Inspirações do Claustro

PUBLICIDADE

Clique nos links abaixo para navegar no capítulo desejado:

Junqueira Freire

A natureza d’esta publicação exige de si algumas palavras de
explicação. Este prologo é filho da necessidade tamsomente.

Longe de mim a vaidade dos discursos ociosos.

As poesias presentes agradarão a bem poucos: agradarão apenas
a algumas almas fortes, que não poderam ainda ser eivadas nem do cancro
do septicismo, nem da mania do mysticismo: agradarão apenas a alguns
homens completamente livres, que não subjeitaram-se ainda, si não
ás luzes da razão.

Ora, estes homens sam bem raros na sociedade actual, porque a hyperbole
dos systemas e das crenças traz em si não sei que talisman,
qué arrasta todos os espíritos, por bem formados que sejam.
O eclectismo nas opiniões, que não sam essencialmente philosophicas,
repugna ainda aos animos, e é chrismado de absurdo.

Eu tenho, por tanto, a maioria dos homens por meus inimigos.

Pela mão invisivel da Providencia fui arrojado ha três annos
para o coração do claustro. Por essa inclassificavel acção,
de que hoje me espanto, tive as bençãos de uns e os escarneos
de outros. Eram ainda os homens mysticos e os scepticos que louvavam-me ou
vituperavam-me. Pela mão invisível da Providencia fui arrojado
outra vez para o torvelinho da sociedade. Por isso tive a maldição
de quasi todos.

Eram ainda os mysticos, que não pejavam-se de cantar a palinodia
dos louvores, que me haviam magnificamente dispensado,— eram os scepticos,
que compunham d’este accontecimento um marcialico epigramma.

Hoje, entre tanto, venho offerecer ao publico o complemento de meus pensamentos
durante meu triennio claustral.

Serei recebido pelos mesmos homens: — por tanto, muito mal.

Não importa.

Nos paizes eminentemente illustrados não aguarda-se mais pelo juizo
da posteridade. Vivendo-se, goza-se já do nome, que antigamente depozitava-se
nas ares mysteriosas do porvir.

No Brazil, porem, não é ainda assim. Eu tenho — graças
a Deus,— o consolo de poder esperar pelo futuro em minha patria! N’este
sonho sedativo da consciencia,— seja uma illusão embora,—
adormecerei tranquillo.

Entre tanto,— fervam os pensamentos da paixão. Os escriptos
poeticos, que apresento, não foram formados em delírio.

Enthusiasma da raiva! que tenho eu com tigo ? A hora da inspiração
é um mysterio de luz que passa inappercebivel. Com tudo, eu tenho consciência
de que, por mais ethereo que seja aquelle momento, cantei tamsomente o que
o imperativo da razão inspirava-me como justo. Não exclui, na
verdade, o sentimento n’estas composições a que presidia a solidão,
porque ninguém o pode,— mas também não sou cabalmente
um poeta. Ha em mim alguma cousa de menos para completar o anjo das harmonias
terrestre.

Ha, por ventura, a reflexão gelada de Montaigne, que apaga os impetos,
que matta ás vezes a mesma sublimidade. Klopstok, eu não posso
accompanhar teus vôos! Pelo lado da arte, meus versos, segundo me parece,
aspiram a cazar-se com a proza medida dos antigos.

Sabe-se que os latinos modulavam os periodos do discurso.

Sabe-se que os italianos, em seu seculo classico, imitaram miudamente aquelles,
de quem tinham herdado a litteratura. Sabe-se que os primeiros escriptores
portuguezes cadenciavam egualmente suas construcções. Sabe-se
que, attingindo a musica prozaica a uma perfeição absurda, desterrou-se
completamente do discurso todo o artificio.

A versificação triumphou sobre as ruinas da proza. Bocage
deixa de ser poeta, para ser musico. A proza tinha expirado.

Começa-se entam a procurar um accôrdo. O modulo dos latinos,
estudado e seguido pelos italianos, quasi aperfei-coado pelos portuguezes,
tinha algum tanto de justo e de bello. A proza recobrou os seus direitos.

Tudo isto traz com sigo algumas perguntas necessarias: Athe onde irá
a melodia da proza ? Será a proza um dia tam acabada de melodia, de
rythmo, de harmonia mesma, que venha a ser inútil a musica da fórma
poetica ? Chegará um dia a litteratura a um tal grau, que distinga
a proza e a poesia tamsomente pelo nuance dos pensamentos ? Nascerá
um dia d’estas duas expressões mais ou menos bellas uma fórma
intermediaria, que expose tanto da singeleza da proza, quanto do artificio
da versificação ? Será o futuro o mesmo que o passado,—
e a proza, em um circulo constantemente vicioso, voltará para a poesia,
e a poesia de novo para a proza ? O Telemaco de Fenelon, os Martyres de Chateaubriand,
os Dramas modernos, os Romances mesmos de agora, que sam por ventura arremêdos
de epopeas, não se levantam, como brados magestosos, contra esta ultima
hypothese? Teremos de viver continuamente no gyro desesperador que descreveu
o Ecclesiastes ? O que foi será o mesmo que ha de ser em toda a sua
amplitude,— ou aquelle axioma sagrado admitte restricções
? Meu Deus! o vosso Christo, descendo de vosso eterno e fecundo seio, não
trouxe á humanidade alguma idea nova, algum facto que inda não
tivesse sido? Presentemente,— cuido eu,— nem uma resposta póde
dar-se a estas questões, si não uma duvida. Pois bem: —
meus versos representam esta hesitação, segundo penso.

Procuram,, a pezar meu, a naturalidade da proza, e recêam desprezar
completamente a cadência bocagiana.

Alem d’isto, a quem canta pela razão, e pouco talvez pelo sentimento,
esta fórma singela, quasi não trabalhada, por ventura mais severa,
é que melhor lhe póde convir.

O aspecto social, que parecem ter estas composições, obrigam-
me ainda a não finalisar de subito este prologo.

O que cantas ? — perguntar-me-ão.

O que podia eu cantar, incerrado nas muralhas solitárias de um claustro,
ouvindo a cada hora os toques continuados de um sino que chama á oração,
vendo uma turma de homens com vestidos talares negros, que levavam-me â
recordação dos costumes dos tempos antigos, passeando sempre
sôbre um chão povoado de sepulchros, conversando com o silencio
do dia e a solidão da noute? Cantei o monge e a morte. .

Cantei o monge, porque elle soffre,— soífre muito.

Cantei o monge, por que o mundo o despreza. Cantei o monge, porque elle
é hoje uma cousa inutil e ociosa, em consequencia de suas instituições
anachronicas. Cantei o monge, por que elle não tem culpa de ser mau,
nem pôde por si só ser bom. Cantei o monge, por que elle poderia
ser uma personagem quasi necessária, dandose- lhe as leis communs da
humanidade.

Cantei o monge, por que elle é infeliz. Cantei o monge, por que elle
é escravo, não da cruz, mas do arbitrio estúpido de outro
homem. Cantei o monge, por que não ha ninguém, que se occupe
de cantal-o.

E por isso que cantei o monge, cantei também a morte. É ella
o epilogo mais bello de sua vida: é seu único triumpho.

Na verdade, ao homem sincero amante de sua patria, doe-lhe dentro da alma
ver tanta gente estaccionada, sem nada fazer, podendo produzir tanto bem.
Não ! a charidade que o Christo insinou, não é egoista
: — imagem real do pelicano, que arranca o coração para
dal-o aos filhos ! Muitos, a quem tomam o cuidado de chamar — impios,
— censuram o monge no monge. Eu deploro-o somente, por que elle não
é criminoso. A instituição, a instituição
é que, depois de lhe tirar o trabalho, hoj’em dia já não
precizo, de rotear montanhas, não lhe forneceu outro qualquer em ordem
ás necessidades da epocha, mas antes convidou-o : a uma espécie
de ócio, no qual elle não póde ser mais, que | mau e
desgraçado.

Eu fallo com o coração entre as mãos acerca de todas
essas cqusas,— de todos esses padecimentos.

Quorum pars magna fui.

Como esse Eneas, desenhado pela imaginação de Virgilio, sahindo
do boqueirão das chammas, que ainda lavram, posso, — graças
a Deus! — fallar de Troya, sem correr seus riscos.

Oh monges,— feitos assim como estais, constituídos d’este modo,—
que sois mais que estas arvores infructiferas, de que falla o evangelho, que
não servem, si não para o fogo? . Si o homem Deus passasse por
vós, como passou pela figueira esteril, não vos destruiria pela
raiz, como o raio fulminante da maldição eterna ? Sêde
jesuítas, como sois, sêde-o: mas sêde-o tambem, como os
Anchiettas, os Nobregas, os Vieiras. Por que não? Olhae : — ahi
estam nossos sertões, nossas florestas seculares, sombreando immenso
gentio, acubertando um culto infame, defendendo barbaros costumes, balouçando
de terror e de esperança. Ide, apostolos do Unigenito do Eterno, atirae-vos
a essas mattas, pregae o evangelho, civilizae! Não é esta a
vossa missão? A civilisação do mundo ainda carece de
vós. Os Thomés ainda sam necessarios.

Ide, athletas da charidade, marchae para a conquista do pensamento christão.
Que vos falta ? Vosso mestre vos inviava ás nações —
munidos tamsomente da palavra.

Os Nobregas não tinham mais do que vós,— e nós,—
não nos invergonhemos,— fomos civilisados por elles.

Eis-aqui porque a memoria dos filhos de Loyola me é cara, eis-aqui
por que eu os canto também a elles, pelo que fizeram,— como vos
canto a vós, pelo que podieis fazer.

Commetteram erros, elles: mas não é um dos axiomas da historia
— que os que imprehendem grandes cousas, cqmmettam egualmente grandes
erros ? .

Por essas convicções,—não escureço,—achar-me-ão
sem duvida em contradicção nos meus cantares.

Meditae, porem, examinae o fundo, e lá incontrareis a unidade, o
foco, o centro, o principio da luz, embora o prisma represente raios de diversas
cores.

O seculo passado para mim é sempre um século magnanimo de
crimes: mas nem um seculo escoou-se debalde no percorrer dos tempos : o seculo
passado é também um século intelligente e progressista.
Remontando-me algumas vezes ao seio d’elle, eu, com a alma fundida na educação
do seculo dezenove, arripio-me de horror, e canto a charidade christan, que
lá incontro menoscabada. Procuro entam revestir-me com os ademães
dos homens catholicos daquella epocha, esqueço-me exteriormente de
mim, detesto- lhe a moda absurda de impiedade, e maldigo aquelle circulo de
ferro, em que circumscreveu-se aquelle periodo de torpeza. Os meus —
Claustros— e algumas composições mais assumiram esta cor.
Quando, porem, limito-me ao meio-seculo, em que tenho apparecido, e deparo
com tudo o que me cerca, digo: — Respeitemos nossos pais.— Si
elles olharam para a charidade christan, para a fé evangelica, como
para estatuas de irrizão,— collocaram todavia em um altar a liberdade.
A liberdade tambem é filha do Christo. O meu poemeto — O monge
— representa principalmente este estado.

Eis-ahi, pois, a definição de meu trabalho. Julgae-o por essa
maneira,— e sêde rigorosos, sim,— porem justos.

A despeito de toda esta minha confissão, eu sinto, como por instincto,
que muitos, lendo este livro segundo seus proprios gostos, e não segundo
o espirito que por todo elle domina, dirão que é uma collecção
de orações e blasphemias.

Não! eu não direi isto. Lembrarei somente que esta é
a obra de um joven educado no seio de uma corporação religiosa.
É esta toda a minha apologia.

Não posso concluir este prologo sem cumprir com o dever sagrado do
agradecimento para com o Rvm. Sr. conego José Joaquim da Fonseca Lima,
e padre mestre Domingos José de Britto, pelas lisongeiras expressões
de animação e benevolencia, que me dirigiram por vezes nas columnas
do Noticiador Catholico. O illustrado publicista Sr. José Pedro Xavier
Pinheiro é tambem para com migo credor de muita estima e gratidão,
pelo modo distincto e acoroçoador, com que tractou-me em sua Revista
no periódico Justiça. O Sr.

Dr. Ricardo Gumbleton Dunt penhorou-me egualmente com as palavras de alento,
que dispensou largamente com migo, na Aurora Paulistana. Julgo preencher um
compromisso bem difficil, estampando n’esta pagina a abundancia de minha gratidão,
muito mais ainda quando os liames da amizade não me estreitam a nem
um d’elles.

JOSÉ JOAQUIM JUNQUEIRA FREIRE

Era joven, e bem joven, o Bahiano Junqueira Freire! Nascido no dia 31 de
Dezembro de 1832, entrou para o convento dos Benedictinos na edade de 19 annos,
e nelle passou o tempo precioso da juventude. Conseguiu porem secularisar-
se em 1854, trocando então a solidão pela sociedade, e deixando
a cellula do monge para se atirar na existencia contrariada do mundo.

A parca cruel arrebatou-lhe a vida immediatamente; ceifou- a assim em flor,
sem nenhuma piedade e no momento em que, ao desabrochar, já espargia
tanto aroma, e promettia á terra da pátria um genio admirável!
Desappareceu do claustro; não era porem o mundo destinado para elle;
desappareceu logo do mundo; deixou todavia para memória um livro, pouco
volumoso, mas rico de inspirações elevadas, de pequeno numero
de paginas, e resplandecente de poesia, e poesia verdadeira! São tão
raros os poetas! Não faltam versificadores, principalmente nas línguas
do meio-dia da Europa, cujas palavras se prestam excellentemente á
rima, e é a phrase já por si harmoniosa e cadente; os poetas
que todavia nascem inspirados, e que a natureza enriquece com imaginação
espantosa; os poetas verdadeiros, raros são, porque a Providencia tem
predilectos, e não podem ser estes numerosos.

Era Junqueira Freire poeta! O pequeno livro das INSPIRAÇÕES
DO CLAUSTRO o demonstra; ardia-lhe no cérebro a chamma divina; ainda
quente deve estar o seu corpo, si bem que já sepultado na terra, e
já d’elle fallámos como de uma cousa que foi, de uma nuvem que
passou, e de um som que se sumiu no espaço.

Parece que teve um presentimento de morte precoce: sabido do claustro, publicou
o bebo livro das inspirações, e logo que o entregou ao mundo,
como para deixar-lhe a dor e a saudade, feixou os olhos, e desceu á
sepultura! Não é novo este acontecimento na historia litteraria:
Chatterton morreu antes de 18 annos de edade, Gilbert chegou apenas aos 29.

Como Chatterton e Gilbert, sentia o poeta Junqueira Freire intensa necessidade
de olhar para o céo e para a eternidade; no meio de suas dores do claustro,
como aquelles seus irmãos, no meio das angustias da fome, appellava
o vate para Deos, e no seio immenso do Creador do mundo encontrava abrigo
e consolações:

Porque se me extasia a mente ás vezes, E vaga, e vaga, aligera e
perdida Pelas soidões do Armamento ethereo, Bem como o seraphim, que
esguarda os mundos, Livre os celestes paramos percorre? Porque penetra, ás
vezes arrojada, Nos mysterios reconditos do eterno, E toda entorna-se a seus
pés,—bem como O alabastro de nardo aos pés do Christo?
Porque se abraça em incorporeo amplexo Co’os angélicos seres
de alem-astros, E, como as chaves das eternas portas, Abre os thesouros do
poder do Altíssimo, E nelles bebe inexhauriveis gozos?

Extasia-se assim Junqueira Freire, o poeta que a Bahia e o Brazil acabam
de perder, quando á mente lhe fulgurava a imagem solemne da immensidade;
sonhava, delirava, adivinhava, como sonham, deliram e adivinham os grandes
genios que nascem feitos e não se formam no mundo.

Poeta, que vida fora a tua ? tu o dizes quando pintas as dores do claustro.
Ali se quebrou a tua juventude como o aço ao roçar da pedra;
perderam-se os teus gemidos pelos longos corredores e sombrias cellas: ajoelhado
ao pé do altar, e em cima de sepulturas, é que te vinha o allivio,
a esperança, e a voz.do anjo, que te chamava para outro mundo, que
devia ser o teu, pois que é o mundo que te merecia.

longos corredores e sombrias cellas: ajoelhado ao pé do altar, e em
cima de sepulturas, é que te vinha o allivio, a esperança, e
a voz.do anjo, que te chamava para outro mundo, que devia ser o teu, pois
que é o mundo que te merecia.

Gosto de meditar, de noite, ás vezes, Como um infante, Espasmado no
olhar, fitando o corpo Que tem diante1.

Entre tantos canticos e pela maxima parte canticos de dor, que lhe arranca
a solidão, parece que não ha escolha ; contêm quasi todos
bellezas que denunciam um genio poetico da primeira plana: imaginação,
sentimento, ideas, paixões, inspiração sublime, tudo
se allia perfeitamente com a selecção da palavra, o apropriado
da phrase, a maviosidade do verso e a justeza da rima.

Junqueira Freire, si pela imaginação pertencia á eschola
de Sousa Caldas, Francisco Manuel, Almeida Garrett e Diniz, pela fórma,
vestes exteriores, e metriíicação, recebeu de certo lições
de Gonzaga, Camões, Garção, Bocage e José Basilio
da Gama.

Como é lindo e melancólico o cântico intitulado —
Um pedido² ! Com este cantico rivalisam em doçura e tristeza o
da profissão de frei João das Mercês Ramos, a canção
intitulada— Ella,—os versos aos jesuítas, cheios d’uma
côr local brazileira, que muilo agradam, e as elègias —
Flor murcha do altar, Freira, e Devota; derrama-se a poesia por todas as strophes,
versos, phrases, e palavras; sente-se com a sua leitura, e sente-se profundamente,
a perda d’um genio que começava os seus vôos, que já se
podem chamar — vôos de águia! Ah! si a dura morte se não
apressasse a riscal-o do numero dos viventes; si este joven de 22 annos tivesse
tempo de amadurar o seu ingenho, moderar e regularisar a sua inspiração,
colher no estudo mais profundeza de pensamentos, que grande poeta que fôra,
e quanta gloria derramaria sobre o seu paiz natal! O cântico á
profissão de frei João das Mercês denota o sentimento,
magoa e dôr, que já haviam começado a apoderar- se do
seu espirito, e desbotar-lhe as côres mais suaves; o isolamento do claustro
não poderá vencer as paixões do joven, e quebrar-lhes
os brios naturaes; affigurava-se-lhe o claustro um inferno medonho, aonde
lhe haviam enterrado a existência para lh’a amargurar e emmurchecer;
no meio das suas angustias exhalava suspiros desesperados como os Claustros,
Apóstata, Converso, e Misantropo; ás vezes felizmente o salvava
o sopro divino, arrebatando-lhe o espirito e vôos para as ideas melancholicas,
religiosas e moraes, que brilham e resplandecem primorosamente na Meditação,
Incenso do altar, Irmãs de caridade, e Pobre soberbo.

Quereis ouvir como se perdia aquelle espirito poetico, quando balançando
entre a desesperação do isolamento e as crenças religiosas,
entre as saudades da vida humana e a prisão da cellula, fazia soar
a lyra com arrebatamentos dolorosos? Lêde o Cântico á profissão
de frei João das Mercês¹.

Versos expressivos tem tambem o cantico da Meditação; ha um
doer constante, e penar contemplativo, que se observa nesta existencia juvenil
e ardente, que fere e rasga o peito, e chama as lagrimas aos olhos.

Oh! morra o coração — germen fecundo De mil tormentos;
Desfalleçam-lhe as fibras — espedacem-se Os filamentos.

Isenta de paixões — de amor, ou odio, Surja a razão;
Não obedeça escrava aos sentimentos Do coração.

Torne-se o coração lampada extincta, Cinza no lar; E deixe
que a razão veleje livre Em largo mar.

Creia n’um Deus — e dos dulçores goze De almo ascetismo; Não
mais lhe rôa as visceras o cancro Do scepticismo.

A divida infernal, batendo as azas, Perdendo as cores, Precepite-se súbito
nas chammas Exteriores.

E Deus, que vivifica o alvar pinheiro, E a tenra planta ; Que os soberbos
calcina, e que os humildes Do pó levanta; De minha vil baixeza, como
os homens, Ah ! — não se peja; Que elle mão cheia de mil
dons em todos Largo despeja.

Mas si té’qui parece deslembrado, Triste de mim! Si não manda
a guardar minh’alma dubia Um cherubim! Si nunca se lembrar que um ente existe
N’essa amargura! Melhor não fôra me gelasse o sangue A morte
dura ?

Bastam estes extractos para conhecer-se o genio poetico que se escondia sob
as vestes do monge; servem elles para deplorar-se o passamento prematuro de
uma existencia tão cheia de futuro, de um engenho tão ricamente
mimoseado pela Providencia divina. Como era joven não podia escapar
á sorte humana e aos defeitos da mocidade; ha nos seus canticos alguma
exaggeração de sentimentos, alguma extravagancia de ideias:
é defeito da edade. É tambem influxo da eschola de Lord Byron,
cuja leitura se tem espalhado por todo o mundo, e produz nos cerebros juvenis
tendencias desordenadas, que só a edade, e a razão amadurecida
sabem evitar.

O talento e o genio poetico nascem espontaneamente, recebem porem da educação,
do tempo, do estudo, e do mundo, o aperfeiçoamento necessario que lhe
troca as vestes brilhantes e seductoras do fogo ardente pelos vôos acertados
e sublimes do enthusiasmo reflectido.

Tem canções que revelam qualidades de Juvenal: a cantata a
Frei Bastos, que parece que ajuntava os dotes da poesia e oratoria a vicios
immundos que lhe estragavam o corpo e desseccavam-lhe o espirito, é
interessantissima, alem de pittoresca: denuncia a força do poeta, e
a elevação do espirito que o animava1.

Não foi infelizmente Junqueira Freire o unico poeta dos nossos dias
e da nossa terra que a morte ceifou na juventude, roubando á litteratura
brazileira escriptos, que promettia gloriosos o genio das florestas americanas.
Dutra e Mello, Alvares de Azevedo, Francisco Bernardino, Pinheiro Guimarães,
e Casimiro d’Abreu já tambem desceram ao sepulchro, legando poesias
inacabadas, que provam todavia que sobre este solo não espargiu sómente
o Creador da natureza favores divinos para o bem estar, crescimento, e riqueza
do povo, que o habita. Pretendeu tambem, em sua infinita bondade, que o espirito
se elevasse, e a imaginação dos homens subisse á comprehensão
dos seus mysterios, podendo satisfazer as precisões moraes da sociedade,
que si necessita de marchar physicamente, não consegue fortalecer-se,
e medrar sem o alimento para a alma, e a instrucção para o pensamento
immaterial, que dirige o homem.

Durante os tempos coloniaes enriqueceu-se a litteratura portugueza com os
productos dos genios, que creou a sua conquista dos Tropicos. Era de razão,
porque formavamos todos o mesmo paiz, e um só reino. Basilio da Gama,
Sousa Caldas, Durão, Alexandre de Gusmão, Antonio José,
Rocha Pitta, os dous Alvarengas, Gregorio de Mattos, Benevides, os bispos
de Coimbra e Elvas, Moraes, Bartholomeu Gusmão, Cláudio Manuel,
Mello Franco, São Carlos, Antonio de Sá, Vidal de Negreiros,
Camaras, Conceição Velloso, e tantos engenhos mais, nascidos
no Brazil, enriqueceram as paginas da historia portugueza nas artes, sciencias,
letras, e politica; nos campos sanguinolentos da guerra, e nas agradaveis
planicies da paz. Ergue-se com a sua emancipação politica uma
nação nova, á qual D. Pedro I e José Bonifacio
ensinam os primeiros passos, e illustra o visconde de Cayrú com a sua
instrucção variada.

Brilham já a tribuna sagrada e parlamentar com uma gloria propria.
Uma historia nacional se ergue á parte, e caminha o paiz para os seus
destinos particulares. Animam associações litterarias o desenvolvimento
espiritual.

São Leopoldo practica o ramo historico, acompanhado por J. F. Lisboa,
eVarnhagem, Januario, e Pedro Branca entôam canticos agradaveis. Abre
Magalhães espaços novos para a poesia. Seguem-no Gonçalves
Dias, Porto-Megre, Firmino, Norberto, Macedo, e tantos jovens talentos que
fulguram no horizonte da patria. Reune e publica o Instituto materiaes os
mais importantes para a historia e geographia.

Já mesmo no theatro apparecem engenhos origiginaes, que traçam
scenas copiadas do povo com quem vivem.

Brilham ainda hoje mais as letras, na verdade, no seio da antiga metropoli;
não estão porem n’ella mais adiantadas as sciencias practicas
e abstractas: e os progressos materiaes no Brazil tomaram sem duvida a dianteira;
a liberdade politica ganhou mais profundas raizes; e a amor ás instituições
tornou-se mais universal, e seguro.

Corra o tempo. Desappareçam todas as rivalidades, filhas de prejuizos
antigos e hoje sem a menor base. A lingua é a mesma; e ajudando-se
ambas as litteraturas, honrar-se-ha cada uma das duas nações
com o que é seu próprio, e luctarão, sem o mesquinho
espirito da inveja e despeito, no vasto e brilhante theatro da intelligencia
humana, elogiando-se e estimando-se mutuamente.

Assim o practicam os Estados-Unidos da America do Norte, e não deram
elles á Inglaterra, durante os tempos coloniaes, vultos notáveis,
que honrassem a mãe patria, como o fez o Brazil para com Portugal.
A independência das colônias britannicas forneceu-lhes pccasião
então de tornar conhecidos Franklin e Washington. Á nacionalidade
que criaram, devem o impulso e movimento que recebem os espiritos actualmente.

Irving, Cooper, Story, Longfellow, Webster, Prescott, Banckroft, Wheaton
e Maury, são vivas demonstrações de que a terra americana
produz também talentos que honram a lingua ingleza, e em todos os ramos
dos conhecimentos humanos. Distingue-se porem a litteratura propriamente da
America; forma já uma espécie de nacionalidade; guarda como
que uma autonomia. Ha no colorido, na expressão, e no próprio
desenho a especialidade do compatriota de Washington; differem as sociedades
em pontos sensíveis, como pode a litteratura deixar de acompanhal-as,
quando não é ella mais do que a imagem intellectual das sociedades?
Possue a Grã-Bretanha os seus clans e montanhezes, as suas luctas civis,
e torneios do cavalheirismo, para que um Walter Scott os pinte, e poetise
um Shakspeare, historiadores nacionaes mais profundos do que Hume e Robertson.

Apresenta a America do Norte os seus indios bravios, com os pittorescos
costumes, e hábitos originaes, guerreando constantemente os invasores
europeus, que vinham roubarlhes a terra, a caça, os lagos e os rios,
aonde viviam e viveram os seus avós: é esta a primeira differença,
histórica inteiramente. Nasce a segunda do estado actual do governo,
instituições, leis, usos e tendências: que separação
immensa entre os dois povos! Apparece ainda uma terceira, e notavelmente grave.
O americano de hoje não é mais o descendente do inglez, é
tão inglez como é este normando; procede o povo inglez de hoje
de uma única raça, saxonica, normanda, ou da primitiva, que
encontraram os romanos, quando, no seu tempo de dominio universal, se apoderaram
das ilhas d’alem da Mancha ? De certo, não. Formou-se uma nação
original da agglomeração de todos os povos, que para alli se
dirigiram, e que, inimigos ao principio, se foram, depois das successivas
conquistas, approximando e aluando, reunindo elementos heterogeneos, e fundindo
as raças. É assim hoje o povo americano. A origem foi, em geral,
britannica; mas a torrente de colonisação, e as tendencias da
democracia, a tem metamorphoseado já, de modo a nem reconhecer-se talvez
mais a tintura primitiva.

