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Júlio Verne
CAPÍTULO I
EM QUE PHILEAS FOGG E PASSEPARTOUT RECIPROCAMENTE SE ACEITAM, O PRIMEIRO
NA QUALIDADE DE PATRÃO, O SEGUNDO NA DE CRIADO
Em 1872, a casa de número 7 da Saville Row, Burlington Gardens —
casa em que Sheridan morrera em 1814 — era habitada por Phileas Fogg,
esquire, um dos membros mais singulares e destacados do Reform Club de Londres,
apesar de todo seu esforço em evitar, segundo parecia, chamar a atenção
sobre si.
A um dos maiores oradores que honram a Inglaterra, sucedia pois este Phileas
Fogg, personagem enigmático, de quem nada se sabia, salvo que era homem
muito polido e um dos mais perfeitos gentlemen da alta sociedade inglesa.
Diziam que era parecido com Byron — pela cabeça, pois que era
irrepreensível quanto aos pés — mas um Byron de bigode
e suíças, um Byron impassível, que teria vivido mil anos
sem envelhecer.
Inglês, seguramente, Phileas Fogg não era talvez londrino. Nunca
o tinham visto nem na Bolsa, nem no Banco, nem em nenhum dos corredores da
City. Nem as bacias e docas de Londres jamais tinham recebido um navio cujo
armador fosse Phileas Fogg. Este gentleman não figurava em nenhuma
gerência administrativa. Nunca seu nome ressoara em algum escritório
de advogados, nem no Temple, nem em Lincoln’s Inn, nem em Gray’s
Inn. Jamais pleiteara à Corte do chanceler, nem ao Banco da Rainha,
ao Tesouro (Exchequer), nem a qualquer Corte eclesiástica. Não
era industrial, nem negociante, nem comerciante, nem agricultor. Não
fazia parte nem da Instituição real da Grã-Bretanha,
nem da Instituição de Londres, nem da Instituicão dos
Artesãos, nem da Instituição Russell, nem da Instituição
literária do Oeste, nem da Instituição do Direito, nem
desta Instituição das Artes e das Ciências reunidas, que
está sob o patrocínio direto de Sua Graciosa Majestade. Não
pertencia, resumindo, a nenhuma das numerosas sociedades que pululam na capital
da Inglaterra, da Sociedade da Armônica à Sociedade entomológica,
fundada principalmente com a finalidade de promover a destruição
dos insetos nocivos.
Phileas Fogg era membro do Reform Club, e só.
A quem se admirasse de que um gentleman tão misterioso figurasse entre
os membros desta distinta associação, responderíamos
que foi admitido graças à recomendação dos Baring,
junto aos quais tinha crédito aberto. Além disso, Phileas Fogg
apresentava um certo ar de respeitabilidade por serem os seus cheques pagos
à vista, debitados em sua conta corrente invariavelmente credora.
Phileas Fogg seria rico? Incontestavelmente. Mas como fizera fortuna era o
que os mais bem informados não poderiam dizer, e Mr. Fogg seria o último
a quem conviria indagar. Em todo caso, não era nada pródigo,
mas sem ser ávaro, porque onde quer que faltasse uma contribuição
para algo nobre, útil ou generoso, contribuía silenciosa e mesmo
anonimamente.
Em suma, ninguém menos comunicativo do que este gentleman. Falava o
menos possível, e parecia tanto mais misterioso quanto mais silencioso
se mostrava. Embora vivesse às claras, tudo o que fazia era tão
matematicamente sempre o mesmo, que a imaginação, insatisfeita,
procuraria ver além.
Teria viajado? Era provável, porque ninguém conhecia melhor
do que ele o mapa terrestre. Não havia lugar, por afastado que fosse,
de que não parecesse ter conhecimento especial. Às vezes, mas
em poucas palavras, breves e claras, corrigia os mil boatos que circulavam
no club a propósito de viajantes perdidos ou extraviados; indicava
as verdadeiras probabilidades, e suas palavras muitas vezes acharam-se como
que inspiradas por uma espécie de dom profético, uma vez que
o que acontecia acabava sempre por as justificar. Era um homem que devia ter
viajado por toda a parte — pelo menos em espírito.
O que era certo, todavia, é que Phileas Fogg havia muitos anos que
não saia de Londres. Os que tinham tido a honra de o conhecer um pouco
mais que os outros, atestavam que — salvo o caminho direto que percorria
diariamente para vir de sua casa ao club — ninguém poderia pretender
tê-lo visto em outro lugar. O seu único passatempo era ler jornais
e jogar whist. Neste jogo silencioso, tão apropriado à sua índole,
ganhava freqüentemente, mas os ganhos nunca eram por ele embolsados e
respondiam por uma quantia considerável de seu orçamento destinado
à caridade. Além disso, é preciso que se note, Mr. Fogg
jogava evidentemente por jogar, não para ganhar. O jogo era para ele
um combate, luta contra uma dificuldade, mas luta sem movimento, sem deslocamento,
sem fadiga, e isso conformava-se ao seu caráter.
De Phileas Fogg não se conheciam nem mulher nem filhos — o que
pode acontecer às pessoas as mais honestas — nem parentes nem
amigos — o que é na verdade mais raro ainda. Phileas Fogg vivia
só na sua casa de Saville Row, onde pessoa alguma penetrava. Do seu
interior ninguém cuidava. Bastava-lhe um criado. Almoçando e
jantando no club a horas cronometricamente determinadas, na mesma sala, à
mesma mesa, sem banquetear os colegas, não convidando nenhum estranho,
só voltava à casa para se deitar, à meia noite em ponto,
sem jamais usar os aposentos confortáveis que o Reform Club coloca
à disposição dos seus membros. Das vinte e quatro horas,
passava dez em casa, fosse para dormir, fosse para cuidar da sua toilete.
Quando passeava, era invariavelmente em passo igual, na sala de entrada parquetada,
ou na galeria circular, por sobre a qual se arredonda um caramanchão
de vidros azuis, sustentado por vinte colunas jônicas de porfiro vermelho.
Se almoçava ou jantava, eram as cozinhas, a despensa, a copa, a peixaria,
a leiteria do club que forneciam à sua mesa suas suculentas reservas;
eram os criados do club, personagens de aspecto solene, em trajes pretos,
calçando sapatos palmilhados de moletton, que o serviam em uma porcelana
especial e sobre admirável toalha de mesa de linho de Saxe; eram os
cristais do club, de caprichoso modelado, que continham o seu sherry, o seu
porto ou seu claret misturado com canela, avenca e cinamomo; era finalmente
o gelo do club — gelo vindo com imensas despesas dos lagos da América
— que lhe conservavam as bebidas em um estado de frescor satisfatório.
Se viver em tais condições é ser excêntrico, é
preciso convir que a excentricidade é coisa muito boa!
A casa de Saville Row, sem ser suntuosa, se recomendava por um extremo conforto.
Além disso, com os hábitos regulares do locador, o serviço
reduzia-se a pouca coisa. Entretanto, Phileas Fogg exigia do seu único
criado uma pontualidade, uma regularidade extraordinárias. Naquele
mesmo dia, 2 de outubro, Phileas Fogg dera aviso prévio a James Forster
— porque o moço cometera a falta de lhe trazer para a barba água
a oitenta e quatro graus Fahrenheit em vez de a oitenta e seis — e esperava
seu sucessor, que deveria apresentar-se entre onze e onze e meia.
Phileas Fogg, muito bem sentado em sua poltrona, os pés juntos como
os de um soldado em revista, as mãos apoiadas sobre os joelhos, o corpo
aprumado, a cabeça levantada, observava o caminhar dos ponteiros de
seu relógio de chão — complicadíssimo aparelho
que indicava as horas, os minutos, os segundos, os dias, as quinzenas e o
ano. Quando soassem onze e meia, Mr. Fogg deveria, conforme seu hábito
quotidiano, deixar a casa e dirigir-se para o Reform Club.
Neste momento bateram à porta da pequena sala onde Phileas Fogg se
encontrava.
James Forster, o criado despedido, apareceu.
— O novo criado, disse ele.
Um moço de uns trinta anos de idade apresentou-se e comprimentou.
— É francês e chama-se John? perguntou-lhe Phileas Fogg.
— Jean, se não lhe desagradar, respondeu o recém-vindo,
Jean Passepartout, sobrenome que me ficou, e que justificava a minha aptidão
natural para me safar de apuros. Considero-me um rapaz honesto, senhor, mas,
para ser franco, já exerci muitas profissões. Fui cantor ambulante,
artista de circo, saltando como Léotard, dançando na corda como
Blondin; depois fiz-me professor de ginástica, para tornar mais úteis
os meus talentos, e, por fim, fui sargento de bombeiros em Paris. Tenho até
em meu currículo alguns incêndios notáveis. Mas já
fazem cinco anos que deixei a França e que, desejando gozar a vida
de família, sou criado de quarto na Inglaterra. Ora, achando-me sem
colocação e tendo sabido que Mr. Phileas Fogg era a pessoa mais
exata e mais sedentária do Reino Unido, aqui me apresentei em sua casa
na esperança de viver tranqüilo e até esquecer este nome
de Passepartout….
— Passepartout me convém, respondeu o gentleman. Você me
foi recomendado. Tenho boas referências a seu respeito. Conhece quais
são as minhas condições?.
— Sim, senhor..
— Bem. Que horas tem?.
— Onze e vinte, respondeu Passepartout, tirando das profundezas do bolso
do colete um enorme relógio de prata.
— Está atrasado, disse Mr. Fogg.
— O senhor me desculpe, mas é impossível.
— Atrasado em quatro minutos. Não importa. Basta constatar a
diferença. Portanto, a partir deste momento, onze e vinte e nove da
manhã, desta quarta feira 2 de outubro de 1872, fica ao meu serviço.
Dito isto, Phileas Fogg levantou-se, pegou seu chapéu com a mão
esquerda, colocou-o na cabeça com um movimento automático e
desapareceu sem acrescentar palavra.
Passepartout ouviu a porta da rua se fechar uma primeira vez: era seu novo
patrão que saía; depois uma segunda vez: era seu predecessor,
James Forster, que por sua vez partia.
Passepartout ficou só na casa de Saville Row.
CAPÍTULO II
EM QUE PASSEPARTOUT SE CONVENCE DE QUE FINALMENTE ENCONTROU O SEU IDEAL
— Palavra, disse consigo Passepartout, ainda um pouco estonteado a
princípio, conheci no museu de Madame Tussaud criaturas tão
vivas quanto o meu novo patrão!
Convém dizer que as “criaturas” de Madame Tussaud são
figuras de cera, muita visitadas em Londres, e às quais, na verdade,
apenas falta a palavra.
Durante os poucos instantes em que acabava de entrever Phileas Fogg, Passepartont
tinha rápida, mas cuidadosamente, examinado seu futuro patrão.
Era um sujeito que parecia ter quarenta anos, de aspecto nobre e belo, estatura
elevada, que não mostrava sequer um ligeiro excesso de peso, cabelos
e suíças louros, testa lisa sem rugas nas têmporas, face
mais pálida que colorida, dentes magníficos. Parecia possuir
no mais alto grau o que os fisionomistas chamam de “o repouso na ação”,
faculdade comum a todos os que fazem mais obras que barulho. Calmo, fleumático,
olhar límpido, pálpebra imóvel, era o tipo acabado desses
ingleses de sangue frio que se encontram freqüentemente no Reino Unido,
e cuja atitude um pouco acadêmica Angelica Kauffmann maravilhosamente
reproduziu nas suas telas. Visto nos diversos atos de sua existência,
este gentleman dava a idéia de um indivíduo bem equilibrado
em todas as suas partes, muito refletido, tão perfeito como um cronômetro
de Leroy ou de Earnshaw. É que, efetivamente, Phileas Fogg era a exatidão
personificada, o que se via claramente pela “expressão dos seus
pés e de suas mãos”, porque no homem, assim como nos animais,
os próprios membros são em si órgãos expressivos
das paixões.
Phileas Fogg era desses indivíduos, matematicamente exatos, que, jamais
apressados e sempre prontos, são econômicos em seus passos e
em seus movimentos. Não dava uma passada a mais, indo sempre pelo caminho
mais curto. Não perdia tempo, sequer um instante, a olhar para o teto.
Não se permitia um gesto supérfluo. Ninguém nunca o tinha
visto comovido ou perturbado. Era o homem menos apressado do mundo, mas chegava
sempre a tempo. Compreender-se-á, portanto, a razão por que
vivia só, e por assim dizer fora de toda relação social.
Sabia que na vida é preciso ter em conta os atritos, e como os atritos
atrasam, para os evitar, não entrava em contato com ninguém.
Quanto a Jean, vulgo Passepartout, um verdadeiro Parisiense de Paris, nos
cinco anos que habitava a Inglaterra e ali exercia em Londres a profissão
de criado de quarto, em vão procurara um patrão a quem pudesse
se afeiçoar.
Passepartout não era um desses Frontins ou Mascarilles que, empertigados,
nariz ao vento, olhar firme, olho seco, não passam de impudentes velhacos.
Não. Passepartout era um rapaz excelente, fisionomia amável,
lábios um pouco salientes, sempre prontos para degustar ou para acariciar,
um ser doce e serviçal, com uma dessas cabeças redondas que
a gente gosta de ver sobre os ombros de um amigo. Tinha os olhos azuis, a
cor do rosto animada, a figura suficientemente gorda para que pudesse ver
seus joelhos, peito amplo, talhe forte, uma musculatura vigorosa e possuía
uma força hercúlea que os exercícios da sua mocidade
tinham desenvolvido muito. Seus cabelos castanhos eram um pouco revoltos.
Se os escultores da Antiguidade conheciam dezoito maneiras de compor a cabeleira
de Minerva, Passepartout só conhecia uma para arranjar a sua: três
passadas de pente, e estava penteado.
Dizer que o caráter expansivo deste rapaz haver-se-ia de harmonizar
com o de Phileas Fogg, é coisa que a prudência mais elementar
não permite dizer. Seria Passepartout o criado funcionalmente exato
que convinha a seu patrão? Só o tempo diria. Depois de ter tido,
como se sabe, uma mocidade bastante vagabunda, aspirava ao repouso. Tendo
ouvido gabar o metodismo inglês e a proverbial frieza dos gentlemen,
veio procurar fortuna na Inglaterra. Mas, até então, a sorte
lhe fora ingrata. Não pudera se enraizar em parte alguma. Servira em
dez casas. Em todas, os patrões eram caprichosos, extravagantes, e
gostavam, ou de correr aventuras, ou correr países — o que não
poderia convir a Passepartout. Seu último patrão, o jovem Lord
Longsferry, membro do Parlamento, depois de passar suas noites nos “oysters-rooms”
de Haymarket, voltava com muita freqüência para casa sobre os ombros
dos policemen. Passepartout, que queria acima de tudo ter respeito por seu
patrão, arriscou algumas respeitosas observações, que
foram mal recebidas, e rompeu. Neste meio tempo soube que Phileas Fogg, esquire,
procurava um criado. Tirou informações a respeito deste gentleman.
Um personagem cuja existência era tão regular, que não
trasnoitava, que não viajava, que não se ausentava jamais, sequer
um dia, certamente lhe conviria. Apresentou-se e foi admitido nas condições
que sabemos.
Passepartout — ao soarem onze e meia — achava-se pois só
na casa de Saville Row. Começou logo a inspeção. Percorreu-a
do porão ao sótão. Esta casa limpa, arranjada, severa,
puritana, bem organizada para o serviço doméstico, agradou-lhe.
Produziu nele o efeito de uma bela casca de caracol, mas de uma casca iluminada
e aquecida a gás, porque ali o hidrogênio carburado bastava para
todas as necessidades de luz e de calor. Passepartout encontrou sem dificuldade,
no segundo pavimento, o quarto que lhe fora destinado. Ele lhe convinha. Campainhas
elétricas e tubos acústicos punham o quarto em comunicação
com os apartamentos de baixo e do primeiro andar. Sobre a chaminé havia
um relógio de pêndulo elétrico que estava acertado pelo
do quarto de dormir de Phileas Fogg, e os dois aparelhos marcavam ao mesmo
tempo, o mesmo segundo.
— Convém-me, convém-me! disse consigo Passepartout.
Reparou também, no seu quarto, em um cartaz colocado acima do relógio.
Era o programa do serviço quotidiano. Compreendia — desde as
oito da manhã, hora regulamentar a que Phileas Fogg se levantava, até
às onze e meia, hora em que saía para ir almoçar no Reform
Club — todos os detalhes do serviço, o chá e as torradas
das oito e vinte e três, a água para a barba das nove e trinta
e sete, o penteado das dez menos vinte, etc. Depois, das onze e meia da manhã
até à meia noite — hora em que metodicamente o gentleman
se deitava — tudo estava anotado, previsto, regulamentado. Passepartout
encontrou grande satisfação em meditar este programa e em gravar
os seus diversos artigos no espírito.
Quanto ao guarda-roupa do patrão, estava ele bem fornecido e maravilhosamente
disposto. Cada calça, casaco ou colete tinha um número de ordem
reproduzido num registro de entradas e de saídas, indicando a data
em que, segundo a estação, estas vestimentas deveriam ser por
seu turno usadas. Mesma regulamentação para os sapatos.
Em uma palavra, nesta casa de Saville Row, que deveria ter sido o templo da
desordem na época do ilustre mas dissipado Sheridan — havia uma
mobília confortável, anunciando um belo descanso. Nada de biblioteca,
nada de livros, que seriam sem utilidade para Mr. Fogg, posto que o Reform
Club colocava à sua disposição duas bibliotecas, uma
consagrada às letras, outra ao direito e à política.
No quarto de dormir, um cofre-forte de tamanho médio, cuja construção
o punha a salvo tanto de incêndio quanto de roubo. Nada de armas na
casa, nenhum utensílio de caça ou de guerra. Tudo ali denunciava
os hábitos mais pacíficos.
Após ter examinado esta habitação em detalhes, Passepartout
esfregou as mãos, o semblante dilatou-se-lhe e repetiu alegremente:
— Convém-me! é disso que gosto! Entender-nos-emos perfeitamente,
Mr. Fogg e eu! Um homem caseiro e regular! Um verdadeiro robô! Ora,
não me importa servir um robô!
CAPÍTULO III
TRAVA-SE UMA CONVERSA QUE PODERÁ CUSTAR CARO A PHILEAS FOGG.
Phileas Fogg havia saído de sua casa de Saville Row às onze
e meia, e, depois de ter posto quinhentas e setenta e cinco vezes seu pé
direito diante do seu pé esquerdo e quinhentos e setenta e seis vezes
o seu pé esquerdo diante do seu pé direito, chegou ao Reform
Club, vasto edifício, construído em Pall Mall, que não
custou menos de três milhões para ser edificado.
Phileas Fogg dirigiu-se logo para a sala de refeições, cujas
nove janelas se abriam sobre um belo jardim com árvores já douradas
pelo outono. Ali, tomou lugar à mesa habitual onde o esperava o seu
couvert. Seu almoço compunha-se de um hors-d’oeuvre de peixe
cozido temperado com um “reading sauce”, de um roast-beef escarlate
guarnecido com cogumelos, de uma empada recheada com pedacinhos de ruibarbo
e groselhas verdes, de um pedaço de chester — tudo isto regado
com algumas taças de um chá excelente, especialmente selecionado
pelo encarregado do Reform Club.
Ao meio dia e quarenta e sete minutos, o gentleman levantou-se e dirigiu-se
para o grande salão, compartimento magnífico, ornado com pinturas
ricamente enquadradas. Ali um criado entregou-lhe o Times ainda por abrir,
e que Phileas Fogg desdobrou com uma firmeza que denotava grande hábito
em tão difícil operação. A leitura deste jornal
ocupou Phileas Fogg até às três e quarenta e cinco, e
a do Standard — que lhe sucedeu — prolongou-se até perto
da hora do jantar. Esta refeição fez-se nas mesmas condições
do almoço, com a adição de “royal british sauce”.
Às seis menos vinte, o gentleman reapareceu no grande salão
e absorveu-se na leitura do Morning Chonicle.
Meia hora mais tarde, alguns membros do Reform Club chegaram e achegaram-se
à lareira, onde ardia um fogo de hulha. Eram os parceiros habituais
de Mr. Phileas Fogg, como ele acérrimos jogadores de whist: o engenheiro
Andrew Stuart, os banqueiros John Sullivan e Samuel Fallentin, o cervejeiro
Thomas Flanagan, Gauthier Ralph, um dos administradores do Banco da Inglaterra
— pessoas ricas e consideradas, mesmo neste club que contava entre seus
membros as sumidades da indústria e da finança.
— Ora bem, Ralph, perguntou Thomas Flanagan, a quantas anda esse caso
de roubo?
— Nesta altura, respondeu Andrew Stuart, o Banco pode dizer adeus ao
dinheiro.
— Espero, pelo contrário, disse Gauthier Ralph, que pegaremos
o autor do roubo. Inspetores de polícia, pessoas muito hábeis,
foram enviados para a América e a Europa, para todos os portos de embarque
e desembarque, e vai ser difícil para este senhor escapar-lhes.
— Então têm a descrição do ladrão?
perguntou Andrew Stuart.
— Em primeiro lugar, não é um ladrão, respondeu
seriamente Gauthier Ralph.
— Como, não é um ladrão, um indíviduo que
subtraiu cinqüenta e cinco mil libras em papel-moeda (1 milhão
375.000 francos)?
— Não, respondeu Gauthier Ralph.
— É então um industrial? disse John Sullivan.
— O Morning Chronicle assegura que é um gentleman.
Quem deu esta resposta não foi outro senão Phileas Fogg, cuja
cabeça emergiu por entre as ondas de papel acumulado à sua volta.
Ao mesmo tempo, Phileas Fogg cumprimentou os seus colegas, que lhe retribuíram
o cumprimento.
O fato do qual falavam, que os diversos jornais do Reino Unido discutiam com
ardor, passara-se três dias antes, 29 de setembro. Um maço de
bank-notes, totalizando a enorme soma de cinqüenta e cinco mil libras,
fora tirado da frente do guichê do caixa principal do Banco da Inglaterra.
A quem se admirasse de que um tal roubo pudesse realizar-se com tanta facilidade,
o vice-diretor Gauthier Ralph limitar-se-ia a responder que naquele exato
momento o caixa estava ocupado em fazer o lançamento de uma receita
de três shillings e seis pence, e que não se pode estar de olho
em tudo.
Devemos, porém, aqui observar — o que torna o fato mais explicável
— que este admirável estabelecimento, o “Bank of England”,
parece importar-se ao extremo com a dignidade do público. Nada de grades,
nada de porteiros, nada de guardas! O ouro, a prata, as bank-notes estão
expostas livremente e por assim dizer à mercê do primeiro recém-chegado.
Não se poderia colocar em suspeição a probidade de ninguém.
Um dos melhores observadores dos costumes ingleses até conta o seguinte:
Numa das salas do Banco, onde se encontrava um dia, teve a curiosidade de
ver mais de perto um lingote de ouro, pesando de sete a oito libras, que estava
exposto na mesa do caixa; pegou o lingote, examinou-o, passou-o para um seu
vizinho, este passou-o para um outro, e o lingote, de mão em mão,
foi até ao fundo de um corredor escuro, e só meia hora depois
voltou ao seu lugar, sem que o caixa levantasse sequer a cabeça.
Mas, em 29 de setembro, as coisas não se passaram assim. O maço
de bank-notes não voltou, e quando o magnífico relógio,
posto acima do “drawing-office”, anunciou às cinco o fechamento
dos escritórios, o Banco da Inglaterra não tinha senão
que passar cinqüenta e cinco mil libras pela conta dos ganhos e perdas.
Clara e devidamente reconhecido o roubo, agentes e “detetives”,
escolhidos dentre os mais hábeis, foram enviados para os principais
portos, para Liverpool, para Glasgow, Havre, Suez, Brindisi, Nova York, etc.,
com a promessa, no caso de sucesso, de uma gratificação de duas
mil libras (50.000 F) e cinco por cento da quantia que fosse recuperada. Esperando
as informações que o inquérito imediatamente instaurado
deveria fornecer, estes inspetores tinham por missão observar escrupulosamente
todos os viajantes que chegassem ou partissem.
Ora, precisamente, como dizia o Morning Chronicle, havia razões para
se supor que o autor do roubo não fazia parte de nenhuma das associações
de ladrões da Inglaterra. Durante o dia 29 de setembro, um gentleman
bem apessoado, de boas maneiras, ar distinto, havia sido notado, passeando
pela sala dos pagamentos, teatro do roubo. O inquérito permitira reproduzir
com bastante exatidão a descrição deste gentleman, que
foi imediatamente enviada a todos os detetives do Reino Unido e do continente.
Alguns crédulos — Gauthier Ralph entre eles — julgavam-se
pois com base para esperar que o ladrão não escaparia.
Como se pode imaginar, este fato estava na ordem do dia em Londres e em toda
a Inglaterra. Discutia-se, apaixonava-se a favor ou contra as probabilidades
do êxito da polícia metropolitana. Não é de estranhar,
pois, ouvir os membros do Reform Club tratarem da mesma questão, ainda
mais que um dos vice-diretores do Banco achava-se entre eles.
O digno Gauthier Ralph não queria duvidar do resultado das buscas,
calculando que a gratificação oferecida deveria estimular e
muito o zelo e a inteligência dos agentes. Mas o seu colega, Andrew
Stuart, estava longe de compartilhar desta confiança. A discussão
continuou, pois, entre os gentlemen, que se tinham sentado a uma mesa de whist,
Stuart em frente de Flanagan; Fallentin diante de Phileas Fogg. Durante o
jogo, os jogadores não falavam, mas entre as rodadas a conversação
interrompida recomeçava com mais animação.
— Eu sustento, disse Andrew Stuart, que as probabilidades são
a favor do ladrão, que não pode deixar de ser um homem muito
astuto!
— Ora, vamos! respondeu Ralph, não há mais um só
país em que ele possa se refugiar.
— Por exemplo!
— Para onde quer que ele vá?
— Não sei, respondeu Andrew Stuart, mas, afinal, a terra é
bastante vasta.
— Era outrora… disse à meia voz Phileas Fogg. Depois: —
É sua vez de cortar, acrescentou apresentando as cartas a Thomas Flanagan.
A discussão foi suspensa durante a rodada. Mas logo Andrew Stuart a
retomou, dizendo:
— Como, outrora! A terra diminuiu, por acaso?
— Sem dúvida, respondeu Gauthier Ralph. Sou da opinião
de Mr. Fogg. A terra diminuiu, pois a percorremos agora dez vezes mais depressa
do que há cem anos. E é isto o que, no caso de que nos ocupamos,
tornará as buscas mais rápidas.
— E tornará mais fácil também a fuga do ladrão!
— É sua vez de jogar, senhor Stuart! disse Phileas Fogg.
Mas o incrédulo Stuart não estava convencido, e, a partida concluída:
— É preciso confessar, senhor Ralph, retomou, que achou um modo
engraçado de dizer que a terra diminuiu! Porque atualmente se faz sua
volta em três meses…
— Em oitenta dias apenas, disse Phileas Fogg.
— Com efeito, senhores, acrescentou John Sullivan, oitenta dias, desde
que a seção entre Rothal e Alaabad foi aberta sobre o “Great-Indian
peninsular railway”, e eis aqui o cálculo feito pelo Morning
Chronicle:
De Londres a Suez pelo Monte Cenis e Brindisi, railways e paquetes….7 dias
De Suez a Bombaim, paquete….13 "
De Bombaim a Calcutá, railway….3 "
De Calcutá a Hong Kong (China), paquete….13 "
De Hong Kong a Yokohama (Japão), paquete….6 "
De Yokohama a São Francisco, paquete….22 "
De São Francisco a Nova York, railroad….7 "
De Nova York a Londres, paquete e railway….9 "
Total……80 dias
— Sim, oitenta dias! exclamou Andrew Stuart, que por distração
cortou um trunfo; mas sem incluir o mau tempo, os ventos contrários,
os naufrágios, os descarrilhamentos, etc.
— Tudo incluído, respondeu Phileas Fogg continuando a jogar,
porque, desta vez, a discussão não respeitava mais o whist.
— Mesmo se os hindus ou os índios levantarem os rails! exclamou
Andrew Stuart, se pararem os trens, se roubarem os carros, se escalpelarem
os viajantes!
— Tudo incluído, respondeu Phileas Fogg, que, pondo seu jogo
na mesa, acrescentou:
— Dois trunfos.
Andrew Stuart, a quem tocava a vez de “dar”, embaralhou as cartas
dizendo:
— Teoricamente, tem razão, senhor Fogg, mas na prática…
— Na prática também, senhor Stuart.
— Bem que gostaria de ver.
— Depende só do senhor. Partamos juntos.
— Deus me livre! exclamou Stuart, mas bem que apostaria quatro mil libras
(100.000 F) que uma tal viagem, feita nestas condições, é
impossivel.
— Muito possível, pelo contrário, respondeu Mr. Fogg.
— Pois então, faça-a!
— A volta ao mundo em oitenta dias?
— Sim.
— Adoraria.
— Quando?
— Em seguida.
— É loucura! exclamou Andrew Stuart, que começava a se
incomodar com a insistência do seu parceiro. Basta! vamos jogar.
— Torne então a dar, respondeu Phileas Fogg, porque foi mal dado.
Andrew Stuart retomou as cartas com mão febril; depois, súbito,
colocando-as sobre a mesa:
— Bem, bem, sim, senhor Fogg, disse, sim, aposto quatro mil libras!…
— Meu caro Stuart, disse Fallentin, acalme-se. Isto não é
à sério.
— Quando digo aposto, respondeu Andrew Stuart, é sempre à
sério.
— Seja! disse Mr. Fogg. Depois, voltando-se para os seus colegas:
— Tenho vinte mil libras (500.000 F) depositadas no Baring. Arriscava-as
de bom grado…
— Vinte mil libras! exclamou John Sullivan. Vinte mil libras que uma
demora imprevista pode fazê-lo perder!
— O imprevisto não existe, respondeu simplesmente Phileas Fogg.
— Mas, senhor Fogg, este lapso de oitenta dias não é calculado
senão como um mínimo de tempo!
— Um mínimo bem empregado é suficiente para tudo.
— Mas para não o ultrapassar, é preciso saltar matematicamente
dos railways para os paquetes, e dos paquetes para as estradas de ferro!
— Saltarei matematicamente.
— Está brincando!
— Um bom inglês não brinca jamais, quando se trata de uma
coisa tão séria quanto uma aposta, respondeu Phileas Fogg. Eu
aposto vinte mil libras contra quem quiser que farei a volta ao mundo em oitenta
dias ou menos, ou seja mil novecentas e vinte horas ou cento e quinze mil
e duzentos minutos. Aceitam?
— Aceitamos, reponderam os senhores Stuart, Fallentin, Sullivan, Flanagan
e Ralph, após terem se consultado.
— Bom, disse Mr. Fogg. O trem para Dover parte às oito e quarenta
e cinco. Tomá-lo-ei.
— Esta noite mesmo? perguntou Stuart.
— Esta noite mesmo, respondeu Phileas Fogg. Portanto, acrescentou ele
consultando um calendário de bolso, já que hoje é quarta
feira 2 de outubro, deverei estar de volta a Londres, a este mesmo salão
do Reform Club, no sábado 21 de dezembro, às oito e quarenta
e cinco da noite, caso contrário as vinte mil libras depositadas atualmente
no meu crédito com os Irmãos Baring lhes pertencerão
de fato e de direito, senhores. — Eis aqui um cheque de tal soma.
Um contrato particular de aposta foi feito e assinado na hora pelos seis interessados.
Phileas Fogg tinha permanecido frio. Não tinha certamente apostado
para ganhar, e só arriscava as vinte mil libras — metade da sua
fortuna — porque previa que poderia ter que despender a outra metade
na realização deste difícil, para não dizer inexecutável,
projeto. Quanto aos seus adversários, eles, pareciam comovidos, não
por causa da quantia em jogo, mas porque tinham certo escrúpulo de
lutar em tais condições.
Soaram sete horas. Ofereceram a Mr. Fogg suspender o whist, para que ele pudesse
fazer os seus preparativos de partida.
— Estou sempre preparado! respondeu o impassível gentleman dando
as cartas:
— O trunfo é de copas, disse ele. É sua vez de jogar,
senhor Stuart.
CAPÍTULO IV
EM QUE PHILEAS FOGG SURPREENDE PASSEPARTOUT, SEU CRIADO.
Às sete e vinte e cinco, Phileas Fogg, após ter ganho uma vintena
de guinéus no whist, despediu-se dos seus nobres colegas, e deixou
o Reform Club. Às sete e cinqüenta, abria a porta de sua casa
e voltava ao lar.
Passepartout, que tinha conscienciosamente estudado seu programa, ficou bastante
surpreso vendo Mr. Fogg, culpável de inexatidão, aparecer a
esta hora insólita. Segundo o cartaz, o locatário de Saville
Row não deveria recolher-se senão à meia noite em ponto.
Phileas Fogg assim que chegou subiu ao seu quarto, depois chamou:
— Passepartout.
Passepartout não respondeu. Este chamamento não poderia ser
dirigido a ele. Não era ainda a hora.
— Passepartout, repetiu Mr. Fogg sem elevar em nada a voz.
Passepartout apareceu.
— É a segunda vez que chamo, disse Mr. Fogg.
— Mas não é meia noite, respondeu Passepartout, com seu
relógio na mão.
— Eu sei, retomou Phileas Fogg, e não o recrimino. Partimos em
dez minutos para Dover e Calais.
Uma espécie de careta esboçou-se sobre a redonda face do francês.
Era evidente que tinha ouvido mal.
— O senhor se desloca? perguntou ele.
— Sim, respondeu Phileas Fogg. Vamos fazer a volta ao mundo.
Passepartout, olhos arregalados, as pálpebras e as sobrancelhas levantadas,
os braços caídos, o corpo encurvado, apresentava naquele momento
todos os sintomas do espanto levado à estupefação.
— A volta ao mundo! murmurou ele.
— Em oitenta dias, respondeu Mr. Fogg. Por isso, não temos um
instante a perder.
— Mas as malas?… disse Passepartout, que balançava inconscientemente
sua cabeça para a direita e para a esquerda.
— Nada de malas. Uma sacola de viagem só. Dentro, duas camisas
de lã, três pares de roupa de baixo. O mesmo para si. Faremos
compras pelo caminho. Traga para baixo meu mackintosh e minha manta de viagem.
Vá com bons calçados. Apesar de que andaremos pouco ou nada.
Vá.
Passepartout teria desejado responder. Não pôde. Saiu do quarto
de Mr. Fogg, subiu ao seu, tombou sobre uma cadeira, e empregando uma frase
bem vulgar de seu país:
— Ah! bem que se diz, essa é demais, demais! E eu que queria
descansar tranqüilo!…
E, maquinalmente, fez seus preparativos de partida. A volta ao mundo em oitenta
dias! Estaria lidando com um doido? Não… Seria uma piada? Iriam até
Dover, tudo bem. A Calais, que seja. Afinal, isto não poderia desgostar
o bravo rapaz, que, há cinco anos, não pisava o solo pátrio.
Talvez fossem até Paris, e, por certo, reveria com prazer a grande
capital. Mas, certamente, um gentleman tão zeloso em seus passos pararia
por ali… Sim, sem dúvida, mas não era menos verdade que ele
partia, deslocava-se, este gentleman, tão caseiro até então!
Às oito horas, Passepartout tinha preparado a modesta sacola que continha
seu guarda-roupa e o de seu patrão; depois, com o espírito ainda
perturbado, deixou seu quarto, fechou a porta cuidadosamonte, e encontrou
Mr. Fogg.
Mr. Fogg estava pronto. Levava sob o braço o Bradshaw continental railway
steam transit and general guide, que deveria fornecer-lhe todas as informações
necessárias à viagem. Tomou a sacola das mãos de Passepartout,
abriu-a, e deixou cair dentro um belo maço dessas belas bank-notes
que têm curso em todos os países.
— Não se esqueceu de nada? perguntou ele.
— De nada, senhor.
— O mackintosh e minha manta?
— Estão aqui.
— Bem, pegue a sacola.
Mr. Fogg entregou o sacola a Passepartout.
— Cuidado com ela, acrescentou Mr. Fogg. Tem vinte mil libras aí
dentro (500.000 F).
A sacola ia quase caindo das mãos de Passepartout, como se as vinte
mil libras fossem de ouro e pesassem demais.
O patrão e o criado desceram, e a porta da rua foi fechada com duas
voltas de chave.
No fim da Saville Row havia uma estação de carruagens. Phileas
Fogg e seu criado subiram em um cab que se dirigiu rapidamente para a estação
de Charing Cross, à qual vem ter um dos ramais do South Eastern Railway.
Às oito e vinte, o cab parava diante da estação. Passepartout
desceu. Seu patrão seguiu-o e pagou ao cocheiro.
Neste momento, uma pobre mendicante, levando uma criança pela mão,
pés nus na lama, um chapéu na cabeça, velho e estragado,
do qual pendia uma deplorável pluma, com um chale esfarrapado sobre
os andrajos, aproximou-se de Mr. Fogg e pediu-lhe esmola.
Mr. Fogg tirou de seu bolso os vinte guinéus que tinha ganho no whist,
e, dando-os à mendiga:
— Tome lá, boa mulher, estou contente por tê-la encontrado!
Depois foi em frente.
Passepartout teve uma sensação de umidade em volta da menina
do olho. O patrão acabara de conquistar seu coração.
Mr. Fogg e ele entraram em seguida no grande átrio da estação.
Lá, Phileas Fogg deu a Passepartout ordem para comprar dois bilhetes
de primeira classe para Paris. Ao voltar-se, deparou com os seus cinco colegas
do Reform Club.
— Senhores, parto, disse ele, e os diversos vistos carimbados num passaporte
que levo para este fim permitir-lhes-ão, na volta, controlar meu roteiro.
— Oh! senhor Fogg, respondeu polidamente Gauthier Ralph, não
é preciso. Confiamos em sua honra de gentleman!
— É melhor assim, disse Mr. Fogg.
— Não se esqueça de que deve voltar?… observou Andrew
Stuart.
— Em oitenta dias, respondeu Mr. Fogg, sábado 21 de dezembro
de 1872, às oito e quarenta e cinco da noite. Até a volta, meus
senhores.
Às oito e quarenta, Phileas Fogg e seu criado tomaram lugar no mesmo
compartimento. Às oito e quarenta e cinco, soou um apito e o trem pôs-se
a caminho.
A noite estava negra. Caía uma chuva fininha. Phileas Fogg recostado
no seu canto não dizia palavra. Passepartout, ainda estonteado, apertava
maquinalmente contra si a sacola com as bank-notes.
Mas o trem não ultrapassara Sydenham, quando Passepartout soltou um
verdadeiro grito de desespero!
— O que é que há? perguntou Mr. Fogg.
— É que… que… na minha precipitação… minha
perturbação… esqueci…
— De quê?
— De apagar o bico de gás do meu quarto.
— Tudo bem, meu rapaz, respondeu friamente Mr. Fogg, fica queimando
gás por sua conta.
CAPÍTULO V
EM QUE APARECE NA PRAÇA DE LONDRES UM NOVO VALOR
Phileas Fogg, deixando Londres, nem fazia idéia, sem dúvida,
da grande repercussão que sua partida iria provocar. A notícia
da aposta espalhou-se a princípio no Reform Club, e produziu uma verdadeira
comoção entre os membros do respeitável círculo.
Depois, do club, esta comoção passou para os jornais, por intermédio
dos reporters, e dos jornais ao público de Londres e de todo o Reino
Unido.
A “questão da volta ao mundo” foi comentada, discutida,
dissecada, com tanta paixão e ardor como se se tratasse de uma nova
questão do Alabama. Uns tomaram o partido de Phileas Fogg, outros —
e formaram logo uma maioria considerável — pronunciaram-se contra
ele. Esta volta ao mundo a ser realizada, não em teoria e sobre o papel,
neste mínimo de tempo, com os meios de comunicação atualmente
em uso, não era apenas impossível, era insensato!
O Times, o Standard, o Evening Star, o Morning Chronicle, e vinte outros jornais
de grande circulação, declararam-se contra Mr. Fogg. Só,
o Daily Telegraph o apoiou em certa medida. Phileas Fogg foi geralmente tratado
como maníaco, louco, e seus colegas do Reform-Club censurados por terem
aceito esta aposta, que denunciava um enfraquecimento nas faculdades mentais
de seu autor.
Artigos extremamente passionais, mas lógicos, apareceram sobre a questão.
É conhecido o interesse que se dá na Inglaterra a tudo que tange
a geografia. Assim não havia sequer um leitor, não importa de
que classe, que não devorasse as colunas consagradas ao caso Phileas
Fogg.
Durante os primeiros dias, alguns espíritos audaciosos — as mulheres
principalmente — estiveram a seu favor, ainda mais depois do Illustrated
London News ter publicado o seu retrato copiado da fotografia que tinha nos
arquivos do Reform Club. Certos gentlemen ousavam dizer: “Ora! ora!
afinal, por que não? Têm-se visto coisas mais extraordinárias!”
Eram principalmente os leitores do Daily Telegraph. Mas se percebeu logo que
o próprio jornal começava a fraquejar.
Com efeito, um longo artigo apareceu em 7 de outubro no Boletim da Sociedade
Real de Geografia. Ele examinou a questão sob todos os pontos de vista,
e demonstrou claramente a loucura da empreitada. Segundo este artigo, tudo
estava contra o viajante, obstáculos humanos, obstáculos naturais.
Para ter êxito neste projeto, seria preciso admitir uma concordância
miraculosa de horas de partida e de chegada, concordância que não
existiria, que não poderia existir. A rigor, e na Europa, trecho relativamente
medíocre do percurso total, pode-se contar com a chegada dos trens
à hora certa; mas quando eles gastam três dias para atravessar
a Índia, sete dias para atravessar os Estados Unidos, poder-se-ia confiar
à sua exatidão os elementos de tal problema? E os acidentes
de máquina, os descarrilhamentos, as colisões, o mau tempo,
a acumulação de neve, tudo isto não estava contra Phileas
Fogg? Nos paquetes, não se encontraria ele, durante o inverno, à
mercê dos pés de vento ou dos nevoeiros? Seria por acaso tão
raro os navios mais velozes das linhas transoceânicas sofrerem atrasos
de dois ou três dias? Ora, bastaria um atraso, um só, para que
a cadeia de comunicações fosse irreparavelmente truncada. Se
Phileas Fogg perdesse, nem que fosse por poucas horas, a partida de um paquete,
seria forçado a esperar o paquete seguinte, e assim sua viagem estaria
comprometida irrevogavelmente.
O artigo teve muita repercussão. Quase todos os jornais o reproduziram,
e as ações Phileas Fogg baixaram singularmente.
Nos primeiros dias que se seguiram à partida do gentleman, importantes
negócios se tinham ligado à sorte de sua empreitada. Sabe-se
como é o mundo dos apostadores na Inglaterra, mundo mais inteligente,
mais esclarecido que o dos jogadores. Apostar está no temperamento
inglês. Assim, não só os diversos membros do Reform Club
fizeram apostas consideráveis a favor ou contra Phileas Fogg, mas o
público em geral entrou no movimento. Phileas Fogg foi inscrito, como
um cavalo de corrida, numa espécie de studbook. Fizeram dele também
uma ação de bolsa, que foi imediatamente cotada na praça
de Londres. Procurava-se, oferecia-se Phileas Fogg” a preço fixo
ou com ágio, e fizeram-se com ela negócios colossais. Mas cinco
dias após sua partida, após o artigo do Boletim da Sociedade
de Geografia, as ofertas começaram a afluir. Phileas Fogg baixou. Ofereceram-na
em lotes. Comprada a princípio por cinco, depois por dez, não
a compravam afinal senão por vinte, por cinqüenta, por cem! Só
um partidário lhe restou. Foi o velho paralítico, lord Albermale.
O digno gentleman, pregado na sua poltrona, teria dado a fortuna para fazer
a volta ao mundo, mesmo em dez anos! e apostou cinco mil libras (100.000 F)
em Phileas Fogg. E quando, ao mesmo tempo em que lhe demonstravam a insensatez
do projeto, lhe mostravam sua inutilidade, contentava-se em responder: Se
a coisa é factível, convém que seja um inglês o
primeiro a fazê-la! Ora, as coisas estavam assim, os partidários
de Phileas Fogg ficavam cada vez mais raros; todo mundo, e não sem
razão, punha-se contra ele; já não tomavam apostas senão
a cento e cinqüenta, a duzentos contra um, quando, sete dias após
sua partida, um incidente, completamente inesperado, fez com que já
as não tomassem de modo algum.
Com efeito, neste dia, por volta das nove da noite, o diretor da polícia
metropolitana havia recebido um despacho telegráfico que dizia:
Suez para Londres rowan, comissário de polícia, administração
central, scotland yard Sigo ladrão de Banco, Phileas Fogg.
Enviem imediatamente mandado de prisão para Bombaim (Índia
inglesa).
Fix, detetive.
O efeito deste despacho foi imediato. O respeitável gentleman desapareceu
para dar lugar ao ladrão de bank-notes. Sua fotografia, arquivada no
Reform Club com as de todos os seus colegas, foi examinada. Ela reproduzia
traço por traço o homem cuja descrição tinha sido
fornecida pelo inquérito. Lembraram-se do que a existência de
Phileas Fogg tinha de misterioso, seu isolamento, sua partida súbita,
e pareceu evidente que este personagem, pretextando uma viagem de volta ao
mundo e apoiando-a numa aposta insensata, tinha tido por fim único
despistar os agentes da polícia inglesa.
