esperou.
Um grande magote de povo invadia a sala. Os soldados correram e contiveram
a multidão. Na frente, vinham duas mulheres do povo, desgrenhadas,
rotas, que dois soldados, com esforço, mantinham separadas. Um deles,
sem largar a mulher, explicou ao inspetor.

– Estavam brigando e pelo caminho ainda se atracaram; nós…

E logo ambas as duas se quiseram justificar, falando ao mesmo tempo. O inspetor
repreendeu-as severamente. O soldado expôs. Moravam em uma estalagem
próxima, eram lavadeiras, uma era casada e outra tinha "seu homem".

– Por que foi? – perguntou o policial.

De novo quiseram narrar ao mesmo tempo o motivo de tão apaixonado
pugilato.

– Assim não pode ser, fez o inspetor. Ou uma ou outra… Vá,
fale a senhora, acabou designando uma delas.

– V. S. sabe: sou pobre… Tenho uma galinha… Mais de uma; mas foi a pedrês.
E não é de hoje, há muito tempo, sim senhor. A gente
não pode, é verdade; mas que se há de fazer? Um bichinho
é sempre bom, "seu" inspetor: dá alegria e ajuda a
gente… É por isso que a comadre…

– Diga a Senhora afinal por que foi… Vá! intimou o inspetor.

– Eu já digo, sim senhor. Há muito tempo que a minha galinha
punha e eu nada de ver os ovos. Procurava daqui procurava dali, nada de achar…
Hoje eu tinha saído para levar o jantar do Manduca e quando voltei
vi que a galinha vinha saindo da casa dessa mulher com a cara de quem já
pôs… Ah! "seu" inspetor! deu-me uma gana, uma coisa que
eu mesma não sei… Xinguei, fez ela por fim; e foi por isso…

Acabou a narração humilde, muito humilde com uma modulação
de choro na voz.

– E a senhora que diz a isso? perguntou a autoridade à outra.

– Não foi assim, não senhor… Essa mulher sempre embicava
comigo… Não sei por que, sempre andava com rezinga… Um dia era
isso, outro dia era aquilo… Se o vento punha a sua roupa no chão,
era eu; se…

– Mas afinal a galinha saiu ou não saiu de sua casa? – Saiu, sim
senhor; mas foi por acaso…

– Por acaso o quê! sua ladra, sua p…

– Que é isso! exclamou severamente o inspetor. Isto aqui é
estalagem? Meto-a no xadrez! Está ouvindo? A mulher descaiu logo a
cabeça, que tinha erguido de um só movimento cheio de arrogância
e, com voz entrecortada pelo choro, desculpou-se: – Me perdoe, "seu"
inspetor! A gente é pobre… Foi a patroa que me deu o "bichinho"…
A gente pensa: vamos ter uma gemada, uma fritada, um doce, uma coisa ou outra…
Compra-se milho e se espera… e se espera… No fim a gente vem a saber que
os outros é que comem os ovos… Ah! Meu Deus!… É duro! É
duro! É a sina da gente…

A rapariga falava desigualmente: ora, alongava as sílabas, ora fazia
desaparecer outras; mas sempre premida das palavras, com um forte acento de
paixão, superposto ao choro. As palavras saíam-lhe animadas,
cheias de uma grande dor, bem distante da pueril querela que as provocara.
Vinham das profundezas do seu ser, das longínquas partes que guardam
uma inconsciente memória do passado, para manifestarem o desespero
daquela vida, os sofrimentos milenares que a natureza fazia sofrer e os homens
conseguiram aumentar. Senti-me comunicado de sua imensa emoção;
ela penetrava-me tão fundo que despertava nas minhas células
já esquecidas a memória enfraquecida desses sofrimentos contínuos
que me pareciam eternos; e achando-os por debaixo das noções
livrescas, por debaixo da palavra articulada, no fundo da minha organização,
espantei-me, aterrei-me, tive desesperos e cristalizei uma angústia
que me andava esparsa.

O inspetor procurou acalmá-la; a outra, muito popularmente, pôs-se
a chorar explicando que não furtara os ovos, que não os comera,
mas que guardara unicamente o primeiro, temendo que fosse "mandinga",
"coisa-feita", e que, depois, com a continuação, não
os restituíra com vergonha, mas que o faria logo que chegasse a casa.
Acalmadas e repreendidas, foram-se e a delegacia em breve regressou à
sua atmosfera enervante. A ela e ao meu abalo moral, juntavam-se a tonalidade
amarelaça da tarde e o ambiente de forja para me dar um mal-estar nunca
sentido. Esperava o delegado, procurando devanear, sonhar, analisar-me, mas
era em vão: a inteligência não me obedecia. Havia em mim
um grande vazio mental, e a imagem que me vinha aos olhos era a da pobre mulher
a imprecar, sem nenhuma grandeza, contra o destino implacável, dentro
daquela feia e triste sala. De repente a treva fez-se mais espessa. Na sala
da delegacia acenderam as luzes, ao tempo que um relâmpago veio iluminá-la
instantaneamente. Ouviu-se um estalido agudo, um ronco de trovão e,
estremecendo, sentimos nós todos que um raio caíra nas proximidades.
A chuva começou a cair fracamente, sem a violência que o rigor
do céu ameaçava, quando a poderosa autoridade entrou. Passava
das seis horas; a opressão da atmosfera diminuíra muito e o
calor abrandara razoavelmente.

Chegou e eu esperei ainda. Afinal, fui levado à sua presença.
Ao lado, em uma mesa mais baixa, lá estava o Capitão Viveiros,
muito solene, com a pena atrás da orelha, o seu olhar cúpido
e a sua papada farta. O delegado pareceu-me um medíocre bacharel, uma
vulgaridade com desejos de chegar a altas posições; no entanto,
havia na sua fisionomia uma assustadora irradiação de poder
e de força. Talvez se sentisse tão ungido da graça especial
de mandar, que na rua, ao ver tanta gente mover-se livremente, havia de considerar
que o fazia porque ele deixava. Interrogou-me de mau humor, impaciente, distraído,
às sacudidelas. Repisava uma mesma pergunta; repetia as minhas respostas.
A sua impaciência levava-o a perder tempo. Não dava grande atenção
ao interrogatório; olhava com insistência a rua, os bondes que
passavam com cortinas arriadas. Num dado momento, como querendo levar a coisa
ao cabo, perguntou pela terceira vez: – Qual é a sua profissão?
– Estudante.

– Estudante?! – Sim, senhor, estudante, repeti com firmeza.

– Qual estudante, qual nada! A sua surpresa deixara-me atônito. Que
havia nisso de extraordinário, de impossível? Se havia tanta
gente que o era, por que não o podia ser eu? Donde lhe vinha a admiração
duvidosa? Quis-lhe dar uma resposta mas as interrogações a mim
mesmo me enleavam. Ele, por sua vez, tomou o meu embaraço como prova
de que mentia.

Com ar escarninho perguntou: – Então, você é estudante?
Dessa vez tinha-o compreendido, cheio de ódio, cheio de um santo ódio
que nunca mais vi chegar em mim. Era mais uma variante daquelas poucas humilhações
que eu já sofrera; era o sentimento geral da minha inferioridade, decretada
a priori, que eu adivinhei na sua pergunta. E afirmei então com a voz
transtornada: – Sou, sim, senhor! – Pois então diga-me de quem é
este verso: – "Estava mudo e só na rocha de granito"? – Não
sei, não senhor; não leio versos habitualmente…

– Mas um estudante sempre os conhece, fez ele com falsa bonomia. É
de admirar que o sr. não conheça… Sabe de quem é este
outro: – "É o triunfo imortal da carne e da beleza"? – Não
sei absolutamente, e é inútil perguntar-mo, pois nunca li poetas.

– Mas o senhor, um estudante, não saber de quem são estes
versos! Admira! – Que tem uma coisa com outra, "seu" doutor? fiz
eu sem poder reprimir um sorriso.

– Está rindo-se, "seu" malcriado! fez ele mudando repentinamente
de tom. Muita coisa! É que você não é estudante
nem nada; não passa de um "malandro" muito grande! – Perdão!
O sr. não me pode insultar…

– Qual o quê! continuou o Delegado no auge da cólera. Não
há patife, tratante, malandro por aí, que não se diga
estudante…

Eu começava a exaltar-me também, a sentir-me ofendido injustamente,
agredido sem causa e sem motivo; contive-me, no entanto.

– Mas eu sou, asseguro-lhe…

– Qual o quê! Pensa que me embrulha… você o que é,
é um gatuno, sabe? Por aí, houve em mim o que um autor russo
chamou a convulsão da personalidade. Todo eu me agitei, todo eu me
indignei. Senti num segundo todas as injustiças que vinha sofrendo;
revoltei-me contra todos os sofrimentos que vinha suportando. Injustiças,
sofrimentos, humilhações, misérias, juntaram-se dentro
de mim, subiram à tona da minha consciência, passaram pelos meus
olhos e então expectorei sacudindo as sílabas: – Imbecil! –
Que diz? perguntou ele com autoridade.

– Que você é um imbecil, ouviu? Não me disse mais nada;
não se lembrou mesmo de determinar que o escrivão lavrasse auto
de flagrante. Ergueu-se cheio de fúria, esperei-o pronto para jogar
os sopapos; mas o terrível delegado ia unicamente à porta para
ordenar que me metessem no xadrez.

Fui para o xadrez convenientemente escoltado. Pelo caminho, tudo aquilo
me pareceu um pesadelo. Custava-me a crer que, no intervalo de horas, eu pudesse
ter os entusiasmos patrióticos do almoço e fosse detido como
um reles vagabundo num xadrez degradante. Entrei aos empurrões; desnecessários
aliás, porque não opus a menor resistência. As lágrimas
correram-me e eu pensei comigo: A pátria!

VI

Despertei hoje cheio de um mal-estar que não sei donde me vem. Nada
ocorreu que o determinasse. Ontem, vivi um dia igual a todos. Não tive
nem mesmo uma questão com o coletor. Por que não estou satisfeito?
Não sei. E quem o poderá saber! Há em nós tanta
coisa misteriosa, tantos sentimentos cujas origens nos escapam, que me esforço
em vão por explicar este meu atual estado d’alma. De uns tempos
a esta parte, acontece-me isso amiudadas vezes. Tudo vai correndo normalmente;
os dias com o mesmo enfado de sempre, e as noites serenas e plácidas;
entretanto, esta ou aquela manhã, ergo-me e olho pela janela aberta
o rio que desliza lá embaixo, ensombrado de melancolia, cheio de lassidão,
com maus desejos passando-me pela cabeça. Penso – não sei por
que – que é este meu livro que me está fazendo mal… E quem
sabe se excitar recordações de sofrimentos, avivar as imagens
de que nasceram não é fazer com que, obscura e confusamente,
me venham as sensações dolorosas já semimortas? Talvez
mesmo seja angústia de escritor, porque vivo cheio de dúvidas,
e hesito de dia para dia em continuar a escrevê-lo. Não é
o seu valor literário que me preocupa; é a sua utilidade para
o fim que almejo.

Quem sabe se ele me não vai saindo um puro falatório?! Eu
não sou literato, detesto com toda a paixão essa espécie
de animal. O que observei neles, no tempo em que estive na redação
do O Globo, foi o bastante para não os amar, nem os imitar. São
em geral de uma lastimável limitação de idéias,
cheios de fórmulas, de receitas, só capazes de colher fatos
detalhados e impotentes para generalizar, curvados aos fortes e às
idéias vencedoras, e antigas, adstritos a um infantil fetichismo do
estilo e guiados por conceitos e um pueril e errôneo critério
de beleza. Se me esforço por fazê-lo literário é
para que ele possa ser lido, pois quero falar das minhas dores e dos meus
sofrimentos ao espírito geral e no seu interesse, com a linguagem acessível
a ele. É esse o meu propósito, o meu único propósito.
Não nego que para isso tenha procurado modelos e normas. Procurei-os,
confesso; e, agora mesmo, ao alcance das mãos, tenho os autores que
mais amo. Estão ali o Crime e Castigo de Dostoiévski, um volume
dos Contos de Voltaire, A Guerra e a Paz de Tólstoi, o Le Rouge et
le Noir de Stendhal, a Cousine Bette de Balzac, a Education Sentimentale de
Flaubert, o Antéchrist de Renan, o Eça; na estante, sob as minhas
vistas, tenho o Taine, o Bouglé, o Ribot e outros autores de literatura
propriamente, ou não. Confesso que os leio, que os estudo, que procuro
descobrir nos grandes romancistas o segredo de fazer. Mas, não é
a ambição literária que me move ao procurar esse dom
misterioso para animar e fazer viver estas pálidas Recordações.
Com elas, queria modificar a opinião dos meus concidadãos, obrigá-los
a pensar de outro modo, a não se encherem de hostilidade e má
vontade quando encontrarem na vida um rapaz como eu e com os desejos que tinha
há dez anos passados. Tento mostrar que são legítimos
e, se não merecedores de apoio, pelo menos dignos de indiferença.

Entretanto, quantas dores, quantas angústias! Vivo aqui só,
isto é, sem relações intelectuais de qualquer ordem.
Cercam-me dois ou três bacharéis idiotas e um médico mezinheiro,
repletos de orgulho de suas cartas que sabe Deus como tiraram. Claudicam na
ortografia, e um mesmo, o Juiz municipal, acaba de publicar um artigo no Diário
de Caxambi sobre a "Sociedade atual em face da Ciência", onde
fala em raios hertzianos. Entretanto, se eu amanhã lhes fosse falar
neste livro – que espanto! que sarcasmo! que crítica desanimadora não
fariam. Depois que se foi o dr. Graciliano, excepcionalmente simples e esquecido
de sua carta apergaminhada, nada digo das minhas leituras, não falo
das minhas lucubrações intelectuais a ninguém, e minha
mulher, quando me demoro escrevendo pela noite afora, grita-me do quarto:
– Vem dormir, Isaías! Deixa esse Relatório para amanhã!
De forma que não tenho por onde aferir se as minhas Recordações
preenchem o fim a que as destino; se a minha inabilidade literária
está prejudicando completamente o seu pensamento. Que tortura! E não
é só isso: envergonho-me por esta ou aquela passagem em que
me acho, em que me dispo em frente de desconhecidos, como uma mulher pública…
Sofro assim de tantos modos, por causa desta obra, que julgo que esse mal-estar,
com que às vezes acordo, vem dela, unicamente dela. Quero abandoná-la;
mas não posso absolutamente. De manhã, ao almoço, na
coletoria, na botica, jantando, banhando-me, só penso nela. À
noite, quando todos em casa se vão recolhendo, insensivelmente aproximo-me
da mesa e escrevo furiosamente. Estou no sexto capítulo e ainda não
me preocupei em fazê-la pública, anunciar e arranjar um bom recebimento
dos detentores da opinião nacional. Que ela tenha a sorte que merecer,
mas que possa também, amanhã ou daqui a séculos, despertar
um escritor mais hábil que a refaça e que diga o que não
pude nem soube dizer.

É esta passagem do xadrez que me faz vir estes pensamentos amargos.
Imagino como um escritor hábil não saberia dizer o que eu senti
lá dentro. Eu que sofri e pensei não o sei narrar. Já
por duas vezes, tentei escrever; mas relendo a página, achei-a incolor,
comum, e, sobretudo, pouco expressiva do que eu de fato tinha sentido. Estive
no xadrez mais de três horas, depois fui de novo à presença
do delegado. Encontrei-o outro homem, mais brando e disposto à simpatia,
tratando-me por "menino" e "meu filho".

– Você menino, precisa deixar esse gênio. Olhe que a vida não
se leva assim… Você sabe o que eu lhe podia fazer? Lavrar um processo
por desrespeito à autoridade… Não faça nunca mais isso,
meu filho; hoje foi comigo, que enfim… mas amanhã – quem sabe? Em
começo mantive o mesmo humor agressivo, respondendo-lhe secamente às
perguntas que fazia sobre os meus precedentes; por fim, rendendo-me à
sua brandura, desculpei-me, satisfazendo-as com respeito, acatando-as com
toda a doçura de que é capaz o meu natural, doce e sensível
ao bom tratamento.

Há muita bondade no nosso caráter, mas também muita
arrogância, muito exagero no mandar e um doentio impudor no desobedecer.
Esses arrependimentos, essas voltas atrás são freqüentes
e fatais no modo de agir das nossas autoridades. Eu não sei até
que ponto me excedi, até onde fui inconveniente; não tenho ainda
observado essa face do caráter nacional, espantei-me com a delicadeza
com que me tratou a autoridade, pela segunda vez em que fui à presença.
Julgava-a transformada pela intervenção de algum protetor desconhecido,
mas fiquei certo de que não era esse o motivo, pois me perguntou logo:
– Você não tem relações aqui no Rio, menino? –
Nenhuma.

Admirou-se muito, extraordinariamente, a ponto de repetir de outro modo
a pergunta: – Mas ninguém? Ninguém? – O meu conhecimento mais
íntimo é o doutor Ivã Gregoróvitch Rostóloff
– conhece? – Oh! como não? Um jornalista, do O Globo não é?
– Esse mesmo.

– Por que não me disse logo? Quando se está em presença
da polícia, a nossa obrigação é dizer toda a nossa
vida, procurar atestados de nossa conduta, dizer os amigos, a profissão,
o que se faz, o que se não faz…

– Não sabia que era um homem importante, por isso…

– Pois não! Um jornalista é sempre um homem importante, respeitado,
e nós, da polícia, temo-lo sempre em grande conta… Vá-se
embora, disse-me ele por fim, e procure mudar-se daquele hotel quanto antes…
Aquilo é muito conhecido… Os furtos se repetem e os ladrões
nunca aparecem… Mude-se quanto antes, é o meu conselho. Vá!
Eu ia saindo e, antes de transpor a porta, o delegado veio ao meu encontro
e recomendou em voz baixa: – Não diga nada ao dr. Rostóloff
– sabe? Ele pode publicar e ambos nós temos que perder…

Dirigi-me ao hotel indiferente à chuva que continuava a cair. Ia
profundamente vexado e firmemente decidido a abandoná-lo quanto antes.
Pressentindo que o hoteleiro tinha insinuado ao delegado que eu bem podia
ser o autor do furto, refletia sobre uma decisão a tomar. O meu primeiro
pensamento foi insultá-lo, dar-lhe pancada; mas seria recomeçar
as humilhações da delegacia… Andando, cheguei ao Campo de
Sant’Ana. Aí já tinha deliberado. Entraria naturalmente
e nada diria a respeito, esperaria que ele falasse. Entrei; estavam todos
na sala de jantar, dei-lhes boas-noites e troquei com os circunstantes algumas
explicações sobre o fato. Nenhum deles se animou à mais
leve insinuação e subi ao meu quarto aparentando a maior calma.
Não conciliei logo o sono. Encarei a eventualidade de voltar para minha
casa familiar. O caminho na vida parecia-me fechado completamente, por mãos
mais fortes que as dos homens. Não eram eles que não me queriam
deixar passar, era o meu sangue covarde, era a minha doçura, eram os
defeitos de meu caráter que não sabiam abrir um. Eu mesmo amontoava
obstáculos à minha carreira; não eram eles… Não
seria tolice, pusilanimidade escondida fazer repousar a minha felicidade na
presteza com que um qualquer deputado atendesse um pedido de emprego? Era
possível tê-los sempre à mão para os dar ao primeiro
que aparecesse? As condições de minha felicidade não
deviam repousar senão em mim mesmo – concluí… Mas não
era só isso que eu via. O que me fazia combalido, o que me desanimava
eram as malhas de desdém, de escárnio, de condenação
em que me sentia preso.

Na viagem, vira-as manifestar-se; no Lage da Silva, na Delegacia, na atitude
do deputado, numa frase meio dita, num olhar, eu sentia que a gente que me
cercava, me tinha numa conta inferior. Como que sentia que estava proibido
de viver e fosse qual fosse o fim da minha vida os esforços haviam
de ser titânicos. Foi talvez esse adjetivo que me fez deliberar de outro
modo. Passou-me pela memória a anedota mitológica que ele evoca.
Representou-se-me a luta daqueles heróis com os Deuses, a sua teimosia
em escalar o céu, a energia que puseram em tão insensata empresa…
Vi o quadro com todas as cores e com todas as figuras… Abalei-me de emoção;
achei nessa atitude uma estranha grandeza, não sei que fulgurante beleza
que me tornou logo interiormente alegre – tanto é verdade dizer-se
que a beleza é uma promessa de felicidade! Abandonei a volta covarde
para a casa materna e decidi-me a lutar, a bater-me para chegar – aonde? –
não sabia bem; para chegar fosse como fosse. Trabalharia – em quê?
em tudo. E, enquanto considerava a delicadeza das minhas mãos e a fragilidade
dos meus músculos, adormeci placidamente, satisfeito comigo e com a
minha coragem e firme na resolução de procurar no dia seguinte
qualquer ocupação, por mais humilde que ela fosse. A noite passou
depressa e, quando desci à rua, ainda brilhava em frente à Prefeitura
um combustor de gás. O ambiente não era de luz nem de treva
– era uma penumbra algodoada e nevoenta com que começam certas manhãs
no Rio de Janeiro. Os raros transeuntes moviam-se esbatidos naquela ambiência
indecisa. Andei. Ao chegar à rua do Ouvidor, a rua dos lentos passeios
elegantes, havia uma agitação de mercado. Cestos de verduras,
de peixes, de carnes, passavam à cabeça de mulheres e homens;
os quitandeiros ambulantes corriam por ela acima; pequenas carroças
de hotéis caros davam-se ao luxo de atravessá-la em toda a extensão;
e pelas soleiras das portas imensas moles de jornais diários eram subdivididos
pelos vendedores de todos os pontos da cidade. As polêmicas malcriadas
de uns contra os outros sobrepunham-se, abraçavam-se fraternalmente
ao impulso do italiano indiferente: Gazeta! País! Jornal do Comércio!
Os cafés já estavam abertos e ainda iluminados. Comprei um jornal
e entrei num deles. Por essa hora, têm uma freguesia apressada e especial.
Noctívagos, vagabundos, operários, jogadores, empregados em
jornais – gente um tanto heterogênea que lá vai e se serve rapidamente.

É raro uma mulher; nesse dia, por acaso, havia duas moças,
acompanhadas de uma senhora e um rapaz. Tomavam chocolate e vinham naturalmente
de um baile.

A velha cochilava e as duas moças tinham os olhos pisados, e o rosto
macerado pela longa e fatigante vigília.

Saturadas de notas musicais, uma delas ainda balançava a cabeça
como se estivesse ouvindo um dolente compasso de valsa. Estavam desbotadas,
com os olhos encovados, e pelo rosto, neste ou naquele ponto, uma parte de
pintura resistira e ficara. Viam-se os ossos da face e os rostos estavam escaveirados.
O rapaz, entretanto, continuava a conversa ternamente embevecido… Observei-as
muito tempo ainda, considerando como era difícil àqueles dois
entes achar o fim natural de sua vida… Quantos tropeços as praxes
punham! A quanto trabalho eram obrigadas! Dançar-se noites e noites!…
Levado por tais considerações ia esquecendo os meus próprios
interesses. Pus-me a ler o jornal, os anúncios de "precisa-se".
Dentre eles, um pareceu-me aceitável. Tratava-se de um rapaz, de conduta
afiançada para acompanhar um cesto de pão. Era nas Laranjeiras.
Estava resolvido a aceitar; trabalharia um ano ou mais; guardaria dinheiro
suficiente que me desse tempo para pleitear mais tarde um lugar melhor. Não
havia nada que me impedisse: eu era desconhecido, sem família, sem
origens… que mal havia? Mais tarde, se chegasse a alguma coisa, não
me envergonharia, por certo? Fui, contente até. Falei ao gordo proprietário
do estabelecimento. Não me recordo mais das suas feições,
mas tenho na memória as suas grandes mãos com um enorme "solitário"
e o seu alentado corpo de arrobas.

– Foi o senhor que anunciou um rapaz para…

– Foi; é o senhor? respondeu-me logo sem me dar tempo de acabar.

– Sou, pois não.

O gordo proprietário esteve um instante a considerar, agitou os pequenos
olhos perdidos no grande rosto, examinou-me convenientemente e disse por fim,
voltando-me as costas com mau humor: – Não me serve.

– Por quê? atrevi-me eu.

– Porque não me serve.

E veio vagarosamente até uma das portas da rua, enquanto eu saía
literalmente esmagado. Naquela recusa do padeiro em me admitir, eu descobria
uma espécie de sítio posto à minha vida. Sendo obrigado
a trabalhar, o trabalho era-me recusado em nome de sentimentos injustificáveis.
Facilmente generalizei e convenci-me de que esse seria o proceder geral. Imaginei
as longas marchas que tinha que fazer para arranjar qualquer coisa com que
viver; as humilhações que teria que tragar; e, de novo, me veio
aquele ódio do bonde, quando de volta da casa do deputado Castro. Revoltava-me
que me obrigassem a despender tanta força de vontade, tanta energia
com coisas em que os outros pouco gastavam. Era uma desigualdade absurda,
estúpida, contra a qual se iam quebrar o meu pensamento angustiado
e os meus sentimentos liberais que não podiam acusar particularmente
o padeiro. Que diabo! eu oferecia-me, ele não queria! que havia nisso
demais? Era uma simples manifestação de um sentimento geral,
e era contra esse sentimento, aos poucos descoberto por mim, que eu me revoltava.
Vim descendo a rua, e perdendo-me aos poucos no meu próprio raciocínio.
Preliminarmente descobria-lhe absurdos, voltava ao interior, misturava os
dois, embrulhava-me. No largo do Machado, contemplei durante momentos aquela
igreja de frontão grego e colunas dóricas e tive a sensação
de estar em país estrangeiro.