Amálgama de Allemão, Inglez, Francez. Hespanhol, Italiano,
e até de gente do Norte, tornou-se uma raça nova e distincta,
cujos traços se manifestam á primeira vista, apesar da homogeneidade
da lingua. Não pode portanto escapar a sua litteratura ás divergências
sensíveis e graves, que separam a sua sociedade da sociedade da antiga
metrópole.

Si bem que entre o povo do Brazil e o de Portugal não appareça
uma tão grande differença, porque nem as instituições,
e governo das duas nações se distinguem em tão larga
escala, e nem tem o Brazil modificado a raça conquistadora com a infusão
de sangue de outras raças diversas, como succedeu no Norte da America;
ha todavia no céo, na terra, nos mares, nos rios, na atmosphera, na
distancia, nas producções da natureza, emfim, uma separação
tão palpavel, que já, durante os tempos coloniaes, distinguiramse
alguns poetas nascidos no Brazil, pelas vestes, colorido, e tendencias de
seus escriptos, dos vates da Lusitania, si bem que a maior parte, educando-se,
e vivendo na Europa, adoptaram inteiramente os habitos portuguezes, e seguiram
as inspirações de Ferreira, Quita, e Sá de Miranda.

Souberam todavia tomar differente direcção, Cláudio
Manuel, Basilio da Gama, e Durão, que se podem appellidar os chefes
da litteratura brazileira, que hoje, com a emancipação politica,
e a vida propria da sociedade, desenvolve a sua autonomia, e segue os vôos
da aguia, que paira sobre as alcantiladas cordilheiras, que se perdem no espaço,
e espantam e embellezam os olhos dos viajantes.

Erga-se pois a mocidade brasileira! Tenha fé nos seus destinos, e
inspire-se com a patria admiravel, que lhe coube na partilha que fez da terra
a Providencia divina! Desenvolva- se a sua litteratura no meio do seu clima
esplendido e soberbo, e encontre ella no seu povo o apoio e protecção,
a que tem indisputavel direito!

PORQUE CANTO?

Porque se me extasia a mente ás vezes, E vága e vága,
aligera e perdida, Pelas soidões do Armamento ethereo, Bem como o seraphim
que esguarda os mundos, Livre os celestes páramos percorre? Porque
penetra, ás vezes arrojada, Nos mysterios reconditos do Eterno, E toda
intorna-se a seus pés,— bem como O alabastro de nardo aos pés
do Christo ? Porque se abraça em incorporeo amplexo Co’os angelicos
sêres de alem-astros, E, como a chave das eternas portas, Abre os thesouros
do poder dot Altissimo, E n’elles bebe inexhauriveis gosos?

Porque Deus — substancia eterna — D’onde minh’alma baixou,
Quer ás vezes que ella suba Ás delicias, que deixou, 1

Porque se me extasia a mente ás vezes, E por entre deliquios exaltados.

Desce ás fataes, exteriores trevas, Aos in sondaveis boqueirões
do inferno, Bem como o anjo da soberba outr’ora Pela invisivel dextra fulminado?
Porque prova um prazer terrivel, forte, Em ver a imagem d’esse horror tremendo,
Em ver a face d’esse cahos torvado, Em ver o orgulho do peccado iníindo
? Porque no fundo da geenna ardente Sentir procura as emoções
mais barbaras, Gostar deseja sensações de fogo, Como procura
a fatua mariposa Chammas de luz, que ha de, talvez, queimal-a ?

Porque Deus tambem ás vezes Para os abysmos nos lança, Para
vermos seus castigos, Seus thesouros de vingança !

Porque se me extasia a mente ás vezes, E sente em si um vacuo desmedido,
Uma infinita inanição ignota, Como talvez o espaço, o
qual se estende, Se derrama e se perde a nossos olhos? Porque procura —
sequiosa, arfando — Encher esse vazio indefinivel,

Qual para labios torridos, queimados, Enche-se um calix de crystal suave
? Porque procura, um coração extranho, Qualquer embora,—
mas que o seu não seja, Para n’elle fundir-se inteiro, inteiro, Como
varios metaes de varias sortes Ao mesmo fogo identicos se ligam ?

Porque Deus — saber eterno — Taes a nós nos quiz formar:
Quiz a hera unida ao tronco, Quiz a terra unida ao mar.

Porque se me extasia a mente ás vezes, E vága pelo mundo, e
julga os homens, Qual severo juiz, e os escarnece, E compondo um sarcasmo
ás phrases suas Co’o riso de Democrito os insulta ? Porque descrê
das affeições, que mostram, Francos, singelos, como o rir do
infante? Porque despresa um coração de amigo, Que o foi por
tempos, na apparencia ao menos, E falsario, traidor, demonio o chama, Por
um assomo de suspeita ou cholera ? Porque da creação blasphema
ás vezes, E tem por maus os sentimentos de homem, E a natureza dos
mortaes exprobra Ante o Senhor, que nol’a deu tam justa ?

Porque Deus tambem ás vezes O braço de nós retira, Para
vêrmos os perigos, Em que noss’alma se atira !

Porque se me extasia a mente ás vezes, E n’um inlevo mentiroso sonha,
E dá no seio de um prazer sem termos, Esbarrando no amor, como na imagem
Da ventura maior que o mundo offerta ? Porque se abraça n’este amor
terrestre, E as emoções mais physicas apura, E as quer, e as
busca, e tresloucado as ama Co’a mesma devoção, que aos céos
dedica ? Porque em tal modo o espirito embrutece, E vai sua alma estupida
tornando, Que ás plantas da mulher, que d’elle zomba, Chega a prostrar-se,
e jura-lhe perverso Paixão eterna, além da campa; — e
o corpo Dar ao martyrio por amor promette?

Porque Deus deixa a materia Ter tambem sua victoria, Para que,— quando
a alma vença,— Brilhe maior sua gloria!

Porque se me extasia a mente ás vezes, — E quanto fui beber
no ceu, no inferno.

No mundo, em tudo, que medito ou vejo, Por meus labios de vate se derrama
Em torrentes de harmonica linguagem?

Porque Deus poz em meu peito Um thesouro de harmonia : Deu-me a sina de seus
anjos, Deu-me o dom da poesia.

Cantarei o ceu, o inferno, O mundo,— o que me approuver Cantarei a
Deus, o homem, Os amores da mulher : Cantarei, em quanto vivo, Porque Deus
assim o quer !

O REMORSO DA INNOCENTE

Á minha irman Maria Augusta

Alma de seraphim, prenda do Eterno, Ai! quem te despenhou do céo
á terra?

I

Não sabe o nome dos crimes, Ás paixões não dobra
o dorso; Mas n’aquelle peito ingenuo Mora inquieto um remorso! Como reliquias
sagradas.

Conserva os primores seus; Mas doe-lhe não ser ainda Toda, toda —
só de Deus.

II

Eil-o, o remorso da virgem, O remorso da innocencia, Que, como a idea do
Eterno, Ameiga na consciencia.

Rezou, rezou fervorosa, Beijando seu relicario; Arfou,— qual luz matutina
Tremendo no alampadario.

E um sorriso descorado Descerrou-lhe labio e labio, Como o palor que desenha
A fronte vasta do sabio.

Beijou a lage da campa, — Da campa, que ha de ser d’ella, E vai scismar
merencoria Na gelosia da cella.

— Por simpleza arreceando Que algum phantasma não venha, A correr,
aos ares dava Suas vestes de estamenha.

Que as trevas do claustro e as tumbas Bafejam tremor sagrado; E as virgens
sempre imaginam Erguer-se um morto a seu lado.

III

Scisma a virgem mansamente Em pensa mentos do céo, Mais candida que
as rolinhas, Mais candida qu e seu véo.

E scismava : — Ai! que eu não seja Já para Deus menos
bella, Como a bonina que murcha Que eu arranco da capella ! —

E scismava : — Ai! que eu não tenha Um crime, sem eu saber!
Qual será ? — Hontem de noute Eu não pude adormecer! —

E scismava : — Ai! que eu não seja Menos linda ao meu Senhor!
Já hoje eu corri do claustro : Dos mortos tive temor…—

E scismava: — Ai! que eu não seja Ré de um crime que
eu não sei, Bem como o insecto escondido Na rosa qu’hontem cortei!

Eil-a, a scisma da donzella, Da filha da solidão; Eil-o, o remorso
que esconde Nas dobras do coração.

IV

O remorso do malvado É desespero e loucura, E a reminiscencia d’elle
O coração lhe tortura.

Mas o remorso da virgem Lhe cala na consciência, Como a placidez do
justo, Como a visão da innocencia.

PEDIDO

Não é verdade que possa-se bem
escrever, quando se soffre.
CHATEAUBRIAND.

Bello joven, tu vaguêas
Por campinas de esmeralda.
Adormentas sobre as flores
O doce amor que te escalda.

Ainda o céo te apparece
Vasta abobada de anil.
A teus olhos não ha nuvem,
Nem furacão, nem fuzil.

Inda levantas os olhos
Á tua estrella feliz,
Lês cada noute em seus raios
Mil esperanças gentis.

Depois das vizões ditosas
De teu dourado dormir,
Acordas falando amores
Com prazenteiro sorrir.

Ao ardor meridiano
Ouvem-te ainda cantar.
Não vês a magoa estampada
Na face crepuscular.

Pela escada da ventura
Sobes cad’hora um degrau,
Tua existência mimosa
É um contínuo sarau.

Bello joven, — no teu peito
Não tocou a mão da dor.
Teu espirito innocente Pode
bem pensar de amor.

Bello joven,— só tu podes
Co’os sentimentos na mão,
Falar palavras ardentes,
Labaredas de paixão.

Eu que tenho lutado contra a vida,
Bebido n’outro calice de dores,
Joven ! — não posso meditar doçuras,
Cantar ternos amores.

Eu que nunca senti nos olhos d’alma
O traspassar dos olhos da donzella,
Joven ! — não posso te pintar ardores
Que não senti por ella.

E si eu quizera, disfarçando angustias,
Cantar suave a tua bella Armia,
Joven! — de todos eu teria em paga
Um riso de ironia.

MEDITAÇÃO

Isto pensava, isto escrevo, isto tinha
n’alma, isto vai no papel: que d’outro
modo não sei escrever.
GARRETT.

Gósto de meditar de noute, ás vezes,
Como um infante,
Espasmado no olhar, fitando o corpo,
Que tem diante.
Gósto de meditar de dia, ás vezes,
Como o ancião,
A quem ideas se erguem do passado
Em borbulhão.
O infante, o ancião!—os dous extremos
Da existência;
Um á vida, outro á morte, eguaes amostram
Egual tendencia.
Este é planta mimosa, delicada,
Esperançosa:
Aquell’outro hasteada e quasi murcha,
Colhida rosa.

Este promette e cheiro e viço e ramas.
Flores ao cento;
Aquell’outro esgalhar espera as folhas
A certo vento.
E muitas vezes o sol cresta a plantinha,
Denuda e mata:
E vinga a planta antiga,— e quasi morta
Revive intacta.
O velho então é como o infante estupido,
Que nasce agora:
Magina mil vizões: sem causa ri-se,
Sem causa chora.
Si fui infante estupido e pasmado,
Adulto louco:
Si hei de ser velho, sem sentir, sem alma,
D’aqui a pouco.
Antes quizera ser infante,— quasi
Sem sensações:
Não tora ao menos conscio de remorsos,
Nem decepções.
Fosse por toda a vida infante nescio,
Sem consciencia:
Morresse alfim apenas circumscripto
Em minha essencia.

I

Porquê e para que rompeu meu corpo
Do embryão?
Que melhor que não fôra me abafasse
A compressão?
Fôra melhor. E o olho vil do hypocrita
Não me veria :
Franzindo-me o nariz atraz das costas,
Não se riria.
Fora melhor. E a seiva de amargores
Não me coara,
E a precoce da estação das dores inda
Não me chegára.
Fôra melhor. E o estigma da tristeza
Não me sellara.
Melancholica ronha os rins sensiveis
Não m’os gastara.
O coração não fôra um grosso livro
De negras laudas.
Não me açoutara a hydra dos remorsos
Co’as ferreas caudas.

Não me fôra sem flores a existencia
Contínuo hynverno.
Não me fôra este mundo um campo esteril,
Páramo eterno.
Onde só nascem, crescem e vicejam
Males sem conto.
D’onde se ceifa antecipado pranto,
Enojo prompto.
Porque e para que rompeu meu corpo
Do embryão ?
Pela miseria, e para a morte interna
Do coração!
E o Deus, que tem por escabello nuvens
De ouro e marfim,
De offendido, parece deslembrado,
— Triste ! — de mim!
Deus! para que tiraste-me do imo
Do embryão?
P’ra vida de minha alma,— ou para a morte
Do coração ?

Oh ! morra o coração,— germen fecundo
De mil tormentos.
Desfalleçam-lhe as fibras,— espedacem-se
Os filamentos.
Exempta de paixões,— de amor, ou odio,
Surja a razão.
Não obedeça escrava aos sentimentos
Do coração.
Torne-se o coração lampada extincta,
Cinza no lar.
E deixe que a razão veleje livre
Em largo mar.
Creia n’um Deus,— e dos dulçores goze
De almo ascetismo.
Não mais lhe ròa as vísceras o cancro
Do scepticismo.
A duvida infernal, batendo as azas,
Perdendo as cores,
Precipite-se subito nas chammas
Exteriores.

Sepulte-se a descrença em negras trevas
De negro inferno.
Creia a razão convicta nas justiças
Do Deus eterno.

Sim: o viburno pequenino, humilde
No prado agreste,
Vegeta ao pé da realeza emphatica
De alto cypresto.
E Deus, que vivifica o alvar pinheiro
E a tenra planta:
Que os soberbos calcina, e que os humildes
Do pó levanta:
De minha vil baixeza, como os homens,
Ah! — não se peja;
Que elle mão cheia de mil dons em todos
Largo despeja.
Mas si té’qui parece deslembrado,
Triste! — de mim :
Si não manda aguardar minh’alma dubia
Um cherubim:
Si nunca se lembrar que um ente existe
N’essa amargura,
Melhor não fora me gelasse o sangue
A morte dura?

Em sala, onde mil luzes por mil lampadas
Reparte o gaz,
D’ellas a mais pequena que se apague
Que mal que faz ?

IV

Qual rapido relampago no espaço
Sóe discorrer,
Tal, sem deixar pegadas de seu vôo,
Foge o prazer.
Foge o prazer como a andorinha leve
Os ares corta:
Como o primeiro feto — esperanças suas —
A esposa aborta.
Foge o prazer, qual setta que dispara
Indio sagaz:
Qual no deserto a voz, que um echo apenas
Nos valles faz.
Alli—bem vejo — alli pompêa esplendida
A scena aberta.
E da platêa os vacuos atacados
O povo aperta.

Jubilosas menções, palmas soantes
Rompem, murmuram.
Melliflua orchestra, tympanos sonoros
A dor lhes curam.
Os vates das paixões enamorados,
Como possessos,
Trovam, philtrando em todos o requinte
De seus accessos.
Fugazes fadas no ademan phantastico
Cysnes gorgêam.
Depois, prendendo-se a audição aos cantos,
Todos prantêam.
Arrebatam-se as almas,— magnetizam-se
Os sentimentos.
Mudam de sua acção inda os mais frigidos
Temperamentos.
Lethargia fatal! — ao outro dia
Calmos accordam.
E, somnambulos quasi,— aérias formas
Só lhes recordam.
A miseria da vida se lhes mostra
Entam real.
Catam novos prazeres: nem um d’elles
De mais lhes val’.

Qual rapido relampago no espaço
Sóe discorrer,
Tal, sem deixar pégadas de seu vôo,
Foge o prazer.

V

Hora da noute,— hora solemne e sacra
Á reflexão:
Quando do mesmo somno o pobre e o rico
Dormindo estão.
Gosto de vós, sombras da noute quêda,
Morte do dia,
Que me amparais dos callidos esgares
Da hypocrisia.
Posso então retrahir-me em minha essencia,
Viver commigo.
Não me rodêa do traidor a mascara
Com côr de amigo.
Profundo o olhar do hypocrita,—profundo
Como o oceano.
Na retina lhe luz das trevas cegas
O anjo insano.

Sorri tambem.—Esto sorriso eslridulo,
Oh ente vil,
Por dal-o mesmo assim fazes, empregas
Esforços mil!
Sorri tambem: e seu sorriso — escarneo —
Da natureza.
Seu sorriso — um preludio concebido
De malvadeza.
Quanta vez viração tepida e fresca
Serena os ares,
E procella depois revolta horrenda
Terras e mares!
Quanta vez mil delicias lá desmancha
Vaivem da sorte!
Quanta vez o prazer da vida incauta
Precede á morte!
Assim sorri o hypocrita um sorriso
De furia má.
Mentiras, manhas impias seu demonio
Grato lhe dá.
Hypocrita, que pizas o palacio
E a palhoça e a cella,
Deixa de teus furores esquecida
Uma parcella.

Não me toques na orla dos vestidos
Co’a ferrea mão:
Deixa-me entrege na soidão da noute
Á reflexão.

17 de novembro de 1831.

O APOSTOLO ENTRE AS GENTES

A Antonio Gonçalves Dias

— Foste ao principio
Sacerdote e propheta:
Eram nos ceos teus cantos uma prece,
Na terra um vaticinio.

GONÇALVES DIAS.

I

Como o brado do anathema gravado
Sôbre a fronte do reprobo, — nas terras
Pejado de baldões, invilecido
Pelos filhos dos homens, que o repellem,
Que não concebem a grandeza d’alma,
Que não escutam o pulsar dos peitos,
Que não attingem ao sublime e ao Sancto,
— O ministro de Deus, — entregue ao mundo,
A senda do viver percorre breve,
Como o rocio, que no albor do dia
Salpica as flores, e ao calor se estanca.
E dorme o eterno somno em campa escura,
Placido, — como o espirito do justo:
E ainda no olvido d’essa mesma campa

Penetra o riso moíador dos homens,
E o molejo do callido philosopho,
Presumido de si, — como a ignorancia,
Que lhe preside aos erros e aos sophismas.
— Nem se queixa: — que é findo o seu martyrio,
Unica herança, que ao nascer lhe coube!

II

O varão do Senhor, — Moysés, o justo,
Pulsou primeiro os nervos do psalterion.
E o estro virgem resumbrou-lhe aos labios,
Como a torrente, — impetuoso e sancto.
Subiu aos céos, nas azas dos archanjos,
Um hymno a Deus, que lhe accendera a mente.
E o typo entam de sua omnipotencia
Ao ser finito transmittiu-se.— O povo
Ouviu na terra a incognita linguagem,
— A linguagem do Eterno. Ouviu-a extatico
O mundo inteiro, no estupor do espanto,
Como a explosão volcanica primeira.
Estreme que era o fogo do propheta,
E a voz e os olhos e o accento e o cenho!
Justiça do Senhor ! — Após os tergos
Sepultado o cavallo e o cavalleiro
Nas aguas do mar-rubro : — o d’ante os olhos
Esses vergeis da intacta Palestina,

Promettendo delicias suavissimas,
Como os olhos da noiva espreguiçados
Nas expansivas, rutilas pupillas
Do paranympho, que lhe assiste ás bodas
Ao mando do Senhor, e á noote e ao thoro
Lhe prophetiza trefegos amores.
Esses sublimes alcantis e cêrros,
D’onde desciam por quebradas trêmulas,
Lambendo os troncos de copudos cedros,
Beijando as hasteas de mimosas flores,
Entre os convulsos silices de gemmas,
De mel e leite os trepidos arroios.
Oh Palestina, oh virgem dos mysterios!
Quem assentado em teus alpestres pincaros,
Sentindo o vendaval soprar-lhe a grenha,
E o cedro secular rompendo as nuvens,
Como um gigante,— e ao sopé dos montes
O rio a murmurar, como a donzella
Juncto do amante a desfazer-se em queixas,
E ao longe a voz dos vagalhões bramindo
Horrenda mais que a confusão do inferno,
— Quem podera deixar de ser poeta
Ao menos uma vez,— oh patria de anjos,
Oh Palestina, oh virgem dos mysterios!

III

Alli foi educado, entre as palmeiras
E o cedro e o murmurar do regato e as penhas
E o rugido dos mares e as procellas,
— O genio enthusiastico do apostolo.
Elle entre as tribus assomou severo
Ás portas de Sion, co’a voz constante,
Como o rugido do leão das selvas.
Vinha vestido de sinistro sacco,
E predizia a vinda do Homem-sancto,
Do máximo dos vates : — mas as tribus,
As impias tribus, e os rabbis fanaticos
Escarneceram do pregão do apostolo,
Escarneceram do poder do Eterno.

IV

Elle descreu dos homens e da terra,
E para alçar mais livre aos céos os olhos,
Subiu tambem aos corucheus altivos
Das columnas do Egypto, que campêam
Aqui, alli, a recontar ás eras
Em seus gastos lavores hieroglyphicos
A vaidade dos reis e a falsa crença.

Em derredor o viajor parava,
Fixava n’elle os curiosos olhos,
E tremia de ouvir-lhe a voz prophetica.
E em torno á fronte lhe brilhava um disco
De fogo mais que sancto,— como alquando
Moysés descendo do Sinai co’as taboas.
Mas os homens alfim o escarneceram,
Escarneceram do pregão do apostolo,
Escarneceram do poder do Eterno.

V

Elle escondeu-se na soidão das lapas,
Nas desertas montanhas de Cassino,
Fugindo Roma,— a dona dos triumphos,
Roma, — a senhora das nações da terra,
E os bailes d’ella e as civicas delicias
E os aulicos salões, onde reinavam
A mentira, a traição, o vicio, e o crime,
Disfarçados nos rizos dos hypocritas,
Nos ademães dos cortezãos immundos.
Elle escondeu-se.— E os homens o seguiram,
E o viram co’a cabeça reclinada
Em pedra rigida,— e deitado em thalamo
De urtigas.— Mas alfim o escarneceram,
Escarneceram do pregão do apostolo,
Escarneceram do poder do Eterno.

Hoje, porem, elle não mais assoma
Severo e forte ás portas da eidade,
Como o bramido do leão das selvas.
Não mais remonta aos corucheus altivos
Das columnas do Egypto hieroglyphico,
Co’o disco em torno do semblante acceso.
Não mais asyla-se ao deserto e ás lapas,
Não foge Roma,— a dona dos triumphos,
Roma,— a senhora das nações da terra.
Mas os filhos dos homens o escarnecem,
Inda escarnecem do pregão do apostolo,
Inda escarnecem do poder do Eterno.

VII

Oh destinos do ceu ! — porque não somos
Ainda agora os indios das florestas?
Porque degenerado em nossas veias
Gira tam raro o sangue do tamoyo ?
Porque esse fogo irrequieto e vivido,
Como o corisco a recortar o ether,
— Porque esse fogo, que accendia os olhos,

E o peito immenso do tupi guerreiro,
Nos olhos e no peito de seus filhos
Estanque e frio e gelido volveu-se ?
Barbaros eram.— Mas em ranchos longos,
Nos tejupcás pendido das imbiras
Desamparando o vibrador tacape,
E meneando os collos inlaçados
Das correntes das perolas do rio,
E assuberbando as pequeninas testas
Co’o variegado kanitar nutante,
E cingindo ao redor do esbelto corpo
As multicores lindas arasoyas,
Das araras á purpura roubadas,
— Demandavam as ocas tenebrosas
Dos severos e ascéticos piagas.
E os consultavam nas emprezas arduas,
E decoravam seus orac’los sanctos,
E decantavam seus poemas mysticos,
Gomo o primeiro beijo da donzella
Dado furtivo entre o amor e o pejo
Nos labios caldos do donzel, que a vida
Expandir-se-lhe sente em molles pulsos.
— Oh ! que não somos os briosos tapes,
Filhos da virgem da guerreira America!

Era o supremo Deus omnipotente
Tupá — o sábio auctor da linda lua,
Do sol vermelho e das montanhas de ouro
E dos busios marinhos, e dos cardos

Que o viajor nos areaes saciam,
E do azulado beija-flor das veigas
Que trebelha brincão entre os arbustos,
Como os desejos sofregos do amante.

Que tinha? — Deus é Deus! — vozes não
mudam
O ser do Eterno — identico,— immutavel,
Nos planetas do ceu — si mundos forem —
Ou só na terra, si ella é só no immenso.
Jehovah, que expedia o archanjo ethereo
Em vante dos exercitos hebraicos
Co’o facho acceso em fogo inextinguivel:
Brahma, que transmittiu a luz celeste,
E o puro espirito e a energia e a fórma,
De que é principio,— aos fabulosos indios :
Theos, que deu aos gregos mythologicos
Um vasto olympo arcado de myriadas
De lindos deuses,— symbolos dos gostos :
Tupá, que ingendra no infinito espaço
O trovão co’os bulcões vertiginosos
E os chuveiros de pedra e o raio e a morte:
— Tudo é Deus, tudo é Deus! — o mais sam nomes.

Vlll

Nos adytos do mystico pagode
O ministro de Brahma aspira incensos.

O augure de Theos, assentado
Na tripode tremente, auspicios canta.
O piaga de Tupá, severo e casto,
Nas ócas tece os versos dos oraculos.
E o sacerdote do Senhor,— sosinho,—
Cuberto de baldões a par do reprobo,
Ante o mundo ao martyrio o collo curva,
E aos céus cantando um hymno sacrosancto,
Como as notas finaes do orgam do templo,
Confessa a Deus; e — confessando — morre.

O JESUITA (SECULO XVIII)

Deus é que dirige estas cousas : elle
permitte que existam imperadores e algozes
para que haja sanctos e martyres:
elle eleva os imperios para que haja lagrymas,
castiga para regenerar.
LACORDAIRE

Era longe — bem longe: e eu vim primeiro
Scindindo as ondas d’esse mar profundo.
E por amor da Cruz vaguei sosinho
Nas invias mattas d’esse novo mundo.

O tamoyo gentil hervava as settas,
Quando pelos vergeis, tam’seus, me via:
E co’os olhos phosphoricos ardendo
A taquara fatal a mim tendia.

E tendia a taquara,—mas ao ver-me
Quam sem temor e quam inerme estava,
Trocando em doce o sen olhar fogoso,
O arco e a setta pelo chão rojava.

De mim as tribus barbaras, indomitas,
De mim o verbo do evangelho ouviram.
E ergui a cruz nos pincaros dos montes,
E após o verbo os povos me seguiram!

Eu disse ás tribus: — Todas vós sois ricas,
— Que o ouro e a prata o solo vosso esmalta.
Sois ricas tribus,— mas não sois felizes,
Porque uma crença de um só Deus vos falta.