CAPÍTULO VI
EM QUE O AGENTE FIX MOSTRA UMA IMPACIÊNCIA BEM LEGÍTIMA
Eis em que circunstâncias tinha sido expedido o despacho a respeito
do senhor Phileas Fogg.
Na quarta feira 9 de outubro, esperava-se pelas onze da manhã, em
Suez, o paquete Mongolia, da companhia peninsular e oriental, steamer de ferro
a hélice e com spardeck, deslocando duas mil e oitocentas toneladas
e possuindo uma força nominal de quinhentos cavalos. O Mongolia fazia
regularmente as viagens de Brindisi a Bombaim pelo canal de Suez. Era um dos
barcos mais velozes da Companhia, e as velocidades regularmentares, ou seja
dez milhas por hora de Brindisi a Suez, e nove milhas e cinqüenta e três
centésimos de Suez a Bombaim, ele sempre as tinha ultrapassado.
Esperando a chegada do Mongolia, dois homens passeavam sobre o cais no meio
da multidão de indígenas e estrangeiros que afluem a esta cidade,
outrora uma aldeia, à qual a grande obra do senhor de Lesseps assegura
um porvir considerável.
Destes dois homens, um era o agente consular do Reino Unido, estabelecido
em Suez, que a despeito dos defavoráveis prognósticos do governo
britânico e das sinistras predições do engenheiro Stephenson
via diariamente navios ingleses atravessarem o canal, abreviando assim em
metade o antigo caminho da Inglaterra às Índias pelo cabo de
Boa Esperança.
O outro era um homenzinho magro, de aspecto bastante inteligente, nervoso,
que contraía com uma persistência notável os músculos
superciliares. Através de seus longos cílios brilhava um olho
muito vivo, mas cujo ardor sabia extinguir quando queria. Neste momento, dava
alguns sinais de impaciência, indo, vindo, não conseguindo ficar
parado.
Este homem chamava-se Fix, e era um desses detetives” ou agentes da
polícia inglesa, que tinham sido enviados para os diversos portos,
depois do roubo cometido ao banco da Inglaterra. Este tal de Fix deveria vigiar
com o maior cuidado todos os viajantes que tomassem a rota de Suez, e se algum
lhe parecesse suspeito, segui-lo à espera de um mandado de detenção.
Precisamente, há dois dias, Fix havia recebido do comissário
da polícia metropolitana a descrição do autor presumido
do roubo. Era a do personagem distinto e bem trajado que tinha sido visto
na sala de pagamentos do Banco.
O detetive, muito estimulado evidentemente pela polpuda gratificação
prometida em caso de sucesso, esperava por isso com uma impaciência
fácil de se compreender a chegada do Mongolia.
E o senhor diz, senhor cônsul, perguntou pela décima vez, que
este barco não pode tardar? Não, Mr. Fix, respondeu o cônsul.
Ele foi avistado ontem ao largo de Port Said, e os cento e sessenta quilômetros
do canal não significam nada para ele. Repito que o Mongolia sempre
ganhou a gratificação de vinte e cinco libras que o governo
dá para cada avanço de vinte e quatro horas sobre o tempo regulamentar.
Este paquete vem diretamente de Brindisi? perguntou Fix.
De Brindisi mesmo, onde pegou o malote das Índias, de Brindisi que
deixou sábado às cinco da tarde. Por isso tenha paciência,
ele não tarda a chegar. Mas não sei realmente como, com a descri&ccediccedil;ão
que recebeu, poderá reconhecer seu homem, se é que ele está
a bordo do Mongolia.
Senhor cônsul, respondeu Fix, esse tipo de gente, a gente mais percebe
do que reconhece. Faro é o que é preciso ter, e o faro é
como um sentido especial para o qual concorrem o ouvido, a vista e o olfato.
Já prendi em minha vida mais de um desses gentlemen, e contanto que
o meu ladrão esteja a bordo, asseguro-lhe que não me escapará
das mãos.
Assim o desejo, senhor Fix, porque se trata de um roubo importante.
Um roubo magnífico, respondeu o agente entusiasmado. Cinqüenta
e cinco mil libras! Não temos com freqüência tal sorte grande!
Os ladrões tornam-se mesquinhos! A raça dos Sheppard decai!
Deixa-se prender atualmente por quaisquer shillings! Senhor Fix, respondeu
o cônsul, fala de tal maneira que lhe desejo sinceramente sucesso; mas,
repito, nas condições em que está, creio que não
seja difícil que ele escape. Bem sabe que, pela descrição
que recebeu, este ladrão se parece totalmente com um homem honesto.
Senhor cônsul, respondeu dogmaticamente o inspetor de polícia,
os grandes ladrões sempre se parecem com gente honesta. Compreende
bem que os que têm cara de tratante só têm um caminho a
seguir, o de permanecerem probos, sem o que acabariam presos. As fisionomias
honestas, são estas sobretudo as que se precisa desmascarar. Trabalho
difícil, concordo, e que não é mais profissão,
é arte.
Vê-se que o supracitado Fix não carecia de uma certa dose de
amor próprio.
Neste interim, o cais se animara pouco a pouco. Marinheiros de diversas
nacionalidades, comerciantes, corretores, carregadores, felás afluíam
para aí. A chegada do paquete estava evidentemente próxima.
O tempo estava bem bonito, mas o ar frio, pelo vento do leste. Alguns minaretes
recortavam-se por sobre a cidade sob os pálidos raios do sol. Para
o sul, um molhe de dois mil metros de comprimento estendia-se como um braço
sobre o ancoradouro de Suez. À superfície do mar Vermelho deslizavam
diversos barcos de pesca ou de cabotagem, alguns dos quais conservaram em
suas feições o elegante gabarito da galera antiga.
Sempre circulando entre este populacho, Fix, por um hábito da profissão,
encarava os transeuntes com uma olhada rápida.
Eram então duas e meia.
Mas não chega nunca, este paquete! exclamou ao ouvir soar o relógio
do porto.
Não pode estar longe, respondeu o cônsul.
Por quanto tempo ele ficará em Suez? perguntou Fix.
Quatro horas. O tempo de embarcar seu carvão. De Suez a Aden, na
extremidade do mar Vermelho, são trezentas e dez milhas, e é
preciso fazer provisão de combustível.
E de Suez esse barco vai diretamente a Bombaim? perguntou Fix.
Diretamente, sem parada.
Ora bem, disse Fix, se o ladrão tomou esta rota e este barco, deve
entrar nos seus planos desembarcar em Suez, para alcançar por uma outra
via as possessões holandesas ou francesas da Ásia. Deve saber
muito bem que não estaria em segurança na Índia, que
é uma terra inglesa.
A menos que seja um homem muito esperto, respondeu o cônsul. Bem sabe,
um criminoso inglês está sempre melhor escondido em Londres do
que no estrangeiro.
Depois desta reflexão, que deu muito o que refletir ao agente, o
cônsul voltou ao seu escritório, situado a pouca distância.
O inspetor de polícia ficou só, tomado por uma impaciência
nervosa, com o pressentimento bastante bizarro de que o seu ladrão
deveria achar-se a bordo do Mongolia e na verdade, se este velhaco tinha saído
da Inglaterra com a intenção de ganhar o Novo Mundo, a rota
das Índias, menos vigiada ou mais difícil de vigiar que a do
Atlântico, deveria ter merecido sua preferência.
Fix não foi deixado muito tempo entregue às suas reflexões.
Apitos agudos anunciaram a chegada do paquete. Toda a horda dos carregadores
e dos felás se precipitou para o cais em um tumulto um pouco inquietante
para os membros e as roupas dos passageiros. Uma dezena de batéis deslocou-se
do rio e dirigiu-se para frente do Mongolia.
Bem depressa o casco gigantesco do Mongolia foi avistado, passando entre
as margens do canal, e eram onze horas quando o steamer ancorou, ao mesmo
tempo que o seu vapor saía com grande barulho pelos tubos de escapamento.
Os passageiros eram muitos à bordo. Alguns ficaram sobre o spardeck
a contemplar o panorama pitoresco da cidade; mas a maioria desembarcou nos
batéis que tinham vindo acostar-se ao Mongolia.
Fix examinava escrupulosamente todos os que punham os pés na terra.
Neste momento, um deles aproximou-se dele, depois de ter vigorosamente repelido
os felás que o assaltavam com suas ofertas de serviço, e perguntou-lhe
muito polidamente se ele poderia indicar o escritório do agente consular
inglês. Ao mesmo tempo este passageiro apresentava um passaporte ao
qual desejava sem dúvida fazer apor o visto britânico.
Fix, instintivamente, pegou o passaporte e, com um rápido golpe de
vista, examinou-o.
Por pouco não fez um movimento involuntário. O papel tremeu-lhe
na mão. A descrição no passaporte era idêntica
à que recebera do comissário da polícia metropolitana.
Este passaporte não é o seu? disse ele ao passageiro.
Não, respondeu este, é o passaporte do meu patrão.
E seu patrão? Ficou no navio.
Mas, retomou o agente, é preciso que ele se apresente pessoalmente
no escritório do consulado para comprovar sua identidade.
O que! é necessário? Indispensável.
E onde fica este escritório? Lá, no canto da praça,
respondeu o inspetor, apontando para uma casa a duzentos passos dali.
Então, vou procurar meu patrão, que por certo não vai
gostar nada deste incômodo.
Lá no alto, o passageiro cumprimentou Fix e voltou para bordo do
vapor.
CAPÍTULO VII
QUE COMPROVA MAIS UMA VEZ A INUTILIDADE DOS PASSAPORTES EM MATÉRIA
POLICIAL
O agente de polícia voltou a descer ao cais e dirigiu-se rapidamente
para o escritório do cônsul. No mesmo instante, e por seu pedido
de urgência, foi levado a este funcionário.
Senhor cônsul, disse ele sem outro preâmbulo, tenho boas razões
para acreditar que o nosso homem está no Mongolia.
E Fix contou o que se passara entre o criado e ele a propósito do
passaporte.
Bem, Mr. Fix, respondeu o cônsul, não me incomoda ver a cara
deste pilantra. Mas talvez não se apresente em meu escritório,
se é quem supõe ser. Um ladrão não gosta de deixar
vestígios da sua passagem, e depois, a formalidade dos passaportes
não é mais obrigatória.
Senhor cônsul, respondeu o agente, se for um homem esperto como é
de se imaginar, virá.
Visar seu passaporte? Sim. Os passaportes só servem para estorvar
as pessoas de bem e para facilitar a fuga dos salafrários. Afirmo-lhe
que o dele estará em ordem, mas espero que o senhor não o visará…
E por que não? Se o passaporte estiver em ordem, respondeu o cônsul,
não tenho direito de recusar meu visto.
Entretanto, senhor cônsul, é preciso que eu retenha aqui este
homem até receber de Londres um mandado de prisão.
Ah! isso, senhor Fix, é assunto seu, respondeu o cônsul, mas
eu, eu não posso…
O cônsul não concluiu a frase. Neste momento batiam à
porta de seu gabinete, e o secretário introduziu dois estrangeiros,
um dos quais era precisamente o criado que falara com o detetive.
Eram, com efeito, o patrão e o criado. O patrão apresentou
o seu passaporte, pedindo laconicamente ao cônsul que o visasse.
Este pegou o passaporte e o leu atentamente, enquanto Fix, num canto do
gabinete, observava ou melhor devorava o estrangeiro com os olhos.
Quando o cônsul acabou sua leitura: É Phileas Fogg, esquire?
perguntou.
Sim, senhor, respondeu o gentleman.
E este homem é seu criado? Sim. Um francês chamado Passepartout.
Vem de Londres? Sim.
E para onde vai? Para Bombaim.
Bem, senhor. Sabe que esta formalidade do visto é inútil,
e que já não exigimos a apresentação do passaporte?
Sei, senhor, respondeu Phileas Fogg, mas desejo comprovar com a seu visto
minha passagem por Suez.
Que seja, senhor.
E o cônsul, tendo assinado e datado o passaporte, lhe apôs seu
sinete. Mr. Fogg pagou os direitos de visto, e, depois de ter cumprimentado
friamente, saiu, seguido por seu criado.
Então? perguntou o inspetor.
Então, respondeu o cônsul, tem cara de um homem inteiramente
honesto! É possível, respondeu Fix, mas não é
disso que se trata. Não acha, senhor cônsul, que este fleumático
gentleman se parece feição por feição com o homem
do qual recebi a descrição? Concordo, mas bem sabe, todas as
descrições…
Manterei a mente aberta, respondeu Fix. O criado parece menos indecifrável
que o patrão. Demais, é um francês, não deixará
de falar. Até mais, senhor cônsul.
Dito isto, o agente saiu e se pôs à procura de Passepartout.
Enquanto isso, Mr. Fogg, saindo da casa consular, tinha se dirigido para
o cais. Lá, deu algumas ordens ao seu criado; depois embarcou num batel,
voltou para bordo do Mongolia e entrou em seu camarote. Pegou então
a agenda, que tinha as seguintes anotações: Saída de
Londres, quarta feira 2 de outubro, 8 e 45 minutos da noite.
Chegada a Paris, quinta feira 3 de outubro, 8 e 40 minutos da manhã.
Chegada a Turim pelo Monte Cenis, sexta feira 4 de outubro, 6 e 35 minutos
da manhã.
Saída de Turin, sexta feira, 7 e 20 minutos da manhã.
Chegada a Brindisi, sábado 5 de outubro, 4 da tarde.
Embarque no Mongolia, sábado, 5 da tarde.
Chegada a Suez, quarta feira 9 de outubro, 11 da manhã.
Total das horas gastas até aqui: 158 1/2, em dias: 6 dias e 1/2.”
Mr. Fogg anotou estas datas sobre um roteiro disposto em colunas, que indicava
de 2 de outubro a 21 de dezembro o mês, a data, o dia, as chegadas previstas
e as chegadas efetivas a cada ponto principal, Paris, Brindisi, Suez, Bombaim,
Calcutá, Cingapura, Hong Kong, Yokohama, São Francisco, Nova
York, Liverpool, Londres, e que lhe permitia calcular o ganho obtido ou a
perda sofrida em cada trecho do percurso.
Este metódico roteiro manteria assim o registro de tudo, e Mr. Fogg
ficaria sempre sabendo se estava avançado ou atrasado.
Anotou pois, naquele dia, quarta feira 2 de outubro, sua chegada a Suez
que, estando de acordo com o previsto, não constituía para ele
nem ganho nem perda.
Em seguida, pediu que lhe servissem o almoço na cabina. Quanto a
ver a cidade, nem sequer pensava nisso, sendo dessa raça de ingleses
que fazem visitar por seus criados os países que atravessam.
CAPÍTULO VIII
EM QUE PASSEPARTOUT FALA TALVEZ UM POUCO MAIS DO QUE LHE CONVIRIA
Fix havia em poucos instantes se reencontrado no cais com Passepartout, que
flanava e observava, não se julgando obrigado, ele, a nada ver.
E então, meu amigo, disse Fix abordando-o, o seu passaporte está
visado? Ah! é o senhor, respondeu o francês. Muito obrigado.
Estamos perfeitamente em ordem.
E vê o país? Sim, mas vamos tão depressa que parece
que viajo em sonho. E aí, estamos mesmo em Suez? Em Suez.
No Egito? No Egito, perfeitamente.
Na África? Na África.
Na Africa! repetiu Passepartout. Não posso acreditar. Imagine, senhor,
que imaginava não passar de Paris, e esta famosa capital, a revi exatamente
das sete e vinte da manhã às oito e quarenta, entre a estação
do Norte e a estação de Lyon, através dos vidros de um
fiacre e de uma chuva torrencial. Que pena! Teria adorado rever o Pére-Lachaise
e o Cirque des Champs Élysées! Então estão muito
apressados? perguntou o inspetor de polícia…
Eu, não, mas meu patrão. A propósito, preciso comprar
roupa de baixo e camisas! Partimos sem malas, com uma sacola de viagem apenas.
Vou levá-lo a um bazar, onde encontrará tudo o que precisar.
Senhor, respondeu Passepartout, é de uma tal amabilidade!…
E ambos se puseram a caminho. Passepartout conversava o tempo todo.
Sobretudo, disse, preciso prestar atenção para não
perder o barco.
Tem tempo, respondeu Fix, ainda não é meio dia.
Passepartout puxou seu grande relógio.
Meio dia, disse. Que nada! são nove e cinqüenta e dois! Seu
relógio está atrasado, respondeu Fix.
Meu relógio! Um relógio de família, que veio do meu
bisavô! Não varia cinco minutos por ano! É um verdadeiro
cronômetro! Já sei o que é, respondeu Fix. Você
olhou a hora de Londres, que está quase duas horas atrasada em relação
à de Suez. Tem de acertar seu relógio pela hora local de cada
país.
Eu! tocar no meu relógio! exclamou Passepartout, jamais! Então
ele não estará mais de acordo com o sol.
Tanto pior para o sol, senhor! Ele é que estará errado! E
o valente moço tornou a meter o relógio na algibeira do colete
com um gesto desafiador.
Alguns instantes depois, Fix lhe dizia: Então deixaram Londres precipitadamente?
Creio que sim! Quarta feira passada, às oito da noite, contra todos
os seus hábitos, Mr. Fogg voltou do seu club, e três quartos
de hora depois tínhamos partido.
Mas para onde vai o seu patrão? Sempre em frente! Ele faz a volta
ao mundo! A volta ao mundo? exclamou Fix.
Sim, em oitenta dias! Uma aposta, diz ele, mas cá entre nós,
não acredito. Seria não ter senso comum. Há alguma coisa
a mais.
Ah! é um excêntrico, este Mr. Fogg? Creio que sim.
É rico então? Evidentemente, e carrega uma bela soma com ele,
em bank-notes novinhas em folha! E não poupa dinheiro pelo caminho!
Veja! Prometeu uma gratificação magnífica ao maquinista
do Mongolia, se chegarmos a Bombaim com um bom avanço! E conhece há
muito seu patrão? Eu! respondeu Passepartout, eu entrei para o seu
serviço no mesmo dia de nossa partida.
É fácil imaginar o efeito que estas respostas deveriam produzir
sobre o espírito já superexcitado do inspetor de polícia.
A partida precipitada de Londres, pouco tempo após o roubo, a grande
quantia que levava, a pressa em chegar a países longínquos,
o pretexto de uma aposta excêntrica, tudo confirmava e deveria confirmar
Fix nas suas idéias. Fez o francês falar ainda mais e obteve
a certeza de que o moço não conhecia absolutamente seu patrão,
que este vivia isolado em Londres, que o consideravam rico, sem que se soubesse
a origem da sua fortuna, que era um homem impenetrável, etc.. Mas,
ao mesmo tempo, Fix pôde ter por certo que Phileas Fogg não desembarcaria
em Suez, e que iria realmente para Bombaim.
Bombaim é longe? perguntou Passepartout.
Bem longe, respondeu o agente. Vai precisar passar ainda uns dez dias no
mar.
E onde fica Bombaim? Na Índia.
Na Ásia? Naturalmente.
Diabos! É que eu ia lhe dizer… Há uma coisa que me encafifa…
é meu bico! Que bico? O meu bico de gás, que esqueci de apagar
e que está aceso por minha conta. Ora, calculei que me saía
a dois shillings a cada vinte e quatro horas, exatamente sete pence a mais
do que eu ganho, e bem deve compreender que por pouco que a viagem se prolongue…
Teria Fix compreendido a história do gás? É pouco provável.
Ele já não escutava e tomara uma decisão. O Francês
e ele tinham chegado ao bazar. Fix deixou seu companheiro fazendo as compras,
recomendou-lhe que não perdesse a partida do Mongolia, e voltou apressado
para o escritório do agente consular.
Fix, agora que a sua convicção estava formada, recuperara
todo o seu sangue frio.
Senhor, disse ao cônsul, já não tenho nenhuma dúvida.
Tenho o meu homem. Ele se faz passar por um excêntrico que quer fazer
a volta ao mundo em oitenta dias.
Então é um espertalhão, respondeu o cônsul, e
conta voltar a Londres, depois de ter despistado todas as polícias
de dois continentes! Isso é que haveremos de ver, respondeu Fix.
Mas não se engana? perguntou-lhe mais uma vez o cônsul.
Não me engano.
Então, porque é que esse ladrão teve interesse em fazer
constatar por um visto sua passagem por Suez? Por quê?… não
sei não, senhor cônsul, respondeu o detetive, mas ouça-me.
E, em poucas palavras, relatou os pontos principais da sua conversa com
o criado do dito Fogg.
Com efeito, disse o cônsul, todas as presuncões são
contra esse homem. E o que vai fazer? Expedir um despacho para Londres com
o pedido insistente de que me mandem um mandado de prisão para Bombaim,
embarcar no Mongolia, vigiar o meu ladrão até às Indias,
e ali, naquela terra inglesa, chegar-me a ele polidamente, meu mandado de
prisão na mão e a mão sobre seu ombro…
Estas palavras pronunciadas friamente, o agente despediu-se do cônsul
e dirigiu-se à agência telegráfica. Dali enviou ao diretor
da polícia metropolitana o despacho que já conhecemos.
Um quarto de hora depois, Fix, com a sua pequena bagagem na mão,
bem munida de dinheiro, aliás, embarcava a bordo do Mongolia, e logo
o rápido paquete corria a todo o vapor sobre as águas do mar
Vermelho.
CAPÍTULO IX
EM QUE O MAR VERMELHO E O MAR DAS ÍNDIAS SE MOSTRAM PROPÍCIOS
AOS DESÍGNIOS DE PHILEAS FOGG
A distância entre Suez e Aden é exatamente de trezentas e dez
milhas, e o regulamento da companhia concede aos seus paquetes um prazo de
cento e trinta e oito horas para a percorrer. O Mongolia, cujos fogos estavam
ativamente atiçados, andava de modo a antecipar a chegada regulamentar.
A maioria dos passageiros embarcados em Brindisi tinham quase todos a Índia
por destino. Uns dirigiam-se a Bombaim, outros a Calcutá, mas via Bombaim,
porque desde que uma linha férrea atravessa em toda a sua largura a
península indiana, não é mais necessário dobrar
a ponta de Ceilão.
Entre estes passageiros do Mongólia, contavam-se diversos funcionários
civis e oficiais de todas as graduações. Destes, uns pertenciam
ao exército britânico propriamente dito, outros comandavam as
tropas indígenas dos cipaios, todos bem pagos, mesmo atualmente quando
o governo assumira os direitos e os encargos da antiga Companhia das Índias:
sub-tenentes a 7.000 francos, brigadeiros a 60.000 e generais a 100.000. [O
pagamento dos funcionários civis é ainda mais elevado. Os simples
assistentes, no primeiro grau da hierarquia, recebem 12.000 francos; os juízes,
60.000 F; os presidentes de corte, 250.000 F; os governadores, 300.000 F,
e o governador geral, mais de 600.000 F. (Nota do Autor).] Vivia-se portanto
bem à bordo do Mongolia, nesta sociedade de funcionários, aos
quais se misturavam alguns jovens ingleses, que, com o seu milhão no
bolso, iam fundar ao longe estabelecimentos comerciais. O purser, o homem
de confiança da Companhia, o igual do capitão do navio, fazia
as coisas suntuosamente. No café da manhã, no almoço
das duas, no lanche das cinco e meia, e no jantar das oito, as mesas vergavam
sob os pratos de carne fresca e das iguarias fornecidas pela despensa do paquete.
As passageiras havia algumas mudavam de toilette duas vezes por dia. Tocava-se
música, dançava-se até, quando o mar o permitia.
Mas o mar Vermelho é muito caprichoso e freqüentemente mau,
como todos os golfos estreitos e compridos. Quando o vento soprava quer da
costa da Ásia, quer da costa da África, o Mongolia, longa fuselagem
a hélice, pego pelo vento nas laterais, balançava de um modo
apavorante. Então as damas desapareciam; os pianos se calavam; cantos
e danças cessavam ao mesmo tempo. E contudo, apesar do vendaval, apesar
da vaga, o paquete, impelido por sua máquina poderosa, corria célere
em direção ao estreito de Bab-el-Mandeb.
Que fazia Phileas Fogg durante este tempo? Poderiam julgar que, sempre inquieto
e ansioso, se preocupava com as mudanças de vento prejudiciais ao andamento
do navio, com o embate desordenado das ondas que poderiam ocasionar um acidente
à máquina, enfim com todas as avarias possíveis que,
obrigando o Mongolia a atracar em algum porto, comprometessem sua viagem?
Que nada, ou pelo menos, se este gentleman pensava em tais eventualidades,
nem deixava transparecer. Era sempre o homem impassível, o membro imperturbável
do Reform Club, a quem nenhum incidente ou acidente poderia surpreender. Não
parecia mais emocionado do que os cronômetros do navio. Era raramente
visto sobre o convés. Não se importava a mínima em observar
este mar Vermelho, tão fecundo em recordações, teatro
das primeiras cenas históricas da humanidade. Não vinha reconhecer
as curiosas cidades semeadas em suas bordas, e das quais a pitoresca silhueta
se descortinava algumas vezes no horizonte. Nem sequer sonhava com os perigos
deste golfo Arábico, do qual os antigos, Estrabão, Arrien, Artemidoro,
Edrisi, sempre falaram com assombro, e no qual os navegadores não se
aventuravam jamais em outros tempos sem antes ter consagrado sua viagem por
sacrifícios propiciatórios.
O que fazia pois este excêntrico, aprisionado no Mongolia? Em primeiro
lugar, fazia suas quatro refeições diárias, sem que nunca
o balanço ou a arfagem pudessem desarranjar uma máquina tão
maravilhosamente organizada. Depois jogava whist.
Sim! ele tinha encontrado parceiros, tão ardorosos quanto ele: um
coletor de impostos que se dirigia ao seu posto em Goa, um ministro, o reverendo
Decimus Smith, que regressava a Bombaim, e um general de brigada do exército
inglês, que retornava ao seu corpo em Benares. Estes três passageiros
tinham pelo whist a mesma paixão que Mr. Fogg, e jogavam por horas
inteiras, não menos silenciosamente do que ele.
Quanto a Passepartout, o mal do mar não tinha nenhum efeito sobre
ele. Ocupava uma cabina de frente e comia, ele também, conscienciosamente.
É preciso dizer que, decididamente, a viagem, feita em tais condições,
não lhe desagradava. Tirava partido dela. Bem nutrido, bem alojado,
via países e ademais afirmava a si próprio que toda esta fantasia
acabaria em Bombaim.
No dia seguinte ao da partida de Suez, 10 de outubro, não foi sem
certo prazer que reencontrou sobre a coberta o obsequioso personagem a quem
tinha se dirigido ao desembarcar no Egito.
Não me engano, disse, abordando-o com seu mais amável sorriso,
não foi o senhor, quem tão generosamente me serviu de guia em
Suez? Realmente, respondeu o detetive, reconheço-o! É o criado
daquele inglês extravagante…
Precisamente, senhor…
Fix.
Senhor Fix, respondeu Passepartout. Encantado em rencontrá-lo à
bordo. E para onde vai? Mas, como você, para Bombaim.
Ótimo! Já fez esta viagem antes? Diversas vezes, respondeu
Fix. Sou um agente da Companhia peninsular.
Então conhece a Índia? Mas… sim… respondeu Fix, que não
queria adiantar-se muito.
E é curiosa, esta Índia? Muito curiosa! Mesquitas, minaretes,
templos, faquires, pagodes, tigres, serpentes, bailarinas! Espero que tenha
tempo para visitar o país.
Espero que sim, senhor Fix. Bem compreende que não é permitido
a um homem são de espírito passar a vida saltando de um paquete
para uma estrada de ferro, e de uma estrada de ferro para um paquete, sob
pretexto de fazer a volta ao mundo em oitenta dias! Não. Toda esta
ginástica cessará em Bombaim, nem duvide disso.
E Mr. Fogg passa bem? perguntou Fix com o tom de voz mais natural do mundo.
Muito bem, senhor Fix, muito bem. Eu também, a propósito.
Como um ogro que tivesse jejuado. É o ar do mar.
E o seu patrão, não o vejo nunca no convés.
Jamais. Ele não é curioso.
Sabe, senhor Passepartout, esta pretensa viagem em oitenta dias bem que
poderia ocultar uma missão secreta… uma missão diplomática,
por exemplo! Palavra, senhor Fix, não sei de nada, juro, e, na verdade,
não daria meia coroa para saber.
Desde este reencontro, Passepartout e Fix conversaram muitas vezes. O inspetor
de polícia tinha interesse em ficar íntimo do criado do senhor
Fogg. Poderia lhe ser útil. Por isso oferecia-lhe com freqüência,
no bar-room do Mongolia, alguns copos de whisky ou de pale ale, que o bom
moço aceitava sem cerimônia e que até retribuía
para não ficar para trás achava, pois, este Fix um gentleman
muito simpático.
Enquanto isso o paquete avançava rapidamente. A 13, avistaram Moka,
que apareceu com seu cinturão de muralhas em ruínas, por sobre
as quais se destacavam algumas tamareiras verdejantes. Ao longe, nas montanhas,
estendiam-se vastos campos de cafezais. Passepartout ficou entusiasmado ao
contemplar esta cidade célebre, e até achou que, com estes muros
circulares e um forte desmantelado em formato de ansa, parecia uma enorme
meia-taça.
Durante a noite seguinte, o Mongolia franqueou o estreito de Bab-el-Mandeb,
cujo nome árabe significa Porta das Lágrimas, e no dia seguinte,
14, fazia escala em Steamer Point, a noroeste da enseada de Aden. Era aí
que ele deveria refazer suas provisões de combustível.
É questão séria e importante a alimentação
da fornalha dos paquetes a tais distâncias dos centros de produção.
Só para a Companhia peninsular, é uma despesa anual que monta
a oitocentas mil libras (20 milhões de francos). Foi preciso, com efeito,
estabelecer depósitos em diversos portos, e, nestes mares longínqüos,
o carvão sai por oitenta francos a tonelada.
O Mongolia tinha ainda seiscentas e cinqüenta milhas pela frente antes
de chegar a Bombaim, e deveria demorar-se quatro horas em Steamer Point, para
encher seus paióis.
Mas esta demora não poderia de modo algum prejudicar o programa de
Phileas Fogg. Estava prevista. Além disso, o Mongolia em vez de chegar
a Aden dia 15 de outubro somente pela manhã, entrou ali dia 14 à
noite. Era um ganho de quinze horas.
Mr. Fogg e o seu criado desceram à terra. O gentleman queria vistar
seu passaporte. Fix seguiu-o sem ser notado. Preenchida a formalidade do visto,
Phileas Fogg voltou ao navio para recomeçar sua partida interrompida.
Passepartout, esse, flanou, segundo seu costume, por entre essa população
de Somanlis, Banianos, Parsis, Judeus, Árabes, Europeus, que compunham
os vinte e cinco mil habitantes de Aden. Admirou as fortificações
que fazem desta cidade o Gibraltar do mar das Índias, e as magníficas
cisternas nas quais ainda trabalhavam os engenheiros ingleses, dois mil anos
depois dos engenheiros do rei Salomão.
Muito curioso, muito curioso! dizia consigo Passepartout voltando para bordo.
Estou percebendo que não é inútil viajar, se quiserermos
ver coisas novas.
Às seis horas da tarde, o Mongolia revolvia com as pás de
sua hélice as águas da enseada de Aden e pouco depois corria
sobre o mar das Índias. Concedia-se-lhe sessenta e oito horas para
fazer o trajeto entre Aden e Bombaim. Além disso, o mar indiano lhe
foi favorável. O vento conservava-se no noroeste. As velas vieram em
auxílio do vapor.
O navio, melhor apoiado, balançou menos. As passageiras com toilettes
frescas, reapareceram sobre o coberta. Os cantos e as danças recomeçaram.
A viagem realizou-se portanto nas melhores condições. Passepartout
estava encantado com o amável companheiro que o acaso lhe tinha procurado
na pessoa de Fix.
No domingo 20 de outubro, por volta do meio dia, avistou-se a costa indiana.
Duas horas depois, o piloto subia a bordo do Mongolia. No horizonte, um segundo
plano de colinas perfilava-se harmoniosamente sobre o fundo do céu.
Logo os renques de palmeiras que ocultam a cidade destacaram-se vivamente.
O paquete penetrou nesta enseada formada pelas ilhas Salcette, Colaba, Elephanta,
Butcher, e às quatro horas e meia acostava no cais de Bombaim.
Phileas Fogg acabava então a sua trigésima terceira partida
do dia, e seu parceiro e ele, graças a uma manobra audaciosa, tendo
feito as treze vazas, terminaram esta bela travessia com um grande slam admirável.
Mongolia só deveria chegar em 22 de outubro a Bombaim. Ora, chegava
dia 20, um ganho de dois dias, que Phileas Fogg anotou metodicamente em seu
roteiro na coluna dos lucros.
CAPÍTULO X
EM QUE PASSEPARTOUT SE DÁ POR FELIZ EM SAFAR-SE SÓ PERDENDO
OS SAPATOS
Ninguém ignora que a Índia esse grande triângulo cuja
base está ao norte e a ponta ao sul compreende uma superfície
de um milhão e quatrocentas mil milhas quadradas, sobre a qual se acha
desigualmente distribuída uma população de cento e oitenta
milhões de habitantes. O governo britânico exerce uma dominação
real sobre certa parte deste imenso país. Mantém um governador
geral em Calcutá, governadores em Madras, em Bombaim, em Bengala, e
um vice-governador em Agra.
Mas a Índia inglesa propriamente dita só conta com uma superfície
de setecentas mil milhas quadradas e uma população de cem a
cento e dez milhões de habitantes. Basta dizer que uma importante parte
do território escapa ainda da autoridade da rainha; e, com efeito,
junto a certos rajás do interior, ferozes e terríveis, a independência
hindu é ainda absoluta.
Desde 1756 época em que foi fundado o primeiro estabelecimento inglês
no local hoje ocupado pela cidade de Madras até o ano em que eclodiu
a grande insurreição dos cipaios, a célebre Companhia
das Indias foi toda-poderosa. Anexou pouco a pouco as diversas províncias,
compradas aos rajás em troca de rendimentos que pagava mal, ou não
pagava; nomeava o seu governador geral e todos os seus empregados civis ou
militares; mas presentemente ela não existe mais, e as possessões
inglesas da Índia dependem diretamente da coroa.
Também o aspecto, os costumes, as divisões etnográficas
da península tendem a se modificar a cada dia. Antigamente viajava-se
ali por todos os antigos meios de transporte, a pé, a cavalo, de charrete,
em palanquim, às costas de homens, de carruagem, etc. Atualmente, barcos
a vapor percorrem a grande velocidade o Indo, o Ganges, e uma estrada de ferro,
que atravessa a Índia em toda a sua extensão ramificando-se
em seu trajeto, põe Bombaim a três dias apenas de Calcutá.
O traçado desta estrada de ferro não segue a linha reta através
da Índia. A distância à vôo de pássaro é
de somente mil a mil e cem milhas, e trens, animados de velocidade apenas
média, não gastariam três dias para percorrê-la;
mas esta extensão é aumentada num terço pelo menos, com
a corda que a via férrea descreve subindo até Alaabad, no norte
da península.
Eis, resumidamente, o traçado do Great Indian peninsular railway”.
Partindo da ilha de Bombaim, atravessa Salcette, salta sobre o continente
em frente de Tannah, franqueia a cadeia dos Gates Ocidentais, corta para nordeste
até Burhampour, serpenteia o território quase independente do
Bundelkund, eleva-se até Alaabad, desvia-se para leste, reencontra
o Ganges em Benares, afasta-se ligeiramente dele, e, tornando a descer para
o sudeste por Burdivan e pela cidade francesa de Chanderganor, estabelece
seu ponto inicial em Calcutá.
Foi às quatro e meia da tarde que os passageiros do Mangolia tinham
desembarcado em Bombaim, e o trem de Calcutá partiria às oito
em ponto.
Mr. Fogg despediu-se, portanto, dos seus parceiros, deixou o paquete, deu
a seu criado a relação de algumas compras a fazer, recomendou-lhe
expressamente que se achasse antes das oito na estação, e, com
o seu passo regular que marcava os segundos como o pêndulo de um relógio
astronômico, dirigiu-se para a repartição dos passaportes.
Assim pois, das maravilhas de Bombaim, nem sonhava ver coisa alguma, nem
o hotel da cidade, nem a magnífica biblioteca, nem os fortes, nem as
docas, nem o mercado de algodão, nem os bazares, nem as mesquitas,
nem as sinagogas, nem as igrejas armênias, nem o esplêndido pagode
de Malebar Hill, ornado com duas torres polígonas. Não contemplaria
nem as obras-primas de Elephanta, nem seus misteriosos hipogeus, ocultos a
sueste da enseada, nem as grutas Kanherian da ilha Salcette, esses admiráveis
restos da arquitetura budista! Não! nada. Saindo da repartição
dos passaportes Phileas Fogg dirigiu-se tranqüilamente para a estação,
e aí fez-se servir o jantar. Entre outros manjares, o dono da casa
entendeu que lhe deveria recomendar uma certa gibelotte de coelho do país”,
de que disse maravilhas.
Phileas Fogg aceitou a gibelotte e a degustou conscienciosamente; mas, a
despeito de seu molho muito temperado, a achou detestável.
Chamou o maître do hotel.
Senhor, disse olhando-o fixamente, é coelho, isso? Sim, mylord, respondeu
descaradamente o velhaco, coelho das jungles.
E este coelho não miou quando o mataram? Miar! Oh! mylord! um coelho!
Juro-lhe…
Senhor maître, replicou friamente Mr. Fogg, não jure e lembre-se
disso: outrora, na Índia, os gatos eram considerados animais sagrados.
Eram bons tempos.
Para os gatos, mylord? E talvez também para os viajantes! Após
esta observação Mr. Fogg continuou tranqüilamente a jantar.
Alguns instantes depois de Mr. Fogg, o agente Fix havia desembarcado também
do Mongolia e correu à casa do diretor da polícia de Bombaim.
Deu a conhecer a sua qualidade de detetive, a missão de que estava
encarregado, sua situaçãO a respeito do suposto autor do roubo.
Tinham recebido de Londres um mandado de prisão?… Não tinham
recebido nada. E, com efeito, o mandado, que partira depois de Fogg, não
poderia ter chegado ainda.
Fix ficou muito desanimado. Quis obter do diretor uma ordem de detenção
contra o senhor Fogg. O diretor recusou. O negócio dizia respeito à
administração metropolitana, e só ela poderia legalmente
expedir um mandado. Esta severidade de princípios, esta observância
rigorosa da legalidade é perfeitamente explicável pelos costumes
ingleses, que, em matéria de liberdade individual, não admitem
nada arbitrário.
Fix não insistiu e compreendeu que deveria resignar-se a esperar
o mandado. Mas resolveu não perder de vista o seu impenetrável
tratante, durante todo o tempo que este permanecesse em Bombaim. Não
duvidava de que Phileas Fogg aí não se demoraria e, como se
sabe, era esta também a convicção de Passepartout o que
daria ao mandado de prisão o tempo de chegar.
Mas desde as últimas ordens que o patrão lhe tinha dado ao
desembarcar do Mongolia, Passepartout tinha compreendido que haveria de acontecer
em Bombaim o mesmo que acontecera em Suez e Paris, que a viagem não
terminaria aqui, que continuaria pelo menos até Calcutá e talvez
mais longe. E começou a se perguntar se esta aposta de Mr. Fogg não
seria absolutamente séria, e se a fatalidade não o iria conduzir,
a ele que tanto desejava viver em repouso, a realizar a volta ao mundo em
oitenta dias! Esperando, e após ter feito a aquisição
de algumas camisas e roupas de baixo, pôs-se a passear pelas ruas de
Bombaim. Havia nelas grande afluxo popular, e, misturados a europeus de todas
as nacionalidades, persas com bonés ponteagudos, Bunhyas com turbantes
redondos, Sindes com gorros quadrados, Armênios com longas vestes, Parsis
com mitra negra. Era precisamente uma festa celebrada por estes Parsis ou
Guebros, descendentes diretos dos seguidores de Zoroastro, que são
os mais industriosos, os mais civilizados, os mais inteligentes, os mais austeros
dos hindus raça a que pertencem atualmente os ricos negociantes indígenas
de Bombaim. Naquele dia, celebravam uma espécie do carnaval religioso,
com procissões e diversões, nas quais figuravam bailarinas vestidas
com gazes rosas brocadas de ouro e prata, que, ao som das violas e ao barulho
dos tantãs, dançavam maravilhosamente, e também com uma
decência perfeita, é bom dizer.
Que Passepartout contemplava estas curiosas cerimônias, que seus olhos
e suas orelhas se abriam desmesuradamente para ver e ouvir, que sua aparência,
sua fisionomia era a do “booby” mais novinho que se possa imaginar,
é supérfluo dizer.
Infelizmente para ele e para seu patrão, cuja viagem esteve a ponto
de comprometer, sua curiosidade o levou mais longe do que seria conveniente.
Com efeito, depois de ter entrevisto este carnaval parsi, Passepartout dirigia-se
para a estação, quando, passando em frente do admirável
pagode de Malebar Hill teve a fatal idéia de visitar seu interior.
Ele ignorava duas coisas: primeira, que a entrada de certos pagodes hindus
é formalmente interdita aos cristãos e, segunda, que nem os
próprios crentes podem entrar sem terem deixado seus calçados
na entrada. É preciso destacar aqui que, por razões de boa política,
o governo inglês, respeitando e fazendo respeitar até nos seus
mais insignificantes detalhes a religião do país, pune severamente
quem quer que viole suas práticas.
Passepartout entrou, sem más intensões, como um simples turista,
admirava no interior os deslumbrantes ouropéis da ornamentação
bramânica, quando subitamente foi derrubado nas sagradas lajes. Três
sacerdotes, o olhar cheio de furor, precipitaram-se sobre ele, arrancaram-lhe
os sapatos e as meias, e começaram a enchê-lo de porradas, proferindo
gritos selvagens.
O francês, vigoroso e ágil, ergueu-se rapidamente. Com um murro
e um pontapé derrubou dois adversários, aliás muito atrapalhados
com os seus trajes compridos, e, fugindo do pagode com toda a velocidade de
suas pernas, bem depressa distanciou-se do terceiro hindu, que tinha saído
em sua perseguição, açulando a multidão.
Às oito menos cinco, alguns minutos apenas antes da partida do trem,
sem chapéu, pés nus, tendo perdido na briga o pacote contendo
as compras, Passepartout chegou à estação da estrada
de ferro.
Fix estava lá, sobre a plataforma de embarque. Tendo seguido o senhor
Fogg até a estação, tinha compreendido que este tratante
ia deixar Bombaim. No mesmo instante tomou a decisão de acompanhá-lo
até Calcutá e até mais longe se preciso fosse. Passepartout
não viu Fix, que se mantinha na sombra, mas Fix escutou o relato de
suas aventuras, que Passepartout narrou em poucas palavras ao seu patrão.
Espero que isto não lhe aconteça mais, respondeu simplesmente
Phileas Fogg, tomando lugar num dos vagões do trem.
O pobre moço, descalço e todo decomposto, seguiu seu patrão
sem dizer palavra.
Fix ia subindo em um vagão separado, quando um pensamento o fez parar
e modificou subitamente seu projeto de partida.
Não, fico, disse-se ele. Um delito cometido em território
indiano… tenho o meu homem.
Neste momento a locomotiva lançou um vigoroso apito, e o trem desapareceu
na noite.
CAPÍTULO XI
EM QUE PHILEAS FOGG COMPRA UMA MONTARIA POR UM PREÇO FABULOSO
O trem tinha partido na hora regulamentar. Levava um certo número
de viajantes, alguns oficiais, funcionários civis e negociantes de
ópio e de indigo, cujo comércio os chamava para o lado oriental
da península.
Passepartout ocupava o mesmo compartimento de seu patrão. Um terceiro
viajante achava-se alojado no canto oposto.
Era o general de brigada, Sir Francis Cromarty, um dos parceiros de Mr.
Fogg durante a travessia de Suez a Bombaim, que retornava às suas tropas
aquarteladas perto de Benares.
Sir Francis Cromarty, grande, louro, com aproximadamente cinqüenta
anos, que tinha se distinguido bastante durante a última revolta dos
cipaios, poderia merecer verdadeiramente a qualificação de nativo.
Desde sua juventude, habitava na Índia e raras vezes aparecera no seu
país natal. Era um homem instruído, que teria de bom grado dado
lições sobre os costumes, a história e a organização
do país hindu, se Phileas Fogg fosse de as pedir. Mas este gentleman
não perguntava nada. Não viajava, descrevia um círcunferência.
Era um corpo sólido, percorrendo uma órbita à volta do
globo terrestre, seguindo as leis da mecânica racional. Neste momento,
refazia em seu espírito o cálculo das horas gastas desde sua
partida de Londres, e teria até esfregado as mãos, se estivesse
na sua índole fazer um movimento inútil.
Sir Francis Cromarty não tinha deixado de perceber a originalidade
do seu companheiro de viagem, apesar de não o ter estudado senão
com cartas na mão e entre dois róbers. Estava por isso bem propenso
a se perguntar se batia um coração humano sob aquele frio envólucro,
se Phileas Fogg tinha uma alma sensível às belezas da natureza,
às aspirações morais. Para ele, isso era discutível.