O álcool não entrava nos meus hábitos. Em minha casa,
raramente o bebia. Naquela ocasião, porém, deu-me uma vontade
de beber, de me embriagar, estava cansado de sentir, queria um narcótico
que fizesse descansar os nervos tendidos pelos constantes abalos daqueles
últimos dias. Entrei no café, mas tive nojo. Limitei-me a beber
uma xícara de café e caminhei tristemente em direção
ao mar, olhando com inveja um carregador que bebia um grande cálice
de parati. Eu tinha uma imensa lassidão e uma grande fraqueza de energia
mental. Quis descansar, debrucei-me na muralha do cais e olhei o mar. Estava
calmo; a limpidez do céu e a luz macia da manhã faziam-no aveludado.
Os últimos sinais da tempestade da véspera tinham desaparecido.
Havia satisfação e felicidade no ar, uma grande meiguice, tudo
respirava; e isso pareceu-me hostil. Continuei a olhar o mar fixamente, de
costas para os bondes que passavam. Aos poucos ele hipnotizou-me, atraiu-me,
parecia que me convidava a ir viver nele, a dissolver-me nas suas águas
infinitas, sem vontade nem pensamentos; a ir nas suas ondas experimentar todos
os climas da Terra, a gozar todas as paisagens, fora do domínio dos
homens, completamente livre, completamente a coberto de suas regras e dos
seus caprichos… Tive ímpetos de descer a escada, de entrar corajosamente
pelas águas adentro, seguro de que ia passar a uma outra vida melhor,
afagado e beijado constantemente por aquele monstro que era triste como eu.
Os elétricos subiam vazios e desciam cheios. Ingleses de chapéus
de palha cintados de fitas multicores, com pretensões à originalidade,
enchiam-nos. Fumavam com desdém e iam convencidos na sua ignorância
assombrosa que a língua incompreensível escondia de nós,
que davam espetáculo a essa gente mais ou menos negra, de uma energia
sobre-humana e de uma inteligência sem medida. Os bondes continuavam
a passar muito cheios, tilintando e dançando sobre os trilhos. Se acaso
um dos viajantes dava comigo, afastava logo o olhar com desgosto. Eu não
tinha nem a simpatia com que se olham as árvores; o meu sofrimento
e as minhas dores não encontravam o menor eco fora de mim. As plumas
dos chapéus das senhoras e as bengalas dos homens pareceram-me ser
enfeites de selvagens, a cuja terra eu tivesse sido atirado por um naufrágio.
Nós não nos entendíamos; as suas alegrias não
eram as minhas; as minhas dores não eram sequer percebidas… Por força,
pensei, devia haver gente boa aí… Talvez tivesse sido destronada,
presa e perseguida; mas devia haver… Havia por isso tanta repulsa nos seus
olhos, tanta paixão baixa, tanta ferocidade que eu me cri entre yahoos
e tive ímpetos de fugir antes de ser devorado… Só o mar me
contemplava com piedade, sugestionando-me e prometendo-me grandes satisfações
no meio de sua imensa massa líquida…

– Vem, dizia-me ele, vem comigo e, no meu seio, viverás esquecido,
livre e independente… Aqui, eu te abrirei perspectivas infinitas à
tua vida limitada e os conceitos, as noções e as idéias
nada valerão. Zombarás deles, não os sentirás,
não terás consciência, nem pensamento, nem vontade…

Deviam ser oito horas e eu vim descendo a pé pela borda do cais.
Pensava num alvitre a tomar. Precisava sair do hotel. Estava sem dinheiro;
depois de paga a pensão, restar-me-iam uns seis mil e tanto. Tinha
que o deixar em breve, fosse como fosse. Aquela sociedade com pessoas que
me tinham suspeitado ladrão, pesava-me, abatia-me. A esperança
num emprego humilde esvaíra-se. A recusa sistemática do padeiro
fizera-me supor que era assim em todas as profissões. Assim seriam
os hoteleiros, os donos de cafés, de confeitarias, de cocheiras…
Não sabia por onde sair; era de um verdadeiro sítio à
minha vida que eu tinha sensação. Durante o dia inteiro não
me deixaram esses pensamentos. Almocei no hotel silenciosamente, sentindo
a irritante observação do copeiro. Saí logo demandando
a cidade. Tinha entrado na rua do Rosário, quando alguém me
bateu no ombro: – O senhor não é Isaías Caminha? – Sou.

– Não se lembra de mim? Eu sou o Agostinho… o Agostinho Marques…
Não se lembra? – Recordo-me sim. Você se sentava junto ao Felício
da Costa, não era? – É verdade. Chegou há muito tempo,
Isaías? – Há um mês, e você o que está fazendo?
– Sou empregado no escritório do dr. Leitão Fróis – e
você? – Eu!… Procuro a vida…

O meu antigo colega não se demorou muito, tinha pressa e eu prometi-lhe
que o procuraria para conversar, tanto mais que ele tinha serviço a
dar-me. Passei o resto do dia vagueando. Veio a tarde, uma tarde doce e azul,
e eu não tive força para me apresentar no hotel. Fui ao Passeio
Público. Entrei e sentei-me num banco afastado, fora do caminho habitual
dos visitantes. Estive instantes pensando a olhar o regato na minha frente
e as árvores que me cercavam. Os patos e os gansos nadavam satisfeitos
e as garças pensativas perfiladas nas margens espiavam assombreadas
vendo tanta alegria. A tarde punha um brilho particular nas coisas, de doçura
e satisfação. Aquele descanso no jardim, fez-me lembrar não
sei que passagem do meu livro, desse perverso livro de que eu quis fazer bússola
para minha vida. Abri-o e, desejoso por encontrar a passagem, não reparei
que uma pessoa viera sentar-se no mesmo banco que eu. Num dado momento, virei-me
e dei com uma rapariga de cor, de olhos tristes e feições agradáveis.
Tinha uma bolsinha na mão, um chapéu de sol de alpaca e o vestuário
era pobre. Considerei-a um instante e continuei a ler o livro, cheio de uma
natural indiferença pela vizinha. A rapariga começou a murmurar,
perguntou-me qualquer coisa que respondi sem me voltar. Subitamente, depois
de fazer estalar um desprezível muxoxo, ela me disse à queima-roupa:
– Que tipo! Pensa mesmo que é doutor…

Fechei o livro, levantei-me e, já afastado, ainda ouvi dela alguns
desaforos. Cheguei ao portão. Os bondes passavam, havia um grande movimento
de carros e pedestres. Considerei a rua, as casas, as fisionomias que passavam.
Olhei uma, duas, mil vezes, os pobres e os ricos.

Eu estava só.

VII

Havia dias que notava com surpresa a indiferença que tinha então
pelos meus destinos. Aquele meu fervor primeiro, tinha sido substituído
por uma apatia superior a mim. Tudo me parecia acima de minhas forças,
tudo me parecia impossível; e que não era eu propriamente que
não podia fazer isso ou aquilo, mas eram todos os outros que não
queriam, contra a vontade dos quais a minha era insuficiente e débil.
A minha individualidade não reagia; portava-se em presença do
querer dos outros como um corpo neutro; adormecera, encolhera-se timidamente
acobardada.

Houve duas ou três crises de vontade que me obrigaram a procurar emprego.
Nas duas primeiras, recuei passado o primeiro ímpeto; na terceira,
fi-lo de tal modo, tão transtornado, tão lamuriento e frouxo
que fui mal-sucedido. Vendi os meus livros para apurar algum dinheiro. Pago
o hotel, fiquei reduzido à última extremidade, com um curto
prazo para dele retirar a minha insignificante bagagem. Esperava resposta
de uma carta em que pedira algum dinheiro a minha mãe. Não se
demorou em responder, mandando-me cinqüenta mil-réis. Aluguei
um quarto e os primeiros dias que nele passei foram do mais absoluto enfado.

Saía, mas evitava a rua do Ouvidor e o Laje da Silva, que passara
a tratar-me de outro modo. Dei em passear de bonde, saltando de um para outro,
aventurando-me por travessas afastadas, para buscar o veículo em outros
bairros. Da Tijuca ia ao Andaraí e daí a Vila Isabel; e assim,
passando de um bairro para outro, procurando travessas despovoadas e sem calçamento,
conheci a cidade – tal qual os bondes a fizeram alternativamente povoada e
despovoada, com grandes hiatos entre ruas de população condensada
e toda ela, agitada, dividida, convulsionada pelas colinas e contrafortes
da montanha em cujas vertentes crescera. Jantava, uns dias; em outros, almoçava
unicamente; e houve muitos que nem uma coisa ou outra fiz. Descobri a Biblioteca
Nacional, para onde muitas vezes fui, cheio de fome, ler Maupassant e Daudet.
Estava na casa de cômodos havia perto de quinze dias. Uma noite, acabara
de chegar e despia-me, quando me bateram à porta. Abri: "Boa noite",
falou-me um rapaz do lado de fora. "O senhor podia permitir que eu acendesse
a minha vela na sua? Cheguei sem fósforos e vendo que no seu quarto
havia luz, vinha-lhe pedir esse favor." Ficamo-nos conhecendo, aos poucos
nos aproximamos e entabulamos relações mais estreitas. Abelardo
Leiva, o meu recente conhecimento, era poeta e revolucionário. Como
poeta tinha a mais sincera admiração pela beleza das meninas
e senhoras do Botafogo. Não faltava às regatas, às quermesses,
às tômbolas, a todos os lugares em que elas apareciam em massa;
e a sua musa – uma pálida musa, decentemente abotoada no Castilho e
penteada diante dos espelhos de B. Lopes e Macedo Papança – quase diariamente
lhes cantava a beleza "olímpica e lirial". Como revolucionário,
dizia-se socialista adiantado, apoiando-se nas prédicas e brochuras
do Sr. Teixeira Mendes, lendo também formidáveis folhetos de
capa vermelha, e era secretário do Centro de Resistência dos
Varredores de Rua. Vivia pobremente, curtindo misérias e lendo, entre
duas refeições afastadas, as suas obras prediletas e enchendo
a cidade com os longos passos de homem de grandes pernas.

Depois de nossas relações, era freqüente passearmos juntos.
Saíamos às dez horas, tomávamos café e andávamos
até as três ou quatro da tarde. A essa hora separávamo-nos
em obediência a uma convenção tácita. Tratava-se
de jantar e cada um de nós ia arranjar-se. À tarde, encontrávamo-nos
e íamos conversar a um café com alguns outros amigos dele, na
mor parte desprovidos de dinheiro, com magros e humildes empregos, pretendendo
virar a face do mundo para ter almoço e jantar diariamente. Leiva era
o chefe, era a inteligência do grupo, pois, além de poeta, tinha
todos os preparatórios para o curso de dentista. Eu gostava de notar
a adoração pela violência que as suas almas pacíficas
tinham, e a facilidade com que explicavam tudo e apresentavam remédios.
Embora mais moço do que ele, várias vezes cheguei a sorrir aos
seus entusiasmos. Creio que lhes não faltava inteligência, sinceridade
também; o que não encontravam era uma soma de necessidades a
que viessem responder e sobre as quais apoiassem as suas furiosas declamações.
Insurgiam-se contra o seu estado particular, oriundo talvez mais de suas qualidades
de caráter do que de falhas de temperamento. Eram todos honestos, orgulhosos,
independentes e isso não leva ninguém à riqueza e à
abastança. Leiva era quem mais exagerava nos traços do caráter
comum e se encarregava de pintar os sofrimentos da massa humana. Era um grupo
de protestantes, detestando a política, dando-se ares de trabalhar
para obra maior, a quem as periódicas "revoluções"
não serviam. Um ou outro acontecimento vinha-lhes dar a ilusão
de que eram gênios da opinião. Leiva gabava-se de ter feito duas
greves e de ter modificado as opiniões do operariado do Bangu com as
suas conferências aplaudidas. Os outros, sem a sua enfibratura, os seus
rompantes de atrevimento e a sua ambição oculta, mais sinceros
talvez por isso, limitavam-se a falar e a manifestar as suas terríveis
opiniões em publicações pouco lidas.

No entanto, Leiva parecia-me mais sincero na sua poesia palaciana e de modista
do que nas idéias revolucionárias. Não o julgava perfeitamente
hipócrita; era a sua situação que lhe determinava aquelas
opiniões; o seu fundo era cético e amoroso das comodidades que
a riqueza dá. Cessassem as suas dificuldades, elas desapareceriam e
surgiria então o verdadeiro Leiva, indiferente aos destinos da turba,
dando uma esmola em dia de mau humor e preocupado com uma ruga no fraque novo
que viera do alfaiate.

No café, em certos momentos, quase sem transição, ele
passava das objurgatórias mais terríveis a recitar versos, cheios
de detalhes de modas e ardendo de admiração pelas coisas do
luxo. Havia nisso muito da sua forte mocidade para que eu me lembrasse de
Georges Ohnet. Bem parecido, de rosto bem feito e um nariz clássico
e uns bigodes e uns cabelos pretos, tratados com especial carinho de manhã
e à tarde, ele tinha a insignificante boniteza dos homens, tanto do
agrado das nossas mulheres. Era um namorador temível. No seu quarto,
além da mesa e alguns volumes com que preparava as arengas revolucionárias,
tinha uma cama-de-vento, nua e órfã de lençóis
e travesseiros com fronhas, uma grande mala cheia de camisas, colarinhos,
punhos, gravatas e perfumes. Ganhava noventa mil-réis no Centro dos
Varredores, gastava vinte e cinco no quarto e o que sobrava era mais para
as coisas de toillette do que para a sua alimentação. Freqüentava
os lugares elegantes, ou tidos como tal, e uma noite levou-me ao Parque Fluminense,
onde encontrei o Agostinho Marques, o elegante Agostinho, cheio de anéis
e alfinetes, que não quis reconhecer. Desde que nos demos a conhecer,
isso havia perto de um mês, nunca mais o tinha visto; ele, porém,
chamou-me amigavelmente. Era o solicitador do dr. Leitão Fróis,
ganhava um conto e tanto por mês e pretendia formar-se em direito precisando
de mim, para lhe explicar uns preparatórios. Disse-me isso no momento
em que Leiva se deixara absorver por uma dama elegante da nossa vizinhança.
Estávamos sentados a uma mesa do botequim, e servíamo-nos de
cerveja, a convite de Marques. Quando Leiva se voltou de sua preocupação
extra-revolucionária, Agostinho queixou-se dos calos: – Não
há sapateiro que preste no Rio de Janeiro… Mandei fazer essas botinas
no Martinelli, dei quarenta e cinco mil-réis e é esta desgraça!
Apertam-me como diabo…

O Abelardo tinha opinião um pouco diferente sobre os sapateiros da
cidade. Antigamente, mandava fazer as botinas de encomenda; ultimamente, porém,
comprava-as feitas. Eram estrangeiras e melhores…

– Mas o Martinelli, "seu" Abelardo! objetou semi-indignado o solicitador.
O cabedal, os aviamentos, tudo vem da Europa; só são cortadas
e montadas aqui…

– Ora, continuava Leiva, eu já tive botinas dele e sei tudo isso;
mas não vale a pena, é um engano… Olhe, o Sr. dá trinta
e cinco mil-réis por uma Walk-Over ou Clark e fica mais bem servido
do que com ele. E são bonitas… Veja! Mostrou o pé e durante
minutos os dois estiveram a debater-se, procurando toda a sorte de argumentos
para defenderem as suas firmes opiniões sobre a distinção,
a comodidade do calçado comprado feito e mandado fazer de encomenda.

Agostinho Marques, "solicitador nos auditórios desta Capital",
chegou a empregar argumentos de natureza jurídica; Abelardo Leiva,
apóstolo do socialismo revolucionário, inimigo da execrável
burguesia, procurou justificativa nos elegantes do mundo chic parisiense.
A minha reserva só os fazia prolongar a discussão; estavam diante
de um juiz, a quem expunham as suas razões com delicadeza e urbanidade.

– Lá vai o Raul Gusmão, exclamou Marques.

Voltei-me um pouco. Era de fato ele de braço com o Oliveira. Vestia
um grande fraque de xadrez; tinha botinas de verniz com os canos de pano e
marchava conversando com o companheiro, apertando os olhos e procurando os
mais surpreendentes gestos que lhe viessem aumentar a reputação
jornalística.

– É um rapaz de talento, disse Marques.

O carroussel moía uma música banal, preguiçosa e irritante.
Leiva esteve pensando um instante e disse: – É, e parece que faz prosperar
o seu talento com práticas suspeitas.

– É verdade o que se diz por aí dele? indagou a meia voz o
solicitador.

– Não sei, nunca vi, mas, no domingo, nós… – não
foi Caminha? Fiz um sinal afirmativo e o meu amigo continuou: – …no domingo
vimo-lo entrar numa hospedaria da rua da Alfândega com um fuzileiro
naval.

– Que coisa! Mas será verdade? – Qual, disse Leiva, não creio.
Ele faz constar isso e faz suspeitar, para se ter em melhor conta o seu talento.
O público quer que o seu talento artístico tenha um pouco de
vício; aos seus olhos, isso o aumenta extraordinariamente, dá-lhe
mais valor e faz com que o escritor ganhe mais dinheiro.

– Como é então que entrou na hospedaria? indagou Marques.

– Tinha-nos visto e, mediante uma gorjeta, obrigou o soldado a prestar-se
ao papel… Aquilo é o gênio do réclame…

Em torno de nós, sob a chuva miúda do vapor condensado do
motor de iluminação, grupos de passeantes moviam-se de um lado
para outro, isocronamente, lenta, tristemente, como se obedecessem a uma lei
inflexível a cujo império não se pudessem furtar. Só
o Carnaval tira essa triste gravidade aos nossos passeios. Os rapazes excedem-se,
saem fora da bitola, e as moças e as senhoras abandonam-se aos impulsos
do temperamento. Lembro-me que em um dos últimos carnavais a que assisti,
às oito e meia da noite, vi duas moças afastarem-se um pouco
para o interior da Gazeta de Notícias, donde assistiam à passagem
de cordões, e lá dentro requebrarem lascivamente com as exigências
que um "maxixe" tocado por uma banda de música a passar pedia.
Fora do carnaval sempre senti essa mesma tristeza nos nossos passeios públicos,
tendo presente sempre a tirania doméstica e a preocupação
do dia seguinte.

Os dois continuavam a conversar, quando voltei a ouvi-los. Tinham passado
imprevistamente para a reforma social que Leiva anunciava. Agostinho, que
se sentia chegar a homem rico e considerado, fazia imensos esforços
para contestar as doutrinas subversivas de Leiva: – Mas o sr. o que quer é
desordem, é anarquia, é extinção da ordem social…

E Leiva sorria um instante, satisfeito que ele viesse ao encontro da sua
resposta querida.

– Mas é isso mesmo, não quero outra coisa! Pois o senhor acha
justo que esses senhores gordos, que andam por aí, gastem numa hora
com as mulheres, com as filhas e com as amantes, o que bastava para fazer
viver famílias inteiras? O sr. não vê que a pátria
não é mais do que a exploração de uma minoria,
ligada entre si, estreitamente ligada, em virtude dessa mesma exploração,
e que domina fazendo crer à massa que trabalha para a felicidade dela?
O público ainda não entrou nos mistérios da religião
da Pátria… Ah! quando ele entrar! Levado pelo calor da frase Leiva
continuou a falar cheio de força, entusiasmado: – Não há
na natureza nada que se pareça com a nossa sociedade governada pelo
Estado… Observe o sr. que todas as sociedades animais se governam por leis
para as quais elas não colaboraram, são como preexistentes a
elas, independentes de sua vontade; e só nós inventamos esse
absurdo de fazer leis para nós mesmos – leis que, em última
análise, não são mais que a expressão da vontade,
dos caprichos, dos interesses de uma minoria insignificante… No nosso corpo
há uma multidão de organismos, todos eles interdependem, mas
vivem autonomamente sem serem propriamente governados por nenhum, e o equilíbrio
se faz por isso mesmo… O sistema solar… Na natureza, todo o equilíbrio
se obtém pela ação livre de cada uma das forças
particulares…

Agostinho precisava arranjar uma objeção, mas o desconhecimento
das noções que Leiva punha em jogo estava completamente fora
da sua atividade mental. O apóstolo-poeta, sentindo a fraqueza do adversário,
exultou, e, deitando um olhar em torno, exclamou vitoriosamente: – Eu quero
a confusão geral, para que a ordem natural surja triunfante e vitoriosa!
Deitou um longo e terno olhar para a linda burguesa da vizinhança e
bebeu voluptuosamente um grande gole de cerveja. Eu creio que se a nova era
dependesse do seu braço, ele não deitaria a bomba para não
assustar as meninas bonitas e delicadas.

Foi Leiva o meu iniciador no Rio de Janeiro. Deu-me relações,
ensinou-me as maneiras, o calão da boêmia, levou-me aos lugares
curiosos e consagrados. Com ele fui ao Apostolado Positivista ouvir o Sr.
Teixeira Mendes. Um grande matemático, disse-me; a primeira cabeça
do Brasil, uma inteligência enciclopédica, uma erudição
segura, e, sobretudo, um caráter e um coração! Um domingo,
em que havíamos saído do Apostolado, vínhamos descendo
pachorrentamente o cais da Glória.

Leiva viera pela rua de Benjamin Constant abaixo gabando a eloqüência
do venerável Sr. Mendes, a sua virtude, a sua sobriedade e contara-me
por alto a surra que ele dera no Bertrand, da Academia Francesa, em assunto
de matemática. Eu ouvia-o sem coragem de contestar, embora não
compartilhasse as suas crenças. Não era a primeira vez que ia
ao Apostolado, mas quando via o vice-diretor sair rapidamente por detrás
de um retábulo, na absida da capela, ao som de um tímpano rouco,
arrepanhando a batina, com aquele laço verde no braço, dava-me
vontade de rir às gargalhadas. Demais, ficava assombrado com a firmeza
com que ele anunciava a felicidade contida no positivismo e a simplicidade
dos meios necessários para a sua vitória: bastava tal medida,
bastava essa outra – e todo aquele rígido sistema de regras, abrangendo
todas as manifestações da vida coletiva e individual, passaria
a governar, a modificar costumes, hábitos e tradições.
Explicava o catecismo. Abria o livro, lia um trecho e procurava o caminho
por alusões a questões atuais, repetindo fórmulas para
se obter um bom governo que tendesse a preparar a era normal – o advento final
da Religião da Humanidade. E eu achava toda aquela dissertação
tão intelectual, tão balda de comunicação, tão
incapaz de erguer dentro de mim o devotamento, o altruísmo, "o
esforço sobre mim mesmo em favor dos outros", como dizia o apóstolo,
que me quedava a indagar até que ponto o auditório respeitoso
estava convencido e até que ponto fingia convicção.

Havia trechos em que ele insistia com particular agrado. Via-se que neles
repousava a conversão dos espíritos. Não me esqueci que
ele amava repetir que a física, a química, a biologia, a sociologia,
todas as ciências e todo o esforço humano de qualquer ordem tinham
preparado lentamente e tendiam para a religião da humanidade; era ela
como a coroação, a cúpula do edifício do pensamento
e dos grandes sentimentos da humanidade. Citava trechos de grandes poetas
nesse sentido, e procurava dados históricos. Quando se oferecia ocasião,
esboçava a ordem futura, cotejando-a com a presente. O médico,
o professor e o sacerdote estariam juntos em um mesmo homem, cujos serviços
seriam gratuitos: todos exerceriam um ofício manual e os capitais acumulados
em poucas mãos, seriam empregados em benefício social. A quantas
necessidades presentes daquele auditório não iria dar remédio
a promessa daquela sociedade a vir?! Os homens têm amor à utopia
quando condensada em fórmulas de felicidade; e aqueles militares, funcionários,
estudantes, encontravam naquelas afirmações, repetidas com tanta
segurança e cuja verdade não procuravam examinar, um alimento
para a forma de felicidade da espécie e um consolo para os seus maus
dias presentes.

Pelo caminho, ouvi repetirem as palavras do Mestre e apoiarem-se nelas para
criticar atos do Governo, projetos da Câmara – esse viveiro de bacharéis
ignorantes que não sabem matemática.

Observei que o meu próprio amigo Leiva partia também dessa
crença pitagórica das virtudes da matemática para condenar
e criticar o Governo e os governantes; entretanto, além daquelas explicações
filosóficas do sr. Teixeira Mendes, ele sabia pouco mais das quatro
operações na ciência divina.

– Vê tu, dizia-me ele, quem no Brasil tem conhecimentos mais seguros
que o T. Mendes? E acrescentava logo: como se pode acreditar que, na nossa
época científico-industrial, um homem que não conhece
como se fabricam os encanamentos d’água, as propriedades do ferro
e o seu tratamento industrial, as teorias hidráulicas, saberá
aquilatar e dirigir as necessidades de uma cidade moderna, cuja primeira necessidade
é um seguro e farto abastecimento d’água? Leiva gostava
de falar; e, quando a matéria lhe agradava, o cansaço dificilmente
vinha. Eu amava ouvi-lo, pois tinha uma bela voz, acariciante e de agradável
timbre, e que vibrava musicalmente ao chegar-lhe a paixão. Continuou:
– Antigamente, todos os governantes tinham, ou antes, estavam a par do saber
de seu tempo, e só com a necessidade do estabelecimento de novas ciências
– o que fez a especialização dos conhecimentos – deixaram tão
salutar regra. Hoje, porém, graças ao sobre-humano cérebro
de Comte – o maior talvez depois de Aristóteles – o saber voltou à
unidade útil e moral dos outros tempos. A síntese foi feita
e os estadistas verdadeiramente dignos, servidores práticos da Humanidade,
poderão encontrar nela um seguro farol para guiá-los.

Não me animei a perguntar-lhe se a síntese de que falava continha
também a questão do abastecimento d’água. Senti
a sinceridade momentânea de suas palavras, ditas até com certo
entusiasmo; e quando alguém me fala desse modo, encho-me de respeito
e de amizade. Vínhamos descendo a rua e assim continuamos um instante
calados. Houve uma ocasião, que, quase sem refletir, perguntei ao Leiva:
– Como você é ao mesmo tempo anarquista e positivista – uma doutrina
de ordem, de submissão, que espera a vitória pelo resultado
fatal das leis sociológicas? – Ora você? Eu quero uma confusão
geral, um abalo completo desta ordem iníqua, para então… O
Mendes é simples, é bom, pensa que isso vai como ele quer; mas
é preciso… Olhe, o Cristianismo…

Olhei um instante a seda azul do mar levemente enrugada e sorvi um pouco
da vibração que soprava da barra; depois perdemo-la de vista
e a vibração deixou de açoitar-nos com força e
fomos descendo a rua da Lapa, transitada, ladeada de sobrados, donde pendiam
mulheres públicas em peignoir, como descoradas orquídeas de
milionário europeu, cujo brilho natural o ambiente de estufa lhes tirou
ou não soube dar. Nós olhamo-las com um pouco da nossa mocidade
e com um pouco das preocupações que trazíamos; e caminhamos
para o Passeio Público, onde íamos esquecer que não jantávamos,
olhando a turba resignada que aproveitava o domingo.

Uma banda de música enchia o jardim com os seus estridentes compassos.
Nas proximidades do coreto, Leiva encontrara um conhecido com quem ficara
a conversar. Eu não me detive; avancei vagarosamente para o terraço
que deita para o mar. O meu companheiro veio ter comigo meia hora depois e
vinha acompanhado de outro rapaz. Apresentou-nos. Um instante, contemplei
a angustiada cabeça do desconhecido, o seu ar orgulhoso e todo ele
esguio e alto, ligeiramente curvado como um teimoso caniço que não
se pôde erguer completamente depois das muitas tempestades que suportou.

– O Plínio, Caminha, disse Leiva, vinha-me contando o seguinte: há
dias, o Florêncio – conheces? Fiz sinal que não e ele insistiu:
o Florêncio que redige a seção do Jornal do Rio – conheces,
não é? Pois bem; o Florêncio entrou na Garnier e pôs-se
a ler um livro. De quando em quando mudava de lugar, aproximando-se da porta.
Assim leva hora e tanto. Ele, porém, não tinha reparado que
os empregados vigiavam-no. Num dado momento, meteu a brochura debaixo do paletó
e encaminhou-se para a porta. Os caixeiros cortaram-lhe os passos, intimidando-o
a entregar a obra. Florêncio ataranta-se, prontifica-se a pagar, do
dinheiro cai e…

– Pagou? perguntei.

– Pagou sim, apressou-se em responder Plínio de Andrade; mas um dos
empregados disse-lhe insolentemente: Você paga este sobre a Grécia,
que queria levar agora e também o romance francês que levou anteontem…
A Imprensa! Que quadrilha! Fiquem vocês sabendo que, se o Barba-Roxa
ressuscitasse, agora com os nossos velozes cruzadores e formidáveis
couraçados, só poderia dar plena expansão à sua
atividade se se fizesse jornalista. Nada há tão parecido como
o pirata antigo e o jornalista moderno: a mesma fraqueza de meios, servida
por uma coragem de salteador; conhecimentos elementares do instrumento de
que lançam mão e um olhar seguro, uma adivinhação,
um faro para achar a presa e uma insensibilidade, uma ausência de senso
moral a toda a prova… E assim dominam tudo, aterram, fazem que todas as
manifestações de nossa vida coletiva dependam do assentimento
e da sua aprovação… Todos nós temos que nos submeter
a eles, adulá-los, chamá-los gênios, embora intimamente
os sintamos ignorantes, parvos, imorais e bestas… Só se é
geômetra com o seu placet, só se é calista com a sua confirmação
e se o Sol nasce é porque eles afirmam tal coisa… E como eles aproveitam
esse poder que lhes dá a fatal estupidez das multidões! Fazem
de imbecis gênios, de gênios imbecis; trabalham para a seleção
das mediocridades, de modo que…

– Você exagera, objetou Leiva. O jornal já prestou serviços.