E eu dei às tribus uma crença doce,
Qual uma chuva de manná celeste:
E as tribus foram desde entam felizes,
Qual flor pomposa que os jardins reveste.

E quando os reis da terra se esqueceram
Das tribus dadas a seu sceptro forte,
Eu levantei-me, e disse aos reis da terra,
— O povo geme: transmudae-lhe a sorte.—

Eternos templos eu ergui sosinho,
Eternos como a duração da terra.
E sosinho sagrei altares tantos
Ao Deus que aos impios c’o trovão atterra.

Eu dei ás tribus uma crença doce,
Eu levantei alcaceres eternos.
Deram-me os homens prescripção e morte,
Deram-me em premio as fezes dos infernos.

A FLOR MURCHA DO ALTAR

A PEDIDO DE FR. FRANCISCO DA NATIVIDADE CARNEIRO DA CUNHA

— Quem não sabe ser Erasmo é
que deve pensar em ser Bispo.
LA BRUYERE.

I

Está murcha : — assim nos foge
A briza que corre agora.
Está murcha : — assim o fumo
Cresce, cresce,— e se evapora.
Está murcha : — assim o dia
Em raios affoga a aurora.
Está murcha: — assim a morte
Do mundo as glorias desfaz:
Assim um’hora de gosto
Mil horas de dores traz :
Assim o dia desmancha
Os sonhos que a noute faz.

Está murcha…. Ainda agora
— Eu a vi — não era assim.
Era linda, era viçosa,
Accesa como o rubim.
Reinava, como a rainha,
Sôbre as flores do jardim.

II

Foi a donzella mimosa,
Foi passear entre as flores.
Foi conversar co’as roseiras,
Foi-lhes contar seus amores,
Julgando que sôbre as rosas
Não se reclinam traidores.
Ella foi co’os pés formosos
Deixando mimoso rastro,
Qual no ceu passou de noute,
Correndo, fulgindo, um astro.
E esta rosa foi cortada
Com seus dedos de alabastro.
A rosa ficou mais bella
N’aquella virginea mão.
Encheu de perfume os ares,

Talvez com mais expansão.
Mas a virgem teve á pena
De pôl-a em seu coração.
Entrou no templo a donzella
Cuberta co’o veu de renda.
— Teme que aos olhos dos homens
Sua modéstia se offenda:
Como a cortina das aras,
Que aos impios se não desvenda.
Leva a modéstia na fronte,
Leva no peito a oração,
Leva seu livro dourado,
Leva pura devoção:
Leva a rosa,— a linda rosa
Nos dedos da breve mão.
Rezou : — e depois ergueu-se,
Dirigiu-se ao sanctuario,
Modesta,— qual sua prece,
Qual a luz do alampadario:
E depoz a linda rosa
Ao pé do sancto calvário.

III

Os anjos depois vieram,
Respiraram sôbre a flor.
A flor cobrou mais belleza,
Mais gala e mais explendor.
Alli ao pé do calvario
Deu mais expansivo odor.
Alli parecia aos olhos Crescer,
crescer… Mas agora?
Agora murcha — tam murcha —
Não tem a gala de outr’ora.
— Assim o fumo do tecto
Cresce, cresce,— e se evapora.
Assim as horas do tempo
Correndo, correndo vam.
Assim passou inda ha pouco
O matutino clarão.
Assim hontem foste infante,
Assim hoje és ancião
Murcha, murcha! — não expande
Jamais seu odor intenso.

Ha de seccar — feliz d’ella —
Juncto á Cruz do Deus immenso.
Ha de aspirar sobre as aras
O cheiro do grato incenso.
Feliz! — seu leito de morte,
Sobre as aras, ella tem.
A prece que vai ao ceu,
Sôbr’ella primeiro vem.
A myrra que a Deus incensa,
Incensa a ella também.
(1853).

O INCENSO DO ALTAR

I

Os sons do facil orgam :
A voz dos corypheus
As orações dos crentes:
O susto dos atheus:
Tudo apregoa e próva:
— Aqui domina Deus!—
Silencioso esteve,
Ha pouco,— o sanctuario :
Qual a mudez, que guarda
Jazigo mortuario:
Qual o terror do nauta
Em mar tumultuario.
As almas dos finados
Erguiam-se do pó:
Chocando-se torvadas,
Cruzando as naves só:
Contando ás columnatas
As ancias de seu dó.

Fugiram já,— fugiram
Dos sacros penetraes:
Qual foge de repente,
Da mente dos mortaes,
Do mal a triste idea
Com a dos bens reaes.
Purificou-se o ether:
Espectros mais não ha.
Sôbr’elles cáe a campa,
E um ôco baque dá.
Sumiram-se no abysmo:
Deus não n’os ouve já.
Agora intôa o coro
Hymnos de compuncção.
Levanta a voz dos crentes
Altivola oração.
Atheu ! — medita: é tempo
De ainda haver perdão.
Não te commovem alma
Os cantos dos christãos ?

As notas, que produzem
Do organista as mãos ?
As notas, que percorrem
Do templo pelos vãos ?
Nem das nuvens de incenso
O quente rescender?
Que vam nas mãos das auras,
No tecto esvaecer ? —
Impio! tu não tens alma,
Ou não n’a queres ter ?
Vê como sobe o incenso,
Quaes globos de um bulcão.
Vê como cresce a reza,
Quaes lavas de um volcão.
Vê como incanta a orchestra,
Qual voz de um furacão.
Vê tanto enthusiasmo
Na face d’esses crentes.
Vê tanta confiança
Em almas tão tementes.
Vê tanta fé em Deus,
— No Deus que não consentes!
Si não te mente, oh impio,
Esse systema teu:

Si não é como o rizo
De ambiguo phariseu:
Como o fallar do hypocrita,
Que tambem é atheu:
Que inferno de torturas
A mente não te côa!
Ao doce som do orgam,
Que pelos vãos rebôa!
Aos cânticos sagrados,
Que o povo e o coro intôa !
Ás preces do ministro,
Que ao Christo, por ti, ora!
Á face d’esse templo,
Que os lábios te descora!
Qu’ao Deus,— que negas, impio,—
E louva e reza e adora!
Compunge-te — e conhece
De Deus a justa mão.
Vem commungar do calix
Dos gosos do christão;
Que sentirás arroubos,
Que terás alma entam!
Vê como sobe o incenso,
Quaes globos de um bulcão!

E pelo tecto rompe,
Quaes lavas de um vulcão!
E aos ceus leva a fragancia,
— Veloz, qual um pegão!
Vê como sobe o incenso,
Que aromatiza o altar:
Suave,— qual a briza
Entre o fervor do mar:
Suave,—qual dos anjos
O doce respirar.

III

Ai! — praza a Deus que breve,
Tam breve como a flor,
Ardendo o incenso,— ardendo,
Qual virginal rubor,
Transponha aos céus a alma
Do triste trovador!

O MISANTROPO

AO MEU AMIGO

LUPERCIO GAHAGEM CHAMPLONl

I

Debalde procuro O
campo, as florestas: Imagens
funestas Me seguem té
lá. Nas lapas, nas
rochas, Debaixo da terra,
Um busto me atterra, Um
homem está.
Co’os olhos brilhantes, Co’as faces
formosas, Co’os lábios de rosas,
Surri-se p’ra mim. Debalde lhe
amostro Medonho o semblante:
Co’um gesto galante Responde que
— sim.

Na areia da fonte,
Nas urnas do rio,
Meu rosto sombrio
Si incontra co’o seu.
Ajuncta seus labios,
Bebendo commigo, —
Fatal inimigo
Que o fado me deu.
Correndo assombrado
Do vulto gravoso,
Veloz, pressuroso,
Demando a soidão.
Mas, inda correndo,
Si volto co’os olhos,
Incontro os sobrolhos,
Da eterna vizão.
E sempre a surrir-se.
Qual moça innocente,
Co’um modo contente
Dizendo-me adeus.
Renego-te, oh anjo
Fatal, sempiterno,
Ou venhas do inferno,
Ou venhas de Deus!

II

Nos raios da aurora,
Nos trinos das aves,
Nas brizas suaves,
Na voz da manhã,
Em pé, sobre os montes,
Co’um brado que atterra,
Maldigo essa terra
Tam ampla, tam van.
Os homens odeio,
Com odio profundo,
Com odio, que o mundo
Não pôde intender.
Entam, quanto quero,
Derramo do peito
O fel, que, desfeito,
Não posso conter.
E clamo em discursos,
Em odes atrozes, E os
brutos ferozes
Me temem de ouvir,
Dos raios que attiro,
Feridas as selvas,

De folhas, de relvas
Sè fazem despir.
Maldigo as estreitas,
As nuvens, a aurora,
A queixa sonora
Das aves do ceu.
Maldigo esse incanto
Que abysmos incobre,
— Mulher que se cobre
Co’as dobras de um veu.
Maldigo a sciencia
Que os homens tortura,
— Formosa loucura
De face louçan;
Procella da insania,
Pegão de sophismas,
Montanha de prismas,
Figura de Pan.
Maldigo a virtude
Instável cad’hora,
Democrito agora,
Agora Catão:
Phantasma versatil,
Extranho, não visto,
Que ri-se no Christo,
Que chora em João.

Sedento da raiva
Que nunca me finda,
Mais válido ainda,
Maldigo meus paes.
Depois, elevando
A vista ao superno,
Maldigo do Eterno,
Por ser dos mortaes.

III

E sempre esse busto
De homem que odeio,
Me vem, sem receio,
Constante, escutar.
E a cada discurso,
Que franco improvizo,
Responde co’um rizo,
E põe-se a calar.
No seio das rochas
Debalde me amparo,
Que sempre o deparo
Co’um rizo dos seus.

Castigo infinito,
Tantalico, eterno.
Que veiu do inferno
Por ordem de Deus!
Em cima da rocha
Me assento ferino
Com gesto assassino
Buindo um punhal.
Mas elle desata,
Deixando-me em pasmo,
Com rude sarcasmo,
Risada brutal.
E corro demente
Por invias devezas,
Co’as faces accezas,
Co’o ferro na mão.
E o busto sinistro
Recua voando,
De frente me olhando
Co’um rizo brincão,
E sempre a surrir-se,
Qual moça innocente,
Co’um modo contente
Dizendo-me adeus!

Castigo infinito,
Tantalico, eterno,
Que veio do inferno
Por ordem de Deus!

A ORPHAN NA COSTURA

Ella lhe ensinou a levantar suas
mãos puras e innocentes para o ceu,
a dirigir seus primeiros olhares a seu
Creador.
FLECHIER.

Minha mãe era bonita,
Era toda a minha dita,
Era todo o meu amor.
Seu cabello era tam louro,
Que nem uma fita de ouro
Tinha tamanho esplendor.
Suas madeixas luzidas
Lhe cahiam tam cumpridas,
Que vinham-lhe os pés beijar.
Quando ouvia as minhas queixas,
Em suas aureas madeixas
Ella vinha me imbrulhar.
Tambem quando toda fria
A minha alma estremecia,
Quando ausente estava o sol,
Os seus cabellos cumpridos,

Como fios aquecidos,
Serviam-me de lençol.
Minha mãe era bonita,
Era toda a minha dita,
Era todo o meu amor.
Seus olhos eram suaves,
Como o gorgeio das aves
Sobre a choça do pastor.
Minha mãe era mui bella,
—Eu me lembro tanto d’elia,
De tudo quanto era seu!
Tenho em meu peito guardadas
Suas palavras sagradas
Co’os rizos que ella me deu.
Os meus passos vacillantes
Foram por largos instantes,
Insinados pelos seus.
Os meus labios mudos, quedos
Abertos pelos seus dedos,
Pronunciaram-me: — Deus!
Mais tarde — quando accordava
Quando a aurora despontava,
Erguia-me sua mão.

Fallando pela voz d’ella,
Eu repetia singela
Uma formosa oração.
Minha mãe era mui bella,
— Eu me lembro tanto d’ella,
De tudo quanto era seu!
Minha mãe era bonita,
Era toda a minha dita,
Era tudo e tudo meu.
Estes pontos que eu imprimo,
Estas quadrinhas que eu rimo,
Foi ella que me ensinou, As
vozes que eu pronuncio.
Os cantos que eu balbucio,
Foi ella que m’os formou.
Minha mãe ! — diz-me esta vida,
Diz-me tambem esta lida,
Esta retroz, esta lan :
Minha mãe! — diz-me este canto,
Minha mãe ! —diz-me este pranto,
— Tudo me diz: — Minha mãe! —
Minha mãe era mui bella,
— Eu me lembro tanto d’ella.

De tudo quanto era seu ! Minha mãe era
bonita, Era toda a minha dita, Era tudo e
tudo meu.

MEU FILHO NO CLAUSTRO

CANÇÃO MATERNA

Eu não sou tua mãe que te préza?
Tu não vês meus cuidados maternos ?
E me escondes as dores que sentes?
Não sei eu teus desgostos internos ?
Eu te disse, meu filho, eu te disse
Que jámais te apartasses de mim.
Tu quizeste, meu filho, tu foste,
Tu agora padeces assim.
Tu deixaste meu seio materno,
Tu deixaste teu pae tam doente!
Vê teu pae, como, gasto de angustias,
Chora e geme — perdido e demente.
Tu deixaste os logares da infancia,
Mais as flores do nosso jardim.
Já não brotam, não cheiram as flores,
Já não deitam perfumes assim.

Já não deitam botões as roseiras,
Já não deitam si quer uma flor.
Elias sentem, percebem — coitadas —
Que perderam também seu cultor.
Eu beijei teu fantil jasmineiro,
E pedi-lhe em teu nome um jasmim,
Veiu a briza, moveu-lhe a folhagem;
Percebi que negava-m’o assim.
Tuas plantas bem sabem — coitadas —
Que perderam seu lindo cultor.
Elias sabem tambem que tu vives
Sepultado no abysmo da dor.
Teu presente, meu filho, é tão triste!
Que será teu futuro e teu fim?
E quem póde esperar mais horrores
Quem começa com tantos assim!
Tu quizeste ser monge, tu foste,
Tu sahiste da casa paterna.
Insultaste os maternos pedidos,
Mais a queixa infantil e fraterna.
Teus irmãos levantaram mil vozes
Com seus lábios de ardente rubim.
E clamaram, — coitados — chorando,
Que não ha, como o teu, genio assim!

Tu cortaste os anneis dos cabellos,
_ Teus cabellos, que eu tanto estimava.
Eu por elles chorei… tu surriste,
Tu mais fero que a fera mais brava!
Eu por elles chorei: — que elles eram
Lindos fios de preto setim.
Para seus tua irman os queria,
Que os não tinha tam bellos assim.
As mãosinhas da irman que te chora
Teus cabellos, brincando, alizavam.
Quantas vezes meus lábios sedentos
Teus cabellos, meu filho, beijavam !
Hoje — que é de teus lindos cabellos,
Tam corridos, qual preto setim ?
Hoje tens desnuada a cabeça,
— E que frio não sentes assim ?
Mas eu tive coragem p’ra ver-te
Adornado de crepe feral.
E te vi revestido a cadaver,
Como a face do genio do mal.
Eu a Deus perguntei: — Pois ao mundo
Para as dores somente é que eu vim?
Para ver e sentir que meu filho
Dá-me tantos martyrios assim?

Nos degraus dos altares ao longo
Te prostraste co’a face no chão.
E juraste ao Eterno ante os homens
Que meu filho não eras mais não.
Blasphemei nesse instante do Christo
Nos assomos do meu phrenezim.
— Os amores de pae não sam nada,
Os extremos de mãe sam assim!
Blasphemei d’esse Deus que arrancava
De meus braços meu filho querido:
Que despia-lhe os trajos de seda,
Para dar-lhe um funereo vestido.
Blasphemei d’esse Deus que lhe impunha
Ferreos votos, eternos, sem fim:
Que seus filhos por victimas conta:
Que quer tantos martyrios assim!
É mentira. Essa lei violenta
Não foi feita por Nosso Senhor.
Nosso Deus não nos prende com ferros,
Mas com laços de docil amor.
Não inveja da mãe os prazeres,
Como rozas ornando o festim.
Não lhe dá innocentes filhinhos,
Para em vida arrancar-lh’os assim.

Blasphemei! — e no reino das chammas
Dos demonios ouviu-me a cohorte:
E rompeu n’uma horrível orchestra,
Digna festa dos filhos da morte!
A minh’alma riscou-a em seu livro
De meu Deus o cruel cherubim.
Não faz mal: foi por ti que perdi-a.
Oxalá que eu ganhasse-te assim!
Mas tormentos opprimem teu peito
Mais terriveis talvez que este inferno.
Sim: tu soffres, — eu sei, — mais angustias
Do que soffre meu peito materno.
Já não brinca o prazer em teus olhos
Mais travessos, que vivo delphim,
As tristezas, que affêam teu rosto,
Não ha d’ellas nos homens assim.
Não me escondas, meu filho, estas penas,
De pezares communs não me prives.
Eu bem sei que sem mim — entre extranhos —
É difficil a vida que vives.
Vem, descerra, meu filho, estes labios,
Onde vi transpirar-te o carmim.
Foste ingrato, é verdade: mas sabe
Que eu te estimo, meu filho, inda assim.

Entre a febre teu pae se revolve
Nesse leito que outr’ora foi teu.
Grita, clama, tactêa, procura Só
por ti — primogênito seu.
Foste ingrato! — deixaste teus lares,
Teus irmãos, mais teu pae, mais a mim.
Tu quizeste ser monge, — meu filho,
Tu agora padeces assim!

MILTON

Ao joven poeta Odorico Octavio Odilon

Fôra devida ao genio outra homenagem:
Mas a offrenda do pobre agrada ao sabio.

Lá vai Milton, lá vai. Fatuos inglezes,
Dobrae a curva ante o moderno Homero.
Nos campos de Albion, tremente e cego,
Inda tactêa inspirações e carmes.
Vêde-o: — cançado lá se ar rima á esposa,
Que num abraço lhe sustenta o corpo.
Lá vai Milton, lá vai. Fatuos inglezes,
Dobrae a curva ante o moderno Homero.
Co’a pupilla sem luz procura embalde
Fitar o sol, onde um archanjo habita.
Vate divino, — elle enxergara outr’ora
Nos raios d’este sol descendo os anjos.
N’um de seus raios elle ainda espera
Que um anjo venha, e lhe esclareça a vista.
Lá vai Milton, lá vai. Fatuos inglezes,
Dobrae a curva ante o moderno Homero.

Em vão a filha que escreveu-lhe os cantos
Dirige os olhos do cantor do Empyreo.
Em vão a incerta e tremula retina
Crava-se immovel no luzente raio.
Não mais o anjo, que elle vira outr’ora,
Desliza lá do sol, baixando á terra.
Lá vai Milton, lá vai. Fatuos inglezes,
Dobrae a curva ante o moderno Homero.
Não mais o Éden, como d’antes, flore,
Não mais o cedro vai topar co’as nuvens.
Não mais o homem, pelos prados livre,
Medita Deus, medita amor, — e dorme.
Não mais essa mulher perfeita e nua
Sonha innocencias, e innocencias falla.
Lá vai Milton, lá vai. Fatuos inglezes,
Dobrae a curva ante o moderno Homero.
Milton, Milton não vê o ceu que canta,
Não vê a terra cujas cores pinta.
A esposa, a esposa é-lhe invisível mesma;
Só pelo espinho reconhece a rosa.
Chora entre os cantos, rouxinol celeste:
Só pelos prantos reconhece os olhos.
Lá vai Milton, lá vai. Fatuos inglezes,
Dobrae a curva ante o moderno Homero.
Mesmo entre prantos mavioso canta
O ceu e a terra e o lobrêgo do inferno.

Abrem-lhe Homero as alvas mãos da esposa.
Vai-lhe a filhinha transcrevendo os carmes.
Em meio do labor correm-lhe as lagrymas,
Que a esposa e a filha inxugam-lhe com osculos
Lá vai Milton, lá vai. Fatuos inglezes,
Dobrae a curva ante o moderno Homero.
Dorme depois,— e no dormir re-sonha
Co’os lindos anjos, que pensou de dia.
Antes do sol accorda,— e vai co’a esposa
Ao som de cantos despertar a aurora.
E sempre espera que n’um raio acazo
Desça algum anjo e lhe illumine a vista.
Lá vai Milton, lá vai. Fatuos inglezes,
Dobrae a curva ante o moderno Homero.
Cromwel no solio venerou tal homem.
Depois um despota acatou-lhe o orgulho.
Pobre inda é livre,— como cego e velho
Inda tactêa inspirações e carmes.
Limpa-lhe a filha as lagrymas com osculos.
Sustém-lhe o corpo co’um abraço a esposa.
Lá vai Milton, lá vai. Fatuos inglezes,
Dobrae a curva ante o moderno Homero

POBRE E SUBERBO

— A pobreza orgulhosa explica
o cynismo do muita gente.
MARQUEZ DE MARICÁ.

I

Alli n’aquelle alvergue derrocado
Pela sanha do norte
Um velho existe,— que libara um dia
Os osculos da sorte.
Ás portas lhe bateram os prazeres
Dourados de ventura.
Surriram-lhe os amores incantados
Surrizo de doçura.
Infindo pellotão de amigos nobres
Subia-lhe as escadas.
Co’esgares de paixão lhe olhavam ternas
As damas affectadas.
Tocou-lhe um dia na intonada fronte
O dedo da desgraça.
E, qual fumo disperso pelos ares,
Seu fastigio esvoaça.

Desappareceu,— qual vento, a chusma innumera
De tanto e tanto amigo.
E os filhinhos ao peito, a esposa ao lado,
— Chorava sem abrigo.
Dominando a montanha, — hontem viçava
Pinheiro alevantado.
Rugiu de madrugada o sul teimoso:
Eil-o no chão prostrado !
Talvez da providencia a mão piedosa
Mostrou-lhe esta choupana.
Pelo aceno de Deus talvez a alçaram
O côlmo e a agreste canna.

II

Vegeta o velho alli. Si dorme,— accorda-o
Dos filhos o lamento.
Si accorda,— escuta a esposa repassada
De dor, fome e tormento.
Muito cedo a cabeça incaneceu-lhe
Miseria e dissabor.
Não sabe trabalhar : — estava feito
Á paz, ao somno e amor.

Problema incrível lhe parece ao menos
Tam veloz decadencia.
E não sabe suster o azar da sorte
Com constancia e prudencia.
E não sabe buscar,— de tonto e fatuo,
Em Deus consolação.
E não sabe incensar os pés do Eterno
Co’os fumos da oração.

III

Hontem de tarde ergueu-se.— A esposa e os filhos
Em torno se ajuntaram;
E, como ecchôa um frêmito de espectros,
— Fome, fome! — gritaram.
E pegou do bordão: — qual temulento,
Foi caminho d’aldêa.
Pedinchando,— era um grande que imperava
Com voz ingente e chêa.
O passageiro olhou-lhe os vis andrajos
E o sobrecenho horrível.
Meneou-lhe a cabeça,— e escarneceu-lhe
A nobreza rizivel.

Avezado a mandar — um potentado
Não deve pedir nunca;
Embora os rins sensíveis lhe comprima
A mão da fome adunca.
Chamam-lhe a isso n’esse mundo os homens
— Constância e pundonor.—
E, .dos nomes co’a cor, cuidam que apagam
Da suberbia a côr.

IV

O velhinho voltou : — injusto e têsto
Maldiz o ceu e a terra.
E torrentes de affrontas e blasphemias
Do peito desincerra.
Assim como um tyranno, que aguardava
Da turba a subjeição;
Mal-soffrido se assanha, quando escuta
Ao seu dictame um «não.»
E grave entrou no alvergue: — os olhos torvos,
A catadura má.
Hí vai fallar,— e a voz, que a raiva ingasga,
Rouco mugido dá.

Nos olhos lhe adivinham os filhinhos
O bem, ou mal, que traz.
Physionomistas por precizo instincto
A natureza os faz.
E a mãe co’os filhos um funereo pranto
Entam do peito arrancam.
Só não chorava o velho, — que co’a raiva
As lagrimas se estancam.
Pranto e pranto de morte alevantaram
Os filhos,— recordando
Que sustento mal-são, — herva dos campos
Ainda irão catando.

Ai! — que entrasse do pobre na guarida
Benfeitor generoso,
Que na tripeça lhe deixasse adrede
Montão de ouro abundoso!
Vel-o-ias — o velho, remoçado,
Desamparar a choça;
Na ventura olvidar essa tristeza,
Que o coração lhe roça.

Tal em lindo jardim roseira debil,
Que o hynverno desnudara,
Na primavera já pimpolha ovante,
Como si não murchara.
Porém talvez ao benfeitor nas costas
Imbebera um punhal:
Ou em dourada taça propinara-lhe
Um toxico fatal.
Sobre suberbo,— ingrato ! Eil-a do velho
Inteira a apologia.
Ham de sel-o também os innocentes
Filhinhos que elle cria.
Os leõesinhos dos leões aprendem
Sanha e sede de sangue:
Vam gostando de ver os paes sedentos
Tragar a prêa exangue.
E — rarissimo caso,— que entre os trances
E os soffrimentos seus,
Uma só vez os lábios do velhinho
Não invocaram Deus!
O nome do que só,— de seu espirito
Deu alma aos ceus e á terra.
Quem sabe si no peito o velho, timido,
— Como um thesouro, o incerra?

Ou nado em ouro e per’las,— e educado
Em luzido salão,
Por ventura seus pães não lhe insinaram
Siquer uma oração!
Ai! — que vida o velhinho irá vivendo, —
Que vida de miseria,
Té que se lhe desprenda o lasso espirito
Das pêas da materia !

VI

Mancebos, que passais,— deixae o velho
Viver na paz da morte:
Que um dia elle já foi,—como vós-outros.
Rico dos dons da sorte.
Mancebos, que passais,—deixae o velho
Chorar ao pé da porta.
Não n’o insulteis,— já que a desgraça d’elle
Tam pouco vos importa.
Sêde, oh jovens brincões,— mais generosos,
— E não n’o escarneçais.
Mais antes venerae nas cans do velho
As cans de vossos paes.

Bem vêdel-o tranzido.— A magra fome
As vísceras lhe esfola.
Não lhe olheis a arrogância,— oh bons mancebos,
Mas dae,— dae-lhe uma esmolla.
1851.

OS CLAUSTROS

(SECULO XVIII)

A Frei Arsenio da Natividade Moura

Tu, que sabes chorar a crença exangue,
— Crente ! — desamarás os ais de um crente ?

I

Dorme, dorme teu somno, oh van cidade,
Dorme teu somno sensual e podre:
Que as estrellas e a lua,— de offendidas,
O inutil brilho em negro veu trocaram.
Carranca enorme de chumbadas nuvens
A côr dos céus trocou na côr do abysmo.
É noite: e noite de pavor é ella,
Sacra aos mysterios de esquecidos tumulos.
Sosinho o bardo aqui,—co’a noite e as trevas!
Só elle aqui: — que o mundo é morto agora
Nos braços do lethargo,— irmão do nada.
Só elle aqui co’as campas dos finados
Na latidão dos claustros solitarios.