Entre todas as pessoas extravagantes que o brigadeiro encontrara, nenhuma
se comparava a este produto das ciências exatas.
Phileas Fogg não ocultara de sir Francis Cromarty o seu projeto de
viagem em volta ao mundo, nem em que condições o realizava.
O general de brigada não viu nesta aposta senão uma excentricidade
sem finalidade útil e à qual faltava necessariamente o transire
benefaciendo que deve guiar todo homem razoável. Pelo passo em que
caminhava o bizarro gentleman, passaria evidentemente pela vida sem “nada
fazer”, nem por si, nem pelos outros.
Uma hora após ter deixado Bombaim, o trem, transpondo os viadutos,
havia atravessado a ilha Salcette e corria sobre o continente. Na estação
de Callyan, deixou à direita o ramal que, por Kandallah e Pounah, desce
para o sudeste da Índia, e chegou à estação de
Pauwell. Neste ponto, embrenhou-se nas montanhas muito ramificadas dos Gates
Ocidentais, cadeias formadas de basalto, cujos cumes mais elevados estão
cobertos por espessas florestas.
De vez em quando sir Francis Cromarty e Phileas Fogg trocavam algumas palavras,
e, neste momento, o general de brigada, reatando o fio da conversação
que muitas vezes se quebrava, disse: Há alguns anos, senhor Fogg, teria
tido nestas paragens uma demora que de certo lhe teria comprometido o itinerário.
Por que, sir Francis? Porque a estrada de ferro terminava no sopé
destas montanhas, que era preciso atravessar de palanquim ou no dorso de pôneis
até a estação de Kandallah, situada na vertente oposta.
Essa demora não teria de forma alguma prejudicado a economia do meu
programa, respondeu Mr. Fogg. Não deixei de prever a eventualidade
de certos obstáculos.
Entretanto, Mr. Fogg, retomou o general de brigada, correu um risco enorme
de ter uma grande dificuldade nos braços com a aventura deste rapaz.
Passepartout, os pés embrulhados na sua manta de viagem, dormia profundamente
e nem sequer sonhava que falavam dele.
O governo inglês é extremamente severo e com razão com
este gênero de delito, retomou sir Francis Cromarty. Ele faz questão
que se respeite os costumes religiosos dos hindus, e se o seu criado tivesse
sido preso…
Bem, se tivesse sido preso, Sir Francis, respondeu Mr. Fogg, teria sido
condenado, teria cumprido sua pena, e depois teria voltado tranqüilamente
para a Europa. Não vejo em que este caso teria podido retardar seu
patrão! E neste ponto a conversação interrompeu-se novamente.
Durante a noite o trem transpôs os Gates, passou para Nassik, e no dia
seguinte, 2l de outubro, lançou-se através de uma região
relativamente plana, formada pelo território de Khandeish. A campina,
bem cultivada, estava semeada de aldeias, sobre as quais o minarete do pagode
substituí o campanário da igreja européia. Numerosos
riachos, a maioria afluentes ou sub-afluentes do Godaveri, irrigavam esta
região fértil.
Passepartout, acordado, contemplava, e não podia acreditar que atravessava
o país dos hindus num trem do “Great peninsular railway”.
Parecia-lhe inverosímil. E contudo nada mais real. A locomotiva, dirigida
pelo braço de um maquinista inglês e aquecida com carvão
inglês, lançava sua fumaça sobre as plantações
de algodão, de café, de noz moscada, de cravo e de pimenta.
O vapor se contorcia em espirais ao redor de grupos de palmeiras, por entre
os quais apareciam pitorescos bungalows, alguns viharis, espécie de
monastérios abandonados, e templos maravilhosos que enriqueciam a inigualável
ornamentação da arquitetura indiana. Depois, imensas extensões
de terra se estendiam a perder de vista, jungles onde não faltavam
nem as serpentes, nem os tigres espantados pelos apitos do trem, e, finalmente,
florestas, sulcadas pelo traçado da via, ainda povoadas pelos elefantes
que, com olho pensativo, viam passar o comboio com sua cabeleira de fumaça.
Durante esta manhã, além da estação de Malligaum,
os viajantes atravessaram esse território funesto, que foi tantas vezes
ensangüentado pelos seguidores da deusa Kali. Não muito longe
elevava-se Ellora e seus pagodes admiráveis, não longe a célebre
Aurungabad, a capital do feroz Aureng-Zeb, presentemente simples capital de
uma das províncias desmembradas do reino de Nizam. Era nesta província
que Feringhea, o chefe dos Thugs, o rei dos Estranguladores, exercia o seu
domínio. Estes assassinos, unidos em uma associação misteriosa,
estrangulavam, em honra da deusa da Morte, vítimas de todas as idades,
sem nunca derramarem sangue, e houve tempo em que não se podia revolver
nenhum ponto deste solo sem se encontrar um cadáver. O governo inglês
já conseguiu impedir tais mortes em uma proporção razoável,
mas a temível associação ainda existe e continua a funcionar.
Ao meio dia e meia, o trem parou na estação de Burhampour,
e Passepartout pôde procurar a peso de ouro um par de babuchas, ornamentadas
com pérolas falsas, que calçou com um sentimento de evidente
vaidade.
Os viajantes almoçaram rapidamente, e tornaram a partir para a estação
de Assurghur, depois de terem por instantes costeado a margem do Tapti, pequeno
rio que se vai lançar no golfo de Cambay, perto de Surat.
É oportuno dar a conhecer que pensamentos ocupavam então o
espírito de Passepartout. Até sua chegada a Bombaim, tinha acreditado
e pudera crer que ficariam por ali. Mas agora, desde que corria a todo o vapor
através da Índia, uma reviravolta se dera em seu espírito.
Sua natureza lhe retornava a galope. Reencontrava as idéias fantasistas
de sua juventude, levava a sério os projetos de seu patrão,
acreditava na realidade da aposta, conseqüentemente nesta volta ao mundo
e neste maximum de tempo, que era preciso não ultrapassar. Até
já começava a ficar inquieto com os atrasos possíveis,
com os acidentes que poderiam sobrevir no caminho. Sentia-se como que interessado
nesta maluquice, e estremecia ao pensar de que tinha podido comprometê-la
na véspera por sua imperdoável distração. Assim,
muito menos fleumático do que Mr. Fogg, estava muito mais inquieto.
Contava e recontava os dias decorridos, amaldiçoava as paradas do trem,
acusava-o de lentidão, e censurava in petto Mr. Fogg por não
ter prometido uma gratificação ao maquinista. Não sabia,
o bom moço, que o que era possível nos paquetes, não
o era nas estradas de ferro, onde a velocidade está regulamentada.
Ao cair da tarde, embrenharam-se nos desfiladeiros das montanhas de Sutpour,
que separam o território do Kandeish do de Bundelkund.
No dia seguinte, 22 de outubro, a uma pergunta de Sir Francis Cromarty,
Passepartout, tendo consultado seu relógio, respondeu que eram três
da manhã. E, com efeito, este famoso relógio, sempre regulado
pelo meridiano de Greenwich, que ficava quase a setenta e sete graus a oeste,
deveria estar atrasado, e efetivamente estava atrasado quatro horas.
Sir Francis retificou portanto a hora dada por Passepartout, ao qual fez
a mesma observação que este já tinha recebido de Fix.
Tentou fazê-lo compreender que deveria acertar o relógio a cada
novo meridiano, e que, como caminhavam constantemente para leste, isto é
à frente do sol, os dias eram mais curtos na razão de tantas
vezes quatro minutos quanto os graus percorridos. Foi inútil. Tenha
o teimoso rapaz compreendido ou não a observação do general
de brigada, obstinou-se em não adiantar seu relógio, que mantinha
invariavelmente pela hora de Londres. Mania inocente, afinal, e que não
poderia prejudicar ninguém.
Às oito da manhã, e a quinze milhas adiante da estação
de Rothal, o trem parou no meio de uma vasta clareira, cercada de alguns bungalows
e de cabanas de operários. O condutor do trem passou pela fileira dos
vagões dizendo: Os viajantes descem aqui.
Phileas Fogg olhou para sir Francis Cromarly, que pareceu não compreender
esta parada no meio de uma floresta de tamareiras e de cajueiros.
Passepartout, não menos surpreso, saltou para a via e voltou quase
que imediatamente exclamando: Senhor, não há mais estrada de
ferro! O que quer dizer? perguntou sir Francis Cromarty.
Quero dizer que o trem não continua.
O general de brigada desceu logo do vagão. Phileas Fogg seguiu-o,
sem se apressar. Os dois dirigiram-se ao condutor: Onde estamos? perguntou
Sir Francis Cromarty.
Na aldeia de Kholby, respondeu o condutor.
Paramos aqui? Sem dúvida. A estrada de ferro não está
acabada…
Como! não está acabada? Não! há ainda um trecho
de umas cinqüenta milhas a estabelecer entre este ponto e Alaabad, onde
a via recomeça.
Mas os jornais anunciaram a abertura completa do railway! Que quer, meu
oficial, os jornais se enganaram.
E vendem bilhetes de Bombaim a Calcutá! replicou Sir Francis Cromarty,
que começava a se esquentar.
Sem dúvida, respondeu o condutor, mas os viajantes sabem muito bem
que devem se fazer transportar de Kholby até Alaabad.
Sir Francis Cromarty estava furioso. Passepartout teria de bom grado batido
no condutor, que já não podia conduzir. Não ousava olhar
para seu patrão.
Sir Francis, disse simplesmente Mr. Fogg, nós vamos, se também
o quer, encontrar um meio de chegar a Alaabad.
Mr. Fogg, trata-se de um atraso absolutamente prejudicial aos seus interesses?
Não, Sir Francis, estava previsto.
O que! sabia que o caminho…
De modo algum, mas sabia que um obstáculo qualquer cedo ou tarde
surgiria no meu caminho. Ora, nada está comprometido. Tenho dois dias
de avanço para sacrificar. Há um vapor que parte de Calcutá
para Hong Kong dia 25, ao meio dia. Estamos ainda no dia 22, e chegaremos
a tempo em Calcutá.
Não havia nada a dizer frente a uma resposta dada com tão
completa segurança.
Era verdade que os trabalhos da estrada de ferro paravam naquele ponto.
Os jornais são como certos relógios que têm a mania de
adiantar, e haviam prematuramente anunciado a conclusão da linha. A
maioria dos viajantes conheciam esta interrupção da via, e,
ao descerem do trem, tinham se apoderado dos veículos de todo tipo
que havia na aldeia, palkigharis de quatro rodas, carretas puxadas por zebus,
espécie de bois com corcovas, carros de viagem semelhantes a pagodes
ambulantes, palanquins, pôneis, etc. Por isso Mr. Fogg e sir Francis
Cromarty, depois de procurarem por toda a aldeia, voltaram sem nada ter achado.
Irei a pé, disse Mr. Fogg.
Passepartout que então se aproximou de seu patrão, fez uma
careta significativa, considerando suas magníficas mas insuficientes
babuchas. Felizmente para ele, andara também à procura, e um
pouco hesitante: Senhor, disse ele, creio que encontrei um meio de transporte.
Qual? Um elefante! Um elefante que pertence a um índiano que mora
a cem passos daqui.
Vamos ver o elefante, respondeu Mr. Fogg.
Cinco minutos mais tarde, Phileas Fogg, sir Francis Cromarty e Passepartout
chegavam a uma choça próxima de um cercado fechado com altas
paliçadas. Na choça havia um indiano, e no cercado, um elefante.
Ao pedirem, o indiano introduziu Mr. Fogg e seus dois companheiros no cercado.
Ali, acharam-se na presença de um animal, meio domesticado, que o
seu proprietário criava, não para fazer dele uma besta de carga,
mas uma besta de combate. Para este fim, tinha começado a modificar
o caráter naturalmente manso do animal, de modo a conduzi-lo gradualmente
a esse paroxismo de raiva chamado “mutsh” na língua hindu,
nutrindo-o durante três meses com açúcar e manteiga. Este
tratamento pode parecer inadequado para se obter tal resultado, mas não
deixa de ser empregado com sucesso pelos criadores. Felizmente para Mr. Fogg,
o elefante em questão fora submetido a semelhante regime há
pouco tempo, e o “mutsh” ainda não se tinha declarado.
Kiouni era este o nome do animal podia, como todos os seus congêneres,
sustentar durante muito tempo uma marcha rápida, e, à falta
de outra montadura, Phileas Fogg resolveu servir-se dele.
Mas os elefantes são caros na Índia, onde começam a
se tornar raros. Os machos, que são os únicos que convêm
às lutas de circos, são extremamente procurados. Estes animais
só raramente se reproduzem em cativeiro; portanto só podem ser
obtido por meio da caça. Por isso são objeto de cuidados extremos,
e quando Mr. Fogg perguntou ao indiano se queria alugar seu elefante, o indiano
recusou no ato.
Fogg insistiu e ofereceu pela besta um preço excessivo, dez libras
(250 F) por hora. Recusa. Vinte libras? Nova recusa. Quarenta libras? Sempre
recusa. Possepartout dava pulos a cada aumento de preço. Mas o indiano
não se deixava tentar.
Era uma bela quantia, contudo. Supondo-se que o elefante gastasse quinze
horas até Alaabad, seriam seiscentas libras (15.000 F) que renderia
ao proprietário.
Phileas Fogg, sem se animar de modo algum, propôs então ao
indiano comprar-lhe a besta, e ofereceu de cara mil libras (25.000 F).
O indiano não queria vender! Talvez o velhaco farejasse algum negócio
magnífico.
Sir Francis Cromarty chamou Mr. Fogg à parte e pediu-lhe que refletisse
antes de prosseguir. Phileas Fogg respondeu ao seu companheiro que não
tinha por costume agir sem reflexão, que afinal de contas se tratava
de uma aposta de vinte mil libras, que este elefante lhe era necessário,
e que, mesmo que tivesse de pagar vinte vezes seu valor, teria este elefante.
Mr. Fogg foi ter outra vez com o indiano, cujos olhos pequeninos, iluminados
pela cobiça, deixavam perceber que para ele aquilo era apenas uma questão
de preço. Phileas Fogg ofereceu sucessivamente mil e duzentas libras,
depois mil e quinhentas, depois mil e oitocentas, afinal duas mil libras (50.000
F). Passepartout, tão corado normalmente, estava pálido de emoção.
A duas mil libras, o indiano se rendeu.
Pelas minhas babuchas, exclamou Passepartout, isto é que é
dar um bom preço à carne de elefante! Concluída a transação,
só faltava arranjar um guia. Foi mais fácil. Um jovem Parsi,
de fisionomia inteligente, ofereceu seus serviços. Mr. Fogg aceitou
e prometeu-lhe uma boa remuneração, o que só poderia
aumentar sua inteligência.
O elefante foi trazido e equipado sem demora. O Parsi conhecia seu ofício
de “mahout” ou cornaca. Cobriu-lhe o lombo com uma espécie
de tapete, e pôs-lhe de cada lado dos flancos uma espécie de
cesto bem pouco confortáveis.
Phileas Fogg pagou ao indianos com bank-notes que foram extraídas
da famosa sacola. Parecia realmente que eram retiradas das entranhas de Passepartout.
Depois, Mr. Fogg ofereceu a Sir Francis Cromarty transportá-lo até
a estação de Alaabad. O general de brigada aceitou. Um viajante
a mais não era coisa que fatigasse o gigantesco animal.
Víveres foram comprados em Kholby. Sir Francis Cromarty tomou lugar
num dos cestos, Phileas Fogg no outro. Passepartout se pôs de cócoras
no lombo, entre seu patrão e o general de brigada. O Parsi empoleirou-se
no pescoço do elefante e às nove horas o animal, deixando a
aldeia, embrenhou-se na espessa floresta de palmeiras.
CAPÍTULO XII
EM QUE PHILEAS FOGG E SEUS COMPANHEIROS SE AVENTURAM ATRAVÉS DAS
FLORESTAS DA ÍNDIA, E O QUE SE SEGUE
O guia, para encurtar a distância a percorrer, deixou à sua
direita o traçado da via cujos trabalhos estavam em execução.
Este traçado, muito contrariado pelas caprichosas ramificações
dos montes Víndias, não seguia o caminho mais curto, que Phileas
Fogg tinha interesse em tomar. O Parsi, muito familiarizado com os caminhos
e as sendas daquela região, pretendia ganhar uma vintena de milhas
cortando caminho pela floresta, e todos confiaram nele.
Phileas Fogg e Sir Francis Cromarty, enfurnados até o pescoço
em seus respectivos cestos, eram fortemente sacudidos pelo trote pesado do
elefante, ao qual seu mahout imprimia um andamento rápido. Mas eles
suportavam a situação com a mais britânicas das fleumas,
conversando, porém, pouco, e mal se vendo um ao outro.
Quanto a Passepartout, postado sobre o dorso da besta e diretamente submetido
ao golpes e contragolpes, cuidava, conforme uma recomendação
de seu patrão, de não colocar a língua entre os dentes,
senão ela seria cortada. O bom moço, às vezes arremessado
para o pescoço do elefante, às vezes para a garupa, fazia volteios,
como um clown sobre um trampolim. Mas se divertia, rindo entre os seus saltos
de carpa, e, de tempo em tempo, tirava da sacola um pedaço de açúcar,
que o inteligente Kiouni pegava com a extremidade da tromba, sem interromper
por um momento seu trote regular.
Depois de duas horas de marcha, o guia parou o elefante e lhe deu uma hora
de repouso. O animal devorou ramos e arbustos, depois de ter matado a sede
num charco próximo. Sir Francis Cromarty não se queixou desta
parada. Estava quebrado. Mr. Fogg parecia sentir-se tão bem disposto
como se tivesse acabado de sair de seu leito.
Mas ele é de ferro! disse o general de brigada contemplando-o com
admiração.
De ferro forjado! respondeu Passepartout, entretido no preparo de um almoço
sumário.
Ao meio dia, o guia deu o sinal de partida. A região tomou logo um
aspecto muito selvagem. Às grandes florestas sucederam-se moitas de
tamarindos e de palmeiras anãs, depois vastas planícies áridas,
eriçadas de arbustos magros e semeadas de grandes blocos de sienitos.
Toda esta parte do alto Bundelkund, pouco freqüentada por viajantes,
é habitada por uma população fanática, endurecida
nas práticas mais terríveis da religião hindu. A dominação
dos Ingleses não pôde se estabelecer regularmente sobre um território
submetido à influencia dos rajás, que eram difíceis de
alcançar em seus inacessíveis refúgios dos Víndias.
Várias vezes, avistaram bandos de índianos ferozes, que faziam
um gesto de cólera ao verem passar o rápido quadrúpede.
Entretanto o Parsi os evitava tanto quanto possível, considerando-os
como gente ruim de se encontrar. Poucos animais foram vistos durante esta
jornada, apenas alguns macacos, que fugiam com mil contorsões e caretas
com as quais Passepartout se divertiu muito.
Um pensamento entre muitos outros inquietava o moço. O que Mr. Fogg
faria com o elefante, quando chegasse à estação de Alaabad?
Levá-lo-ia? Impossível! O preço do transporte somado
ao da aquisição fariam dele um animal ruinoso. Vendê-lo-ia,
restituir-lhe-ia a liberdade? Esta estimável besta bem merecia que
tivessem alguns cuidados com ela. Se, por acaso, Mr. Fogg lho desse de presente,
Passepartout ver-se-ia muito embaraçado. Isso não deixava de
preocupá-lo.
Às oito horas da noite, a principal cadeia dos Víndias havia
sido vencida, e os viajantes pararam ao pé da vertente setentrional,
em um bungalow em ruínas.
A distância percorrida durante esta jornada tinha sido de umas vinte
e cinco milhas, e ainda faltava outro tanto para atingir a estação
de Alaabad.
A noite estava fria. No interior do bungalow, o Parsi acendeu um fogo com
galhos secos, cujo calor foi muito apreciado. A ceia se compôs das provisões
compradas em Kholby. Os viajantes comeram como pessoas fatigadas e moídas.
A conversação, que começou por algumas frases entrecortadas,
terminou bem depressa em roncos sonoros. O guia ficou vigiando perto de Kiouni,
que adormeceu em pé, apoiado no tronco de uma grande árvore.
Nenhum incidente marcou esta noite. Alguns rugidos de leopardos e de panteras
perturbaram às vezes o silêncio, misturados com os gritos agudos
de macacos. Mas os carnívoros limitaram-se aos gritos, e não
fizeram nenhuma demonstração hostil contra os hóspedes
do bungalow. Sir Francis Cromarty dormiu pesadamente como bravo militar prostrado
de fadiga. Passepartout, em um sono agitado, recomeçou em sonhos as
cabriolas da véspera. Quanto a Mr. Fogg, repousou tão tranqüilamente
como se estivesse em sua tranqüila casa de Saville Row.
Às seis da manhã, retomaram a caminhada. O guia esperava chegar
à estação de Alaabad naquela mesma noite. Deste modo,
Mr. Fogg só perderia parte das quarenta e oito horas economizadas desde
o começo da viagem.
Desceram as últimas rampas dos Víndias. Kiouni retomara o
seu andamento rápido. Por volta do meio dia, o guia contornou a aldeia
de Kallenger, situada sobre o Cani, um dos sub-afluentes do Ganges. Evitava
sempre os lugares habitados, sentindo-se em maior segurança nestas
campinas desertas, que marcam as primeiras depressões da bacia do grande
rio. A estação de Alaabad ficava a menos de doze milhas a nordeste.
Fizeram alto sob uma touceira de bananeiras, cujos frutos, tão saudáveis
quanto o pão, “tão suculentos como o creme”, dizem
os viajantes, foram extremamente apreciados.
Às duas horas, o guia entrou sob a cobertura de uma espessa floresta,
que deveria atravessar por algumas milhas. Preferia viajar assim ao abrigo
dos bosques. Em todo caso, não houvera até então nenhum
encontro desagradável, e a viagem parecia dever se realizar sem acidente,
quando o elefante, dando alguns sinais de inquietação, subitamente
parou.
Eram quatro horas então.
Que é que há? perguntou Sir Francis Cromarty, que levantou
a cabeça acima de seu cesto.
Não sei, meu oficial, respondeu o Parsi, tentando ouvir melhor um
murmúrio confuso que passava sob a espessa ramagem.
Alguns instantes depois, este murmúrio ficou mais audível.
Dir-se-ia um concerto, ainda muito distante, de vozes humanas e instrumentos
de cobre.
Passepartout era todo olhos, todo orelhas. Mr. Fogg aguardava pacientemente,
sem pronunciar uma palavra.
O Parsi saltou para o chão, amarrou o elefante numa árvore
e mergulhou em uma touceira espessa. Alguns momentos depois voltou, dizendo:
Uma procissão de brâmanes que se dirige para este lado. Se for
possível, evitemos ser vistos.
O guia desamarrou o elefante e conduziu-o para um matagal fechado, recomendando
aos viajantes que não se apeassem. Ele próprio se conservou
pronto para trepar rapidamente na montaria, se a fuga se tornasse necessária.
Mas pensava que a tropa dos fiéis passaria sem o perceber, pois que
a espessura da folhagem o dissimulava inteiramente.
O barulho discordante de vozes e de instrumentos se aproximava. Cantos monótonos
se misturavam ao som dos tambores e dos címbalos. Logo a frente da
procissão apareceu sob as árvores, a uns cinqüenta passos
da posição ocupada por Mr. Fogg e seus companheiros. Eles distinguiam
facilmente através dos ramos o curioso pessoal desta cerimônia
religiosa.
Na primeira fila vinham sacerdotes com mitras na cabeça e vestidos
com longas batas muito ornamentadas. Estavam cercados por homens, mulheres
e crianças, que faziam ouvir uma espécie de reza fúnebre,
interrompida a intervalos iguais por toques de tantãs e de címbalos.
Atrás deles, sobre um carro de grandes rodas, no qual os raios e os
eixos pareciam serpentes entrelaçadas, apareceu uma figura horrível,
puxada por duas parelhas de zebus ricamente cobertos com capas. Esta estátua
tinha quatro braços; o corpo colorido de um vermelho escuro, os olhos
arregalados, os cabelos revoltos, a língua pendente, os lábios
tingidos com henna e bétele. Em seu pescoço enrolava-se um colar
de cabeças de mortos, e em seus flancos um cinturão de mãos
decepadas. Ela se mantinha em pé sobre um gigante caído ao qual
faltava a cabeça.
Sir Francis Cromarty reconheceu esta estátua.
A deusa Kali, murmurou, a deusa do amor e da morte.
Da morte, admito, mas do amor, jamais! disse Passepartout. Mulher horrorosa!
O Parsi fez sinal para que se calasse.
Em volta da estátua agitava-se, contorcia-se, convulsionava-se um
grupo de velhos faquires, pintados com listras ocre, cobertos de incisões
cruciais que deixavam escapar seu sangue gota a gota, energúmenos estúpidos
que, nas grandes cerimônias hindus, se precipitam ainda sob as rodas
do carro de Jaggernaut.
Atrás deles, alguns brâmanes, em toda suntuosidade de seu trajes
orientais, arrastavam uma mulher que mal conseguia ficar em pé.
Esta mulher era jovem, branca como uma Européia. Sua cabeça,
seu pescoço, seus ombros, suas orelhas, seus braços, suas mãos,
seus artelhos estavam sobrecarregados de jóias, colares, braceletes,
brincos e anéis. Uma túnica com filetes de ouro, recoberta com
um tecido muito fino, moldava os contornos de seu corpo.
Atrás desta mulher contraste violento para os olhos , guardas armados
com sabres desembainhados, colocados em suas cinturas e longas pistolas com
encrustações, transportavam um cadáver sobre um palanquim.
Era o cadáver de um velho, revestido com seus opulentos trajes de
rajá, trazendo, como em vida, o turbante bordado de pérolas,
a veste tecida de seda e ouro, o cinto de cachemira com diamantes, e suas
magníficas armas de príncipe indiano.
Depois os músicos e uma retaguarda de fanáticos, cujos gritos
cobriam às vezes o ensurdecedor barulho dos instrumentos, fechavam
o cortejo.
Sir Francis Cromarty olhava toda esta pompa com um ar singularmente entristecido,
e voltando-se para o guia: Um sati! disse.
O Parsi fez um sinal afirmativo e pôs um dedo sobre seus lábios.
A longa procissão desfilou lentamente sob as árvores, e logo
suas últimas filas desapareceram no seio da floresta.
Pouco a pouco, os cantos se extinguiram. Havia ainda alguns lampejos de
gritos ao longe, e afinal a todo este tumulto sucedeu um profundo silêncio.
Mr. Fogg tinha ouvido a palavra, pronunciada por Sir Francis Cromarty, e
assim que a procissão desapareceu: O que é um sati? perguntou.
Um sati, senhor Fogg, respondeu o general de brigada, é um sacrifício
humano, mas um sacrifício voluntário. Esta mulher que acabou
de ver será queimada amanhã às primeiras horas do dia.
Ah! malditos! exclamou Passepartout, que não pôde conter este
grito de indignação.
E o cadáver? perguntou Mr. Fogg.
É o do príncipe, seu marido, respondeu o guia, um rajá
independente do Bundelkund.
Como! retomou Mr. Fogg, sem que sua voz traísse a menor emoção,
estes costumes bárbaros subsistem na Índia e os ingleses não
puderam destruí-los? Na maior parte da Índia, respondeu Sir
Francis Cromarty, esses sacrifícios já não acontecem
mais, mas não temos nenhuma influência nas regiões selvagens,
e principalmente aqui no território do Bundelkund. Toda a vertente
setentrional dos Víndias é teatro de assassinatos e de pilhagens
incessantes.
Coitada! murmurou Passepartout, queimada viva! Sim, continou o general de
brigada, queimada, e se não fosse, nem podem imaginar a que miserável
condição se veria reduzida por seus próximos. Cortavam-lhe
os cabelos, sustentavam-na apenas com alguns punhados de arroz, repeliam-na,
seria considerada como uma criatura imunda e morreria em algum canto como
um cão sarnento. É também a perspectiva desta medonha
existência que leva muitas vezes essas infelizes ao suplício,
muito mais que o amor ou o fanatismo religioso. Às vezes, contudo,
o sacrifício é realmente voluntário, e é necessária
a intervenção enérgica do governo para o impedir. Assim,
há alguns anos, eu residia em Bombaim, quando uma jovem viúva
veio pedir ao governador autorização para se queimar viva com
o corpo do marido. Como podem imaginar, o governador recusou. Então
a viúva deixou a cidade, refugiou-se junto a um rajá independente,
e lá consumou seu sacrifício.
Durante a narrativa do general de brigada, o guia sacudia a cabeça,
e, quando o relato acabou: O sacrifício que acontecerá amanhã
ao nascer do dia não é voluntário, disse.
Como sabe? É uma história que todo mundo conhece no Bundelkund,
respondeu o guia.
Mas esta infortunada não parecia fazer nenhuma resistência,
observou Sir Francis Cromarty.
É porque a inebriaram com fumaça de cânhamo e de ópio.
Mas para onde a levam? Para o pagode de Pillaji, a duas milhas daqui. Lá,
passará a noite esperando a hora do sacrifício.
E o sacrifício acontecerá?…
Amanhã, ao raiar do sol.
Depois desta resposta, o guia tirou o elefante da mata fechada e subiu para
o pescoço do animal. Mas no momento em que ia incitá-lo com
um assobio particular, Mr. Fogg o deteve, e, dirigindo-se a Sir Francis Cromarty:
E se salvássemos esta mulher? disse.
Salvar esta mulher, senhor Fogg!… exclamou o general de brigada.
Tenho ainda doze horas de avanço. Posso consagrá-las a isso.
Ora, ora! Mas é um homem de coração! disse Sir Francis
Cromarty.
Às vezes, respondeu simplesmente Phileas Fogg. Quando tenho tempo.
CAPÍTULO XIII
EM QUE PASSEPARTOUT PROVA MAIS UMA VEZ QUE A FORTUNA SORRI AOS AUDACIOSOS
O plano era audacioso, eivado de dificuldados, impraticável talvez.
Mr. Fogg iria arriscar sua vida, ou pelo menos sua liberdade, e assim a realização
de seus projetos, mas não hesitou. Encontrou, ademais, em Sir Francis
Cromarty um auxiliar decidido.
Quanto a Passepartout, estava pronto, podiam dispor dele. A idéia
do patrão o exaltava. Sentia um coração, uma alma sob
aquela aparência gélida. Começava a amar Phileas Fogg.
Faltava o guia. Que lado tomaria? Não estaria inclinado a favor dos
hindus? Na ausência de sua colaboração, era preciso pelo
menos contar com a sua neutralidade.
Sir Francis Cromarty perguntou-lhe diretamente.
Meu oficial, respondeu o guia, sou Parsi, e esta mulher é Parsi.
Conte comigo.
Muito bem, guia, respondeu Mr. Fogg.
Entretanto, saibam bem, retomou o Parsi, não arriscamos apenas a
vida, mas a suplícios horríveis, se formos pegos. Por isso,
reflitam.
Está refletido, respondeu Mr. Fogg. Penso que devemos esperar a noite
para agir? Penso o mesmo, respondeu o guia.
Este bravo Indiano deu então alguns detalhes sobre a vítima.
Era uma Indiana famosa por sua beleza, de raça parsi, filha de ricos
negociantes de Bombaim. Tinha recebido naquela cidade uma educação
absolutamente inglesa, e por suas maneiras, por sua instrução,
qualquer um a creria Européia. Chamava-se Aouda.
Orfã, foi casada contra a vontade com o velho rajá do Bundelkund.
Três meses depois, ficou viúva. Sabendo a sorte que a esperava,
fugiu, foi logo apanhada, e os parentes do rajá, que tinham interesse
em sua morte, destinaram-na a este suplício do qual parecia não
poder escapar.
Este relato só reforçou Mr. Fogg e seus companheiros em sua
generosa resolução. Foi decidido que o guia dirigiria o elefante
para o pagode de Pillaji, do qual se aproximaria tanto quanto possível.
Cerca de meia hora depois, pararam sob um arvoredo, a quinhentos passos
do pagode, que não podiam avistar; mas o alarido dos fanáticos
se fazia ouvir distintamente.
Discutiram então os meios de chegar perto da vítima. O guia
conhecia este pagode de Pillaji, no qual afirmou que a jovem estava aprisionada.
Poderiam penetrar por uma das portas, quando todo o bando estivesse mergulhado
no sono do entorpecimento, ou seria preciso fazer um buraco na muralha? Isso
só poderia ser decidido no local e na hora. Mas do que não havia
nenhuma dúvida era que o resgate deveria ser realizado naquela mesma
noite, e não quando, ao raiar do dia, a vítima seria conduzida
ao suplício. Nesse instante, nenhuma intervenção humana
seria capaz de a salvar.
Mr. Fogg e os seus companheiros esperaram a noite. Assim que escureceu,
por volta das seis horas, resolveram fazer um reconhecimento em volta do pagode.
Os últimos gritos dos faquires então se extinguiam. Seguindo
seu costume, estes Indianos deviam estar mergulhados no pesado entorpecimento
do “hang” ópio líquido, misturado com uma infusão
de cânhamo e seria talvez possível se esgueirar por entre eles
até o templo.
O Parsi, guiando Mr. Fogg, Sir Francis Cromarty e Passepartout, avançou
sem barulho através da floresta. Depois de rastejarem dez minutos sob
os ramos, chegaram à borda de um pequeno rio, e ali, à luz de
tochas de ferro na ponta das quais ardiam resinas, distinguiram um monte de
madeira empilhada. Era a pira, feita de precioso sândalo, e já
impregnado com um óleo perfumado. Em sua parte superior repousava o
corpo embalsamado do rajá, que deveria ser queimado ao mesmo tempo
que sua viúva. A cem passos desta pira elevava-se o pagode, cujos minaretes
atravessavam na sombra a copa das árvores.
Venham! disse o guia em voz baixa.
E, com precaução redobrada, seguido por seus companheiros,
esgueirou-se silenciosamente pelo matagal.
O silêncio só era interrompido pelo murmúrio do vento
nos galhos.
Logo o guia parou na extremidade de uma clareira. Algumas resinas iluminavam
o lugar. O solo estava juncado de grupos que dormiam, prostrados pelo entorpecimento.
Parecia um campo de batalha coberto de mortos. Homens, mulheres e crianças
todos confundidos. Alguns entorpecidos ainda roncavam, aqui e ali.
Ao fundo, entre as árvores, divisava-se distintamente o templo de
Pillaji. Mas, para grande desapontamento do guia, os guardas do rajá,
iluminados por tochas fuliginosas, vigiavam as portas e passeavam de um lado
para outro, o sabre desembainhado. Poderiam supor que no interior os sacerdotes
também vigiassem.
O Parsi não foi mais longe. Reconhecera a impossibilidade de forçar
a entrada do templo, e fez recuar seus companheiros.
Phileas Fogg e Sir Francis Cromarty tinham compreendido como ele que nada
poderiam tentar por este lado.
Pararam e se consultaram em voz baixa.
Esperemos, disse o general de brigada; são só oito horas ainda,
e é possível que estes guardas sucumbam também ao sono.
É possível,com efeito, respondeu o Parsi.
Phileas Fogg e os seus companheiros estenderam-se pois ao pé de uma
árvore e esperaram.
O tempo lhes pareceu longo! O guia deixava-os às vezes e ia observar
a orla do bosque. Os guardas do rajá continuavam a velar à luz
das tochas, e uma vaga luz filtrava através das janelas do pagode.
Esperaram assim até à meia noite. A situação
não mudou. Mesma vigilância do lado de fora. Era evidente que
não se podia contar com o sono dos guardas. O entorpecimento do hang
lhes tinha sido provavelmente poupado. Era preciso portanto agir de outro
modo e penetrar por uma abertura feita nas muralhas do pagode. Restava a questão
de saber se os sacerdotes vigiavam junto à sua vítima com tanto
zelo como os soldados à porta do templo.
Após uma última conversa, o guia disse que estava pronto para
partir. Mr. Fogg, Sir Francis e Passepartout seguiram-no. Deram uma volta
bem longa, para chegarem ao pagode pelos fundos.
Por volta de meia noite e meia, chegaram ao pé dos muros sem terem
encontrado ninguém. Nenhuma vigilância tinha sido estabelecida
daquele lado, mas na verdade não havia nem portas nem janelas.
A noite estava sombria. A lua, então em seu último quadrante,
deixava apenas o horizonte, encoberto por densas nuvens. A altura das árvores
aumentava ainda mais a escuridão.
Mas não bastava ter chegado ao pé das muralhas, era preciso
ainda fazer uma abertura. Para esta operação Phileas Fogg e
os seus companheiros tinham apenas seus canivetes. Felizmente, as paredes
do templo eram feitas de uma mistura de tijolo e madeira que não deveria
ser difícil furar. Tirado o primeiro tijolo, os outros vieram facilmente.
Puseram mãos à obra, fazendo o menor ruído possível.
O Parsi de um lado, Passepartout do outro, trabalhavam para arrancar os tijolos,
de modo a obter uma abertura com dois pés de largura.
O trabalho avançava, quando um grito se fez ouvir no interior do
templo, e quase em seguida outros gritos responderam do lado de fora.
Passepartout e o guia interromperam o trabalho. Teriam sido supreendidos?
Seria um sinal de despertar? A prudência mais elementar recomendaria
que se afastassem o que fizeram ao mesmo tempo que Phileas Fogg e sir Francis
Cromarty. Esconderam-se novamente sob a cobertura do bosque, esperando que
o alerta, supondo-se que fosse um, se dissipasse, e prontos, neste caso, a
recomeçar a operação.
Mas contratempo funesto guardas apareceram no fundo do pagode, e postaram-se
ali impedindo qualquer aproximação.
Seria difícil descrever o desapontamento destes quatro homens, detidos
em sua obra. Agora, que não poderiam mais chegar até a vítima,
como a salvariam? Sir Francis Cromarty mordia os punhos. Passepartout estava
fora de si, e o guia tinha alguma dificuldade em contê-lo. O impassível
Fogg aguardava sem manifestar seus sentimentos.
Só nos resta partir? perguntou o general de brigada em voz baixa.
Só nos resta partir, respondeu o guia.
Esperem, disse Mr. Fogg. Basta que eu esteja amanhã em Alaabad antes
do meio dia.
Mas o que espera? respondeu Sir Francis Cromarty. Em algumas horas o dia
vai aparecer, e…
A oportunidade que nos escapa pode voltar a se apresentar no momento supremo.
O general de brigada teria desejado poder ler nos olhos de Phileas Fogg.
Com o que contava este frio Inglês? Quereria, no momento do suplício,
lançar-se em direção à jovem e arrancá-la
abertamente de seus algozes? Seria uma loucura, e como admitir que este homem
fosse louco a tal ponto? Apesar de tudo, Sir Francis Cromarty consentiu em
esperar até o desenlace daquela terrível cena. Todavia, o guia
não deixou os seus companheiros no lugar onde se tinham refugiado,
levou-os para a parte anterior da clareira. Dali, ocultos por algumas árvores,
podiam observar os grupos adormecidos.
Enquanto isso, Passepartout, empoleirado nos primeiros galhos de uma árvore,
ruminava uma idéia que havia a princípio atravessado seu espírito
como um relâmpago, e que acabara por incrustar-se em seu cérebro.
Havia começado por se dizer: Que loucura! e agora repetia: Porque
não, apesar de tudo? É uma probabilidade, talvez a única,
e com uns brutos assim!…
Em todo caso, Passepartout não elaborou este pensamento, mas não
tardou a deslizar com a agilidade de uma serpente sobre os ramos baixos da
árvore cuja extremidades se curvava para o solo.
As horas corriam, e logo algumas tonalidades menos sombrias anunciaram a
aproximação do dia. Contudo, a escuridão era ainda profunda.
Chegara o momento. Houve como que uma resurreição daquela
multidão adormecida. Os grupos se animaram. Batidas de tantãs
ressoaram. Cantos e gritos ecoaram novamente. Chegara a hora em que a desafortunada
iria morrer.
Com efeito, as portas de pagode se abriram. Uma luz mais viva escapou do
interior. Mr. Fogg e Sir Francis Cromarty puderam divisar a vítima,
vivamente iluminada, que dois sacerdotes arrastavam para fora. Pareceu-lhes
mesmo que, sacudindo o entorpecimento por um supremo instinto de conservação,
a infeliz tentava escapar de seus verdugos. O coração de sir
Francis Cromarty pulou, e em um movimento compulsivo, agarrando na mão
de Phileas Fogg, sentiu que aquela mão tinha uma navalha aberta.
Neste momento, a multidão moveu-se. A jovem recaíra no torpor
provocado pelas fumaças do cânhamo. Passou rodeada pelos faquires,
que a escoltavam com suas vociferações religiosas.
Phileas Fogg e os seus companheiros, confundindo-se com as últimas
fileiras da multidão, seguiram-na.
Dez minutos depois, chegaram à beira do rio e pararam a menos de
cinqüenta passos da pira, sobre a qual estava estendido o corpo do rajá.
Na semi obscuridade, viram a vítima absolutamente inerte, estendida
aos pés do cadáver de seu esposo.
Depois uma tocha foi aproximada e a madeira, impregnada de óleo,
logo se inflamou.
Neste momento, Sir Francis Cromarty e o guia contiveram Phileas Fogg, que
num momento de generosa loucura, se lançava em direção
à fogueira…
Mas Phileas Fogg já os havia repelido, quando a cena subitamente
mudou. Um grito de terror se elevou. Toda aquela multidão se prostrou
por terra, assombrada.
O velho rajá não estava, então, morto, porque o viram
erguer-se de repente como um fantasma, levantar a jovem em seus braços,
descer da pira no meio de turbilhões de fumo que lhe davam uma aparência
espectral.
Os faquires, os guardas, os sacerdotes, tomados por súbito terror,
estavam lá, face sobre a terra, sem se atreverem a levantar os olhos
e contemplar um tal prodígio! A vítima inanimada passou carregada
por braços vigorosos que a levavam, e sem que parecesse lhes pesar.
Mr. Fogg e Sir Francis Cromarty tinham ficado de pé. O Parsi curvara
a cabeça, e Passepartout, sem dúvida, não estaria menos
estupefato!…
O ressuscitado chegou perto do local onde estavam Mr. Fogg e Sir Francis
Cromarty, e aí, com voz grave: Fujamos! disse.
Era Passepartout em pessoa que deslizara até a pira no meio da fumaça
espessa! Era Passepartout que, aproveitando a escuridão ainda profunda,
tinha arrancado a jovem à morte! Era Passepartout que, desempenhando
o seu papel com uma audaciosa felicidade, passara incólume no meio
do assombro geral! Um instante depois, todos os quatro desapareciam na floresta,
e o elefante os transportava num trote rápido. Mas gritos, clamores
e mesmo uma bala, que atravessou o chapéu de Phileas Fogg, fez-lhes
saber que o logro tinha sido descoberto.
Com efeito, sobre a pira em chamas distinguia-se agora o corpo do velho
rajá. Os sacerdotes, saídos de seu terror, tinham compreendido
que um rapto acabara de se consumar.
Imediatamente tinham se precipitado na floresta. Os guardas os tinham seguido.
Fizeram uma descarga, mas os raptores fugiam rapidamente, e, em pouco tempo,
achavam-se fora do alcance das balas e das flechas.
CAPÍTULO XIV
EM QUE PHILEAS FOGG DESCE TODO O ADMIRÁVEL VALE DO GANGES SEM
SEQUER PENSAR EM VÊ-LO
O arrojado rapto havia vingado. Uma hora depois, Passepartout ria ainda de
seu sucesso. Sir Francis Cromarty havia apertado as mãos do intrépido
moço. O patrão lhe havia dito: Bom o que, na boca deste gentleman,
equivalia a uma alta aprovação. Ao que Passepartout respondeu
que toda a honra da empreitada pertencia a seu patrão. Para ele, só
tinha tido uma idéia maluca, e ria ao pensar que, durante alguns instantes,
ele, Passepartout, antigo ginasta, ex-sargento de bombeiros, fora o viúvo
de uma mulher encantadora, um velho rajá embalsamado! Quanto à
jovem indiana, nem tinha tido consciência do que se passara. Embrulhada
nas mantas de viagem, repousava sobre um dos cestos.
Enquanto isso o elefante, guiado com extrema segurança pelo Parsi,
corria rapidamente pela floresta ainda obscura. Uma hora após ter deixado
o pagode de Pillaji, lançava-se através de uma imensa planície.
Às sete horas, fizeram alto. A jovem continuava ainda em completa prostração.
O guia deu-lhe alguns goles de água e de brandy; mas a influência
entorpecedora que a atacara deveria se prolongar por algum tempo ainda.
Sir Francis Cromarty, que conhecia os efeitos do entorpecimento produzido
pela inalação dos vapores do cânhamo, não se inquietava.
Mas se o restabelecimento da jovem indiana não oferecia dúvida
ao espírito do general de brigada, este mostrava-se menos seguro quanto
ao futuro. Não hesitou em dizer a Phileas Fogg que se Mrs. Aouda ficasse
na Índia, inevitavelmente recairia nas mãos dos seus verdugos.
Estes energúmenos encontravam-se por toda a península, e, com
certeza, a despeito da polícia inglesa, saberiam reaver a sua vítima,
estivesse ela em Madras, em Bombaim, em Calcutá. E Sir Francis Cromarty
citava, em apoio do que dizia, um fato da mesma natureza que se passara recentemente.