– Decerto… não nego… mas quando era manifestação
individual, quando não era coisa que desse lucro; hoje, é a
mais tirânica manifestação do capitalismo e a mais terrível
também… É um poder vago, sutil, impessoal, que só poucas
inteligências podem colher-lhe força e a ausência da mais
elementar moralidade, dos mais rudimentares sentimentos de justiça
e honestidade! São grandes empresas, propriedade de venturosos donos
destinadas a lhes dar o mínimo sobre as massas, em cuja linguagem falam,
e a cuja inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos,
os caracteres para os seus desejos inferiores… Não é fácil
a um indivíduo qualquer, pobre, cheio de grandes idéias, fundar
um que os combata… Há necessidade de dinheiro; são preciosos,
portanto, capitalistas que saibam bem o que se deve fazer num jornal… Vocês
vejam: antigamente, entre nós, o jornal era de Ferreira de Araújo,
de José do Patrocínio, de Fulano, de Beltrano… Hoje de quem
são? A Gazeta é do Gaffrée, o País é do
Visconde de Morais e assim por diante. E por detrás dela estão
os estrangeiros, inimigos nossos naturalmente, indiferentes às nossas
aspirações…

Andrade acabou de falar e tirou o chapéu um instante. Vi-lhe o cabelo
crespo, lanudo e revolto e toda a sua grande cabeça angustiada e inteligente
assomou aos meus olhos com uma grande expressão de rebeldia. Coado
através das árvores, um jato de luz veio bater-lhe em cheio
e ela mais bela me apareceu quando inundada por aquela luz de ouro. Sentando-se,
o seu ar já era outro, manso, passivo, e a sua voz, antes tão
enérgica, passou a ser macia, preguiçosa e tomou um ar distraído
até despedir-se. Nós fomos jantar com o dinheiro que ele deu
ao Leiva e soube por este alguma coisa da sua vida passada. Fora estudante
de medicina na Bahia, e freqüentava o segundo ano quando um estudante
mais antigo lhe dissera: "Apanha isto aí, ‘seu’ calouro!"
Andrade olhou-o devagar e virou-lhe as costas. O veterano exacerbou-se com
o olhar, quis obrigá-lo a obedecer, empregando a força; e, como
fosse mais forte, Plínio bruscamente apanha de cima da mesa de um guarda
uma raspadeira, crava-a várias vezes no colega e mata-o. Atualmente,
vivia ensinando História Natural nos colégios e publicando panfletos
em que a sua irritação lhe congestionava a frase indignada.
Era odiado e gostava de sê-lo.

Esse domingo foi um dos últimos que passei com relativa satisfação.
Invadia-me uma indiferença, uma atonia, que me fazia viver sem me decidir
a tentar o menor passo para sair da situação em que me achava.
Media as dificuldades, os óbices, os tropeços, achava-os iníquos
mas superiores às minhas forças. Abandonara-me à miséria
que a proteção de Agostinho Marques impedia que chegasse a ser
declarada. Fizera-me seu professor e secretário; mas era difícil
dar-me o ordenado que me tinha marcado. Fazia-lhe requerimentos, cartas de
amor, ensinava-lhe os prolegômenos de alguns preparatórios; mas
a sua pobreza intelectual e a sua malandragem resistiam particularmente à
entrada na sua cabeça da menor noção. Nunca chegou a
compreender os teoremas de divisibilidade e a sua memória não
guardava as regras do plural francês. Aos poucos, desistiu da lição
e diminuiu-me o ordenado, que era anteriormente de quarenta mil-réis,
dados aos bocados. Entretanto, cada dia se apurava mais no trajar, fazia amigos
entre a gente importante, cercava-os, tinha um cumprimento e um sorriso para
cada um.

Num dia de abandono em que lhe cheguei de manhã a casa, pedindo-lhe
dez tostões, contou-me que estivera na véspera numa grande "esbórnia".
Tinham sido seus companheiros o deputado S., leader do Governo, e o doutor
H.; o primeiro foi mais tarde Ministro e o segundo ainda é desembargador
da Corte de Apelação.

Marques preferia que eu lhe pedisse dinheiro a experimentar o seu prestígio
junto aos seus poderosos amigos, solicitando uma colocação para
mim. Uma vez que lhe falei a respeito, esforçou-se por me mostrar que
era impossível enquanto os seus amigos estivessem por baixo. Enquanto
ele esteve no Rio, deu-me roupas; tive com que pagar o quarto e dinheiro para
comer com intervalo de quarenta e oito horas. Um belo dia, porém, disse-me
que ia para fora, para um estado do Norte, tratar de negócios, demorando-se
dois ou três meses. Foi uma grande época de fome e sofrimentos
na minha vida. Leiva era incapaz do menor obséquio; nada lhe fazia
retirar um tostão dos seus perfumes e das suas roupas. Vendi as melhores
roupas que tinha, tudo que tinha valor vendi, e, quando nada mais tinha que
vender, passei dias inteiros sem tomar café. Lá chegava uma
ocasião que alguém, um quase desconhecido, uma fisionomia encontrada
momentaneamente, me convidava a tomar café ou a jantar; e se não
fossem eles, eu talvez tivesse morrido de inanição ou furtado
bolos às confeitarias. Esperava resposta de uma carta minha que não
tardou a vir. Recebi-a na "Posta-Restante" e, encostado a uma coluna,
pus-me a lê-la. Tio Valentim dizia-me que lá atravessavam uma
grande crise. Minha mãe estava de cama, muito mal, desenganada…

Não continuei a leitura; deixei cair a mão ao longo do corpo
e estive a olhar a rua, sem ver coisa alguma. Morria minha mãe! E via-a
logo morta, muito magra, os círios, o crucifixo, o choro… Passou-me
pelos olhos a sua triste vida, humilde e humilhada, sempre atirada a um canto
como um móvel velho, sem alegria, sem fortuna, sem amizade e sem amor…

Durante aqueles meses de ausência, eu pouco me detive na sua recordação;
mas agora elas eram freqüentes e a sua figura flutuava a meus olhos:
magra, esquálida, com o corpo premido pelos trabalhos e tendo pelas
faces aquelas manchas que pareciam de fumaça entranhada… Eu quis
envolver essa recordação com o que havia em mim de mais terno
e também as outras que me vieram: a volta do colégio, o abraço
que eu lhe dava; a minha doença, como ela me dava remédios…
E tudo vinha com pressa do fundo de mim mesmo, subia uma recordação
que expulsava outra; por fim, tudo se baralhou, tornou-se confuso e os meus
olhos se orvalharam de pranto.

– Oh! Caminha! Onde tens andado? Que tens, rapaz? Era Gregoróvitch
Rostóloff. Falei, contei-lhe a vida. Os seus olhos de conta mais se
arredondaram de desconfiança; mas, depois de duas ou três perguntas,
de examinar-me o vestuário e algumas palavras de consolo, ao despedir-se,
assim me convidou: – Aparece-me logo, à noitinha, na redação
do O Globo.

VIII

Era uma sala pequena, mais comprida que larga, com duas filas paralelas de
minúsculas mesas, em que se sentavam os redatores e repórteres,
escrevendo em mangas de camisa. Pairava no ar um forte cheiro de tabaco; os
bicos de gás queimavam baixo e eram muitos.

O espaço era diminuto, acanhado, e bastava que um redator arrastasse
um pouco a cadeira para esbarrar na mesa de trás, do vizinho. Um tabique
separava o gabinete do Diretor, onde trabalhavam o secretário e o redator-chefe;
era também de superfície diminuta, mas duas janelas para a rua
davam-lhe ar, desafogavam-no muito. Estava na redação do O Globo,
jornal de grande circulação, diário e matutino, recentemente
fundado e já dispondo de grande prestígio sobre a opinião.
Falei ao Oliveira, perguntando-lhe pelo dr. Gregoróvitch. O eminente
repórter levantou um pouco o olhar de cima do importante escrito (relação
dos decretos assinados no último despacho), ao dar com a minha fisionomia
conhecida e humilde, abaixou-o logo e, entre dentes, transcendentalmente superior,
respondeu: "Ainda não veio." Eu não tinha mais onde
dormir, havia dois dias que não comia, tinha a máxima necessidade
de falar ao russo. Intimidado com a secura do Oliveira, fiquei de pé
hesitando fazer-lhe uma segunda pergunta. Medroso e esfomeado, deixei-me assim
permanecer alguns minutos debaixo daquele teto que abrigava a falange sagrada
que vinha combatendo pelos fracos e oprimidos.

Felizmente, houve alguém que me fez sentar e me convidou a esperar.
Debaixo das penas, algumas nervosas e rápidas, outras, calmas e vigorosas,
o papel rinchava sob o maior silêncio. Eram sete horas e pouco; as pessoas
importantes do jornal ainda não tinham chegado. Laje da Silva, sempre
com aquelas suas maneiras atenciosas, com aquele seu ar indecifrável,
entrou na redação, não me olhou sequer e foi direito
ao Oliveira. Estiveram alguns momentos falando em voz baixa, depois saiu cumprimentando
aqui, ali, deixando no ambiente um grande desprendimento de simpatia e sedução.
Houve quem dissesse quando saiu: – Que queria esta "águia"
Oliveira? – Nada… Procurava o Rabelo… E depois ajuntou: vocês são
injustos, não é uma "águia"…. "Águia"
é um cavador de negociatas, de arranjos desonestos; ele não.
Não há uma bandalheira em que se diga que ele se meteu…

– E as notas falsas? – Ora! Ninguém está livre de que um tratante
pague uma dívida em notas falsas e, na boa fé, vir fazer pagamentos
com elas…

– Coitado! fez o outro com um arzinho canalha.

– Afinal, objetou o Oliveira indignado, quem é honesto para você,
Meneses? Todos são ladrões, prevaricadores… Livra! Que língua!
A conversa tinha cessado quando o diretor penetrou na sala. Era o dr. Ricardo
Loberant, um homem muito alto e muito magro, anguloso, com um grande bigode
de grandes guias, louro, de um louro sujo, tirando para o castanho, e um olhar
erradio, cheio de desconfiança. Era um homem temido, temido pelos fortes,
pela gente mais poderosa do Brasil, ministros, senadores, capitalistas; mas
em quem, com espanto, notei uma falta de firmeza, de certa segurança
de gestos e olhar, própria dos vencedores. Fora uma irrupção.
Ninguém o sabia jornalista, mesmo durante o seu curso mal amanhado
não sacrificara às letras: fora sempre tido como viveur, gostando
de gastar e freqüentar a sociedade das grandes cocottes. Um belo dia,
o público da cidade ouviu os italianos gritarem: O Globo! O Globo!
Os curiosos compraram-no e com indiferença leram ao alto o nome do
diretor: Ricardo Loberant. Quem é? Ninguém sabia. Mas o jornal
atraía, tinha um desempenho de linguagem, um grande atrevimento, uma
crítica corajosa às coisas governamentais, que, não se
sabendo justa, era acerba e parecia severa. Este gostou, aquele apreciou,
e dentro de oito dias ele tinha criado na multidão focos de contágio
para o prestígio de sua folha. Vieram as informações
a seu respeito. Algumas pessoas do foro informaram que o dr. Ricardo Loberant
era um advogado violento, atrevido, que tinha por hábito discutir pelos
"apedidos" do Jornal do Comércio, com mais azedume que lógica,
as causas intrincadas que lhe eram confiadas. E o jornal pegou. Trazia novidade:
além de desabrimento de linguagem e um franco ataque aos dominantes,
uma afetação de absoluta austeridade e independência,
uma colaboração dos nomes amados do público, lembrando
por este aspecto os jornais antigos que a nossa geração não
conhecera. O Rio de Janeiro tinha então poucos jornais, quatro ou cinco,
de modo que era fácil ao governo e aos poderosos comprar-lhes opinião
favorável. Subvencionados, a crítica em suas mãos ficava
insuficiente e covarde. Limitavam-se aos atos dos pequenos e fracos subalternos
da administração; o aparecimento d’O Globo levantou a
crítica, ergueu-a aos graúdos, ao Presidente, aos ministros,
aos capitalistas, aos juízes, e nunca os houve tão cínicos
e tão ladrões. Foi um sucesso; os amigos do governo ficaram
em começo estuporados, tontos, sem saber como agir. Respondiam frouxamente
e houve quem quisesse armar o braço do sicário. A opinião
salvou-o, e a cidade, agitada pela palavra do jornal, fez arruaças,
pequenos motins e obrigou o governo a demitir esta e aquela autoridade. E
O Globo vendeu-se, vendeu-se, vendeu-se…

Aquele jornal que era sua propriedade, recebia também a sua inspiração.
Nenhum dos seus redatores tinha uma personalidade suficientemente forte para
resistir ao ascendente da sua. Medíocres de caráter e inteligência,
embora alguns fossem mais ilustrados que ele, a ação deles no
jornal recebia impulsão do dr. Ricardo, o sinete de sua paixão
dominante, a sua característica; e esta era, despeito de sua fraca
capacidade intelectual, a resistência que o seu cérebro oferecia
ao trabalho mental contínuo, de modo a não lhe permitir chegar
às altas posições pelo prestígio do talento e
do estudo, não lhe deixando o seu grande orgulho que chegasse de outra
forma mais geral e mais fácil. Com uma grande sede de domínio
e grandes apetites de mulheres e prazeres, mas sem talento, sem pertinácia
e paciência, para atingir à fortuna e aos grandes cargos, consciente
dessas falhas, o dr. Ricardo tinha aí um depósito inexaurível
de emoções, sempre a esporeá-lo, a excitá-lo e
bastante forte para marcar a sua pessoa e os seus atos.

Demais, o seu desgosto e o seu despeito podiam cevar-se na mediocridade
de inteligência e na geral desonestidade dos que governavam e dominavam;
era só fechar os olhos e estender a mão. Diziam que os primeiros
artigos não tinham sido escritos por ele, mas deviam ter sido inspirados;
foi a sua paixão contagiosa que os ditou ao amigo complacente que os
escreveu. Durante os cinco anos que estive na redação, senti
que o seu estado d’alma "pegava", alastrava-se pelos amigos
e subalternos, tanto que, nas suas ausências, o diário não
perdia o tom e os artigos pareciam ter sido revistos por ele na véspera
e saírem de sua fonte inexaurível de desgosto, despeito e rancor.
Entretanto, fora do momento, fora do minuto em que se punham a escrever e
sentiam a presença do O Globo diante dos olhos, aqueles redatores eram
a gente mais satisfeita desta vida, satisfeita consigo, com a posição
que tinham e com a sociedade que os cercava.

O dr. Ricardo Loberant entrou fumando com força seguido de Pacheco
Rabelo (Aires d’Ávila), redator-chefe do jornal, a segunda cabeça
da casa. Era um homem gordo que se movia pela sala com a dificuldade de um
boi que arrasta a relha enterrada da charrua. Havia na sua marcha um grande
esforço de tração e um monóculo petulante na face
imóvel não lhe diminuía o peso da figura. Os dois penetraram
na redação pondo na sala uma inexplicável atmosfera de
terror. Pelos longos anos em que estive na redação do O Globo,
tive ocasião de verificar que o respeito, que a submissão dos
subalternos ao diretor de um jornal só deve ter equivalente na administração
turca. É de santo o que ele faz, é de sábio o que ele
diz. Ninguém mais sábio e mais poderoso do que ele na Terra.
Todos têm por ele um santo terror e medo de cair da sua graça,
e isto dá-se desde o contínuo até o redator competente
em literatura e coisas internacionais.

Passando por entre as mesas, tal era a concentração das faces
e o ar aterrado daqueles homens tão arrogantes lá fora, tão
sublimes na rua, que eu pensei que se fossem atirar ao chão para serem
pisados por aquele novo deus, dando-me ali um espetáculo da Índia
mística.

Ricardo Loberant e Aires d’Ávila entraram no gabinete onde
estava Leporace. O diretor tirou o chapéu, descansou a bengala num
canto, sentou-se ao bureau-ministre e gritou bem alto: – "Seu" Leporace,
como é que o senhor deixa publicar esta porcaria (apontou o jornal)
na primeira página? Leporace era o secretário, arrogante como
todo jornalista, apesar de ser uma pura criação de Loberant.
Formado, sem emprego, sem fortuna, sem "pistolões", veio
a encontrar-se com o dr. Ricardo. Loberant gostou da sua submissão,
do ar respeitoso com que era tratado pelo rapaz, daquela espécie de
admiração muda pelo seu gênio que ninguém sentia,
e começou a interessar-se por ele, dando-lhe sociedade na banca, arranjando-lhe
clientes. Começou precisando dele para apoiar a sua pessoa, teve pena
depois da sua covardia, da sua inaptidão para "cavar" acabou
amando-o inteiramente. Quando fundou o jornal, trouxe-o como redator. Leporace
foi aprendendo com os outros o ofício e acabou Secretário, sumidade
em literatura e jornalismo, árbitro do mérito, distribuidor
de gênios e talentos – ele que nunca tivera o mínimo gosto, a
menor inclinação por essas coisas e passara a meninice e as
duas mocidades atracado com compêndios e fazendo Exames como toda a
gente! Hoje, é quase uma celebridade e passeia de carro pelas ruas
asfaltadas do Rio de Janeiro, tendo ao lado a mulher e os pimpolhos.

O berro de Loberant fez estremecer a natureza gelatinosa de Leporace. Ergueu-se,
foi até à mesa do diretor, falou-lhe ciciando, desculpando-se
e explicando-se. Na sala, ouvimos todos e o autor da "porcaria",
Adelermos Caxias, recebeu aquela injúria sem o mais leve movimento
de revolta, resignadamente, com resignação difícil de
esperar em escritor do seu talento, uma grande esperança das gerações
novas.

Estava ali havia mais de meia hora. Depois da brusca reprimenda do diretor,
o silêncio fez-se de novo, e os redatores continuaram a escrever, indo
um, de onde em onde, consultar outro timidamente em voz baixa ou procurar
uma coleção de jornais distante.

A presença do diretor na sala contígua era sentida pelo ruído
constante do papel rasgado; parecia que ele escrevia tiras para rasgá-las
logo que estavam escritas a meio. Do meu lugar, via-lhe a ponta dos ombros
e a Aires d’Ávila inteiramente. O jogo de luzes projetava fantasticamente
este último no vão da parede defronte. A sua face alongava-se
desmedidamente e o crânio diminuía: o maxilar inferior avançava
muito, o nariz ficava colado ao superior e vinha terminar com ele; e tudo
tomava uma posição oblíqua, como se fosse uma imensa
cabeça de porco. Escreveria, ora com monóculo, ora sem ele;
e fumava com a satisfação de um turco que repousa do jantar
para se fatigar no harém. Num dado momento, o dr. Ricardo ergueu-se
impetuosamente e surgiu na sala como um vendaval. Gritou: – Eu já disse
aos senhores que isto não é escada para ninguém subir…
É um escândalo! Todo o dia elogios, adjetivos e encher o… desses
pulhas aí! Já disse que "eminente" aqui é só
o José Bonifácio. – Arre! Quem é esse tal Ruskin que
morreu? Ninguém se animou a responder e ele continuou no seu primeiro
tom: – Um literato aí qualquer, um contador de caraminholas… Não
quero mais que se chame ninguém de eminente nas colunas do meu jornal,
senão o José Bonifácio – saibam de uma vez por todas!

O doutor Gregoróvitch não chegava e comecei a sentir-me também
invadido por aquela atmosfera de terror. O diretor tinha voltado ao seu gabinete
e continuou a rasgar papel. Certa vez, levantou-se, foi até à
janela e, na volta, eu pude ver o seu maxilar proeminente e quadrado e o ar
terrível que tinha a sua fisionomia banhada da turva luz que se desprendia
do olhar. Então, admirei-me que aquele homem, sob cujo nome apareciam
tão formidáveis ataques aos nossos problemáticos tiranos
fosse ele mesmo, na administração de sua folha, um tirano malcriado
e feroz. Ele parecia não achar sossego: sentava-se, levantava-se, ia
à janela; por fim saiu estrepitosamente. Ao chegar à porta que
dava para o corredor, voltou e gritou a esmo: – O Gregoróvitch já
veio? A um só tempo quase todos responderam prestamente: – Ainda não,
sr. dr.

– Bem, retrucou o dr. Ricardo. Quando ele chegar, digam-lhe que escreva
um artigo sobre o empréstimo da Prefeitura… É preciso não
deixar descansar esses tratantes! Lá em cima da minha mesa, acrescentou
logo, está o começo do meu e ele continue…

Leporace veio até à porta receber as recomendações,
embora Loberant não se tivesse dirigido a ele. Logo que o diretor saiu,
correu-lhe à mesa para apanhar os preciosos escritos. Vi-os. Eram três
delgadas tiras de papel cheias de emendas e de algumas frases em grandes letras.
Sentindo-o longe, os seus auxiliares voltaram a conversar.

– Está com a bicha, disse o Meneses. Ainda não tinhas visto
disso, hein, Adelermo? Aqui é assim…

– Admira-me que só agora tivesse visto que era porcaria… De manhã,
nada disse.

– Não há admirar, fez um outro. A mulher só lhe fala
nas coisas do jornal ao jantar, e ele guia-se muito pela opinião dela…

Adelermo acendeu um cigarro, tirou uma fumaça calado; depois, impregnado
de tristeza, disse vagarosamente que era triste que os seus trabalhos tivessem
que ficar sujeitos ao veredictum de uma menina das irmãs de caridade.
Os outros nada lhe disseram e ele acendeu de novo o cigarro, pôs-se
a olhar ao longe com tristeza, em seguida essa expressão desfez-se
e quando voltou a trabalhar sua fisionomia sorria de orgulho interior. O Oliveira
então interveio: – És injusto com D. Inês, Adelermo…
Não é como tu dizes: uma simples menina das Irmãs…
É uma senhora ilustrada; fala francês, monta a cavalo e… Ainda
outro dia, eu vi uma carta dela… Que letra! E que ortografia! Imagina que
eram só termos de medicina… terapêutica… psicologia… agapanto…
Não é brinquedo! E todos corretos! Eu fui ver no dicionário…

No gabinete, o anafado redator-chefe continuava a escrever, fingindo não
dar atenção à conversa. O charuto estava pelo meio e
era aspirado com o vigor de uma bomba poderosa. Acabando de escrever, leu
o artigo vagarosamente, e ergueu-se e veio ao umbral do tabique: – Estás
zangado com o Ricardo, Adelermo? – Não, dr., mas…

– Vocês são assomados… É da idade… Se não
se atravessar certas coisas, não se vai mesmo. Olhem: eu, logo ao sair
da Academia (!), fui trabalhar com meu pai, no Diário Fluminense. Uma
noite, escrevi um artigo e julgava-o sofrível. Pois bem: o velho era
casmurro, veio até à sala de redação e rasgou-o
todinho na minha cara e à vista de uma porção de gente…

Parou de falar, tirou uma fumaça e depois de ter franzido a fisionomia
para manter o monóculo no lugar, perguntou vitoriosamente: – E agora,
não estou aqui? – Eu sei, doutor, falou o Adelermo; mas…

– Vocês não têm outro patrão como o Ricardo, continuou
Aires d’Ávila, sem se incomodar com o Adelermo. Vejam (por aí
ele teve um arroto do jantar saboroso). Vejam o que ele fez com o Sanches?!
É isso… Há poucos com a sua generosidade e grandeza d’alma…
É um fidalgo, um mãos-abertas! O Oliveira confirmou as asseverações
do pachorrento redator, acrescentando: – E demais vejam quem fala mal dele…
São esses ladrões, esses rufiões, gente desmoralizada
que quer avançar…

– Eu digo isso sempre dos que o julgam mal, disse alguém. Ainda ontem,
conversando com o Andrade, tive ocasião…

– Você se dá com esse Andrade? indagou o Oliveira.

– Dou-me. É um belo rapaz, meio…

– Qual! exclamou Oliveira. É uma besta! – Não é, Oliveira;
é um rapaz que escreve…

– Qual! Eu quero ver esses literatos escreverem duas colunas de incêndio,
aqui, no duro… O próprio Rui…

Aires d’Ávila prudentemente interrompeu a crítica do
Oliveira. Não era tanto pela sua admiração pelo famoso
advogado; com certeza era pelo respeito que lhe inspirava a sua posição
política. Interrompeu, perguntando: – Quem é esse Andrade? A
amizade subalterna do Oliveira esperava essa pergunta para explodir em arras
de sua dedicação ao dr. Loberant.

– É um moleque aí, uma besta! O paquiderme colocou o monóculo
e disse com toda a gravidade: – Ah! Já sei… Um bâbleur! Gente
que confunde o brilho com a inteligência… Fracas inteligências…
Fracas inteligências a que mocidade dá um brilho fugaz…

E o monstruoso redator desandou dizendo asneiras. Eu estava ali de colarinho
sujo, esfomeado, mas tive ímpeto de discutir e de quebrar a cara dos
idiotas que o ouviam. Entre eles, havia alguns a quem cabia bem a carapuça,
mas que se calaram covardemente. Eu queria perguntar-lhe se aqueles seus artigos
acacianos, cheirando ainda muito à brochura francesa de dois mil e
quinhentos se podiam pôr ao par do Tito Lívio, do Tobias Barreto;
eu queria perguntar-lhe se a sua genialidade no artiguete seria capaz de aparecer
se tivesse nascido nas condições desfavoráveis do Caldas
Barbosa, do José Maurício, do Silva Alvarenga e outros! E não
sei que movimento fiz na cadeira, sopitando a vontade de falar, que o Megatherium
notou e perguntou-me: – Que é que o senhor deseja? – Falar ao dr. Gregoróvitch.

– Oliveira, o Gregoróvitch quando vem? – Às oito horas.

– Você, meu filho, tem muito que esperar, disse ele com doçura.
São sete e um quarto ainda…

– Esperarei, disse eu.

E eles recomeçaram a conversar sobre outro assunto e vieram a cessar
instantaneamente quando se ouviram passos na escada. Esperava-se o dr. Loberant,
mas entrou o fino, o elegante, o diplomático, o macio Frederico Lourenço
do Couto, com a sua linda barba perfumada e o seu grande queixo erguido e
atirado para adiante como um aríete de couraçado. Vinha todo
perfumado, de olhar lustroso, desprendendo essências, com o peitilho
da camisa a brilhar imaculadamente e um grande botão de coral ao centro,
rodeado de brilhantes. Trazia o sobretudo debaixo do braço e entrou
pisando forte, dando amáveis boas-noites. Vim a conhecê-lo melhor
e a minha antipatia não diminuiu; entretanto, hoje, ao recordar-me
com que sombria energia ele pôs fim ao seu desespero, ao ver diante
de meus olhos a imagem do seu cadáver com aquela fraca cabecinha estourada
por uma bala, tenho uma grande e imensa pena e lastimo que a minha total ignorância
das coisas da Igreja não me permitia rezar uma oração
em favor de sua alma. Era o Floc, pseudônimo com que assinava os seus
artigos, os artigos de três tiras, ligeiros e originais, em que, na
máxima parte, ele contava uma linda anedota literária donde
concluía as suas substanciosas opiniões.