Que appontando co’o indice da morte
Aos carcomidos dísticos das lapidas,
Surrindo-se, lhe solvem o problema,
—Arduo problema,— do que monta o mundo
E a vida e os homens e a vaidade d’elles.
Que ahi não haja uma alma, qual a sua,
Que ria-se da guerra e paz do mundo,
— Ai! que differe a paz da guerra d’elle ? —
E,— qual vigia no arraial do exercito,
A noute vele entre o dormir das armas,
E a sós co’o trovador, co’os seus inlêvos —
Venha, arroubada, commungar dos saibos
Do absinthio amaro,— que chamaram — vida ?
Não: sosinho — é melhor. Sosinho o cysne
No vazio dos ceus mais livre adeja.
Aqui não ha mister de alma bastarda,
Impura,— como os vermes do sepulchro,—
Que lhe immole a innocencia dos pensares,
Quando na mente se fermentam inda
Tumultuosos,— qual do ninho escasso
O bando das alcyones garridas
Desprega o vôo pelo vão dos ares.
Aqui não ha mister de alma bastarda,
Que as emoções mais intimas lhe insulte,
Antes que saltem as idèas fóra

Do cerebro, que apenas as continha,
De pequenino,— e pelos labios francos
Em simples fôrma rápidas ressumbrem:
Tal ao sereno exposta,— inteira a noute,
Amphora cheia do licor mais puro,
Lá por ante-manhan, fervendo ao frio,
— Aventou com fragor,— e a lympha clara
Se expandiu pelo chão, que a foi sorvendo.
Essa abstracção de espirito chymerica,
Esse supposto coração de amigo,
Existe algures ? — Morará no peito
Da pombinha, que affaga entre os arrulhos
A colleira do esposo,— e abandonada,
Deixando-o no pombal beijando os filhos,
Deita a correr traz os cazaes visinhos ?
— Ou morará, talvez, no adunco bico
Do pelicano, que estrangula as vísceras
Para dar a beber seu sangue aos filhos,
E sendo adultos, desconhece-os todos?
— Este ser ideal, typo dos anjos —
Quem concebeu-o, escarneceu dos homens.
Ou foi um parto de traição dos incubos
Para mais tratear a mente aos vivos,
Desesperar,— ganhar a si mais almas.
Mas si é certo que existe um tal phantasma,
— Ou vive lá com Deos, além dos mundos,
Ou foi tolhido ao bardo egual thesouro.—

Antes sosinho ser. Si n’um despenho,
De ignorante, cahir,— n’elle pereça
De vez p’ra sempre. Assim lascado o seixo
Das penedias da fragosa costa
Com ruido sonoro ao mar descendo
Do gravitar nas azas necessarias,
As vagas perfurando,— achou no pego
E paz e olvido e supultura eterna:
— Não no arranques de lá, braço de ferro,
Para dar-lhe depois em troco a morte,
— E que morte?—o morrer do renegado!—
No amargo travo da traição primeiro,
Depois no eculeo dá calumnia torpe,
No vasquejar, alfim, do desespero.
Tambem agora o ceu está despido
Dos astros seus.— Nuvens de cinza o toldam,
E os amigos da noute o desamparam.
Também agora os claustros estam mudos,
E parecem dormir um somno eterno,
Quaes solitários paramos infindos,
Onde não ha ouvir humano accento.
É tudo morte : — e só de quando em quando
Quebra um tufão das naves a calada,
E vem dizer que a natureza vive.

Oh quanta e quanta vez n’estas deshoras
Não viram ellas levantar-se os monges,
A transitar nos vácuos corredores,
— Como de meigas turturinas aves
Compacto bando a revoar nos ares, —
Recatados e timidos e graves,
Murmurando baixinho um psalmo lindo.
A cantar do Senhor as maravilhas!
Quanta vez em silencio respeitoso
Não ouviram toada e grave e doce,
— Grave como o pensar de ancião edoso,
Doce como o fallar de virgem pura, —
De hymnos e psalmos e canções propheticas,
Perdendo os ecchos na expansão dos ares,
Subindo em fumos á mansão do Eterno?
Hoj’em dia — esqueleto do deserto, —
Que mais ha hi? — o túmulo do nada !
Agora só na negridão das rochas,
Um talisman rizivel meneando, Algum
alumno, que sobeja ainda,
Do fanatismo do caduco Egypto,
Evocando os espirites do inferno
Nas extorsões do livido semblante,
Murmurará ensalmos de demonios.
Quem se erguerá do marroquino leito,

Abroquelado de oração piedosa,
— Bem como invicto campeão da patria
Que a pátria vinga ao imbraçar do escudo, —
Para applicar um valioso antidoto
Ás sinistras tenções do anjo das trevas, E
debellar-lhe os calculos de sangue?
— Nem um si quer! — os claustros estam quedos,
Como os sepulchros negros, que os povôam,
Como as columnas alvas, que os sustentam,
— E nem um estalar de orgam saudoso
Na terra um hymno a Jehovah disfere.
Elles, depois — os cenobitas pios —
Tambem nas azas de orações devotas
Baixavam á rudeza d’estas claustras,
E um responso feral e diffundido,
Qual expansivo rescender de rosas,
Cahia sobre a campa dos finados,
E do peccado lhes roubava a pena.
Entam — óleo de uncção — a reza sancta,
Em labios puros, — quaes candentes brazas, —
Fervendo, — deslizava internecida.
Hoje, que resta ao fervor antigo?
— Pallidas preces, a desleixo, e mornas,
Bem como a voz do indifferente hypocrita,
Calam na lage, e ficam sepultadas.

III

Modesto velho de mais longes eras,
— Modesto como os olhos da donzella, —
Assentado ao luar a sós com migo
Nos degraus do vestibulo da egreja,
Fazendo prantos, me contou que houvera
Arvorado acolá juncto do alpendre
O dorido supplicio do Deus-Homem.
Os monges co’os devotos,— co’as velhinhas,
E as trementes velhinhas conduzindo
Pela mão os nettinhos innocentes,
—Vinham beijar-lhe o pé, todos os dias,
Recitar-lhe uma antiphona eloqüente,
A qual, a humanas ouças passageira,
Vistosa aos anjos e formosa ao Eterno,
Lá no tope da cruz resplandecia,
— Como cheiroso e lindo ramalhete
De mil corymbos de distinctas flores
Tecido pelas mãos alfeninadas
Das meninas donosas da campina.
Hoje — que é d’ella — a cruz ? — era um escandalo,
Era, — inda mais, — um fanatismo estupido,
Era vergonha aos sábios d’este século,
— E foi calcada aos pés, lançada ao fogo!

O velho viu ainda a cruz do alpendre,
— Teve esse gozo : —inda abraçou-lhe as travas,
E quando os maus e os impios, quaes possessos,
Entre sanha e blasphemia a espedaçavam,
— Elle os olhou choroso e compassivo.
E alçando aos montes os quebrados olhos
Pediu a Deus inspiração,— incerto
No que faria entam. E após um breve
Fitar nos céus e meditar comsigo,
Perdão balbuciou sobre os sacrilegos,
E quedo foi dormir na crença sua.
Elle escutou tambem, uns dias antes,
— Qual voz do Eterno insurdecendo as vagas,
O psalmear dos monges alta noute,
Que lhe accordou do somno, que dormia,
— Desceu do leito e foi resar nas contas.
Cuidoso alevantou-se ao romper d’alva,
No solitário templo entrou,— benzendo-se,—
Incostou-se ao festão de uma columna
Co’os olhos no portão da sacristia.
Esperava que a mão e a voz do preste,
— Bem como uncção divina derramada
Na cabeça do rei pelo propheta,—
Por entre o incenso da oblação mais sancta
Lhe abençoasse a incanecida fronte.
Esperou, esperou. Não mais os monges
Ouviu descer a liza escadaria,
Nem subir os degraus das aras sanctas.
Qual vaporosa nuvem no horisonte

Pela sanha dos nortes impellida,
— Desappareceram n’um relance.— É morto
Nos claustros o pudor, no templo o canto.
E o bom do velho sossobrado e timido,
— Como si a vista e o sizo lhe torvasse
O súbito clarão, de um raio ao perto,
Tornou aos lares,— foi narral-o á esposa,
E pelos olhos deslizando o pranto
As faces lhe encheu,— como o oceano!
E os monges — onde iriam ? — Os que unidos,
Como nos céus os anjos entre os anjos,
Na paz das cellas, na soidão dos claustros,
Não sabiam viver, si não comsigo,
— Ódio dos povos em paizes barbaros,
Escarneo das nações,— hoje divagam
A vastidão do mundo — e seus errores.
E vós que do solar bemquisto d’elles
Os expellistes,— lhes tolhendo a patria,
E nella o resguardar a muda crença,
E o socêgo da vida e os pães e amigos,
—Vencestes.— Triumphae, entes descridos!
Esse monstro do inferno — esse homicida
Ri-se co’o sangue da immolada victima.
Vossa victoria é tal: — folgae com ella.
Folgae em quanto é tempo,— em quanto a morte
Os vermes seus não ceva á custa vossa:
Em quanto os anjos de Lusbel treitentos

Não vos arrojam de uma vez p’ra sempre
Ás cternaes, exteriores chammas;
Onde não ha mais luz que o cahos das trevas,
Onde não ha mais paz que o desespêro,
Onde não ha mais eouto que a geenna,
Onde não ha mais redempção que o inferno!
Feliz e vezes mil feliz aquelle,
Que nos braços de irmãos, nos osc’los d’elles
Deu aqui seu arranco derradeiro !
Que em mortuaria procissão solemne
Desceu de lá da pequenina cella,
E veiu aqui jazer entre os finados
Sob a campa deserta ha tanto seculo!
E, ao romper — d’alva uma oração formosa
Cahia,— como o gottejar do orvalho,—
Na lage,— e vinha lhe ameigar as penas.
E os filhos dos altares, desherdados,
Hoje depararão um só no mundo,
Que a secca pedra do sepulchro ignoto
Vá borrifar co’a lagrima da prece ?
Meu Deus ! — não ha si quer uma alma pia! —
Philosophos — christãos, si o bem fizeram,
Não antolhavam recompensa d’elle.

O premio e a c’roa e a gloria a seus martyrios
Deus lh’os guarda nos ceus, entre os archanjos.
Já lá passaram as virtudes d’elles,
Como chuveiro de ouro em dia breve.
Porém as vastas columnatas gothicas
D’esse edifício gigantesco e excelso
Subejarão para attestar ás eras,
Com brado eterno,— os benefícios d’elles.
Nossos pios avós chamando os nettos
Ao adro do cazal,— e os reclinando
Por sobre a grama, no luar de prata,
E em torno as nettas dedilhando os bilros
Nas almofadas,— ou gyrando o fuso,
Entre longo serão,— lhes vam contando
As lendas, que da bocca auctorisada
Dos paes beberam: — recitando a historia
D’esses heroicos martyres da crença,
Que os velhos guardam a-la-par da vida,
— Como na mente casta a virgem ama
O fagueiro sonhar do amor primeiro.
— Assim dos justos a memória vive
No recordar das gerações passadas,
Como o nauta conserva o ensejo augusto
Da salvação nas vascas do naufragio.

V

Quando este sec’lo de egoismo e vicios,
Entre o rugido e o horror do passamento
Derradeiro, anciar,— bem como o dia
Cede, morrendo, ao tremulo crepusculo,
E o crepusculo á noute,— então que herança
Que legará nas vesperas da morte
Aos filhos seus,— aos seculos por vir ?
E qual será seu testamento ? Oh ! esse,
— Obra de sangue e parto dos infernos,—
Ha de sellal-o o anjo dos terrores!
E só tres nomes conterá : — tres nomes
Que ham de no mundo reboar maldictos,
Como o trovão arrebentando os polos.
Em ferreas lettras ham de ler-lhe os filhos:
FATUIDADE E SACRILEGIO E SANGUE!
Os nettos do futuro,—os nossos nettos
Ham de amaldiçoar com mão de fogo
Aos livres do presente,— e ao patrimonio
De infamia, que os avós lhes assignâmos.

VI

Eu, entretanto,—o bardo, que não vivo,
Mas duro apenas n’essa ferrea edade,
A qual minha não é,— como do nauta
Não sam as vagas, que singrando trilha, —
N’essa edade vilan,— pela qual passo,
Como a fumaça que o galerno extingue,
Eu me consolo.—Do cantor mesquinho,
Q’aos homens não,— a Deus ergue seus hymnos,
— Na bastecida turma dos poetas,
Que os thronos, os saraus, o amor celebram,
Qual o pranto se esquece entre delicias,
— Assim d’elle tambem,— vate dos luctos,
Ha de memoria se perder.— Ao menos
Que ninguem saiba a invilecida patria,
Que o abortou, para que visse ácinte
Sua miseria e dó : — torrão esteril,
Onde immurchece o innocente e o justo,
Como a roseira em tremedal plantada,
E o mau e o impio a florescer nas hasteas,
Como o cedro alteando o cimo ás nuvens.
Que ninguem saiba o seculo maldicto,
Que o viu — nas urzes, pullular da tunica,
Que o viu — nas urzes, vegetar do tronco,
Que o viu — nas urzes, definhar das ramas.
Eil-o final thesouro de ventura,
Que a par da salvação — anciã o bardo,
— Miserrimo! — que já não mais amima
Na terra um sonho de bonança e gloria:
A quem os lábios rubros da esperança
Não mais surriem seu surrir de graças.
Não : — que lhe sobra uma esperança : — o tumulo!

— Similhante á bonina das campinas,
Que, abrindo o calix, entre nova e murcha,
Sauda a tarde e prophetiza a noute,
E a morte sua ao avançar do dia.
Eil-a a flor derradeira de ventura,
Que produz, moribunda, a debil arvore
Dos inlêvos do bardo,—melancholica,
Como o silencio e a negridão dos claustros.

VII

Ai — claustros, claustros! — si faltar podesseis
Aos seculos por vir — que testimunho,
Que não darieis, das virtudes altas
D’esses heroes, que um dia vos alçaram!
Materiaes de pedernal,— sois mudos!
Não podeis levantar um brado ingente
Para fazer ouvir ao mundo inteiro
A defensa de vossos fundadores
Calumniados, pobres e proscriptos!
Sim: foram maus: — muito de mais amaram,
Com puro amor,— religião e patria.
Sim: foram maus: — obedeceram, livres,
No mundo a Deus,— na patria a seu monarcha,
Sem rojarem-se ás plantas inlodadas
De usurpadores, nem vilões tyrannos.
Sim: foram maus: — comprehenderain, sabios,
O espirito sublime do evangelho,
— Da magestade d’essa crença nova,
A qual,— na voz e nas acções do Verbo —
Co’a regeneração,—nos deu profusa
— Dons não gostados pelo velho mundo,—
— A liberdade co’o saber gozal-a,
E a charidade e o egualar os homens.

VIII

Oh perseguidos martyres da crença
De nossos paes ! — eu, pequenino bardo,
Sentei-me ao pés do tumulos dos vossos,
Arredio dos vivos, e cortado
Vos mando meu saudar por entre angustias!

IX

E vós outros, oh sabios d’este seculo,
Talvez agora,— entre o dormir torvado,—
Sonhais na perdição dos servos crentes,
Dos servos do Senhor, que restam inda.
Adejando co’as asas estanhadas
Por sobre o leito commodo e felpudo
Os inviados de Lusbel vos pintam,

— Como n’um quadro energico e fallante
Da ceifadora guerra e seus horrores,—
Varios desenhos de maldade varia
Contra a mal firme fé da Cruz divina.

X

Sim : — quereis reformar, oh philantropos,
A natureza e a indole dos homens,
E o sentimento innato e a fé co’a crença, —
Que em vosso vago e tumido vasconço
Nomeais — ignorancia e prejuizo.—
Reformae, reformae : — mas os phenomenos
Das mãos do Eterno pendero, quaes d’antes.
No aceno d’Elle as leis da natureza
Se librarão,— como nos dedos dextros
Do menestrel as notas do psalterion.
E surdo a vosso mando presumpçoso
O trovão rugirá — tremendo os impios,
O raio baixará queimando o ether,
Por sobre o ovante vertice do hypocrita,
Ao prasme do que rege os ceus e a terra.
E como Deus os quiz na mente excelsa,
Taes os homens serão,— até que um dia
Na voz dos cherubins disser — não quero ! —
Para levar ao cabo a vossa impreza,
Tornal-a digna do pensar de um sabio,

É preciso sustar as leis constantes,
Que o mundo em seu volver resguarda inteiras,
Como o pobre christão na mente adora
Do bemfeitor, que o arrancou do abysmo,
A voz e o rizo e o apertar da dextra,
Quando, modesto, lhe fugiu dos olhos
— Anjo de luz entre o terror das trevas.
Mau grado vosso,— a omnipotencia d’Elle
Será provada na impotencia vossa,
Como entre os dedos de affanoso artifice
No crysol, que não mente, o ouro impuro.
Mudae,— si podeis tanío,— a natureza,
Arrematae perfeita a obra vossa,
Arrebalae das mãos de Deus o sceptro,
— E cantareis victoria,— oh philantropos!

XI

Talvez eu tenha de sobrar ainda
Para ver o remate iniquo e torpe
Dos planos sestros que machina o impio.
Vel-o-ei arrojar-se, blasphemando,
Como as hostes na sanha da mattança,
Ás clausuras da paz do eremiterio,
— Sello da contrieção dos meus e minha :
Entrar, fulo de raiva, o sacro templo,
Qual suberbo invasor de alheios muros, —

Combalir, derribar a cruz das aras,
— Penhor, que herdámos de mais longes eras,
Da fé de nossos simplices maiores,
— Testamento da crença assignalado
Co’o sangue d’elles, em cachoes jorrado,
Como precipitosa catadupa,
Crystaes golfando,— vastas chans alaga!

XII

Oh ! — si rolar por terra a cruz do claustro,
Expire o bardo seu nos braços d’ella!
Mas ai de vós,— varões da nova edade,
Mais sabios do que Deus, mais fortes que elle!
Tramae, tramae co’a furia dos demonios,
Tramae contra o Senhor e os crentes n’elle ;
Balda loucura; — a cruz espesinhada
Ha de erguer-se maior n’outro calvario!
1851.

SOROR-ANGELA

(ERA DE 1823)

Canção dedicada ás virgens da Soledade

Com fervor os guerreiros victoriosos
As de primor subido, ufanos colhem,
Capellas immurxaveis, em que noutes
Lidaste, e inteiro um dia, Angela egreja.
PARAGUASSÚ.

Foi Deus — e não outrem — que os braços
dos nossos
Regeu no conflicto,— regeu na victoria.
Foi Deus — e não outrem ! bendicto o seu nome,
Que aos nossos deu honra, deu fama, deu gloria!
Capellas formemos das vestes das aves,
Das pennas das lindas araras rubentes.
Capellas formemos p’ra as frentes sublimes
Dos nossos guerreiros, dos nossos valentes.
E os nossos valentes por Deus,— pela patria
Façanhas obraram de eterna memoria.
Foi Deus que inspirou-as: — bendicto o seu nome,
Que aos nossos deu honra, deu fama deu gloria !

Capellas formemos das folhas da patria,
Das folhas virentes do quente café…
— Que caixos tam rubros, que flores tam alvas,
Que as virgens colheram-lhe agora de pé!
Irmans, trabalhemos, concordes e sempre
Durante esta vida ficticia,— illusoria.
Deus ama, Deus manda, Deus benze o trabalho,
Deus paga o trabalho co’os premios da gloria.
Os jovens guerreiros entrando em triumpho
As têstas adornem co’as nossas capellas.
As nossas capellas sam verdes, bem verdes,
Sam feitas por dedos de castas donzellas.
Os jovens guerreiros que venham tingidos
Das folhas da patria,— da patria vangloria.
— Que venham ao templo do Deus infinito,
Que deu-lhes triumphos e cantos de gloria.
Ao templo, oh guerreiros! — ao templo do Eterno,
Que aos povos oppressos liberta n’um dia!
Joelhos em terra! — que vam nossas vozes
Unir-se co’as vossas em doce harmonia!
Louvores Áquelle que humilha os senhores,
Que os servos humildes levanta da escoria:
Que os sceptros arranca de altivos monarchas,
Que ao povo escolhido deu honra, deu gloria!

O Deus das batalhas nos dias antigos
Viu servos seus filhos,— e servos de extranhos:
Viu servos seus filhos,— olhou seu opprobrio,
Olhou-os carpindo seus males tamanhos.
E o Deus das batalhas fechou seus imigos
Em urna insondavel, maritima, equorea!
— Louvores, guerreiros ! ao Deus das batalhas,
Que deu-vos triumphos e cantos de gloria!
— Assim nós diremos aos nossos guerreiros,
Quando elles entrarem nos templos sagrados.
Hosanna, oh donzellas! — o Christo remiu-nos:
Não mais nossos templos serão profanados!
A face medonha dos barbaros crimes
Não mais será vista na brázila historia.
Os crimes fugiram co’os homens da guerra,
Na patria ficou-nos o sceptro da gloria.
Por arcos de folhas e flores da patria
Os nossos guerreiros terão de passar.
E nós, das janellas mais altas do côro,
Mais flores havemos sôbr’elles jogar.
Não somos romanos: — tropheus não erguemos,
Nem louros, nem pompas de futil vangloria :
Só folhas da pátria—cafés e pitangas —
Taes sam nossos arcos,— tal é nossa gloria !

A patria saudemos ! — e o nome de patria
Juntemos, guerreiros, ao nome de Deus.
Não sentem, não sabem, não dizem tal nome
Os impios somente,— somente os atheus!
Irmans, trabalhemos: — formemos capellas
P’ra as testas dos filhos da nobre victoria.
— Tambem seus triumphos, seus cantos sam nossos,
Tambem nos pertence metade da gloria !

A FREIRA

Crescei e mulíiplicae-vos.
Palavra de Deus

Eu joven freira, bem triste chóro
Aqui cozida co’a cruz de Deus.
Aqui sosinha, ninguem não sabe
Dos meus desejos, dos males meus.
Qual no deserto se praz a rôla,
Cuidam que a freira seja feliz.
E a pobre freira, dentro da cella,
Ninguem não sabe que se maldiz.
Em quanto a vida não se desdobra,
E apenas rompe, roseo botão,
A freira insonte pratêa de astros,
Povôa de anjos sua soidão.

Uma palavra que ella profere
É sempre um ente que ella creou.
Uma florzinha que colhe acaso
É uma amiga que ella incontrou.
Conversa á noute co’a estrella vésper,
Ama o opaco de seu clarão.
E sente chammas que julga dores,
E o peito aperta co’a nivea mão.
Ella não sabe que a estrella vésper
Inílue nas almas lascivo ardor:
Que, não sem causa, no tempo antigo,
A estrella vésper chamou-se — Amor.
A estrella vésper produz nas virgens
Extranho incendio, volcão fatal:
Quer seja freira — do Christo filha,
Quer seja antiga pagan vestal.
A estrella vésper… Fugi, meninas,
Fugi dos raios do seu candor.
A estrella vésper influe volúpia,
A estrella vésper chama-se — Amor.
E a casta freira, co’a mão na face,
Por longas horas demora alli.
E os tredos raios da estrella vésper
Ella innocente recebe em si.

E quando o sino locou matinas,
Ella tremeu de seu fragor.
E a pobre moça — da vez primeira —
Das rezas quasi sentia horror.
E os olhos d’ella ficaram meigos,
Como quem soffre doce pezar.
Não mais pulavam, delphins nas ondas,
E mal podiam brando oscillar.
E os lábios d’ella — cravina ha pouco —
Não mais vestiam carminea côr.
E só nas faces lhe assomam rosas,
Mas não são rosas de almo pudor.
Entam a freira em vão se abraça,
Em vão se coze co’a cruz de Deus.
Entam a freira procura em tudo
A causa, o allivio dos males seus.
Mas ella o sabe. Não é o Christo
De que ella espera algum sígnal.
O Christo deu-nos remido o mundo:
E o bem que ha n’elle supéra o mal.
O mundo, o mundo… eu freira afflicta,
Eu vejo o mundo… como é gentil!
Ah ! eu preciso d’essa palavra
Que arrasta os homens aos mil e aos mil!

Palavra immensa, divina e sancta,
Que inspira aos homens tanto labor!
Palavra fértil, fecunda e grande,
Mysterio, influxo, talvez, de amor!
Porém as velhas, que me aconselham,
E que se dizem cheias de Deus,
Clamam — não cessam — clamam que o mundo
É todo feito de vãos atheus.
Mas ah! quem sente chammas no peito
Por uma bella palavra só :
Quem á porfia corre por ella,
Rompendo globos de grosso pó :
Quem verte prantos na mão do pobre,
Que a Deus e á sorte reproches dá:
Quem trava o braço d’outrem, que passa,
Temendo o abysmo, que vê mais lá:
Quem toma ao seio mulher, que firme
No seio d’elle deixa o pudor:
Quem entre beijos lhe ensina aos labios
Caudaes palavras de áureo licor:
Ah ! não, não póde — como ellas dizem —
Ser insensivel, ser vão atheu.
O atheu não sente, não verte prantos.
O amor não entra no peito seu.

O mundo, o mundo… eu freira afflicla,
Eu vejo o mundo… como é gentil!
Não, não lhe inxergo aberto o abysmo.
Tu mentes, mentes, alma senil!
Sim : velhas sanctas, velhas ufanas,
Que vos dizeis cheias de Deus,
Não ! — este mundo que Deus remiu
Não é composto de vãos atheus.
O mundo, o mundo… eu freira afflicta,
Eu vejo o mundo… como é gentil!
Mas eu fechada na esteril cella
Existo preza n’um ocio vil!
Aos mornos raios da estrella vésper
Minha innocencia toda perdi.
Inteiras noutes de acerba scisma
Eu, nescia amante, passei alli.
A estrella vésper tem certos raios
Que traiçoeiros voltam p’ra lá.
Fugi, meninas, da estrella vésper,
Temei dos gostos que ella vos dá.
Ha certos raios da estrella vésper
Que sam vampyros de argentea côr :
De nossos labios — com vitreos beijos —
Extrahem, sugam todo o rubor.

Aos mornos raios da estrella vésper
Minha innocencia toda perdi.
Mas a innocencia, que sai da infancia,
Ai! não se perde somente alli!
A estrella vésper, amphora solta,
Boia de prata em mar de annil,
Clama incançavel — Amae, donzellas,—
E as fibras lavra flamma subtil.
Entam lá dentro da afflicta virgem
Salta um desejo, ferve um pesar.
Tenta um allivio, acha uma angustia,
Lympha em brazido, volcão no mar.
Mas a innocencia que a moça immola
No altar sagrado de um peito egual,
Malta o desejo, fórma o remanso,
Offerta um gozo sempre real.
Quando a virginea côr se esvaece,
Murcho o carmineo, roseo botão,
A estrella vésper que fez o estrago,
A estrella vésper não basta não.
O mundo, o mundo… eu freira afflicta,
Eu vejo o mundo… como é gentil!
Não, não lhe enxergo aberto o abysmo,
Não lhe deparo volcões aos mil.