Na sua opinião, a jovem só ficaria verdadeiramente em segurança
depois de ter deixado a Índia.
Phileas Fogg respondeu que tomaria estas observações em conta
e que o avisaria.
Pelas dez horas, o guia anunciou a estação de Alaabad. Ali
continuava a via interrompida da estrada de ferro, cujos trens transpõem,
em menos de um dia e uma noite, a distância que separa Alaabad de Calcutá.
Phileas Fogg deveria portanto chegar a tempo para pegar o paquete que só
partiria no dia seguinte, 25 de outubro, ao meio dia, para Hong Kong.
A jovem foi depositada em um quarto de estação. Passepartout
foi encarregado de ir comprar para ela diversos objetos de toilette, vestido,
chale, peles, etc., o que achasse. Seu patrão abria-lhe um crédito
ilimitado.
Passepartout partiu em seguida e percorreu as ruas da cidade. Alaabad, a
cidade de Deus, é uma das mais veneradas da Índia, por ter sido
edificada na confluência de dois rios sagrados, o Ganges e o Jumna,
cujas águas atraem os peregrinos de toda a península. Sabe-se
ademais que, segundo as lendas do Ramayana, o Ganges tem a sua nascente no
céu, de onde, graças a Brama, desce para a terra.
Fazendo suas compras, Passepartout também viu a cidade, outrora defendida
por um forte magnífico que se tornou uma prisão do Estado. Nem
comércio, nem indústria nesta cidade, outrora industrial e comercial.
Passepartout, que em vão procurava uma loja de modas, como se estivesse
na Regent Street a alguns passos da Farmer e Co., só encontrou em um
revendedor, velho judeu dificultoso, os objetos que precisava, um vestido
de tecido escocês, um grande casaco, e uma magnífica pele de
lontra pela qual não hesitou em pagar setenta e cinco libras (1.875
F). Depois, todo triunfante, voltou para a estação.
Mrs. Aouda começava a voltar a si. A influência a que os sacerdotes
de Pillaji a tinham submetido dissipava-se pouco a pouco, e seus lindos olhos
recuperavam toda sua doçura indiana.
Quando o rei-poeta, Uçaf Uddaul, celebra os encantos da rainha de
Alméhnagara, exprime-se assim:
Os seus cabelos reluzentes, regularmente divididos ao meio, emolduram-lhe
os contornos harmoniosos de suas faces delicadas e alvas, cintilantes de lustre
e de frescor. Suas sobrancelhas de ébano têm a forma e o poder
do arco de Kama, deus do amor, e sob os longos cílios sedosos, na pupila
negra de seus grandes olhos límpidos, navegam como nos lagos sagrados
do Himalaia, os reflexos mais puros da luz celeste. Finos, iguais e brancos,
seus dentes resplandecem entre seus lábios sorridentes, como gotas
de orvalho no seio entreaberto de uma flor de romã. Suas orelhas pequenas
de curvas siméetricas, suas mãos rosadas, seus pequenos pés
arqueados e tenros como os brotos do lotus, brilham com o luzir das mais belas
pérolas de Ceilão, dos mais belos diamantes de Golconda. Sua
cintura delgada e flexível, que basta uma mão para abraçar,
realça a elegante curva dos seus rins arredondados rins e a riqueza
de seu busto onde a juventude em flor guarda seus mais perfeitos tesouros;
e, sob as sedosas dobras de sua túnica, parece ter sido modelada em
pura prata pela mão divina de Vicvacarma, o eterno estatuário.
Mas, sem toda esta amplificação, basta dizer que Mrs. Aouda,
a viúva do rajá do Bundelkund, era uma mulher encantadora em
toda acepção européia da palavra. Falava inglês
com grande pureza, e o guia não exagerara em nada ao afirmar que esta
jovem Parsi havia sido transformada pela educação.
Enquanto isso o trem ia deixar a estação de Alaabad. O Parsi
esperava. Mr. Fogg pagou-lhe o salário conforme o combinado, nem um
farthing a mais. Isto surpreendeu um pouco Passepartout, que sabia quanto
seu patrão devia à dedicação do guia. O Parsi
tinha, com efeito, arriscado voluntariamente sua vida no caso de Pillaji,
e se, mais tarde, os índianos viessem a capturá-lo, dificilmente
escaparia de sua vingança.
Restava também a questão de Kiouni. Que fariam com um elefante
comprado tão caro? Mas Phileas Fogg já tinha tomado uma decisão.
Parsi, disse ao guia, tu fostes serviçal e dedicado. Paguei teu serviço,
mas não tua dedicação. Queres este elefante? É
teu.
Os olhos do guia brilharam.
É uma fortuna que Vossa Honra me dá! exclamou.
Aceita, guia, respondeu Mr. Fogg, e serei ainda teu devedor.
Em boa hora! exclamou Passepartout. Aceita, amigo! Kiouni é um bravo
e corajoso animal! E, indo até a besta, presenteou-o com alguns pedaços
de açúcar, dizendo: Toma, Kiouni, toma, toma! O elefante soltou
alguns grunhidos de satisfação. Depois, tomando Passepartout
pela cintura e enrolando-o com a tromba, levantou-o até à altura
da cabeça. Passepartout, nem um pingo assustado, fez uma boa carícia
no animal, que o recolocou no chão, e, ao aperto da tromba do honesto
Kiouni, o honesto rapaz respondeu com um vigoroso aperto de mão.
Alguns instantes depois, Phileas Fogg, Sir Francis Cromarty e Passepartout,
instalados em um confortável vagão no qual Mrs. Aouda ocupava
o melhor lugar, corriam a todo o vapor para Benares.
Oitenta milhas, no máximo, separam esta cidade de Alaabad, e elas
foram vencidas em duas horas.
Durante o trajeto, a jovem voltou completamente a si; os vapores estupefacientes
do hang se dissiparam.
Qual foi sua surpresa ao achar-se na railway, naquele compartimento, com
roupas européias, entre viajantes completamente desconhecidos! Imediatamente,
seus companheiros lhe prodigalizaram cuidados e a reanimaram com algumas gotas
de licor; depois o general de brigada lhe narrou sua história. Insistiu
na dedicação de Phileas Fogg, que não tinha hesitado
em arriscar a vida para a salvar, e no desenlace da aventura, devido à
audaciosa imaginação de Passepartout.
Mr. Fogg deixou-o falar, sem pronunciar uma palavra. Passepartout, todo
envergonhado, repetia que aquilo não foi nada! Mrs. Aouda agradeceu
aos seus salvadores efusivamente, com suas lágrimas, mais que com suas
palavras. Seus belos olhos, mais que seus lábios, foram os intérpretes
de seu reconhecimento. Depois, recordando as cenas do sati, dirigindo seu
olhar para aquela terra indiana onde tantos perigos ainda a esperavam, estremeceu
de terror.
Phileas Fogg compreendeu o que se passava no espírito de Mrs. Aouda,
e, para tranqüilizá-la, ofereceu-se, muito friamente aliás,
para conduzi-la a Hong Kong, onde poderia permanecer até que o caso
fosse esquecido.
Mrs. Aouda aceitou a oferta com reconhecimento. Precisamente, em Hong Kong,
residia um de seus parentes, Parsi como ela, e um dos principais negociantes
desta cidade, que é absolutamento inglesa, apesar do ocupar um ponto
da costa chinesa.
Ao meio dia e meia, o trem parou na estação de Benares. As
lendas bramânicas afirmam que esta cidade ocupa o local da antiga Casi,
que estava outrora suspensa no espaço, entre o zênite e o nadir,
como a tumba de Maomé. Mas, nesta época mais realista, Benares,
a Atenas da Índia no dizer dos orientalistas, repousava muito prosaicamente
no solo, e Passepartout pôde por um instante entrever suas casas de
tijolos, suas choças de cana, que lhe davam um aspecto de absoluta
desolação, sem nenhuma cor local.
Era ali que devia ficar Sir Francis Cromarty. As tropas a que se reunia
acampavam a algumas milhas ao norte da cidade. O general de brigada deu adeus
a Phileas Fogg, desejando-lhe o melhor êxito possível, e exprimindo
o voto de que voltasse a fazer esta viagem de um modo menos original, mas
mais proveitoso. Mr. Fogg apertou levemente os dedos do seu companheiro. Os
comprimentos de Mrs. Aouda foram mais afetuosos. Jamais esqueceria o que devia
a Sir Francis Cromarty. Quanto a Passepartout, foi honrado com um verdadeiro
apertão de mão do general de brigada. Todo emocionado, perguntou-lhe
onde e quando se poderia devotar a ele. Afinal separaram-se.
A partir de Benares, a via férrea seguia em parte o vale do Ganges.
Através dos vidros do vagão, por um tempo muito claro, aparecia
a paisagem variada do Béhar, depois montanhas cobertas de vegetação,
os campos de cevada, de milho e de trigo, rios e tanques povoados por crocodilos
esverdeados, aldeias bem conservadas, florestas ainda verdejantes. Alguns
elefantes, zebus de grandes corcovas vinham banhar-se nas águas do
rio sagrado, e também, apesar da estação avançada
e a temperatura já fria, grupos de indianos de ambos os sexos, que
cumpriam piedosamente suas santas abluções. Estes fiéis,
inimigos encarniçados do budismo, são seguidores fervorosos
da religião bramânica, que se encarna em três pessoas:
Vixnú, a divindade solar; Siva, a personificação divina
das forças naturais; e Brama, o senhor supremo dos sacerdotes e dos
legisladores. Mas, com que olhos deveriam Brama, Siva e Vixnú considerar
esta Índia, agora britanizada quando algum barco a vapor passava, uivando
e agitando as águas consagradas do Ganges, espantando as gaivotas que
voavam sobre sua superfície, as tartarugas que pululavam em suas bordas,
e os devotos deitados ao longo das suas margens! Todo este panorama desfilava
como um relâmpago, e por vezes uma nuvem de vapor branco lhe ocultava
os detalhes. Os viajantes mal puderam entrever o forte de Chunar, a vinte
milhas o sudeste de Benares, antiga fortaleza dos rajás do Béhar,
Ghazepour e suas importantes fábricas de água de rosa, o túmulo
de Lord Cornwallis que se eleva sobre a margem esquerda do Ganges, a cidade
fortificada de Buxar, Patna, grande cidade industrial e comercial, onde fica
o principal mercado de ópio da Índia, Monghir, cidade mais que
européia, inglesa como Manchester ou Birmingham, famosa por suas fundições
de ferro, suas serralherias e fábricas de armas brancas, cujas altas
chaminés escureciam com uma fumaça negra o céu de Brama
um verdadeiro murro no país do sonho! Depois veio a noite e, em meio
do uivar dos tigres, dos ursos, dos lobos que fugiam diante da locomotiva,
o trem passou a toda velocidade, e nada mais se pôde ver das maravilhas
de Bengala, nem Golgonda, nem Gour em ruína, nem Mourshedabad, que
foi em outros tempos capital, nem Burdwan, nem Hougly, nem Chandernagor, ponto
francês do território indiano sobre o qual Passepartout teria
tido o orgulho de ver tremular a bandeira da sua pátria! Finalmente,
às sete da manhã, chegaram a Calcutá. O paquete, de partida
para Hong Kong, só levantaria âncora ao meio dia. Phileas Fogg
tinha, pois, cinco horas pela frente.
De acordo com seu roteiro, este gentleman deveria chegar à capital
das Índias em 25 de outubro, vinte e três dias após ter
saído de Londres, e ali chegava no dia fixado. Não havia, pois,
nem atraso nem avanço. Infelizmente, os dois dias ganhos por ele entre
Londres e Bombaim tinham sido perdidos, sabemos como, na travessia da península
indiana mas é de supor que Phileas Fogg não os lamentasse.
CAPÍTULO XV
EM QUE A SACOLA COM BANK-NOTES FICA ALIVIADA DE MAIS ALGUNS MILHARES
DE LIBRAS
O trem parara na estação. Passepartout foi o primeiro a descer
do vagão, e foi seguido por Mr. Fogg, que ajudou sua jovem companhia
a colocar o pé na plataforma. Phileas Fogg contava dirigir-se diretamente
ao paquete para Hong Kong, para instalar ali confortavelmente Mrs. Aouda,
que não queria deixar, enquanto estivesse nesta terra tão perigosa
para ela.
No momento em que Mr. Fogg ia a sair da estação um policeman
aproximou-se e disse: Senhor Phileas Fogg? Sou eu.
Este homem é seu criado? acrescentou o policeman apontando Passepartout.
Sim.
Queiram seguir-me.
Mr. Fogg não fez nenhum movimento que pudesse revelar qualquer surpresa.
Aquele agente era um representante da lei, e, para qualquer inglês,
a lei é sagrada. Passepartout, com os seus hábitos franceses,
queria discutir, mas o policeman tocou nele com seu bastão, e Phileas
Fogg lhe fez sinal para obedecer.
Esta jovem dama pode acompanhar-nos? perguntou Mr. Fogg.
Pode, respondeu o policeman.
O policeman conduziu Mr. Fogg, Mrs. Aouda e Passepartout até um palki-ghari,
espécie de veículo de quatro rodas e quatro lugares, atrelado
a dois cavalos. Partiram. Ninguém falou durante o trajeto, que durou
uns vinte minutos.
O veículo atravessou primeiro a cidade negra, com ruas estreitas,
bordejada por calçadas em que formigava uma população
cosmopolita, imunda e andrajosa; depois passou pela cidade européia,
alegrada com casas de tijolo, ensombrada por coqueiros, eriçada de
mastros, por entre os quais trotavam, apesar da hora matinal, cavaleiros elegantes
e magníficas montarias.
O palki-ghari parou na frente de uma habitação de aparência
simples, mas que não deveria se destinar a usos domésticos.
O policeman fez descer seus prisioneiros podemos a rigor lhes dar este nome
e os conduziu a uma dependência com janelas gradeadas, dizendo: É
às oito horas e meia que comparecerão perante o juiz Obadiah.
Depois retirou-se e fechou a porta.
Bem! estamos presos! exclamou Passepartout, deixando-se cair numa cadeira.
Mrs. Aouda, dirigindo-se logo a Mr. Fogg, disse-lhe com uma voz da qual
procurava em vão disfarçar a emoção: Senhor, é
preciso me abandonar! É por minha causa que o perseguem! É por
me ter salvo! Phileas Fogg contentou-se em responder que isso não era
possível. Perseguido por esse assunto do sati! Inadmissível!
Como os queixosos se atreveriam a se apresentar? Havia engano. Mr. Fogg acrescentou
que, fosse como fosse, não abandonaria a jovem, e a conduziria a Hong
Kong.
Mas o barco parte ao meio dia! observou Passepartout.
Antes do meio dia estaremos no navio, respondeu simplesmente o impassível
gentleman.
Isto foi afirmado tão assertivamente, que Passepartout não
pôde deixar de se dizer: Caramba! é mais que certo! antes do
meio dia estaremos a bordo! Mas não estava tão convencido assim.
Às oito e meia, a porta da sala se abriu. O policeman reapareceu,
e introduziu os presos na sala ao lado. Era uma sala de audiência, e
um público bastante numeroso, composto de Europeus e de nativos já
ocupava o pretório.
Mr. Fogg, Mrs. Aouda e Passepartout sentaram-se em um banco defronte aos
lugares reservados ao magistrado e ao escrivão.
Este magistrado, o juiz Obadiah, entrou quase imediatamente, seguido pelo
escrivão. Era um homem grande todo redondo. Pegou uma peruca pendurada
numa chapeleira e se cobriu com ela rápida e decidamente.
A primeira causa, disse.
Mas, levando a mão à cabeça: Epa! esta não é
a minha peruca! Com efeito, senhor Obadiah, é a minha, respondeu o
escrivão.
Caro senhor Oysterpuf, como quer que o juiz possa proferir uma boa sentença
com a peruca de um escrivão? A troca das perucas foi feita. Durante
estas preliminares, Passepartout fervia de impaciênca, porque o ponteiro
lhe parecia andar terrivelmente rápido sobre o mostrador do grande
relógio do tribunal.
A primeira causa, retomou então o juiz Obadiah.
Phileas Fogg? disse o escrivão Oysterpuf.
Estou aqui, respondeu Mr. Fogg.
Passepartout? Presente! respondeu Passepartout.
Bem! disse o juiz Obadiah. Há dois dias, acusados, que os procuramos
em todos os trens de Bombaim.
Mas de que nos acusam? gritou Passepartout, impaciente.
Vai saber, respondeu o juiz.
Senhor, disse então Mr. Fogg, sou cidadão inglês, e
tenho direito…
Faltaram-lhe ao respeito? perguntou Mr. Obadiah.
De modo algum.
Ótimo! façam entrar os queixosos.
À ordem do juiz, abriu-se uma porta, e três sacerdotes hindus
foram introduzidos por um oficial.
É isso! murmurou Passepartout, são aqueles velhacos que queriam
queimar a nossa jovem dama! Os sacerdotes perfilaram-se diante do juiz, e
o escrivão leu em voz alta uma acusação de sacrilégio,
formulada contra o senhor Phileas Fogg e o seu criado, acusados de ter violado
um lugar consagrado à religião bramânica.
Ouviu? perguntou o juiz a Phileas Fogg.
Sim, senhor, respondeu Mr. Fogg consultando seu relógio, e confesso.
Ah! confessa? Confesso e espero que estes três sacerdotes por sua
vez também confessem o que queriam fazer no pagode de Pillaji.
Os sacerdotes se entreolharam. Pareciam não compreender nada das
palavras do acusado.
Sem dúvida! exclamou impetuosamente Passepartout, no pagode de Pillaji,
diante do qual eles iam queimar sua vítima! Nova estupefação
dos sacerdotes, e profundo espanto do juiz Obadiah.
Que vítima? perguntou. Queimar quem? Em plena cidade de Bombaim?
Bombaim? exclamou Passepartout.
Sem dúvida. Não se trata do pagode de Pillaji, mas do pagode
de Malebar Hill, em Bombaim.
E como prova, eis os sapatos do profanador, acrescentou o escrivão,
pondo um par de calçados sobre sua mesa.
Meus sapatos! gritou Passepartout, que, extremamente surpreso, não
pôde conter esta exclamação involuntária.
Adivinhem a confusão que se operou no espírito do patrão
e do criado. O incidente do pagode de Bombaim, eles o tinham esquecido, e
era exatamente este que os levava perante o magistrado de Calcutá.
Com efeito, o agente Fix tinha compreendido todo o partido que poderia tirar
deste malfadado acontecimento. Atrasando sua partida em doze horas, arvorara-se
em conselheiro dos sacerdotes de Malebar Hill; tinha prometido para eles indenizações
consideráveis, sabendo bem que o governo inglês se mostrava muito
severo para este gênero de delito; depois, no trem seguinte, os tinha
lançado na pista do sacrílego. Mas, devido ao tempo empregado
no resgate da jovem viúva, Fix e os hindus chegaram a Calcutá
antes de Phileas Fogg e seu criado, que os magistrados, prevenidos por despacho,
deveriam prender quando descessem do trem. Avaliem o desapontamento de Fix,
quando soube que Phileas Fogg não havia chegado ainda à capital
da Índia. Deveria ter acreditado que o seu ladrão, parando em
uma das estações do Peninsular Railway, tinha se refugiado nas
províncias setentrionais. Por vinte e quatro horas, em meio a mortais
inquietudes, Fix o aguardou na estação. Qual não foi
pois sua alegria quando, naquela manhã, o viu descer do vagão,
em companhia, é verdade, de uma jovem cuja presença não
podia explicar. Imediatamente lançou sobre ele um policeman, e eis
como Mr. Fogg, Passepartout e a viúva do rajá do Bundelkund
foram conduzidos perante o juiz Obadiah.
E se Passepartout tivesse estado menos preocupado com seu caso, teria percebido,
em um canto do pretório, o detetive, que acompanhava o debate com um
interesse fácil de se compreender porque em Calcutá, como em
Bombaim, como em Suez, o mandado de prisão faltava-lhe ainda! Neste
interim, o juiz Obadiah fizera constar em ata a confissão que deixara
escapar Passepartout, o qual teria dado tudo o que possuía para poder
retirar suas palavras imprudentes.
Confessam os fatos? disse o juiz.
Confessados, respondeu friamente Mr. Fogg.
Tendo em vista, retomou o juiz, tendo em vista que a lei inglesa entende
proteger igual e rigorosamente todas as religiões das populações
da Índia, o delito tendo sido confessado pelo senhor Passepartout,
convicto de ter violado com pé sacrílego o pavimento do pagode
de Malebar Hill, em Bombaim, no dia 20 de outubro, condeno o supramencionado
Passepartout a quinze dias de prisão e a uma multa de trezentas libras
(7.500 F).
Trezentas libras? gritou Passepartout, que só estava verdadeiramente
sensivel à multa.
Silêncio! exclamou o oficial com voz esganiçada.
E, acrescentou o juiz Obadiah, visto que não está materialmente
provado que não houve conivência entre criado e o patrão,
mas que em todo caso este deve ser considerado responsável pelos gestos
de um servidor a seus cuidados, retém o citado Phileas Fogg e o condena
a oito dias de prisão e cento e cinqüenta libras de multa. Escrivão,
chame outro caso! Fix, do seu canto, experimentava uma indizível satisfação.
Phileas Fogg retido oito dias em Calcutá, era mais que suficiente para
dar ao mandado tempo de chegar.
Passepartout estava aturdido. Esta condenação arruinava seu
patrão. Uma aposta de vinte mil libras perdida, e tudo porque ele,
como um verdadeiro paspalho, tinha entrado naquele maldito pagode! Phileas
Fogg, tão senhor de si como se a condenação não
lhe dissesse respeito, nem mesmo franzira a sobrancelha. Mas no momento em
que o escrivão ia chamar outro caso, levantou-se e disse: Ofereço
fiança.
É seu direito, respondeu o juiz.
Fix sentiu um frio na espinha, mas recobrou a segurança, quando ouviu
o juiz, tendo em vista a qualidade de estrangeiros de Phileas Fogg e de seu
criado, fixar a fiança para cada um deles na enorme quantia de mil
libras (25.000 F).
Custaria duas mil libras a Phileas Fogg, se não purgasse sua condenação.
Pago, disse o genteman.
E da sacola que Passepartout trazia, retirou um maço de bank-notes
que depositou sobre a mesa do escrivão.
Esta soma lhe será restituída quando sair da prisão,
disse o juiz. Enquanto esperam, estão livres sob fiança.
Venha, disse Phileas Fogg a seu criado.
Mas, ao menos, me devolvam os sapatos! exclamou Passepartout com um movimento
de raiva.
Foram-lhe restituídos os sapatos.
E olha que custaram caro! murmurou ele. Mais de mil libras cada um! Sem
contar que me machucam! Passepartout, absolutamente pesaroso, seguiu Mr. Fogg,
que havia oferecido o braço à jovem. Fix esperava ainda que
seu ladrão não resolvesse abandonar esta soma de duas mil libras
e cumprisse os oito dias de prisão. Lancou-se pois ao encalço
de Fogg.
Mr. Fogg tomou um veículo, para a qual Mrs. Aouda, Passepartout e
ele logo subiram. Fix correu atrás do veículo, que logo parou
num dos cais da cidade.
A meia milha ao largo, o Rangoon estava ancorado, sua bandeira de partida
içada no topo do mastro. Soavam as onze horas. Mr. Fogg estava adiantado
uma hora. Fix o viu descer do veículo e embarcar numa canoa com Mrs.
Aouda e o criado. O detetive bateu o pé no chão.
Pilantra! exclamou, parte! Duas mil libras sacrificadas! Pródigo
como um ladrão! Ah! segui-lo-ei até o fim do mundo se preciso
for; mas no passo que vai, todo o dinheiro do roubo terá acabado! O
inspetor de polícia tinha fundamento em sua reflexão. Com efeito,
desde que tinha saído de Londres, tanto em despesas de viagem quanto
em gratificações, na compra do elefante, nas fianças
e na multa, Phileas Fogg já semeara pelo caminho mais de cinco mil
libras (125.000 F), e o tanto por cento da soma encontrada, atribuído
aos detetives, ia sempre diminuindo.
CAPÍTULO XVI
EM QUE FIX PARECE NÃO SABER NADA DO QUE LHE DIZEM
O Rangoon, um dos paquetes que a Companhia peninsular e oriental emprega
no serviço dos mares da China e do Japão, era um vapor de ferro,
de hélice, deslocando mil setecentas e setenta toneladas, e com força
nominal de quatrocentos cavalos. Igualava o Mongolia em velocidade, mas não
em conforto. Assim, Mrs. Aouda não ficou tão bem instalada quanto
Phileas Fogg teria desejado. Afinal, tratava-se apenas de uma travessia de
três mil e quinhentas milhas, ou seja de onze a doze dias, e a jovem
não se mostrava uma passageira difícil.
Durante os primeiros dias da travessia, Mrs. Aouda travou conhecimento mais
amplo com Phileas Fogg. Em todas as oportunidades, lhe testemunhava sua mais
profunda gratidão. O fleumático gentleman a escutava, aparentemente
ao menos, com a mais extrema frieza, sem que uma entoação, um
gesto revelasse nele a mais leve emoção. Velava para que não
faltasse nada à jovem. A certas horas, vinha regularmente, se não
para conversar, pelo menos para escutá-la. Cumpria para com ela os
deveres da mais estrita polidez, mas com a graça e a imprevisão
de um autômato cujos movimentos tivessem sido combinados para esse fim.
Mrs. Aouda não sabia o que pensar, mas Passepartout lhe havia explicado
um pouco a excêntrica personalidade do patrão. Havia-lhe contado
que compromisso arrastava o gentleman ao redor do mundo. Mrs. Aouda havia
sorrido; mas afinal devia-lhe a vida, e o seu salvador nada podia perder pelo
fato de ela o ver através do seu reconhecimento.
Mrs. Aouda confirmou a narrativa que o guia hindu havia feito de sua tocante
história. Era, com efeito, dessa raça que ocupa o primeiro lugar
entre as raças indianas. Muitos negociantes parsis tinham feito grandes
fortunas nas Índias, no comércio de algodão. Um deles,
sir James Jejeebhoy, recebeu do governo inglês título de nobreza,
e Mrs. Aouda era parente deste rico personagem que habitava em Bombaim. Era
mesmo um primo de Sir Jejeebhoy, o honrado Jejeeh, que ela contava encontrar
em Hong Kong. Encontraria junto a ele refúgio e assistência?
Não o podia afirmar. Ao que Mr. Fogg respondia que ela não tinha
por que se inquietar, e que tudo se arranjariá matematicamente! Foi
a palavra que usou.
Compreenderia a jovem este horrível advérbio? Não sabemos.
Contudo, seus grandes olhos fixaram-se nos de Mr. Fogg, seus grandes olhos
límpidos como os lagos sagrados da Himalaia! Mas o intratável
Fogg, mais fechado do que nunca, não parecia homem de se lançar
neste lago.
A primeira parte da travessia do Rangoon foi cocluída em condições
excelentes. O tempo estava favorável. Toda a porção da
imensa baía que os marinheiros chamam de os braços de Bengala
mostrou-se favorável à marcha do paquete. O Rangoon logo avistou
a Grande Andaman, a mais importante das ilhas da baía de Bengala, que
sua pitoresca montanha de Saddle Peak, com a altura dois mil e quatrocentos
pés, assinala de bem longe aos navegantes.
A costa foi seguida bem de perto. Os selvagens Papuas da ilha não
se mostraram. São seres colocados no último degrau da escala
humana, mas não antropófagos, como se diz.
O desenvolvimento panorâmico destas ilhas era soberbo. Imensas florestas
de palmeiras, de arecas, de bambus, de moscadeiras, de tocas, de sensitivas
gigantescas, de brotos arborescentes, cobriam a região em primeiro
plano, e ao fundo prefilava-se a elegante silhueta das montanhas. Sobre a
costa pululavam aos milhares essas preciosas salanganas, cujos ninhos comestíveis
constituem um manjar muito procurado no Celeste Império. Mas todo este
espetáculo variado, oferecido à vista pelo grupo das Andaman,
passou depressa, e o Rangoon encaminhou-se rapidamente para o estreito de
Malaca, que lhe devia dar acesso aos mares da China.
Que fazia durante esta travessia o inspetor Fix, tão desventuradamente
arrastado numa viagem de circum-navegação? Ao partir de Calcutá,
após ter deixado instruções para que o mandado de prisão,
se afinal chegasse, lhe fosse enviado para Hong Kong, tinha conseguido embarcar
a bordo do Rangoon sem ser visto por Passepartout, e esperava dissimular sua
presença até a chegada do paquete. Com efeito, teria sido difícil
explicar a razão por que se achava a bordo, sem despertar as suspeitas
de Passepartont, que devia crer que ainda estava em Bombaim. Mas foi levado
a renovar seu conhecimento com o honesto rapaz pela lógica das circunstâncias.
Como? É o que veremos.
Todas as esperanças, todos os desejos do inspetor de polícia,
estavam agora concentrados em um único ponto do mundo, Hong Kong, porque
o paquete pararia muito pouco em Cingapura para que ele pudesse operar nesta
cidade. Era pois em Hong Kong que a prisão do ladrão deveria
se efetuar, ou o ladrão lhe escaparia, por assim dizer, para sempre.
Com efeito, Hong Kong era ainda uma terra inglesa, mas a última que
se encontrava no percurso. Para além, a China, o Japão, a América
ofereciam um refúgio um pouco mais seguro para o senhor Fogg. Em Hong
Kong, se ali afinal encontrasse o mandado de prisão que corria evidentemente
atrás dele, Fix prenderia Fogg, e o colocaria nas mãos da polícia
local. Nenhuma dificuldade. Mas após Hong Kong, não bastaria
um simples mandado de prisão. Seria preciso um ato de extradição.
E adviriam demoras, lentidões, obstáculos de toda natureza,
de que o tratante se aproveitaria para escapar definitivamente. Se a operação
falhasse em Hong Kong, tornar-se-ia, se não impossível, pelo
menos bem difícil recomeçá-la com qualquer probabilidade
de êxito.
Portanto, repetia Fix durante as longas horas que passava em sua cabina,
portanto, ou o mandado de prisão estará em Hong Kong e prendo
meu homem, ou não estará, e desta vez será preciso a
qualquer custo que atrase sua partida! Fracassei em Bombaim, fracassei em
Calcutá! Se o mesmo acontecer em Hong Kong, adeus reputação!
Custe o que custar, preciso conseguir. Mas que meio empregar para atrasar,
se for necessário, a partida desse maldito Fogg? Como último
recurso, Fix estava bem decidido a confessar tudo a Passepartout, a dar-lhe
a conhecer o patrão a quem servia e de quem não era certamente
cúmplice. Passepartout, esclarecido por esta revelação,
temendo ser comprometido, passaria sem dúvida para seu lado, de Fix.
Mas afinal era um meio arriscado, que só poderia ser usado como último
recurso. Uma palavra de Passepartout ao seu patrão seria suficiente
para comprometer irremediavelmente tudo.
O inspetor de política estava pois extremamente embaraçado,
quando a presença de Mrs. Aouda a bordo do Rangoon, em companhia de
Phileas Fogg, lhe abriu novas perspectivas.
Quem era esta mulher? Que soma de circunstâncias a fizera companheira
de Fogg? Fora evidentemente entre Bombaim e Calcutá que o encontro
se dera. Mas em que ponto da Península? Seria o acaso que reunira Phileas
Fogg e a jovem viajante? Ou esta viagem através da Índia teria
sido feita pelo gentleman unicamente para encontrar aquela sedutora criatura?
porque era sedutora! Fix a tinha visto muito bem na sala de audiência
do tribunal de Calcutá.
É fácil compreender a que ponto o agente deveria estar intrigado.
Perguntava-se se nesta história toda não haveria algum rapto
criminoso. Sim! devia ser isso. Esta idéia arraigou-se no cérebro
de Fix, e reconheceu todas as vantagens que poderia tirar desta circunstância.
Fosse ou não casada a jovem, haveria rapto, e seria possível,
em Hong Kong, suscitar tais embaraços ao raptor, tais que não
pudesse safar-se deles com dinheiro.
Mas não convinha esperar a chegada do Rangoon a Hong Kong. Este Fogg
tinha o hábito detestável de saltar de um barco para outro,
e, antes que o plano começasse a ser executado, ele poderia já
estar longe.
O importante era pois prevenir as autoridades inglesas e dar a descrição
do passageiro do Rangoon antes de seu desembaque. Ora, isso seria muito fácil,
já que o paquete fazia escala em Cingapura, e Cingapura está
ligada à costa chinesa por um fio telegráfico.
Todavia, antes de agir, e para operar mais seguramente, Fix resolveu interrogar
Passepartout. Sabia que não era muito difícil fazer o rapaz
falar, e decidiu-se a romper o incógnito que guardara até então.
Ora, não havia tempo a perder. Estavam em 31 de outubro, e no dia seguinte
o Rangoon deveria aportar em Cingapura.
Portanto, nesse dia, Fix, saindo do sua cabina, subiu ao convés, com
a intenção de abordar Passepartout primeiro, com mostras da
mais extrema surpresa. Passepartout passeava tranqüilamente pela proa,
quando o inspetor precipitou-se em sua direção, exclamando:
Você, no Rangoon! Senhor Fix a bordo! respondeu Passepartout, absolutamente
surpreso, ao reconhecer seu companheiro de travessia do Mongolia. Puxa! deixei-o
em Bombaim, e venho reencontrá-lo a caminho de Hong Kong! Faz também
a volta ao mundo? Não, não, respondeu Fix, e espero ficar em
Hong Kong, ao menos por alguns dias.
Ah! disse Passepartout, que pareceu por um instante surpreso. Mas como não
o tinha visto ainda no navio desde nossa partida de Calcutá? Palavra,
uma doença… um pouco de enjôo… Fiquei deitado no minha cabina…
O golfo de Bengala não me tratou tão bem quanto o oceano Índico.
E seu patrão, Mr. Phileas Fogg? Em perfeita saúde, e tão
pontual quanto seu roteiro! Nem um dia atrasado! Ah! senhor Fix, ainda não
sabe, mas temos uma jovem dama conosco.
Uma jovem dama? respondeu o agente, fingindo perfeitamente não compreender
o que o seu interlocutor queria dizer.
Mas Passepartout logo o pôs ao par da história. Contou-lhe
o incidente do pagode de Bombaim, a aquisição do elefante pela
quantia de duas mil libras, o caso do sati, o rapto de Aouda, a condenação
do tribunal de Calcutá, a liberdade sob fiança. Fix, que conhecia
a última parte destes incidentes, parecia ignorar todos, e Passepartout
deixava-se arrastar pelo prazer de narrar suas aventuras a um ouvinte tão
atento.
Mas, no fim das contas, perguntou Fix, seu patrão tem a intenção
de levar essa jovem para a Europa? Não, senhor Fix, não! Vamos
simplesmente entregá-la aos cuidados de um de seus parentes, rico negociante
de Hong Kong.
Não há nada a fazer! disse consigo o detetive, dissimulando
seu desapontamento. Um copo do gin, senhor Passepartout? Com prazer, senhor
Fix. O mínimo que podemos fazer é brindar nosso reencontro no
Rangoon!
CAPÍTULO XVII
EM QUE SE TRATA DE UMAS TANTAS COISAS DURANTE A TRAVESSIA DE CINGAPURA
PARA HONG-KONG
Desde esse dia, Passepartout e o detetive se encontraram freqüentemente,
mas o agente mantinha-se em uma extrema reserva em relação ao
companheiro, e nem tentou fazê-lo falar. Uma ou duas vezes apenas, entrevira
Mr. Fogg, que preferia ficar no grande salão do Rangoon, fazendo companhia
a Mrs. Aouda, ou jogando whist, seguindo seu invariável costume.
Quanto a Passepartout, tinha-se posto a meditar muito seriamente no estranho
acaso que havia colocado, mais uma vez, Fix no caminho de seu patrão.
E, com efeito, qualquer um teria se admirado por muito menos. Este gentleman,
muito amável, muito solícito com certeza, que se encontra em
Suez, que embarca no Mongolia, que desembarca em Bombaim, onde disse dever
ficar, que se reencontra no Rangoon, fazendo viagem para Hong Kong, numa palavra,
seguindo passo a passo o roteiro de Mr. Fogg, era coisa em que valia a pena
refletir. Havia aí uma coincidência pelo menos bizarra. O que
pretendia este Fix? Passepartout estava pronto a apostar as suas babuchas
ele as havia preciosamente conservado que Fix deixaria Hong Kong ao mesmo
tempo que eles, e provavelmente no mesmo paquete.
Passepartout poderia ter refletido por um século, que não
teria jamais adivinhado de que missão o agente fora encarregado. Jamais
seria capaz de imaginar que Phileas Fogg fosse espionado, como um ladrão,
à volta do globo terrestre. Mas como está na natureza humana
arranjar explicação para tudo, eis como Passepartout, subitamente
iluminado, interpretou a presença permanente de Fix, e, de fato, sua
interpretação era bastante plausível. Com efeito, segundo
ele, Fix não era nem podia ser senão um agente lançado
no rasto de Mr. Fogg pelos seus colegas do Reform Club, para verificar se
a viagem se fazia regularmente em volta ao mundo, segundo o roteiro combinado.
É evidente! é evidente! repetia para si o bom rapaz, todo
vaidoso da sua perspicácia. É um espião que aqueles gentlemen
colocaram em nosso encalço! Mas isso não é digno! Mr.
Fogg, tão probo, tão respeitável! Fazerem-no espionar
por um agente! Ah! senhores do Reform Club, isso lhes custará caro!
Passepartout, encantado com a sua descoberta, resolveu porém nada dizer
ao patrão, receando que ele se ofendesse com a desconfiança
dos seus adversários. Mas jurou zombar de Fix na primeira oportunidade,
com palavras enrustidas e sem se comprometer.
Na quarta feira, 30 de outubro, após o meio dia, o Rangoon embocou
no estreito de Malaca, que separa a quase ilha deste nome das terras de Sumatra.
Ilhotas montanhosas muito escarpadas, muito pitorescas, roubavam dos passageiros
a vista da grande ilha.
No dia seguinte, às quatro horas, o Rangoon, tendo ganho meio dia
sobre sua travessia regulamentar, aportava em Cingapura, para aí renovar
sua provisão de carvão.
Phileas Fogg inscreveu este avanço na coluna dos ganhos, e, desta
vez, saltou em terra, acompanhando Mrs. Aouda que havia manifestado o desejo
de passear por algumas horas.
Fix, para quem qualquer ação de Fogg parecia suspeita, seguiu-o
sem se deixar ver. Quanto a Passepartout, que ria in petto ao ver a manobra
de Fix, foi fazer as compras de costume.
A ilha de Cingapura não tem um aspecto nem grande, nem imponente.
As montanhas, isto é, os perfis, lhe faltam. Todavia, é encantadora
em sua magreza. É um parque cortado por belas estradas. Uma bela condução,
atrelada a elegantes cavalos que tinham sido importados da Nova Holanda, transportou
Mrs. Aouda e Phileas Fogg por entre massas de palmeiras com brilhante folhagem,
e de árvores de cravo cujos frutos são formados pelo botão
mesmo da flor entreaberta. Lá, os capões de pimenteiras substituíam
as sebes espinhosas das campinas européias; os sagueiros, grandes palmeiras
com a sua esplêndida ramagem, variavam o aspecto desta região
tropical; as moscadeiras de folhagem envernizada saturavam o ar com um perfume
penetrante. Os macacos, bandos ágeis e careteiros, não faltavam
nos bosques, nem talvez os tigres nas jungles. A quem se admirar ao saber
que nesta ilha, relativamente tão pequena, estes terríveis carnívoros
ainda não tenham sido exterminados, responderemos que vêm de
Malaca, atravessando o estreito a nado.
Depois de terem percorrido o campo por duas horas, Mrs. Aouda e seu companheiro
que olhava quase sem ver voltaram à cidade, vasta aglomeração
de casas toscas e baixas, rodeadas por formosos jardins onde crescem as mangas,
os ananazes e todos os melhores frutos do mundo.
Às dez horas, voltaram para o paquete, depois de terem sido seguidos,
sem suspeitarem, pelo inspetor que também fora obrigado a arcar com
as despesas de um transporte.
Passepartout esperava-os no convés do Rangoon. O bravo rapaz comprara
algumas dúzias de mangas, de bom tamanho, castanho-escuro por fora,
de um vermelho muito vivo por dentro, e cujo fruto branco, ao desfazer-se
entre os lábios, proporciona aos verdadeiros gourmets um prazer sem
igual. Passepartout teve o prazer de as oferecer a Mrs. Aouda, que agradeceu
graciosamente.
Às onze horas, o Rangoon, com a provisão completa de carvão,
largava suas amarras, e, algumas horas depois, os passageiros perdiam de vista
as altas montanhas de Malaca, cujas florestas abrigam os mais belos tigres
da terra.
Cerca de mil e trezentas milhas separam Cingapura da ilha de Hong Kong,
pequeno território inglês destacado da costa chinesa. Phileas
Fogg tinha interesse em percorrê-las no espaço de seis dias no
mmáximo, para tomar em Hong Kong o vapor que deveria partir a 6 de
novembro para Yokohama, um dos principais portos do Japão.
O Rangoon estava muito carregado. Muitos passageiros tinham embarcado em
Cingapura, Hindus, Ceilandeses, Chineses, Malaios, Portugueses, que, na maioria,
ocupavam a segunda classe.
O tempo, tão bom até então, mudou com o último
quadrante da lua. Tiveram mar encapelado. O vento soprou algumas vezes rijo,
mas felizmente do sudeste, o que favorecia o andamento do vapor. Quando se
prestava a isso, o capitão largava o pano. O Rangoon, armado em brique,
navegou freqüentemente com suas duas velas e sua mezena, e sua rapidez
aumentou sob a dupla ação do vapor e do vento. Foi assim que
costeou, com o mar às vezes picado, as costas de Anam e da Cochinchina.
Mas a falta era mais do Rangoon do que do mar, e era ao paquete que os passageiros,
a maior parte dos quais passou mal, deveriam se queixar desta fadiga.
Com efeito, os navios da Companhia peninsular, que fazem o serviço
dos mares da China, têm um sério defeito de construção.
A proporção entre a água que deslocam e a sua capacidade
de carga foi mal calculada, e por isso pouca resistência oferecem ao
mar. O seu volume, fechado, impenetrável à agua, é insuficiente.
Afogam-se, para usar a expressão marítima, e, em conseqüência
desta disposição, basta meterem alguma água para que
se lhes modifique o andamento. Estes navios são muito inferiores se
não no motor e no aparelho de evaporação, pelo menos
na construção às Messageries francesas, tais como a Imperatrice
e o Cambodge. Enquanto, segundo os cálculos dos engenheiros, estes
navios podem meter a bordo um peso de água igual ao seu próprio
peso antes que sossobrem, os vapores da companhia peninsular, o Golconda,
o Corea, e finalmente o Rangoon, não poderiam meter a sexta parte do
seu peso sem irem a pique.
Portanto, com mau tempo, conviria tomar grandes precauções.
Era preciso muitas vezes meter a capa sobre o pequeno vapor. Era uma perda
de tempo que de modo algum parecia afetar Phileas Fogg, mas com a qual Passepartout
se mostrava extremamente irritado. Ele então acusava o capitão,
o maquinista, a Companhia, e enviava ao diabo todos os que se metiam a transportar
viajantes. Talvez também a lembrança do bico de gás,
que estava a arder por sua conta na casa de Saville Row concorresse muito
para a sua impaciência.
Mas tem então muita pressa de chegar a Hong Kong? perguntou-lhe um
dia o detetive.
Muita! respondeu Passepartout.
Pensa que Mr. Fogg também tem pressa de tomar o paquete do Yokohama?
Uma pressa incrível.
Então já acredita na tal viagem de volta ao mundo? Firmemente.
E o senhor, senhor Fix? Eu? de modo algum! Farçante! respondeu Passepartout
piscando-lhe o olho.
Esta palavra deixou o agente cismado. O qualificativo o inquietou, sem que
soubesse bem por quê. O francês teria adivinhado? Não sabia
mais o que pensar. Mas sua qualidade de detetive, da qual só ele tinha
o segredo, como Passepartout poderia tê-la reconhecido? E, contudo,
falando-lhe assim, Passepartout tivera certamente segunda intenção.
Aconteceu até que o bravo rapaz foi mais longe, um outro dia, mas
era mais forte do que ele. Não podia travar a língua.
Vamos ver, senhor Fix, perguntou ele ao seu companheiro em tom malicioso,
será que, uma vez chegados a Hong Kong, teremos a infelicidade de o
deixar aí? Mas, respondeu Fix bastante embaraçado, não
sei!… Talvez que…
Ah! disse Passepartout, se nos acompanhasse, seria uma felicidade para mim.
Vejamos! um agente da Companhia peninsular não pode parar no caminho.
Só ia até Bombaim, e logo estará na China! A América
não fica longe, e da América à Europa é um passinho!
Fix olhou atentamente seu interlocutor, que lhe mostrava a cara mais amável
do mundo, e decidiu rir junto. Mas este, que estava inspirado, perguntou-lhe
se aquele ofício rendia muito.
Sim e não, respondeu Fix sem pestanejar. Há negócios
bons e maus. Deve saber que não viajo às minhas custas! Oh!
quanto a isso, tenho certeza! exclamou Passepartout rindo com mais vontade.