Na redação, era conhecido e respeitado como entendido em literatura
e coisas internacionais. Ele e o Lobo, o consultor gramatical, eram os dois
mais altos ápices da intelectualidade do O Globo. Eram os intelectuais,
os desinteressados, ficavam fora da ação ordinária daquele
exército. Nunca se metiam nas polêmicas, não procuravam
escândalos, não escreviam alusões. Gregoróvitch
era a artilharia. Com seu estilo desconjuntado e a sua violência injuriosa,
abria brecha nas linhas adversárias e dizimava-as de longe. Estrangeiro,
nada sabendo da nossa história, nem pelo estudo nem a sentindo pela
educação e pelo sangue, a sua crítica e o seu ataque
tinham uma violência desmedida. Não poupava, não desculpava,
não sentia até que ponto o homem era culpado, até que
ponto a marcha das coisas fazia o homem culpado. Ligeiramente enfronhado nas
causas da política do momento, ele só via diante de si um aspecto
do fato, não sentia inconscientemente os outros que se ligavam com
o passado que ele não conhecia, nem os outros que o futuro pressentido
condicionava. Um brasileiro, educado e criado no meio das tradições,
dos usos, dos hábitos, das qualidades, dos defeitos do seu meio, não
teria a violência de sua linguagem, a sua força de crítica,
a brutalidade de seu ataque.

Acharia na sua educação e nos seus costumes desculpa para
as faltas dos outros que ele sentia também ser suas. Gregoróvitch
que, além de estrangeiro, não tinha pátria ao certo,
era incapaz de apanhar relações, explicações,
só via faltas, erros, onde havia simplesmente efeitos, resultados,
e atirava-se com toda a violência de seu temperamento de aventureiro
e condottiere da pena contra aquele reino de Incas, de Astecas que ele não
compreendia. Além dele, havia o Losque e o Lara homens de espírito,
humoristas, espécie de cavalaria parta viva no ataque e capaz ainda
de deitar frechas mortais na retirada. O resto era a infantaria, o grosso
do exército, de quem faziam parte o Oliveira, admirando o diretor como
um deus e supondo-se extraordinário no seu ofício de repórter;
o resignado Menezes, indulgente criatura que naquele ambiente de fatuidade
e ignorância, era o único simples e o único que estudava;
o Rolim, o elegante Rolim, vigorosamente analfabeto, mas lindo como Narciso;
o Costa, o Barros, e quantos mais? Era assim composta aquela peça com
que tinha irrompido pela vida política e administrativa do Brasil a
violência e com o inesperado de um fenômeno vulcânico.

À frente, estava o doutor Ricardo Loberant, bacharel em direito,
de inteligência duvidosa e saber inconsciente, com o seu estado-maior,
formado de Aires d’Ávila, um monstro geológico com prematuros
instintos de raposa, e o Leporace, um secretário mecânico, automático,
ser sem alma, sem defeitos nem qualidades, que recebia os seus movimentos
do exterior e os comunicava às outras peças da máquina;
à parte, um tanto afastado, como aqueles traficantes que acompanham
os exércitos, havia o Alberto Pranzin, o gerente, um italiano de olhar
turvo a abranger um grande círculo no horizonte, calculador de níqueis,
que escumilhara a despesa e trazia para as gavetas do jornal os tostões
da população e um pouco dos lucros do comércio português
no Rio de Janeiro, isto é, de todo o comércio da cidade, que
todo ele é português, tem o seu espírito, a sua alma,
e as suas regras.

Floc, porém, sobre todos tinha o grande prestígio de ter estado
em Paris e ter sido segundo-secretário da nossa legação
em Quito. Por isso ele mesmo se julgava mais depuradamente artista que o resto
dos rapazes que faziam literatura pelo Brasil em fora; e o seu estágio
diplomático em Quito dava-lhe também um infalível julgamento
nas coisas de alta elegância e um saber inarrável nas maneiras
de tratar duquesas e princesas. Fazia a crônica literária, as
crônicas teatrais dos espetáculos de todas as celebridades, as
informações sobre literatura e pintura, além do plantão
semanal em que ajeitava frases lindamente literárias, dados da psicologia
chic, às notícias de assassinatos perpetrados por soldados ébrios
na rua de São Jorge, não esquecendo nunca de dizer que o "criminoso
é o tipo acabado do criminoso nato, descrito pelo genial criminalista
italiano Lombroso". Ia a um banquete diplomático. A sua entrada
não perturbou a conversa.

– … um moleque! zurrou o Oliveira.

– De quem falas, Oliveira? indagou o recém-chegado.

– Um mulato aí, um tal Andrade…

– Incomoda-te o que ele escreve? – Com certeza, pois se chama o dr. Ricardo
de pirata, de Barba-Roxa…

– Ora! Tu! Essa gente está condenada a desaparecer; a ciência
já lhes lavrou a sentença…

Ele de ciência sabia o nome e ignorava a conta de dividir. Calou-se
um instante e acrescentou: – É preciso fulminar os nulos! Lobo tinha-se
mantido calado. Durante toda a conversa, dissera uma ou outra frase ligeira.
Revia absorvido um artigo e não queria distrair-se de modo a perder
a menor regra gramatical com que pudesse emendar o original.

Tendo o Floc e o Oliveira cessado de falar, alguém perguntou-lhe:
– Dr. Lobo, como é certo: um copo d’água ou um copo com
água? O gramático descansou a pena, tirou o pince-nez de aros
de ouro, cruzou os braços em cima da mesa e disse com pachorra e solenidade:
– Conforme: Se se tratar de um copo cheio, é um copo d’água;
se não estiver perfeitamente cheio, um copo com água. Explanou
exemplos, mas não pôde levá-los à dezena, pois
alguém apontou na porta, o que mereceu uma exclamação
do Aires d’Ávila: o Veiga!

Todos se viraram e imediatamente apanharam no ar uma fisionomia sorridente
repassada de admiração. Voltei-me também. Descobri logo
quem era. Os retratos, espalhados pelos quatro cantos do Brasil, tinham tornado
familiar aquela fisionomia; mas, de perto, ali a dois passos de mim, o seu
olhar fixo, atrás de fortes lentes, a testa baixa e fugidia, quase
me fizeram duvidar que fosse aquele o Veiga Filho, o grande romancista de
frases campanudas, o fecundo conteur, o enfático escritor a quem eu
me tinha habituado a admirar desde os quatorze anos… Era aquele o homem
extraordinário que a gente tinha que ler com um dicionário na
mão? Era aquela a forte cerebração literária que
escrevia dois e três volumes por ano e cuja glória repousava
sobre uma biblioteca inteira? Fiquei pasmado. Com aquele frontal estreito,
com aquele olhar de desvairado, com aquela fisionomia fechada, balda de simpatia,
apareceu-me sem mobilidade, sem ductibilidade, rígido, sinistro e limitado.
Acresce que o branco da sua tez soava falso, e do seu espírito julguei
logo, vendo o esforço que punha a escova na testa para ganhar diariamente
terreno ao cabelo! – Veiga, disse Floc depois dos cumprimentos, gostei muito
da tua conferência. Foi uma epopéia, uma ode triunfal ao grande
Corso! – Houve pedacinhos lindos, intrometeu-se o Oliveira. Quando por exemplo,
o dr. falou naquele inglês lá da ilha que tinha feito sofrer
"o último grande homem da nossa espécie", foi como
se eu tivesse visto o próprio Napoleão – grande, alto, com aquele
cavanhaque.

– Napoleão era baixo e não tinha barba, disse alguém.

– É um modo de dizer, quero falar na figura, na… Era extraordinário
mesmo! E a gente, continuou Oliveira, e a gente fica admirado que um homem
desses tenha sido cercado, acuado em Sedan! – Em Waterloo, é que você
quer dizer…

– Em Waterloo! Não foi em Sedan? O Zola, na Derrocada… Eu li! –
Ah! Isto é Napoleão III, acudiu Floc.

– É VERDADE! Fez o Oliveira. Que confusão! Veiga Filho passeava
o olhar pela sala, distraído, sem dar grande atenção
ao Oliveira. Digeriu o seu triunfo e só saiu dessa digestão
difícil quando Floc lhe disse: – E quanta gente! Muitas senhoras…
moças… gente fina… Estavam as Waliesteins, as Bostocks, as Clarks
Walkovers… Podes-te gabar que tens o melhor auditório feminino da
cidade… Nem o Bilac.

Por aí os seus olhos tiveram uma grande e forte expressão
de triunfo. Disfarçou com um movimento de modéstia e perguntou:
– Já deste a notícia? – Ainda não; não tenho tempo…
Vou ao banquete do Ministro e…

– Quando a vais fazer? – Hoje não posso, vou ao banquete; mas o Leporace
podia dar… Leporace (gritou para o secretário), escreve a notícia
da conferência do Veiga! – Não tenho tempo, objetou o fanhoso
secretário, aproximando-se do grupo.

Durante minutos estiveram discutindo quem devia dar ou não a notícia,
sem chegar a um acordo. Leporace, então, lembrou que o próprio
Veiga Filho a fizesse: – Estás doido! objetou o romancista. Não
viste o que aconteceu da outra vez? Que diriam? – Ora! Que tolice! Como se
houvesse alguém que acreditasse no murmúrio desses literatecos…
Umas bestas, uns vagabundos; escreve, anda! Eu demorei-me ainda muito e pude
ouvi-lo ler a notícia. Começou dizendo que era impossível
resumir uma conferência de um artista como Veiga Filho. Para ele, as
palavras eram a própria substância de sua arte. Dizer em alguns
períodos o que ele dissera em hora e meia, era querer mostrar a beleza
do fundo do mar com uma gota d’água trazida de lá (não
citou o autor). Em seguida, a grande glória das letras pátrias
mostrou como tinha começado: citou Nietzsche, de quem, hoje, entre
nós, Veiga Filho é um dos mais profundos conhecedores e a cuja
filosofia a sua inspiração obedece. Começou com o Zaratustra:
o homem é uma ponte entre o animal e o super-homem. Daí partiu
seguindo o grande Corso na passagem desta ponte. Serviu-se dos mais modernos
historiadores: Masson, Albert Sorel, Lord Rosebery. Descreveu a batalha de
Austerlitz, contou a campanha da Rússia e a passagem do Berezina foi
motivo para uma descrição das mais artísticas que ainda
se fez na nossa língua. Pelo auditório, quando ele mostrou aqueles
milhares de homens, caindo ao rio gelado, amontoando-se uns sobre os outros,
debatendo-se, lutando sob uma chuva de metralha, correu um frisson de terror.
Contestou teorias de Tólstoi, pôs finas notações
aos ataques feitos a Napoleão e ao estudo do seu gênio por Lombroso.
Patenteou uma grande erudição e conhecimento não suspeitados;
e, quando a sua palavra colorida descreveu os súplices desse titã
roído pelo enfado, houve na sala um soluço.

Foi um duplo triunfo, terminava assim a notícia, de Veiga Filho e
de Napoleão, o último grande homem que a nossa espécie
viu, cuja grandeza e cujos triunfos aquele grande artista soube pintar e descrever,
jogando com as palavra como um malabarista hábil faz com as suas bolas
multicores. Raro e fugace gozo foi essa conferência do eminente cultor
das letras pátrias.

Veiga Filho acabou de ler a notícia no meio da sala, cercada de redatores
e repórteres. Enquanto ele lia cheio de paixão, esquecido de
que fora ele mesmo o autor de tão lindos elogios, fiquei também
esquecido e convencido do seu malabarismo vocabular, do sopro heróico
de sua palavra, da sua erudição e do seu saber…

Cessando, lembrei-me que amanhã tudo aquilo ia ser lido pelo Brasil
boquiaberto de admiração, como um elogio valioso, isto é,
nascido de entusiasmo sem dependência com a pessoa, como coisa feita
por um admirador mal conhecido! A Glória! Glória! E de repente,
repontaram-me dúvidas: e todos os que passaram não teriam sido
assim? e os estrangeiros não seriam assim também?…

Presenciando tudo aquilo, eu senti que tinha travado conhecimento com um
engenhoso aparelho de aparições e eclipses, espécie complicada
de tablado de mágica e espelho de prestidigitador, provocando ilusões,
fantasmagorias, ressurgimentos, glorificações e apoteoses com
pedacinhos de chumbo, uma máquina Marinoni e a estupidez das multidões.

Era a Imprensa, a Onipotente Imprensa, o quarto poder fora da Constituição!

IX

Aos poucos, me esqueci dos dias de fome passados a deambular pelas ruas da
cidade. Tinha já um quarto, cama e um lavatório de ferro, pensão
de almoço e jantar; e, ainda, do ordenado, me sobravam sempre alguns
mil-réis para comprar, de quando em quando, umas botinas de abotoar
ou um chapéu de palha mais catita. Gregoróvitch dera-me um terno
de roupa em por todo o tempo em que fui contínuo, conheci vários
alfaiates caros por intermédio do corpo dos outros.

No começo, não foi sem pezar que aceitei as fatiotas daqueles
desconhecidos. Custou-me muito curvar-me a tão vil necessidade; com
o tempo, porém, conformei-me e de tal modo me habituei que, mais tarde,
quando a minha situação mudou, foi-me preciso um grande esforço,
para me habituar a comprar roupa em primeira mão. Achava-a cara, e
o dinheiro gasto nela, despendido inutilmente, como se o gastasse em orgias
e bebedeiras. Os meus vencimentos eram aumentados pelas gorjetas. Havia-as
de duzentos réis, mas, em geral, eram de quinhentos réis para
cima. A gente dos jornais é pródiga como jogadores e gosta de
aparentar desprezo pelo dinheiro e generosidade. Uma vez, recordo-me bem,
um repórter, entrando alta noite na redação, com o olhar
brilhante e o passo um tanto trôpego, disse-me cheio de efusão:
– Caminhas, tens dinheiro? – Tenho, sim senhor, dois mil-réis… O
sr…

Ele não entendeu bem a minha resposta e continuou com a voz pastosa:
– Sabes donde venho? Do Aplomb Club. Ganhei oitocentos mil-réis no
bacarat… Arre! Que desta vez levei a melhor ao Laje… Sabes quem bancava?
O Demóstenes, dr. Demóstenes Brandão, pretor, primo do
Ministro do Interior.

O repórter falava bamboleando a cabeça e agitando os braços
molemente. Esteve alguns instantes calado, a revirar os olhos, e depois puxou
da algibeira uma nota de vinte mil-réis e disse-me: – Toma! Vai procurar
um bom fim de noite…

Eu tinha cem mil-réis por mês. Vivia satisfeito e as minhas
ambições pareciam assentes. Não fora só a miséria
passada que assim me fizera; fora também a ambiência hostil,
a certeza de que um passo para diante me custava grandes dores, fortes humilhações,
ofensas terríveis. Relembrava-me da minha vida anterior; sentia ainda
muito abertos os ferimentos que aquele choque com o mundo me causara. Sem
os achar, em consciência, justos, acovardava-me diante da perspectiva
de novas dores e apavorei-me diante da imagem de novas torturas. Considerei-me
feliz no lugar de contínuo da redação do O Globo. Eu
tinha atravessado um grande braço de mar, agarrara-me a um ilhéu
e não tinha coragem de nadar de novo para a terra firme que barrava
o horizonte a algumas centenas de metros. Os mariscos bastavam-me e aos insetos
já se me tinham feito grossa a pele…

De tal maneira é forte o poder de nos iludirmos, que um ano depois
cheguei a ter até orgulho da minha posição. Senti-me
muito mais que um contínuo qualquer, mesmo mais que um contínuo
de Ministro. As conversas da redação tinham-me dado a convicção
de que o doutor Loberant era o homem mais poderoso do Brasil; fazia e desfazia
Ministros, demitia diretores, julgava juízes e o Presidente, logo ao
amanhecer lia o seu jornal, para saber se tal ou qual ato seu tinha tido o
placet desejado do dr. Ricardo. Participar de uma redação de
jornal era algo extraordinário, superior, acima das forças comuns
dos mortais; e eu tive a confirmação disso quando, certa vez,
na casa de cômodos em que morava, dizendo-o ao encarregado que trabalhava
na redação do O Globo, vi o pobre homem esbugalhar muito os
olhos, olhar-me de alto a baixo, tomar-se de grande espanto como se estivesse
diante de um ente extraordinário. As raparigas que residiam junto a
mim, lavadeiras e costureiras, criadas de servir apelidaram-me "o jornalista",
e mesmo quando vieram a ter exato conhecimento da minha real situação
no jornal, continuei a ser por esse apelido conhecido, respeitado e debochado.

Fiquei enervado de orgulho pueril, tratando toda a gente com um desdém
sobranceiro, sentindo-me tocado, atingido por um pouco de grandeza que cabia
ao dr. Loberant, ao Losque e ao inimitável Floc.

Depois de acobardado, tornei-me superior e enervado e não tentei
mais mudar de situação, julgando que não havia no Rio
de Janeiro lugar mais digno para o genial aluno de Dr. Ester que o de contínuo
numa redação sagrada. Não estudei mais, não mais
abri livro. Só a leitura d’O Globo me agradava, me dava prazer.
Comecei a admirar as sentenças literárias do Floc, a pilhérias
do Losque, a decorar a gramática homeopática do Lobo e a não
suportar uma leitura mais difícil, mais densa de idéias, mais
logicamente arquitetada, mesmo quando vinha em jornal. Era pesado e…

Em menos de ano e tanto, tinha já construído uma pequena consciência
jornalística para meu uso. Julguei-me superior ao resto da humanidade
que não pisa familiarmente no interior das redações e
cheio de inteligência e de talento, só porque levara tinta aos
tinteiros dos repórteres e dos redatores e participava assim de um
jornal, onde todos têm gênio. Os contínuo, os revisores,
os caixeiros de balcão, o gerente, os redatores, os homens das máquinas,
os tipógrafos, os agentes de anúncios, todos têm gênio,
muito gênio mesmo, quando de sobra não têm também
muito espírito, muito mesmo! Aquela casa, como todas do seu feitio,
em que se fabricam novidades para o público, era uma colmeia de gênios.
Colmeia é bem o termo porque era pequena e acanhada. Os redatores escreviam
uns em cima dos outros; na revisão, que ficava misturada com a composição,
não se podia andar; e pela noite os bicos de gás sem vidros
iluminavam tudo aquilo lobregamente, com grandes hiatos de sombras como um
porão de navio. Pela sala em que esses dois departamentos funcionavam,
flutuava um forte odor de urina, desprendido de um mictório, que existia
entre duas caixas de tipografia. No dia que notei isso, não fazia oito,
que um artigo furioso atacava o governo pelas más condições
higiênicas do Hospício Nacional de Alienados.

Quando se tratava de per si com qualquer dos empregados do jornal, ficava-se
admirado que a folha se imprimisse e se escrevesse diariamente. Floc tinha
em pouca conta Losque: um bufão, dizia ele; Bandeira desprezava Floc:
um eunuco; e todos como que pareciam querer entredevorar-se até aos
ossos. Entretanto, quando um fazia anos, a seção competente
gemia e os adjetivos mais ternos e mais camaradários não eram
poupados. De seção para seção, a guerra era terrível.
A revisão dizia que a redação era analfabeta; a tipografia
acusava ambas de incompetentes; e até a impressão que não
lia nem via originais tinha uma opinião desfavorável sobre todas
três.

A redação não perdoava a menor falha da revisão.
Às vezes, eram os originais defeituosos; em outras, havia descuido
ou a pretensão fazia emendar o que estava certo; mas sempre as reclamações
choviam por parte dos redatores, dos colaboradores e dos repórteres.

Um caso curioso deu-se com um artigo de Aires d’Ávila. Na sua
cantilena diária, o paquidérmico plumitivo tinha escrito "pesados
200$000 impostos pelo Congresso", mas, passando de uma linha para outra,
cortara a quantia pelo cifrão, sem o qual, a revisão e a tipografia
entenderam: "200 ovos postos pelo Congresso". Ávila às
nove horas da manhã veio ao jornal furioso, com as banhas agitadas,
todo ele nervoso de pasmar, pois sempre me pareceu sem nervos. O que tinha
sido uma simples obra do acaso, atribuía-a ele uma canalhice da revisão,
uma pilhéria de mau gosto.

De tarde o chefe da revisão foi chamado, quis explicar o "gato";
mas a nada se atendeu e houve algumas demissões. Não eram raras
aliás. No jornal, há-as de mês a mês; por dá
cá aquela palha, o diretor ou o secretário demite, suspende,
multa nos ordenados. Daí vem o terror dos subalternos, a lisonja, o
respeito religioso de que são cercados. Entretanto, quantas vezes se
não lêem acres censuras ao Ministro que demitiu este ou aquele
funcionário, por motivo em geral mais plausíveis! Unicamente
Michaelowsky não fazia carga sobre a revisão. Para ele, tanto
se lhe dava sair "nós fomos" como "nós foi".
Não tinha nenhum amor pelos escritos; eram como cutiladas, tanto fazia
matar, ferindo no pescoço como rachando a cabeça meio a meio.
O que ele queria era matar, ferir, golpear: a maneira pouca se lhe dava. E
era uma felicidade para a revisão que ele pensasse assim. No jornal,
só o russo tinha prestígio e iniciativa. Os outros curvavam-se
servilmente ao diretor. O que não seria se o doutor em exegese bíblica
tivesse os cuidados puristas do Oliveira, que reclamava um "propositalmente"
por propositadamente! Toda a sua gramática estava aí. Ele conseguira
saber que "propositalmente" não era aconselhado pelo Rui
e ai do revisor que deixasse escapar um na sua seção! O próprio
Loberant, tão ignorante como o Oliveira, péssimo escritor, tinha
fúrias extraordinárias quando lhe trocavam uma palavra no luminoso
artigo. Diariamente, mesmo quando não escrevia, corria o jornal de
manhã, de princípio ao fim, auxiliado pela mulher, para descobrir
erros segundo a gramática do Lobo. Graças a leituras das "sorites"
do esquálido gramático, Loberant julgava-se um purista; demais,
ele sempre tivera culto pelo dicionário, pelo purismo. Era um gosto
ver surgir nos seus artigos-descomposturas, termos, catados ao Morais e ao
Domingos Vieira. E essa sua crença de purista e cultor da língua,
juntara-se com o tempo, a de ser também um grande homem, um messias,
um homem providencial. Com cuidado e atilamento, afastara do jornal toda e
qualquer pessoa de mais talento que ele. Proprietário da folha absorvera-a
toda em si: os artigos, a criação das seções,
as referências elogiosas, as "cavações", tudo
só se fazia com sua audiência e aprovação. Ele
pairava sobre o jornal como um sátrapa que desconhecesse completamente
qualquer espécie de lei, fosse jurídica, moral ou religiosa.
Não havia regulamentos, praxes; o jornal era ele e a coerência
de suas opiniões vinha dos impulsos desordenados de sua alma, que o
despeito agitava em todos os sentidos. No curto prazo de uma semana, o seu
jornal atacou, elogiou e qualificou herói o Ministro da Guerra; e nenhum
dos três artigos saiu da sua pena; foram escritos à sua ordem
pelo Adelermo Caxias, que se gabava de honestidade intelectual. Na redação
era assim: escrevia-se, mediante ordem do Diretor, hoje contra e amanhã
a favor. Floc, entretanto, gabava-se de ter autonomia nos seus artigos. Eram
puramente literários, ou tinham esse propósito, e, à
luz da inteligência de Loberant, era-lhe perfeitamente indiferente que
o naturalismo fosse elogiado e o nefelibatismo detratado; que a Academia de
Letras tivesse referências elogiosas ou recebesse epigramas acerados.
Floc era contra a Academia, contra os novos, contra os poetas, contra os prosadores;
só admitia, além dele, com a sua obra subjacente, que se juntassem
e fizessem versos, certos rapazes de sua amizade, bem-nascidos, limpinhos
e candidatos à diplomacia. Confundia arte, literatura, pensamento com
distrações de salão; não lhes sentia o grande
fundo natural, o que pode haver de grandioso na função da Arte.
Para ele, arte era recitar versos nas salas, requestar atrizes e pintar umas
aquarelas lambidas, falsamente melancólicas.

Na crítica, tinha-se na convicção de um fazedor de
poetas, um consagrador de reputações; com aquele endosso da
firma burlesca – Floc – o autor que lhe recebesse elogios, passava imediatamente
para o Larousse. Ignorante, insciente, com uma leitura de pacotilha, não
se animava a desenvolver qualquer teoria, a ter um ponto de vista qualquer;
bordava umas banalidades – "uns deliciosos momentos de gozo estético
deu-nos, etc.; a sua alma vibra e palpita, etc." Com isso, e repetidos
elogios aos outros jornalistas, adquiriu ele uma linda reputação
e um grande prestígio de talento e de artista. Quando se suicidou (oh!
como isto é triste de recordar!), quando se suicidou fui-lhe ver os
livros; lá havia a Grande Marnière, de Ohnet; Je Suis Belle,
de Victorien de Saussay; uns volumes de Bourget, alguns de Maupassant, nenhum
historiador, nenhum filósofo, nenhum estudo de crítica literária,
mas dez de anedotas literárias de autores de todos os tempos e de todos
os países. A sua crítica não obedecia a nenhum sistema;
não seguia escola alguma. O único critério era as suas
relações com o autor, as recomendações recebidas,
os títulos universitários, o nascimento e a condição
social. Elogiava nefelibatas, se eram de sua amizade, se eram "limpos";
detratava se não eram. Tinha dois princípios: a aristocracia
da arte e a fulminação dos nulos. Entendia a seu modo aristocracia
da arte, isto é, arte feita pelos aristocratas como ele, cujo pai tivera
na primeira mocidade uma taverna em Barra Mansa.

Uma tarde, chegou à redação com uma plaquette, impressa
em Portugal, tendo por título – Coração Magoado. Encontrando
Leporace, mostrou-lhe a brochura: – Conheces? – Não. Deixa-me vê-la.

Leporace quis dar à sua fisionomia baça, aos músculos
inexpressivos de sua face, uma expressão de finura, de atilamento particular
de entendimento. Leu o título, o nome do autor, folheou o livro e perguntou:
– Quem é Odalina? – Uma poetisa portuguesa de muito talento… Está
de passagem e vem tratar de uma revista – O Bandolim… Os versos são
líricos, mas de uma pureza de sentimento e cheios de um acento pessoal
de encantar… Eu não gosto da arte pessoal; a arte (tomou outra atitude)
deve refletir o mundo e o homem, e não a pessoa… Penso com o Flaubert…
Vê só este: Meu coração por desgraça Entrou
no meu pensamento É como crime de faca Que nunca tem livramento.

– Notaste, acrescentou ao terminar a leitura, como está bem aproveitada
a devida cadência da trova popular para exprimir um alto conceito filosófico?
Ela quer dizer que o seu, a perigo sua inteligência é perturbada
pelo Amor, pelo sentimento… E como ela compara bem com um dizer popular,
essa coisa alta e transcendente! O livro é notável… Vê
só esta quadrinha, que perfeição! Quanta emoção
há nela! Ouve: Quem tem amores vai dormir Na porta do seu amor Das
pedras faz cabeceira Das estrelas cobertor.

Leporace pediu de novo o livro e pôs-se a folheá-lo, lendo
aqui e ali. Não teve uma palavra para dizer, descansou o livro e perguntou:
– Quem te apresentou? – O Raul de Gusmão.

– O Raul! Com mulheres! É casada? – É, com o Visconde de Varennes,
um fidalgo francês.