O mundo, o mundo… só n’elle eu posso
Achar a parte a quem faltei.
Eu devo, eu devo pagar ao homem
Esse pedaço que lhe arranquei.
Seu coração — nobre fragmento —
Sente um vazio, que ha de doer.
Mesmo sua alma geme incompleta.
Quasi roubei-lhe todo o seu ser.
O paranympho — anjo o mais bello,—
Anjo das nupcias, feito por Deus,
Por Deus guiado, conduz as virgens
Para os pedaços que sam mais seus.
Leva-me oh anjo,— que é tempo: — eu quero
Achar a parte â quem faltei.
Eu devo, eu elevo pagar ao homem
Esse pedaço que lhe arranquei.
Ao mundo, ao mundo… Leva-me, oh anjo.
Abre estas azas : vou sobre ti.
Interno impulso me diz, meu anjo,
Que não vás longe,— que basta alli.
Minha sanguinea côr se esvaece,
Perdi as rosas de almo pudor.
A estrella vésper — com vitreos beijos —
Sugou-me aos labios todo o rubor.

Leva-me, oh anjo. Tenho no peito
Que me trasborda — vasta porção.
A estrella vésper que fez-me o estrago,
Nem cruz, nem claustros, não bastam não.

A DEVOTA

A summa perfeição consiste em
vagar o espirito para Deus.
S. THOMAZ.

Que rezas, que rezas,— tremendo co’os labios,
Co’a baça pupilla nas corneas immota ?
Battendo nos peitos co’as mãos descarnadas,
Co’as mãos no rosario,— velhinha devota ?
Coitada da velha,— que ou sinta pezares,
Ou sinta dulçores, não sabe chorar!
Que o sorvo da vida, de aceticos travos,
O pranto nos olhos lh’o poude estancar!
Agora só reza nas contas bemdictas,
Só reza contricta,— que pode mais al ?
Que o tempo, que as rugas, que os annos que foram,
Continuo lhe faliam da lousa final.
Que a vida, que vivem os homens na terra,
É sonho, que a infancia sonhou, a scismar.
Feliz quem mais soube dormir este somno,
Quem soube este sonho mais longo sonhar!

Ai — quem me poderá sondar os arcanos
Do peito da velha ! — Que rica seara,
Que messe tam vasta de tanta verdade,
Que o joven não sega, não rega, não ara!
Qual vôo do tempo nas asas das eras,
Tal é da sciencia do velho o condão:
Que quantos mais dias de vida lhe excorrem,
Mais largas verdades crescendo lhe vam.
Velhinha,— é tam noute! —no chão do cruzeiro
Que rezas,— sustendo dos nortes o açoute ?
Oh — não te arrecêas das ruas desertas,
Oh — não te amedrentam as larvas da noute ?
Não sentes, devota,— pressões nem arfagens,
Quaes vagas dos mares,— no peito torpente ?
O mau sobrecenho da morta velhice
Torrou-te os sentidos d’esta alma fervente?
Oh — sim: — como a estrada que os sec’los trilharam,
Está callejado teu bom coração :
E das penedias na silice alpestre
Tornou-se-te a tua senil sensação.
Que braço tam forte de ferro abysmou-te
Das penas no fogo,— dos males no fundo?
Quem n’esta tristura,— volcão que devora,—
Quem n’esta tristura lançou-te ? — este mundo!

Por isso ao cruzeiro levantas os olhos,
Co’a baça pupilla nas corneas immota :
Por isso acarinhas um só pensamento,
— A imagem do Eterno,— velhinha devota!
A imagem do Eterno,— qual canno brazido,
Qual tocha das aras,— te brilha no aspeito.
A imagem do Eterno, — que o mundo repelle,
Adoras, — qual mimo de amores, no peito.
E o chão do cruzeiro co’os nortes, que zunem,
Soprando os cabellos da velha tremente:
E a noute co’as larvas medonhas,— tam feias,
E o ether cerrado de nevoa somente:
E as aves nocturnas co’os cantos de agouro,
Nos vãos do cruzeiro,— nos seus corucheus:
Lhe faliam de um Ente, — que os homens esquecem,
Lhe faliam na terra de um Deus que ha nos ceus!
Oh — beija fervente mil vezes, velhinha,
Sim,— beija os emblemas de teu relicario.
Recita,— tremendo, recita essas rezas,
Correndo nos dedos o grosso rosario.
E vós — oh donzellas gabadas de lindas,
Que tanto vos rides da velha — coitada ?
Deixae-a que suas camaldulas gyre,
No frio ladrilho da cruz assentada.

É calvo o cruzeiro,— tam alto, tam alvo,
Qual de caramelos lucente alcantil:
É como um espectro: fugi oh donzellas,
Do espectro, que topa co’o arco de annil!
E todo este quadro de horrenda poesia,
De assombros,— não trava de seu coração.
Sua alma não teme phantasticos trasgos,
Sustida nas asas de linda oração.
É seu gozo todo: — prostrar-se nas lages,
Nas lages marmoreas d’aquelle calvario:
Liberta das vistas viperias do mundo
Rezar mais devota no bento rozario.
Um dia,— era joven, mimosa dos homens,—
Os homens lhe deram um throno real.
Mas hoje,— velhinha,— co’os pés do cruzeiro
Se abraça contricta,— que pode mais al ?

FREI BASTOS

Anjo de luz, porque te despenhaste
no inferno? — A historia escrevia o teu
nome na pagina das bênçãos: tu mesmo
o riscaste, e o foste escrever na pagina
das maldições.
ALEXANDRE HERCULANO.

Parque te affogas, Bossuet brazileo,
No immundo pego da lascivia impura?
Porque teus louros triumphaes nodôas
Co’as roxas fezes do azedado vinho ?
Porque continuo tua gloria assopras
Nos leves bafos do charuto ardendo ?
Porque te affogas, Bossuet brazileo,
No immundo pégo da lascivia impura ?
Desces do altar á crapula homicida,
Sobes da crapula aos fulmineos pulpitos,
Alli teu brado lizonjêa os vicios,
Aqui atrôa, apavorando os crimes.
E os labios rubros dos femineos beijos
Desparam raios que as paixões atterram.
Porque te affogas, Bossuet brazileo,
No immundo pégo da lascivia impura ?

No alcouce infame que assassina o genio
As horas passas que a sciencia chora.
No fofo leito que os instantes mancham
Os ceus insultas co’o burel que extendes.
Nos torpes versos que o prazer te inspira
O inferno evocas,— e os demonios brincam.
Porque te affogas, Bossuet brazileo,
No immundo pégo da lascivia impura?
Para as canções que celebraram Milton
Deu-te o Senhor poética ardentia.
Para esses dons que Bossuet vestiram
Deu-te o Senhor o fulmen da eloquencia.
Duas coroas te intrançava a gloria:
Duas corôas desmanchou teu genio.
Porque te affogas, Bossuet brazileo,
No immundo pégo da lascivia impura?
Lá sobre os astros Bossuet te amava,
Ao escutar-te os estasis primeiros.
Tirava o resplendor da argentea fronte,
D’onde a Turenne a convicção partira.
Ia c’roar a testa egual á d’elle,
Que o novo mundo produzia quasi.
Porque te affogas, Bossuet brazileo,
No immundo pégo da lascivia impura ?

0 cego de Albion tambem te olhava
Co’os novos olhos que no ceu lhe deram.
Elle esperava — e os seraphins com elle —
Um Paraizo incógnito, mais bello.
Depois, te achando sepultado em lama,
A Lamartine reservou seus louros.
Porque te affogas, Bossuet brazileo,
No immundo pégo da lascivia impura?
Ah ! Bossuet sobre as estrellas pára.
Quanto é difficil a subida aos montes!
Voltaire abriu um boqueirão na terra.
Oh! como é facil o pendor do abysmo!
Mas tu subiste a Bossuet a um tempo,
E ao mesmo tempo té Voltaire descias.
Porque te affogas, Bossuet brazileo,
No immundo pégo da lascivia impura ?
Salve, poeta, que teus vicios cantas,
Que a noute e a plebe e a crápula desejam!
Salve, orador, que os pulpitos respeitam,
Que anathemas irônicos desferes !
Mescla atrevida de sublime e baixo, Bossuet
com Voltaire, tres vezes salve !
Salve por mim,— oh malfadado genio,
Onde as cidades nem os claustros cabem!
Tu, poeta, orador,— porque te affogas
No immundo pégo da lascivia impura ?

O RENEGADO

Canção do judeu

I

Vae, impio bastardo,
Vae, monstro sem crença!
É vasta, é immensa
A estrada que vês.
Pendida se inclina
Por lubrica esteira,
Suave ladeira
P’ra as chammas, talvez.
Teu pae te renega
Na voz do propheta
Co’a bocca repleta
De atroz maldição.
Cuberto de cinza,
Co’o sacco vestido,
Com pranto dorido
Se prostra no chão.

A mãe, que te amava
Com tanta ardentia,
Maldiz de teu dia
Co’os carmes de Job.
Hebréa formosa,
De rosto ingraçado,
Por ti, malfadado,
Se cobre de dó.
Com penna de ferro
Teu nome riscado
Do livro segrado,
Da lei de Moysés!
Teu nome famoso,
Das tribus querido,
Agora exprimido
Debaixo dos pés!
Oh tu, desgraçado,
Mesquinho perjuro,
Que abraças impuro
Uns erros fataes!
Que insino a teus filhos,
Que exemplo que legas!
Na lei que renegas,
Renegas teus paes!

II

Talvez mais que os nossos,
Irás vagabundo
De rastros no mundo
Sem termo, sem fim!
Nas selvas, nas côrtes
Os homens com gosto
Lerão em teu rosto
Signal de Caim.
Na jura que quebras,
No crime que attentas,
Excitas, augmentas
Dos nossos a dor.
Pizando nas tábuas,
Que foram-te intregues,
Affrontas, persegues
Ao mesmo Senhor.

III

Outr’ora no Egypto
Nascemos escravos,Valentes e bravos,
Sofrendo sem dó.
Contentes nos tractos,
Vivendo na penuria,
Cuspimos na furia
Do mau Pharaó.
Depois nos erguemos
No meio da praça,
Em rude ameaça
Battendo co’os pés.
E o rei por dez vezes
Tremeu contemplando
Um Deus pelejando
Na mão de Moysés.
Depois nossos crimes,
Qual chuva de settas,
Mau grado aos prophetas,
Encheram o ar.
Castigo do Eterno,
Sentimos na frente
O alfange furente
De Salmanazar.
E o campo tres vezes
Vestiu-se de ossadas,
Ao longo espalhadas
Por Nabuzardan.

E, farto de crimes,
Tornou-se demonio
O rei babylonio,
Progenie de Can.
Soffrendo, esperamos,
Dos tempos no gyro,
O nome de Cyro,
Surrizo de Deus.
Previsto, anciado
Na voz do vidente,
Chegou de repente,
Livrando os hebreus.
Ao jugo dos gregos
Curvando-nos quasi,
Beijámos a baze
Do idolo Ammon.
Depois adorámos
Go’um medo mais feio
O monstro que veiu
De lá de Ascalon.
Não basta, não faria
Ao ceu irritado
O sangue espalhado
Dos bons Macchabeus.
Não basta que Tito,
Que Roma viessem,

Que até desfizessem
O templo de Deus.
Errantes, dispersos,
— Castigo que pasma ! —
Andâmos phantasma
Por toda a nação.
Ha mais de mil annos
Soffremos calados
Por crimes passados
De abominação.
E vâmos correndo,
Correndo na terra
De incontro co’a guerra
Terrivel, cruel.
E vamos correndo,
Nós povo escolhido,
Nós povo querido
Do Deus de Israel.
Ah ! foram mui grandes
Os erros passados,
Os altos peccados
Do povo immortal!
A voz dos prophetas
Perpetua se cala:
Não clama, não falla
Nem mesmo de mal.

Do vate dos threnos,
Do filho de Helcia
A crua elegia
Faria-nos bem.
Choraramos junctos
Com sancta saudade
A vidua cidade
De Jerusalém.
Mas sempre nas eras
Paternas que lemos,
Luctámos, vencemos
As perseguições.
Talvez que bem cêdo
Tenhamos completas
Dos nossos prophetas
As aureas vizões.
E agora no mundo,
De ha tanto previsto,
Assome esse Christo,
Messias real.
E ajuncte n’um ponto
Com phrases de brazas
Debaixo das azas
O povo immortal.
E venha c’um sceptro
Mais bello, mais novo

Tirar o seu povo
Do abysmo de dó.
E cumpra-se á lettra
O carme jucundo,
Que, já moribundo,
Nos disse Jacob.
E agora meu filho,
Nas tábuas cuspindo,
Nos deixa, surrindo,
— Meu filho! que dor!
E vae tresloucado
Seguindo, adorando
Um idolo infando,
Um Christo impostor.
Escuta, meu filho,
O brado materno,
E ao rosto paterno,
Vem, tira-lhe o dó.
Si o Christo que abraças
Não fôra loucura,
Seria impostura
A voz de Jacob.

O Christo que abraças,
Os erros que arrogas,
Por mil synagogas
Damnados estam.
Ha mais de mil annos
Que sam reprovados
Por sabios sagrados
Da crença de Abram.
Têem sido julgados
Por sanctos doctores,
Profundos leitores
Da lei de Moysés.
E os nossos rabbinos,
Co’a raiva do velho,
O falso evangelho
Pizaram aos pés.
Escuta, meu filho,
O brado materno,
E ao rosto paterno,
Vem, tira-lhe o dó.
O Christo dos nossos
Não vem perseguir-nos,
Vem antes unir-nos
N’um povo, n’um só.
Ah! volta, meu filho,
Á mãe que te chora,

Ao pae que te adora,
Que geme por ti.
Ah ! entra de novo
No nosso conjuncto,
E canta compuncto
Os ais de David.

V

Mas ah! renegado,
Bastardo, descrente,
Mais impio que a mente
Do impio Caim!
Riscou-se, apagou-se
Teu nome execrado
Em pleno, sagrado,
Geral Synhedrim.
Ah! reprobo infame,
Nem mesmo compuncto,
No nosso conjuncto
Não podes entrar!
Ja leio em teu rosto
O estigma candente,
Que te ha de na frente
Perpetuo ficar.

Nem patria conservas,
Nem nome paterno,
E o povo do Eterno
Teu povo não é.
Vae, impio! — e que, ao ires,
Era meio á viagem,
Te ingula a voragem
Que abriu-se a Coré.

O MONGE

(SÉCULO XIX)

I
De embate aos sinos, pelos vãos da torre,
Nocturnas aves correm. Surdo dôbro
Era quasi seu choque incerto e vago
Nos ôcos bronzes. A soidão profunda
Augmentava o pavor, crescendo a noute.
Alli a mente, em extasis prendida,
Prolongava estes sons, pensando n’elles.
Ninguem vivia: a profundez do somno
Tinha co’os mortos irmanado os vivos.
Eu te saúdo, viração da noute,
Frescor suave e triste ! As tuas pennas
Sam duras settas de gelado ferro,
Que, os cabellos riçando, entra por elles,
E nullifica o cerebro, passando,
E vai ao coração que pensa angustias.
Facil não toca a neve aqui no peito.
Não toca ? — Sim: mas não inrija as fibras,
Mas não extingue o sentimento nunca.

Vem recolher-se aqui, fugindo ao gelo,
Inteiro, inteiro o espirito,— de fraco.
Eu te saúdo, viração da noute!
Que som me trazes de pesados passos,
Quebrando esta soidão! N’estas deshoras
Podem viver somente o louco e o vate.
Não! nem um d’elles. Viração da noute,
Transporta-me seu nome. O louco e o vate
Não amam sós as trevas e o silencio.
Também o desgraçado estima a noute.

II

Bella aragem da noute ! uns labios de anjos
Não é que te respiram ? Teus anhelos
Não sam de um gênio bom que Deus nos manda ?
O teu sereno arfar alembra aos homens
Quasi um gozo do ceu. Lá n’outras eras
Algum sentiu-te assim, desfez-se, em lagrimas,
Pensou poeta e plácido em teu seio,
Sobre teu dorso esperdiçou seus males,
Consolou-se talvez,— e crente e altivo
Chamou-te quasi um Deus.— Mentiu-te ao todo ?
D’onde o consolo que nas asas libras
Tacito e sancto assim, descer-nos pode,
Si não de Ia do ceu ? Dentro em minh’alma

Eu sinto, eu sinto o impulso de adorar-te.
Sê minha musa, oh viração da noute!
Leva-me, pois, extasiado e livre
Aos lares do infeliz. Si alguem se queixa,
Quero co’os d’elle compartir meus males.

Vejo uma cruz: entrelaçado n’ella
Ferreo cilicio com sanguineas manchas.
O livro do christão na tosca meza
Os queixumes de Job mostrava aos olhos.
Esplendidas de pranto as próprias lettras
Estavam inda,— e a pagina molhada
Das torrentes de dor de alguém que leu-a
Quasi por si imprecações fallava,
Quasi bramia, ao ver-se. A luz, tremendo,
De espaço a espaço a crepitar, gemia,
Gomo intendendo a voz que enchia outr’ora
De maldições, de lagrimas, de preces
Os campos de Hus.
Oh plaga que geraste
Uma alma pura de poeta e de anjo,
Salve por mim! Tu pelo Eterno foste
Abençoada um dia, antes que livre

A mão de Satanaz te ardesse a terra.
Segunda vez abençoou-te o Eterno,
E deste a gramma e o cyparizo e as flores.
Por mim, solo immortal, trez vezes salve!
Talvez pensava assim, cruzando a cella,
Extasiado um monge. Eu vi seu rosto,
E li seu coração, seu pensamento.
Eram-lhe as faces maceradas, lividas
Co’os livores da dor. Forçados sulcos
Cavou-lhe fundo o percorrer do pranto.
Não foi o tempo que incolheu seus vizos.
De enorme vastidão — dos gregos copia —
Parecia-lhe o cerebro um gravame,
Que apenas sustentava. Os cilios grossos
Dos olhos o fuzil lhe escureciam,
Mais do que a nuvem que não cobre o raio
E passeava em rapidas pégadas,
Fallando ás vezes, e parando a instantes.
Christo — exclamou — tu padeceste um dia
Quanto, milhões de seculos vivendo,
Não podia sofrer somente um homem:
Porém remiste a humanidade inteira.

Eu, parte d’ella, sou remido,— e soffro
Debaixo de teu nome. O meu martyrio,
Férreo phantasma que pezado marcha
Co’o vagar do que vai degraus da forca
Que mãos de infames lá no ceu prenderam,
É vão, é vão. O sangue, que destillo
Gotta por gotta das rasgadas veias,
Cai inútil no chão. Regada d’elle
A linda hervinha, horripilando, expira.
Eu mesmo, eu vejo arripiar-se a terra,
Si uma golphada d’este sangue a insoppa.
Tudo reprova o sacrifício estéril!
Deus! teu filho deixou teu seio eterno
Para salvar a humanidade,—e eu soffro
Debaixo de teu nome inúteis penas!
Despotas d’alma, déspotas do peito
Subjeitaram á dor, á raiva, ao crime
Os simplices do Christo. A natureza,
Norma por Deus nos corações plantada
Áquem e alem da vida, em rudos tractos,
— Não, não morreu,— mas transformou-se ao
todo.
Nas praças de Sião, montões de povo
De vario modo-entre clamor seguiam
O heroe da redempção. Fallando aos homens
Co’esse estylo aos Demosthenes ignoto
Pronunciou uma palavra,— e as selvas,

As solidões, os leoninos antros
Pareceram gemer co’o pezo de homens.
As cidades christans, co’a mão na face,
Com redomas de sangue em torno aos olhos,
O flebil grito de Raquel sem filhos
Levantaram de novo. Orphans mesquinhas
Aos altos da montanha em âncias sobem.
Clamam de lá pelo cantor dos thrénos.
Cançam em breve,— e descançar procuram
Sôbre o tronco do cedro. O espectro negro…
Seu nome — ASSOLAÇÃO—… co’a immensa mole
Surgiu de um boqueirão que abriu o inferno.
Seu collo reclinou lá no oriente,
E co’a ponta de um pé bateu no occaso,
Onde inclinado o sol tremeu três horas.
E as cidades christans, co’a mão na face,
Com redomas de sangue em tôrno aos olhos,
Espavoridas, por seus filhos clamam,
— Clamam, fugindo e lamentando em balde.
Voltae, voltae das solidões, das selvas,
Piedosos christãos. Alguém mentiu-vos,
Alguém vos disse o que não disse o Christo.
Deus não é mysanthropo: estima a todos,
Como outr’ora os formou nos campos de Ásia.
Por seus dedos mirificos formado
Foi a família o molde do universo.
Conselho aos anjos — não liame eterno —
Foi do Christo a palavra. Impios devotos,

Peiores que os atheus, mancharam tudo.
Té com seu Deus hypocritas sophismam.
Deus não é misantbropo: estima os homens,
Como outr’ora os formou nos campos de Ásia.
— Não sophismámos, não. Essa palavra
Lêde-a no livro eterno: intacta existe.
Ninguém, ninguém poude augmentar-lhe um apice.
Sam immutaveis sempre as lettras d’elle.
Lêde outra vez, e meditae mais serio,
E depois conclui.—
Sim! que eu conclua
O opprobrio a vós ou a blasphemia ao Christo!
Oh! que infames que sois! Co’a face em rizos
Podeis guardar tam atro fel no peito!
Quereis a conclusão ? — tomae-a, hypocritas,
Tomae-a em mim.
Não vêdes nos meus olhos
Fervendo a insania? e exasperado o monge
Té ao meio da fronte alçava os cilios.—
Não vedes manchas de livor de ferro
No concavo das faces, onde outr’ora
Pintou-me a natureza ardentes rozas ?
Não ouvis minha voz? profunda e rouca,
— Como incontrando espedaçados órgãos,
No peito forma-se e lá mesmo expira.
Quereis saber a causa? ouvi-me, hypocritas.

V

Em bagas de suor banhado o rosto
Estava o monge. Os increspados cilios
Ora emendavam-se ao topete acima,
Ora desciam occultando os olhos,
Como dous fachos moveis, suspendidos
Na vastidão da pallidez da fronte
Por uma occulta linha. As mãos, o corpo
Tremiam… que abysmei-me!
Estanque e mudo
Algum tempo ficou. Depois olhando
Em derredor de si, qual ante o povo
Lá na tribuna o orador prepara,
Para romper, os ademães co’a idea,
Abriu de novo os resequidos labios
Co’um gesto que punhal cortou-me as fibras.
Antes de abrir-se-me a paixão no peito,
Quando em botão as affecções me estavam,
Fui arrojado aos cárceres eternos.
Inda incerta a razão, timida e néscia,
Balbuciava apenas. Tenra infante
Pronunciava, arremedando os homens,
Qualquer primeira voz que ouvia acaso:

Perdido viajor, no campo á noute
Ao longe divisando a luz que a terra
De seus hálitos pútridos accende,
Lá vai, lá corre em ancias após ella,
E chega, e topa co’a illusão, co’o nada.
Phantasia infantil era-me tudo.
Julgava o pyrilampo estrella em terra,
Anjos do mar a rutila ardentia,
Palacio de ouro o sol, estofo as nuvens,
Mágica fada a virgem que eu amava,
Que eu temia depois, fugindo d"ella
Co’o peito acceso de paixões ignotas,
Que parecia-me aguçadas dores,
Tanto que eu cria na justiça humana,
Tanto que eu respeitava a Deus e aos velhos!
E um velho… um velho…— atroador remorso,
Si és um supplicio, vinga-me d’aquelle,—
Um velho me fallou. Qual no deserto,
Querendo Satanaz tentar ao Christo,
Subindo ao alto, lhe amostrava o mundo,
Tal sequioso me agarrara o velho
Para apontar-me ao ceu. Depois tremendo
— Impio! nem o porvir falta ao remorso,—
Mostrou-me o templo não — mostrou-me horrendo
Um edifício negro, erguido e vasto,
Manchando o azul do ceu.
Que vês, infante?
Elle m’o perguntou.

Que vejo ? — aquella
Pasta de lama escurecendo os ares.
Amas o ceu ?
E porque não, bom velho
Não é tam bello o ceu ? O annil que o pinta
Não é melhor de perto ? A estrella d’alva,
Que vem correndo assim antes da aurora,
Não é, talvez, um parsaro de prata,
Que eu poderei prender, chegando a elle?
Não é um berço tam bonito a lua,
Que sempre, e sem que pare, imbala a infantes ?
Não posso um dia, de manhan, sosinho,
Sem accordar ninguém, chegar-lhe á beira,
Algumas gottas aparar de orvalho,
Lavar-lhe aquellas nodoas,— e mais bella
Tornal-a depois disto ? — Ah, velho, escuta :
Eu quero o ceu: mas dizem que p’ra tel-o
É preciso morrer ?
Pobre innocente,
Não é preciso, não. Querel-o basta.
Querer somente e entrar. Não vês, infante?
Vai-se p’ra lá por terra : — a porta .d’elle
Eil-a visível acolá bem franca.
Tam feia, velho? — a porta d’elle — aquella
Pasta de lama escurecendo os ares?

Por fóra, infante…
E, velho, é só por fóra?
Mas ah! por fóra eu vejo o ceu tam lindo!
E toda a tarde me chamava o velho,
E me apontava ao ceu,— qual no deserto,
Querendo Satanaz tentar ao Christo,
Subindo ao alto lhe amostrava o mundo.
E acostumou-me: — e eu ja chamava aquella
Pasta de lama escurecendo os ares
Co’o nome, oh! sim, de ceu. Infante ainda
Blasphemei, blasphemei co’os lábios do impio.
Tu foste criminoso, oh velho indigno,
De meus nefandos obrigados actos.
És réu, és reu,— Atroador remorso,
Si és um supplicio, vinga-me d’aquelle.
Tu, anjo atterrador, que o somno travas
Do mau que apenas adormece, e accorda
Anxio, torvado nas vizões que inspiras,
Á minha justa voz das trevas surge,
Corre, vem com teu séquito de fúrias,
Tu, ministro das choleras do Eterno.
Povôa o leito seu de horríveis serpes,
De vizões, de tortor: — vinga-me d’elle.