Acabada a conversa, Fix entrou em sua cabina e se pôs a refletir.
Ele tinha evidentemente adivinhado. De um modo ou de outro, o francês
havia reconhecido sua qualidade de detetive. Mas teria prevenido o patrão?
Que papel desempenharia ele em tudo isto? Era cúmplice ou não?
O negócio estaria descoberto e portanto perdido? O agente passou algumas
horas bem difíceis, ora julgando tudo perdido, ora esperando que Fogg
ignorasse a situação, sem saber o que decidir.
Entretanto a calma restabeleceu-se em seu cérebro, e ele resolveu
agir francamente com Passepartout. Se não se encontrasse nas condições
que queria para prender Fogg em Hong Kong, e se Fogg se preparava para definitivamente
deixar desta vez o território inglês, ele, Fix, diria tudo a
Passepartout. Ou o criado era cúmplice de seu patrão e este
sabia de tudo, e neste caso o negócio já estaria definitivamente
perdido ou o criado não tinha nada a haver com o roubo, e então
o seu interesse seria abandonar o ladrão.
Tal era pois a situação respectiva destes dois homens, acima
dos quais Phileas Fogg planava com sua majestosa indiferença. Descrevia
racionalmente a sua órbita à volta do mundo, sem se preocupar
com os asteróides que gravitavam à sua volta.
E contudo, nas suas proximidades havia seguindo a expressão dos astrônomos
um astro perturbador que deveria produzir certas perturbações
no coração deste gentleman. Mas não! O charme de Mrs.
Aouda não funcionava, para grande surpresa de Passepartout, e as perturbações,
se havia alguma, seriam mais difíceis de calcular do que as de Urano,
que levaram à descoberta de Netuno.
Sim! era um assombro diário para Passepartout, que lia tanto reconhecimento
por seu patrão nos olhos da jovem! Decididamente Phileas Fogg só
tinha o coração necessário para se comportar heroicamente,
mas amorosamente, não! Quanto às preocupações
que os acasos desta viagem poderiam fazer nascer nele, não se lhes
viam vestígios. Mas Passepartout, esse, vivia em sobressaltos contínuos.
Um dia, apoiado à balaustrada do engine room olhava a possante máquina,
que em certos momentos tomava maior força, quando uma arfagem mais
violenta fazia com que a hélice se movesse fora da água. O vapor
saía então pelas válvulas, o que provocava a cólera
do digno rapaz.
Não estão bem carregadas estas válvulas! exclamava.
Não andamos! Esses ingleses! Ah! se fosse um navio americano, iríamos
pelos ares talvez, mas iríamos com certeza mais depressa!
CAPÍTULO XVIII
EM QUE PHILEAS FOGG, PASSEPARTOUT, FIX, CADA QUAL PARA SEU LADO, VÃO
TRATAR DOS SEUS NEGÓCIOS
Durante os últimos dias da travessia, o tempo foi bastante mau. O
vento ficou mais forte. Tendo virado para noroeste, contrariava o marcha do
paquete. O Rangoon, muito instável, balançou consideravelmente,
e os passageiros tiveram direito de queixar-se das grandes vagas que o vento
levantava ao largo e que os fatigavam.
Durante as jornadas de 3 e 4 de novembro, aconteceu uma espécie de
tempestade. A borrasca agitou o mar com veemência. O Rangoon teve de
pôr-se à capa durante metade do dia, conservando-se com dez voltas
de hélice apenas, para não apanhar a vaga de frente. Todas as
velas tinham sido colhidas, e o vendaval assoviava pela cordoalha.
A velocidade do vapor diminuiu, como bem se imagina, consideravelmente,
e pôde-se calcular que chegaria a Hong Kong com vinte horas de atraso
em relação ao tempo regulamentar, ou talvez mais, se a tempestade
não cessasse.
Phileas Fogg assistia ao espetáculo de um mar furioso, que parecia
lutar diretamente contra ele, com sua habitual impassibilidade. Sua fronte
não se lhe ensombrou por um instante sequer, e, contudo, uma demora
de vinte horas poderia comprometer-lhe a viagem, fazendo-o perder o paquete
para Yokohama. Mas este homem sem nervos não experimentava nem impaciência
nem aborrecimento. Parecia até que a tempestade entrava no seu programa,
que fora prevista. Mrs. Aouda, que conversou com o seu companheiro a respeito
deste contratempo, achou-o tão sossegado como em outras ocasiões.
Fix, este, não via as coisas do mesmo jeito. Pelo contrário.
A tempestade o deixava contente. Sua satisfação chegaria mesmo
a não conhecer limites, se o Rangoon fosse obrigado a fugir frente
à tormenta. Todas estes atrasos lhe caíam bem, porque obrigariam
o senhor Fogg a ficar alguns dias em Hong Kong. Em suma, o céu, com
as suas rajadas e as suas borrascas, favorecia-lhe o jogo. Passava até
um pouco mal, mas que importava? Não contava suas náuseas, e,
quando o corpo se lhe estorcia com o enjôo, seu espírito exultava
com imensa satisfação.
Quanto a Passepartout, podem adivinhar em que estado de cólera mal
dissimulada passou este tempo de provação. Até ali tudo
tinha ido tão bem! A terra e a água pareciam estar dedicadas
a seu patrão. Paquetes e estradas de ferro obedeciam-lhe. O vento e
o vapor uniam-se para favorecer sua viagem. A hora dos desenganos teria enfim
soado? Passepartout, como se as vinte mil libras da aposta fossem sair de
seu bolso, já não vivia. Esta tempestade o exasperava, este
vendaval o deixava furioso, e teria de boa vontade fustigado aquele mar desobediente!
Pobre rapaz! Fix ocultou-lhe com todo o cuidado sua satisfação
pessoal, e fez bem, porque se Passepartout tivesse adivinhado o contentamento
secreto de Fix, Fix teria passado um mau quarto de hora.
Passepartout, durante toda a duração da borrasca, permaneceu
na coberta do Rangoon. Não teria podido conservar-se embaixo; subia
na mastreação; causava assombro à tripulação,
e ajudava em tudo com a ligeireza de um macaco. Cem vezes interrogava o capitão,
os oficiais, os marinheiros, que não podiam deixar de rir ao verem
o rapaz tão alterado. Passepartout queria porque queria saber quanto
tempo duraria a tempestade. Mandavam-no para o barômetro, que não
se resolvia a subir. Passepartout sacudia o barômetro, mas não
acontecia nada, nem com as sacudidelas, nem com as injúrias com que
cobria o irresponsável instrumento.
Afinal a tormenta se acalmou. O estado do mar se modificou na jornada de
4 de novembro. O vento saltou dois quartos para o sul e tornou-se favorável.
Passepartout serenou com o tempo. Puderam-se largar as velas de gáveas
e as velas grandes, e o Rangoon retomou sua rota com maravilhosa rapidez.
Mas não era possível recuperar todo o tempo perdido. Não
havia remédio senão resignar-se à sorte, e a terra só
foi avistada no dia 6, às cinco da manhã. O roteiro de Phileas
Fogg indicava para o dia 5 a chegada do vapor. Ora, chegava-se só no
dia 6. Era um atraso de vinte e quatro horas, e a partida para Yokohama estava
necessariamente perdida.
Às seis horas, o piloto subiu a bordo do Rangoon e tomou o seu lugar
na ponte de comando, para dirigir o navio através dos escolhos até
o porto de Hong Kong.
Passepartout morria de vontade de interrogar este homem, de perguntar se
o paquete para Yokohama tinha deixado Hong Kong. Mas não se atrevia,
preferindo conservar até o fim um pouco de esperança. Tinha
confiado suas inquietações a Fix, que manhoso procurava consolá-lo,
dizendo-lhe que Mr. Fogg poderia tomar o próximo paquete. Isso deixava
Passepartout ainda mais fulo.
Mas se Passepartout não se atrevia a interrogar o piloto, Mr. Fogg,
depois de ter consultado o seu Bradshaw, perguntou-lhe com voz tranqüila
se sabia quando partia um vapor de Hong Kong para Yokohama.
Amanhã, na maré da manhã, respondeu o piloto.
Ah! exclamou Mr. Fogg, sem demostrar nenhuma admiraç&atildatilde;o.
Passepartout, que estava presente, sentiu desejos de abraçar o piloto,
ao qual Fix desejaria torcer o pescoço.
Qual é o nome desse vapor? perguntou Mr. Fogg.
O Carnatic, respondeu o piloto.
Não era ontem que deveria partir? Sim, senhor, mas teve de reparar
uma das caldeiras, e sua partida foi adiada para amanhã.
Obrigado, respondeu Mr. Fogg, que no seu passo automático voltou
a descer para o salão do Rangoon.
Quanto a Passepartout, agarrou a mão do piloto e apertou-a vigorosamente,
dizendo: Piloto, o senhor, o senhor é ótimo! O piloto nunca
soube porque é que suas respostas lhe granjearam tão amigável
expansão. A um apito da máquina voltou a subir para a ponte
e dirigiu o paquete pelo meio da esquadrilha de juncos, tankas, barcos pesqueiros,
navios de toda a espécie, que embaraçavam a entrada para Hong
Kong.
À uma hora o Rangoon estava no cais, e os passageiros desembarcaram.
Nesta ocasião, convenhamos, o acaso favorecera Phileas Fogg de modo
único. Sem a necessidade de reparar suas caldeiras, o Carnatic teria
partido na data de 5 de novembro, e os viajantes para o Japão teriam
sido obrigados a esperar oito dias pelo paquete seguinte. Mr. Fogg ficava,
é verdade, com um atraso de vinte e quatro horas, mas este atraso não
poderia ter conseqüências funestas para o resto da viagem.
Com efeito, o paquete que faz de Yokohama a São Francisco a travessia
do Pacífico estava em correspondência direta com o paquete para
Hong Kong, e não poderia partir sem que este tivesse chegado. Evidentemente
haveria vinte e quatro horas de demora em Yokohama; mas durante os vinte de
dois dias que dura a travessia do Pacífico, seria fácil recuperá-las.
Phileas Fogg achava-se pois, com a diferença de quase vinte quatro
horas, nas condições de seu programa, trinta e cinco dias depois
de ter partido de Londres.
Como o Carnatic só partia no dia seguinte às cinco horas da
manhã, Mr. Fogg tinha pela frente dezeseis horas para tratar dos seus
negócios, isto é, dos que diziam respeito a Mrs. Aouda. Ao desembarcar
do vapor, ofereceu o braço à jovem e conduziu-a para um palanquim.
Pediu aos carregadores que lhe indicassem um hotel, e eles sugeriram o Hotel
do Club. O palanquim se pôs a caminho, seguido por Passepartout, e vinte
minutos depois chegava ao seu destino.
Um apartamento foi reservado para a jovem, e Phileas Fogg cuidou para que
não lhe faltasse nada. Depois disse a Mrs. Aouda que ia imediatamente
à procura do parente aos cuidados do qual devia deixá-la entregue
em Hong Kong. Ao mesmo tempo deu ordem a Passepartout para permanecer no hotel
até sua volta, para que a jovem não ficasse só.
O gentleman fez-se conduzir à Bolsa. Ali deveriam forçosamente
conhecer um personagem como o respeitável Jejeeh, que figurava entre
os mais ricos comerciantes da cidade.
O corretor a quem Mr. Fogg se dirigiu conhecia efetivamente o negociante
parsi. Mas, há dois anos, já não residia na China. Depois
de fazer fortuna, tinha se establecido na Europa na Holanda, supunha o que
se explicava pelas muitas relações que tivera com este país
durante a sua existência comercial.
Phileas Fogg voltou para o Hotel do Club. Em seguida mandou pedir licença
a Mrs. Aouda para se apresentar a ela e, sem mais preâmbulos, participou-lhe
que o respeitável Jejeeh não residia mais em Hong Kong, e que
habitava provavelmente na Holanda.
A isto, Mrs. Aouda não respondeu de pronto. Passou a mão pela
fronte, e ficou alguns momentos a refletir. Depois, com sua voz doce: Que
devo fazer, senhor Fogg? disse.
É muito simples, respondeu o gentleman. Voltar para a Europa.
Mas não posso abusar…
Não abusa, e sua presença não perturba em nada meu
programa… Passepartout? Senhor? respondeu Passepartout.
Vá ao Carnatic e reserve três cabinas.
Passepartout, encantado em continuar a viagem em companhia da jovem, que
era muito amável com ele, logo saiu do Hotel do Club.
CAPÍTULO XIX
EM QUE PASSEPARTOUT SE INTERESSA MUITO MESMO PELO PATRÃO E O QUE
DAÍ SE SEGUE
Hong Kong é apenas uma ilha, cuja posse foi assegurada à Inglaterra
pelo tratado de Nankin, depois da guerra de 1842. Em poucos anos, o gênio
colonizador da Grã-Bretanha ali havia fundado uma cidade importante
e criado um porto, o porto Victoria. Este ilha está situada na embocadura
do rio de Cantão, e apenas sessenta milhas a separam da cidade portuguesa
de Macau, construída na outra margem. Hong Kong deveria necessariamente
vencer Macau em uma luta comercial, e agora a maioria do trânsito chinês
passa pela cidade inglesa. Docas, hospitais, wharfs, alfândegas, uma
catedral gótica, uma government house, ruas cobertas de macadame, tudo
fazia supor que uma das cidades comerciais dos condados de Kent ou de Surrey,
atravessando o esferóide terrestre, viera sair neste ponto da China,
quase nos seus antípodas.
Passepartout, as mãos nos bolsos, dirigiu-se para o porto Victoria,
contemplando os palanquins, os carrinhos de vela, ainda em uso no Celeste
Império, e toda a multidão de chineses, japoneses e de europeus
que se comprimiam nas rua. Com pequenas diferenças, era ainda Bombaim,
Calcutá ou Cingapura, que o digno moço encontrava no seu trajeto.
Há assim como que uma fieira de cidades inglesas ao redor do mundo.
Passepartout chegou ao porto Victoria. Ali, na embocadura do rio de Cantão,
havia um formigueiro de navios de todas as nações, ingleses,
franceses, americanos, holandeses, navios de guerra e de comércio,
embarcações japonesas ou chinesas, juncos, sempas, tankas, e
mesmo barcos de flores que pareciam canteiros sobre as águas. Passeando,
Passepartout notou um certo número de nativos vestidos de amarelo,
todos com idade muito avançada. Tendo entrado num barbeiro chinês
para se barbear a là chinesa soube pelo Figaro do lugar, que falava
um inglês muito bom, que todos aqueles velhos tinham pelo menos oitenta
anos, e que nessa idade tinham o privilégio de usar a cor amarela,
que é a cor imperial. Passepartout achou aquilo muito esquisito, sem
bem saber por quê.
Barba feita, dirigiu-se para o cais de embarque do Carnatic, e avistou Fix
que passeava por ali, o que não o surprendeu. Mas o inspetor de polícia
deixava transparecer no rosto as marcas de um profundo desapontamento.
Bem! disse consigo Passepartout, as coisas vão mal para os gentlemen
do Reform Club.
E dirigiu-se para Fix com seu sorriso jovial, sem querer notar o ar vexado
de seu companheiro.
Ora, o agente tinha boas razões para amaldiçoar a infernal
sorte que o perseguia. Nada de mandado! Era evidente que o mandado corria
após ele, e só poderia alcançá-lo se Fix se demorasse
alguns dias nesta cidade. Ora, Hong Kong sendo a última terra inglesa
do percurso, o senhor Fogg iria escapar-lhe definitivamente, se não
conseguisse detê-lo por ali.
Muito bem, senhor Fix, está resolvido a vir conosco para a América?
perguntou Passepartout.
Sim, respondeu Fix com os dentes cerrados.
Vamos então! exclamou Passepartout soltando uma estrondosa gargalhada!
Bem sabia que não podia separar-se de nós. Venha reservar seu
lugar, venha! E os dois entraram no escritório dos transportes marítimos
e reservaram cabinas para quatro pessoas. Mas o empregado avisou-os de que
os reparos do Carnatic estavam concluídos, que o paquete partiria naquele
mesmo dia às oito horas, e não no dia seguinte, como tinha sido
anunciado.
Muito bem! exclamou Passepartout, isso agradará meu patrão.
Vou avisá-lo.
Neste momento, Fix tomou uma decisão extrema. Decidiu dizer tudo
a Passepartout. Era talvez o único meio que tinha para reter Phileas
Fogg mais alguns dias em Hong Kong.
Ao sairem do escritório, Fix convidou seu companheiro para beberem
alguma coisa numa taverna. Passepartout tinha tempo. Aceitou o convite de
Fix.
Uma taverna se abria para o cais. Tinha um aspecto atraente. Entraram. Era
uma vasta sala bem decorada, ao fundo da qual se estendia uma cama de campanha,
guarnecida de almofadas. Sobre este leito estavam enfileirados um certo número
de pessoas dormindo.
Uns trinta fregueses ocupavam na sala principal pequenas mesas de junco
trançado. Alguns esvaziavam copos de cerveja inglesa, ale ou porter,
outros sorviam bebidas alcoólicas, gin ou brandy. Além disto,
a maioria fumava compridos cachimbos de barro vermelho, cheios de bolinhas
de ópio misturado com essência de rosa. De tempo em tempo, algum
fumador inebriado deslizava para baixo da mesa, e os criados do estabelecimento,
tomando-o pelos pés e pela cabeça, colocavam-no sobre a cama
de campanha perto de um confrade. Uns vinte estavam já deitados lado
a lado, no último grau de embrutecimento.
Fix e Passepartout compreenderam que tinham entrado num antro fumacento
freqüentado por esses miseráveis, abestalhados, emagrecidos, idiotas,
aos quais a mercantil Inglaterra vende anualmente duzentos e sessenta milhões
de francos dessa droga funesta chamada ópio! Tristes milhões,
adquiridos com um dos mais funestos vícios da natureza humana.
O governo chinês bem que tentou remediar este abuso com leis severas,
mas em vão. Da classe rica, à qual o uso do ópio inicialmente
era formalmente reservado, este uso desceu até às classes inferiores,
e o turbilhão não pode mais ser detido. Fuma-se ópio
em todos os lugarem e sempre no Império do Meio. Homens e mulheres
dão-se a esta paixão deplorável, e uma vez costumados
à inalação, não podem passar sem ela, sem experimentarem
horríveis contrações do estômago. Um grande fumador
pode fumar oito cachimbos por dia, mas morre em cinco anos.
Ora, era em um dos numerosos antros deste tipo, que pululam, mesmo em Hong
Kong, que Fix e Passepartout tinham entrado com a intenção de
beber alguma coisa. Passepartout não tinha dinheiro, mas aceitou de
bom grado a cortesia do seu companheiro, reservando-se o direito de retribuí-la
em outra oportunidade.
Pediram duas garrafas de porto, às quais o francês rendeu honras,
enquanto Fix, mais reservado, observava o companheiro com extrema atenção.
Conversaram sobre variedades, e sobretudo sobre a excelente idéia que
Fix tivera de ir no Carnatic. E a propósito do vapor, cuja partida
fora antecipada em algumas horas, Passepartout, com as garrafas vazias, levantou-se,
para ir avisar seu patrão.
Fix o deteve.
Um instante, disse.
Que quer, senhor Fix? Tenho que lhe falar de coisas sérias.
De coisas sérias! exclamou Passepartout acabando de beber algumas
gotas de vinho que tinham ficado no fundo do seu copo. Bem, falamos nisso
amanhã. Não tenho tempo hoje.
Fique, respondeu Fix. Trata-se de seu patrão! Passepartout, à
menção do patrão, olhou atentamente seu interlocutor.
A expressão do rosto de Fix pareceu-lhe singular. Voltou a sentar.
Que é que tem para me dizer? perguntou ele.
Fix apoiou a mão no braço do companheiro, e, abaixando a voz:
Adivinhou quem sou? perguntou.
Claro! disse Passepartout sorrindo.
Então vou confessar-lhe tudo…
Agora que já sei tudo, meu compadre! Ah! grande coisa! Em todo caso,
continue. Mas, antes, deixe-me dizer que esses senhores meteram-se em despesas
inutilmente! Inutilmente! disse Fix. Fala sem pensar! Bem se vê que
não sabe de que quantia se trata.
Mas sei, sei sim, respondeu Passepartout. Vinte mil libras! Cinqüenta
e cinco mil! replicou Fix, apertando a mão do francês.
O que! exclamou Passepartout, Mr. Fogg teria ousado!… cinqüenta e
cinco mil libras!… Pois bem! mais razão ainda para não perder
um instante, acrescentou levantando-se novamente.
Cinqüenta e cinco mil libras! retomou Fix, que forçou Passepartout
a voltar a se assentar, depois de mandar vir um frasco de brandy, e se me
sair bem, ganho uma gratificação de duas mil libras. Quer quinhentas
(12.500 F) com a condição de me ajudar? Ajudar? exclamou Passepartout,
cujos olhos estavam desmesuradamente abertos.
Sim, me ajudar a reter o senhor Fogg por alguns dias em Hong Kong! Hein!
fez Passepartout, o que está dizendo? Como! não contentes em
mandarem seguir meu patrão, de suspeitarem da sua lealdade, esses senhores
querem ainda levantar-lhe obstáculos! Envergonho-me por eles! Calma!
o que quer dizer? perguntou Fix.
Quero dizer que é pura indelicadeza. É o mesmo que depenar
Mr. Fogg, tirar dinheiro do seu bolso! Ei! é exatamente o que esperamos
fazer! Mas é uma armadilha! exclamou Passepartout que ia se animando
sob a influência do brandy que Fix lhe servia, e que bebia sem perceber
uma verdadeira armadilha! Cavalheiros! Colegas! Fix começava a não
entender nada.
Colegas! gritou Passepartout, membros do Reform Club! Saiba, senhor Fix,
que meu patrão é um homem honesto, e que, quando faz uma aposta,
é lealmente que pretende ganhá-la.
Mas quem julga então que eu seja? perguntou Fix, fixando o olhar
em Passepartout.
É evidente! um agente dos membros do Reform Club, que tem a missão
de controlar o roteiro de meu patrão, o que é muitíssimo
humilhante! E mais, apesar de, já há algum tempo, ter adivinhado
sua qualidade, cuidei de não a revelar a Mr. Fogg! Ele não sabe
de nada?… perguntou Mr. Fix com vivacidade.
Nada, respondeu Passepartout esvaziando mais uma vez seu copo.
O inspetor de polícia passou a mão pela testa. Hesitava antes
de voltar a falar. O que deveria fazer? O erro de Passepartout parecia sincero,
mas tornava o seu projeto mais difícil. Era evidente que o rapaz falava
com absoluta boa fé, e que não era de modo algum cúmplice
do seu patrão o que Fix receara.
Ora bem, pensou, já que não é seu cúmplice,
me ajudará.
O detetive tinha tomado pela segunda vez uma decisão. Além
disso, não havia tempo a perder. A todo custo, era preciso reter Fogg
em Hong Kong.
Escute, disse Fix com voz grave, escute bem. Não sou o que julga,
isto é um agente dos membros do Reform Club…
Bah! disse Passepartout, olhando para ele com ar alcoolizado.
Sou um inspetor de polícia, encarregado de uma missão pela
administração metropolitana…
O senhor… inspetor de polícia!…
Sim, e provo, retomou Fix. Eis a minha nomeação.
E o agente, tirando um papel da carteira, mostrou a seu companheiro uma
nomeação assinada pelo comissário da polícia central.
Passsepartout, estupefato, olhava Fix sem poder articular uma palavra.
A aposta de Phileas Fogg, tornou Fix, é apenas um pretexto com que
enganou, a si e a seus colegas do Reform Club, porque tinha interesse em se
assegurar de sua inconsciente cumplicidade.
Mas por quê?… exclamou Passepartout.
Ouça. Em 28 de setembro passado, um roubo de cinqüenta e cinco
mil libras foi cometido no Banco da Inglaterra por um indivíduo cuja
descrição se pôde obter. Ora, eis esta descrição,
e é, traço por traço, a do senhor Fogg.
Deixe-se disso! gritou Passepartout dando um murro na mesa com o seu punho
robusto. Meu patrão é o homem mais honesto do mundo! Como sabe?
respondeu Fix. Nem sequer o conhece! Entrou para o seu serviço no dia
de sua partida, e ele partiu precipitadamente sob um pretexto insensato, sem
malas, levando uma grande soma em bank-notes! E ainda se atreve a sustentar
que é um homem honesto! Sim! Sim! repetia maquinalmente o pobre moço.
Quer então ser preso como seu cúmplice? Pasepartout agarrara
a cabeça com as duas mãos. Não era mais reconhecível.
Não ousava encarar o inspetor de polícia. Phileas Fogg um ladrão,
ele, o salvador de Aouda, o homem generoso e valente! E contudo que acusações
levantavam contra ele! Passepartout procurava repelir as suspeitas que começavam
a se insinuar em seu espírito! Não queria acreditar na culpabilidade
de seu patrão.
Afinal, que quer de mim? disse ao agente de polícia, contendo-se
com supremo esforço.
O seguinte, respondeu Fix. Segui o senhor Fogg até aqui, mas ainda
não recebi o mandado de prisão, que pedi a Londres. É
preciso portanto que me ajude a reter em Hong Kong…
Eu! que o…
E reparto consigo a gratificação de duas mil libras prometida
pelo Banco da Inglaterra! Jamais! respondeu Passepartout, que queria se levantar
e voltou a tombar na cadeira, sentindo a razão e as forças lhe
fugirem ao mesmo tempo.
Senhor Fix, disse balbuciando, mesmo que tudo o que me disse fosse verdade…
mesmo que meu patrão fosse o ladrão que procura… o que nego…
tenho estado… estou ao seu serviço… eu o vi bom e generoso… Traí-lo…
jamais… nem por todo o ouro do mundo… Sou de um vilarejo onde não
se come esse pão!..
Recusa? Recuso.
Façamos de conta que não disse nada, e bebamos.
Sim, bebamos! Passepartout se sentia cada vez mais dominado pela embriaguez.
Fix, compreendendo que era preciso, custasse o que custasse, separá-lo
do patrão, quis completar a tarefa. Sobre a mesa havia alguns cachimbos
cheios de ópio. Fix empurrou um sutilmente para a mão de Passepartout,
que o pegou, levou aos lábios, acendeu, deu algumas baforadas e desabou,
a cabeça aturdida sob a influência do narcótico.
Afinal, disse Fix vendo Passepartout aniquilado, o senhor Fogg não
será avisado a tempo da partida do Carnatic, e se partir, irá
ao menos sem este maldito francês! Depois saiu, após ter pago
a conta.
CAPÍTULO XX
EM QUE FIX ENTRA EM CONTATO DIRETO COM PHILEAS FOGG
Durante esta cena que iria talvez comprometer tão gravemente seu futuro,
Mr. Fogg, acompanhando Mrs. Aouda, passeava pelas ruas da cidade inglesa.
Desde que Mrs. Aouda tinha aceitado sua oferta de conduzi-la à Europa,
ele começara a providenciar todos os detalhes necessários para
uma viagem tão longa. Que um inglês como ele fizesse a volta
ao mundo com uma sacola de viagem na mão, admite-se; mas uma mulher
não a poderia empreender nestas condições. Daí
a necessidade de comprar roupas e objetos para a viagem. Mr. Fogg se incumbiu
desta tarefa com a calma que o caracterizava, e a todas as desculpas e objeções
da viúva, confusa com tanta amabilidade: É no interesse da minha
viagem, está no meu programa, respondia invariavelmente.
Feitas as aquisições, Mr. Fogg e a jovem regressaram ao hotel
e jantaram à mesa dos hóspedes, que estava suntuosamente servida.
Depois, Mrs. Aouda, um pouco cansada, subiu para o seu apartamento, depois
de ter apertado à inglesa a mão do seu imperturbável
salvador.
O respeitavel gentleman, este, absorveu-se durante toda a tarde na leitura
do Times e do Illustrated London News.
Se fosse homem capaz de ficar espantado com algo, teria ficado ao não
ver aparecer o seu criado à hora de deitar. Mas, sabendo que o paquete
para Yokohama não deveria sair de Hong Kong antes do dia seguinte pela
manhã, não se preocupou. No dia seguinte, Passepartout não
se apresentou ao toque da sineta de Mr. Fogg.
O que pensou o honrado gentleman ao saber que o seu criado não tinha
voltado ao hotel, ninguém poderá dizer. Mr. Fogg contentou-se
com pegar sua sacola de viagem, pediu para avisarem Mrs. Aouda, e mandou buscar
um palanquim.
Eram oito horas, e o preamar, que o Carnatic deveria aproveitar para sair
dos escolhos do porto, estava previsto para as nove e meia.
Quando o palanquim chegou à porta do hotel, Mr. Fogg e Mrs. Aouda
subiram para o confortável veículo, e as bagagens seguiram atrás
sobre uma carreta.
Meia hora mais tarde, os viajantes desciam no cais de embarque, e aí
Mr. Fogg soube que o Carnatic tinha partido na véspera.
Mr. Fogg, que esperava encontrar, ao mesmo tempo, o paquete e o criado,
ficara sem um e sem outro. Mas nenhum sinal de desapontamento apareceu em
seu semblante, e como Mrs. Aouda o olhava com inquietude, contentou-se em
responder: É um incidente, senhora, nada mais que um incidente.
Neste momento, um personagem, que o observava com atenção,
aproximou-se. Era o inspetor Fix, que o cumprimentou e disse: Não era
o senhor, como eu, um dos passageiros do Rangoon, que chegou ontem? Sim, senhor,
respondeu friamente Mr. Fogg, mas não tenho a honra…
Desculpe-me, mas pensava encontrar aqui o seu criado.
Sabe onde ele está, senhor? perguntou ansiosamente a jovem.
O que! respondeu Fix, fingindo surpresa, não está aqui? Não,
respondeu Mrs. Aouda. Desde ontem que não aparece. Teria embarcado
sem nós no Carnatic? Sem os senhores, madame?… respondeu o agente.
Mas, desculpe a minha pergunta, contavam partir neste paquete? Sim, senhor.
Eu também, madame, e, como vê, estou muito desapontado. O Carnatic,
tendo terminado seus reparos, deixou Hong Kong doze horas antes sem avisar
ninguém, e agora vai ser preciso esperar oito dias pela próxima
partida! Ao pronunciar as palavras oito dias, Fix sentia o coração
pular de alegria. Oito dias! Fogg retido oito dias em Hong Kong! Haveria tempo
para receber o mandado de prisão. Finalmente a sorte declarava-se a
favor do representante da lei.
Avaliem, então, o golpe mortal que recebeu, quando ouviu Mr. Fogg
dizer com a sua voz calma:
Mas há outros navios além do Carnatic, parece-me, no porto
de Hong Kong! E Mr. Fogg, oferecendo seu braço a Mrs. Aouda, dirigiu-se
para as docas à procura de um navio que estivesse de partida.
Fix, assombrado, foi atrás. Dir-se-ia que um fio o atava àquele
homem.
Contudo, a sorte parecia verdadeiramente ter abandonado aquele a quem até
então tanto servira. Phileas Fogg, durante três horas, percorreu
o porto em todos os sentidos, decidido, se preciso fosse, a fretar uma embarcação
para o transportar a Yokohama; mas só viu navios carregando ou descarregando,
e que, portanto, não poderiam estar de partida. Fix sentiu renascer
sua esperança.
Entretanto Mr. Fogg não se desconcertava, e ia continuar a sua busca,
mesmo que precisasse passar a Macau, quando foi abordado por um marinheiro
na entrada do porto.
Vossa Honra procura um barco? perguntou-lhe o marinheiro, tirando o chapéu.
Tem um barco pronto para partir? perguntou Mr. Fogg.
Sim, Vossa Honra, o barco de pilotagem n.° 43, o melhor da frotilha.
Navega rápido? Entre oito e nove milhas, mais ou menos. Quer vê-lo?
Sim.
Vossa Honra ficará satisfeito. É algum passeio no mar? Não.
De uma viagem.
Uma viagem? Encarregar-se-ia de levar-me a Yokohama? O marinheiro, a estas
palavras, deteve os movimentos do braço, esbugalhou os olhos.
Vossa Honra está brincando? disse.
Não! Perdi a partida do Carnartic, e preciso estar dia 14, o mais
tardar, em Yokohama, para tomar o paquete para São Francisco.
Lamento, respondeu o piloto, mas é impossível.
Ofereço cem libras (2.500 F) por dia, e uma gratificacão de
duzentas libras se chegar a tempo.
A sério? perguntou o piloto.
Muito a sério, respondeu Mr. Fogg.
O piloto afastara-se um pouco para o lado. Olhava o mar, evidentemente hesitando
entre o desejo de ganhar uma soma enorme e o medo de se aventurar tão
longe. Fix estava com pânicos mortais.
Neste interim, Mr. Fogg voltara-se para Mrs. Aouda.
Não tem medo, madame? perguntou.
Consigo, não, senhor Fogg, respondeu a jovem.
O piloto aproximara-se outra vez do gentleman, e girava o chapéu
entre as mãos.
Então, piloto? disse Mr. Fogg.
Então, Meu Senhor, respondeu o piloto, não posso arriscar
nem meus homens, nem a mim, nem mesmo a si, em uma travessia tão longa
num barco de vinte toneladas apenas, e nesta época do ano. Além
disso, não chegaríamos a tempo, porque há mil seiscentas
e cinqüenta milhas de Hong Kong a Yokohama.
Mil e seiscentas apenas, disse Mr. Fogg.
Dá na mesma.
Fix respirou fundo.
Mas, acrescentou o piloto, haverá talvez meio de se arranjar de outro
modo.
Fix não respirava mais.
Como? perguntou Phileas Fogg.
Indo a Nagasaki, a extremidade sul do Japão, mil e cem milhas, ou
apenas a Shangai, oitocentas milhas de Hong Kong. Nesta última travessia,
não nos afastaríamos da costa chinesa, o que seria uma grande
vantagem, ainda mais que aí as correntes levam para o norte.
Piloto, respondeu Phileas Fogg, é em Yokohama que devo tomar o paquete,
não em Shangai ou em Nagasaki.
Por que não? respondeu o piloto. O paquete para São Francisco
não parte de Yokohama. Faz escala em Yokohama e em Nagasaki, mas o
seu porto de partida é Shangai! Está certo do que diz? Certo.
E quando o paquete deixa Shangai? Dia 11, às sete da noite. Temos,
pois, quatro dias pela frente. Quatro dias, são noventa e seis horas,
e com uma média de oito milhas por hora, se tivermos sorte, se o vento
soprar de sudeste, se o mar estiver calmo, podemos fazer as oitocentas milhas
que nos separam de Shangai.
E pode partir…
Em uma hora. O tempo de comprar os víveres e aparelhar.
Negócio fechado… É dono do barco? Sim, John Bunsby, patrão
da Tankadère.
Quer um sinal? Se isso não ofender Vossa Honra.
Aqui estão duzentas libras por conta… Senhor, acrescentou Phileas
Fogg voltando-se para o agente, se quiser aproveitar…
Senhor, respondeu resolutamente Mr. Fix, ia lhe pedir esse favor.
Bem. Em meia hora estaremos a bordo.
Mas o pobre rapaz… disse Mrs. Aouda, a quem o desaparecimento de Passepartout
preocupava extremamente.
Vou fazer por ele tudo o posso fazer, respondeu Phileas Fogg.
E, enquanto Fix, nervoso, febril, raivoso, se encaminhava para o barco-piloto,
os dois se dirigiram para os escritórios da polícia de Hong
Kong. Ali, Phileas Fogg deu a descrição de Passepartout, e deixou
uma quantia suficiente para repatriá-lo.
A mesma formalidade foi cumprida junto ao agente consular francês,
e o palanquim, após passar pelo hotel, onde as bagagens foram pegas,
reconduziu os viajantes ao embarcadouro.
Soavam três horas. O barco-piloto n.° 43, com sua tripulação
a bordo, seus víveres embarcados, estava pronto para largar.
A Tankadère era uma pequena goleta atraente de vinte toneladas, bem
pinçada na frente, bem solta em suas maneiras, muito alongada em suas
linhas d’água. Parecida um iate de corrida. Seus cobres brilhantes,
sua ferragens galvanizadas, sua coberta branca como marfim, indicavam que
o mestre John Bunsby sabia conservá-la em bom estado. Seus dois mastros
inclinavam-se um pouco para trás. Levava velas latinas, mezena, traquete,
e, com vento pela popa, podia cortar o mar maravilhosamente. Devia navegar
rápido, e, de fato, já ganhara diversos prêmios nos “matches
de barcos de pilotagem.
A tripulação da Tankadère era composta pelo mestre
John Bunsby e quatro homens. Eram desses marinheiros valorosos que, com qualquer
tempo, se aventuram à busca dos navios, e conheciam muito bem estes
mares. John Bunsby, homem de cerca de quarenta e cinco anos, vigoroso, bronzeado
de sol, o olhar vivo, a expressão enérgica, bem aprumado, bom
no que fazia, teria inspirado confiança aos mais medrosos.
Phileas Fogg e Mrs. Aouda passaram ao navio. Fix já se achava ali.
Pela escotilha de popa da goleta, descia-se para um quarto quadrado, cujas
anteparas se desdobravam em forma de catres por cima de um divã circular.
No meio, uma mesa iluminada por um lampião que oscilava. Era pequeno,
mas limpo.
Lamento não poder lhe oferecer coisa melhor, disse Mr. Fogg a Fix,
que se inclinou sem responder.
O inspetor de polícia sentiu uma espécie de humilhação
em aproveitar assim os obséquios do senhor Fogg.
Com certeza, pensava, é um tratante muito delicado, mas é
um tratante.
Às três e dez, as velas foram içadas. O pavilhão
inglês tremulava no casco da goleta. Os passageiros estavam sentados
no convés. Mr. Fogg e Mrs. Aouda lançaram um último olhar
para o cais, para ver se Passepartout aparecia.
Fix não estava sem apreensões, porque o acaso poderia conduzir
àquele lugar o infeliz rapaz a quem tratara tão indignamente,
e então dar-se-iam explicações, das quais Fix não
se sairia muíto bem. Mas o francês não apareceu, e, sem
dúvida, o narcótico embrutecedor ainda o tinha sob sua influência.
Afinal, o mestre John Bunsby fez-se ao largo, e a Tankadère, tomando
o vento em suas velas, lançou-se balouçando sobre as ondas.
CAPÍTULO XXI
EM QUE O PATRÃO DA “TANKADÈRE CORRE SÉRIO
RISCO DE PERDER UMA GRATIFICAÇÃO DE DUZENTAS LIBRAS
Era uma expedição aventurosa esta navegação de
oitocentas milhas, numa embarcação de vinte toneladas, e principalmente
naquela época do ano. São geralmente maus os mares da China,
expostos a lufadas terríveis durante os equinócios, e estava-se
ainda nos primeiros dias de novembro.
Teria sido, por certo, mais vantajoso para o piloto conduzir seus passageiros
até Yokohama, pois era pago por dia. Mas teria sido imprudência
demais tentar tal travessia em tais condições, e já era
um ato audacioso, quando não temerário, ir até Shangai.
Mas John Bunsby tinha confiança em sua Tankadère, que se elevava
sobre as vagas como uma malva, e não estava errado.
Durante as últimas horas desta jornada, a Tankadère navegou
por entre os escolhos caprichosos de Hong Kong, e sob todos os critérios,
com vento pela frente ou por trás, comportou-se muito bem.
Não tenho necessidade, piloto, disse Phileas Fogg quando a goleta
entrava em alto mar, de lhe recomendar toda diligência possível.
Vossa Honra, vá por mim, respondeu John Bunsby. Fizemos às
velas, estamos dando tudo o que o vento permite dar. Querer ir mais rápido
só serviria para virar a embarcação em prejuízo
de sua marcha.
É o seu ofício, e não o meu, piloto, e confio em si.
Phileas Fogg, o corpo ereto, pernas afastadas, firme como um marinheiro,
contemplava, sem cambalear, o mar agitado. A jovem, sentada à popa,
sentia-se comovida contemplando este oceano, já com as sombras do crepúsculo,
cuja fúria arrostava em uma frágil embarcação.
Por cima da sua cabeça desdobravam-se as velas brancas, que a levavam
pelo espaço como grandes asas. A goleta, impelida pelo vento, parecia
voar no ar.
A noite veio. A lua entrava no seu primeiro quarto, a sua luz insuficiente
deveria logo extinguir-se nas brumas do horizonte. Nuvens corriam do leste
e já invadiam uma parte do céu.
O piloto tinha disposto os fogos de posição precaução
indispensável a ser tomada nestes mares muito freqüentados nas
proximidades das costas. As colisões de navios não eram raros
por ali, e, com a velocidade com que ia animada, a goleta despedaçar-se-ia
ao menor choque.
Fix meditava na proa da embarcação. Conservava-se afastado,
sabendo que Fogg era pouco amigo de conversas. Demais, repugnava-lhe falar
àquele homem, cujos favores aceitara. Meditava também sobre
o futuro. Parecia-lhe certo que o senhor Fogg não pararia em Yokohama,
que tomaria imediatamento o paquete para São Francisco, para alcançar
a América, cuja vasta extensão lhe garantiria a impunidade com
segurança. O plano de Phileas Fogg parecia-lhe ser muito simples.
Em vez de embarcar diretamente da Inglaterra para os Estados Unidos, como
um velhaco vulgar, este Fogg havia feito uma grande volta e atravessado três
quartas partes do globo, para alcançar com mais segurança o
continente americano, onde comeria tranqüilamente o milhão do
Banco, após ter despistado a polícia. Mas uma vez na terra da
União, que faria Fix? Abandonaria este homem? Não, cem vezes
não! e até que tivesse obtido um ato de extradição,
não o perderia de vista. Era seu dever e o cumpriria até o fim.
Em todo caso, algo de bom tinha acontecido. Passepartout já não
estava junto de seu patrão, e sobretudo, depois das confidências
de Fix, era importante que patrão e criado não se revissem jamais.
Phileas Fogg, este, também não deixava de pensar no criado,
tão estranhamente desaparecido. Feitas todas as reflexões, não
lhe parecia impossível que, em conseqüência de um mal entendido,
o rapaz tivesse embarcado no Carnatic, no último momento. Era também
a opinião de Mrs. Aouda, que sentia profundamente a ausência
deste excelente servidor, a quem tanto devia. Poderia acontecer que o reencontrassem
em Yokohama, e, se o Carnatic para ali o tivesse transportado, seria fácil
saber.
Por volta das dez horas, a brisa veio refrescar. Talvez tivesse sido prudente
arrefecer o passo, mas o piloto, após ter cuidadosametne observado
o céu, deixou o velame no estado em que estava. Demais, a Tankadère,
levava admiravelmente o pano, tendo uma grande capacidade de colocar água
fora, e tudo estava preparado para ser arranjado rapidamente, em caso de aguaceiro.
À meia noite, Phileas Fogg e Mrs. Aouda desceram para a cabina. Fix
os precedera, e estendera-se sobre um dos catres. Quanto ao piloto e seus
homens, ficaram a noite toda no convés.
No dia seguinte, 8 de novembro, ao nascer do sol, a goleta tinha feito mais
de cem milhas. A barquilha, usada com freqüência, indicou que a
média de sua velocidade estava entre oito e nove milhas. A Tankadère
ia com todo o pano largo, e obtinha assim sua máxima rapidez. Se o
vento se mantivesse nestas condições, as probabilidades eram
a seu favor.
A Tankadère, durante todo este dia, não se afastou muito da
costa, cujas correntes lhe eram favoráveis. Tinha-a a cinco milhas
ou mais a bombordo, e a costa, de perfil irregular, aparecia às vezes
no meio de alguns clarões. O vento vinha da terra, o mar estava por
isso mesmo menos forte: circunstância feliz para a goleta, porque as
embarcações de pequena tonelagem padecem principalmente com
a vaga, que lhes diminue a velocidade, que as “matam para empregar a
expressão marítima.
Pelo meio dia, o vento amainou um pouco e rodou para sudeste. O piloto largou
as flechas; porém, ao fim de duas horas, foi preciso recolhê-las,
porque o vento refrescava de novo.
Mr. Fogg e a jovem, muito felizmente refratários ao mal do mar, comeram
com apetite as conservas e a bolacha de bordo. Fix foi convidado a partilhar
de sua refeição e teve do aceitar, porque bem sabia que é
tão necessário lastrear o estômago como os barcos, mas
aquilo o vexava! Viajar à custa deste homem, nutrir-se com seus víveres,
achava pouco leal. Contudo, comeu pouco, é verdade mas comeu.
Entretanto, terminada a refeição, julgou dever chamar o senhor
Fogg à parte, e disse-lhe: Senhor…
Este “senhor lhe queimava os lábios, e se conteve para não
pôr a mão no colete deste “senhor.
Senhor, foi muito gentil em me oferecer passagem em seu navio; mas, ainda
que os meus recursos não me permitam gastar tão generosamente
como o senhor, quero pagar a minha parte…
Não falemos nisso, senhor, respondeu Mr. Fogg.
Mas, se insisto…
Não, senhor, repetiu Mr. Fogg em tom que não admitia réplica.
Isso entra nas despesas gerais! Fix inclinou-se, sufocava, e, indo deitar-se
à proa da goleta, não disse mais nenhuma palavra durante a jornada.