– Olá! Deve ser uma grande família, nobreza antiga… O nome
é histórico, rematou Leporace satisfeito por ter encontrado
uma observação a fazer.

– Não sei se é.

– O marido veio com ela? – Não. Ela vive separada do marido…

– Ahn! Vais escrever sobre ela, não? – Naturalmente.

E os dois sorriam: Floc cheio de satisfação, recordando vagamente
as mulheres já gozadas; Leporace com um evidente travo de amargura
nos lábios. O crítico preparava-se para se pôr à
mesa, quando entraram o doutor Loberant e Michaelowsky. O diretor vinha com
a fisionomia alegre. Floc e Leporace, este mais que aquele, acolheram com
as grandes mostras de respeito de sempre a presença do dr. Ricardo
Loberant. O desbotado secretário deu-lhe conta das recomendações
do dia seguinte. Tinha posto mais uma "brotoeja" contra o Prefeito
e fizera escrever um solto combatendo o empréstimo da Prefeitura; e,
se não saíra a "porrada" na gente do Paraná,
fora porque o vira a conversar com o Chavantes.

– Ora, "seu" Leporace! exclamou o diretor. Que é que tem
isso! O jornal é uma coisa e eu sou outra…

– Pensei…

– Bem… Foi bom… Mas não me deixe de bater na Prefeitura… É
um escândalo! Uma vergonha! Só o Machado vai ganhar mil contos…
Embirro com esse Machado… Um tratante que não me cumprimenta… Ainda
se fosse outro, vá! E não é isso; é um nulo, um
título desvantajoso, e que juro!… Não o deixem, não
o deixem; havemos de ver se o O Globo vale ou não vale…

E o diretor rematou as suas recomendações com um baixo palavrão
insultuoso. Floc e Leporace tinham ficado a ouvir o venerável diretor;
Michaelowsky, sentado, fumando, estivera a ler o livro da poetisa portuguesa.

– De quem é isto? perguntou.

– É meu.

– É o autor que pergunto.

– O autor! É uma fidalga portuguesa…

– Livra! São versos de folhinha…

– De folhinha! – De folhinha, sim. Este aqui. "Quem tem amores vai
dormir" – é "verso" de hoje até! – Não
é possível! Não é possível! reclamou o
crítico literário.

– Queres ver? Caminha, gritou o russo para mim, traze-me aí o "verso"
de hoje.

Procurei-o nos papéis de uma cesta e entreguei-o ao redator poliglota.
O estrangeiro passou os olhos no papelucho e entregou-o ao Floc. O oráculo
artístico do jornal correu rapidamente os versos e confessou: é
verdade, acrescentando – que cinismo! mas sem convicção nem
indignação.

O Diretor tinha entrado para o gabinete seguido de Leporace e nenhum dos
dois ouvira o breve diálogo trocado na sala entre os dois redatores.
De repente, com aquela sofreguidão que lhe era peculiar e que ele punha
nos atos, nos afetos e nos seus medíocres artigos, chegou-se à
porta e perguntou ao Floc: – Vi esse tal Andrade na rua… O jornaleco dele
ainda continua a sair? – Penso que sim.

– Tens lido? – Às vezes.

– Continua a insultar-me? – Sempre. E acrescentou: o dr. se incomoda com
o que diz esse vagabundo? – Não… Ora! Mas… Deixa estar que ele
há de precisar de mim, há de cair em alguma; então veremos…
Não se esqueçam dele, quando for ocasião, casquem…
Patife!!! E passou por mim ainda com os dentes rilhados, cheio de raiva, desabotoando
a braguilha, apressado para o mictório, olhando para o lado em que
eu estava, como querendo dar a entender que ele era forte, muito forte, e
havia de esmagar um dia aquele pigmeu que ousava pôr-se diante do seu
caminho triunfante, atirando-lhe alfinetadas com uma cômica violência
liliputiana. Havia de esmagá-lo, inutilizá-lo para sempre e
fazê-lo sofrer eternamente o grande desaforo de o não supor Deus
no "Domingo", a ele, doutor Ricardo Loberant, diretor-proprietário
d’O Globo, jornal independente, órgão do povo e dos sofredores,
pesadelo dos Ministros, espada de Dâmocles suspensa sobre a tríade
política e administrativa da República. E ele tinha razão.

O terror, que inspirava dentro do jornal, irradiava para fora. Aquele homem
magrinho, fraco de corpo e de inteligência, sem cultura, amedrontava
a cidade e o país. Todos o cortejavam; os colegas que o combatiam,
evitavam feri-lo de frente. Um ou outro, num momento de desespero, tinha a
coragem de enfrentá-lo; mas era num momento de desespero. Armados,
cercados de todos os lados, tinham uma convulsão e atiravam-se, desferindo
golpes para a esquerda e para a direita. Se porventura algum era mais certeiro
e parecia esmagar o dr. Loberant, ficava-se pasmado que se desse o contrário.
Longe de perder prestígio, esses ferimentos aumentavam-no. O povo não
queria ver a sua ignorância, a sua inabilidade no escrever; era valente
e dizia a verdade. Houve uma polêmica sobre um trabalho de limites em
que o seu desconhecimento da geografia pátria ficou patente; o jornal
foi mais lido. Em outra vez, deu como tendo feito oferecimentos a conventos
do Brasil, reis da dinastia de Borgonha; recebeu uma ovação.
De dia para dia o jornal crescia em venda. Todos o liam; era o jornal dos
desgostosos, dos pequenos empregados, dos ratés de todas as profissões
e também dos ricos que não podem ganhar mais e dos destronados
das posições e das honras. Na venda avulsa, nenhum o excedia,
nem o próprio Correio da Manhã. Só o Jornal do Brasil
se mantinha emparelhado com ele, e a rivalidade era acesa. Julgando que a
prosperidade do outro era devida aos bonecos, Loberant punha na sua folha
bonecos. Parecendo-lhe que isso não era o bastante, forjava anúncios,
"calhaus", calhaus de "precisa-se", de "aluga-se",
de pequenos anúncios que, em abundância, parecem ser o índice
da prosperidade de um jornal. Mas não contente com esses expedientes
todos, um dia o doutor Loberant, supondo a popularidade do rival devido à
falta de gramática nos artigos, chegou à redação
furioso e, com o seu modo habitual, berrou: – Não quero mais gramática,
nem literatura aqui!… Nada! Nada! De lado essas porcarias todas… Coisa
para o povo, é que eu quero! O Lobo, que estava na sala, teve em começo
um grande olhar de tristeza com que envolveu toda a sala e a coleção
de jornais dependurados pelas paredes. Depois de um momento de hesitação,
tomou coragem e observou: – Mas, dr…

– Ora, Lobo! Já vem você…

– Mas, dr., a língua é uma coisa sagrada. O culto da língua
é um pouco o culto da pátria. Então o senhor quer que
o seu jornal contribua para corrupção deste lindo idioma de
Barros e Vieira…

– Qual Barros, qual Vieira! Isto é brasileiro – coisa muito diversa!
– Brasileiro, doutor! falou mansamente o gramático. Isto que se fala
aqui não é língua, não é nada: é
um vazadouro de imundícies. Se frei Luís de Sousa ressuscitasse,
não reconheceria a sua bela língua nessa amálgama, nessa
mistura diabólica de galicismos, africanismos, indianismos, anglicismos,
cacofonias, cacotenias, hiatos, colisões… Um inferno! Ah, doutor!
Não se esqueça disto: os romanos desapareceram, mas a sua língua
ainda é estudada…

Loberant não ficou calado com a exortação do gramático.
Manteve a ordem que lhe parecia necessária para o aumento de alguns
milheiros na venda de sua folha. Conquanto afetasse desprezo pela literatura,
ele não deixava de ter pretensões a intelectual. Com a prosperidade
do jornal, a sua pretensão aumentava. Julgava-se um Patrocínio,
um Ferreira de Araújo, um Bocaiúva; embora não escrevesse
com destaque, ele ia buscar o seu parentesco espiritual em Rochefort, Luís
Veuillot e outros nomes de jornalistas estrangeiros de que tinha informações.

O seu gabinete era alvo de uma peregrinação. Durante o dia
e nas primeiras horas da noite, entrava toda a gente, militares, funcionários,
professores, médicos, geômetras, filósofos. Uns vinham
à cata de elogios, de gabos aos seus talentos e serviços. Grandes
sábios e ativos parlamentares eu vi escrevendo os seus próprios
elogios. O leader do governo enviava notas, já redigidas, denunciando
os conchavos políticos, as combinações, os jogos de interesses
que se discutiam no recesso das antecâmaras ministeriais. Foi sempre
coisa que me surpreendeu ver que amigos, homens que se abraçavam efusivamente,
com as maiores mostras de amigos, vinham ao jornal denunciar-se uns aos outros.
Nisso é que se alicerçou o O Globo; foi nessa divisão
infinitesimal de interesses, em uma forte diminuição de todos
os laços morais.

Cada qual mais queria, ninguém se queria submeter nem esperar; todos
lutavam desesperadamente como se estivessem num naufrágio. Nada de
cerimônias, nada de piedade; era para a frente, para as posições
rendosas e para os privilégios e concessões. Era um galope para
a riqueza, em que se atropelava a todos, os amigos e inimigos, parentes e
estranhos. A república soltou de dentro das nossas almas toda uma grande
pressão de apetites de luxo, de fêmeas, de brilho social. O nosso
império decorativo tinha virtudes de torneira. O encilhamento, com
aquelas fortunas de mil e uma noites, deu-nos o gosto pelo esplendor, pelo
milhão, pela elegância, e nós atiramo-nos à indústria
das indenizações. Depois, esgotado, vieram os arranjos, as gordas
negociatas sob todos os disfarces, os desfalques, sobretudo a indústria
política, a mais segura e a mais honesta. Sem a grande indústria,
sem a grande agricultura, com o grosso comércio nas mãos dos
estrangeiros, cada um de nós, sentindo-se solicitado por um ferver
de desejos caros e satisfações opulentas, começou a imaginar
meios de fazer dinheiro à margem do código e a detestar os detentores
do poder que tinham a feérica vara legal capaz de fornecê-lo
a rodo. Daí a receptividade do público por aquela espécie
de jornal, com descomposturas diárias, pondo abaixo um grande por dia,
abrindo caminho, dando esperanças diárias aos desejosos, aos
descontentes, aos aborrecidos. E os outros jornais? Nos outros o suborno era
patente; a proteção às negociatas dos dominantes não
sofria ataques; não demoliam, conservavam, escoravam os que estavam.

Loberant sabia o segredo do seu sucesso e velava pela folha com cuidados
especiais. Diariamente lhe vinham informações sobre a venda
avulsa, sobre o movimento de anúncios. Se decaíam um pouco,
logo procurava um escândalo, uma denúncia, um barulho, em falta
um artigo violento fosse contra quem fosse. Havia na redação
farejadores de escândalos; um, para os públicos; outro, para
os particulares. Este era o mais interessante. Tinha uma imaginação
doentia; forjava coisas terríveis, inventava, criava crimes. Eram cárceres
privados, enterramentos clandestinos, incestos, tutores dolosos, etc.

Porém, os grandes escândalos, os grossos, as ladroeiras públicas
eram denunciadas pelos próprios funcionários desgostosos, por
políticos pedichões e não satisfeitos e pelos próprios
subornados. A venda cresceu sempre, mas com todos esses alvitres houve um
momento em que estacionou. Loberant encheu-se de temor, carregou mais nas
descomposturas, começou a implicar com o chefe de polícia; mas
nem assim subia. Uma frase equívoca que lhe saíra da pena, determinou
o aparecimento de um "apedido" no Jornal do Comércio, denunciando-o
como inimigo da colônia portuguesa, tanto assim que não tinha
um português na redação da sua gazeta. Foi Aires d’Ávila
quem leu o "apedido" e o mostrou ao diretor. Era hábito de
muitos anos, depois de ver o palpite do bicho correr os "apedidos"
dos jornais e lê-los atentamente. Ali, ele procurava caminho para as
"cavações", informava-se das reputações,
preparava os "ganchos". Loberant, quando teve notícia da
mofina, considerou bem a falta e pediu o alvitre do Floc.

– Conheces aí algum capaz? – Qual, não há! – Como poderíamos
arranjar um português para redator, dize lá? Anos mais tarde,
ele não teria dificuldades.

– Encomenda-se a Portugal.

E fui eu encarregado de levar o telegrama ao submarino. Não se tratava
já de um redator; pedia-se a uma livraria de Lisboa um redator e dois
correspondentes literários. Nos dias seguintes, era o seu primeiro
cuidado indagar se já tinha chegado a resposta. Veio afinal. Os correspondentes
já estavam arranjados, mas não havia quem quisesse vir. Iam
ver. Dias depois, ao abrir a correspondência, Leporace deu com a resposta
de Lisboa e correu alvissareiro para o diretor.

– Cá está ele… Está arranjado…

– O quê? – O redator português.

– Ahn! E leu o telegrama. Embarcaria no primeiro paquete. Era espirituoso,
entendido em coisas portuguesas e queria setecentos mil-réis fracos.
Aceitou e nesse sentido telegrafou para Lisboa. Quando voltei da Western,
Pranzini, o gerente, entrava na redação. Chegava com o sobrecenho
carregado e os olhos fuzilando indignados. Pranzini era o cão de fila
do diretor. O cofre e a economia do jornal estavam-lhe inteiramente entregues.
Ele pagava e recebia, depositava dinheiro, arbitrava os preços da matéria
paga. Todos estavam debaixo da sua tirania; precisavam adulá-lo, animá-lo,
e ele abusava extraordinariamente dos grandes poderes de que estava investido.
Ficava-lhe bem a função. Era cúpido, metódico,
organizado. No jornal, vivia sempre em mangas de camisa e a fieira dos botões
do colete não se afastava nunca do eixo do peito. A fisionomia era
larga e dura; grandes faces assimétricas, queixo forte e quadrado,
pouco distinto do maxilar, uma grande dificuldade em sorrir. Aquela inteligência
rudimentar de aldeão italiano tinha finuras de doutor da escolástica.
Certa vez furtou-se ao pagamento de uma comissão do anúncio
de uma casa, sob o pretexto de que a autorização falava em "Bal
Masqué" e o nome do estabelecimento era "Au Bal Masqué".
Murmurava-se no jornal que ele desviava um pouco as rendas do diretor, mas
dizia-se também que este não se importava porque assim indiretamente
pagava as doces intimidades com a mulher do italiano, uma pequena mulher,
coberta de um pêlo fino e abundante, de carnes duras e grandes ancas
provocadoras. Filha de um usuário vaidoso que vivia pelos corredores
do Paço a implorar um título nobiliárquico, conta-se
que, desflorada por um dos netos do Imperador, foi casada precipitadamente
com Pranzini, ex-croupier de casa de jogar, para salvar a reputação
da família e evitar um grande escândalo público. O antigo
croupier, graças ao dote, fez-se em breve cavalheiro da nossa alta
sociedade e, aos poucos insinuou-se nos jornais e foi chamado pelos entrelinhados
"nosso colega da imprensa". Logo que o gerente se aproximou do diretor,
este disse-lhe prontamente: – Sabes, Pranzini? Temos um homem… De Lisboa
chegou-nos a resposta.

– É bom… Vocês sabem, sem português, nada aqui vai
adiante. Os patrícios exigem, é justo: eles são talvez
trezentos mil, pagam rios de dinheiro em anúncios – é justo!
Depois tomando outro tom de voz falou assim ao diretor: – Tenho aqui este
vale para o senhor visar.

– Eu já disse a você que não é preciso…

– Não é isso. É que com este tive dúvidas. Tratava-se
de um artigo que não saiu assinado. Não parecia ser colaboração
e eu…

– De quem é o vale? – Do Veiga Filho.

– De que artigo? – Um sobre o Teixeira de Almeida.

– Mas o quê! exclamou o diretor. Pois se foi ele próprio que
pediu para escrevê-lo, dizendo-me que tinha sido colega de escola do
homem, como é que cobra?… Enfim deixa-me vê-lo.

O doutor considerou bem o pedaço de papel que tinha na mão,
abanou a cabeça e veio dizendo: – Esses literatos! Livra! Até
as lágrimas cobram.

Floc nada dissera. Evitava fazer qualquer crítica ao mestre incomparável
da nossa língua. Losque, tendo deixado de escrever, meteu-se na palestra.
Tinha a mania do "espírito"; mas não era propriamente
espírito que ele queria ter. A sua mania era ser um ironista, à
moda inglesa – um humorista. Fazia de si um retrato de Sterne, de Lamb, de
Swift; embora não soubesse uma linha de inglês filiava a sua
graça, o seu feitio de rir, no gênio britânico. Não
é que isso, de fato, houvesse nele; faltava-lhe na ironia o imprevisto,
o alcance moral e filosófico, aquela meditação por absurdo
que Taine achou em Swift. Ele tinha a graça fácil dos pequenos
autores e muitas das suas boutades tinham origem nos autores portugueses e
franceses de segunda ordem. Não era uma atitude de pensamento, um estado
d’alma constante, um julgamento sobre os homens e as coisas: era uma
profissão, um ganha-pão, que ele executava automaticamente.

Adaptável, sem rebeldia nem independência de caráter,
escrevia pilhérias como um amanuense faz ofícios. Nunca tinha
escrito obra de vulto, a não ser uma novela de calembourgs, em que
explorava esse velho filão do roceiro acanhado. Combinava a sua intensidade
pilhérica com a de escritor de estirados artigos sobre a crise do açúcar
e o policiamento da cidade. Era autor de várias revistas, com algumas
pilhérias novas e bem achadas. Sem ser moço, não era
velho e ia fazendo a sua carreira nos jornais com vagar e submissão,
tendo já uma vaga reputação no seio do público.
Sabendo da vida de todo o mundo, inventando mesmo, quando os dados lhe faltavam,
punha um grande esforço, uma nota de arte no cultivo da maledicência,
da "trepação". Diariamente estudava assuntos, organizava
pilhérias e logo que o momento se oferecia desandava. Viera disposto
nesse dia. Ao entrar, enquanto Leporace conversava na sala, pusera-se a escrever
a sua celebrada seção – "Pulgas e Brotoejas" – constantemente
cheia de alusões, de ditinhos, de versos aos políticos, em que
ele gastava uma certa dose de talento, já um tanto diminuído
pelo automatismo adquirido. Acabando de escrever a seção, procurou
um rodeio e dirigiu a conversa para o ponto que queria: – De fato este Rio
tem coisas bem singulares. Vocês conhecem a viúva Pais Brandão?
Nem todos responderam, mas Leporace que se gabava de conhecer toda a cidade
– as ruas, becos, segredos – acudiu prontamente: – Ora! Como não? Uma
loura de forte nariz romano, que anda sempre de preto? Ora, muito! – É
essa mesma. Mora num palácio na rua das Laranjeiras…

– Mas que tem ela? indagou Floc.

– É um caso curioso.

Leiva veio interromper a conversa. Há dias que ele estava no jornal,
fazendo polícia. Sabendo que eu me fizera contínuo, começou
a procurar-me e por aí foi travando relações, "engrossando"
habilmente, até que um dia entrou como repórter e começou
a gritar comigo para que eu lhe trouxesse penas. Losque continuou: – Passa
por séria, por ser um poço de virtudes. Ninguém se anima
a requestá-la. O rosto é de Messalina, mas a alma é de
Cornélia; entretanto…

Calou-se um pouco, suspendeu o auditório, para obter o efeito desejado.

– Mas é curioso, continuou devagar; é curioso que o seu egoísmo
familiar a tivesse levado tão longe.

– Por quê? perguntou alguém.

– Por quê!? Porque vive em mancebia com o sobrinho e com o filho.

Os circunstantes não se espantaram; sorriram incredulamente.

– Qual! fez um.

– Engraçado, aduziu sem ir de encontro à dúvida geral,
é que ela não pode suportar um só! Hão de ser
os dois, juntos, um do lado esquerdo e outro do lado direito… Disse-me a
Fulgência, que foi lá criada, que uma noite, não vindo
um deles, ela a passou toda na sala de jantar chorando e arrancando os cabelos.

– É um caso curioso de psicopatia sexual, falou Loberant. Em Londres,
há casos especiais quase em gênero semelhante; mas ao contrário:
é um homem para duas mulheres, parentas próximas, irmãs,
mãe e filha; mas como este não conhecia… Mas quem te informou,
Losque? – Uma rapariga que é minha criada, e foi da viúva. É
maravilhoso! Que revulsão na alma! Que móveis íntimos
a levaram a isso! Que forte ideal amoroso não encontrado foi esse que
a obrigou a arruinar dois rapazes para satisfazê-lo! Leporace então
observou: – Esta sociedade está muito corrupta.

Michaelowsky entrava e ainda ouviu as palavras do secretário. Parou
um instante, concertou os óculos de aros de ouro e exclamou com malícia:
– Oh! Catão! – Não sou Catão, mas o que há por
aí, pelos bastidores, causa espanto. A sociedade, ao que parece, despenha-se…

– Sempre houve quem dissesse isso, objetou o russo. Se examinares os satíricos
de todos os tempos, eles te revelarão a sociedade sempre corrupta e
desbocada… Eu julgo a moral impossível! – Por quê? – Porque
é feita para diminuir em nós o que é de mais estrutural
e de mais profundo: a individualidade, o prazer e os instintos! – Mas a sociedade
precisa repousar nela; senão… disse Leporace.

– Não há dúvida! – Então concordas que, em face
da própria sociedade, nós nos devemos esforçar por justificar
as regras morais, manter sempre de pé os seus preceitos.

– Mas se têm sido inúteis todos os esforços das religiões
– a força mais poderosa para uma modificação inteira
do indivíduo, como havemos de consegui-lo? Demais… demais, para quê?
– Para eternidade da espécie, falou com ênfase Leporace.

– Valeria a pena? retrucou Michaelowsky.

E todos se calaram sem achar de pronto uma resposta cabal.

X

Os meus primeiros conhecimentos foram-se paulatinamente afastando de mim.
Laje da Silva, desde que me vira de botas rotas e esfomeado, passara a cumprimentar-me
friamente, superiormente; Leiva tratava-me bem ainda, mas marcando distância,
desde que se fizera repórter; e o próprio Michaelowsky esquecera-se
da maneira que nos conhecêramos e tratava-me com a brandura que usava
com todos os inferiores. Só o Plínio Gravata, mais por sistema
do que por qualquer outra coisa, continuava a dispensar-me a consideração
de igual. Fora ele que me explicara a questão do empréstimo
da Prefeitura. Era verdade que o título não era bom; mas a questão
não girava só em torno disto. O pomo de discórdia residia
na comissão do lançamento do empréstimo, e sendo esta
avultada, perto de mil e tantos contos, permitia gordas gorjetas aos jornalistas
e políticos. O governo queria o corretor Machado, mas organizara-se
um sindicato no intuito de obtê-lo para o banqueiro Rodrigues. Aires
d’Ávila, ocultamente, fazia parte do partido de Rodrigues e o
dr. Ricardo, que já de há muito antipatizava com o Machado,
foi por ele convencido que devia combater com todas as forças a operação
projetada. Raro era o dia em que na folha não saíssem algumas
linhas tendentes a contrariar o lançamento do grande empréstimo
interno. Todos colaboraram para esse fim. Aires d’Ávila, sempre
na estacada, desovava argumentos no seu artigo diário, escrito num
estilo de exercício de classe; Michaelowsky escrevia os soltos, sueltos,
curtos, breves, mas fortes, cheios de injúrias, atrevidos; Floc, nas
suas esforçadas crônicas literárias ou teatrais, dava
alfinetadas; mas quem ia desmoralizando a operação era Losque
com as quadrinhas satíricas das "Brotoejas". A cidade inteira
sabia-as de cor e pelos bondes, nas confeitarias, nos cafés, nas escolas,
nas estancas, nas casas mal afamadas, por qualquer coisa se dizia o estribilho
com que elas acabavam: – "e dinheiro não virá". Se
alguém perdia no jogo e era jocoso, ao apostar segunda vez, dizia:
"e dinheiro não virá". Em conversa de família,
se qualquer pessoa queria referir-se ao gorado casamento rico de um desembargador,
que partira para Paris à caça de uma herdeira, comentava: ele
vai e… "o dinheiro não virá". Era bastante que em
qualquer momento, fosse como fosse, se encaixasse o estribilho, para se obter
um franco sucesso de riso.

A atitude do governo era curiosa. Às vezes ostentava-se forte, mandava
dizer pelos seus jornalistas que o lançaria pelo corretor que entendesse.
Os artigos rompiam, mostrando as vantagens da operação, mas
Loberant, ou alguém por ele, atirava no dia seguinte um artigo descompassado,
pesado de descomposturas, e os adversários esfriavam. Neles não
se raciocinava, não se ia adiante dos argumentos dos adversários.
Afirmava-se e insultava-se o contendor com alguns palavrões do calão
do Quinhentos ou de Seiscentos. E essas palavras ressuscitadas eram de efeito
seguro. A multidão guardava-as de cor, procurando-lhes a significação
e o sentido.

Nos "apedidos" do Jornal do Comércio, era interessante
o combate. Havia artigos sisudos, cheios de citações, Léon
Say, Leroy-Beaulieu, versos de Racine; havia epigramas, ligeiros e ágeis
que nem um torpedeiro, e venenosos que nem uma cascavel; o mais notável,
porém, eram as verrinas, alusões a vícios e maus hábitos
dos adversários. Causava pasmo o esforço de imaginação
despendido em se obter circunlóquios bastante claros para serem compreendidos
no seu verdadeiro sentido por toda a gente e bastante velados para não
haver impedimento na sua publicação. O diretor era alvejado
com encarniçamento; não se incomodava, mas nos artigos fingia-se
ferido, desgostoso. Aires d’Ávila recebia também um bom
quinhão. Veio até publicado um epitáfio seu, em verso,
terrivelmente sarcástico, que era atribuído a um poeta famoso
pela perfeição dos seus versos, pelo seu humor boêmio
e veia satírica. Dizia assim: P.R.

(A.A.) Quando ele se viu sozinho Da cova na escuridão, Surripiou
de mansinho Os bordados do caixão Apesar disso tudo, ambos se mantinham
inalteráveis e calmos. Aquilo era como um torneio de xadrez e eles
o estavam jogando calmamente a fumar um charuto. A população
é que vivia inquieta, ora pendendo para aqui, ora para ali, mas sempre
tendo em vista a opinião d’O Globo. Havia, porém, nesse
torneio um prêmio, um grande prêmio, de mil e tantos contos, dos
quais algumas dezenas iriam parar às algibeiras de Aires d’Ávila
e de Laje da Silva, cujas visitas ao ventrudo jornalista eram assíduas
e prolongadas. O antigo padeiro de Itaporanga continuava no seu semimistério,
mas sempre solícito, bem relacionado, procurando um e outro. Ultimamente
explorava uma casa de divertimentos na Lapa, "Folies Bergères",
onde se dizia haver jogo oculto. Não havia estréia de uma cantora
que não mandasse convites individuais para o pessoal de todos os jornais.
Ele sabia os nomes de um por um, desde a redação até
à administração, passando pelas oficinas, revisão
e expedição.