Basta-lhe só na vida este castigo,
O mais tenha-o depois no inferno mesmo.
E vim depois,— e n’um furor sagrado,
Louco religioso, entrei n’um templo.
Com lagrymas de amor — devota insania! —
Prostrei-me soluçando ao pè das aras,
No jaspe dos degraus. Alli co’o choque
Do corpo ardente em flammas de delírio
Sôbre o frio do chão, senti… Quem pode
Verter esse mysterio em lingua de homem?
Não! alli, sem acção, cahido ao longo,
Não, não morri. Minh’alma tam somente
Sem ideas parou: pensar não poude.
Sumiu-se, aéreo pô, a intelligencia.
Ficou-me o coração fervendo em sangue,
Volcão represso,— e congelado o corpo
Unido alli co’a pedra. Estatua em terra,
Idolo gêsseo que do altar cahira,
Não sei que mundo foi, não sei que abysmo
Que confuso habitei. Súbito estrala
Funereo canto que evocou-me á vida,
Dizendo — morto — em destroçadas vozes.
Depois alguma dextra ergueu-me o corpo,
E vi… Não sei que vi… Cegou-me os olhos
O vitreo grosso das sanguíneas lagrymas.
Pulverea sombra de subtil memória
Faz-me pensar que li. Prece ou contracto
Não sei que foi. Um juramento eterno

Fiz ao Senhor sôbre os altares d’elle?
Não lembra-me, não sei. Somente o dizem
Extranhos homens, de negror vestidos,
— Homens? quem sabe si demonios eram?
Seraphins infernaes, do inferno fallam,
E seu irmão, satânicos, me chamam!
Co’a voz tremenda, ameaçando as fúrias,
Dizem que fiz um immortal protesto,
Que ha de seguir-me ao ceu que ouviu-me as vozes,
Que ha de seguir-me aos penetraes do abysmo.
Clamam — infames! — que co’as próprias unhas
Rasguei, abri o coração ao Christo,
E com seu sangue borrifei meus labios,
E com seu sangue sigillei meu pacto.
Quando, esgotada essa vizão terrível,
Vizão que a dor me realiza e a raiva,
Olhei-me a mim, desconheci-me quasi.
É bem real, Pythagoras, teu sonho !
O Démon que inspirava-te era um anjo.
Dos arcanos do ceu alguns tiveste.
As almas dos mortaes transmigram, passam
De corpo em corpo, ou d’uma essencia em outra.
Corpo nem alma os mesmos me ficaram.
Homem que fui não sou. Meu ser, meu todo
Fugiu-me, esvaeceu-se, transformou-se,
Vivo; mas acabei meu ser primeiro.
Labil reminiscencia inda me antolha
Fugazes sombras da passada vida.

Para maior supplicio, aqui n’um quadro
Esses dous tempos comparados vejo
Ante mim sempre, que os refuso em balde.
Eu te creio, Pythagoras, nos sonhos!
As almas dos mortaes transmigram, passam
De corpo em corpo, ou d’uma essência em outra,
Si eu não morri, sou transfuga da vida.
Dista, dista de mim minh’alma antiga.
A toga férrea que estreitou-me os artos,
Como azinhavré devorou-me as carnes
Osso, esqueleto, pelas fibras prezo,
Vou caminhando,— e caminhando rinjo.
Folga, Loyola: — eu preenchi teu mando.
Até te intrego o teu supérfluo «quasi.»
Eu sou cadáver, sou ! — Olha-me e julga.
É pouco ainda este soffrer tam duro
Feito por vós, hypocritas sagrados ?
Não basta aqui a conclusão das dores ?
Vossos tropheus, que em lagrymas se insoppam,
Innegrecidos, humidos de sangue,
Cruor gottejam dos rasgados peitos,
Que lancinados dos seus topes pendem,
—E a gloria vossa não se farta iniqua,
E não vos pode encher victima tanta ?
Polyphemos crueis, milformes hydras,

Monstros peiores que os horríveis monstros
Que a mão de Homero bosquejava o mêdo,
Portentos de terror — quereis mais pasto?
Pois sim! —Abri as leoninas garras,
E destampae vosso infernal sarcasmo !
De vosso instincto a furiosa insania
Vou talvez sacial-a. Ouvi-me ainda.

VII

Marmóreo cárcere apertou-me os ossos
Carcomidos, esqualidos, sem fórma,
— E o dom que extrema os animaes e os homens
Aqui perdi-o. Oh tu, filho do Eterno,
Ouve meu brado acrysolado e puro
No lar do coração — que afflicto o amaste !
Uma palavra te pulou dos lábios,
Gladio de fogo, omnipotente e sancta,
— E n’ella vôa a liberdade aos povos.
Uma palavra também salta em chammas,
Gladio de sulphur, peçonhenta e grande,
D’esse rival que Tantalo te emúla,
— E n’ella vôa a escravidão dos povos.
Filho do Eterno que impossíveis podes
Té quando em burla deixarás teu reino ?
Cai debaixo do inferno o mesmo Empyreo!

Deus ! em teu nome Satanaz impera !
Aqui nos claustros os demonios moram,
— E o monge verga ao desespero o collo,
E julga mão divina a mão que o toca,
E blasphema do Christo, e as aras cospe,
E a cruz e a Biblia entre delirios piza.
A crença augusta que no peito aperta,
Que no leite materno haurira infante,
Que nos crystaes da dor sahir procura,
Disse — Sois livres — indistincta aos homens,
E diz ao monge — Escravo! — E o monge insano
Piza mais uma vez a cruz e a Biblia.
Tal o furor que a escravidão excita!
Tal sou, tal è o monge,— ente não-homem
A quem privou-se a liberdade,— e n’ella
Privada topa a consciência em nada.
O crime e a raiva no seu peito habitam.
Cobrem-lhe a face mascaras de louça,
Onde um surrizo angelico se imprime
Nos templos e nas praças. Em sua alma
Continuo instigações malvadas fervem.
Que sceleratos espantosos planos
Não têem nascido aqui! Frontaes annosos,
Tectos sombrios, seculares muros,
Respondei-me, fallae. Em vosso espaço
Co’o dia emenda-se a mudez da noute?

Oh! quanto prova este silencio eterno!
Si eu fora ao mundo arremessado acaso,
Em qualquer polo, no torrão, no gêlo,
A estas horas meditara em crimes?
Blasphemara de Deus perante a lua,
Cujo orvalho. me queima ? O leito, o somno
Ser-me-ia travado â meia-noute ?
Mais afflictivo que o labor de escravo,
Ocio infamante, eu te renego em balde!
Geram-se os vicios em teu molle seio,
E te beijando, e te cingindo o collo,
Boceja, estira-se a lascivia,— e dorme.
Trucida as almas solidão forçada,
Barbariza, asselvaja. As pandas azas
Bate a virtude, e nas familias pousa.
Tenra plantinha, nos desertos nasce
Um certo amor que abandonado expira,
Ou torrentes de tóxicos dimana.
Aqui o coração se volve em raio,
Os ossos em punhaes, a mente em furia.
Aqui em fel a inspiração se embebe.
Aqui de opprobrio a candidez se mancha.
Aqui converte-se a virtude em crime.
Mas ah! lá chama ás orações o sino!
Um sacrilegio mais ! Senhor ! perdôa !
Vou emendar imprecações com psalmos.
Vai em teu templo reboar meu brado,
Que aos ceus não sobe, cavernoso e rouco.

Minha voz, minha voz conspurca as aras,
Ironica e gelada. Em atro cofre
Ardem-me dentro renegados gritos.
Cada palpite maldições me clama.
Blasphemia pulsam-me as arterias todas.
Senhor! eu não sou reu,— tu bem o sabes,
De sacrilegio tal! Perdoa ao impio,
— Ao impio feito por mais impios que elle.
Agora ride, hypocritas sagrados !
Eis-aqui vossa obra. Algozes, vêde-a !
É cruel, como vós; mirae-vos n’ella.
Não mais clameis que edificou-a o Christo.
Contumelia infernal! — Senhor! teu filho
Fora teu filho, si creasse os males?
Na torre havia-se calado o sino,
E o echo apenas resoava ao longo.
Tambem o monge immudeceu com elle,
Fechou a cella, e caminhou soturno
Pelas naves afóra. Um som compresso,
Quasi carpido, na abafada cella,
Ficou ainda a reflectir-lhe as vozes.
E eu alli, imbevecido em âncias,

Fiquei chorando, —e lamentei-lhe a sorte.
Aos montes do Senhor ergui meus olhos,
E disse uma oração. Rezando ainda,
Senti nas veias affluir-me a calma,
— E cri que o monge a conseguiu commigo.
Inda corria a viração da noute
Com fresca madidez. Pedi-lhe as azas,
E fui saudoso a meditar meus carmes.

O APOSTATA

CANÇÃO DO CATHOLICO

Não sentes por sôbre a face,
Como um raio inopinado,
Esse anathema sagrado,
Essa ferrea excommunhão ?
Não sentes a espada nua
De Roma no teu semblante,
De Roma,— eterno gigante,
Sustendo infernos na mão?
Ah! triste, perjuro infame,
Que esqueces esse legado,
Sancta herança do passado,
Sancta crença de Jesus !
Que a negras voragens desces,
E julgas que ao ceu te elevas!
Que por turbilhões de trevas
Trocas um reino de luz !

Ah ! triste, que te abysmaste
N’um precipicio insondavel
Com esse orgulho execravel
Que Lusbel inspira aos seus!
Que duas vezes perdeste
Esse dominio sagrado,
Paraizo resgatado
Co’o sangue puro de Deus!
Ah! triste, que espedaçaste,
Com sacrilegio altanado,
O juramento prestado
Juncto á fonte baptismal!
Co’o perjurio que fizeste,
Tu, infante estremecido,
Cravaste um punhal buido
No coração paternal!
Ah! triste, que te desgarras,
De queda em quéda passando,
Como do monte rolando
Costuma a pedrinha vir.
Ah ! onde, christão perjuro,
Parará teu baque infindo ?
Ou irás sempre cahindo
De um em outro nadir ?

Ah! triste, que insano clamas,
Com teus sophismas cruentos,
Que de livres pensamentos
Preciza o espirito teu!
E com Luthero te abraças,
Tu, apostata ignorante,
Na convicção protestante,
Preludio certo do atheu!
Vai, apostata, perjuro,
Com esse raio gravado,
Esse anathema sagrado,
Essa ferrea excommunhão!
Não sentes a espada nua
De Roma no teu semblante,
De Roma,— eterno gigante,
Sustendo infernos na mão ?

O CONVERSO

CANÇÃO DO LIBERTINO

Templo, abysmo de Deus, abre-me o seio.
Quero arrojar-me a dedalos de trevas,
A dedalos de luz. Precizam homens
D’esses mysterios que a razão fascinam.
Ainda que depois se cerre em noute,
A face de um crepusculo me agrada.
Templo, abysmo de Deus, abre-me o seio.
Salve, Religião, sublime idea,
Que tanto incantas feiticeira as almas!
Sobre teu inventor mil bençãos caiam!
Propheta do Senhor! seja o teu nome
Ainda além dos seculos bemdicto!
Déste n’uma illusão um gozo aos homens.
Templo, abysmo de Deus, abre-me o seio.

Em meu orgulho esmigalhei-te insano,
Pizei-te aos pés, incantadora crença!
Julguei achar na liberdade um muro.
Achei poeira, mais que a tua, etherea.
Tu, minha crença, tu somente és firme.
Espancas um remorso aos pés de um
padre.
Templo, abysmo de Deus, abre-me o
seio.
Mil sanctos teus, co’os corações de fóra,
Aos repulsos de Deus consolam mesmo.
Sempre seguro estou co’a crença minha.
Tenho, em falta de Deus, quem chame
ainda.
Com aureos seraphins, gentis archanjos,
Tu, minha crença, os erros me rodeas.
Templo, abysmo de Deus, abre-me o
seio.
Levado em turbilhões de excelsos
crimes,
Té’gora estive em barathros de inferno.
Não me lembra o que vi: mas sei que
errava
Por lagôas de asphalto, ares de enxofre.
Tu, de lá me arrancaste, oh crença
minha. Mais bellos sam teus insondaveis
erros! Templo, abysmo de Deus, abreme
o seio.
Sou christão outra vez : sou teu :
venceste.
Quero arrojar-me a dedalos de trevas,
A dedalos de luz. Precizam homens
D’esses mysterios que a razão fascinam.

Ainda que depois se cerre em noute,
A face de um crepusculo me agrada.
Templo, abysmo de Deus, abre-me o seio.

ELLA

Eu lhe queria tanto, quanto os desgraçados
querem aos que os estimam.
EUGENIO SUE.

Eu sei, oh virgem, que em teu peito innocuo
Tenho palpites, lá. Sei que tua alma
Ficou pensando co’as ideas altas,
Que te inspirei profundo.
Inda em teus olhos reconheço ao longe
Todo o meu pensamento. Alto gravada
Em tua mente a minha mente existe.
Pertences-me p’ra sempre.
Rasguei-te, sim, do coração mais imo
Um veu cerrado de innocencia fatua.
Mas não te nodoei: quiz que ficasses
Casta assim mesma,— e sabia.
Tal na floresta a candida pombinha
Penetra o ninho do amoroso pombo:
E como d’antes, nos rosaes florentes,
Vai arrulando ainda.

Não, não temo de ti. O amor que sentes
Não é da terra não,—.nem segue o corpo.
O amor que sentes, nem comtigo expira.
É mais que immorredouro.
Has de amar-me na terra,— e alem dos astros,
Eu te ensinei um sentimento eterno.
Mau grado a mim, a ti, ao mundo, aos anjos,
Oh ! has de amar-me sempre!
Não te forcei, nem te prendi com ferros.
Tua vontade é, como d’antes, livre.
Mas voluntária nem coacta podes
Amar a outro amante.
Um vate, um vate colligou-te aos seios,
Tu déste-lhe o perfume de teus labios.
O nó do abraço te estreitou seu corpo.
O mais foi um poema.
Tu recebeste os halitos de um vate.
Tu lhe bebeste a inspiração aos tragos.
O fogo que do ceu lhe desce em linguas,
Mulher! tambem ardeu-te.
Para os homens de Deus foste sagrada.
Podeste ser-lhes dos mysterios conscia.
És, oh vestal, a cumplice divina
Dos celestes oraculos.

Estás agora iniciada eterno.
Amaste-me: eu te quiz. Julguei-te digna
De sêres-me a Sybilla de meus cantos,
O anjo de meus versos.
Has de amar-me na terra,— e além dos astros.
Eu te ensinei um sentimento eterno.
Mau grado a mim, a ti, ao mundo, aos anjos,
Oh! has de amar-me sempre!
Eu sei que um negro, espantador phantasma
Co’as asas bronzeas te apparece á noute,
E te deixando a pallidez manchada,
Te grita — Monge! — e passa.
Eu sei que involto na pancada aeria
Do meio-dia te revoa um sylpho,
Que no concavo d’alma se te inrola,
Tambem dizendo — Crime! —
Listras de sangue, de manhan, te cortam
O brando annil que náda-te nos olhos.
E assim mais bella, temerosa e pavida,
Pensas em mim,—e choras.
Em presença da aurora, aos raios d’ella,
Lá do tremulo seio em que me escondes,
Arrancas as canções que me inspiraste
Travado co’as delicias.

Meus versos cantas para o sol que nasce,
Para o gorgeio matinal dos passaros,
E de minh’harpa as harmonias cazas
Co’o cicio das arvores.
Depois um rizo te assombrêa a face,
Limpa-te o sangue dos annileos olhos,
E co’o nome de —Vate — assoletrado
Desfazem-se-te as nodoas.
Os alvos braços — emulos do jaspe —
Cá para o sul onde eu habito extendes,
E nas asas da aurora um beijo ardente
Envias a meu carcere.
Entam — que passe o tetrico fantasma,
E grite embora — Monge! — e trôe o sino
Qüe toca ao meio-dia, e n’elle involto
Proclame o sylpho — Crime! —
Que ceu te pode anuvear um rizo!
Que espectro pode sustentar-te o canto!
Que sylpho não desmancha-se nos ares
Ao sôpro de meus versos!
Guarda no seio o talisman que dei-te.
Deante das vizões, meus carmes canta.
Insulta os gritos de sinistra inveja,
Que dizem — Monge, e Crime! —

Mau grado aos mundos, serás minha agora.
Eu te ensinei um sentimento eterno,
Has de amar-me na terra,— e além dos astros.
Oh! has de amar-me sempre !

SAUDAÇÃO

AO NATALICIO DO MEU AMIGO OLYMPIO MAXIMO CHAVES

O mundo antigo está ás
garras com o moderno.
LACORDAIRE

I

Quebrae a lousa impura que vos fecha,
Phantasmas do passado.
Surgi da cinza, oh séculos de outr’ora,
Ouvi, ouvi meu brado.
Deixae na campa esse sudario immundo,
Essa toga da morte.
Tomae da vida, do prazer, das galas
O sobranceiro porte.
Vinde saudar a obra que sonhara
Vosso espirito ardente.
Vinde baixar a frente respeitosa
Ao seculo presente.

Co’os olhos longos ao porvir que vemos
Nobre tortor soffrestes.
E os louros immortaes que não cingistes,
Olhae aqui,— sam estes.
Novos Baptistas, na soidão clamastes,
Clamastes na cidade.
E a vosso brado os cardines, rangindo,
Soaram — Liberdade!
Honrosa lucta, sublimado anhelo
Foi toda a vossa vida.
Mas não entrasles, ai! Moysés modernos,
Na terra promettida.
Assistiu-vos cruel o desespero
Á ultima extorsão.
Déstes ainda o derradeiro espiro .
Nas mãos da escravidão.
Não podestes pizar o bronzeo collo
De despotas collossos.
Mas armas de outra tempera forjastes
Para os vindouros vossos.
Esse phantasma atroz — vestido a crimes,
Seu nome… Assolação,—
Gahiu depois de vós,— e livre assoma
Do Christo a redempção.

Resuscitae: vosso ideal sublime
Venceu, triumpha agora.
E o semblante dos despotas que restam
Atterra-se, descora…

II

Este seculo ditoso
Resume os bens do passado.
Bebe a seiva dos arbustos
Que mil campinas t&ecirecirc;m dado.
Tem a sciencia dos tempos
Juncta com outro ideal,
Como um tope variado
De um jardim universal.
Tem um futuro mimoso
Vizão de felicidade.
Tem dous verbos incarnados
— O Progresso e a Liberdade.

III

E foi, Olympio, um seculo tam grande
Que te deu o Senhor.
Deu-te com elle um coração altivo,
Cheio de patrio amor.
Deu-te a vida n’um seculo de vida,
De luz e de verdade.
Deu-te a missão de athleta denodado
Da sancta Liberdade.
Encheu-te o coração de amor da patria
No mais subido excesso.
Encheu-te o coração das sympathias
Dos crentes do Progresso
Assim teu peito inteiro apenas basta
Para tam grande Nume.
Alli não cabe mais. Tudo o que sóbra
Extingue-se em seu lume.
Mas si acazo em seus intimos refolhos
Um vacuo ainda existe,
Grava-lhe alli co’a patria o pobre nome
Do trovador tam triste.

O trovador também ama o progresso,
Respeita o patrio amor.
Si não queimasse-lhe esta chamma o peito,
Não fôra trovador.

DEIXAS-ME

AO MEU AMIGO E COLLEGA FRANKLIM AMERICO DE MENEZES DOREA

Montserrate 29 de novembro de 1852.

Estas alpestres rochas, que se apartam,
Deixam vazia a insaciavel vista:
A dura ausencia do prazer de vel-as
A mente me contrista;
Este susurro das travessas vagas
Causa saudades vividas e ternas:
Por toda a vida — e além da morte — deixam
Memorias quasi eternas.
Estes sophás de acolxoada relva
Deixam no peito sensações de menos:
Deixam a falta do prazer mais puro,
Dos gostos mais amenos.
Estas serenas brizas salitradas
Frizando a face das ceruleas aguas,
Adormecem um pouco a dôr no peito,
Esquecem negras maguas,

Mas nada d’isso em meu ardente peito
Tantos volcões atêa de saudade,
Como esta ausência necessária e dura
Da docil amizade.
E tu, bardo feliz do sentimento,
Gentil cantor das affecções suaves,
— Doce, bem como o gorgear sonoro
Das innocentes aves:
Tu, que sabes cantar tam sanctos hymnos,
Como dos anjos as canções supernas,
Deixas-me n’alma fervidas saudades,
Saudades sempiternas.
Deixas-me em mar de anciedade infinda,
Timido nauta — duvidoso, incerto:
Deixas-me n’alma o vacuo da existencia,
Deixas-me um vão deserto,

A’ PROFISSÃO

De Frei João das Mercês Ramos

— Entretanto o ceu se levanta sereno
e pomposo como para um dia de festa.
CARLOS LACRETELLE

Eu tambem antevi dourados dias
Fesse dia fatal:
Eu tambem, como tu, sonhei contente
Uma ventura egual.
Eu tambem ideei a linda imagem
Da placidez da vida :
Eu tambem desejei o clastro esteril,
Gomo feliz guarida.
Eu tambem me prostrei ao pé das aras
Com jubilo indizivel:
Eu também declarei com forte accento
O juramento horrivel.
Eu tambem affirmei que era bem facil
Esse voto immortal:
Eu tambem prometti cumprir as juras
D’esse dia fatal.

Mas en não tive os dias de ventura
Dos sonhos que sonhei:
Mas eu não tive o placido socêgo
Que tanto procurei.
Tive mais tarde a reacção rebelde
Do sentimento interno.
Tive o tormento dos crueis remorsos
Que me parece eterno.
Tive as paixões que a solidão formava
Crescendo-me no peito.
Tive, em logar das rosas que esperava,
Espinhos no meu leito.
Tive a calumnia tetrica vestida
Por mãos a Deus sagradas.
Tive a calumnia — que mais livre abrange
Oh Deus! vossas moradas!
llludi-mo’-nos todos! — Concebemos
Um paraizo eterno:
E quando n’elle sôffregos tocâmos,
Achâmos um inferno!
Virgem formosa entre vizão phantastica
Que tam real parece!
Mas quando a mão chega a tocal-a quasi,
Lá vai, lá se esvaece!

Sonho da infância que nos traz aos labios
Um rizo mais que doce:
Mas uma voz, um som…— some-se o sonho,
Como si nunca fosse.
Tu filho da esperança! — tu juraste
O que tambem jurámos.
Tu accreditas, innocente ! — ainda
O quanto accreditámos!
Oh! que não soffra as dores que nos ferem
Teu joven coração!
Que o futuro que esperas não se torne
Terrivel illusão!
Que sobre nós — os filhos da desgraça —
Levantes um tropheu:
E que não aches, — como nós achámos —
Inferno em vez de ceu!
24 de outubro de 1852.

CANTO

Offerecido aos Jovens alumnos do collegio de S. Vicente
de Paulo, por occasião de festejarem o mesmo Saneto,
a 23 de julho de 1852

Louvae, meninos, ao Senhor.
Psalmo

Duas fileiras de brilhantes jovens
Co’um doce rir nos labios,
Abatendo co’os raios da eloquencia
Os presumidos sabios:
A voz modesta do christão convicto,
Sem odio, sem vaidade,
Despindo os erros do sopbisma ornado,
Laureando a verdade:
Os olhos limpo do divino athleta,
Immovel, inspirado,
Descortinando a negridão da infamia
Do seculo passado:
A turba dos philosophos, submersa
Nas vagas mais impuras,
Abysmando no inferno, onde bebeu-as,
As sophicas loucuras:

Parecendo tornado o mundo inteiro
Um plano infindo, immenso :
Só pelas duas alas dominado
De exercito tam denso :
De um resplendor de archanjos e de luzes
N’um throno divinal
A cruz sublime,—como o sol que expande
A luz universal:
Curvados todos ao sagrado aspecto
Do symbolo christão :
Todos, na fé do crente, murmurando
Um hymno, uma oração:
Eis do futuro o prazenteiro quadro,
O quadro consummado,
Que pela mão segura d’estes jovens
Terá de ser pintado!
Eis o futuro innevoado e negro,
Que já tememos tanto,
Convertido em hosanna de alegria,
Em jubiloso canto!
Si nossos pães fizessem no passado,
Quanto agora fazemos:
Si em nós, seus filhos, cressem,— como agora
N’esses filhinhos cremos:

Não seria o presente uma palavra
De lucto, magoa e dó:
Nem o futuro um calculo provavel,
Uma esperança só!
Não ! — este longo exercito de jovens
Athletas da sciencia,
Mau grado a muitos nos imprime n’alma
O sello da evidencia.
Os filhos do porvir, na mesma taça,
O mesmo leite bebem :
A mesma nutrição no mesmo prato
Seus corações recebem.
Este sustento egual, na flor dos annos,
Na infância da sciencia,
Ha de lhes dar ás innocentes almas
Uma uniforme essencia.
Essência — como aquella que se fórma
Lá no seio materno :
Essência,— que já mais ha de mudar-se,
Que ha de existir eterno !
Assim a vida inteira d’estes jovens,
Athletas da sciencia,
Será d’estes principios, que recebem,
A certa consequencia.

As luzes da sciencia mais profunda
Serão seu elemento:
A crença pura do evangelho sancto
Será seu complemento.
Não é, por tanto, uma esperança apenas
A vizão do futuro:
É um verso prophetico e sagrado,
Um calculo seguro!
Eia, pois,— guerreiros
Do saber brilhante, Eia,
pois,— athletas
Da cruz triumphanle,
Levantae um brado,
— O brado de — avante! —
O brado de — avante —
Retumbe nos ares:
Transponha seguro
As terras, os mares:
Penetre nos bosques,
Nos invios logares!
O brado de — avante —
Atterre os descrentes,
— Os homens, que a vossos
Desejos ardentes
Apenas têem rizos,
Escarneos mordentes.

O brado de — avante —
Revele aos paizes
Os vossos trabalhos,
Fadigas e crizes,
Os vossos triumphos
Sublimes, felizes!
O brado de — avante, —
Qual balsamo sancto,
Qual doce palavra,
Qual fervido canto,
Aos crentes console,
Inxugue seu pranto.
O brado de — avante —
Retumbe nos ares:
Transponha seguro
As terras, os mares :
Penetre nos bosques,
Nos invios logares!
Avante, oh jovens! — que os exforços vossos
Deus os coroa. O heroe da charidade,
Vicente, o sancto, o amante da sciencia,
Philosopho tambem, que soube outr’ora
Confundir a philosophos,—extende
Seus olhos para vós. Lindo futuro
Impetrou para vós do Omnipotente.
Eu vejo-o mesmo sobre acceza nuvem
Baixar aqui, e abençoar-vos todos!

Sêde seguros do porvir, meus filhos,
Que eu vol-o guardo cá.
O Senhor inclinou a vista immensa:
Compadeceu-se já.»
Foi elle, sim, que nos fallou: ouvimos
O oraculo divino. Eia! o futuro
Vosso não pode ser vizão que foge!

SAUDADE

Ao meu amigo Frei Bento da Trindade Cortez,
actualmente no Mosteiro do Rio de Janeiro

… porque lagrimas tambem sam amor.
DB. J. J. B. DE OLIVEIRA.

Em minhas horas de nocturna insomnia,
Co’os olhos fitos no porvir longiquo,
Eu penso em mim,— e na segunda idea
Incontro-me comtigo.

Eu te prantêo no arrebol da aurora,
Que em teu exilio meditando esperas.
Ihvolto n’um crepúsculo te inxergo
A deplorar teus fados.

Nas nuvens tinctas de sanguineas listras
Lagrimas verto que sôbr’ellas mando.
Partem, — porém do caminhar cançadas
Descahem no oceano.

Desesperado entam, maldigo o espaço,
Maldigo o ceu e a terra, o vacuo e o pleno.
Em cada creação deparo um erro.
Nem acho Deus tam sabio.

E na minh’alma se desenha ao vivo
Melhor, mais bello, mais ditoso um mundo.
Tiro do nada,, sem ausência e males,
Um orbe todo novo.

O amor da patria que os tyrannos banem
Não choraria maldições e sangue.
Nem tu nem eu seriamos cortados
Por divizões de abysmos.