Seguiam velozmente. John Bunsby tinha boas esperanças. Diversas vezes
disse a Mr. Fogg que chegariam no tempo desejado a Shangai. Mr. Fogg respondeu
simplesmente que contava com isso. Demais, toda a tripulação
da pequena goleta esforçava-se em o conseguir. A gratificação
estimulava aqueles bravos marinheiros. Por isso não se via uma escotilha
que não estivesse conscienciosamente fechada! Não havia vela
que não estivesse vigorosametne içada! Não se dava a
mais pequena guinada de que pudessem acusar o homem do leme. Em qualquer regata
do Royal Yacht Club não se faria manobras com mais precisão.
À tarde, o piloto tinha apurado com a barquilha um percurso de duzentas
milhas percorridas desde Hong Kong, e Phileas Fogg podia esperar que ao chegar
a Yokohama não teria nenhum atraso a registrar no seu programa. Portanto,
o primeiro contratempo sério que experimentara desde sua partida de
Londres, não lhe causaria provavelmente nenhum prejuízo.
Durante a noite, pelas primeiras horas da manhã, a Tankadère
entrava franqueando no estreito de Fo-Kien, que separa a grande ilha Formosa
da costa chinesa, e atravessava o trópico de Câncer. O mar é
agitado ali, cheio de redemoinhos formados pelas contra correntes. A goleta
fatigou-se bastante. As vagas curtas embaraçavam sua marcha. Tornou-se
muito difícil manter-se em pé sobre o convés.
Com o romper do dia, o vento refrescou mais. Havia no céu indícios
de borrasca. Demais, o barômetro anunciava uma mudança próxima
de atmosfera; sua marcha diurna estava irregular, e o mercúrio oscilava
caprichosamente. Via-se também o mar levantar-se para o sudoeste em
longas ondas “que sentiam a tempestade. Na véspera o sol tinha-se
deitado em uma bruma avermelhada, no meio de cintilações fosforescentes
do oceano.
O piloto examinou durante muito tempo este mau aspecto do céu e murmurou
entredentes coisas pouco inteligíveis. Em certo momento, achando-se
perto de seu passageiro: Pode-se dizer tudo a Vossa Honra? disse em voz baixa.
Tudo, respondeu Phileas Fogg.
Pois bem, vamos ter uma borrasca.
Virá do norte ou do sul? perguntou simplesmente Mr. Fogg.
Do sul. Veja. É um tufão que se prepara.
Vá pelo tufão do sul, pois que nos levará para o lado
certo, respondeu Mr. Fogg.
Se encara assim, replicou o piloto, não tenho mais nada a dizer.
Os pressentimentos de John Bunsby não o enganaram. Numa época
menos adiantada do ano o tufão, segundo a expressão de um célebre
meteorologista, ter-se-ia desfeito como uma cascata luminosa de flamas elétricas,
mas no equinócio do inverno era de recear que se desencadeasse com
violência.
O piloto tomou de antemão as suas precauções, Mandou
fechar todas as velas da goleta e colocar as vergas na coberta. Arreou os
mastaréus. Colocou o bote para dentro. Recolheu todas as velas auxiliares.
As escotilhas foram fechadas com todo o cuidado. Desde esse momento nem uma
gota de água podia penetrar no casco da embarcação.
Apenas uma vela triangular, de grande porte, foi içada à guisa
de trinquete, de modo a manter a goleta com vento pela popa. E esperaram.
John Bunsby tinha convidado os passageiros a descerem para a cabina; mas,
num espaço estreito, quase privado de ar, e no meio dos balanços
produzidos pelas vagas, este aprisionamento não teria sido nada agradável.
Nem Mr. Fogg, nem Mrs. Aouda, nem o próprio Fix, consentiram em sair
da coberta.
Pelas oito horas, a borrasca de chuva e vendaval desabou sobre a embarcação.
Só com seu pedaço de pano, a Tankadère foi levantada
como uma pena pelo vento do qual não se saberia dar uma idéia
exata, quando sopra em tempestade. Comparar sua velocidade à quádrupla
velocidade de uma locomotiva lançada a todo o vapor, seria ficar aquém
da verdade.
Durante o dia todo, a embarcação correu assim na para o norte,
arrastada pelas vagas monstruosas, conservando felizmente uma velocidade igual
à delas. Vinte vezes esteve a pique de ser submergida por uma das montanhas
de água que se lançavam sobre sua popa; mas um movimento certeiro
do leme, feito pelo piloto, evitava a catástrofe. Algumas vezes os
passageiros ficavam completamente envoltos pelas ondas que recebiam filosoficamente.
Fix resmungava sem dúvida, mas a intrépida Aouda, os olhos fixos
no seu companheiro, cujo sangue frio não podia deixar de admirar, mostrava-se
digna dele e arrostava a tormenta ao seu lado. Quanto a Phileas Fogg, parecia
que aquele tufão fazia parte do seu programa.
Até então a Tankadère fizera sempre rota para o norte;
mas pela noite, como se receiava, o vento, rodando três quartos, soprou
para noroeste. A goleta, oferecendo então o flanco à vaga, foi
assustadoramente sacudida de modo terrível. O mar embatia contra ela
com uma violência assustadora, quando não se sabe a solidez com
que todas as peças de uma embarcação estão ligadas
entre si.
Com a noite, a tempestade acentuou-se ainda. Vendo a escuridão começar,
e com a escuridão aumentar a tormenta, John Bunsby padeceu com vivas
inquietações. Perguntou-se se não seria tempo de relaxar,
e consultou a tripulação.
Depois de interrogar seus homens, John Bunsby aproximou-se de Mr. Fogg,
e disse-lhe: Acredito, Vossa Honra, que seria melhor aproarmos em um dos portos
da costa.
Também acredito, respondeu Mr. Phileas Fogg.
Ah! exclamou o piloto, mas em qual? Só conheço um, respondeu
tranqüilamente Mr. Fogg.
E é…
Shangai.
Esta resposta, o piloto a princípio levou alguns minutos sem compreender
o que significava, o quanto continha de obstinação e de tenacidade.
Depois exclamou: Ah, sim! Vossa Honra tem razão. Para Shangai! E a
direção da Tankadère foi imperturbavelmente conservada
para o norte.
Noite verdadeiramente terrível! Foi um milagre que a pequena goleta
não sossobrasse. Duas vezes esteve a esse ponto, e tudo quase foi levado
de bordo. Mrs. Aouda estava fadigada, mas não fez ouvir uma queixa.
Mais de uma vez Mr. Fogg teve de correr para protegê-la da violência
das ondas.
O dia reapareceu. A tempestade desencadeva-se ainda com um extremo furor.
Contudo, o vento recaiu para o sudoeste. Era uma mudança favorável,
e a Tankadère abriu novamente caminho sobre este mar agitado, cujas
ondas se encontravam com as que o novo vento levantava. Daí um choque
de contra-ondas, que teria esmagado uma embarcação menos solidamence
construída.
De tempo em tempo avistava-se a costa através de aberturas nas brumas
, mas nenhum navio à vista. A Tankadère era única no
mar.
Ao meio dia, houve alguns sintomas de acalmia, que, com o baixar do sol
no horizonte, se pronunciaram mais nitidamente.
A pouca duração da tempestade devia-se à sua própria
violência, Os passageiros, absolutamente prostrados, puderam comer e
repousar um pouco.
A noite foi relativamente sossegada. O piloto largou outra vez as velas.
A velocidade da embarcação foi considerável. No dia seguinte,
ao nascer do dia, John Bunsby, feito o reconhecimento da costa, pôde
afirmar que não estavam a cem milhas de Shangai.
Cem milhas, e só restava aquele dia para as percorrer! Era naquela
mesma tarde que Mr. Fogg deveria chegar a Shangai, se não quisesse
perder a partida do paquete para Yokohama. Sem aquela tempestade, durante
a qual perdeu muitas horas, estaria naquele momento a trinta milhas do porto.
A brisa abonançava sensivelmente, mas por fortuna o mar caía
com ela. A goleta se cobriu de panos. Flechas, velas de estal, bujarrona,
tudo entrara em ação, e o mar escumava sob a roda da proa.
Ao meio dia, a Tankadère não estava a mais de quarenta e cinco
milhas de Shangai. Restavam seis horas ainda para ganhar este porto antes
da partida do paquete para Yokohama.
Os receios foram muitos. Queriam chegar a todo custo. Todos menos Phileas
Fogg por certo sentiam o coração bater de impaciência.
Era preciso que a pequena goleta se mantivesse numa média de nove milhas
por hora, e o vento continuava a amainar! Era uma brisa irregular, as lufadas
caprichosas vindo da costa. Passavam, e o mar se acalmava também após
sua passagem.
Contudo a embarcação era tão leve, suas velas altas,
de um tecido fino, apanhavam tão bem as lufadas irregulares, que, a
corrente ajudando, às seis horas, John Bunsbay não contava mais
que dez milhas até o rio de Shangai, porque a cidade está situada
a doze milhas pelo menos acima da embocadura.
Às sete horas, achavam-se ainda a três milhas de Shangai. Uma
formidável praga escapou da boca do piloto… O prêmio de duzentas
libras iria evidentemente lhe escapar. Olhou para Mr. Fogg. Mr. Fogg estava
impassível, e contudo toda a sua fortuna era jogada neste momento…
Neste momento também, uma longa fuselagem negra, coroada com um penacho
de fumaça, apareceu ao nível da água. Era o paquete americano,
que saía na hora regulamentar.
Maldição! exclamou John Bunsby, que empurrou o leme com um
braço desesperado.
Sinais! disse simplesmente Phileas Fogg.
Um pequeno canhão de bronze se alojava na proa da Tankadère.
Servia para fazer sinais em tempos de nevoeiro.
A peça foi carregada até à boca, mas no momento em
que o piloto ia aplicar um carvão ardente à peça: A bandeira
a meio pau, disse Mr. Fogg.
A bandeira foi arreada a meio mastro. Era um sinal de perigo, e podiam esperar
que o paquete americano, percebendo-o, modificasse por um instante sua rota
para dirigir-se à embarcação.
Fogo! disse Mr. Fogg.
E a detonação da pequena peça de bronze eclodiu no
ar.
CAPÍTULO XXII
EM QUE PASSEPARTOUT RECONHECE QUE, MESMO NOS ANTÍPODAS, É
PRUDENTE TER ALGUM DINHEIRO NO BOLSO
O Carnatic, tendo saído de Hong Kong, a 7 de novembro, às seis
e meia da tarde, dirigia-se a todo o vapor para as terras do Japão.
Levava um carregamento completo de mercadorias e passageiros. Duas cabinas
de popa estavam desocupados. Eram as que tinham sido reservadas por conta
de Mr. Phileas Fogg.
Na manhã seguinte, pela manhã, o pessoal da proa pôde
ver, não sem alguma surpresa, um passageiro, o olho meio abestalhado,
andar vacilante, cabeleira revolta, que saía da segunda classe e vinha,
cambaleando, sentar-se numa bóia.
Este passageiro era Passepartout em pessoa. Eis o que tinha acontecido.
Instantes depois de Fix ter saído do antro de ópio, dois rapazes
tinham levantado Passepartout profundamente adormecido, e o tinham deitado
sobre o leito reservado aos fumadores. Mas três horas mais tarde, Passepartout,
perseguido até nos seus pesadelos por uma idéia fixa, acordou
e lutou contra a ação estupificante do narcótico. O pensamento
do dever não cumprido sacudia seu torpor. Deixou o leito, e, tropeçando,
apoiando-se às paredes, tombando e levantando, mas sempre e irresistivelmente
impelido por uma espécie de instinto, saiu da taverna, gritando como
num sonho: o Carnatic! o Carnatic! O paquete estava ali lançando fumaça,
pronto para zarpar. Passepartout só tinha alguns passos a dar. Lançou-se
para o convés voando, atravessou a abertura da amurada, e caiu inanimado
para frente, no momento em que o Carnatic largava suas amarras.
Alguns marinheiros, gente habituada a este tipo de cena, conduziram o pobre
moço para um camarote de segunda, e Passepartout só acordou
no dia seguinte de manhã, a cento e cinqüenta milhas das terras
da China.
Eis por quê naquela manhã Passepartout se achava sobre o convés
do Carnatic e vinha aspirar a plenos pulmões as frescas brisas marinhas.
O ar puro o despertou. Começou a juntar as idéias e não
conseguiu senão a duras penas. Mas, afinal, lembrou-se das cenas da
véspera, das confidências de Fix, da taverna, etc.
É evidente, disse, que fui abominavelmente embriagado. O que dirá
Mr. Fogg? Em todo o caso, não perdi o barco, e é o principal!
Depois, pensando em Fix: Daquele, espero que tenhamos ficado livres, e que
não terá ousado, depois do que me propôs, a nos seguir
a bordo do Carnatic. Um inspetor de polícia, um detetive na pista de
meu patrão, acusado do roubo feito no Banco da Inglaterra! Ora vamos!
Mr. Fogg é um ladrão como eu sou um assassino! Deveria Passepartout
contar estas coisas a seu patrão? Conviria dizer-lhe o papel representado
por Fix em todo esse negócio? Não seria melhor esperar a sua
chegada a Londres, para lhe dizer que um agente da polícia metropolitana
o seguira à volta ao mundo, e rir com ele? Sim, sem dúvida.
Em todo caso, questão a examinar. O mais urgente era reunir-se a Mr.
Fogg e apresentar-lhe suas desculpas por esta inqualificável conduta.
Passepartout levantou-se. O mar estava picado, e o barco balançava
forte. O digno rapaz, com as pernas ainda pouco sólidas, ganhou mal
e mal a popa do navio.
Sobre o convés, não viu ninguém que se parecesse com
seu patrão, nem com Mrs. Aouda.
Bem, disse, Mrs. Aouda está ainda deitada a esta hora. Quanto a Mr.
Fogg, terá encontrado algum jogador de whist, e, segundo o seu costume…
Dizendo isto, Passepartout desceu ao salão. Mr. Fogg não estava
ali. Passepartout só tinha uma coisa a fazer: perguntar ao purser que
cabina ocupava Mr. Fogg. O purser respondeu que não conhecia nenhum
passageiro com este nome.
Desculpa, disse Passepartout insistindo. É um gentleman alto, frio,
pouco comunicativo, acompanhado de uma jovem dama…
Não temos nenhuma jovem dama a bordo, respondeu o purser. Demais,
eis a lista dos passageiros. Pode consultá-la.
Passepartout consultou a lista… O nome de seu patrão não
figurava nela.
Teve uma espécie de vertigem. Depois uma idéia atravessou-lhe
o cérebro.
Mas espere! Estou mesmo no Carnatic? perguntou.
Sim, respondeu o purser.
Em viagem para Yokohama? Perfeitamente.
Passepartout receara por um instante ter-se enganado de navio! Mas, se estava
no Carnatic, era certo que seu patrão ali não estava.
Passepartout deixou-se tombar numa poltrona. Era um golpe mortal. E, súbito,
a luz se fez. Lembrou-se que a hora de partida do Carnatic tinha sido antecipada,
que deveria ter avisado seu patrão, que não o fizera. Era pois
sua falta se Mr. Fogg e Mrs. Aouda tivessem faltado à partida! Sua
falta, sim, mas ainda mais daquele tratante que, para separá-lo do
patrão, para reter este em Hong Kong, o embriagara! Porque compreendia
afinal a manobra do inspetor de polícia. E agora, Mr. Fogg estava com
certeza arruinado, sua aposta perdida, detido, encarcerado talvez!… Passepartout,
a este pensamento, arrancou os cabelos. Ah! Se algum dia Fix caísse
em suas mãos, que ajuste de contas! Por fim, após o primeiro
momento de depressão, Passepartout recuperou o seu sangue frio e estudou
a situação. Era pouco invejável. O francês achava-se
a caminho do Japão. Tinha a certeza de chegar lá, como, porém,
voltaria? Tinha os bolsos vazios. Nem um schilling, nem um penny! Entretanto,
a sua passagem e o seu sustento a bordo estavam pagos adiantados. Tinha, pois,
cinco ou seis dias ao seu dispor para tomar uma decisão. Se comeu e
bebeu durante esta travessia, nem é preciso dizer. Comeu por seu patrão,
por Mrs. Aouda e comeu por si mesmo. Comeu como se o Japão, onde iria
aportar, fosse país deserto, desprovido de qualquer substância
comestível.
Dia 13, na maré da manhã, o Carnatic entrou no porto de Yokohama.
Este porto é uma parada importante do Pacífico, onde fazem
escala todos os vapores empregados no serviço de correio e de viajantes
entre a América do Norte, a China, o Japão e as ilhas da Malásia.
Yokohama está situada na baía de Yedo, a pouca distância
desta imensa cidade, segunda capital do império japonês, outrora
residência do Tycoon, do tempo em que este imperador civil existia,
e rival de Meako, a grande cidade em que habita o mikado, imperador eclesiástico,
descendente dos deuses.
O Carnatic veio se alinhar no cais de Yokohama, perto dos molhes do porto
e dos armazéns da alfândega, no meio de numerosos navios pertencentes
a todas as nações.
Passepartout desembarcou, sem nenhum entusiasmo, naquela terra tão
curiosa dos Filhos do Sol. Não tinha nada melhor para fazer do que
tomar o acaso por guia, e aventurar-se pelas ruas da cidade.
Passepartout achou-se logo numa cidade absolutamente européia, com
casas de fachadas baixas, ornadas de varandas sob as quais se viam elegantes
peristilos, e que cobria com suas ruas, suas praças, suas docas, seus
entrepostos, todo o espaço compreendido entre o promontório
do Tratado e o rio. Ali, como em Hong Kong, como em Calcutá, formigava
uma mistura de gente de todas as raças, Americanos, Ingleses, Chineses,
Holandeses, mercadores prontos a tudo vender e a tudo comprar, no meio dos
quais o francês se achava tão estrangeiro como se tivesse sido
lançado na terra dos Hotentotes.
Passepartout tinha, na verdade, um recurso: era recomendar-se junto aos
agentes consulares francês ou inglês estabelecidos em Yokohama;
mas lhe repugnava contar sua história, tão intimamente ligada
com a de seu patrão, e antes de chegar a isso, queria primeiro esgotar
todos os outros recursos.
Por isso, depois de ter percorrido a parte européia da cidade, sem
que o acaso de nada lhe servisse, entrou na parte japonesa, decidido, se preciso,
a avançar até Yedo.
Esta porção indígena de Yokohama é chamada Benten,
do nome de uma deusa do mar, adorada nas ilhas vizinhas. Lá se viam
admiráveis alamedas de pinheiros e de cedros, portas sagradas de uma
arquitetura estranha, pontes enfurnadas no meio de bambus e de caniços,
templos abrigados sob a ramagem imensa e melancólica de cedros seculares,
mosteiros de bonzos no fundo dos quais vegetavam os sacerdotes do budismo
e os seguidores da religlão de Confucio, ruas intermináveis
de onde se poderia colher uma safra de crianças de cútis rosadas
e faces vermelhas, pequenas criaturas que diríamos recortadas de algum
biombo nativo, e que brincavam no meio de cadelas de pernas curtas e gatos
amarelados, sem cauda, muito indolentes e muito meigos.
Nas ruas, um formigueiro, vais-e-vens incessantes: bonzos passando em procissão
batendo em tamborins monótonos; yakouninos, oficiais da alfândega
ou da polícia, com chapéus ponteagudos encrustados de laca e
trazendo dois sabres à cinta; soldados vestidos com trajes de algodão
azul listrados de branco e armados com fuzis de percussão; homens de
armas do mikado, ensacados nos seus gibões de seda, com loriga e cota
de malha, e muitos outros militares de todas as condições porque,
no Japão, a profissão de soldado é tão estimada
como desprezada na China. Depois, frades mendicantes, peregrinos em longas
túnicas, simples civis, cabeleira lisa e de um negro de ébano,
muito comprida, cabeça grande, tronco comprido, pernas delgadas, estatura
pouco elevada, tez colorida desde as sombrias tonalidades do cobre até
o branco pálido, mas nunca amarela como a dos Chineses, de que os japoneses
diferem essencialmente. Finalmente, entre as viaturas, os palaquins, os cavalos,
os carregadores, os carrinhos de vela, os “norimons com paredes de laca,
os fofos “cangos, verdadeiras liteiras de bambu, via-se circular com
pequenos passos de seus pequenos pés, calçados com sapatos de
seda, sandálias de palha ou de socós de madeira trabalhada,
algumas mulheres pouco bonitas, os olhos contraídos, o peito deprimido,
os dentes enegrecidos ao gosto local, mas levando com elegância o traje
nacional, o “kirimon, espécie de roupão cingido por uma
faixa de seda formando na cintura, pelo lado de trás, um laço
extravagante que as senhoras de hoje parecem ter emprestado das japonesas.
Passepartout passeou durante algumas horas entre esta multidão bizarra,
contemplando também as curiosas e opulentas lojas, os bazares onde
se acumula toda a produção da ourivesaria japonesa, os restaurantes
ornados com bandeirolas e flâmulas, nas quais lhe era proibido entrar,
e as lojas de chá onde se bebem chavenas cheias de água quente
odorífera, com o “saki, licor tirado do arroz em fermentação,
e confortáveis casas de fumo onde se saboreia um tabaco muito fino,
e não o ópio, cujo uso é quase desconhecido no Japão.
Depois, Passepartout achou-se nos campos, no meio de imensos arrozais. Ali,
se espalhavam, com as flores que lançavam suas derradeiras cores e
seus derradeiros perfumes, camélias deslumbrantes, não em arbustos,
mas em árvores, e, nos cercados de bambu, cerejeiras, pereiras, macieiras,
que os indígenas cultivam mais por suas flores que por seus frutos,
e que espantalhos e ruidosos molinetes defendem do bico dos pardais, dos pombos,
dos corvos e de outras aves vorazes. Não havia cedro magestoso que
não abrigasse alguma grande águia, nem salgueiro sob cuja folhagem
não se ocultasse alguma garça real, melancolicamente empoleirada
num pé; finalmente, por toda parte abundavam as gralhas, os patos mansos
e selvagens, os gaviões, e grande número dessas cegonhas a que
os japoneses chamam “senhoritas e que para eles simbolizam a longevidade
e a felicidade.
Vagueando assim, Passapartout descobriu algumas violetas entre a relva.
Bom! disse ele, eis minha ceia! Mas quando as cheirou não encontrou
nenhum perfume.
De modo algum! pensou ele.
Claro, o rapaz tinha, por previsão, almoçado tão copiosamente
quanto pudera antes de desembarcar; mas, depois de um dia de passeio, sentia
o estômago muito vazio. Tinha notado que nos estoques dos açougues
indígenas faltava carne de porco, de carneiro ou de cabra, e, como
sabia que é um sacrilégio matar os bois, unicamente destinados
às utilidades agrícolas, concluíra que no Japão
a carne é muito rara. Não se enganara; mas à falta de
carne no açougue, o seu estômago dar-se-ia perfeitamente bem
com algum pedaço de javali ou de gamo, com alguma perdiz ou codorniz,
com algum pedaço de ave ou de peixe, com que os japoneses se sustentam
quase que exclusivamente com o produto dos arrozais. Mas teve de se resignar
à sorte, e guardar para o dia seguinte o cuidado de prover ao seu sustento.
A noite chegou. Passepartout regressou à cidade indígena,
e errou pelas ruas em meio a lanternas multicores, contemplando os grupos
de acrobatas que executavam os seus prodigiosos exercícios, e vários
astrólogos que, ao ar livre, reuniam a multidão em volta de
suas lunetas. Em seguida voltou para o ancoradouro, iluminado pelos fogos
dos pescadores, que atraíam peixe à luz de resinas inflamadas.
Afinal as ruas despovoaram-se. À multidão sucederam as rondas
dos yakounines. Estes oficiais, com os seus trajes magníficos e com
seu cortejo, pareciam embaixadores, e Passepartout repetia gracejando, cada
vez que encontrava qualquer patrulha deslumbrante: Ah, sim! mais uma embaixada
japonesa que parte para a Europa.
CAPÍTULO XXIII
EM QUE O NARIZ DE PASSEPARTOUT FICA MUITO MUITO LONGO
No dia seguinte, Passepartout, estafado, esfomeado, resolveu que era preciso
comer a todo custo, e quanto mais cedo melhor. Tinha, é verdade, o
recurso de vender seu relógio, mas preferiria morrer de fome. Era uma
oportunidade para este bravo rapaz usar a voz forte, melodiosa, com que a
natureza o dotara.
Sabia alguns refrões da França e da Inglaterra, e resolveu
experimentá-los. Os japoneses deveriam certamente gostar de música,
pois que tudo se faz entre ao som dos címbalos, do tantã e dos
tambores, e não deveriam por certo apreciar os talentos de um virtuose
europeu.
Mas talvez fosse um pouco cedo demais para organizar um concerto, e os dilettanti,
inopinadamente despertos, não iriam talvez pagar o cantor em moeda
com a efígie do mikado.
Passepartout decidiu-se, pois, esperar algumas horas; mas, caminhando, pensou
que parecia bem vestido demais para um artista ambulante, e veio-lhe a idéia
de trocar suas roupas por trajes usados, mais em harmonia com sua posição.
Esta troca, ainda, deveria deixar um saldo, que poderia imediatamente aplicar
para saciar seu apetite.
Tomada esta resolução, faltava executá-la. Foi só
depois de longas buscas que Passepartout descobriu um brechó indígena,
no qual expôs seu pedido. O traje europeu agradou ao comerciante e logo
depois Passepartout saía envolto em uma velha roupa japonesa e com
uma espécie de turbante na cabeça, desbotado pela ação
do tempo. Mas, em compensação, algumas moedas de prata tilintavam
em seu bolso.
Bem, pensou, vou imaginar que estamos no carnaval!
O primeiro cuidado de Passepartout, assim japonificado, foi entrar numa “tea-house,
de aparência modesta, e aí, com uns restos de ave e um punhado
de arroz, almoçou como um homem para quem o jantar seria ainda um problema
a ser resolvido.
Agora, disse para si, depois de comer copiosamente, é bom não
perder a cabeça. Não tenho mais o recurso de trocar estes andrajos
por outro ainda mais japonês. É preciso, portanto, encontrar
um meio de deixar o mais rápido possível este país do
Sol, do qual só guardarei uma lamentável lembrança! Passepartout
cogitou então em visitar os paquetes de partida para a América.
Contava oferecer-se como cozinheiro ou criado, não pedindo outra retribuição
além da passagem e comida. Uma vez em São Francisco, veria o
que fazer. O importante era atravessar estas quatro mil e setecentas milhas
do Pacífico que se estendem entre o Japão e o Novo Mundo.
Passepartout, não sendo homem de deixar fenecer uma idéia,
dirigiu-se para o porto de Yokohama. Mas, à medida que se aproximava
das docas, o projeto, que lhe havia parecido tão simples no momento
em que o concebera, parecia cada vez mais inexequível. Porque é
que teriam necessidade de um cozinheiro ou de um criado a bordo de um paquete
americano, e que confiança inspiraria, vestido assim? Que recomendações
poderia dar? Que referências indicar? Enquanto assim pensava, seus olhos
caíram sobre um imenso cartaz que uma espécie de clown desfilava
pelas ruas de Yokohama. Este cartaz estava também escrito em inglês:
O cartaz dizia o seguinte, em inglês:
TRUPE JAPONESA ACROBÁTICA DO RESPEITÁVEL WILLIAM BATULCAR
_______
ÚLTIMAS REPRESENTAÇÕES Antes de partir para os Estados
Unidos da América DOS NARI-LONGOS-NARI-LONGOS SOB A INVOCAÇÃO
DIRETA DO DEUS TINGOU
Grande Atração!
Os Estados Unidos da América! exclamou Passepartout, é justamente
o que procuro!…
Seguiu o homem-sanduíche, e voltou à cidade japonesa. Um quarto
de hora mais tarde, parava diante de uma vasta barraca, coroada por fileiras
de bandeirinhas, e cujas paredes externas representavam, sem perspectiva,
mas em cores fortes, todo um grupo de malabaristas.
Era o estabelecimento do respeitável Batulcar, espécie de
Barnum americano, diretor de uma companhia de saltimbancos, malabaristas,
clowns, acrobatas, equilibristas, ginastas, que, segundo o cartaz, fazia suas
últimas apresentações antes de deixar o império
do Sol para os Estados da União.
Passepartout entrou num peristilo que precedia a barraca, e chamou Mr. Batulcar.
Apareceu Batulcar em pessoa.
O que quer? disse a Passepartout, a quem tomou à princípio
por um nativo.
Precisa de um criado? perguntou Passepartout.
Um criado, exclamou Batulcar cofiando a espessa barbicha grisalha sob o
queixo, tenho dois, obedientes, fiéis, que nunca me deixaram, que me
servem por nada, com a condição que os alimente… E eles aqui
estão, acrescentou mostrando seus dois braços robustos, sulcados
por veias grossas como cordas de contrabaixo.
Então não posso ser-lhe útil em nada? Em nada.
Diacho! teria sido muito conveniente para mim partir consigo.
Ah, então é isso! disse o respeitável Batulcar, você
é tão japonês quanto eu sou um macaco! Porque está
vestido assim? A gente se veste como pode! É verdade. É francês?
Sim, um parisiense de Paris.
Então deve saber fazer caretas? Claro, respondeu Passepartout, vexado
por ver sua nacionalidade provocar esta pergunta, nós os franceses,
sabemos fazer caretas, é verdade, mas não melhor do que os americanos!
Exato. Pois bem, se não o contrato como criado, posso contratá-lo
como clown. Compreenda, meu bravo. Na França exibem-se comediantes
estrangeiros e no estrangeiro comediantes franceses! Ah! É vigoroso,
não é? Principalmente quando saio da mesa.
E sabe cantar? Sim, respondeu Passepartout, que em outros tempos participara
de alguns concertos de rua.
Mas sabe cantar de cabeça para baixo, com um pião girando
na planta do pé esquerdo, e um sabre em equilíbrio na planta
do pé direito? Se sei! respondeu Passepartout, que se lembrava dos
primeiros exercícios da sua tenra idade.
Então está bem! respondeu o respeitável Batulcar.
A contratação foi concluída hic et nunc.
Afinal, Passepartout achara uma posição. Estava contratado
para fazer de tudo na célebre companhia japonesa. Era pouco lisongeiro,
mas em menos de oito dias estaria a caminho de São Francisco.
A representação, anunciada em altos brados pelo ilustre Batulcar,
deveria começar às três horas, e logo os ensurdecedores
instrumentos de uma orquestra japonesa, tambores e tantãs, tocavam
à porta. Comprendam que Passepartout não tinha podido estudar
um papel, mas deveria emprestar o apoio de seus sólidos ombros no grande
exercício da pirâmide humana executado pelos Nari-Longos do deus
Tingou. Esta great-attraction do espetáculo deveria encerrar a série
dos exercícios.
Antes das três horas, os espectadores tinham invadido a grande tenda.
Europeus e indígenas, Chineses e Japoneses, homens, mulheres e crianças,
precipitavam-se sobre as estreitas bancadas nos camarotes que ficavam de frente
para a cena. Os músicos tinham voltado para dentro, e a orquestra completa,
gongos, tantãs, castanholas, flautas, tamborins e grandes bumbos, tocava
com furor.
Esta representação foi como são todas as exibições
de acrobatas. Mas é preciso confessar que os japoneses são os
melhores equilibristas do mundo. Um, armado com sua ventarola e pequenos pedaços
de papel, executava o exercício tão gracioso das borboletas
e das flores. Outro, com a fumaça odorífera de seu cachimbo,
traçava rapidamente no ar uma série de palavras azuladas, que
formavam um comprimento dirigido à platéia. Este brincava com
velas acesas, que sucessivamente apagava quando passavam na frente dos seus
lábios, e que tornava a acender uma na outra sem por um instante interromper
o seu jogo de prestidigitação. Aquele, produzia, com piões
giratórios, as mais inverossímeis combinações;
em suas mãos, estas máquinas roncadoras pareciam adquirir vida
própria em seu giro interminável; corriam sobre cabos de cachimbo,
sobre fios de sabres, sobre arames, cabelos de verdade estendidos de um a
outro lado do palco; giravam nas bordas de grandes copos de cristal, subiam
degraus de bambu, dispersavam-se para todos os lados, produzindo efeitos harmônicos
exóticos ao combinarem seus diversos tons. Os malabaristas as lançavam
e elas giravam no ar; eles as lançavam como petecas, com raquetes de
madeira, giravam sempre; eles as enfurnavam no bolso, e quando as retiravam,
giravam ainda até o momento em que uma mola distendida as fazia desabrochar
em ramalhetes artificiais! Inútil descrever aqui os prodigiosos exercícios
dos acrobatas e dos ginastas da companhia. As piruetas na escada, na vara,
na bola, nos barris, etc., foram executados com incrível precisão.
Mas a principal atração do espetáculo era a exibição
dos Nari-Longos, assombrosos equilibristas que a Europa ainda não conhece.
Os Nari-Longos formam uma corporação particular colocada sob
a proteção direta do deus Tingou. Vestidos como os arautos da
Idade Média, traziam um esplêndido par de asas nas costas. Mas
o que mais os distinguia, era o longo nariz com que suas faces estavam ornamentadas,
e principalmente o uso que faziam deles. Estes narizes nada mais eram que
bambus, com o comprimento de cinco, seis e dez pés, uns direitos, outros
recurvos, estes lisos, aqueles verruguentos. Ora, sobre estes apêndices,
fixados de modo sólido, é que faziam todos os exercícios
de equilíbrio. Uma dúzia dos seguidores do deus Tingou deitaram-se
de costas, e seus camaradas vieram cair sobre seus narizes, eretos como pára-raios,
saltando, volteando deste para aquele, executando as voltas mais inacreditáveis.
Para terminar, anunciara-se especialmente ao público a pirâmide
humana, em que uns cinqüenta Nari-Longos deveriam representar o Carro
de Jaggernaut. Mas, em vez de formarem a pirâmide tomando os ombros
como ponto de apoio, os artistas do respeitável Batulcar deveriam sobrepor-se
uns aos outros pelo nariz. Ora, um dos que formavam a base do carro havia
deixado a companhia, e como bastava ser vigoroso e reto, Passepartout havia
sido escolhido para o substituir.
Claro, o digno moço se sentira todo pesaroso, quando triste recordação
de sua mocidade tinha envergado seu traje da Idade Média, ornado com
asas multicoloridas, e quando um nariz de seis pés lhe tinha sido aplicado
ao rosto! Mas, enfim, este nariz era o seu ganha-pão, e resignou-se.
Passepartout entrou em cena, e veio alinhar-se com seus colegas que deveriam
figurar na base do Carro de Jaggernaut. Todos estenderam-se no chão
com o nariz para o céu. Uma segunda seção de equilibristas
veio pousar sobre estes longos apêndices, uma terceira colocou-se por
cima, depois uma quarta, e sobre estes narizes que só se tocavam pelas
pontas, um monumento humano se elevou bem depressa até as frisas do
teatro.
Ora, os aplausos redrobravam, e os instrumentos da orquestrá explodiam
como trovoadas, quando a pirâmide oscilou, o equilíbrio se rompeu,
faltou um dos narizes da base, e o monumento desmoronou como um castelo de
cartas…
A culpa foi de Passepartout, que, abandonando seu posto, saltando a rampa
sem o auxílio das asas, e trepando à galeria da direita, caía
aos pés de um espectador, gritando: Ah! meu patrão! meu patrão!
Você? Eu! Bem! neste caso, para o paquete, meu rapaz, para o paquete!…
Mr. Fogg, Mrs. Aouda, que o acompanhava, Passepartout, tinham se precipitado
pelos corredores para fora da tenda. Mas lá encontraram o digno Batulcar,
furioso, que reclamava indenização pelo fiasco. Phileas Fogg
apagou seu furor atirando-lhe um punhado de bank-notes.
E, às seis horas e meia, no momento em que ele ia partir, Mr. Fogg
e Mrs. Aouda puseram o pé no paquete americano, seguidos por Passepartout,
as asas nas costas, e sobre a face o nariz de seis pés que ainda não
havia podido arrancar do rosto!
CAPÍTULO XXIV
DURANTE O QUAL SE REALIZOU A TRAVESSIA DO OCEANO PACÍFICO
O que aconteceu quando chegaram perto de Shangai, já se sabe. Os sinais
feitos pela Tankadère tinham sido notados pelo paquete para Yokohama.
O capitão, vendo uma bandeira a meio pau, dirigira-se para a pequena
goleta. Instantes depois Phileas Fogg, pagando as passagens pelo preço
combinado, punha no bolso do patrão John Bunsby quinhentas e cinqüenta
libras (13.750 F). Depois, o respeitável gentleman, Mrs. Aouda e Fix
tinham subido a bordo do vapor, que logo se pôs a caminho para Nagasaki
e Yokohama.
Tendo chegado naquela mesma manhã, 14 de novembro, Phileas Fogg,
deixando Fix ir tratar de seus assuntos, tinho ido até o Carnatic e
lá soube, para grande felicidade de Mrs. Aouda e talvez a sua, mas
que não deixou transparecer que o francês Passepartout havia
efetivamente chegado na véspera em Yokohama.
Phileas Fogg, que devia partir naquela mesma noite para São Francisco,
começou imediatamente a procurar o criado. Dirigiu-se, mas em vão,
aos agentes consulares francês e inglês, e, depois de ter percorrido
inutilmente as ruas de Yokohama, já perdia a esperança de encontrar
Passepartout, quando o acaso, ou talvez uma espécie de premonição,
o fez entrar na tenda do respeitável Batulcar. Não teria, por
certo, reconhecido seu servidor sob a rídicula roupa de arauto; mas
Passepartout, em sua posição deitada, avistou o patrão
na galeria. Não pôde conter um movimento de seu nariz. Daí
a quebra do equilíbrio e tudo o que se seguiu.
Eis o que Passepartout ouviu da própria boca de Mrs. Aouda, que lhe
contou então como fora feita a travessia de Hong Kong para Yokohama,
em companhia de um tal Mr. Fix, na goleta Tankadère.
Ao ouvir o nome de Fix, Passepartout nem pestanejou. Pensou que ainda não
chegara o momento de dizer ao patrão o que se passara entre o inspetor
de polícia e ele. Assim, ao narrar suas aventuras, acusou-se e pediu
desculpa somente por ter sido surpreendido pelo entorpecimento do ópio
numa taverna de Hong Kong.
Mr. Fogg escutou friamente este diálogo, sem responder; depois abriu
ao criado um crédito suficiente para que este comprasse no navio trajes
mais convenientes. E, com efeito, não passara ainda uma hora, e o honesto
moço, tendo tirado o nariz postiço e cortado as asas, não
tinha mais nada em si que recordasse o seguidor do deus Tingou.
O paquete que fazia a travessia de Yokohama a São Francisco pertencia
à Companhia do Pacific Mail steam, e chamava-se General Grant. Era
um grande vapor de rodas, deslocando duas mil e quinhentas toneladas, bem
construído e dotado de grande velocidade. Um enorme balancim subia
e descia sucessivamente sobre o convés; numa das suas extremidades
articulava-se o cabo de um pistão, e na outra o de uma biela que, transformando
o movimento retilíneo em movimento circular, o aplicava diretamente
no eixo das rodas do vapor. O General Grant estava dotado de três mastros
de goleta, e possuía uma grande superfície de pano, que ajudava
poderosamente o vapor. Mantendo suas doze milhas por hora, o paquete não
deveria levar mais de vinte e um dias para atravessar o Pacífico. Phileas
Fogg estava, pois, autorizado a crer que, chegando em 2 de dezembro a São
Francisco, estaria dia 11 em Nova York e dia 20 em Londres antecipando assim
em algumas horas a data fatal de 21 de dezembro.
Os passageiros eram bem numerosos a bordo do vapor, ingleses, muitos americanos,
uma verdadeira emigração de coolies para a América, e
um certo número de oficiais do exército das Índias, que
aproveitavam sua licença para fazerem a volta ao mundo.
Durante esta travessia não se deu nenhum incidente náutico.
O paquete, sustentado sobre suas largas rodas, apoiado no seu forte velame,
jogava pouco. O Oceano Pacífico justificava bem seu nome. Mr. Fogg
estava tão calmo, tão pouco comunicativo como de costume. Sua
jovem companhia cada vez se sentia mais e mais ligada àquele homem
por outros laços que não os do reconhecimento. Esta silenciosa
natureza, tão generosa em suma, a impressionava mais do que suspeitara,
e, fora quase sem dar por isso que ela se deixou levar por sentimentos dos
quais o enigmático Fogg não parecia sentir nenhuma influência.
Além disso, Mrs. Aouda interessava-se extraordinariamente pelos projetos
do gentleman. Inquietava-se com os contratempos que poderiam comprometer o
êxito da viagem. Freqüentemente conversava com Passepartout, que
não deixava de perceber o que se passava no coração de
Mrs. Aouda. O bravo moço tinha, agora, a respeito de seu patrão,
uma fé cega; não se fartava de elogiar a honestidade, a generosidade,
a dedicação de Phileas Fogg; depois tranqüilizava Mrs.
Aouda sobre o sucesso da viagem, repetindo que o mais difícil já
passara, que haviam saído dos países fantásticos da China
e do Japão, que retornavam às regiões civilizadas, e
que afinal um trem de São Francisco a Nova York e um transatlântico
de Nova York a Londres bastariam, sem dúvida, para concluir esta impossível
volta ao mundo no prazo combinado.
Nove dias depois de ter deixado Yokohama, Phileas Fogg tinha percorrido
exatamente a metade do globo terrestre.
Com efeito, o General Grant, em 23 de novembro passou para o octogésimo
meridiano, aquele no qual se acham, no hemisfério austral, os antípodas
de Londres. Dos oitenta dias postos à sua disposição
Mr. Fogg, é verdade, gastara cinqüenta e dois, e só lhe
restavam vinte e oito. Mas é preciso notar que se o gentleman se achava
somente no meio da viagem pela diferença dos meridianos, tinha na realidade
concluído mais de dois terços do percurso total. Que desvios
forçados, com efeito, de Londres a Aden, de Aden a Bombaim, de Calcutá
a Cingapura, de Cingapura a Yokohama! Seguindo circularmente o quinqüagésimo
paralelo, que é o de Londres, a distância teria sido só
de doze mil milhas aproximadamente, ao passo que Phileas Fogg se vira forçado,
pelos caprichos dos meios de locomoção, a percorrer vinte e
seis mil milhas das quais fizera cerca de dezessete mil, até esta data
de dia 23 de novembro. Mas agora a rota seria reta, e Fix não estava
mais por ali para aumentar os obstáculos! Aconteceu também que,
em 23 de novembro, Passepartout experimentou uma grande alegria. Lembremos
que o cabeça dura tinha se obstinado a manter a hora de Londres em
seu famoso relógio de familia, considerando falsas todas as horas dos
países que atravessara. Ora, naquele dia, apesar de não o ter
nem adiantado nem atrasado, seu relógio estava de acordo com os cronômetros
do navio.
Nem é preciso dizer que Passepartout exultava. Bem que teria gostado
de saber o que Fix diria, se estivesse presente.
Aquele velhaco que me contava um monte de lorotas sobre meridianos, sobre
o sol e a lua! repetia Passepartout. Bah! esse pessoal! Se a gente os escutasse,
que bela relojoaria fariam! Eu bem que tinha a certeza de que, mais dia menos
dia, o sol se decidiria a se regular pelo meu relógio!…
Passepartout ignorava isso: se o mostrador do seu relógio estivesse
dividido em vinte e quatro horas como os relógios italianos, não
teria tido motivo algum para se gabar, porque os ponteiros, quando fossem
nove horas da manhã no navio, teriam indicado nove horas da noite,
isto é, a vigésima primeira hora desde a meia noite diferença
exatamente igual à que existe entre Londres e o centésimo octogésimo
meridiano.
Mas se Fix tivesse sido capaz de explicar este efeito puramente físico,
Passepartout, sem dúvida, teria sido incapaz, se não de o compreender,
ao menos de o admitir. Em todo caso, se, por um milagre, o inspetor de polícia
tivesse inopinadamente se mostrado a bordo neste momento, é provável
que Passepartout, justificadamente rancoroso, tivesse tratado com ele de um
outro assunto e de uma maneira bem diferente.
Mas, onde estava Fix neste momento?…
Fix estava precisamente a bordo do General Grant.
Com efeito, chegando a Yokohama, o agente, abandonando Mr. Fogg que esperava
reencontrar durante o dia, tinha ido imediatamente ao consulado inglês.
Lá, tinha encontrado finalmente o mandado, que, correndo atrás
dele desde Bombaim, estava datado de quarenta dias atrás mandado que
lhe fora expedido de Hong Kong naquele mesmo Carnatic, a bordo do qual se
supunha que o agente estivesse! Imagine-se o desapontamento do detetive! O
mandado tornara-se inútil! Mr. Fogg tinha saído das possessões
inglesas. Um ato de extradição era agora necessário para
detê-lo! Paciência! disse Fix para si, após o primeiro
momento de cólera, se meu mandado não serve para mais nada aqui,
servirá na Inglaterra. Este velhaco parece que vai voltar para sua
pátria, crendo ter despistado a polícia. Bem. Eu o seguirei
até lá. Quanto ao dinheiro, Deus guarde para que sobre algum!
Mas em viagens, gratificações, processos, multas, elefante e
despesas de toda a espécie, o meu homem já deixou mais de mil
libras pelo caminho. Em todo caso, o Banco é rico! Decisão tomada,
embarcou no General Grant. Estava no navio, quando Mr. Fogg e Mrs. Aouda chegaram.