A batalha, entretanto, não se decidia. As duas hostes em luta não
ganhavam terreno. Um dia era da gente do prefeito; outro dia, era dos adversários.
Vinha um assassinato, um incêndio, havia uma trégua. O governo
temia um fracasso e esperava. Surgiu, porém, a questão dos sapatos
obrigatórios que precipitou os acontecimentos. É de pouco tempo
esse motim e muitos dos meus leitores ainda se recordam perfeitamente os acontecimentos.
Escrevendo agora estas páginas, eu tenho escrúpulos. Parece-me
que vou acusar o dr. Loberant de ter movido essa sangrenta arruaça
e ser culpado da morte de algumas dezenas de cidadãos nas barricadas
improvisadas. Não é o meu fito esse, pois estou bem certo de
que ele, como ninguém, não é capaz de medir e avaliar
as múltiplas reações que as nossas palavras podem operar
nos outros quando transmitidas. Seria ignóbil que eu o quisesse acusar.
Ele foi, por assim dizer, um benfeitor meu e todos menos eu podem fazê-lo
e têm esse direito que me escapa. Contudo, embora possam ser tomadas
nesse sentido as minhas palavras dirão fielmente o que vi e o que senti.

Nascera a questão dos sapatos obrigatórios de um projeto do
Conselho Municipal, que foi aprovado e sancionado, determinando que todos
os transeuntes da cidade, todos que saíssem à rua seriam obrigados
a vir calçados. Nós passávamos então por uma dessas
crises de elegância, que, de quando em quando, nos visita. Estávamos
fatigados da nossa mediania, do nosso relaxamento; a visão de Buenos
Aires, muito limpa, catita, elegante, provocava-nos e enchia-nos de loucos
desejos de igualá-la. Havia nisso uma grande questão de amor-próprio
nacional e um estulto desejo de não permitir que os estrangeiros, ao
voltarem, enchessem de críticas a nossa cidade e a nossa civilização.
Nós invejávamos Buenos Aires imbecilmente. Era como se um literato
tivesse inveja dos carros e dos cavalos de um banqueiro. Era o argumento apresentado
logo contra os adversários das leis sumptuárias que apareceram
pelo tempo: "A Argentina não nos devia vencer; o Rio de Janeiro
não podia continuar a ser uma estação de carvão,
enquanto Buenos Aires era uma verdadeira capital européia. Como é
que não tínhamos largas avenidas, passeios de carruagens, hotéis
de casaca, clubes de jogo?" Laje da Silva, farejando o que continha de
negociatas nos melhoramentos em projeto, propugnava-os com ardor. Nas suas
conversas na redação constantemente dizia: – Que são
dez ou vinte mil contos que o estado gaste! Em menos de cinco anos, só
com as visitas dos estrangeiros, esse capital é recuperado… Há
cidade no mundo com tantas belezas naturais como esta? Qual! Aires d’Ávila
chegou mesmo a escrever um artigo, mostrando a necessidade de ruas largas
para diminuir a prostituição e o crime e desenvolver a inteligência
nacional.

E os da frente, os cinco mil de cima, esforçavam-se por obter as
medidas legislativas favoráveis à transformação
da cidade e ao enriquecimento dos patrimônios respectivos com indenizações
fabulosas e especulações sobre terrenos. Os Haussmanns pululavam.
Projetavam-se avenidas; abriam-se nas plantas squares, delineavam-se palácios,
e, como complemento, queriam também uma população catita,
limpinha, elegante: cocheiros irrepreensíveis, engraxates de libré,
criadas louras, de olhos azuis, com o uniforme como se viam nos jornais de
moda da Inglaterra. Foi esse estado de espírito que ditou o famoso
projeto dos sapatos.

Ao ser apresentado, ninguém lhe deu importância, mesmo porque
dias antes houvera um crime sensacional que prolongara a atenção
da cidade.

Eu tinha feito o serviço de dia e ia sair. Seriam cinco para as seis
horas, quando o Lemos, repórter de polícia, entrou ofegante
e deslumbrado. Chegou e falou o secretário, nervoso de contentamento,
com a palavra entrecortada, oprimido de felicidade: – Um crime! Um grande
crime! – Onde? – Em Santa Cruz, nos campos de S. Marcos… Uma mulher e um
homem foram encontrados mortos a facadas e decapitados… Vestiam com luxo…
Parecem pessoas de tratamento… Um mistério! Todos os circunstantes
ouviram estuporados a breve narração do repórter. Depois
de um curto silêncio, choveram as perguntas. Lemos nada sabia; recebera
a notícia de Teixeira que estivera na polícia, onde pouco mais
sabiam. A notícia viera de Santa Cruz pelo telégrafo… Leporace,
que raramente saía de sua natureza de celentério, p&ocircocirc;s-se
nervoso e começou a dar as providências, a regular o caso: –
Já um boletim… Já! E logo rapidamente, Adelermo começou
a traçar em letras garrafais a notícia que o Lemos trouxera.
Eu fui pregá-lo à porta; da sacada, Leporace avaliava o efeito.
O primeiro curioso que passou, parou e quedou-se a ler. Vieram outros e em
breve uma multidão estacionava em frente do jornal. A notícia
espalhou-se rapidamente, com uma rapidez de telégrafo, com essa rapidez
peculiar às notícias sensacionais que nas grandes cidades se
transmitem de homem a homem quase com a velocidade espantosa da eletricidade.
O doutor Loberant entrou, atravessando a custo por entre a multidão.
Tinha ouvido qualquer coisa e correu ao jornal. Que houve? perguntou. Contaram-lhe.
A sua fisionomia abriu-se risonha, sorridente e feliz. Ia vender mais mil
ou dois mil exemplares. Chegou à janela e viu a multidão crescer
sempre. Veio até à sala da redação e perguntou
com império: – Quem está fazendo a "cabeça"?
"Cabeça" se chama nos jornais às considerações
que precedem uma notícia. Feita com a moral de Simão de Nântua
e a leitura dos folhetins policiais, a "cabeça" é
a pedra de toque da inteligência dos pequenos repórteres e dos
redatores anônimos. No Despacho havia um especialista nesse gênero
jornalístico que era tido por gênio.

– Não há como o Matoso! Que felicidade! Que rapidez! Escreve
trinta tiras em uma hora! diziam os colegas.

Isto lhe valia uma fama e um conceito, entre os seus, superior à
que o Conselheiro Rui Barbosa goza em todo o Brasil. É preciso saber-se
que as tiras no jornal são menores e levam menos palavras que as redigidas
por qualquer pessoa não afeita ao ofício. São escritas
com grandes intervalos entre as linhas e grandes espaços entre as palavras,
para facilitar a composição.

Demais eram as banalidades, os conceitos familiares sobre o crime e os criminosos
que ele desenvolvia com a convicção de quem estivesse fazendo
um estudo profundamente psicológico e social. Oh! A vaidade dos desconhecidos
da imprensa é imensa! Todos eles se julgam com funções
excepcionais, proprietários da arte de escrever, acima de todo o mundo.
Não reconhecem que são como um empregado qualquer, funcionando
automaticamente, burocraticamente, e que uma notícia é feita
com chavões, chavões tão evidentes como os da redação
oficial. Quase todos os repórteres e burocratas dos jornais desprezam
a literatura e os literatos. Não os grandes nomes vitoriosos que ele
veneram e cumulam de elogios; mas os pequenos, os que principiam. Estranha
ignorância de quem, por intermédio dos artigos dos que sabem,
copia os processos dos romancistas, as frases dos poetas e deturpa os conceitos
dos historiadores, imitando-lhes o estilo com uma habilidade simiesca…

Leporace, apanhado em falta, respondeu timidamente, ao diretor: – Ninguém.

– Pois já deviam ter pensado nisso… Vá, "seu"
Adelermo, faça a "cabeça"; e o senhor, "seu"
Lemos, já para Santa Cruz! – Só há trem daqui a uma hora
e com certeza não apanho o que volta de lá às sete e
quarenta e cinco…

– Não faz mal. Vá, durma lá, telegrafe… Passe na
caixa e diga ao Pranzini que lhe dê duzentos mil-réis…

O diretor retirou-se e Adelermo começou a escrever.

– Qual será o título? fez ele suspendendo a pena.

– "Crime no Pampa", gritou o Oliveira.

Oliveira, Carlos Oliveira, era da Bahia. Maneiroso, mesureiro, captara a
amizade e o compadresco do diretor, de Aires d’Ávila e Losque;
fizera-se grande influência no jornal, no qual já colocara dois
redatores, Adelermo e Losque, e muitos repórteres. Ganhava como redator
importante; mas o seu serviço era trazer notícias da Estrada
de Ferro e dos Telégrafos. Na redação, limitava-se a
escrever: "Foram concedidos passes aos telegrafistas F. e S., a linha
de Vista Alegre, 9o distrito, está interrompida, devido, etc.";
na rua, porém, entre os auxiliares de escrita e os diretores, fazia
constar que escrevia artigos e crônicas. Vendia a sua pomada.

Adelermo Caxias não compreendeu bem o título de Oliveira e
perguntou: – Por que pampa? – Pampa, não é campo? Caxias, apesar
da justificativa, não o quis e perguntou a outro: – Qual deve ser,
Floc? – "Bucolismo e tragédia"? – Qual! É erudito…

– "Ciúme e crime".

– Por que ciúme? Por fim, chegou Leporace e lembrou um título
rocambolesco, sonoramente popular; "Descampado da morte". Boa idéia!
– gritaram todos; e Adelermo pôs-se a escrever.

A calma voltou um instante à redação, mas foi logo
interrompida pelo tilintar do telefone. Lemos, que estava na polícia,
mandava dizer que se tinha encontrado um chapéu de palha, quase junto
aos cadáveres. A multidão, em frente ao jornal, aumentava sempre.
Muitos subiam pedindo informações. A curiosidade era geral;
o crime impressionara a população. Por essa estranha e misteriosa
faculdade das multidões, aquele caso, vulgar um mês antes ou
depois, naquele dia tomou a proporção de um acontecimento, de
um fato pouco comum. Para atender à impaciência da massa, constantemente
se telefonava para a polícia. A resposta era a mesma; não havia
notícias. O diretor, por detrás da veneziana semicerrada, espreitava
o poviléu embaixo. Os repórteres chegaram trazendo para a redação
a ansiedade das ruas, a emoção dos cafés – toda a imprevista
vibração da cidade em face daquele fato de polícia quase
banal.

Cá do outro lado da sala de redação, sentíamos
que o "doutor" ouvia todas aquelas notícias com interesse.
Havia estalidos na cadeira, tênues ruídos de movimentos de atenção.
Houve um momento em que não se conteve. Veio até a sala geral,
inquirindo este, perguntando àquele; e certo da superexcitação
do público, da extensão que a notícia tinha alcançado
na cidade, da intensa curiosidade que dominava toda a gente e ainda mais que
o Jornal do Brasil punha, de quando em quando, um boletim – determinou que
o Adelermo inventasse qualquer coisa, indícios, depoimentos, quaisquer
informações. E fez isso em altas vozes, congestionando, meio
zangado e meio contente, expectorando injúrias contra o rival.

Adelermo era a imaginação do jornal. Nascera no Maranhão
e escrevia regularmente. Apesar de nunca se ter feito notar por uma associação
mais original de idéias, no jornal era imaginoso porque nascera no
Norte e tinha uma boa dose de sangue negro nas veias. As generalizações
dos jornais são infalíveis…

Mas… Adelermo era a imaginação do jornal, e em seus ombros
recaía todo o peso da necessidade de informações imediatas
ao público quando os documentos faltavam ou eram omissos.

Se havia um atentado anarquista ou um terremoto na Europa e o telegrama
era por demais conciso, Adelermo tinha o encargo de desenvolvê-lo, de
explicá-lo, de reconstruir a cena para o gosto público. Às
vezes, pediam-se-lhe mais detalhes; o diretor queria a descrição
do complot, a cena da "sorte", à lôbrega luz de uma
mansarda. Adelermo era obediente e fazia. Intimamente desgostava-se com aquele
papel de mentiroso; mas temia ser despedido, posto na rua. Era esse o grande
terror de todos. Não eram os ordenados, não era a miséria
que os apavorava; temiam não encontrar outro lugar nos jornais e perderem
por isso a importância, a honra suprema de pertencer ao jornalismo.
Eles não valiam por si; o jornal é que lhes dava brilho.

Nas invenções de Adelermo, quase sempre se passavam coisas
fantásticas e curiosas.

Havia então complicações de topografia, ruas metidas
umas nas outras; mas o terremoto, que a potente imaginação de
Adelermo levava às grandes cidades da Europa, passava completamente
desapercebido ao público e ninguém, dias depois, se lembrava
de cotejar as notícias dadas pelo O Globo com as que vinham nos jornais
da Europa.

Caxias não se deteve; pôs-se logo a escrever. Ele não
conhecia a região; nunca passara de São Francisco Xavier e fora
uma vez acompanhar um figurão argentino a Belo Horizonte em serviço
de reportagem, num rápido. Para os lados de Santa Cruz, nunca tinha
ido, não sabia coisa alguma da situação da localidade,
da sua posição relativa às outras estações.
Tendo tido notícia que os empregados da Estrada não se lembravam
de ter visto desembarcar na estação um par nas condições
do assassinado, concluiu que o casal tinha ido a pé até Cascadura
– estação que lhe parecia ser muito próxima do tradicional
curato.

O boletim ia ser posto, quando alguém mais bem informado objetou:
– Cascadura! Não é possível, Adelermo? Fica léguas
distante de Santa Cruz.

– Então de onde podia ser? Eles foram a pé da estação
mais próxima… Isso não há dúvida! Qual a estação
mais próxima que conheces? O outro fez um grande esforço de
memória, esteve uns instantes a pensar, e disse por fim: – Há
Realengo… Depois… Depois… Campo Grande! Devia ser Campo Grande! Imediatamente,
sem que de todo ficasse apagada a palavra Cascadura, Caxias emendou e o novo
boletim foi pregado.

A rua encheu-se ainda mais. Havia gente de toda a sorte: velhos, moços,
burgueses, operários, senhoras – gente de todas as idades e condições.
Os que ficavam mais distante, no passeio fronteiro, para ver melhor, punham-se
nos bicos dos pés, cheios de ansiedade. Quando subi a escada, voltei-me
um instante e vi aquela centena de pessoas, com as pálpebras arregaladas,
o pescoço erguido, esforçando-se por ler aquele carapetão
formidável, forjicado naquela fábrica de carapetões que
se chama o jornal.

A redação recebera uma visita. Era a Viscondessa de Varennes,
que conversava com Floc. Os dois estavam no período de namoro; ela,
retirando todo o proveito, em notícias, péssimos sonetos publicados
na primeira página; ele, oleoso, gastando os seus melhores mimos e
alguns mil-réis de sua algibeira econômica.

– Oh! Sr. dr. Cunha! dizia ela. Que coisa! Como isto está! Que malvadez!
Eu vinha rindo, quando li… Fiquei apavorada!… Não sei. Meu Deus!
Quando vejo isso até tenho medo de viver…

Leporace passou e deitou sobre a poetisa um olhar cheio de desejos. Os enormes
olhos de boi da poetisa voltaram um instante para o Secretário que
se desfez em cortesias. A Viscondessa estava em relações com
todos os redatores e repórteres e todos eles esperavam cedo ou tarde
tê-la uma noite nos braços.

Com a sua finura de profissional do Amor, ela bem percebia a fome que todos
aqueles homens tinham do seu corpo fatigado. Não desanimava a nenhum,
recebia homenagens, sorria com o seu longo sorriso, contraindo as grandes
massas carminadas, abanava-se um instante com o leque, ajeitava a saia de
sêda de modo a lhe desenhar melhor as pernas e pedia favores: uma referência,
uma notícia, a publicação de um soneto, de um conto.
Assim se valorizava. Os únicos da gazeta que não a queriam absolutamente,
eram o diretor e Michaelowsky. Este quando a ouviu tão temerosa, prorrompeu
bruscamente com a sua voz metálica.

– Ora, minha senhora! Nós todos somos criminosos… A senhora também
o é! – Eu, dr.! – Sim! A senhora para viver tirou a vida de muita gente;
para ter esse vestido, esses laçarotes, tira a de muitos outros…
A nossa vida só se desenvolve com grandes violências sobre as
coisas, sobre os animais e sobre os semelhantes…

– Mas dessas não o sabemos! – Talvez não seja tanto assim…

A viscondessa estendeu a mão ao viçoso Floc, abarcou com o
olhar a sala toda e saiu arrastando o corpo pequeno e pesado.

Caxias continuava no seu serviço dos boletins periódicos.
Alguns jornais da tarde deram uma segunda edição. O Globo, porém,
com os seus cartazes contínuos, distraía os compradores. Nos
portais, já não havia mais lugar. Os boletins iam de cima a
baixo; alguns já cobriam os outros. O povo continuava aglomerado. Escurecia.
Houve alguém que acendeu um fósforo para ler melhor. O doutor
Ricardo, que viera de jantar, vendo o gesto do popular, mandou que o foco
elétrico da fachada fosse aceso.

Nos outros jornais, que tinham também afixado boletins, logo o imitaram;
e a rua do Ouvidor, àquela hora da tarde excepcionalmente transitada
e iluminada, surgiu como num dia de festa. Todo o jornal convergia para o
crime. Mandou-se retirar uma grande parte da matéria, sair o lindo
artigo da festejada colaboradora Pilar de Giralda, uma velha senhora das salas
burguesas de Botafogo e Petrópolis, que dera em escrever, depois de
avó, uns contos colegialmente eróticos ou uns artigos com pretensões
a propagar a emancipação da mulher e o divórcio. Saiu
também o folhetim do jovem Deodoro Ramalho, um discípulo de
Veiga Filho, autor de uns contos pastosos, pejados de frases redondas, redondinhas,
que escapavam quase diariamente pelas colunas d’O Globo, com a mole
resistência da massa de tinta que sai de uma bisnaga.

O seu folhetim tinha sempre pretensão à graça, a coisa
ligeira e leve, sem deixar de ser intelectual; além do folhetim semanal,
escrevia também um conto aos domingos, histórias juvenis de
namoros burgueses e casamentos de bacharéis e doutores. Era de uma
fecundidade de parvo. Não havia tolice que lhe passasse pela cabeça,
que não escrevesse. Mas tinha admiradores: sua noiva, os futuros sogros,
alguns colegas de escola e meia dúzia de meninas da rua dos Voluntários.

O dr. Ricardo respeitava a sua literatura por sabê-lo com distinção
em Matéria Médica, no que ele encontrava grande competência
para o valor literário de suas produções. Demais, as
suas relações, o rigor colegial da sua vida, os seus olhos azuis,
tinham-lhe valido a respeitosa consideração de todos os repórteres,
redatores e colaboradores.

Raul Gusmão, com aquela covardia moral que o caracterizava, logo
que o soube tão relacionado nas Laranjeiras, com influência entre
os colegas, falando familiarmente com deputados e senadores – gente influente
para a glória e tudo o mais – começou a elogiá-lo pelo
seu jornal. O Binóculo não cessava de acusar-lhe a passagem
pela rua do Ouvidor: o doutor Deodoro Ramalho, o fino conteur de O Globo.
E ele, por sua vez, ecoava no jornal de Loberant: "O nosso amigo Florêncio
Silva, cujo temperamento tumultuário foi um belo espetáculo
para a geração atual, acaba, etc., etc." E assim se foi
fazendo uma celebridade, homem notável, admirado nos salões
e houve (ele disse uma vez na redação) uma moça que o
achou de qualquer modo parecido com o Pierre Weber, no estilo e na fisionomia.
Ele perguntou então ao Floc quem era esse tal Weber.

– Oh! Não conheces?! É uma celebridade ultraparisiense, "parisianíssima"…
Só lá pode haver destas… Nada de calhamaços, de coisas
pantafaçudas e solenes; ligeirezas, garleseries, um quase tudo e um
quase nada, como disse alguém… É dos cinco reis do espírito
francês atual: ele, o Tristan Bernard, o Courteline, o Alphonse Allais…
Nunca leste – Vous m’en direz tant – dele e do Tristan Bernard? – Nunca.

– Pois é preciso… Vocês levam-se voltados para o calhamaço,
têm a mania livresca, e não conhecem a verdadeira literatura
francesa… É o papá Flaubert e o vovô Hugo…

E, durante todo o seu curso, o jovem Deodoro Ramalho desovou contos, artigos,
folhetins e tirou dezenas de distinções na Faculdade de Medicina.
Na escola, as distinções vinham-lhe do seu prestígio
de jornalista; no jornal, a sua superioridade partia das suas distinções
na escola.

No dia do crime, porém, o diretor não poupou o seu folhetim
engraçadíssimo. Ordenou que não saísse, pois queria
página e meia sobre o crime; que se inventasse, que se dessem os menores
pormenores, as suspeitas mais desarrozoadas; que se fizesse o histórico
de Santa Cruz e da E. de Ferro Central do Brasil. Fosse com que fosse, ele
queria página e meia e vinte e cinco mil exemplares para venda avulsa.

Dividido o serviço, cada um dos repórteres e redatores ficou
encarregado de uma parte das muitas em que se dividiu a notícia do
crime sensacional. A primeira página, a página sagrada dos conselhos
sisudos do austero Aires d’Ávila, da alta literatura do Veiga
Filho, do ciciar amoroso da velha Pilar, foi literalmente cheia com o histórico
de Santa Cruz (coluna e meia), a "cabeça" de Caxias, os retratos
de D. João VI, da rainha Dona Carlota, de D. Pedro I, de José
Bonifácio, do Visconde de Cairu. Os cadáveres vinham descritos
com muita minúcia e larga fantasia e não se esqueceram de informar
também que junto a eles havia fragmentos de "grés",
granito em decomposição, segundo a petrografia jornalística.

Os dicionários, os manuais, os indicadores de toda a sorte, andavam
de mão em mão. A redação trabalhava sofregamente,
quando veio interrompê-la o jovem doutor Franco de Andrade, grande prêmio
da Faculdade da Bahia, literato, tenista e clínico ao mesmo tempo.
Viera na comitiva de um ministro baiano e já possuía quatro
empregos. Além de lente substituto, era médico do Hospício,
legista da Polícia e subdiretor da Saúde Pública. Escrevera
um volume de poesias místicas e espalhava nas aulas o mais vulgar materialismo.
Era idealista em verso; em prosa, positivista. Com isso, era duro de umas
maneiras delicadas, de uma amabilidade que cativava as redações
em peso. Penetrou na sala sorridente, dizendo uma pilhéria a um, fazendo
uma pergunta a outro. Alguém perguntou a sua valiosa opinião
sobre o crime; o extraordinário sábio não se fez de rogado:
– Penso que o exame médico-legal não se deve limitar a uma simples
autópsia… Convinha que se fizesse mais amplo… A exemplo do que
se procede na Índia, onde a confusão de raças é
imensa e, portanto, a raça é um bom dado para identificar, seria
bom que se fizessem mensurações antropológicas…

– Sem a cabeça, é possível doutor? perguntou Losque.

– Perfeitamente.

E o grande prêmio da Bahia, alternativamente Maeterlinck, Charcot
e Legrand du Saule, uns ares doutorais como convinha, e continuou: – O professor
Broca indicava trinta e quatro mensurações de primeira ordem;
Topinard era de opinião que havia dezoito necessárias e quinze
facultativas; mas Quetelet, na sua Anthropométrie, exige quarenta e
duas.

A redação estava embasbacada. Todos deixaram de escrever para
ouvir o sábio moço. O jovem medalhado passeou um instante pela
sala o seu imenso olhar cheio de apetites e ambições, e emendou:
– Dessas, muitas são tomadas nos membros e no tronco: o talhe, a bacia,
o fêmur, etc., etc. Demais, ainda se têm outros dados auxiliares:
a seção dos cabelos, o exame microscópico do pigmento…
Um operador hábil pode com tais meios indicar perfeitamente a raça
e a sub-raça do indivíduo…

No dia seguinte, o jornal desenvolvia os conselhos do jovem e notável
dr. Franco de Andrade; e a medida era tão sábia que, no mesmo
dia, o chefe de polícia escalava-o para fazer o serviço médico-legal,
exigindo-lhe o estudo antropológico dos cadáveres.

Não lhe foi difícil fazê-lo. Vinte e quatro horas depois
o laudo estava publicado e o O Globo desfazia-se em elogios ao notável
trabalho científico do dr. Franco de Andrade, "um moço,
desta nossa forte geração moderna, que sabe aliar o saber e
a simplicidade." E como se o valente órgão tivesse falado
no interior de uma abóbada, todos os outros jornais, neutros, governistas,
oposicionistas, lhe repetiram as frases e os gabos ao talento do dr. Franco.

O crime ficou sendo a grande preocupação pública durante
os sete dias que se seguiram. O laudo do doutor Franco concluía que
o homem era mulato, muito adiantado é verdade, um quarterão,
mas ainda com grandes sinais antropológicos da raça negra. As
testemunhas, porém, entre elas o chefe e os condutores dos trens, não
se lembravam de ter transportado nenhum par em tais condições.
Só um dentista, político na localidade, depusera ter cruzado
na estrada com um casal nas condições indicadas pelo laudo do
dr. Franco. As indagações continuavam e o crime sacudia a cidade.
A sua brutalidade e o seu mistério como que continham ameaças
a todos: além do que estava envolvido numa atmosfera de amor, de amor
proibido, embalsamada de luxo, de elegância e mocidade, que abalava
e preocupava todas as imaginações.

Durante a semana o dr. Ricardo não se esqueceu um só dia de
indagar como ia a venda. A tensão da opinião era grande e aumentava.
Não se falava em outra coisa nas casas, nos bondes, nas repartições.
Os jornais superexcitavam-na mais, inventando detalhes, fazendo suposições,
indicando pistas. Adelermo não cessava de imaginar: foi o rei do jornal
naqueles dias, com grande inveja de Floc.

– Oh! Como você tem imaginação! dizia ele com amargura.

Às vezes, fora de todo o propósito, fingia desdenhar a faculdade
primordial de Adelermo, tachando-a de qualidade inferior. Não bastando
este, veio também com a sua ênfase Veiga Filho, que ganhou algumas
centenas de mil-réis…

Passaram oito dias e nada se adiantava. Um acaso permitiu a identificação
dos assassinados. Um dono de hotel, tendo um dos seus quartos ocupados por
um casal que não aparecia, desconfiou que tivesse sido ele o assassinado.
Foi à polícia, as autoridades arrombaram as portas e as malas.
Numa delas, encontraram uma carteira de identificação, passada
pela polícia de Buenos Aires. Um sargento teve a idéia de confrontar
a ficha dactiloscópica com a do cadáver do homem; e descobriu-se
que o morto era o cidadão italiano Pascoal Martinelli, estabelecido
com fábrica de massas na capital portenha, que partira para a Europa
com a mulher, tencionando demorar-se uns dias no Rio de Janeiro. Um dia antes
dessa elucidação, o dr. Franco de Andrade era nomeado diretor
do serviço médico-legal da Polícia do Distrito Federal.

XI

Durante todo esse tempo, residi em uma casa de cômodos na altura do
Rio Comprido. Era longe, mas escolhera-a por ser barato o aluguel. Ficava
a casa numa eminência, a cavaleiro da rua Malvino Reis e, atualmente,
os dois andares do antigo palacete que ela fora, estavam divididos em duas
ou três dezenas de quartos, onde moravam mais de cinqüenta pessoas.

O jardim, de que ainda restavam alguns gramados amarelecidos, servia de
coradouro. Da chácara toda, só ficaram as altas árvores,
testemunhas da grandeza passada e que davam, sem fadiga nem simpatia, sombra
às lavadeiras, cocheiros e criados, como antes o fizeram aos ricaços
que ali tinham habitado. Guardavam o portão duas esguias palmeiras
que marcavam o ritmo do canto de saudades que a velha casa suspirava; e era
de ver, pelo estio, a resignação de uma velha e nodosa mangueira,
furiosamente atacada pela varia pequenada a disputar-lhe os grandes frutos,
que alguns anos atrás bastavam de sobra para os antigos proprietários.