Mas quando ainda não acabo o sonho,
Divizo armadas que vam mar em fóra.
Desperto, e caio nos aereos braços
Da chymera sublime.

E mais amargo te lamento a sorte,
Tu, martyr feito pelas mãos dos bonzos.
Invoco o ceu que intornará sôbr’elles
Alabastros de anathema.

Ligando a mim teu coração dorido,
Que a teus amigos em penhor deixaste,
Tactêo n’elle as emoções tam vivas,
Que em teu destêrro soffres.

Conheço as afflicções que te saltêam,
Nobre proscripto. O sol, a lua, os astros
Cruzam teu ponto, e trazem-me sinceros
Tuas ingenuas dores.

Sim! para os claustros não nasceu tua alma.
Teu coração não te palpita — Monge.
Nem tam baixo teus Ímpetos serpêam,
Que um carcere os contente.

N’esse vasto pallor que te orna a fronte,
— Signal dos homens de profundo genio,
Eu leio a grande e destemida idea,
Que não cabe nos claustros.

Deserta, oh gênio, do covil immundo,
Onde o leão dos vicios se alaparda.
Ah! esta cella, onde a indolencia dorme,
Não pode, não, ser tua.

Coral guardado nas flumineas urnas,
Quem ha de te arrancar do equoreo fundo ?
Não serias mais bello, em aureo ingaste,
No collo de uma virgem ?

Bahia 5 de agosto de 1854.

AOS TUMULOS

Pobre, grosseiro, não numeroso,
que importa isso? Para pregar as
tábuas de um ataúde qualquer pequena
força basta.
ALEXANDRE HERCULANO

Aos tumulos, aos tumulos, minh’harpa!
Choremos sôbre a lapida esquecida
Dos homens que já foram.
O ceu acceita o pranto dos pequenos.
Não te acobardes, não. Vamos, minh’harpa,
Depôr tambem na lousa dos finados,
Como a viuva, um obolo mesquinho,
Mesquinho só na terra. Além das nuvens
Um thesouro se torna aos pès do Eterno.
Tua missão, minh’harpa, é grande, é grande:
— Sagremo’-nos á morte.
Aos tumulos, aos tumulos, minh’harpa!

Da grimpa do mosteiro atrôa o bronze,
E de funebres sons os ares pejam,
Como a tremenda voz da eternidade,
Que as nuvens baixa, e perde-se no immenso.
Bem!—este som diz—morte!—e apraz aos tristes,
Apraz a nós, minh’harpa!

Não te assuste, por tanto, a voz amiga,
Que ha de chorar por nós, mau grado aos vivos,
Quando não formos mais !
Tua missão, minh’harpa, é grande, é grande:
— Sagremo’-nos á morte.
Aos tumulos, aos tumulos, minh’harpa!

Pobre instrumento,— as tuas aureas cordas,
Onde pulsavas o prazer e a vida,
Estalaram por si! — Estas que sobram
Sejam sagradas á tristeza e ao lucto.
Maguas somente restam-te. Immudece,
Ou canta, soluçando, as maguas mesmas.
Estás cançada de chorar tam joven ?
Já não sam tua essencia às grandes dores,
Teu alimento as lagrymas ?
Tua missão, minh’harpa, é grande, é grande:
— Sagremo’-nos á morte.
Aos tumulos, aos tumulos, minh’harpa!

Não vês aqui este sepulchro aberto,
Corno si a terra se estivesse rindo,
Para abraçar seus filhos ?
Vamo’-nos junctos debruçar sôbr’elle.
Nossos primeiros paes, cheios de susto,
Templos aos manes levantaram quasi.
Tinham razão, talvez. Christãos mais sabios
Amemos com recato a tumba ao menos,
Tua missão, minh’harpa, é grande, é grande:
— Sagremo’-nos á morte.
Aos tumulos, aos tumulos, minh’harpa!

Assim, minh’harpa, a nossa vida inteira
Deveramos passar, cantando em threnos
Esse jazigo, onde se esconde a ossada
Dos seculos que passam.
Aqui também na podridão, nos vermes
Ha de o futuro em esqueleto immenso
Cahir, esvaecer-se.
Aqui tambem inspirações se bebem
No halito dos mortos.
Aqui se incontra inexgotavel messe
De solidas ideas.
Tua missão, minh’harpa, é grande, é grande:
— Sagremo’-nos á morte.
Aos tumulos, aos tumulos, minh’harpa !

Sim: fiquemos aqui.— Aquelle arbusto,
Que das frestas da lapida desponta,
Nasceu talvez do peito de um cadaver.
A seiva humana em suas hasteas corre.
Aquella flor inda transpira sanie.
Lá para o meio da soidão nocturna
Talvez falle do ceu, talvez do inferno.

Sim: fiquemos aqui. D’aquellas folhas
Talvez saia uma voz preciza ao mundo,
Talvez algum recato aos vivos traga,
Talvez de nós careçam.
Sim: fiquemos aqui soturnos ambos.
Esperando seu brado.
Tua missão, minh’harpa, é grande, é grande:
— Sagremo’-nos á morte.
Aos tumulos, aos tumulos, minh’harpa!

Não te apavore o aspecto das tumbas.
Esta bocca sarcóphaga que a terra
Aqui a nossos pés abriu medonha
Não é para ingolir-nos.
O nosso calix de abundantes dores
Não transbordou ainda.
Tua missão, minh’harpa, é grande, é grande :
Sagremo’-nos á morte.
Aos tumulos, aos tumulos, minh’harpa !

A MORTE NO CLAUSTRO

Por occasião da morte do venerando ancião,
Frei Manuel da Piedade Borba.

Eu não sou um historiador das cousas humanas.
Bossuet

I

Eu vi-o, eu vi-o,— e o coração tranzido
Retalhou-se-me entam nas fibras intimas.
Eu vi-o, eu vi-o,— escancarando a bocca,
Roncava na garganta ingasgo horrendo.
Eu vi-o, eu vi-o,— em contorsões, em âncias,
Estrebuxando os membros impotentes.
Não lhe era aspecto nas feições mudadas,
E a voz apenas lhe restava rouca.
Elle pedia — o velho agonizante —
Pedia ainda do prelado a bençam.
Tu só, consolo certo dos afflictos,
Tu só religião, precizo culto,
Tu lhe ministras varonil confôrto,
E os paroxismos agros lhe minoras.
Oh ! por que vem tam tarde, irremissivel,

Esse momento necessario e certo,
Em que teu brilho fascinante assoma,
Fatal verdade atterradora,— eterna !
Como fulmineo meteôro subito,
À fronte esmagas, quando leve a roças!

Tremer fazia os íntimos dos ossos
O grave som do compassado sino,
Que do dioso incanecido velho
A agonia fatal annunciava.
Ungido foi co’o oleo sacrosancto:
E em volta ao leito supplices murmuram
Preces ardentes, orações piedosas,
Que seus irmãos sinceros lhe repetem,
— Pedindo a Deus e á Virgem mais que pura,
Pedindo aos sanctos martyres celestes,
Pedindo agora aos divinaes pontifices,
Aos confessores do affrontado Christo,
Ás puras virgens, e ás mulheres castas,
— Guardem-n’o pios da perpetua morte.

Eu vi-o, eu vi-o,— em convulsão serena,
— Quanto do justo o passamento é doce,—
Desprender seu espirito cançado
Da cadêa que o liga á vil materia,
E voar, e voar, com leves asas,
Emanação de Deus,— de Deus ao seio.

A derradeira paz — fraternos osculos
De seus irmãos já recebia o triste:
Oh! phantasma da vida! como passas
Rapido tanto ! oh tempo mentiroso
De existencia fallaz e momentanea!
Homem ha hi tam vão que inda confie
N’esses teus ouropeis de podre gloria ?
Ha hi quem seja de razão tam fatua,
Que eterno julgue teu brilhar ephemero,
Que a tuas breves decepções se abrace ?
Ha hi quem seja em seu olhar tam cego,
Que pretenda esquivar-se á natureza?
Loucos mortaes! —onde esconder-vos livres,
Que não vejais o cherubim da morte,
Galopando em aligero ginete,
Co’a fouce em riste, ás fauces apontando ?

II

Pelos claustros soturnos estrugia
O grave e compassado andar dos monges.
Eu te quizera ter prezente agora
A ti, vaidoso atheu, nas horas mortas.
Eu quizera notar com lynceos olhos
De rasgo a rasgo os vizos de teu rosto.
Eu quizera apanhar, uma por uma,
As contorsões doridas,— as angustias,
Que por tuas feições reverberassem.
Tomara a consciencia acovardada
Sondar-t’a sim,—porém proval-a, nunca!

Não vês, não vês? — silenciosos,
quêdos,
Em dous extensos renques se dividem:
Talvez disseras que estes homens eram
Negras estatuas, que emblemassem morte!

Sonora voz levanta-se d’entre elles,
Convidando-se a virem contentissimos
Prostrar-se aos pés de Jehovah potente.
«Vinde,— cantavam,— vinde, e adorêmol-o.»
Cahiram todos, debruçados, curvos,
Ante a face de Deus ….. Tu, ente infame,
Torpe illusor dos próprios sentimentos,
Não te curvas,— sustens de Deus a vista?
Ah ! perdôa-me o excesso, irmão em Christo,
Atheu não és,— que não n’os ha no mundo !
Tu te prostras também — também cahiste
De joelhos em terra involuntario !
Interna violencia e força ignota
Obrigou-te a ser homem por momento,
Deixar de bruto a condição que ostentas!

Não achas não sei quê sonoro e mystico
No recitar monotono dos psalmos ?
Não achas não sei quê triste e pathetico,
— Um merencorio effluvio de dor terna,

Do miseravel Job nas proprias pragas ?
Segue esse não sei quê — por Deus soprado,
Que em teu intimo foro apenas sentes,
Mas que indizivel definir não sabes.
Segue esse não sei quê da consciencia,
Que é certo a voz ingenita do Eterno.
Apprende aqui,— oh ente depravado,
A ter fé no Senhor que te creara.
Serás entam feliz,— si olhar quizeres,
Alem da vida ephemera da terra,
Outra vida nos ceus,— que não se acaba.

Ouve-as agora — as derradeiras preces,
O psalmo dos degraus, que ura rei propheta,
Sonoro dedilhando o decachordo,
Insuflado por Deus, cantara um dia.
«Do imo de meu peito (eil-os que dizem)
A ti, Senhor, clamei no mesmo abysmo;
Os meus prantos, Senhor,— meus rogos ouve!»

Pouco depois passasses por ventura
Pelo extenso salão e mudas crastas.
Em solemne calada distinguiras
O pizar do pilão pezado e ouco
Por estoicos coveiros manejado.
Depois o baque da sonora lapida,
Que fecha — esmaga o putrido cadaver.
Depois talvez uma oração ainda

Dos labios do christão baixou sôbr’elle.
Depois mais nada alli — fóra o silencio.

III

N’estes claustros, aqui, talvez,— quem sabe?
Talvez n’este sepulchro immundo mesmo,
Após alguns minutos mais escassos
D’esse meu vegetar insulso e morno,
Me pilarão — triturarão meus ossos
Deshumanos tumbeiros.— Eu comtigo,
Podre cadaver, dormirei eterno,
Feito meu corpo em terra e cinza e nada.

1851

CANTO FUNEBRE

Recitado na occasião de sepultar-se o cadáver
do meu amigo
Luiz da França Rebouças a 16 de Abril de 1853

A alma foi feita para viajar no ceu.
YOUNG

Üh ! porque não ? — porque não posso
agora
Chorar-lhe a morte ? — Que poder tam forte
Ha hí que pare a um coração de amigo
No derramar as emoções que o partem ?
Que mão ha hi tam ferrea que comprima
Tam dentro em mim meus sentimentos de homem ?
Quem manda á idêa que não pense angustias,
Quem manda ao peito que não soffra maguas,
Quem manda á voz que não se expanda em queixas,
Quem manda ao pranto que não corra em fios ?
Oh ! porque não ? — porque este gosto extremo
Em lhe chorar a morte ham de tolher-me?
Oh! porque não! — Hei de chorar-lhe a morte,
Bem como outr’ora lhe cantava a vida.

Reminiscencia atroz ! que vario quadro
Vens a meus olhos destampar agora!

Como os anneis de uma cadêa extensa,
Prezos, cozidos, iocarnados, firmes,
Os meus dias estam co’os dias d’elle.
Um só minuto d’essa vida instavel
Que vivo ainda, não correu na terra
Sem um minuto d’essa vida innocua
Que elle viveu,— e que findou tam cêdo!
Entre elle e mim era partida a vida :
Meia vida perdi co’a morte d’el1e.
Si adulto apenas, eu olhei ao mundo,
E achei-o infame, e escarneci-lhe as pompas,
E co’alma feita a um scepticismo innato
Descri do amor que os homens divinizam,
— Não descri da amizade! —Elle provou-m’a
Elle foi meu amigo ! — oh nome augusto,
Que sabe os homens remontar aos anjos!
Quem sabe ser amigo em si resume
As virtudes do ceu e os bens divinos.
Elle foi meu amigo — único e último —
Que tinha uma alma conformada á minha.
Era-lhe braza o coração fervente :
Assimilava a si minhas angustias,
E, como o fogo, as consumia lento,
E as minhas sensações purificava.
Elle sabia compr’hender profundo
O coração phosphorico do vate.
Elle era vate!—Em floridos poemas,
Em suaves canções, em ternas lyras
Correu seu estro merencorio ou lindo.

Corria agora socegado e triste,
Como um regato em aridos desertos:
Corria agora mais travêsso e alegre,
Como um barquinho velejando esbelto.
Nos aureos fastos da poesia patria
Ha de seu nome se inscrever eterno.
Desse-lhe Deus mais dias de existencia,
— Fôra seu nome o sol para os mais astros!

Reminiscencia atroz! que vario quadro
Tu vieste pintar ante meus olhos?
Que vale uma lembrança, uma saudade?
Elle morreu !… a sua gloria é morta !

Oh! que eu não possa lhe chorar a morte,
Bem como outr’ora lhe cantava a vida!

Ah! não devo chorar. Além dos mundos
Eu vejo o ceu, vejo o infinito, o immenso:
É o throno sem fim do Deus Eterno:
E a Deus lá em cima vam junctar-se os justos.
É lá que a vida parará perpetua,
É lá que os tempos, sem correr, immoveis,
Não succedem-se mais,— sam sempre eternos.
Lá — elle, o justo, o virtuoso, o amigo
A vida que de Deus tomou, nascendo,
Foi a Deus intregal-a, e unir-se a elle.

Não chorarei: — que essa terrena vida
É um crisol que as .sensações apura,
Para chegar a Deus mais casto o espirito.
Não chorarei: — que a occasião da morte
É o degrau mais alto para o Eterno.
Antes devo pedir ao ceu que appresse
Meu momento tambem.
Quero ir bem cêdo
A Deus e a elle unificar-me eterno.

POEMA FUNEBRE

Dedicado a meu irmão Frei Henrique de Sancta Rosa Ribeiro,
por occasião da morte de seu irmão Raymundo Alvares Ribeiro,
succedida a 23 de abril de 1853.

Choraram Germanico até os desconhecidos.
TACITO

I

Choremos todos um amor de menos.
Si uma flor, que murchou, sentimos tanto,
É que faltou-nos seu odor suave,
Que nos dizia — amor — quando exhalava.
Choremos todos um amor de menos.
Si lá se esconde no oceano a lua,
E si nos parte o coração saudoso,
É que sem luz os olhos nos ficaram,
Sem esse amor que ella inspirar-nos sabe.
Choremos todos um amor de menos.
Si algum pharol não vemos na tormenta,
E si nos fogem da esperança os raios,
É que visâmos o naufragio urgente,
E a perda amarga da visão da patria,
Que delicias de amor nos predizia.
Choremos todos um amor de menos.
Si a morte crua nos arranca o amigo,
Si damos prantos á memoria d’elle,
É que de nós p’ra sempre separou-se
Um coração que concluia o nosso,
E o gozado prazer não mais gozamos,
E d’outro amor o nosso amor fallece.
Choremos todos um amor de menos!
Choremos todos o mancebo, o amigo,
Que a nossos braços nos arranca a morte.
Choremos todos uma flor crestada,
Que não dá mais odor: a linda lua,
Que se escondeu nas ondas do oceano,
Que mais não luz: esse pharol brilhante,
Que se apagou nas vascas da tormenta,
E a patria desviou-nos: esse amigo,
Que d’outro amor o nosso amor enchia.
Choremos todos sua perda infausta,
Choremos todos o passado gozo,
Choremos todos um amor de menos!

II

Era um dia formoso. — O sol brilhante
Mais esplendidos raios diffundia,
E mais ardentes jubilos mostrava.
Como do infante as faces que inrubecem
A mais e mais, quando a alegria augmenta.
N’um vaporoso sonho de poeta
Tres formosas vizões eu vi — tam novas —
Que mais ao ceu que á terra pertenciam.
Séria matrona erguia-se a primeira
Com magestoso porte e honesto rizo.
Gentil donzella erguia-se a segunda
Co’o timido pudor nos olhos ternos,
— Anjo ineffavel de modestia altiva!
Estava ante ellas um loução mancebo
Co’os vivos olhos alongados, fixos,
Respirando prazer, amor e pejo,
Como n’um templo a vista indefinida
Do crente que no peito as rezas volve.
Internecido em amoroso arroubo,
Fita á donzella, que, em pudor e rizo,
No chão a vista invergonhada crava.
Era um anjo de luz entre dous anjos,
Que d’elle a luz primeiro recebiam,
E seus raios depois communicavam,
Como a dextra do Eterno a graça infunde.
E onde era o centro fecundante e vivo,
E onde era a acção do mobile primeiro,
A humana vista distinguir não pôde.
E cada qual d’estas imagens vagas
Era fóco de luz, fonte de brilhos:
Bem como o sol — vivilicante fogo —

Seus proprios raios, circulando, espalha
Na vastidão do espaço, — e a luz que o cerca,
Vai reflectir pelos ethereos corpos,
Pelos astros do ceu — e o firmamento
Com extranho clarão pompêa á noute.
Eram assim minhas vizões formosas,
As tres imagens de meu vago sonho,
Que mais ao ceu que á terra pertenciam!

III

O mancebo fallou. O norte intenso,
Que ia cruzando infurecido os ares,
Foi transformar-se em zephiro saudavel,
Quando o mancebo desprendeu seus labios.
O terreno vapor, que ao ether sobe,
Do chão, dos mares, torrido ou aquoso,
Que vai no espaço assimilar-se em nuvens,
Que o ceu em crepe mortuario inluctam,
Parou também a aspiração que tinha,
Quando o mancebo desprendeu seus labios.
As lindas flores dos jardins da terra,
Que pelo sol crestadas, estuavam,
Tentando em si desnatural esforço,
A seiva toda do âmago chamaram
Ao calix globuloso — e cheiro e balsamo.

Mais novo e activo respiraram todas,
Quando o mancebo desprendeu seus labios.
O sol tambem mais orgulhoso e altivo,
Subiu ao seu zenith — seu throno ethereo —
Para mirar na direcção dos raios,
Na baixa terra a imagem da innocencia,
A incarnação do espirito dos anjos,
Quando o mancebo desprendeu seus labios.
— O vento forte e as nuvens se sumiram,
Não exhalaram mais o mar e a terra,
Balsamo novo as flores respiraram,
O sol subiu ao seu zenilh sublime;
Parada, estanque, a natureza attende,
E o mancebo loução desprende os labios.
— Crê-me, oh donzella! a omnipotente dextra
Formou meu coração p’ra ser contido
Bem dentro do teu peito — qual se esconde
Thesouro immenso em urna pequenina.
Tua alma pura, candida, innocente,
Como o gemer de solitaria rôla,
Tambem foi feita para unir-se á minha.
Somos dous corações fundidos ambos
N’um coração que um sentimento eguala:
Duas felizes almas derramadas
N’uma alma só que um pensamento ajunta.
Quando teus olhos — como ardentes fachos —
Chammas de puro amor, em mim se fitam,
Não encontras tambem meus olhos quentes

Fitos nos teus em fogo de ternura ?
Quando, depois de instantes de silencio,
Depois de um lindo e passageiro arroubo,
A ponto os nossos labios se desprendem,
Não temos dicto tanja vez n’um brado
As mesmas expressões, as mesmas phrases?
Não pensamos tambem na mesma idea ?
Quando um incerto e vago sentimento
De amor, de timidez, de zelo ou magua,
Ambos os nossos corações comprime,
Não temos arrancado ao mesmo tempo
Doridos ais ou tepidos suspiros ?
Dous corações e duas almas somos,
Que um sentimento e um pensamento ajuntam.
Deus quer-nos juntos, porque assim formou-nos;
Seremos junctos, venturosos, lindos,
Como as aves do ceu no espaço livre.
Deus quer-nos juntos — porque assim formou-nos,
Quer-nos ditosos, venturosos, lindos!
Não carecemos de riqueza immensa,
Para gozarmos nossa immensa dita.
Não carecemos de um solar vetusto,
De um castello feudal, de um regio alcaçar,
Nem de um palácio de riqueza immensa,
Que nos devam conter a immensa dita.
Não carecemos do poder do mundo,
De um diadema excelso de rainha,
De um sceptro forte de riqueza immensa,

Que nos venham ornar a immensa dita.
Não carecemos de renome ou fama,
D’esses prestígios frivolos de gloria,
D’essa vaidosa voz, geral, inutil,
Que nos venha espalhar a immensa dita.
Templo maior mais digno, mais sublime
É nosso coração: immenso alcaçar,
Onde pôde habitar o amor somente!
Chegámos n’elle : — que elle é amplo, extenso,
Capaz, bastante a concluir n’um fóco
Duas vidas irmãs, eguaes, fundidas.
É só no coração que a dita existe,
É n’elle só que ser feliz se póde.
Só do seu centro partem-se, despedem-se,
Brilhantes raios de immorlal ventura.
E si meu coração co’o teu se eguala,
Si junctos somos pela mão do Eterno,
É que a ventura em nós tambem se dobra,
E duas vezes mais felizes somos.
Deus nos quer juntos — porque assim formou-nos,
— Quer-nos ditosos, venturosos, lindos! —
Assim fallava o fervido mancebo:
Seu coração pulsava arrebatado,
Forte, ancioso, inquieto, ardente,
Como o oceano em vagalhões revolto,
— E parecia, entre os arfantes pulsos,
Querer pular no coração da virgem.

E as pupillas da virgem rutilavam
Saltantes, doudas, como incertos fogos
No mar á noute co’o ferver das ondas.
E do prazer a lagrima correu-lhe
Do lado esquerdo pela face quente,
E foi por ella tremula cahindo,
Como um regato de cristal ao longe,
E muito tempo lhe pendeu da face,
Qual pende em flocos do penhasco o gelo,
— E a tez ardente resfriou-lhe um pouco,
E pelas veias circulou-lhe o sangue,
Que todo havia concorrido ao rosto.
E a seu estado natural volvida
Era a donzella uma vizão celeste,
Que vê-se em sonho, e se dizer não póde.
E a matrona surriu. E os fracos olhos
Lagrimas raras de prazer manaram,
Bem como gottas de ligeira chuva.
E levantando a vista ao ceu sereno,
E erguendo a dextra sobre a filha e o joven,
E os abraçando em apertado amplexo,
— Sublime, excelsa, qual no templo assoma
Do sacerdote o divinal semblante, —
De Deus a bençam derramou por elles.

IV

E um disco enorme de ventura e gloria
Cobriu minha vizão. E as três imagens
Eram tres centros de brilhantes raios,
De mysteríos de luz. Entam meus olhos
De tamanho clarão feridos, cegos,
Não viram mais esta vizão distincta.
Perante a vista ainda restou por horas
Um turbilhão de luz no mesmo estado.
Depois de grau em grau foi-se apagando,
E se extinguiu. — Um vortice de trevas,
Imolando no ar, veio involvel-a.

V

Entam a voz de uma verdade amarga
A meus ouvidos resoou tremenda,
Como o ribombo do trovão rolante!
Um grito extenso, querelloso, trémulo,
Nos ares se partiu. — Como um rangido
De ferro em ferro, o guincho desatou-se.
Depois subindo lamentosa escala,
Era de um doudo a gargalhada bruta,
De vivo incêndio o crepitar nas matas,
O som de um raio no escachar o tronco.

Por fim descendo em gradação medonha,
Já muito ao longe terminou-se o guincho
Na querellosa voz que começára.
Ave sinistra! — incredulos ou sabios
Teus mortuarios canticos não temam!
Eu não! que sei temer-te. — Instincto ou alma
Existe em ti que prophetiza a morte.
Talvez o Eterno te formou de modo,
Que teu olfacto peregrino ou proprio,
Do moribundo os hálitos perceba,
Assim como formou-te a voz horrivel
Para dizeres lôbregos lamentos.
Entam a voz de uma verdade amarga
A meus ouvidos resoou tremenda
Como o ribombo do trovão rolante!
Entam o lindo zephiro saudavel
Transformou-se outra vez em norte intenso.
O mar e a terra respirou vapores,
Que subiram ao ar formando nuvens,
Que o ceu em crepe funebre inluctaram.
Entam as flores dos jardins da terra
Esgotaram a seiva e a força e a vida,
E o cheiro activo e o balsamo perderam.
E o sol formoso, que eu sonhava ha pouco,
Contra o nosso hemispherio a face tinha.
Entam a voz de uma verdade amarga
A meus ouvidos resoou tremenda,
Como o ribombo do trovão rolante!

VI

Torvos os olhos, trêmulos os labios,
Pallida a face em lagrimas banhada,
Rugada a testa juvenil — tão linda,
Cahida pelo collo a espessa coma,
Um lugubre ululado ao ar desata
Uma triste mulher. Chamou-se esposa
N’um instante sómente, — e n’outro instante
Da viuvez a sorte e as dores prova.

VII

— Elle, meu Deus! o esposo da minh’alma
Aqui no coração viveu té’gora,
Como n’um templo. —Elle morreu p’ra sempre,
— E resta o coração que elle habitava,
Qual fica o templo a que se tira o Sancto.
E resta o coração… que é este agora ?
Taça vazia do licor divino,
Que outrora a encheu e a perfumou tam doce!
Amplo jardim de arbustos decepado,
Sem flores mais que imbellecel-o possam!
Taes para mim os meus amores eram!