Com imensa surpresa, reconheceu Passepartout sob suas vestes de arauto. Escondeu-se
imediatamente em sua cabina, para evitar uma explicação que
poderia comprometer tudo e, graças ao número de passageiros,
contava não ser visto por seu inimigo, quando naquele mesmo dia deu
de cara com ele na proa do navio.
Passepartout saltou para sua garganta, sem mais, e, para contentamento de
alguns americanos que imediatamente apostaram nele, presenteou o infeliz inspetor
com uma sova daquelas, que demonstrou a superioridade do boxe francês
sobre o boxe inglês.
Quando Passepartout acabou, sentiu-se calmo e quase aliviado. Fix levantou-se,
em péssimo estado, e olhando seu adversário, disse-lhe friamente:
Acabou? Sim, por enquanto.
Então vamos conversar.
Que va…
No interesse de seu patrão.
Passepartout, como que subjugado por este sangue frio, seguiu o inspetor
de polícia, e ambos se sentaram à proa do vapor.
Me deu uma surra, disse Mr. Fix. Tudo bem. Agora escute. Até aqui
tenho sido adversário de Mr. Fogg, mas agora faço seu jogo.
Até que enfim! exclamou Passepartout, agora acredita que é
um homem honesto? Não, respondeu friamente Fix, acredito que é
um velhaco… Calma! pára de bufar e me deixe falar. Enquanto Mr. Fogg
se encontrava em possessões inglesas, tive interesse em retê-lo,
aguardando um mandado de prisão. Fiz tudo para isso. Lancei contra
ele os sacerdotes de Bombaim, embriaguei a si em Hong Kong, separei-o de seu
patrão, fiz com que perdesse o paquete para Yokohama…
Passepartout escutava, os punhos fechados.
Agora, retomou Fix, Mr. Fogg parece voltar para a Inglaterra? Que seja,
segui-lo-ei. Mas, a partir de agora, me dedicarei a afastar os obstáculos
de seu caminho com tanto ou mais empenho do que até agora tive em aumentá-los.
Como pode ver, meu jogo mudou, e mudou porque é do meu interesse. E
acrescento que seu interesse vai junto com o meu, porque é só
na Inglaterra que poderá saber se está a serviço de um
criminoso ou de um homem honesto! Passepartout tinha escutado atentamente
Fix, e ficou convencido de que Fix falava mesmo com sinceridade.
Amigos? perguntou Fix.
Amigos, não, respondeu Passepartout. Aliados, sim, e espero para
ver, porque, ao menor sinal de traição, torço-lhe o pescoço.
Combinado, disse tranqüilamente o inspetor de polícia.
Onze dias depois, dia 3 de dezembro, o General Grant entrou na baía
de Golden Gate, e chegou a São Francisco.
Mr Fogg não tinha ainda nem ganho nem perdido um só dia.
CAPÍTULO XXV
EM QUE SE DÁ UMA OLHADA EM SÃO FRANCISCO, EM DIA DE MEETING
Eram sete da manhã quando Mr. Phileas Fogg, Mrs. Aouda e Passepartout
puseram o pé no continente americano se é que se pode dar esse
nome ao cais flutuante em que desembarcaram. Estes cais, subindo e descendo
com a maré, facilitam a carga e a descarga dos navios. Neles é
que atracam os clippers de todas as dimensões, os steamers de todas
as nacionalidades, e esses steam-boats de muitos andares, que fazem o serviço
do Sacramento e de seus afluentes. É ai também que se amontoam
os produtos de um comércio que se estende ao México, Peru, Chile,
Brasil, Europa, Ásia, a todas as ilhas do oceano Pacífico.
Passepartout, em sua alegria de tocar afinal a terra americana, tinha entendido
dever fazer seu desembarque executando um salto mortal no melhor estilo. Mas
quando caiu sobre o cais, cujo tabuado estava carunchado, não conseguiu
fazer a volta. Todo desconsolado com a maneira pela qual tomara pé
sobre o novo continente, o honesto moço soltou um grito formidável,
que fez voar um grande número de cormorões e pelicanos, hóspedes
habituais dos cais móveis.
Mr. Fogg, assim que desembarcou, informou-se da hora em que partia o primeiro
trem para Nova York. Era às seis da tarde. Mr. Fogg tinha pois um dia
inteiro para gastar na capital californiana. Fez vir um veículo para
Mrs. Aouda e para si. Passepartout subiu para a boléia, e o veículo,
a três dólares a corrida, dirigiu-se para o International Hotel.
Do lugar elevado que ocupava, Passepartout observou com curiosidade a grande
cidade americana; ruas largas, casas baixas bem alinhadas, igrejas e templos
de um gótico anglo-saxão, docas imensas, armazéns como
palácios, uns de madeira, outros de tijolo; nas ruas, caruagens numerosas,
ônibus, cars de tramways, e sobre as calçadas encobertas, não
apenas Americanos e Europeus, mas também Chineses e Indianos enfim
o necessário para compor uma população de mais de duzentos
mil habitantes.
Passepartout ficou muito surpreso com o que viu. Ele estava ainda na cidade
legendária de 1849, na cidade dos bandidos, dos incendiários
e dos assassinos, vindos em busca das pepitas, imenso cafarnaum de todos os
desclassificados, onde se jogava ouro em pó, um revólver numa
mão e um punhal na outra. Mas esse bom tempo já tinha passado.
São Francisco apresentava o aspecto de uma grande cidade comercial.
A alta torre da Municipalidade, onde vigiavam os sentinelas, dominava um conjunto
de ruas e de avenidas, que se cruzavam em ângulos retos, entre as quais
se abriam praças verdejantes; depois uma cidade chinesa que parecia
ter sido importada do Celeste Império em uma caixa de brinquedo. Nada
de sombreros, nada de camisas vermelhas, nada de índios emplumados,
mas chapéus de seda e roupas pretas, trajadas por um grande número
de gentlemen dotados de uma atividade devoradora. Certas ruas, entre outras
Montgommery Street a Regent Street de Londres, o Boulevard des Italiens de
Paris, a Broadway de Nova York eram ladeadas por lojas esplêndidas que
ofereciam à sua clientela os produtos do mundo inteiro.
Quando Passepartout chegou ao International Hotel, não lhe parecia
ter saído de Londres.
O rés-do-chão do hotel era ocupado por um imenso bar»,
espécie de café-restaurante gratuito, aberto a todos, que poderiam
ali consumir carne seca, sopa de ostras, biscoitos e chester, sem terem que
abrir a carteira. Só se paga pela bebida, ale, porto ou xerez, se sua
fantasia o levar a beber algo. Passepartout achou isso muito americano.
O restaurante do hotel era confortável. Mr. Fogg e Mrs. Aouda sentaram-se
a uma mesa e foram abundantemente servidos em pratos liliputinianos por Negros
do mais belo negro.
Depois de almoçar, Phileas Fogg, acompanhado de Mrs. Aouda, deixou
o hotel para ir ao consulado inglês, visar seu passaporte. Na calçada
encontrou o criado, que lhe perguntou se, antes de pegar a estrada de ferro
do Pacífico, não seria mais prudente comprar algumas dúzias
de rifles Enfield ou de revólveres Colt. Passepartout ouvira falar
de Sioux e de Pawnies, que param os trens como simples ladrões espanhóis.
Mr. Fogg respondeu que era uma precaução inútil, mas
deu-lhe liberdade para agir como bem lhe aprouvesse. Depois dirigiu-se para
o escritório do agente consular.
Phileas Fogg nem tinha dado duzentos passos quando, pelo maior dos acasos,
encontrou Fix. O inspetor mostrou-se extremamente surpreso. Como! Mr. Fogg
e ele tinham feito juntos a travessia do Pacífico, e não tinham
se encontrado no navio! Fosse como fosse, Fix não podia deixar de se
sentir honrado em tornar a ver o gentleman a quem devia tanto, e, como os
seus negócios o chamavam à Europa, ficaria encantado em prosseguir
viagem em tão agradável companhia.
Mr. Fogg respondeu que a honra seria sua, e Fix que insistia em não
o perder de vista pediu permissão para acompanhá-los na visita
a esta curiosa cidade de São Francisco. Foi-lhe concedida.
Eis pois Mrs. Aouda, Mr. Fogg e Mr. Fix passeando despreocupadamente pelas
ruas. Logo estavam na Montgommery Street, onde a afluência popular era
enorme. Nas calçadas, no meio da rua, sobre os trilhos dos tramways,
apesar da passagem incessante dos coaches e dos ônibus, no interior
das lojas, nas janelas de todas as casas, e mesmo sobre os telhados, multidão
imensa. Homens-sanduíches circulavam na multidão. Bandeirinhas
e bandeirolas flutuavam ao vento. Gritos eclodiam por toda parte.
Hurrah para Kamerfield! Hurrah para Mandiboy! Era um meeting. Pelo menos
foi o que pensou Fix, e o que disse a Mr. Fogg, acrescentando: Faríamos
talvez melhor, senhor, em não entrar nesta confusão. Daí
só se tira alguns socos.
Com efeito, respondeu Phileas Fogg, e os socos, por serem políticos,
não deixam de ser socos! Fix achou que devia sorrir ao ouvir esta observação,
e, para verem sem se envolverem na bagunça, Mrs. Aouda, Phileas Fogg
e ele postaram-se no topo de uma escada que dava para um terraço, situado
no fim da Montgommery Street. Diante deles, do outro lado da rua, entre o
wharf de um comerciante de carvão e a loja de um negociante de petróleo,
localizava-se uma grande plataforma ao ar livre, para a qual a multidão
parecia convergir.
E então, por quê era este meeting? Qual seria a ocasião
que o motivava? Phileas Fogg o ignorava totalmente. Tratar-se-ia da nomeação
de um alto funcionário militar ou civil, de um governador de Estado
ou de um membro do Congresso? Poderia imaginar que fosse, pela animação
extraordinária que tomava conta da cidade Neste momento um movimento
considerável se produziu na multidão. Todas as mãos estavam
levantadas. Algumas, solidamente fechadas, pareciam erguer-se e abaixar-se
rapidamente em meio a gritos maneira enérgica, sem dúvida, de
formular um voto. Uma maré agitava a massa que refluía. As bandeiras
oscilavam, desapareciam por um instante, reapareciam em farrapos. As ondulações
da multidão propagavam-se até a escada, enquanto que todas as
cabeças amontoadas se agitavam à superfície como um mar
subitamente tocado por uma borrasca. O número de chapéus pretos
diminuía a olhos vistos, e a maior parte deles parecia ter perdido
sua altura normal.
É evidentemente um meeting, disse Fix, e a questão que o provocou
deve ser palpitante. Não seria nada de admirar que fosse ainda a questão
do Alabama, se bem que já esteja resolvida.
Talvez, respondeu simplesmente Mr. Fogg.
Em todo o caso, retomou Fix, dois campeões se defrontam, o digno
Kamerfield e o digno Mandiboy.
Mrs. Aouda, de braços dados com Phileas Fogg, contemplava com surpresa
esta cena tumultuosa, e Fix ia perguntar a um de seus vizinhos a razão
de tamanha efervescência popular, quando um movimento mais notável
se pronunciou. Os hurrahs, as imprecações, redobraram. Os mastros
de bandeira transformaram-se em armas ofensivas. Mais mãos, punhos
por todo lado. Do alto dos veículos parados, e dos ônibus enfileirados
em seu trajeto, trocavam-se petardos. Tudo servia de projétil. Garrafas
e calçados descreviam no ar trajetórias extensas, e pareceu
mesmo que alguns revólveres misturaram às vociferações
da multidão suas detonações nacionais.
A turba aproximou-se da escada e refluiu dos primeiros degraus. Um dos partidos
estava sendo evidentemente repelido, sem que os simples espectadores pudessem
reconhecer se a vantagem ficava com Mandiboy ou com Kamerfield.
Parece-me prudente nos retirarmos, disse Fix, que não desejava que
o seu homem fosse maltratado ou se metesse em qualquer confusão. Se
a questão envolve a Inglaterra, e nos reconhecem, ficaremos envolvidos
nesta bagunça.
Um cidadão inglês… respondeu Phileas Fogg.
Mas o gentleman não pôde terminar a frase. Por detrás
dele, do terraço que precedia a escada, partiram uivos espantosos.
Bradavam: Hurrah! Hip! Hip! Mandiboy! Era uma leva de eleitores que chegava
de reforço, atacando pelo flanco os partidários de Kamerfield.
Mr. Fogg, Mrs. Aouda e Fix encontraram-se entre dois fogos. Era muito tarde
para escapar. Esta torrente de homens, armados com bengalas chumbadas e com
porretes, era irresistível. Phileas Fogg e Fix, na defesa da jovem,
foram horrivelmente sacudidos. Mr. Fogg, não menos fleumático
do que de costume, quis defender-se com as armas naturais que a natureza pôs
na extremidade dos braços de todo inglês, mas inutilmente. Um
homenzarrão de barba avermelhada, rosto afogueado, ombros largos, que
parecia ser o chefe do bando, levantou seu formidável punho sobre Mr.
Fogg, e teria gravemente maltratado o gentleman, se Fix, por dedicação,
não tivesse recebido o golpe em seu lugar. Um enorme galo se desenvolveu
instantaneamente sob o chapéu de seda do detetive, transformado em
simples boné.
Yankee! disse Mr. Fogg, lançando ao seu adversário um olhar
de profundo desprezo.
Inglês! respondeu o outro.
Nós nos reencontraremos! Quando quiser. O seu nome? Phileas Fogg.
O seu? Coronel Stamp W. Proctor.
Depois, a maré passou. Fix foi derrubado e se levantou, com a roupa
despedaçada, mas sem ferimentos sérios. Seu paletó de
viagem tinha sido separado em duas partes desiguais, e as suas calças
pareciam-se com estes calções que certos Indianos questão
de moda só vestem depois de lhes terem tirado os fundilhos. Mas, em
suma, Mrs. Aouda tinha sido poupada, e, só, Fix tinha ganho seu murro.
Obrigado, disse Mr. Fogg ao inspetor, logo que saíram da multidão.
Não há de que, respondeu Fix, mas vamos…
Aonde? A uma loja de roupas.
Com efeito, esta visita era oportuna. As vestes de Phileas Fogg e de Fix
estavam em frangalhos, como se estes dois gentlemen tivessem brigado por causa
dos dignos Kamerlield e Mandiboy.
Uma hora depois, estavam convenientemente vestidos e penteados. Em seguida
voltaram ao Internacional Hotel.
Passepartout esperava seu patrão, armado com meia dúzia de
revólveres de seis tiros e fogo central. Quando viu Fix em companhia
de Mr. Fogg, fechou a cara. Mas Aouda, tendo-lhe narrado em poucas palavras
o que se passara, sossegou-o. Evidentemente Mr. Fix não era mais um
inimigo, era um aliado. Mantinha a sua palavra.
Quando o jantar terminou, foi trazido um coach, que deveria conduzir os
viajantes e seus pertences à estação. No momento de subir
para o veículo, Mr. Fogg disse a Fix: Voltou a ver o coronel Proctor?
Não, respondeu Fix.
Voltarei à América para o reencontrar, disse friamente Phileas
Fogg. Não seria conveniente que um cidadão inglês se deixasse
tratar assim.
O agente sorriu e não respondeu. Mas, como se vê, Mr. Fogg
era dessa raça de ingleses que, se não toleram o duelo em seu
país, batem-se no estrangeiro, quando se trata de defender a honra.
Às seis menos um quarto, os viajantes chegaram à estação
e encontraram o trem prestes a partir. No momento em que Mr. Fogg ía
embarcar, avistou um empregado e chegando-se a ele: Meu amigo, disse-lhe,
não houve hoje alguns tumultos em São Francisco? Era um meeting,
senhor, respondeu o empregado.
Contudo, parece-me que notei uma certa animação nas ruas.
Tratava-se simplesmente de um meeting organizado para uma eleição.
Eleição para um cargo importantíssimo, sem dúvida?
perguntou Mr. Fogg.
Não, senhor, de um juiz de paz.
Depois desta resposta, Phileas Fogg subiu para o vagão, e o trem
partiu a todo vapor.
CAPÍTULO XXVI
EM QUE SE PEGA O TREM EXPRESSO DA ESTRADA DE FERRO DO PACÍFICO
Ocean to ocean assim dizem os americanos e estas três palavras deviam
ser a denominação geral do grand trunk que cruza os Estados
Unidos da América em toda a sua extensão. Mas, em realidade,
o Pacific rail-road se divide em duas partes distintas: Central Pacífic
entre São Francisco e Ogden e Union Pacífic entre Ogden e Omaha.
Lá se encontram cinco linhas distintas, que põem Omaha em comunicação
freqüente com Nova York.
Nova York e São Francisco estão portanto presentemente reunidas
por uma faixa de metal ininterrupta que não mede menos de três
mil setecenta e oitenta e seis milhas. Entre Omaha e o Pacífico, a
estrada de ferro percorre um território ainda freqüentado pelos
índios e pelas feras vasta extensão territorial que os Mórmons
começaram a colonizar por volta de l845, depois que foram expulsos
do Illinois.
Ontrora, nas circunstâncias as mais favoráveis, gastavam-se
seis meses para ir de Nova York a São Francisco. Atualmente, apenas
sete dias.
Foi em 1862 que, apesar da oposição dos deputados do Sul,
que queriam uma linha mais meridional, o traçado da rail-road foi assentado
entre os paralelos quarenta e um e quarenta e dois. O presidente Lincoln,
de tão saudosa memória, fixou pessoalmente, no Estado de Nebraska,
na cidade de Omaha, o ponto inicial do novo ramal. Os trabalhos foram logo
iniciados e tocados com aquela atividade americana, que não é
nem cheia de papéis, nem burocrática. A rapidez da mão-de-obra
não deveria prejudicar de forma alguma a boa execução
do caminho. Na pradaria, os trabalhos avançaram na proporção
de uma milha e meia por dia. Uma locomotiva, rolando sobre os rails da véspera,
levava os rails do dia seguinte, e se corria por eles assim que eram assentados.
A Pacific Railroad lança diversos ramais em seu percurso, nos Estados
de Iowa, Kansas, Colorado e Oregon. Saindo de Omaha, costeia a margem esquerda
do Platte River até a junção com o ramal do norte, segue
a ramificação do sul, cruza o território de Laramie e
as montanhas Wahsatch, contorna o Great Salt Lake, chega a Salt Lake City,
a capital dos Mórmons, penetra pelo vale da Tuilla, pelo deserto americano,
as montanhas de Cedar e Humboldt, Humboldt River, Sierra Nevada, e torna a
descer por Sacramento até o Pacífico, sem que este traçado
ultrapasse em nada cento e doze pés por milha, mesmo na travessia das
montanhas Rochosas.
Tal era a longa artéria que os trens percorriam em sete dias, e que
iria permitir ao honrado Phileas Fogg ele ao menos o esperava pegar, dia 11,
em Nova York, o paquete para Liverpool.
O vagão ocupado por Phileas Fogg era uma espécie de ônibus
comprido que repousava sobre dois trens formados por quatro rodas cada um,
cuja mobilidade permitia atacar curvas de pequeno raio. No interior, nada
de compartimentos: duas filas de assentos, dispostos de cada lado, perpendicularmente
ao eixo, e entre os quais havia uma passagem que conduzia aos gabinetes de
toilette e outros, com que cada vagão era provido. Sobre toda a extensão
do trem, os veículos se comunicavam através de corredores, e
os viajantes podiam circular de uma extremidade à outra do comboio,
que colocava à sua disposição vagões-salões,
vagões-terraços, vagões-restaurantes e vagões-cafés.
Só faltavam vagões-teatros. Mas algum dia haverá.
Sobre os corredores circulavam incessantemente vendedores de livros e de
jornais, anunciando sua mercadoria, e vendedores de bebidas, comestíveis,
charutos, aos quais não faltavam compradores.
Os viajantes tinham partido da estação de Oakland às
seis horas da tarde. Já era noite uma noite fria, sombria, com um céu
coberto de nuvens que ameaçavam desfazer-se em neve. O trem não
andava com grande rapidez. Levando em conta as paradas, não percorria
mais de vinte milhas por hora, velocidade que lhe deveria, contudo, permitir
atravessar os Estados Unidos no tempo regulamentar.
Conversava-se pouco no vagão. Aliás, o sono logo iria ganhar
os viajantes. Passepartout se achava sentado atrás do inspetor de polícia,
mas não falava com ele. Desde os últimos acontecimentos, suas
relações tinham arrefecido muito. Nada de simpatia, nada de
intimidade. Fix não tinha mudado nada em sua maneira de ser, mas Passepartout
conservava-se, pelo contrário, numa extrema reserva, pronto para à
menor suspeita estrangular seu antigo amigo.
Uma hora depois da partida do trem, a neve caiu neve fina, que não
poderia, felizmente, atrasar a marcha do comboio. Só se via através
das janelas uma imensidão branca, sobre a qual, desenrolando suas volutas,
o vapor da locomotiva parecia sombrio.
Às oito horas um steward entrou no vagão e anunciou aos viajantes
que a hora de dormir tinha chegado. Este vagão era um sleeping-car,
que, em poucos instantes, foi transformado em dormitório. Os encostos
dos bancos se desdobraram, os colchonetes cuidadosamente embrulhados se desenrolaram
por um sistema engenhoso, cabinas foram improvisadas em alguns instantes,
e cada viajante teve logo à sua disposição um leito confortável,
que espessas cortinas protegiam de qualquer olhar indiscreto. Os lençóis
eram brancos, os travesseiros macios. Bastava deitar e dormir o que cada um
fez como se estivesse na cabina confortável de um paquete enquanto
o trem corria a todo vapor através do estado da Califórnia.
Na região entre São Francisco e Sacramento, o solo é
pouco acidentado. Este trecho da estrada de ferro, sob o nome de Central Pacific
Road, toma Sacramento por ponto de partida, e avança para leste ao
encontro do que parte de Omaha. De São Francisco à capital da
Califórnia, a linha corria diretamente para nordeste, ladeando o American
River, que desagüa na baía de San Pablo. As cento e vinte milhas
compreendidas entre estas duas importantes cidades foram percorridas em seis
horas, e pela meia noite, enquanto dormiam o primeiro sono, os viajantes passaram
por Sacramento. Nada viram portanto desta cidade importante, sede da legislatura
do Estado de Califórnia, nem os seus belos cais, nem suas ruas largas,
nem seus hotéis esplêndidos, nem as praças, nem os templos.
Saíndo de Sacramento, o trem, depois de ter passado pelas estações
de Junction, Roclin, Auburn, e Colfax, embrenhou-se no maciço da Sierra
Nevada. Eram sete horas da manhã quando foi atravessada a estação
de Cisco. Uma hora depois, o dormitório voltava a ser um vagão
comum e os viajantes podiam através das vidraças entrever os
pontos pitorescos deste território montanhoso. O traçado do
trem obedecia aos caprichos da Sierra, aqui suspenso nos flancos da montanha,
acolá suspenso sobre precipícios, evitando os ângulos
bruscos por curvas audaciosas, lançando-se por gargantas estreitas
que pareciam não ter saída. A locomotiva, radiante como um oratório,
com sua grande fornalha que lançava fagulhas amareladas, seu sino prateado,
seu caça-vaca que se estendia como um esporão, misturava os
seus silvados e mugidos com o das torrentes e das cascatas, torneava sua fumaça
na negra ramagem dos pinheiros.
Poucos ou nenhum túnel, nem pontes sobre o percurso. A rail-road
contornava o flanco das montanhas, não procurando na linha reta o caminho
mais curto de um ponto a outro, e não violentando a natureza.
Por volta das nove horas, pelo vale de Carson, o trem penetrou no Estado
do Nevada, seguindo sempre a direção nordeste. Ao meio dia,
deixava Reno, onde os viajantes tiveram vinte minutos para almoço.
A partir deste ponto, a via férrea, costeando Humboldt River, elevou-se,
por algumas milhas, para o norte, seguindo o seu curso. Depois infletiu para
o leste, e não deveria mais deixar o curso dágua antes de ter
atingido os Humboldt Ranges, onde tem sua nascente, quase na extremidade oriental
do Estado de Nevada.
Depois de almoçarem, Mr. Fogg, Mrs. Aouda e os seus companheiros
retomaram seus lugares no vagão. Phileas Fogg, a jovem, Fix e Passepartout,
confortavelmente sentados, contemplaram a paisagem variada que passava diante
dos seus olhos vastas pradarias, montanhas se perfilando no horizonte, creeks
rolando suas águas espumosas. Por vezes, uma grande manada de bisões,
amontoando-se ao longe, pareciam um dique móvel. Estes inúmeros
exércitos de ruminantes opõem com freqüência um obstáculo
intransponível à passagem dos trens. Já se viu milhares
destes animais desfilarem por horas, em filas compactas, atravessando a via
férrea. A locomotiva é então forçada a parar e
esperar que a via fique novamente livre.
Foi exatamente o que aconteceu nesta ocasião. Pelas três horas
da tarde, uma manada de dez a doze mil cabeças barrou a rail-road.
A máquina, depois de ter moderado sua velocidade, tentou meter seu
esporão no flanco da imensa coluna, mas teve de parar diante da impenetrável
massa.
Via-se estes ruminantes estes búfalos, como impropriamente os chamam
os americanos caminhar com o seu passo tranqüilo, soltando por vezes
formidáveis mugidos. Tinham um porte superior ao dos touros da Europa,
pernas e rabo curtos, garrote saltado que formava uma corcova muscular, cornos
separados na base, cabeça, pescoço e lombo cobertos por crinas
de pêlo comprido. Nem se poderia pensar em deter uma migração
destas. Quando adotaram uma direção, nada é capaz nem
de desviar nem de modificar sua marcha. É uma torrente de carne viva
que nenhum dique saberia represar.
Os viajantes, dispersos pelos corredores, contemplavam este curioso espetáculo.
Mas o que devia estar mais apressado, Phileas Fogg, ficara no seu lugar e
esperava filosoficamente que aprouvesse aos búfalos lhe dar passagem.
Passepartout estava furioso com a demora causada por esta aglomeração
de animais. Teria desejado descarregar contra eles o seu arsenal de revólveres.
Que país! exclamou. Simples bois que param os trens, e que lá
se vão, procissionalmente, sem se preocuparem com o fato de embaraçarem
a circulação. Minha Nossa! Desejaria muito saber se Mr. Fogg
previu este contratempo no seu programa! E o maquinista que não se
atreve a lançar sua máquina através deste gado embaraçoso!
O maquinista não havia tentado ultrapassar o obstáculo, e agira
com prudência. Teria esmagado os primeiros búfalos atacados pelo
esporão da locomotiva; mas, por muito potente que fosse, a máquina
teria sido logo detida, dar-se-ia inevitavelmente um descarrilhamento, e o
trem teria ficado em pedaços.
O melhor era mesmo esperar pacientemente, tentar em seguida recuperar o
tempo perdido por uma aceleração da marcha do trem. O desfile
dos bisões durou três longas horas, e a via só ficou livre
quando a noite já caía. Neste momento, as últimas filas
da manada atravessavam os rails, enquanto que as primeiras desapareciam no
horizonte ao sul.
Eram então oito horas, quando o trem franqueou os desfiladeiros dos
Humboldt Ranges, e nove e meia, quando penetrou no território de Utah,
a região do grande lago Salgado, o curioso território dos Mórmons.
CAPÍTULO XXVII
EM QUE PASSEPARTOUT SEGUE, COM UMA VELOCIDADE DE VINTE MILHAS POR HORA,
UM CURSO DE HISTÓRIA MÓRMON
Durante a noite de 5 para 6 de dezembro, o trem correu a sudeste pelo espaço
de quase cinqüenta milhas; depois elevou-se outro tanto para nordeste,
aproximando-se do grande lago Salgado.
Passepartout, pelas nove da manhã, veio tomar ar sobre os passadiços.
O tempo estava frio, o céu cinza, mas não nevava. O disco do
sol, amplificado pelas brumas, parecia uma enorme moeda de ouro, e Passepartout
entretinha-se calculando seu valor em libras esterlinas, quando foi distraído
deste útil trabalho pela aparição de um personagem bastante
estranho.
Este personagem, que tinha tomado o trem na estação de Elko,
era um homem de estatura elevada, muito moreno, bigodes pretos, meias pretas,
chapéu de seda preta, colete preto, calça preta, gravata branca,
luvas de pele de cão. Parecia um reverendo. Ia de uma extremidade do
trem à outra, e na porta de cada vagão colava com obreias um
aviso escrito à mão.
Passepartout aproximou-se e leu em um destes avisos que o honrado elder
William Hitch, missionário mórmon, aproveitando a sua presença
no trem n.° 48, faria, das onze ao meio dia, no carro n.° 117, uma
conferência a respeito do mormonismo convidando para ouvi-lo todos os
gentlemen desejosos de se instruírem no tocante aos mistérios
da religião dos Santos dos últimos dias.
Claro, irei, se disse Passepartout, que não sabia nada do mormonismo
exceto seus usos polígamos, base da sociedade mórmon.
A notícia espalhou-se rapidamente pelo trem, que levava uma centena
de viajantes. Deste total, trinta ou mais, atraídos pelo chamado da
conferência, ocupavam às onze horas os bancos do carro n°
117. Passepartout figurava na primeira fila dos fiéis. Nem seu patrão
nem Fix tinham achado que deviam sair de seus lugares.
À hora anunciada, o elder William Hitch levantou-se, e com uma voz
bastante exaltada, como se já tivesse sido refutado de antemão,
exclamou: Eu vos digo, eu, que Joe Smith é um mártir, que seu
irmão Hiram é um mártir, e que as perseguiçôes
do governo da União contra os profetas vão fazer igualmente
um mártir de Brigham Young! Quem ousará sustentar o contrário?
Ninguém se atreveu a contradizer o missionário, cuja exaltação
contrastava com sua fisionomia naturalmente calma. Mas, sem dúvida,
sua cólera se explicava pelo fato de que o mormonismo estava atualmente
submetido a duras provas. E, com efeito, o governo dos Estados Unidos acabava,
não sem dificuldade, de dominar estes fanáticos independentes.
Tinha se assenhorado de Utah, e o tinha submetido às leis da União,
depois de ter aprisionado Brigham Young, acusado de rebelião e de poligamia.
Desde esta época, os discípulos do profeta redobraram seus esforços,
e, aguardando os atos, resistiam pela palavra às pretenções
do Congresso.
Como se vê, o elder William Hitch fazia proselitismo até em
estrada de ferro.
E então contou, inflamando seu discurso com elevações
da voz e a violência de seus gestos, a história do Mormonismo
desde os tempos bíblicos: como, em Israel, um profeta mórmon
da tribo de Joseph publicou os anais da nova religião, e os legou a
seu filho Morom; como, muitos séculos depois, uma tradução
deste precioso livro, escrito em caracteres egípcios, foi feita por
Joseph Smith junior, fazendeiro do Estado de Vermont, que se revelou como
profeta místico em 1825; como, finalmente, um mensageiro celeste lhe
apareceu numa floresta luminosa e lhe devolveu os anais do Senhor. Neste momento,
alguns ouvintes, pouco interessados pela narrativa retrospectiva do missionário,
deixaram o vagão; mas William Hitch, continuando, contou como Smith
junior, reunindo seu pai, seus dois irmãos e alguns discípulos,
fundou a religião dos Santos dos últimos dias religião
que, adotada não só na América, mas na Inglaterra, na
Escandinávia, na Alemanha, conta entre seus fiéis artesãos
e também grande número de pessoas que exercem profissões
liberais; como uma colônia foi fundada no Ohio; como um templo foi edificado
ao preço de duzentos mil dólares e uma cidade fundada em Kirkland;
como Smith se tornou um audacioso banqueiro e recebeu de um simples expositor
de múmias um papiro contendo uma narrativa escrita pela mão
de Abraham e outros célebres Egípcios. Esta narrativa tornando-se
um pouco longa, as filas dos ouvintes rarearam ainda mais, e o público
só se compunha agora de umas vinte pessoas.
Mas o elder, sem se inquietar com essa deserção, contou com
detalhes como foi que Joe Smith foi à bancarrota em 1837; como foi
que os seus acionistas arruinados o untaram de alcatrão e o rolaram
sobre penas; como foi que o reencontramos, mais honorável e mais honrado
do que nunca, alguns anos depois, em Independance, no Missouri, e chefe de
uma comunidade florescente, que não contava menos de três mil
discípulos, e que então, perseguido pelo ódio dos gentios,
teve de fugir para o Far West americano. Dez ouvintes ainda estavam lá,
e entre eles o bom Passepartout, que escutava com a maior atenção.
Foi assim que aprendeu como, depois de longas porseguições,
Smith reapareceu no Illinois e fundou em 1839, sobre as margens do Mississipi,
Nauvoo-la-Belle, cuja população se elevou a vinte e cinco mil
almas; como Smith se tornou prefeito, juiz supremo e general em chefe desta
comunidade; como, em 1843, lançou sua candidatura à presidência
dos Estados Unidos, e como finalmente, atraído a uma cilada, em Carthago,
foi lançado na prisão e assassinado por um bando de homens mascarados.
Neste momento, Passepartout estava absolutamente só no vagão
e o elder, olhando-o na face, fascinando-o com as suas palavras, lhe contou
que, dois dias depois do assassinato de Smith, seu suceessor, o profeta inspirado,
Brigham Young, abandonando Nauvoo, veio se estabelecer nas margens do lago
Salgado, e que lá, sobre esse admirável território, em
meio desta região fértil, no caminho dos emigrantes que atravessavam
Utah para se dirigirem à Califórnia, a nova colônia, graças
aos princípios polígamos do mormonismo, floresceu.
E aí está, acrescentou William Hitch, aí está
o por quê do ciúme do Congresso se exercer contra nós!
porque os soldados da União pisotearam o solo de Utah! porque nosso
chefe, o profeta Brigham Young, foi preso com menosprezo de toda justiça!
Cederemos à força? Jamais! Expulsos do Vermont, expulsos do
Illinois, expulsos do Ohio, expulsos do Missouri, expulsos do Utah, reencontraremos
ainda algum território independente onde plantaremos nossa tenda…
E vós, meu fiel, acrescentou o elder, fitando no seu único ouvinte
olhares coléricos, plantareis a vossa à sombra da nossa bandeira?
Não, respondeu corajosamente Passepartout, que saiu, deixando o energúmeno
a pregar no deserto.
Durante a conferência, o trem tinha andado rapidamente, e, pelo meio
dia e meia, tocava no ponto noroeste do grande lago Salgado. Daí, podia-se
divisar, sobre um grande perímetro, o aspecto desse mar interior, que
também tem o nome de mar Morto e no qual deságua um Jordão
da América. Lago admirável, enquadrado por belas rochas selvagens,
em grandes camadas, encrustadas de sal branco, soberbo lençol de água
que cobria outrora um espaço mais considerável; mas com o tempo,
suas margens, subindo pouco a pouco, reduziram sua superfície aumentando
sua profundidade.
O lago Salgado, do comprimento de quase setenta milhas, trinta e cinco milhas
de largura, está situado a três mil e oitocentos pés acima
do nível do mar. Bem diferente do lago Asphaltite, cuja depressão
acusa duzentos pés abaixo, sua salgacidade é considerável,
e suas águas têm em dissolução o quarto de seu
peso de matéria sólida. Seu peso específico é
de 1.170, o da água distilada sendo 1.000. Por isso os peixes não
podem aí viver. Os que o Jordão, o Weber e outros creeks aí
lançam morrem logo; mas não é verdade que a densidade
das águas seja tal que um homem não possa mergulhar nelas.
Em redor do lago, o campo estava muito bem cultivado, porque os mórmons
são hábeis nos trabalhos da terra: ranchos e currais para os
animais domésticos, campos de trigo, de milho, de sorgo, pradarias
luxuriantes, por toda parte sebes de roseiras selvagens, buquês de acácias
e do eufórbios, tal teria sido o aspecto desta região seis meses
mais tarde; mas neste momento o solo desaparecia sob uma fina camada de neve,
que o polvilhava ligeiramente.
Às duas horas, os viajantes desceram na estação de
Ogden. O trem não deveria partir de novo senão às seis
horas. Mr. Fogg, Mrs. Aouda e seus dois companheiros tinham pois tempo para
visitar a Cidade dos Santos pelo pequeno ramal que sai da estação
de Ogden. Duas horas bastariam para visitar esta cidade absolutamente americana
e, como tal, edificada no padrão de todas as cidades da União,
vastos taboleiros de xadrez com longas linhas frias, com a tristeza lúgubre
dos ângulos rectos segundo a expressão de Victor Hugo. O fundador
da Cidade dos Santos não podia escapar desta necessidade de simetria
que caracteriza os anglo-saxões. Neste país tão singular,
onde os homens não estão por certo à altura das instituições,
tudo se faz ao quadrado, as cidades, as casas e as tolices.
Às três horas, os viajantes passeavam ainda pelas ruas da cidade,
edificada entre a margem do Jordão e as primeiras ondulações
dos montes Wahsatch. Notaram poucas ou nenhuma igreja, mas, como monumentos,
a casa do profeta, o tribunal e o arsenal; depois, as casas de tijolos azulados
com varandas e galerias, rodeadas de jardins bordados de acácias, palmeiras
e alfarrobeiras. Uma muro de argilha e de calhaus, construído em 1853,
cingia a cidade. Na rua principal, onde está o mercado, elevavam-se
alguns hotéis ornados com pavilhões, e entre outros o Lake Salt
House.
Mr. Fogg e os seus companheiros não acharam a cidade muito povoada.
As ruas estavam quase desertas menos a parte do Templo onde não chegaram
senão depois de ter atravessado muitos bairros rodeados por paliçadas.
As mulheres eram muito numerosas, o que se explica pela singular composição
familiar mórmon. Não se deve contudo supor que todos os mórmons
sejam polígamos. Há liberdade de escolha, mas é bom notar
que são as cidadãs de Utah que querem sobretudo ser esposadas,
porque, de acordo com a religião local, o céu mórmon
não admite o acesso às suas beatitudes às celibatárias
do sexo feminino. Estas pobres criaturas não parecem nem chateadas
nem felizes. Algumas, as mais ricas decerto, trajavam uma jaqueta de seda
preta aberta na cintura, sob um capuz ou de um chale muito modesto. As demais
vestiam-se com chita.
Passepartout, esse, na sua qualidade de solteiro convicto, não olhava
sem certo terror para as mórmons encarregadas de fazerem, em penca,
a felicidade de um só mórmon. Em seu bom senso, lastimava os
maridos. Parecia-lhe uma coisa terrível ter de guiar tantas mulheres
através das vicissitudes da vida, conduzi-las assim em penca ao paraíso
mórmon, com a perspectiva de tornar a encontrá-las na eternidade,
em companhia do glorioso Smith, que deveria ser o ornamento deste lugar de
delícias. Decididamente, não sentia a vocação,
e achava talvez nisto se iludisse que as cidadãs do Great Lake City
deitavam sobre sua pessoa olhares um pouco inquietadores.
Muito felizmente, sua permanência na Cidade dos Santos não
deveria prolongar-se. Às quatro horas menos alguns minutos, os viajantes
estavam outra vez na estação e retomavam seus lugares nos vagões.
O apito do trem se fez ouvir; mas no momento em que as rodas motoras da
locomotiva, patinando sobre os rails, começavam a imprimir ao trem
alguma velocidade, estes gritos: Parem! parem! ressoaram.
Não se detém um trem em movimento. O gentleman que proferia
estes gritos era evidentemente algum mórmon retardatário. Corria
a ponto de ficar sem ar. Felizmente para ele, a estação não
tinha nem portas nem barreiras. Lançou-se então sobre a via,
saltou sobre o estribo do último vagão, e caiu sem ar sobre
um dos bancos do vagão.
Passepartout, que tinha seguido com interesse os percalços desta
ginástica, veio contemplar o retardatário, pelo qual se interessou
muito quando soube que este cidadão de Utah só tinha tentado
a fuga depois de um acontecimento doméstico.
Quando o mórmon tomou fôlego, Passepartout animou-se a perguntar-lhe
polidamente quantas mulheres tinha, para ele só pois pela maneira que
vinha de dar no pé, supunha que tinha umas vinte, pelo menos.
Uma, senhor! respondeu o mórmon levantando os braços para
o céu, uma e já era muito!
CAPÍTULO XXVIII
EM QUE PASSEPARTOUT NÃO CONSEGUE QUE OUÇAM A VOZ DA RAZÃO
O trem, saindo de Great Salt Lake e da estação de Ogden, subiu
durante uma hora para o norte, até Weber River, tendo percorrido quase
novecentas milhas desde que partira de São Francisco. A partir deste
ponto, retomou a direção do leste, através do maciço
acidentado dos montes Wahsatch. É nesta parte do território,
compreendida entre as montanhas Rochosas propriamente ditas, que os engenheiros
americanos lutaram com as maiores dificuldades. Por isso também que
nesta porção do trajeto a subvenção do governo
subiu para quarenta e oito mil dólares por milha, enquanto tinha sido
de dezeseis mil dólares na planície; mas os engenheiros, como
já foi dito, não violentaram a natureza, usaram de astúcia
com ela, contornando as dificuldades, e para atingir a grande bacia, apenas
um túnel, com quatorze mil pés de extensão, foi furado
em todo o percurso da rail-road.
Era no lago Salgado mesmo que a estrada de ferro tinha atingido até
então sua maior cota de altitute. Desde este ponto, seu perfil descrevia
uma curva muito alongada, abaixando-se para o vale do Bitter Creek, para subir
até ao ponto onde se dividem as águas do Atlântico e do
Pacífico. Os rios eram numerosos nesta região montanhosa. Foi
necessário franquear sobre pequenas pontes o Muddy, o Green e outros.
Passepartout ia ficando mais impaciente à medida em que se aproximava
o fim da viagem. Mas Fix, por sua vez, teria desejado que já tivessem
saído desta difícil região. Receava as demoras, acreditava
em acidentes, e tinha mais pressa do que o próprio Phileas Fogg para
pôr os pés em terra inglesa.
Às dez da noite, o trem parou na estação de Fort Bridger,
que deixou quase imediatamente, e, vinte mil milhas mais adiante, entrou no
estado de Wyoming o antigo Dakota seguindo todo o vale do Bitter Creek, onde
se escoa uma parte das águas que formam o sistema hidrográfico
do Colorado.
No dia seguinte, 7 de dezembro, houve uma parada de quarto de hora na estação
de Green River. A neve tinha caído durante a noite em abundância,
mas, misturada com a chuva, e meio derretida, não podia estorvar a
marcha do trem. Entretanto, este mau tempo não deixou de inquietar
Passepartout, porque a acumulação das neves, atolando as rodas
dos vagões, haveria certamente de comprometer a viagem.
Na verdade, que idéia, dizia-se, meu patrão teve de viajar
no inverno! Não poderia ter esperado a verão para aumentar suas
possibilidades de êxito? Mas, neste momento em que o honesto rapaz só
se preocupava com o estado do céu e com a queda da temperatura, Mrs.
Aouda experimentava receios mais sérios, que provinham de causa bem
diversa.
Com efeito, alguns viajantes tinham descido do vagão, e passeavam
pela plataforma da estação de Green River, esperando a partida
do trem. Ora, pelo vidro, a jovem reconheceu entre eles o coronel Stamp W.
Proctor, o americano que tinha se comportado tão grosseiramente com
Phileas Fogg durante o meeting de São Francisco. Mrs. Aouda, não
querendo ser vista, recuou.
Este fato impressionou extremamente a jovem. Ela tinha se afeiçoado
ao homem que, friamente que fosse, lhe dava todos os dias provas da mais absoluta
dedicação. Não compreendia, sem dúvida, toda a
profundidade do sentimento que lhe inspirava seu salvador, e a este sentimento
ainda dava o nome de reconhecimento, mas, sem que soubesse, era mais que isso.
Assim seu coração saltou, quando reconheceu o grosseiro personagem
a quem Mr. Fogg queria cedo ou tarde pedir uma explicação por
sua conduta. Evidentemente, era apenas o acaso que tinha trazido a este trem
o coronel Proctor, mas, fosse como fosse, ele estava ali, e era preciso impedir
a todo o custo que Phileas Fogg avistasse seu adversário.
Mrs. Aouda, quando o trem se pôs novamente em movimento, aproveitou
um momento em que Mr. Fogg dormitava, para colocar Fix e Passepartout a par
da situação.
O tal do Proctor está no trem! exclamou Fix. Pois bem, tenha certeza,
madame, antes de se bater com o senhor… com Mr. Fogg, terá de bater-se
comigo! Parece-me que, em tudo isto, fui eu quem recebeu os mais graves insultos!
E, além disso, acrescentou Passepartout, eu me encarrego dele, por
mais coronel que seja.
Senhor Fix, retomou Mrs. Aouda, Mr. Fogg não deixará que ninguém
se vingue por ele. É homem, como disse, de voltar à América
para procurar seu ofensor. Se, portanto, vê o coronel, não vamos
poder impedir um duelo, que pode ter deploráveis resultados. É
preciso portanto que ele não o veja.
Tem razão, madame, respondeu Fix, um duelo poderia pôr tudo
a perder. Vencedor ou vencido, Mr. Fogg demorar-se-ia, e…
E, acrescentou Passepartout, isso faria o jogo dos gentlemen do Reform Club.
Em quatro dias estaremos em Nova York! Pois bem, se durante quatro dias meu
patrão não sair do seu vagão, podemos esperar que o acaso
não o ponha cara a cara com este maldito americano, que Deus confunda!