Houve noites em que como que ouvi aquelas paredes falarem, recordando o
fausto sossegado que tinham presenciado, os cuidados que tinham merecido e
os quadros e retratos veneráveis que tinham suportado por tantos anos.
Lembrar-se-iam certamente dos lindos dias de festa, dos casamentos, dos aniversários,
dos batizados, em que pares bem-postos dançavam entre elas os lanceiros
e uma veloz valsa à francesa.

À noite, quando entravam aqueles cocheiros de grandes pés,
aqueles carregadores suados, o soalho gemia, gemia particularmente, dolorosamente,
angustiadamente… Que saudades não havia nesses gemidos dos breves
pés das meninas quebradiças que o tinham palmilhado tanto tempo!
A casa pertencera talvez a um oficial de marinha, um chefe de esquadra. Havia
ainda no teto do salão principal um Netuno com todos os atributos.
O salão estava dividido ao meio por um tabique; os cavalos-marinhos
e uma parte da concha ficaram de um lado e o Deus do outro, com um pedaço
do tridente, cercado de tritões e nereidas.

Num cômodo (em alguns) moravam às vezes famílias inteiras
e eu tive ali ocasião de observar de que maneira forte a miséria
prende solidamente os homens.

De longe, parece que toda essa gente pobre, que vemos por aí, vive
separada, afastada pelas nacionalidades ou pela cor; no palacete, todos se
misturavam e se confundiam. Talvez não se amassem, mas viviam juntos,
trocando presentes, protegendo-se, prestando-se mútuos serviços.
Bastava que surgisse uma desinteligência para que os tratamentos desprezíveis
estalassem de parte a parte.

Certo, quando assistia a tais cenas, não ficava contente, mas também
não sabia refletir por aquele tempo, que, seja entre que homens for,
desde que surjam desinteligências, logo rompem os tratamentos desprezíveis
mais à mão.

Vi aí, na casa do Rio Comprido, os mais disparatados casos; e, pela
manhã, aos domingos, quando me debruçava à janela, olhava
brincando no terreiro uma pequenada em que se misturava o sangue de muitas
partes do mundo. Em nenhum deles havia o gárrulo e a inocência
dos meninos ricos; quando não eram humildes e tristes, eram irritáveis.
Facilmente surgia uma rixa entre eles e o choro passava do contendor vencido
a ser geral entre todos, com os castigos infligidos pelas mães aos
culpados e não-culpados.

Admirava-me que essa gente pudesse viver, lutando contra a fome, contra
a moléstia e contra a civilização; que tivesse energia
para viver cercada de tantos males, de tantas privações e dificuldades.
Não sei que estranha tenacidade a leva a viver e por que essa tenacidade
é tanto mais forte quanto mais humilde e miserável. Vivia na
casa uma rapariga preta que suportava dias inteiros de fome, mal vivendo do
que lhe dava uma miserável prostituição; entretanto à
menor dor de dentes chorava, temendo que a morte estivesse próxima.

Quando refletia assim, era tarde e, da janela do meu quarto, eu via bem
a cortina de montanhas desde Santa Teresa ao Andaraí. O sol descambara
de todo e a garganta da Tijuca estava cheia de nuvens douradas. Um pedaço
do céu era violeta, um outro azul e havia mesmo uma parte em que o
matiz era puramente verde.

Olhei aquelas encostas cobertas de árvores, de florestas que quase
desciam por elas abaixo até às ruas da cidade cortadas de bondes
elétricos. Quantas flores já as cobriram – quantas formas já
as não tinham pisado! Depois que a civilização viera,
quantas vezes elas não tinham sido despovoadas, e perdido o seu tapete
de verdura?! E pelos séculos, apesar dos cataclismos, das revoluções
geológicas, da ação do homem, nem uma só vez aquela
terra deixara de fazer surgir plenamente, com as ramagens das árvores
e com as plumagens do passaredo, a energia vital que estava nas suas entranhas!
A minha vida passava-se um pouco à parte naquele grande casarão.
Cumprimentava a todos, mas pouco falava. Só a minha lavadeira mantinha
relações comigo, e era por ela que eu sabia da vida daquele
vasto cortiço.

Era uma velha mulata, já muito feia e de fisionomia desfeita. De
gênio folgazão, e comunicativo, gostava de conversar, considerando
com ceticismo especial as coisas da vida, as suas variações.
– Já fora gente, dizia, hoje… – Assim é a vida, continuava,
a noite vem depois do dia, isto para uns como eu. Para outros, é o
contrário, o dia vem depois da noite. Não viu a Maria, exemplificava,
em sua voz preguiçosa enquanto eu conferia a roupa. Não conheceu?
Respondia-lhe que não; ela então explicava: aquela rapariga
clara casada, que morava num quarto lá em baixo. Eu insistia que não,
e a velha mulher retorquia – não vem ao caso – e continuava – O marido
dera em beber, e em maltratá-la. Uma noite, voltando muito bêbado
da rua, espancou-a. Foi para a Misericórdia e lá encontrou alguém,
um doutor, não sei, que se enfeitiçou por ela… Hoje, menino,
anda num estadão! Xi! É assim: para uns, a noite vem depois
do dia, para outros é o contrário… E por fim acrescentava
com desgosto; eu também tive homem por mim; mas não soube aproveitar…
Quando ele morreu, as filhas quase me tiraram a roupa do corpo… Ah! Esta
vida!… Estão certos, os colarinhos? Então calava-se e ficava
olhando o chão, absorta em recordações e em saudades.
Eu então indagava: – Não teve filhos, D. Felismina? – Tive dois:
uma moça e um rapaz.

– Estão bem, não? – Um, o rapaz, morreu; e a moça…

– Está casada? – Não… Vive com um homem… Deu muitas cabeçadas…
Não foi ela… O senhor sabe: nós, quando não temos ninguém,
é isso…

E levantou-se, sacudindo a cabeça como querendo enxotar a mágoa
que a queria invadir…

Levantara-me muito cedo naquela manhã para ir ao jornal. Não
me competia o serviço diurno naquele dia; mas o redator português
chegava às dez horas e eu recebera ordem para ir recebê-lo no
cais. No jornal, o diretor é uma espécie de senhor feudal a
quem todos prestam vassalagem e juramento de inteira dependência: são
seus homens. As suas festas, são festas do feudo a que todos têm
obrigação de se associar; os seus ódios são ódios
de soberano, que devem ser compartilhados por todos os vassalos, vilões
ou não. A recepção do redator português era uma
festa sua e ele exigia esse aparato para que tivesse uma repercussão
favorável na grande colônia portuguesa. Todos tinham que ir.
E se bem que simples contínuo, o diretor exigia terminantemente a minha
presença, para mostrar aos outros periódicos rivais que no seu
não havia distinções vãs, "era uma tenda
de trabalho onde mourejavam irmãos".

É outra mentira dos jornais que logo senti.

Não há repartição, casa de negócio em
que a hierarquia seja mais ferozmente tirânica. O redator despreza o
repórter; o repórter, o revisor; este por sua vez, o tipógrafo,
o impressor, os caixeiros do balcão. A separação é
a mais nítida possível e o sentimento de superioridade, de uns
para os outros, é palpável, perfeitamente palpável. O
diretor é um Deus inacessível, caprichoso, espécie de
Tupã ou de Júpiter Tonante, cujo menor gesto faz todo o jornal
tremer. Para ciência dos povos, porém, aquilo é "uma
tenda de trabalho onde mourejam irmãos"; e por ser assim eu tive
que me levantar cedo e pedir na véspera um par de punhos a dona Felismina.
Ela entregou-mos, indagando: – Diga-me uma coisa "seu" Caminha:
há aí uma lei que obriga todos a andarem calçados? –
Há uma postura municipal.

– Mas é verdade isso mesmo? Pois então todos, todos? – Na
rua, é. Por que se assusta? – Dizem que as folhas falam nisso e que
até, contam aí, que quem tiver pé grande tem que sofrer
uma operação para diminuir os pés, como os chinas…
É verdade? – Qual! É balela! Quem lhe contou? Ao sair, ainda
ouvi que, pelos corredores, se discutia o assunto com calor, girando sempre
a conversa em torno daquela operação chinesa que o governo queria
impor à população.

No escritório já encontrei Floc, perfeitamente escanhoado,
a preparar a notícia da chegada do novo redator. Lia um período
alto e ouvi que descrevia o estado do mar e a agitação das pequenas
embarcações em torno do transatlântico. Nos jornais, os
artigos impressionistas são sempre feitos antes das impressões.

Premeditou-se certa ocasião uma corrida de automóveis que
foi mais tarde proibida pela polícia.

O filho de Aires d’Ávila, que fazia por esse tempo um curso
manhoso de direito e escrevia no grande jornal umas sensaborias, compôs
com antecedência uma descrição eloqüente da corrida.
Veio a proibição; mas o artigo saiu, sob o pretexto de que tinha
raros méritos literários! Floc escrevia nervosamente as impressões
que ia sentir no desembarque. Estava de costas e, de quando em quando, rasgava
uma ou duas das tiras escritas. Num dado momento, ergueu-se bruscamente, deixou
escapar uma exclamação desesperada, amarrotou todo o papel que
tinha escrito, e atirou-o com raiva à cesta. Depois de ter ido a janela,
voltou a escrever com os mesmos trejeitos, com as mesmas mostras de desespero,
que só desapareceu e se ocultou com a entrada do velho e esquálido
gramático Lobo.

O caturra vinha também de mau humor. Não raro isso acontecia
mas naquela manhã a tempestade interior parecia ser amedrontadora.
Vestia de preto, como habitualmente: uma velha sobrecasaca curta, desusada,
com as abas espapadas e grandes placas luzentes nas costas. Tinha um pescoço
de ave a sair de uns colarinhos muito baixos que a gravata cobria inteiramente.
Usava cabelo curto, óculos sem aros e possuía uma testa curta
com uma grande e constante ruga horizontal. Tinha curiosas manias. Se estava
de bom humor, traduzia de uma língua para outra os provérbios
e os anexins que surgissem na conversa. Era bastante alguém dizer:
"De grão em grão a galinha enche o papo", para ele
retorquir da sua mesa, abandonando a revisão gramatical: – Em francês:
"Petit à petit l’oiseau fait son nid", os ingleses,
porém, dizem…

Naquela manhã não parecia disposto ao seu sport favorito.
Entrou carrancudo, com a ruga mais acentuada, cumprimentou ligeiramente Floc,
e, já sentado, perguntou-lhe, olhando-o por cima dos óculos:
– Quem é este Sanches que escreveu este artigo sobre "Bancos emissores"?
– Não sei bem, disse Floc. Creio que é um advogado aí.

– Que ignorante! Pois esta besta não escreveu – um dos que foram
– isso se admite? Qual! Como é que saem batatas destas?! Estou desmoralizado…
Todos sabem que tenho aqui a responsabilidade da língua… Que dirá
o João Ribeiro? o Said Áli? o Fausto? E o Rui, que dirá?
Naturalmente vão acusar-me de ignorante… Vou dizer ao Ricardo que
preciso ver todos os originais, se não declarar publicamente que não
tenho responsabilidade com a gramática do O Globo. Não é
possível ser assim! Lobo gozava de uma grande ascendência sobre
o ânimo do diretor. Emendava-lhe os artigos e fora imposto ao jornal
por sua mulher, D. Inês, a quem o padre Bos, das Irmãs, recomendara
como sábio. N’O Globo todos lhe temiam o mau humor, por sabê-lo
influente e prestigiado, como sabichão em gramática, em geografia
e em línguas. Loberant não escondia o seu respeito. Para ele,
a mais alta expressão de cultura era falar inglês e Lobo sabia
pedir água na língua do grande império.

A gramática do velho professor era de miopia exagerada.

Não admitia equivalências, variantes: era um código
tirânico, uma espécie de colete de forças em que vestira
as suas pobres idéias e queria vestir as dos outros. Há três
ou cinco gramáticas portuguesas, porque há três ou cinco
opiniões sobre uma mesma matéria. Lobo organizara uma série
delas sobre as inúmeras dúvidas nas regras do nosso escrever
e o nosso falar e ai de quem discrepasse no jornal! Era emendado da primeira
vez, da segunda repreendido, da terceira podia ser até despedido, se
ele estivesse de mau humor.

Nos seus bons dias, tinha a mansuetude e os modos convincentes de um professor
de primeiras letras e recitava muitas vezes aos ouvidos do repórter
recalcitrante todas as regras do Sotero sobre o emprego do infinito pessoal,
chamando-o por filho, repetindo exemplo. Não admitia que se escrevesse
"vieram lhe chamar", se alguém o fizesse em dias de mau humor,
era certo ter de refazer de começo ao fim o seu trabalho.

Nem todos, porém, se sujeitavam à sua inspeção
gramatical; Floc, Leporace e Caxias eximiam-se e Michaelowsky amedrontara-o
com alguns berros e palavrões, quando o fiel gramático do jornal
quis corrigir o seu original.

O russo entrava naquele momento na redação. O paquete chegava
às onze horas e pouco faltava. Vendo-o entrar, Floc perguntou: – Não
vais, Michaelowsky? – A quê? – Ao desembarque do nosso redator.

O russo não lhe respondeu logo. Sentou-se, encolheu a cabeça
dentro do corpo como uma tartaruga, franziu a grande boca, depois retrucou:
– Eu! Eu vou lá a esses espetáculos… Isso é um baixo
"engrossamento"…

O diretor entrava e Michaelowsky não dissimulou a resposta. Loberant
sempre autoritário com todos, era de uma delicadeza excepcional com
o doutor pelo Cairo.

– Você é um esquisito, Michaelowsky – foi só o que ele
observou.

E saímos. Éramos um bando à frente do qual marchava
o dr. Ricardo, apressado, com as guias dos bigodes esfareladas ao vento e
as abas da sobrecasaca cinzenta a baterem como asas de uma grande ave sultanina.
Levava a bengala erguida e, com todos nós atrás, andando celeremente,
parecia um delegado em diligência ou um chefe eleitoral que vai perturbar
com capangas a eleição num colégio que lhe não
é favorável.

Fazia um sol inclemente – sol de dezembro pela manhã. No cais já
estavam a família do diretor, mulher e filhas pequenas, as filhas de
Aires d’Ávila, cuja beleza tinha gabos especiais nas conversas
dos cafés e confeitarias – a claque inteira do O Globo, o núcleo
que gerava e transmitia pela cidade o talento de Ávila, as qualidades
cívicas do doutor Ricardo e os dotes literários do jovem Julião
Bandeira, que lá estava com sua noiva e o seu passo de valsista impenitente.
Outros chegaram depois, Floc ficou entre as senhoras. As suas faces, os olhos,
a testa breve e até os longos bigodes pretos adquiriram uma radiação
especial; o próprio queixo aproximou-se do plano do peito e vim a conhecer
outro Floc, simpático, interessante, todo ele cativante e natural.

Inútil é dizer que fiquei de longe, sozinho, como sempre fiquei
nessas coisas e como parece ser meu destino ficar sempre. Dona Inês,
a mulher do doutor Ricardo, entretanto, deu-me bom dia e fez um "como
vais Isaías", bondoso e superior. Tinha-se na conta de ilustrada
e nobre. Era o oráculo literário e intelectual do marido. Julgava-se
ilustrada porque aprendera a recitar umas coisas das Irmãs de Botafogo
e pintar flores; nobre, porque tinha um irmão deputado e o seu pai
chicanara no interior do Brasil.

O cais estava agitado e concorrido. O Congresso estava a fechar-se, partia
um paquete para o Norte e os congressistas começavam a fugir. Os magnatas:
ministros, juízes, coronéis, ricaços, engrossadores com
as suas mulheres e filhas, encontravam-se ali em tocantes despedidas a amigos
das duas câmaras. A viscondessa de Varennes, a famosa Odalina, poetisa
de muito mérito e tão do gosto de Floc, viera também.
O doutor Ricardo afastou-se logo dela com a senhora; mas a fidalga insinuara-se
no grupo das filhas de Ávila e lá ficara a deitar os seus grandes
olhos de Juno para a massa masculina, brilhante e rica, que se apinhava no
cais. Chegou por último Aires d’Ávila, com a sua marcha
difícil, agitando a cabeça e balouçando os braços,
no intuito de mais depressa impelir o corpo de chumbo.

Chegavam carros, coupés e espalhavam-se pelo jardim, disputando a
escassa sombra das árvores, grupos de homens e senhoras. O pessoal
masculino era soberbo: a nata – senado, câmara, altos tribunais, grandes
patentes do exército e da marinha – cartolas reluzente e negras sobrecasacas
a enquadrar os dourados dos uniformes. Tudo vergado ao sol indiferente e forte.
As senhoras sentiam-se mal, envolvidas naquelas fartas ondas de luz e calor.
Os bosquetes de arbustos tinham uma despreocupação divina e
as grandes árvores nodosas davam uma escassa e compassiva sombra. As
lanchas do pessoal com bandeira em que se lia o título, não
tinham chegado. Eu esperava, afastado do grosso da claque, tímido diante
de tanta grandeza inabalável. Chegou um Ministro. Um movimento igual
fez todos voltarem-se para o lado em que ele vinha. A atitude foi instantânea
em cada homem e em cada mulher; era como se ao centro de uma porção
de limalha de ferro espalhada, se houvesse chegado um pequeno ímã.

O doutor Ricardo cumprimentou a alta autoridade e, a seu chamado, foi-lhe
falar. Além do Ministro, intermeteu-se uma nova personagem; um preto
velho, quase centenário, de fisionomia simiesca e meio cego.

Trazia na mão esquerda um caniço que distendia um arame de
pescaria; com a direita, auxiliado por uma varinha, vibrava dolentemente a
corda, enquanto balbuciava qualquer coisa. Ia de grupo em grupo, tangendo
o seu monocórdio extravagante. Cantava talvez uma ária de uma
extraordinária beleza, certamente só percebida por ele e feita
pela sua alma para a sua alma… Tocava e esperava a esmola. Em todas as fisionomias,
havia decerto piedade, comiseração, e mais alguma coisa que
não me foi dado perceber. Era constrangimento, era não sei o
quê…

O preto tinha os pés espalmados e, com a cecidez e a velhice, andava
de leve, sem quase tocar no chão, escorregava, deslizava – era como
uma sombra…

Sob aquele sol muito forte, à rebrilhante luz daquela manhã
de verão, por entre tanta gente rica e forte, aquele seu instrumento
infantil, a puerilidade da música, o seu aspecto de sombra juntavam-se
para dar um rebordo cortante à sua miséria e à sua fragilidade…
Ele, com a sua resignação e miséria, e o sol, com a sua
força e indiferença, tinham um certo acordo oculto, uma relação
entre si quase perfeita. O negro ia… Ia tocando já sem forças
a plangente música das recordações do adusto solo da
África, da vida fácil da música e do cativeiro semi-secular!
As lanchas aproximaram-se e embarcamos. O paquete ainda fumegava, rodeado
de lanchas e pequenas embarcações de remos. Logo ao entrar,
demos com o novo redator. As filhas de Aires d’Ávila cercaram-no.
Elas eram as figuras decorativas do jornal. Bonitas, como toda a moça
que sabe dispor dos seus atavios e vestidos, não faltavam a qualquer
festa do O Globo. Nos banquetes, nos piqueniques, nas soirées do diretor,
nos embarques e desembarques, lá estavam elas com as suas lindas toilettes,
irrepreensivelmente calçadas e enluvadas. Tinham uma emanação
luxuriante e uns grandes olhos inquietos, banhados de muita luz; as narinas
móveis aspiravam com ânsia todos os perfumes e exalações
e uma delas tinha o tic de morder os lábios. Era um gosto vê-las
por entre os homens, animadas, com grande satisfação nos olhos,
sorrindo para este, atendendo aquele, namorando. Amavam as grandes festas,
em lugares afastados, onde vai muita gente…

Cercaram logo o novo redator, estabeleceram a cordialidade entre ele e o
pessoal do jornal e ficaram junto dele, quando fomos à mesa tomar champagne.
O dr. Ricardo julgou do seu dever erguer um brinde; o novo redator respondeu:
– Me falece competência para falar de si, começou.

Lobo, que continuava de mau humor, não se conteve e exclamou do canto:
– Xi! Quanta asneira! O recém-chegado não se vexou e todos ficaram
calados de espanto diante da grosseria do velho gramático. Loberant
olhou-o severamente e Lobo suportou-lhe o olhar com coragem. O novo redator
continuou, insistindo na primeira frase, sem mais sequer olhar o pedagogo.

De volta, ainda se deu um incidente desagradável no cais. Dona Inês
e as filhas do diretor já iam longe, quando ele se aproximou de um
senhor de cartola. Lembrei-me que tinha sido aquele senhor que tinha chamado
o Ministro para embarcar, quando o dr. Ricardo conversava com o potentado.
Era deputado e o dr. Ricardo altercava com ele: – "Seu" patife!
"Seu" cáften! Então você pensa que eu preciso
de emprego?… Sou independente, tenho o meu jornal…

O outro respondia: – Apulcro de Castro! Canalha! Bêbedo! Não
se demoraram muito; em breve se atracaram e rolaram pela areia do jardim.
Ricardo saiu da luta deitando sangue pela boca e foi levado para um hotel
próximo. Veio o médico e eu fiquei a seu lado, dando-lhe a poção
de hora em hora.

Acalmou-se e pareceu dormir. Deixei-o só, mas voltei logo. Acordara
e, de bruços na borda da cama, com boca semicerrada, olhava fincadamente
o chão. Cismava na vida e considerava a terra. Animei-me: – Precisa
alguma coisa, doutor? – Preciso.

– O quê, doutor? E virou-se para o lado sem me responder…

XII

– O senhor é da redação? – Sim, senhor.

– Trago este volume de versos – Anelos – para oferecer ao jornal…

– Pode deixá-lo.

O poeta falava-me de pé, desconfiado e com longas interrogações
no olhar. Na sala, não havia ninguém da redação,
propriamente e quando me perguntou se eu o era, respondi-lhe afirmativamente,
por pura vaidade.

O rapaz não me entregou logo o livro. Manteve-o na mão, olhando
muitas vezes as coleções de jornais, os retratos nas paredes,
a sala toda como se procurasse guardar de cor aquele aspecto e familiarizar-se
inteiramente com ele.

– É o senhor o autor da obra? perguntei.

– Sou, pois não. O Sr. sabe: ninguém pode nunca estar certo
de ter ou não habilidade. Escreve-se os amigos gostam; mas, se não
se tem coragem para sujeitar um volume à crítica, fica-se sempre
na dúvida se é a simples amizade dos camaradas que louva as
nossas produções, ou se há mérito, de fato, nelas…
Sou muito moço, tenho vinte e dois anos, faço versos desde os
dezoito; agora, fiz uma escolha e publiquei este volume… Queria que os senhores
dissessem alguma coisa, que notassem os defeitos, para eu me corrigir, caso
fosse possível.

– Isso é com o crítico literário.

– Quem é? – É o Floc, não conhece? – Muito! Leio-o
sempre. Até tenho aqui uma opinião dele que achei muito acertada.
Creio que é do folhetim da semana passada…

O jovem poeta descansou o chapéu sobre uma mesa, puxou a carteira
e esteve a procurar entre os papéis o retalho de Floc, sempre perseguido
por um cacho de cabelos louros que teimava em lhe cobrir o olho direito. O
cacho caía, ele retirava-o com a mão; teimava em voltar, ele
sacudia a cabeça para levá-lo para cima, e assim custou a achar
o pequeno retângulo de papel, perdido entre uma porção
de cartas, cartões e versos de que estava pejada a carteira.

Encontrando-o não se demorou em lê-lo; tinha a secreta intenção
de me convencer do grande apreço em que tinha o talento do viçoso
Floc. Leu: – "Para mim, a verdadeira Arte é aquela que consorcia
o ideal com o real; é aquela que, não desprezando os elementos
representativos da realidade, sabe pelo ideal arrebatar as almas aos páramos
do incognoscível." Guardou a carteira com a valiosa opinião
e continuou já um tanto desembaraçado: – Concordo plenamente
com ele. Nos Anelos, se o Sr. ler, há de ver que sempre procurei não
me afastar desse ponto de vista… E acho que deve ser assim real e ideal,
junto é verdade, mas este espiritualizando aquele, dominando-o e vencendo-o…
Gosto imensamente do Senhor Floc; acho-o um crítico sagaz, ilustrado,
cujo julgamento sobre os meus versos, eu receberia com especial agrado…
O senhor falará a ele, não é? Prometi-lhe e o cândido
poeta Félix da Costa saiu satisfeito, apertando-me a mão demoradamente,
oferecendo-me a casa e os préstimos. Folheei um instante o livro; era
uma plaquette de cento e tantas páginas, povoadas de sonetos e outras
poesias soltas. Depositei-o sobre a mesa do Secretário. De antemão,
sabia que Floc não se deteria na sua leitura. Os livros nas redações
têm a mais desgraçada sorte se não são recomendados
e apadrinhados convenientemente. Ao receber-se um, lê-se-lhe o título
e o nome do autor. Se é de autor consagrado e da facção
do jornal, o crítico apressa-se em repetir aquelas frases vagas muito
bordadas, aqueles elogios em cliché que nada dizem da obra e dos seus
intuitos; se é de outro consagrado mas com antipatias na redação,
o cliché é outro, elogioso sempre mas não afetuoso nem
entusiástico. Há casos em que absolutamente não se diz
uma palavra do livro. Acontecia isso com três ou quatro autores. Um
destes era Raul Gusmão, a quem o diretor invejava o talento de escrever;
além dele, havia um grande poeta, respeitado em todo o Brasil, e um
outro moço que se rebelara contra a ditadura do jornal. Com os nomes
novos não havia hesitações; calava-se, ou dava-se uma
notícia anódina, "recebemos, etc.", quando não
se descompunha.

Aos olhos dos homens da imprensa, publicar um livro é uma ousadia
sem limites, uma temeridade e uma pretensão inqualificáveis
e dignas de castigo.

– Como é, disse certa vez Oliveira, que este sujeito publicou um
livro?… um desconhecido! Um idiota magro! Um tipo que nunca escreveu coisa
alguma…

Ele queria dar a entender como não tendo escrito coisa alguma, o
fato do rapaz não ter publicado artigos nos jornais ou feito mesmo
a reportagem dos Telégrafos. O pensamento comum dos empregados em jornais
é que eles formam o pensamento, e não só o formam, mas
"são a mais alta representação dele". Fora
deles, ninguém pode ter talento e escrever, e, por pensarem assim,
hostilizam a todos que não querem aderir à sua grei, impedem
com a sua crítica hostil o advento de talentos e obras, açambarcam
as livrarias, os teatros, as revista, desacreditando a nossa provável
capacidade de fazer alguma coisa digna com as suas obras ligeiras e mercantis.

Os mais hábeis daqueles que estão de fora, porém, quando
premeditam a infame ousadia de publicar, arranjam preliminarmente relações
de amizade nos jornais, de modo a obter um bom acolhimento para o seu trabalho.
Isso acontece com os de pequeno nascimento, com os que vêm dos estados;
mas autor que aqui nasceu, em certa camada, que tenha títulos e empregos,
pode estar seguro que a crítica anônima dos jornais lhe será
unânime em elogios e animação.

N’O Globo, as coisas corriam assim. O secretário recebia o
volume e dava-o a Floc. Quimera, romance, Abílio Gonçalves,
lia Floc alto; e logo perguntava: – Quem é este Abílio Gonçalves?
– Não conheces? É o filho do Senador Gonçalves, de S.
Paulo.