Doce licor que o peito me imbebia,
Flores que a fronte ornavam-me em
grinalda,
Sancto que tinha na minha alma um templo!
Ah! meu amor se consummou tam cedo!…

A minha vida se acabou co’a d’elle,
Qual murcha a planta quando o pé lhe arrancam.
— Tirae-me aqui, levae-me longe, amigas,
Levae-me longe as vestes do noivado.
Esta capella, que cingiu-me a testa,
Que eu tenho aqui tam natural, tam nobre,
Foi elle que m’a deu. Seus proprios dedos
Foram que em mim esta capella ataram.
Depois, de mim tres passos afastou-se
Para mirar-me assim, — e achou-me bella
Como sua alma, e me chamou «Divina,
«Vizão de Deus, ou seraphim, ou fada.
«És bella, oh minha irmã, — entam me disse,
«Como os anjos do ceu, — quando te adorna
«A fronte esta capella. —Em nossas bodas
«Irás ovante, presumpçosa, altiva,
«De teu brilhante resplendor cercada.»
Levae-me longe esta infeliz capella,
Levae-me longe este presente, amigas,
Levae-me longe as vestes do noivado.
Tirae-me as joias que este collo infeitam,
De que me ornei para agradar-lhe os olhos.
Não mais eu tenho o meu amor tam bello,

P’ra quem me infeite de luzidas joias.
Levae taes jóias para longe amigas,
Levae-me longe as vestes do noivado.
De meus dedos, aqui, vinde arrancar-me
Estes anneis de rutilos brilhantes,
Estes ornatos de alegria e luxo.
Mas este annel, que vedes mais pomposo,
Mais fulgurante aqui — bem como um astro —
Por compaixão! não m’o tireis, amigas,
Que foi de meu amor signal eterno,
Impresso pela mão do amante esposo.
Os mais infeites me arrancae, amigas,
Levae-me longe as vestes do noivado.
Fatal doença, que poder tiveste
Que de meus braços o levaste á morte!
Tam joven inda o meu esposo! Agora,
—Viver, agora, começava apenas,
Pois agora somente era que amava.
Quando lhe urgira o passamento extremo,
Luctando já entre mortaes transidos,
Essas tocantes phrases lhe escutamos:
«Morrer tam cedo! — e o seraphim que eu tenho,
«Esta esposa infeliz, que amo extremoso,
«Unico anhelo á vida ao pé da morte,
«Esta esposa infeliz tam cedo a deixo!»
Fui eu, fui eu seu pensamento extremo!
E n’essa convulsão que ultima a vida,

Quando a pallida bocca abriu forçado,
Quando lançou seu derradeiro expiro,
Inda tentou articular meu nome,
Que entre-partido lhe ficou nos labios,
E o fim, e o resto — transportou-o á campa !
Campa cruel, que p meu amor incerras,
Não lhe comprimas o mimoso corpo,
Que eu já cuidei para intregar-te agora.
Já que não podes reverter-lhe a vida,
Dá-lhe um socêgo placido na morte,
Campa cruel, que o meu amor incerras!
Elle não era para mim somente
Amor inutil, isolado, ou fatuo.
Co’o seu amor vivifico e fecundo
Queria a todos, como a si queria.
Choremos todos um amor de menos.
Choremos todos: que partiu tam breve
Da terra aos céus um coração de amigo.
Mas foi unir-se áquella Essencia eterna,
D’onde seu puro espirito partira.
Entre os anjos nos ceus elle revoa;
Que um anjo elle era candido e formoso.
Isto consola: — mas em quanto a vida
Na terra me durar, — continuo e sempre
Chorarei pelo amor que d’elle tive,
E com meu pranto copioso e ardente
A lamental-o insinarei a todos.
Choremos todos um amor de menos.

NENIA

A FILHA DE S. VICENTE DE PAULO, FALLECIDA NA CIDADE DE HAR1ANNA

Si ella fôra mais afibrtunada, sua historia
seria mais pomposa: mas suas obras seriam
menos cheias, e com títulos suberbos teria
talvez ap-parecido vazia diante de Deus.
Bossuet

I

Olhae nos ares : lá sobem,
Brilhando de accezas listras,
Espheras aureas de nuvens
Formosas, porem sinistras.

Sinistras, sim: que na terra
Tal espectaculo existe,
Que é alegre para os anjos, Que
para os homens é triste.

É assim aquelle aspecto
De nuvens de ouro e saphira: Tam
prazenteiro que é elle! Não sei que
pezar inspira.

Olhae nos ares: lá sobem,
Brilhando de accezas listras,
Espheras áureas de nuvens
Formosas, porem sinistras.

E lavas de ardentes hymnos
Rebentam dos bojos seus :
— Sam anjos lindos que intôam
Mysterios sanctos de Deus.

Sam musicas de outra patria, -—
Sam do ceu,— sam anjos, sim:
A voz das virgens da terra
Não tem harmonia assim.

Que belleza não reflectem
Os ares, a terra, o mar!
— Mas que silencio que guardam
Tam proprio para chorar!

Olhae nos ares: lá sobem,
Brilhando de accezas listras,
Espheras áureas de nuvens
Formosas, porem sinistras.

Entes do ceu ! — quem inspira
Vossa linguagem canora?
Perdestes outr’ora um anjo,
Que vindes buscar agora?

Talvez que baixasse ao mundo
Algum de vossos irmãos:
Talvez que o ceu nos mandasse
Algum de seus cidadãos.

E completasse entre os homens
Sua divina missão:
E suba, em nuvens douradas,
De novo a sua mansão.

Olhae nos ares: lá sobem,
Brilhando de accezas listras,
Espheras áureas de nuvens
Formosas, porem sinistras.

II

Quem és, virgem christan ? — qual é teu nome ?
Por pátria tua — que nação te cabe ?
Porque sobem-te ao ceu espheras de ouro ?
—D’entre os homens ninguem,— ninguem o sabe.

Foste — qual chuva argentea que, passando,
Fecundação pelos vergeis acorda:
Mas á vista do sol ninguem na terra
Das chrystallinas gottas se recorda.

Assim, christan, passaste pela terra,
Extranha ao mundo, e plácida, e quieta:
Nem a lage que cobre o teu cadaver
Molhou-a co’o seu pranto algum poeta.

Nem cahiu-te no feretro uma lagrima,
— Nem uma só de sentimento grato:
Lagrima a preço de ambição comprada
Não n’a tiveste d’esse povo ingrato.

Não te adornaram a virginea frente.
Inúteis louros de Stael famosa.
Não manejaste as aulicas intrigas,
Que celebraram Maintenon vaidosa.

Não te coube o poder da grande Aspasia
Pelos altivos sophos decantada.
De Catharina o formidavel sceptro
Não te pezou na dextra delicada.

Foste — qual chuva argentea que, passando,
Fecundação pelos vergeis acorda :
Mas á vista do sol ninguem na terra
Das chrystallinas gottas se recorda.

Nem elegias ternas de saudade
Sobre o tumulo teu disse um poeta.
Do ministro de Deus a voz apenas
Poude-se ouvir monotona e quieta.

Mas Deus, que lê nas visceras dos homens,
Fez abaixar do ceu espheras de ouro.
Tua alma pura, circumdada de anjos,
Foi levada ao Senhor, como um thesouro.

Os cantores seraphicos te intôam
Nenias, que nunca os homens escutaram:
Saudosas nenias, inauditas, novas,
Que os poetas da terra te negaram.

Quem és, virgem christan? — qual é teu nome?
Por pátria tua que nação te cabe ?
Porque sobem-te ao ceu espheras de ouro?
— D’entre os homens ninguem, ninguem o sabe.

III

Parae, impios, parae,— em quanto eu firo
As cordas do alaúde.
Mudos ouvi-me o cantico da morte,
A nenia da virtude.

Virgem christan ! — um trovador mesquinho
Na terra ainda existe,
Que intorna sobre a campa, que te incerra,
Uma palavra triste.

Não é um canto sobranceiro — como
Aguia que os ceus devassa:
É a querula voz de homem affeito
Aos hymnos da desgraça.

Virgem christán! — tu que inxugasle em vida.
As lagrimas do pobre,
Acceita agora as lagrimas do bardo
Na lage que te cobre.

Tu has de ouvir no ceu, onde subiste,
Meu luctuoso canto.
A linguagem das lagrimas é tua:
Intenderás meu pranto.

Abaixa os olhos: — sôbre o teu sepulchro
Curvado está um homem :
Lagrimas verte,— e d’essas que, cahindo,
Seccando, se consomem.

Sou eu,— sou eu,— co’a lyra nos joelhos,
Co’a voz’ tremente e preza:
Co’os vagos dedos affinando incerto
A corda da tristeza.

Dá-me, dá-me uma lagrima somente,
Oh virgem,— que eu precizo:
Uma lagrima, não! — lá não ha d’ellas……
Dá-me, dá-me um surrizo.

Paráe, impios, paráe,— em quanto eu firo
As cordas do alaúde.
Mudos ouvi-me o cantico da morte,
A nenia da virtude.

IV

Oh virgem! — na campa que tem teu cadaver
Estive inclinado,—joelhos no chão.
Co’o triste alaúde coberto de crepe
Tentei entoar-te funerea canção.

Minh’alma em sublime delirio voava,
Minh’alma voava, sahia de mim.
Meu triste alaúde coberto de crepe
Ficou n’uma estatua de duro marfim.

Minh’alma voava suspensa no espaço,
Minh’alma voava.— por onde — não sei.
Aos lados e acima somente o infinito, Por
baixo somente sepulchros achei.

E tudo deserto,— silencio de tumbas,
Vastíssimo aspecto de immensa soidão:
E tudo espirava bellezas horriveis
De um mundo que de homens não póde ser, não.

Entam repentina no vago do espaço
Não sei que harmonia que ouvi que rompeu;
Não sei si partia de vozes estranhas,
Não sei si partia do espirito meu.

O cadaver que jaz n’esta campa
Esse mundo o não teve intendido.
Esse mundo não deu o seu pranto,
— Esse pranto comprado e vendido.
É dos ceus o cadaver da virgem,
Que esvoaça do mundo mentido.

O cadaver que jaz n’esta campa
Sentimentos dos anjos conteve.
Salamandra que vive nas chammas,
N’este mundo esta virgem esteve.
N’este mundo os preceitos do Christo
Em sua alma ella sempre os reteve.

O cadáver que jaz n’esta campa
Esse mundo o tractou com desprezo:
Que esse mundo escarnece as virtudes,
Quando d’ellas se sente surprezo.
Lá nos antros escuros do peito
Da verdade o louvor fica prezo.

Perguntais sua patria qual era?
— Perguntae-o aos dous polos da terra:
— Flor eterna que em todo o universo
As raizes profundas aferra :
— Povo de homens christãos que nos orbes
Nunca um despota enorme os desterra.

O seu nome quereis ? — Consultae-lhe
Que palpites seus peitos tiveram.
Sentireis, no cadáver gelado,
Que valentes, que sôffrcgos eram.
— Caridade ! — seus peitos palpitam:
— Caridade! — seus lábios disseram.

Foi seu astro esse nome divino,
Esse nome que o Christo insinou.
Para os cárdines longes da terra
Essa virgem christan se atirou.
Co’esse nome do Christo nos labios,
Mil ferozes nações arrostou.

Esses martyres loucos da guerra
Exhumou do cruor da batalha.
Foi pensar a familia do pobre
Na modesta cazinha de palha.
Foi as chagas limpar do mendigo
Com fibrosa e macia toalha.

Pelos trivios desertos da estrada,
Pelos sordidos cantos das ruas,
Recolheu os infantes expostos
Pelas mães deshumanas e cruas;
Involveu em felpudas mantilhas
Suas carnes geladas e nuas.

Porem nunca prostrou-se nos thronos
Nem rojou pelos pés do monarcha.
Caridade ! — este nome sagrado,
Como as tábuas da lei dentro da arca,
Caridade! — entre o marmore e o colmo
Accepções differentes não marca.

Caridade! — evangelho em resumo —
Entre os homens não faz distincção.
Ama o pobre — que acima dos ricos
D’esse amor tèm maior precizão.
Vale menos um sceptro p’ra ella:
Vale mais do mendigo o bordão.

Caridade ! — evangelho em resumo —
Nem senhores nem servos conhece.
— Como o servo estremece, morrendo,
D’este modo o senhor estremece.
E a nobreza comprada no berço
N’uma campa co’o pobre fenece.

Assim foi esta virgem.— Mil vezes
Os feridos colheu da batalha.
Os mendigos tomou pelas ruas,
Consolou na cazinha de palha.
Involveu os infantes expostos
Em íibrosa e macia toalha.

Porem hoje o seu corpo é cadaver.
Tem sua alma a celeste mansão.
O Senhor a chamou por seus anjos,
— Que completa viu sua missão.
E partiu d’entre nós… E da virgem,
Ninguém d’ella se lembra mais não.

Nos semblantes de infêrmos, de pobres
Da ventura já brilha o retrato.
O menino que a vida lhe deve,
Esse mundo ao depois fêl-o ingrato:
Por que o homem no leito de estofo
Julga infâmia o que lembra o grabato.

E partiu d’entre nós… E não teve
A canção funeral do poeta,
— Do inspirado de Deus para o mundo,
Do escolhido — terrestre propheta.
Do propheta divino somente
Ella teve uma prece quieta.

E partiu d’entre nós… E seus anjos,
— Seus irmãos — uma nenia intoaram.
E no ar assombrado e tranquillo
Harmonias do ceu resoaram.
E de nuvens espheras douradas
Para os altos de Deus a levaram.

E perante esse aspecto de gloria
Toda a terra quedou-se serena:
Como o triste, ante os rizos alheios,
Sente mais augmentar-se-lhe a pena :
Como a taça de nectar do rico
As arterias do pobre invenena.

Mas a terra reflecte bellezas,
Essa terra, esse vacuo, esse mar!
Porém tudo — mudez e silencio,—
— Atalaia que põe-se a espiar:
Porem tudo assombrado e tranquillo,
Como quem preludia chorar.

E partiu d’entre nós… E seus anjos,
— Seus irmãos — uma nenia intoaram.
E de nuvens espheras douradas
Para os altos de Deus a levaram.
E essa terra, esse vacuo, esses mares
Na mudez da tristeza ficaram.

Tu, oh ceu, na escriptura dos anjos,
Mais um anjo em teus choros registras.
Tu mandaste-o buscar por teus anjos
Sobre nuvens de fulgidas listras.

Mas a terra ficou merencoria,
Qual gigante co’as faces sinistras.

VI

Tal foi repentina no vago do espaço
Aquella harmonia que ouvi que rompeu.
Não sei si partia de vozes extranhas,
Não sei si partia do espirito meu.

1 de fevereiro de 1854

OS DOUS CADAVERES

Aos manes do venerando anelâo — o Dr. Fr. José de Sancta
Escholastlca
e Oliveira, fallecldo a 22 de março, e do meu joven
amigo Fr. Henrique de Sancta Rosa Ribeiro, fallecldo
a 22 do mesmo mez.

Felizes,— não só pela honradez da
vida, como pela opportunidade da
morte.
TACITO

I

As lamentaveis orações que escuto
Dizem que é tempo de choral-os inda.
Precizam certas dores longa ausencia
Para tornar-se fortes. Nem no tempo
É que se inxugam lagrimas de amigos.
E as lamentáveis orações que escuto
Dizem que é tempo de choral-os inda.

II

Em dous dias somente á terra demos
Dous cadaveres nossos. E essa terra
Duas fauces abriu para ingolil-os,
— Duas fauces terriveis. Parecia
Por duas boccas horrorosa rir-se
Com sardonico aspecto.

III

Entre as preces de morte aqui trouxemos
Primeiro um ancião. Vivera um dia,
Mas um dia completo. A sua aurora
Fora risonha: o seu zenith mais bello:
Mais bello o seu occaso.
De sua historia as paginas douradas
Todas n’um verbo apenas se resumem,
— No verbo da virtude.
E vós, filhos do mundo,— e vós, que tendes
Menoscabado, ironizado os claustros,
Vêde aquelle sepulchro. Alli na pedra
Lereis vossa loucura, alfim vencida
De pejo e confusão,— indo esconder-se
Por entre as nossas orgulhosas palmas
De funebre victoria.
E esse quadrado, povoado ao longo
De cadaveres mil, attesta aos impios
Que esta insania da cruz não cai ainda.
Vinde estudar na lapida dos tumulos
A sorte do porvir. Aqui se enastram
Nas flores do martyrio immensos nomes
Que figuram no ceu. Aqui lançâmos
Ao mundo inteiro uma solemne prova
Do que elle chama — as ambições do monge.
Inclinae vossa fronte em nossas campas,
Oh impios,— e apprendei! Aqui se escondem
Do monge as ambições mortas com elle.
Perguntae, perguntae ás mesmas campas
— Quaes ellas foram ? — Uma prece humilde
Depois de sua morte.

Taes do monge ancião, que inda chorâmos,
As ambições na vida e além dos túmulos.

Foram cumpridas, ellas. Seu cadaver
Entre as preces de morte aqui trouxemos.

Tinha troado luctuoso o bronze
Gravosos sons de morte.
De dobres e orações os ares pejam.
Da dor o espectro, o genio dos lamentos
Nos tectos pousa, em lagrimas folgando.

E o campanario immudeceu: nas auras
De todo em todo o lugubre ruido,
Voando, esperdiçou-se em tenues ecchos.
Somente as orações crebras susurram
Pela extensão dos solitarios claustros.
E tudo o mais era silencio e nada.
Quando outra vez o acostumado bronze
Mais outra morte clama :

Era um joven que um passo apenas dera
No caminho da vida. Uma pégada
Marcou somente nos degraus do mundo :
Desceu,— e deu no tumulo a segunda.
Um momento parará ante os altares
Cantando o Eterno em maviosos hymnos:
Foi toda a vida sua esse momento:
E remontou-se ao ceu, findado o canto.
Quando de tarde internecida e meiga
Falia entre as folhas dos rosaes a briza,
Um som — quasi canção — se expande ao longo,
Melodioso, sim: porém mais bello
Era o seu hymno harmonioso e brando.
Quando sobre a montanha aérea orchestra
De altivos rouxinoes em fortes trinos
De musica atrevida os ares enchem,
Para os ouvir o camponez deserta
O innocente tugurio,— e as feras bravas

E as torrentes caudaes e os nortes param:
Mas nada d’isso a sua voz copia.
Nem a harpa immortal tangida outr’ora
Pelo joven David nos regios paços,
Do possesso Saul calmando as furias,
Traduz o seu cantar. Já para a terra
Era de mais ouvil-o.
Tinha excedido ha muito o ser de humano,
E já tocava á perfeição dos anjos.
Talvez que precizasse o ethereo throno
Mais de um cantor, qual elle.
Ou d’entre os choros seus—Deus, por momentos,
Tirara um anjo que viesse ao mundo
Cantar canções do ceu,— dizendo aos homens
Como se adora a Deus na patria eterna.

VI

Cantor, cantor do ceu! tu não morreste,
Nem mudaste de patria.
Não pode, não, ser teu nem um dos orbes.
Si na terra passaste, oh sim,— viagem,
Missão de Deus foi isso em nossa esphera.
A patria tua é tam somente o Eterno!
Tu gemias, eu sei, eu vi-te, eu mesmo,—
Gemias, circumscripto em teu segredo,
Com saudades de lá. Cuidando ás vezes

A sós comtigo e tua idea estares,
Em quentes preces ao Senhor pedias
Sua mensagem concluir comtigo.
Lá no Golgotha assim, na cruz suspenso,
Entre dores ao Pae rogava o Christo
Que lhe passasse o calix.
Deus emfim te attendeu, cantor sagrado.
Almas dignas de Deus — Deus sempre as ouve.
Não choremol-o, não. Um pranto esteril
Sôbre os manes de um anjo — insulto fòra.
Gravemos só em sua campa um nome,
E o mais em nossos peitos.

22 de abril de 1854

Al !

Pelo fallecimento do venerando anelão — Frei
Marcellino do
Coração de .Jesus, accontecido em junho de 1854 no mosteiro
do Rio de Janeiro.

Sam velhos que batalharam,
E que jamais renegaram
A sua divisa e fé.
MUNIZ-BARRETO

Por que deixaste o teu mosteiro, oh monge,
Deixaste a tua cella?
Para o baculo ainda um dia tinhas,
Um dia para a mitra!
Não tinhas mais que performar no mundo ?
Esgotaste da vida o vário calix,
Onde, a par do prazer que á tona sobe,
Assentam magoa e fezes ?
Saciaste-te bem de dor, de gozos!
Fartaste-te da vida ?
Por que deixaste o teu mosteiro, oh monge,
Deixaste a tua cella?

Era cedo, talvez. Ainda as faces
Alardiavam mocidade e vida.
Na fronte ainda o ébano luzente
Entremeava a prata.
Rija, sonora, da tribuna eterna,
A voz ainda estremecia as turbas,
Apavorava os grandes.
Podias espalhar mais bem no mundo,
Si fosses mais um dia.
Porque deixaste o teu mosteiro, oh monge,
Deixaste a tua cella?

Fôras um homem necessario agora.
Precizavam de ti victimas tantas,
Ai! tantos desgraçados!
A mão iniqua de sagrados odios
Sobre o collo innocente alçou de novo
A secure de Herodes.
Co’a garganta infantil cozida ao cêpo,
Do algoz romano pavidos ouviram :
— Obediencia ou morte! —
Obedeceram.— A tortura, o açoute,
O ergastulo, o patibulo, as pantheras,
Dos impios Neros foram.
Hoje ha Neros christãos mais brutos que elles.
Sam de todas as epochas os typos
De crime, de ferocia.
Não ha, porem, amphitheatro e féras.
Conhecem mais o sofrimento, as dores,
O que mais damna os homens.
Dam-nos apenas cárcere e destêrro!

Ah! o desterro!… prolongada estatua
De morte que do ceu se prende ao inferno,
— De morte que não finda! Ai!
para tantos mizeros agora
Que necessário fôras!
Por que deixaste o teu mosteiro, oh monge,
Deixaste a tua cella?

Não viste as salas humidas do pranto
Dos mizeros proscriptos.
Não viste o panno dos sagrados muros
Transudando de lagrimas.
Não viste o corucheu do templo annoso
— Testemunha da dor,— curvar-se a ella,
Em respeito á desgraça.
Não viste á noute nos soturnos claustros,
De par em par fendendo-se os sepulchros,
Rangindo os ossos, levantar-se os mortos
Brandindo maldições em férreos carmes
Sobre os filhos sacrilegos.
Mui agra fora a teus provectos annos
Uma scena de sangue.
Ah! tanto horror te causaria infernos!
Foste feliz: — morreste.
Quando os pequenos, tam do Christo amados,
Fossem vistos de ti,— pallidos, tristes
Co’as faces cavas do soffrer profundo,
Castigados sem crime, em hostia á raiva
De phariseus hypocritas…

Uma lagrima tua, um gesto, um brado,
De balsamo lhes fôra.
Por que deixaste o teu mosteiro, oh monge,
Deixaste a tua cella?

Tambem foste proscripto. A dor do exilio
Não era-te ignota.
Ah! quantas vezes desejaste em âncias
Voltar á pátria cara!
Na pedra tumular da avita gloria,
Sobre o pó dos tropheus, pobre, aviltado,
Seus maus destinos Portugal prantêa,
E pranteando dorme.
Ossada de nação co’os pés em terra,
Co’as mãos a custo sustentando o craneo,
A cada sôpro do suão vacilla.
Mas inda assim amavas-lhe os destroços !
Lá o teu berço estava.
Mas ah! os toques matinaes não soam
Nas cupolas da Arrabida.
Jazem seus claustros pavorosos êrmos.
Murmura ainda nas extensas naves
O ruido do sangue.
Nas vácuas cellas estampado impera
O crime de seus filhos.
Só esta idea te rasgava as veias,
Te amargurava o peito.
Receaste, avistando-lhe as ruinas,
Desfallecer chorando.

Mas esses prantos que o sublime excita
Contêem suave gozo.
Por que deixaste o teu mosteiro, oh monge,
Deixaste a tua cella?

Hoje de lá do ceu a vista inclina
Para a dor dos pequenos.
Uma prece de ti merecem, querem
Tam innocentes almas.
Roga por elles ao Senhor que os ama.
Prostra-te ainda d’ante o solio eterno
Orando pelos impios.
Talvez o Christo lhes perdoe o crime,
Dizendo ainda ao Pae, qual disse outr’ora :
— Não sabem o que fazem.
Talvez subiste ao ceu por impios tantos.
Seria lá preciza a prece tua,
Para abrandar-se a cholera divina,
Que já baixava em laminas de fogo
Nas mãos do archanjo que assolara o Egypto,
Sobre a cabeça grávida de crimes
Dos phariseus modernos.
Por que, sinão por isto, ao ceu subiste ?
Por que deixaste o teu mosteiro, oh monge,
Deixaste a tua cella ?

MAIS UM TUMULO

Pelo fallecimcnto do venerando ancião—Frei José
de S. Bento
Damasio, a 1O de septembro de 1854.

I

Mais um tumulo aberto ! Amada lyra,
Tempéra as cordas de tristeza e lucto.
Ah! não te esqueça teu dever funereo !
Nossa missão é esta.
Internemos na pedra um ai, um carme,
E alabastros de preces.
Cantemos sempre os males que se findam
No liminar da morte.
Merece cantos uma dor que expira.
Quem hoje desce á profundez do nada
Foi infeliz,— foi monge.

II

Mas ah! que imagem me arrebata extranha
A tetricos abysmos!
Quem és ? — archanjo ou fada ? — As longas vestes
Vitreas, tam de crystal, os ares quebram
E refrangentes choques!
Que cor, que face transparente, annilea,
Qual índigo de louça!
Que cor, que face, que platíneos olhos,
Quâes pallidas estrellas !
Onde me arroubas, ai! que cahos, que abysmos
Que gelos glaciaes, que moveis plagas,
Que campos fluctuantes!
Quantas campas aqui quebram-se e correm !
Quantos craneos,—que horror! — de sánie sujos,
Surgem medonhos d’ellas!
Eis! de um lado levantam-se, frangendo,
De negras togas adornados todos,
Altivos esqueletos!
Ah! esfoutros, porem, forcejam, luctam,
Tremendos uivam, por querer debalde
Transpôr-se do sepulchro,
Algum grilhão, talvez, lhes prende as plantas
Lá na raiz da rocha,
Anjo, demônio, deusa, incanto, ou fada,
Ah! dize-me o que vejo!

Que crâneo immundo em desespêro apponlas,
Demonio, deusa, archanjo!
Não reconheço-o não. A patria minha
Não é aqui. A região dos mortos,
Zona do ceu, do inferno, elysio, averno,
Gurgite infindo, tenebroso ou claro,
Pegos de luz ou turbilhões de trevas,
Não me pertencem inda.
Outra nação, aqui, de essência extranha,
Este logar occupa.

Deixa-me, pois, voltar demonio ou anjo.
Transporta-me outra vez ao ser que tinha.
Não tenho ainda o meu dever completo.
Minha missão me chama.
Concede-me um instante, um verso, um canto,
Uma improviza nenia.
Quem hoje desce á profundez do nada
Foi infeliz,— foi monge…

III

«Não cantarás,» atterradora brada
A meu ouvido a furia.
«Não cantarás» me repetiu, inchado,
E rebentou, tinnindo.

FIM

Veja também

Os Reis Magos

PUBLICIDADE Diz a Sagrada Escritura Que, quando Jesus nasceu, No céu, fulgurante e pura, Uma …

O Lobo e o Cão

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Encontraram-se na estrada Um cão e um lobo. …

O Leão e o Camundongo

Fábula de Esopo por Olavo Bilac PUBLICIDADE Um camundongo humilde e pobre Foi um dia …

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site é protegido por reCAPTCHA e pelo Googlepolítica de Privacidade eTermos de serviço aplicar.