Floc olhava outra vez o livro e voltava: – É formado? – É,
retorquia Leporace; é engenheiro de minas.

– Hum! fazia Floc com segurança, mudando a primitiva antipatia que
se lia na contração dos lábios, para um breve sorrir
de benevolência. No dia consagrado, o folhetim aparecia cheio de blandícias,
de elogios, fosse o livro bom ou mau, fosse o pai senador da oposição
ou do governo. Houve uma ocasião em que Floc, para mais erguer o filhote
criticado, forjou um elogio de um autor francês, como tendo sido feito
a um livro que aparecera há duas semanas no Rio de Janeiro.

Se o nome do autor era obscuro, se as informações colhidas
lhe não davam de pronto um estado civil decente, Floc adiava a notícia
e esperava que os grandes nomes da crítica se pronunciassem. Se eram
favoráveis ao livro, ele repetia os elogios, ampliava as observações;
se eram desfavoráveis, o elegante e viçoso crítico dava
curso à sua natural hostilidade aos nomes novos que não surgiam
nos jornais. Havia, porém, uma casta de autores, que ele sempre elogiava;
eram os diplomatas. Um destes senhores publicou certa vez uma compilação
de naturalistas e de receitas agrícolas, com fingimentos de Maeterlinck,
sobre as frutas nacionais. Floc não se conteve: desandou um folhetim
inteiro sobre o volume, elogiando a sua virtuosidade artística, o seu
estilo límpido e sereno, mostrou o pensamento panteístico que
o animava, só porque o primeiro-secretário da Legação
de Caracas dissera que o mamão era terno e resignado.

Dado que o livro tratasse do assunto que ele desconhecesse inteiramente,
o processo era outro. Ele fazia como o abissínio faz com o boi em que
viaja montado: tirava-lhe pedaços da própria obra e criticava.

Eu não quis dizer tudo isso ao poeta dos Anelos. Era melhor mantê-lo
na ilusão de que pudesse haver alguma independência e espontaneidade
no julgamento dos jornais; e quando Floc chegou, com o seu grande queixo atirado
para diante como um aríete e os seus bigodes de azeviche, dei-lhe o
livro. Depois de manuseá-lo um instante, falou com azedume: – Que nome!
Félix da Costa! Parece até enjeitado! É algum mulatinho?
– Não. É mais branco que o sr. É louro e tem olhos azuis.

– Homem, você hoje está zangado…

Ele não compreendia, que eu também sentisse e sofresse. E
arredou o livro para a ponta da mesa e pôs-se a escrever. Era a sua
tortura; era o eu pesadelo. Quase sempre as crônicas literárias,
as fantasias, as notícias de teatro, as trazia escritas de casa; mas
o serviço normal, era obrigado a fazê-lo na própria redação.
Preferia ficar só, e quando estava, escrevia para adiantar serviço.
A sua oclusão mental não fora capaz de me julgar e ele não
me supunha bastante atilado para observar a sua dificuldade. Então,
mesmo na minha presença, mordiscava os bigodes, dava suspiros, falava
alto; mas ao chegar um outro dos colegas, continha-se a contração
dos supercílios e o franzir da testa, denunciavam o desespero e o esforço.
Floc não tinha o dom de improvisar o artigo, não possuía
esse talento especial de presteza de pensamento, essa facilidade em vazá-lo
logo no papel, com que se fizeram conhecidos José do Patrocínio
e Justiniano José da Rocha. Na redação, havia alguns
que escreviam com facilidade e rapidez, mas sem brilho nem relevo. Meneses
era quem tinha mais destaque, quem mais força possuía no dizer,
mas a sua pessoa resistia muito, não se queria transmitir ao artigo,
temia, e por isso ele perdia muito.

Quem tivesse perfeitamente o dom de inventar, de arquitetar instantaneamente
o artigo e escrevê-lo com sabor literário, brilhante, vigoroso,
orgânico, não havia. Losque, muito mais fraco do que Meneses,
fingia-se de posse desse dom sagrado. Faltava-lhe novidade, invenção,
força no dizer; tinha uns certos períodos, um constante arranjo
de frases que ele adaptava ao assunto do momento, com as variantes necessárias.
Michaelowsky escrevia rapidamente, desenvolvia o artigo com muita força
e paixão, mas era tumultuário até ao emaranhado e a falta
de sentimento da língua não lhe dava uma arquitetura aos períodos.
A música do idioma fazia-lhe falta, completamente. No mais, todos escreviam
com acanhamento, sem naturalidade; as palavras fugiam-lhe no momento de escrever.
Isso que num temperamento literário pode transformá-lo em grande
escritor, num jornalista a nada leva. Aliás, nenhum deles tinha o sentimento
do seu defeito. Floc unicamente, com certeza devido aos seus grandes desejos
literários e artísticos, sentia bem essa inferioridade e sofria
com ela. Não procurava corrigir-se, adquirir a plasticidade necessária;
o ofício não permitia e fora dele não tentava nada, com
medo do desastre e do insucesso, embora na tentativa muito pudesse ganhar
a sua vontade e o escritor que houvesse nele. Sofria…

Nos dias seguintes às festas de luxo, quando era encarregado dos
comptes-rendus, era de ver o seu azedume contra o Raul Gusmão, que
os fazia também para o Despacho. Em geral saíam antes dos seus,
à tarde, de modo que ele chegava à redação notando-lhe
as invenções e os exageros. Sempre, porém, senti na sua
crítica a impotência e o despeito de não ver citada pelas
senhoras conhecidas uma imagem mais faiscante, como faziam com as do rival.
Entretanto eram amigos e elogiavam-se sempre que podiam.

Floc, naquele momento, recebera uma aragem de inspiração.
Escrevia com desembaraço, quando Losque entrou. O recém-vindo
descansou o maço de jornais que sempre trazia, limpou o pince-nez,
acendeu o cigarro de palha e perguntou camaradariamente: – Que escreves? –
A notícia do baile do Palácio…

– E o Rolim? – É a "cabeça"… Tu bem sabes que
o Rolim não escreve nada que preste…

Este Rolim era o repórter do palácio. Tinha mais de quarenta
anos, uns grandes pés espalmados e o queixo erguido para o alto quase
a bater nos bigodes fartos e negros. Tinha-se na conta de elegante, de fino
e descendente de um vice-rei do Brasil, o seu ofício no jornal era
ir diariamente ao palácio presidencial, tomar nota dos nomes dos visitantes,
ou, em ocasiões excepcionais, representar o jornal nas festas do bom-tom,
em que a distinção de maneiras fosse exigida e um ar sedutor
não ficasse mal. De volta, trazia os nomes dos circunstantes, a hora
certa em que começaram as danças, procurava a notícia
anterior e mutatis-mutandis a copiava.

– Este Rolim!… É jornalista para uso externo, disse Losque acrescentando
em seguida: Você leu o Jornal do Comércio? – Não. Por
quê? – O Teixeira Mendes ataca a lei dos sapatos obrigatórios.
Diz que isso de andar calçado, de correção de traje,
em última análise, entra no campo da estética, assim
no espiritual em que não pode o poder temporal intervir absolutamente…
Então é com o Papa? Os dois sorriram e Floc refletiu vagarosamente:
– Eu creio que as coisas vão mal. Há muita irritação,
muito azedume por aí…

– Eu penso também que isso não acaba bem. Hoje quando vinha
de bonde, vi comentários ao artigo do Ricardo…

– Estava bom. Não achaste? – Achei, fez o outro com segurança.
Ele atacou bem a questão; podia ir mesmo pelo higiênico…

Entrava no momento Leiva, que fazia polícia e "Vida Operária".
Sentindo que se falava na questão dos sapatos, interveio na palestra:
– Vocês não imaginam… As coisas estão feias! Estive
na Gamboa e na Saúde… Os estivadores dizem que não se calçam
nem a ponta de espada. Não falam noutra coisa. Vi um carroceiro dizer
para outro que lhe ia na frente guiando pachorrentamente: Olá, hé!
Estás bom para andares calçado que nem um doutor! Por aí
vocês avaliam… Creio que há "tumbabumba"! – Agora,
aqui para nós, aduzia Floc, a coisa é necessária… Causa
má impressão ver essa gente descalça… Isso só
nos países atrasados! Eu nunca vi isso na Europa…

– Ora, deixa-te disso, Floc, observou Michaelowsky que entrara. No Norte,
é justo, o clima, o gelo; mas no Sul, em Nápoles, na Grécia,
vê-se muito…

– Isso não é Europa.

– Engraçado! Com que liberdade modificas a geografia… E em Londres?
– Que tem Londres? – Que tem! Não há cidade do mundo em que
a multidão seja mais andrajosa, mais repugnante…

– Andam de casaco e sapatos! gritou triunfantemente Floc.

– Que casaco! Que sapatos! Naturalmente que hão de procurar coberturas
para o frio, mas onde vão buscá-las? Ao lixo e é um disparate!
Se queres uma multidão catita, arranja meios de serem todos remediados.
Vocês querem fazer disto uma Paris em que se viva sem gastar a importância
da passagem, ao mesmo tempo ganhando dinheiro, e esquecem de que o deserto
cerca a cidade, não há lavoura, não há trabalho
enfim…

Quase todos previam um motim; julgavam-no certo pelas observações
que tinham feito.

O dr. Ricardo entrou seguido de Aires d’Ávila. O diretor vinha
satisfeito. Cumprimentou sorrindo e foi ao gabinete escrever. Aires d’Ávila
fez algumas considerações sobre o projeto e perguntou ao Floc
por uma cantora nova. Loberant, por esse tempo, gritou: – Isaías, vem
cá! Leva-me esta carta ao senador F. Olha, recomendou-me ao sair, entrega
em mão dele, estás ouvindo? No momento em que começava
a descer a escada ouvi que dizia alto: – Esses f… hão de ver se valho
ou não valho alguma coisa! Súcia! Embaixo o gerente, em colete,
sentado diante da grande mesa, contava harpagonescamente uma chusma de níqueis
que ia dividindo em colunas, alinhando-as depois para o lado esquerdo à
proporção que contava.

O mês de maio tinha começado naquele ano com particular doçura.
Eu que já tinha mais de dois anos de Rio de Janeiro, nunca o vi tão
formoso, tão primaveril e nunca assisti a manhãs tão
lindas e azuis. Fazia uma temperatura carinhosa e eu olhava as nuvens, as
montanhas e as árvores sob uma luz aveludada. A terra era todo um estojo
macio e tépido, feita especialmente para o viver do nosso corpo. Os
boatos da redação e a tempestade que eu mesmo sentia preparar-se,
em nada diminuíam a minha sensação de bem-estar físico.
Aquele começo de mês foi para mim de grande sossego e de muito
egoísmo. Embora minha mãe tivesse afinal morrido havia dois
meses, eu não tinha sentido senão uma leve e ligeira dor. Depois
de empregado no jornal, pouco lhe escrevi. Sabia-a muito doente, arrastando
a vida com esforço. Não me preocupava… Os ditos do Floc, as
pilhérias de Losque, as sentenças do jovem Deodoro Ramalho,
tinham feito chegar a mim uma espécie de vergonha pelo meu nascimento,
e esse vexame não me veio diminuir em muito a amizade e a ternura com
que sempre envolvi a sua lembrança. Sentia-me separado dela. Enquanto
a julgava a espécie de besta de carga e máquina de gracejos
com aqueles idiotas a abrangiam no seu pensamento genuíno eu, seu filho,
julgava-me a meus próprios olhos muito diverso dela, saído de
outra estirpe, de outro sangue e de outra carne. Ainda não tinha coordenado
todos os elementos que mais tarde vieram encher-me de profundo desgosto e
a minha inteligência e a minha sensibilidade não tinham ainda
organizado bem e disposto convenientemente o grande stock de observações
e de emoções que eu vinha fazendo e sentindo dia a dia. Vinham
uma a uma, invadindo-me a personalidade insidiosamente para saturar-me mais
tarde até ao aborrecimento e ao desgosto de viver. Vivia, então,
satisfeito, gozando a temperatura, com almoço e jantar, ignobilmente
esquecido do que sonhara e desejara. Houve mesmo um dia em que quis avaliar
ainda o que sabia. Tentei repetir a lista dos Césares – não
sabia; quis resolver um problema de regra de três composta, não
sabia; tentei escrever a fórmula da área da esfera, não
sabia. E notei essa ruína dos meus primeiros estudos cheio de indiferença,
sem desgosto, lembrando-me daquilo tudo como impressões de uma festa
a que fora e a que não devia voltar mais. Nada me afastava da delícia
de almoçar e jantar por sessenta mil-réis mensais.

A irritação do espírito popular que eu tinha observado
na minha própria casa não me fez pensar nem temer. Julguei-a
especial àqueles a quem tocavam e nunca que aquelas observações
ingênuas se tivessem transformado em grito de guerra, em amuleto excitador
para a multidão toda. Mais tarde, entretanto, verifiquei que a crença
de que o Governo pretendia operar violentamente os homens e mulheres de pés
grandes, como os Chinas, é que tinha impressionado fortemente os espíritos
levando-os ao sangrento motim que estalou.

Tinha-me recolhido cedo, depois de ter ido ao clube buscar provas ao Aires
d’Ávila. Era hábito seu ir pelas cinco horas ao clube
arriscar alguma coisa antes de jantar e quanto pretendia demorar-se levava
as provas, indo eu ou o outro contínuo buscá-las já revistas.
Em certas ocasiões, quando pelo correr do dia, não tinha tempo
de escrever, era tão forte o seu hábito que, dada a hora, corria
ao clube e voltava de lá às dez ou onze horas para escrever
o artigo. Noites havia que o sono e a fadiga eram tão fortes que, entre
uma tira e outra, o gordo e pesado jornalista cochilava e dormia até.
Então, com a precisa delicadeza, qualquer pessoa da redação
acordava-o e Aires continuava a escrever o artigo sem mesmo reler as tiras
anteriores. Alguns dias, o sono obrigava-o a interromper o artigo mais de
uma vez.

Recolhi-me cedo nessa noite e dormi profundamente durante toda ela. Não
vi a destruição dos combustores de iluminação,
que os populares tinham levado a efeito. Só a notei de manhã,
já pelas oito horas, descendo a ladeira. Na rua, o trânsito era
raro e o tráfego dos bondes parecia ter cessado completamente. Nas
esquinas, havia patrulhas de infantaria e cavalaria e, de distância
em distância, à porta de estalagens, afastados da polícia,
havia grupos compactos de populares. Um bonde aproximou-se, e embora cheio,
dependurei-me com dificuldade num dos balaústres. A fisionomia das
ruas era de expectativa. As patrulhas subiam e desciam; nas janelas havia
muita gente espiando e esperando qualquer coisa. Tínhamos deixado a
estação do Mangue, quando de todos os lados, das esquinas, das
portas e do próprio bonde partiram gritos: Vira! Vira! Salta! Salta!
Queima! Queima! O cocheiro parou. Os passageiros saltaram. Num momento o bonde
estava cercado por um grande magote de populares à frente do qual se
movia um bando multicor de moleques, espécie de poeira humana que os
motins levantam alto e dão heroicidade. Num ápice, o veículo
foi retirado das linhas, untado de querosene e ardeu. Continuei a pé.
Pelo caminho a mesma atmosfera de terror e expectativa. Uma força de
cavalaria de polícia, de sabre desembainhado, corria em direção
ao bonde incendiado. Logo que ela se afastou um pouco, de um grupo partiu
uma tremenda assuada. Os assobios eram estridentes e longos; havia muito da
força e da fraqueza do populacho naquela ingênua arma. E por
todo caminho, o cenário se repetia.

Uma força passava, era vaiada; se carregava sobre o povo, este dispersava-se,
fragmentava-se, pulverizava-se, ficando um ou outro a receber lambadas num
canto ou num portal fechado. O Largo de S. Francisco era mesmo uma praça
de guerra. Por detrás da Escola Politécnica, havia uma força
e os toques da ordenança sucediam-se conforme as regras e preceitos
militares. Parei. Um oficial a cavalo percorria a praça, intimando
o povo a retirar-se. Obedeci e, antes de entrar na rua do Ouvidor, a cavalaria,
com os grandes sabres reluzindo ao sol, varria o largo com estúpido.
Os curiosos encostavam-se às portas das casas fechadas, mas aí
mesmo os soldados iam surrá-los com vontade e sem pena. Era o motim.

As vociferações da minha gazeta tinham produzido o necessário
resultado. Aquele repetir diário em longos artigos solenes de que o
governo era desonesto e desejava oprimir o povo, que aquele projeto visava
enriquecer um sindicato de fabricantes de calçado, que atentava contra
a liberdade individual, que se devia correr a chicote tais administradores,
tinha-se encrostado nos espíritos e a irritação alastrava
com a violência de uma epidemia.

Durante três dias a agitação manteve-se. Iluminação
quase não havia. Na rua do Ouvidor armavam-se barricadas, cobria-se
o pavimento de rolhas para impedir as cargas de cavalaria. As forças
eram recebidas a bala e respondiam. Plínio Gravata, com quem há
muito não me encontrava, veio a morrer num desses combates. Da sacada
do jornal, eu pude ver os amotinados. Havia a poeira de garotos e moleques;
havia o vagabundo, o desordeiro profissional, o pequeno burguês, empregado,
caixeiro e estudante; havia emissários de políticos descontentes.
Todos se misturavam, ajuntavam as balas, unidos pela mesma irritação
e pelo mesmo ódio à polícia, onde uns viam o seu inimigo
natural e outros o Estado, que não dava a felicidade, a riqueza e a
polícia.

O motim não tem fisionomia, não tem forma, é improvisado.
Propaga-se, espalha-se, mas não se liga. O grupo que opera aqui não
tem ligação alguma com o que tiroteia acolá. Agora independentes;
não há um chefe geral nem um plano estabelecido. Numa esquina,
numa travessa, forma-se um grupo, seis, dez, vinte pessoas diferentes, de
profissão, inteligência, e moralidade. Começa-se a discutir,
ataca-se o governo; passa o bonde e alguém lembra: vamos queimá-lo.
Os outros não refletem, nada objetam e correm a incendiar o bonde.

O apagamento momentâneo da honestidade e a revolta contra pessoas
inacessíveis levam os melhores a esses atentados brutais contra a propriedade
particular e pública. Concorre também muito a nossa perversidade
natural, o nosso desejo de destruir que, adormecido no fundo de nós
mesmos, surge nesses momentos, quando a lei esqueceu e a opinião não
nos vigia.

No jornal exultava-se. As vitórias do povo tinham hinos de vitórias
da pátria. Exagerava-se, mentia-se, para se exaltar a população.
Em tal lugar, a polícia foi repelida; em tal outro, recusou-se a atirar
sobre o povo. Eu não fui para casa, dormi pelos cantos da redação
e assisti à tiragem do jornal: tinha aumentado cinco mil exemplares.
Parecia que a multidão o procurava como estimulante para a sua atitude
belicosa. O serviço normal da folha fazia-se com atividade. Os repórteres
iam aos lugares perigosos, aos pontos mais castigados pela polícia,
corriam a cidade em tílburis. Nem os revisores nem os seus suplentes
faltavam à chamada; outro tanto sucedia com os tipógrafos e
os outros operários.

Toda essa abnegação era para garantir os seus mesquinhos empregos.
Um pobre tipógrafo, que morava para a Saúde, onde o trânsito
se fazia com os maiores perigos, ficou todos os três dias no jornal.
Temia ser morto por uma bala perdida. Houvera muitas mortes assim, mas os
jornais não as noticiavam. Todos eles procuravam lisonjear a multidão,
mantê-la naquelas refregas sangrentas, que lhes aumentava a venda. Não
queriam abater a coragem do povo com a imagem aterradora da morte. A polícia
atirava e não matava; os populares atiravam e não matavam. Parecia
um torneio… Entretanto eu vi morrer quase em frente ao jornal um popular.
Era de tarde. O pequeno italiano, na esquina, apregoava os jornais da tarde:
Notícia! Tribuna! Despacho! De há muito que a rua parecia retomar
a sua vida normal. Durante todo o dia os passeios se fizeram como nos dias
comuns; repentinamente, porém, uns grupos que paravam no canto do largo
de S. Francisco, vaiaram a polícia. O esquadrão, com o Alferes
na frente, partiu como uma flecha e foi descendo a rua do Ouvidor, distribuindo
cutiladas para todos os lados. O pequeno vendedor de jornais não teve
tempo de fugir e foi derrubado pelos primeiros cavalos e envolvido nas patas
dos seguintes, que o atiraram de um lado para o outro como se fosse um bocado
de lama.

Quando suspenderam a carga, alguns populares trouxeram-no morto para o escritório
do jornal. O cadáver estava num estado ignóbil: tinha quase
todos os ossos partidos, o crânio esmagado e o ventre roto. Recordei-me
então daquelas palavras de Loberant: – Esses f… hão de ver
se valho ou não valho alguma coisa! Súcia!

XIII

O homem que acaba de morrer, não era um homem vulgar. No domínio
de sua difícil arte, era uma notabilidade respeitada. Para nós,
era muito mais: era um amigo, um dedicado e leal amigo a quem muito devíamos
e prezávamos. Todos os que mourejam nesta tenda de trabalho, certamente
não hão de esquecê-lo e não há nenhum que
não tenha recebido um favor, uma alegria, uma satisfação
de suas mãos.

O público que nos lê, não sabe o quanto esta vida de
jornalista é esgotante e ingrata; não sabe que soma de energia
ela exige e como nos tira os melhores momentos de ócio e os melhores
minutos de prazer. Vivemos por assim dizer para os outros; e quem vive para
os outros, é claro que muito pouco pode viver para si.

Charles de Foustangel atravessava a nossa vida como um anjo protetor; dele,
tirávamos alguns raros instantes de alegria no meio das agruras que
nos cercam. Era de ver como ele sabia desenvolver um menu, como imaginava
um ‘quitute’ inédito, um prato saboroso, que verve especial
punha nos nomes com que os batizava e que raros gozos eles traziam aos nossos
paladares fatigados por esses hotéis detestáveis que nos impingem
solas duríssimas por bifes de grelha. Quantas ocasiões não
fomos nós de mau humor para a mesa de jantar, enervados, sem vontade
de trabalhar, com a encomenda do artigo, da reportagem, da crônica para
o dia seguinte e sem coragem para fazê-los, e nos levantávamos,
graças à brandura do seu tempero e à eurritmia dos seus
molhos, satisfeitos, solertes, cheios de novas energias! A sua morte é
uma grande desgraça que nos acabrunha; e, desde que esta folha existe,
é o primeiro que a maldita Parca leva. Muitos, é verdade, já
se foram; mas não os levou a Parca. São felizes? São
infelizes? Eles lá saberão… Este ficou no seu posto até
à última hora, e ainda nas vésperas de morrer, quando
a arruaça fazia cessar todo o movimento, deu num só dia quatro
mesas fartas ao pessoal deste jornal.

Era um herói, um herói como o nosso tempo sabe compreender,
isto é, um homem que põe tudo o que há em si de força,
de coragem, de inteligência e de dedicação para um dado
e único fim útil aos seus semelhantes.

Nada lhe faltava de grande. O caráter, a inteligência e o coração,
nele, chegavam, à mesma altura e agiam de concerto. Falava três
línguas: português, inglês e francês. Nascido em
Arcis-sur-Aube, pátria de Danton, em 1864, e oriundo de uma família
nobre, em breve emigrou para a Inglaterra, onde abraçou a profissão
em que morreu. Daí depois de exercê-la com paixão, veio
para o Brasil esse excelente representante da grande raça de Vatel.
Era de um grande orgulho e conta-se que não entrou para o célebre
Savoy de Londres porque não tinham permitido que assinasse o menu.
Saudades." Um pouco abaixo do retrato, seguia-se esse artigo de Losque
e o jornal vinha tarjado em sinal de luto. Tratava-se do cozinheiro particular
do Diretor, mas a estética do necrológio pedia que se fizesse
um auxiliar do jornal. A morte desse serviçal obscuro da domesticidade
do Diretor, veio trazer-lhe os maiores testemunhos da sua vitória.

Todos os jornais se referiram ao inditoso Charles de Foustangel e alguns
abriram subscrições para socorrer a família do cozinheiro.
Fora do convívio jornalístico, as manifestações
de pesar não foram menores: o Centro dos Estudantes passou um telegrama
de pêsames ao Presidente da República Francesa e ao cortejo do
enterro concorreram mais de cinqüenta carros, levando perto de uma centena
de pessoas, entre as quais altas patentes do exército e marinha, diretores
de repartições, homens da bolsa, literatos aclamados, revolucionários
temidos e um Capitão do Estado-Maior, representando o Presidente da
República.

A viscondessa de Varennes não faltou. Passou por mim, no carro, a
olhar um lado e outro com os seus grandes olhos de Juno, as olheiras violáceas,
mordiscando os lábios muito pintados, abanando-se com o seu grande
leque rococó e toda envolvida num pesado vestido de gorgorão.

Antes de embarcar, Floc foi até o trem e ela despediu-se dele, estendendo
a mão pela portinhola do coupé, com metade do rosto a aparecer,
sorrindo, muito graciosa, muito lenta, numa atitude de fidalga do século
XVIII. E o negro cortejo desfilou pela rua como um triunfo sui generis para
a vitória do Diretor. Na frente, ia o coche fúnebre, sarapintado
de dourados, crivado de grinaldas com flores roxas e brancas de pano e as
fitas votivas cheias de inscrições a esvoaçar lentamente
como se fossem todos os adeuses que o morto quisesse dar naquele momento,
às coisas e às pessoas. Seguiam-se-lhe as caleças, as
vitórias e coupés, transportando a alta administração,
civil e militar, as finanças, as letras e a revolução
profissional, em tocante homenagem ao grande homem que era o cozinheiro do
dr. Ricardo Loberant, diretor-proprietário d’O Globo.

O motim obrigara o Presidente a demitir a maioria dos Ministros, isto é,
os Ministros atacados pelo O Globo; o prefeito e o chefe de polícia
também saíram. A lei dos sapatos foi para as coleções
legislativas e o empréstimo ficou prometido ao Rodrigues. O diário
de Loberant ficou sendo quase a sétima Secretaria do Estado. As nomeações
saíam de lá e as demissões também. Bastava um
aceno seu para um chefe ser dispensado, e bastava qualquer dos seus empregados
abrir a boca para obter os mais rendosos lugares. Leporace foi nomeado Diretor
das antigüidades egípcias do Museu Nacional; e Rolim, o Rolim
dos grandes pés, subdiretor da Repartição Cartográfica
da República. Leiva fora modesto: pediu e obtivera o lugar de quarto
escriturário do Tribunal de Contas, independente de concurso. Os empregos
foram assim satisfazendo a natural voracidade dos auxiliares de Loberant.
Todos eles viviam agora calmos, sorridentes, satisfeitos, convencidos de que
tinham moralizado a República. Tudo ia bem e a administração
fazia-se com a moralidade e a limpeza de uma pequena casa burguesa. Tinham-se
cinqüenta mil-réis, comprava-se; não se tinha, diminuía-se
a conta do armazém. O jornal passou do mais formal pessimismo ao otimismo
mais idiota. O próprio Loberant perdera a "atrabílis",
fumava com mais calma, sorria com afabilidade e dispunha de empenhos. Era
um gosto vê-lo dando audiência aos necessitados de empregos. Apareciam
diariamente aos vinte. A uns, atendia; a outros respondia com gravidade ministerial:
venha amanhã.

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