Ora, saberemos impedir…
A conversa foi suspensa. Mr. Fogg tinha acordado, e contemplava a campina
pelo vidro rajado de neve. Mais tarde, e sem ser ouvido por seu patrão
nem por Mrs. Aouda, Passepartout disse ao inspetor de polícia: O senhor,
realmente, se bateria por ele? Farei tudo para levá-lo vivo para a
Europa! respondeu simplesmente Fix, em um tom que denotava uma vontade implacável.
Passepartout sentiu um arrepio correr por todo o corpo, mas suas convicções
a respeito do patrão não fraquejaram.
E agora, haveria algum meio de reter Mr. Fogg no seu compartimento para
prevenir qualquer encontro entre o coronel e ele? Não deveria ser difícil,
o gentleman sendo naturalmente pouco dado aos movimentos e pouco curioso.
Em todo caso, o agente de polícia julgou ter descoberto esse meio,
porque momentos depois dizia a Phileas Fogg: São longas e lentas horas,
senhor, estas que se passa assim na estrada de ferro.
Com efeito, respondeu o gentleman, mas elas passam.
Nos paquetes, retomou o inspetor, não tinha o hábito de jogar
whist? Sim, respondeu Phileas Fogg, mas aqui seria difícil. Não
tenho nem cartas nem parceiros.
Oh! as cartas, podemos comprá-las. Vende-se de tudo nos vagões
americanos. Quanto aos parceiros, se, por acaso, madame…
Certamente, senhor, respondeu animadamente a jovem, sei jogar whist. Faz
parte da educação inglesa.
E eu, retomou Fix, tenho algumas pretenções de jogar bem esse
jogo. Ora, nós três e um morto…
Como quiser, senhor, respondeu Phileas Fogg, encantado em retomar seu jogo
favorito mesmo numa estrada de ferro.
Passepartout foi despachado à procura do stewart e voltou pouco depois
com dois baralhos completos, fichas, tentos, e um tabuleiro recoberto de pano.
Não faltava nada. O jogo começou. Mrs. Aouda sabia suficientemente
o whist, e até recebeu alguns comprimentos do severo Phileas Fogg.
Quanto ao inspetor, era simplesmente excelente jogador, e digno de sentar-se
à frente do gentleman.
Agora, disse consigo Passepartout, nós o temos seguro. Não
se mexe mais! Às onze da manhã, o trem tinha atingido o ponto
onde se dividem as águas dos dois oceanos. Era em Bridger Pass, a uma
altura de sete mil quinhentos e oitenta e quatro pés ingleses acima
do nível do mar, um dos pontos mais altos do traçado da estrada
em sua passagem pelas montanhas Rochosas. Quase duzentas milhas mais adiante,
os viajantes achar-se-iam finalmente sobre as extensas pradarias que se estendem
até o Atlântico, e que a natureza tornara tão propícias
para o estabelecimento de uma via férrea.
Sobre a vertente da bacia atlântica se desenvolviam já os primeiros
rios, afluentes e sub-afluents do North Platte River. Todo o horizonte do
norte e do leste estava coberto pela imensa cortina semi-circular que forma
a porção setentrional das Rocky Mountains, dominada pelo pico
de Laramie. Entre esta curvatura e a estrada de ferro estendiam-se vastas
planícies abundantemente regadas. À direita da linha férrea
sobrepõem-se as primeiras rampas do maciço montanhoso que se
arredonda ao sul até às nascentes do rio Arkansas, um dos grandes
tributários do Missouri.
Ao meio dia e meia, os viajantes entreviram por instantes o forte Halleck,
que comanda esta região. Ainda algumas horas e a travessia das Montanhas
Rochosas estaria completa. Podia-se pois esperar que nenhum acidente sinalizaria
a passagem do trem por esta difícil região. A neve cessara de
cair. O tempo tornara-se frio e seco. Grandes pássaros, assustados
pela locomotiva, fugiam ao longe. Nenhuma fera, urso ou lobo, se mostrava
na planície. Era o deserto em sua imensa nudez.
Depois de um almoço bastante confortável, servido no próprio
vagão, Mr. Fogg e os seus parceiros recomeçavam o interminável
whist, quando violentos apitos e fizeram ouvir. O trem parou.
Passepartout colocou a cabeça para fora e não viu nada que
motivasse a parada. Não havia nenhuma estação à
vista.
Mrs. Aouda e Fix por um instante recearam que Mr. Fogg pensasse em descer
para a via. Mas o gentleman contentou- se em dizer ao criado: Veja o que é.
Passepartout saltou para fora do vagão. Uns quarenta passageiros
tinham já abandonado os seus lugares, entre eles o coronel Stamp W.
Proctor.
O trem tinha parado por causa de um sinal vermelho que impedia a passagem.
O maquinista e o condutor, tendo descido, discutiam acaloradamenre com um
guarda ferroviário, que o chefe de estação de Medicine
Bow, a próxima estação, tinha enviado ao encontro do
trem. Viajantes tinham-se aproximado e participavam da discussão entre
eles achava-se o mencionado coronel Proctor, com a sua voz alta e seus gestos
imperiosos.
Passepartout, tendo se unido ao grupo, ouviu o guarda-ferroviário
dizer: Não! não há meio de passar! A ponte de Medicine
Bow está aluída e não suportaria o peso do trem.
A ponte, de que falavam, era uma ponte pênsil lançada sobre
um desfiladeiro, a uma milha de distância do lugar onde o trem tinha
parado. No dizer do guarda, ameaçava ruir, muitos dos fios estavam
rompidos, e era impossível arriscar sua travessia. O guarda não
exagerava de modo algum afirmando que não se poderia passar. E além
disso, com os hábitos negligentes dos americanos, pode-se dizer que,
quando eles se põem a ser prudentes, é loucura não o
ser.
Passepartout, não se atrevendo a ir avisar o seu patrão, escutava,
os dentes cerrados, imóvel como uma estátua.
Ora! bradava o coronel Proctor, não vamos, imagino, ficar aqui a
deitar raízes na neve! Coronel, respondeu o condutor, telegrafamos
para a estação de Omaha pedindo um trem, mas não é
provável que chegue a Medicine Bow antes de seis horas.
Seis horas! exclamou Passepartout.
Sem dúvida, respondeu o condutor. Além do mais, esse tempo
nos será necessário para chegar à estação
a pé.
A pé! exclamaram todos os viajantes.
Mas a que distância fica essa estação? perguntou um
deles ao condutor.
A doze milhas, do outro lado do rio.
Doze milhas na neve! exclamou Stamp W. Proctor.
O coronel soltou um monte de pragas, queixando-se da companhia, queixando-se
do condutor; e Passepartout, furioso, não estava longe de fazer-lhe
coro. Havia aí um obstáculo material contra o qual nada podiam,
desta vez, todas as bank-notes de seu patrão.
E tem mais, o desapontamento era geral entre os viajantes, que, sem contar
o atraso, se viam obrigados a andar quinze milhas através da planície
coberta de neve. Por isso levantou-se logo um borburinho, exclamações,
vociferações, que teriam certamente atraído a atenção
de Phileas Fogg, se o gentleman não estivesse tão absorto em
seu jogo.
Entretanto, Passepartout achou que deveria preveni-lo, e, cabeça
baixa, dirigia-se para o vagão, quando o maquinista do trem um verdadeiro
yankee chamado Forster elevando a voz, disse: Senhores, talvez haja um meio
de passar.
Sobre a ponte? respondeu um viajante.
Sobre a ponte.
Com nosso trem? perguntou o coronel.
Com nosso trem.
Passepartout tinha parado, e devorava as palavras do maquinista.
Mas a ponte ameaça ruir! retomou o condutor.
Não importa, respondeu Forster. Creio que lançando o trem
com sua máxima velocidade, temos algumas chances de passar.
Diabo! disse Passepartout.
Mas um certo número de viajantes tinha ficado imediatamente seduzido
pela proposta. Ela agradava particularmente ao coronel Proctor. Este célebro
esquentado achava a coisa muito factível. Lembrou mesmo que engenheiros
tinham tido a idéia de passar os rios sem pontes com trens rígidos
lançados a toda velocidade, etc. E, afinal, todos os interessados na
questão se colocaram do lado do maquinista.
Temos cinqüenta probabilidades de passar, dizia um.
Sessenta, dizia outro.
Oitenta!… noventa sobre cem! Passepartout estava aturdido, apesar de se
sentir disposto a tentar tudo para fazer a passagem do Medicine Creek, mas
a tentativa parecia-lhe um pouco demais americana.
Além disso, pensou, há uma coisa bem mais simples, e esta
gente nem sequer pensa nela!…
Senhor, disse a um dos viajantes, o meio proposto pelo maquinista me parece
um pouco arrojado, mas…
Oitenta probabilidades! respondeu o viajante, que lhe virou as costas.
Bem sei, respondeu Passepartout dirigindo-se a um outro gentleman, mas uma
simples reflexão…
Nada de reflexão, é inútil! respondeu o americano encolhendo
os ombros, o maquinista afirma que passará! Sem dúvida, retomou
Passepartout, passsará, mas seria talvez mais prudente…
O que! prudente! exclamou o coronel Proctor, a quem esta palavra, ouvida
casualmente, fez dar um pulo. A toda a velocidade, é o que se diz!
Compreende? A toda velocidade! Eu sei… eu compreendo… repetia Passepartout,
a quem ninguém deixava concluir sua frase, mas seria, não digo
mais prudente, porque esta palavra desagrada, pelo menos mais natural…
Quê? o quê? Que quer dizer com esse natural?… exclamaram de
todos os lados.
O pobre moço já não sabia quem poderia ouvi-lo.
Tem medo? perguntou o coronel Proctor.
Eu! medo! exclamou Passepartout. Bem, que seja. Vou mostrar a esta gente
que um francês pode ser tão americano como eles! Para o trem!
para o trem! exclamava o condutor.
Sim! para o trem, repetia Passepartout, para o trem! E depressa! Mas não
me impedem de pensar que seria mais natural passarmos primeiro à pé
pela ponte, nós os viajantes, depois que passasse o trem!…
Mas ninguém ouviu esta sábia reflexão, e ninguém
decerto teria querido reconhecer sua correção.
Os viajantes estavam reintegrados em seus vagões. Passepartout retomou
o seu lugar, sem nada dizer do que se passara. Os jogadores estavam totalmente
absortos no jogo.
A locomotiva apitou vigorosamante. O maquinista, revertendo o vapor, recuou
o trem quase uma milha manobrando como um saltador que quer tomar impulso.
Depois, a um segundo apito, a marcha para a frente recomeçou; acelerou-se;
logo a velocidade se tornou amedrontadora; só se ouvia um uivo saindo
da locomotiva; os pistões batiam vinte golpes por segundo; os eixos
das rodas fumegavam nas caixas de graxa. Sentia-se, por assim dizer, que o
trem inteiro, galopando com uma velocidade de cem milhas por hora, não
pesava sobre os rails. A velocidade comia o peso.
E passou! Foi como um relâmpago. Nem se viu a ponte. O comboio saltou,
pode-se dizer, de uma margem à outra, e o maquinista não conseguiu
deter a máquina levada pelo impulso senão cinco milhas além
da estação.
Mas mal o trem tinha passado, a ponte, definitivamente arruinada, desmoronava
e caía com estrondo no desfiladeiro de Medicine Bow.
CAPÍTULO XXIX
ONDE SE FARÁ A NARRAÇÃO DE DIVERSOS INCIDENTES,
QUE SÓ ACONTECEM NAS ESTRADAS DE FERRO DA UNIÃO
Naquela mesma noite, o trem prosseguindo sua rota sem obstáculos,
ultrapassava o Fort Saunders, transpunha o desfiladeiro do Cheyenne, e chegava
ao de Evans. Neste lugar, a rail-road atingiu o ponto mais alto do dia, ou
seja oito mil noventa e um pés acima do nível do mar. Os viajantes
só tinham agora que descer até o Atlântico sobre essas
planícies sem limites, niveladas pela natureza.
Lá se encontrava sobre o grande trunk, o entroncamento de Denver
City, a principal cidade do Colorado. Este território é rico
em minas de ouro e prata, e mais de cinqüenta mil habitantes aí
já fixaram moradia.
Neste momento, mil trezentas oitenta e duas milhas tinham sido feitas desde
São Francisco, em três dias e três noites. Quatro dias
e quatro noites, de acordo com todas as previsões, deveriam bastar
para o trem alcançar Nova York. Phileas Fogg se mantinha pois dentro
dos intervalos regulamentares.
Durante a noite, deixaram à esquerda Camp Walbach. O Lodge Pole Creek
corria paralelamente à via, seguindo a fronteira retilínea comum
aos Estados de Wyoming e do Colorado. Às onze horas entraram no Nebraska,
passaram perto de Sedgwick, e chegaram a Julesburg, situado na margem sul
do Platte River.
Foi neste ponto que se fez a inauguração da Union Pacific
Road, em 23 de outubro de 1887, da qual o engenheiro responsável foi
o general J. M. Dodge. Ali pararam as duas potentes locomotivas, rebocando
os nove vagões dos convidados, entre os quais figurava o vice-presidente,
Mr. Thomas C. Durant; ali reboaram as aclamações; ali os Sioux
e os Pawnies deram o espetáculo de uma pequena guerra indígena;
ali, os fogos de artifício arderam; ali, finalmente, se publicou, em
uma gráfica portátil, o primeiro número do Railway Pioneer.
Assim foi celebrada a inauguração desta grande estrada de ferro,
instrumento de progresso e de civilização, lançado através
do deserto, e destinado a ligar entre si vilas e cidades que não existiam
ainda. O apito da locomotiva, mais potente que a lira de Amphion, iria logo
fazê-las brotar no solo americano.
Às oito horas da manhã, o forte McPherson tinha sido deixado
para trás. Trezentas e cinqüenta e sete milhas separam este ponto
de Omaha. A via férrea seguia, sobre sua margem esquerda, as caprichosas
sinuosidades do braço sul do Platte River. Às nove horas, chegaram
à importante cidade de North Platte, edificada entre o dois braços
do grande curso de água, que se reúnem em torno dela para formar
uma só artéria afluente importante cujas águas se confundem
com as do Missouri, um pouco acima de Omaha.
O centésimo primeiro meridiano estava franqueado.
Mr. Fogg e seus parceiros tinham recomeçado o jogo. Nenhum deles
se queixava da demora da viagem nem mesmo o morto. Fix tinha começado
ganhando alguns guinéus, que estava em vias de perder, mas nem por
isso se mostrava menos entusiasmado que Mr. Fogg. Durante esta manhã,
a sorte favoreceu bastante este gentleman. Os trunfos e as cartas de maior
valor choviam em suas mãos. Em certo momento, depois de ter combinado
um lance audacioso, preparava-se para jogar espadas, quando atrás do
banco ouviu uma voz que dizia: Se fosse eu, jogava ouros…
Mr. Fogg, Mrs. Aouda, Fix levantaram a cabeça. O coronel Proctor
estava perto deles.
Stamp W. Proctor e Phileas Fogg reconheceram-se no ato.
Ah! por aqui, senhor inglês, exclamou o coronel, é o senhor
que queria jogar espadas! E jogo, respondeu friamento Phileas Fogg, deitando
à mesa um dez deste naipe.
Pois bem, eu quero que sejam ouros, replicou o coronel Proctor com voz irritada.
E fez um gesto para levantar a carta jogada, acrescentando: Não entende
nada deste jogo.
Talvez seja mais hábil em outro, disse Phileas Fogg, que se levantou.
Só depende de si, filho de John Bull! replicou o grosseiro personagem.
Mrs. Aouda tinha ficado pálida. Todo seu sangue refluiu para o coração.
Tinha agarrado o braço de Phileas Fogg, que a repeliu docemente. Passepartout
estava prestes a se lançar sobre o americano, que olhava seu adversário
com o mais insultante dos olhares. Mas Fix tinha se levantado, e, indo ao
coronel Proctor, lhe disse: Esquece-se de que é comigo a questão,
senhor, comigo a quem o senhor, não só injuriou, mas agrediu!
Senhor Fix, disse Phileas Fogg, peço-lhe perdão, mas isto só
diz respeito a mim. Alegando que eu estava errado jogando espadas, o coronel
me fez uma nova injúria, e há de dar-me uma satisfação.
Quando e onde quiser, respondeu o americano, e com a arma que lhe agradar!
Mrs. Aouda em vão procurou reter Mr. Fogg. O inspetor tentou inutilmente
retomar a querela para si. Passepartout queria atirar o coronel pela porta,
mas um gesto do patrão o conteve. Phileas Fogg deixou o vagão,
e o americano seguiu-o pelo passadiço.
Senhor, disse Mr. Fogg ao seu adversário, tenho muita pressa em voltar
para a Europa, e qualquer atraso prejudicaria muito meus interesses.
E daí? O que é que eu tenho com isso? respondeu o coronel
Proctor.
Senhor, retomou muito polidamente Mr. Fogg, depois do nosso encontro em
São Francisco, eu tinha feito planos de vir reencontrá-lo na
América, assim que tivesse concluído os negócios que
me chamam ao velho continente.
Verdade? Quer marcar o encontro para daqui a seis meses? Porque não
daqui a seis anos? Disse seis meses, respondeu Mr. Fogg, e serei pontual.
Desculpas! Só desculpas! exclamou Stamp W. Proctor. Agora ou nunca.
Pois que seja, respondeu Mr. Fogg. Vai para Nova York? Não.
Chicago? Não.
Omaha? Pouco importa! Conhece Plum Creek? Não, respondeu Mr. Fogg.
É a próxima estação. O trem estará lá
em uma hora. Estacionará por dez minutos. Em dez minutos, podemos trocar
alguns tiros de revólver.
Que seja, respondeu Mr. Fogg. Deter-me-ei em Plum Creek.
E creio que vai ficar por lá! acrescentou o americano com uma insolência
sem igual.
Quem sabe, senhor? exclamou Mr. Fogg, e voltou ao seu vagão, tão
frio como de costume.
Lá, o gentleman começou por sossegar Mrs. Aouda, dizendo-lhe
que os fanfarrões não eram nunca para recear. Depois pediu a
Fix que lhe servisse de testemunha no duelo que iria travar. Fix não
podia recusar, e Phileas Fogg recomeçou tranqüilamente o jogo
interrompido, jogando espadas com a maior calma.
Às onze horas, o apito da locomotiva anunciou a chegada à
estação de Plum Creek. Mr. Fogg se levantou, e, seguido de Fix,
colocou-se sobre o passadiço. Passepartout o acompanhava, levando um
par de revólveres. Mrs. Aouda tinha ficado no vagão, pálida
como uma morta.
Neste momento, a porta do outro vagão se abriu, e o coronel Proctor
apareceu igualmente sobre o passadiço, seguido da sua testemunha, um
yankee da sua têmpera. Mas no instante em que os dois adversários
iam descer para a via, o condutor apareceu e gritou-lhes: Não pode
descer, senhores.
E por quê? perguntou o coronel.
Estamos com de vinte minutos de atraso, e o trem não pára.
Mas eu tenho de me bater com este senhor.
Lamento, respondeu o empregado; mas partimos imediatamente. O sino já
está tocando! Efetivamente tocava, e o trem voltou a se pôr a
caminho.
Estou realmente desolado, senhores, disse então o condutor. Em qualquer
outra circunstância, eu poderia ter concedido. Mas, afinal, já
que não têm tempo de se baterem aqui, quem os impede de se baterem
no caminho? Isso talvez não convenha a este senhor! disse o coronel
Proctor com ar gozador.
Convém-me perfeitamente, respondeu Phileas Fogg.
Pois é, decididamente, estamos na América! pensou Passepartout,
e o condutor do trem é um gentleman de primeira! E dizendo isto seguiu
seu patrão.
Os dois adversários, suas testemunhas, precedidos pelo condutor, dirigiram-se,
passando de um vagão para outro, à traseira do trem. O último
vagão só estava ocupado por uma dezena de viajantes. O condutor
perguntou-lhes se poderiam deixar o lugar livre para os dois que tinham uma
questão de honra a resolver.
Como! Mas os viajantes estavam muito felizes em serem agradáveis
aos dois gentlemen e se retiraram sobre os passadiços.
Este vagão, de uns cinqüenta pés de comprimento, prestava-se
muito convenientemente à circunstância. Os dois adversários
podiam caminhar um para o outro entre os bancos e dispararem à vontade.
Nunca houve duelo mais fácil de regrar. Mr. Fugg e o coronel Proctor,
munido cada um com dois revólver de seis tiros, entraram no vagão.
Suas testemunhas, que ficaram do lado de fora, os fecharam lá dentro.
Ao primeiro apito da locomotiva deviam começar o fogo… Depois, passados
dez minutos, retirar-se-ia do vagão o que tivesse sobrado dos dois
gentlemen.
Nada mais simples na verdade. Era mesmo tão simples, que Fíx
e Passepartout sentiam o coração bater fortemente.
Esperava-se, pois, o apito convencionado, quando subitamente gritos selvagens
ressoaram. Detonações os acompanharam, mas não vinham
do vagão destinado aos duelistas. Estas detonações se
prolongavam, ao contrário, até a frente e pelas laterais do
trem. Gritos de terror se faziam ouvir no interior do comboio.
O coronel Proctor e Mr. Fogg, revólver em punho, saíram logo
do vagão e precipitaram-se para a frente, onde soavam mais estrondosamente
as detonações e os gritos.
Tinham compreendido que o trem estava sendo atacado por um bando de Siouxs.
Estes ferozes índios não estavam fazendo sua estréia,
e mais de uma vez já tinham detido comboios. Segundo seu costume, sem
esperar a parada do trem, saltando sobre os estribos em número de uma
centena, tinham escalado os vagões como faz um clown de um cavalo a
galope.
Os Sioux estavam munidos de rifles. Daí as detonações
a que os viajantes, quase todos armados, respondiam com tiros de revólver.
Logo no começo, os índios tinham se precipitado para a máquina.
O maquinista e o fogueiro tinham sido quase prostrados a golpes de macete.
Um chefe sioux, querendo parar o trem, mas não sabendo manejar a manivela
do regulador, tinha aberto mais a entrada do vapor em lugar de fechar e a
locomotiva, impelida, corria com uma velocidade assustadora.
Ao mesmo tempo, os Sioux tinham invadido os vagões, corriam como
macacos em fúria por cima da capota do trem, arrombavam as portinholas
e lutavam corpo a corpo com os viajantes. Para fora do vagão das bagagens,
arrombado e saqueado, os fardos eram arremessados para a via. Gritos e disparos
não cessavam.
Entretanto os viajantes defendiam-se corajosamente. Alguns vagões,
barricados, enfrentavam um cerco, como verdadeiros fortes ambulantes, levados
a cem milhas por hora.
Desde o começo do ataque, Mrs. Aouda tinha se comportado corajosamente.
Revólver em punho, defendia-se heroicamente, atirando através
dos vidros quebrados, quando um selvagem passava por sua mira. Uns vinte Sioux,
mortalmente feridos, tinham tombado na via, e as rodas dos vagões esmagavam
como vermes os que deslizavam sobre os rails do alto dos passadiços.
Diversos viajantes, gravemente atingidos pelas balas ou pelas clavas, jaziam
sobre os bancos.
Entretanto era preciso parar. Esta luta já durava dez minutos, e
terminaria em favor dos Sioux certamente se o trem não parasse. Com
efeito, a estação do forte Kearney não estava a duas
milhas de distância. Lá havia um posto americano; mas passado
este posto, entre o forte Kearney e a estação seguinte, os Sioux
seriam senhores do trem.
O condutor lutava ao lado de Mr. Fogg, quando uma bala o derrubou. Ao cair,
gritou: Estamos perdidos, se o trem não parar antes de cinco minutos!
Vai parar! disse Mr. Phileas Fogg, que queria se lançar para fora do
vagão.
Fique, senhor! lhe gritou Passepartout. Deixe comigo! Phileas Fogg não
teve tempo de deter o corajoso rapaz, que, abrindo a portinhola sem ser visto
pelos índios, conseguiu deslizar para baixo do vagão. E então,
enquanto a luta continuava, enquanto as balas se cruzavam sobre sua cabeça,
reencontrando sua agilidade de clown, metendo-se sob os vagões, agarrando-se
às correntes, valendo-se das alavancas dos freios de cabos da carroceria,
pulando de um carro para o outro com uma facilidade maravilhosa, chegou à
parte dianteira do trem. Não tinha sido visto, não poderia ter
sido visto.
Ali, suspenso por uma mão entre o vagão de bagagem e o tender,
com a outra desenganchou as correntes de segurança; mas em virtude
da tração desenvolvida, nunca poderia ter desaparafusado a barra
de atrelagem, se um abalo da máquina não tivesse feito saltar
esta barra, e o trem, solto, foi ficando pouco a pouco para trás, enquanto
a locomotiva fugia com velocidade crescente.
Levado pela força adquirida, o trem ainda rolou por alguns minutos,
mas os freios foram acionados no interior dos vagões, e o comboio finalmente
parou, a menos de cem passos da estação de Kearney.
Os soldados do forte, atraídos pelos tiros, acudiram logo. Os Sioux
não os esperavam, e, antes que o trem parasse completamente, todo o
bando tinha se posto em fuga.
Mas quando os viajantes se contaram na plataforma da estação,
perceberam que faltavam muitos à chamada, e entre eles o corajoso francês,
cuja dedicação acabara de os salvar.
CAPÍTULO XXX
EM QUE PHILEAS FOGG SIMPLESMENTE CUMPRE O SEU DEVER
Três viajantes, inclusive Passepartout, haviam desaparecido. Teriam
sido mortos na luta? Estariam prisioneiros dos selvagens? Ainda não
se podia saber.
Os feridos eram numerosos, mas nenhum tinha sido atingido mortalmente. Um
dos em estado mais grave era o coronel Proctor, que tinha combatido bravamente,
e que uma bala na verilha derrubara. Foi transportado para a estação
com os outros viajantes, cujo estado reclamava cuidados imediatos.
Mrs. Aouda estava salva. Phileas Fogg, que não se poupara, não
tinha nem um arranhão. Fix estava ferido num braço, ferimento
sem importância. Mas Passepartout faltava, e as lágrimas corriam
dos olhos da jovem.
Já então todos os viajantes tinham saído do trem. As
rodas dos vagões estavam manchadas de sangue. Dos cubos e dos raios
pendiam informes postas de carne. Via-se a perder de vista na pradaria branca
longos rastros avermelhados. Os últimos índios desapareciam
então ao sul, pelos lados do Republican River.
Mr. Fogg, braços cruzados, permanecia imóvel. Tinha uma grave
decisão a tomar. Mrs. Aouda, próxima dele, o contemplava sem
proferir uma palavra… Ele compreendeu este olhar. Se o seu servidor estava
prisioneiro, não deveria tudo arriscar para arrancá-lo dos índios?
Vou achá-lo morto ou vivo, disse simplesmente para Mrs. Aouda.
Ah! senhor… senhor Fogg! exclamou a jovem, agarrando as mãos do
seu companheiro, que cobriu de lágrimas.
Vivo! acrescentou Mr. Fogg, se não perdermos um minuto! Com esta
resolução Phileas Fogg sacrificava-se completamente. Acabara
de pronunciar sua ruína. Um dia apenas de atraso o faria perder o paquete
de Nova York. Sua aposta estava irrevogavelmente perdida. Mas diante deste
pensamento: “É o meu dever”, não tinha hesitado.
O capitão que comandava o forte Kearney estava ali. Seus soldados
uns cem homens tinham se posto na defensiva para o caso dos Sioux terem dirigido
um ataque direto contra a estação.
Senhor, disse Mr. Fogg ao capitão, três viajantes desapareceram.
Mortos? perguntou o capitão.
Mortos ou prisioneiros, respondeu Phileas Fogg. É desta incerteza
que precisamos sair. Sua intenção é perseguir os Sioux?
Dificilmente, senhor, disse o capitão. Estes índios podem fugir
para além do Arkansas! Não poderia abandonar o forte que me
foi confiado.
Senhor, retomou Phileas Fogg, trata-se da vida de três homens.
Sem dúvida… mas posso arriscar a vida de cinqüenta para salvar
três? Não sei se pode, senhor, mas deve.
Senhor, respondeu o capitão, ninguém aqui precisa me ensinar
qual é o meu dever.
Que seja, disse friamente Pbileas Fogg. Irei só! Só, senhor!
exclamou Fix, que tinha se aproximado, ir só em perseguição
dos indios! Quer então que eu deixe perecer esse infeliz, a quem todos
os que estão aqui vivos devem a vida? Irei.
Pois bem, não, não irá só! exclamou o capitão,
comovido, apesar de tudo. Não! Tem um coração valente!…
Trinta voluntários! acrescentou ele, voltando-se para os soldados.
Toda a companhia deu um passo à frente. O capitão só
teve que escolher entre seus bravos. Trinta soldados foram designados, e um
velho sargento se pôs à frente deles.
Obrigado, capitão! disse Mr. Fogg.
Permite-me acompanhá-lo? perguntou Fix ao gentleman.
Faça o que achar melhor, senhor, respondeu Phileas Fogg. Mas se me
quer me fazer um favor, fique junto de Mrs. Aouda. Caso me aconteça
alguma desgraça…
Uma palidez súbita invadiu o rosto do inspetor de polícia.
Separar-se do homem que tinha seguido passo a passo e com tanta persistência!
Deixá-lo aventurar-se assim naquele deserto! Fix olhou atentamente
o gentleman, e, fosse como fosse, apesar das suas desconfianças, apesar
do combate que travava interiormente, baixou os olhos diante daquele olhar
calmo e sincero.
Ficarei, disse.
Instantes depois, Mr. Fogg tinha apertado a mão da jovem; depois,
após lhe ter entregue sua preciosa sacola de viagem, partiu com o sargento
e sua pequena tropa.
Mas antes de partir, tinha dito aos soldados: Meus amigos, há mil
libras para vós se salvarmos os prisioneiros.
Era meio dia e alguns minutos.
Mrs. Aouda tinha se retirado para um quarto da estação, e
aí, sozinha, ficou aguardando, pensando em Phileas Fogg, em sua generosidade
simples e grandiosa, em sua tranqüila coragem. Mr. Fogg tinha sacrificado
sua fortuna, e agora punha sua vida em perigo, tudo sem hesitação,
por dever, sem frases. Phileas Fogg era um herói aos seus olhos.
O inspetor Fix, este, não pensava assim, e não podia conter
sua agitação. Passeava febrilmente pela plataforma da estação.
Por um momento subjugado, voltava a ser ele mesmo. Depois de Fogg partir,
compreendia a tolice que tinha feito deixando-o partir. Como! o homem que
tinha seguido ao redor do mundo, tinha consentido em separar-se dele! Sua
índole voltava a conduzi-lo, se recriminava, se acusava, tratava a
si mesmo como se fosse o comissário da polícia metropolitana
admoestando um agente apanhado em flagrante delito de ingenuidade.
Fui inepto! pensava. O outro por certo lhe disse quem eu era! Partiu, não
volta mais! Onde pegá-lo agora? Mas como pude me deixar fascinar assim,
eu, Fix, que tenho no bolso o seu mandado de prisão! Decididamente
não passo de uma azêmula! Assim raciocinava o inspetor de polícia,
enquanto as horas se escoavam lentamente. Não sabia o que fazer. Às
vezes tinha vontade de dizer tudo a Mrs. Aouda. Mas compreendia como seria
recebido pela jovem. Que decisão tomar? Estava tentado a sair pelas
pradarias brancas, em perseguição de Fogg! Não lhe parecia
impossível reencontrá-lo. Os passos do destacamento estavam
ainda impressos no neve!… Mas logo, sob uma nova camada, todas as pegadas
desapareceriam.
Então o desânimo apossou-se de Fix. Experimentou como que um
invencível desejo de abandonar a partida. Ora, precisamente, esta oportunidade
de deixar a estação de Kearney e de continuar a viagem, tão
fecunda em transtornos, lhe foi oferecida.
Com efeito, perto das duas depois do meio dia, enquanto a neve caía
em grandes flocos, ouviram-se longos apitos que vinham do leste. Uma enorme
sombra, precedida por um clarão amarelado, avançava lentamente,
consideravelmente aumentada pelas brumas, que lhe davam um aspecto fantástico.
Contudo não se esperava ainda nenhum trem vindo de leste. O socorro
pedido pelo telégrafo não poderia chegar tão cedo, e
o trem de Omaha para São Francisco só deveria passar no dia
seguinte. Logo se soube o que acontecia.
Esta locomotiva que andava com pouco vapor, soltando grandes apitos, era
aquela que, depois de ter sido desprendida do trem, tinha continuado sua rota
com velocidade vertiginosa, levando o caldereiro e o maquinista inanimados.
Tinha corrido sobre os rails por diversas milhas; depois, o fogo tinha amortecido,
por falta de combustível; o vapor perdera a força, e uma hora
depois, diminuindo pouco a pouco sua marcha, a máquina parara afinal
vinte milhas depois da estação de Kearney.
Nem o maquinista nem o fogueiro tinham sucumbido, e, depois de um desmaio
bastante prolongado, tinham voltado a si.
A máquina estava então parada. Quando se viu no deserto, a
locomotiva só, sem vagões atrás, o maquinista compreendeu
o que tinha ocorrido. Como a locomotiva tinha se desprendido do trem, não
pôde adivinhar, mas não tinha nenhuma dúvida de que o
trem, tendo ficado para trás, estava em perigo.
O maquinista nem hesitou sobre o que deveria fazer. Continuar na direção
de Omaha era prudente; voltar para o trem, que os índios talvez ainda
pilhassem, era perigoso… Que importa! Pás de carvão e lenha
foram lançadas no fogo da caldeira, o fogo se reanimou, a pressão
aumentou de novo, e, pelas duas depois do meio dia, a máquina voltava
para trás em direção da estação de Kearney.
Era ela que apitava na bruma.
Foi uma grande satisfação para os viajantes, quando viram
a locomotiva pôr-se na frente do trem. Iam poder continuar a viagem
tão desgraçadamente interronpida.
À chegada da máquina, Mrs. Aouda tinha saído da estação,
e dirigindo-se ao condutor: Vai partir? perguntou.
Em instantes, madame.
Mas os prisioneiros… nossos desafortunados companheiros…
Não posso interromper o serviço, respondeu o condutor. Já
temos três horas de atraso.
E quando passará o outro trem que vem de São Francisco? Amanhã
à noite, madame.
Amanhã à noite! mas será muito tarde. É preciso
esperar…
É impossível, respondeu o condutor. Se quiser partir, suba.
Não partirei, respondeu a jovem. Fix tinha escutado esta conversa.
Alguns instantes antes, quando todos os meios de locomoção lhe
faltavam, estava resolvido a deixar Kearney, e agora que o trem se achava
ali, prestes a partir, que só tinha de retomar o seu lugar no vagão,
uma força irresistível o prendia no chão. A plataforma
da estação lhe queimava os pés, e ele não podia
levantá-los. A luta recomeçou dentro dele. A cólera do
insucesso o sufocava. Queria lutar até o fim.
Entrementes os viajantes e alguns feridos entre outros o coronel Proctor,
cujo estado era grave tinham tomado lugar nos vagões. Ouvia-se o ruído
da caldeira em ebulição, e o vapor escapava pelas válvulas.
O maquinista apitou, o trem se pôs em movimento, e desapareceu bem depressa,
misturando sua fumaça aos turbilhões de neve.
O agente Fix tinha ficado.
Algumas horas se escoaram. O tempo estava muito mau, o frio intenso. Fix,
sentado sobre um banco na estação, permanecia imóvel.
Podia-se supor que dormia. Mrs. Aouda, apesar da ventania, deixava a cada
instante o quarto que tinha sido colocado à sua disposição.
Vinha à extremidade da plataforma, procurando ver através da
tempestade de neve, querendo penetrar com o olhar esta bruma que reduzia o
horizonte à sua volta, tentando escutar se algum barulho se fazia ouvir.
Mas nada. Voltava a entrar, toda transida, para voltar momentos depois, e
sempre inutilmente.
Entardeceu. O pequeno destacamento não estava ainda de volta. Onde
estaria neste momento? Teria alcançado os índios? Teria havido
luta, ou os soldados, perdidos no nevoeiro, erravam ao acaso? O capitão
do forte Kearney estava muito inquieto embora não quisesse deixar transparecer
sua inquietude.
Anoiteceu, a neve tombou menos abundantemente, mas a intensidade do frio
aumentou. O olhar mais intrépido não teria enfrentado sem receio
esta obscura imensidão. Um silêncio absoluto reinava na pradaria.
Nem o vôo de um pássaro, nem a passagem de alguma fera perturbava
a calma infinita.
Durante toda a noite, Mrs. Aouda, o espírito cheio de pressentimentos
sinistros, o coração repleto de angústias, vagueou pela
orla da campina. Sua imaginação a levava para longe e lhe mostrava
mil perigos. O que sofreu durante estas longas horas não seria possível
exprimir.
Fix estava sempre imóvel no mesmo lugar, mas, também ele,
não dormia. Num dado momento, um homem tinha se aproximado dele, até
falou com ele, mas o agente o despachou, depois de ter respondido às
suas palavras com um sinal negativo.
A noite passou. Ao alvorecer, o disco meio apagado do sol ergueu-se sobre
um horizonte nublado. Entretanto o olhar podia alcançar até
duas milhas de distância. Tinha sido para o sul que Phileas Fogg e o
destacamento se haviam dirigido… O sul estava absolutamente deserto. Eram
então sete horas da manhã.
O capitão, extremamente preocupado, não sabia o que fazer.
Deveria enviar um segundo destacamento em socorro do primeiro? Deveria sacrificar
novos homens com tão poucas probabilidades de salvar os que já
tinham sido sacrificados antes? Mas sua hesitação não
durou, e com um gesto, chamando um dos seus ajudantes, deu-lhe ordem de fazer
um reconhecimento ao sul quando se ouviram tiros. Seria um sinal? Os soldados
precipitaram-se para fora do forte, e a meia milha de distância avistaram
um destacamento que voltava em boa ordem.
Mr. Fogg vinha à frente, junto dele Passepartout e os dois outros
passageiros, resgatados das mãos dos Sioux.
Tinha havido combate dez milhas ao sul de Kearney. Poucos instantes antes
da chegada do destacamento, Passepartout e seus dois companheiros já
lutavam contra seus guardiãos, e o francês tinha derrubado três
com seus socos, quando seu patrão e os soldados se precipitaram em
seu socorro.
Todos, salvadores e salvados, foram acolhidos com brados do alegria, e Phileas
Fogg distribuiu aos soldados a gratificação que lhes tinha prometido,
enquanto Passepartout repetia consigo, não sem alguma razão:
Decididamente, estou saindo caro para meu patrão! Fix, sem proferir
uma palavra, contemplava Mr. Fogg, e seria difícil analisar as impressões
que se combatiam nele naquele momento. Quanto a Mrs. Aouda, tinha pego a mão
do gentleman, e a apertava nas suas, sem poder pronunciar uma palavra! Passepartout,
desde que chegara, estivera procurando o trem na estação. Julgava
que o iria encontrar, pronto para partir para Omaha, e esperava que se pudesse
recuperar o tempo perdido.
O trem! o trem! gritava.
Partiu, respondeu Fix.
E o trem seguinte, quando passa? perguntou Phileas Fogg.
Só de tarde.
Ah! respondeu simplesmente o impassível gentleman.
CAPÍTULO XXXI
EM QUE O INSPETOR FIX LEVA MUITO A SÉRIO OS INTERESSES DE PHILEAS
FOGG
Phileas Fogg estava com 24 horas de atraso. Passepartout, a causa involuntária
deste atraso, estava desesperado. Tinha decididamente arruinado seu patrão.
Neste momento, o inspetor aproximou-se de Mr. Fogg, e, olhando diretamente
para ele: Realmente, senhor, perguntou ele, tem muita pressa? Realmente, respondeu
Phileas Fogg.
Insisto, retomou Fix. Está mesmo interessado em estar em Nova York
dia 11, antes das onze horas da noite, hora da partida do paquete para Liverpool?
Muitíssimo interessado.
E se sua viagem não tivesse sido interrompida por este ataque dos
índios, teria chegado a Nova York dia 11, pela manhã? Sim, com
onze horas de antecedência em relação ao paquete.
Bem. Nesse caso tem vinte horas de atraso. Entre vinte e doze, a diferença
é de oito. São oito horas a recuperar. Quer tentar fazê-lo?
À pé? perguntou Mr. Fogg.
Não, em trenó, respondeu Fix, em trenó a velas. Um
homem me propôs esse meio de transporte.
Era o homem que falara com o inspetor de polícia durante a noite,
e cujo oferecimento Fix tinha recusado.
Phileas Fogg não respondeu; mas Fix tendo-lhe mostrado o homem em
questão que passeava na frente da estação, o gentleman
foi até ele. Um instante depois, Phileas Fogg e este americano, que
se chamava Mudge, entravam numa cabana construída abaixo do forte Kearney.
Lá, Mr. Fogg examinou um veículo muito singular, espécie
de tabuleiro, colocado sobre duas longas vigas, um pouco arqueadas para cima
na parte dianteira como os pontos de apoio de um trenó, e sobre o qual
cinco ou seis pessoas poderiam se acomodar. A um terço do tabuleiro,
na frente, estava um mastro muito elevado, sobre a qual estava estendida um
imensa brigantina. A este mastro, solidamente sustentado por cordames metálicos,
ligava-se uma escora de ferro que servia para içar uma bujarrona de
grandes dimensões. Atrás, uma espécie de leme permitia
dirigir o aparelho.
Era, como se vê, um trenó armado em corveta. Durante o inverno,
sobre a pradaria gelada, quando os trens são detidos pela neve, estes
veículos fazem travessias extremamente rápidas de uma estação
a outra. São, além disso, prodigiosamente dotados de velas mais
do que seria conveniente num cutter de recreio, exposto a emborcar e com o
vento por trás, deslizam sobre a superfície das pradarias com
uma rapidez igual, se não superior, à dos expressos.
Em alguns instantes, uma negociação foi concluída entre
Mr. Fogg e o patrão desta embarcação de terra. O vento
estava bom. Soprava rijo de oeste. A neve estava endurecida, e Mudge se comprometia
a conduzir Mr. Fogg à estação de Omaha em poucas horas.
Lá, os trens são freqüentes e as vias numerosas, para Chicago
e Nova York. Não era impossível recuperar o tempo perdido. Não
havia por quê hesitar em tentar a aventura.
Mr. Fogg, não querendo expôr Mrs. Aouda às torturas
de uma travessia ao ar livre, por este frio que a velocidade tornaria mais
insuportável ainda, propôs-lhe que ficasse sob os cuidados de
Passepartout na estação de Kearney. O honesto moço encarregar-se-ia
de reconduzir a jovem à Europa por um caminho melhor e em condições
mais aceitáveis.
Mrs. Aouda recusou separar-se de Mr. Fogg, e Passepartout se sentiu muito
feliz com esta determinação. Com efeito, por nada neste mundo
teria querido deixar seu patrão, já que Fix devia acompanhá-lo.
Quanto ao que pensava então o inspetor de polícia seria difícil
dizer. Sua convicção teria sido abalada pelo regresso de Phileas
Fogg, ou consideraria que era um velhaco de marca maior, que, depois de haver
feito a volta ao mundo, se julgaria absolutamente seguro na Inglaterra? Talvez
a opinião de Fix a respeito de Mr. Fogg se tivesse efetivamente modificado.
Mas nem por isso estava menos resolvido a cumprir o seu dever e, mais impaciente
que todos, a apressar como pudesse o regresso à Inglaterra.
Às oito horas, o trenó estava prestes a partir. Os viajantes
seríamos tentados a dizer os passageiros tomaram seus lugares e envolveram-se
muito bem nas suas mantas de viagem. As duas imensas velas foram içadas,
e, sob o impulso do vento, o veículo seguiu sobre a neve endurecida
a uma velocidade de quarenta milhas por hora.
A distância que separa o forte Kearney de Omaha é, em linha
reta a vôo de abelha, como dizem os americanos de duzentas milhas quanto
muito. Se o vento se mantivesse, em cinco horas esta distância poderia
ser coberta. Se nenhum incidente acontecesse, à uma da tarde o trenó
deveria chegar a Omaha.
Que travessia! Os viajantes, apertados uns contra os outros, não
podiam conversar. O frio, aumentado pela velocidade, teria lhes cortado a
palavra. O trenó deslizava tão ligeiro pela superfície
da pradaria quanto uma embarcação pela superfície das
águas com o balanço de menos. Quando a brisa chegava varrendo
o solo, parecia que o trenó ia ser levantado do solo por suas velas,
vastas asas de imensa envergadura. Mudge conservava a veículo em linha
reta, e com um movimento do leme, retificava os bordejos que o aparelho tendia
a fazer. Ia-se com todo o pano. A vela triangular tinha sido desfraldada e
não estava mais protegida pela brigantina. Um mastaréu da gávea
foi guindado, e uma flecha, estendida ao vento, uniu sua força de impulsão
à das outras velas. Não era possível avaliá-la,
matematicamente, mas com certeza a velocidade do trenó não deveria
ser menos de quarenta milhas por hora.
Se nada se quebra, disse Mudge, chegaremos.
E Mudge tinha interesse em chegar no prazo estipulado, porque Mr. Fogg,
fiel ao seu sistema, o tinha estimulado com uma boa gratificação.
A pradaria, que o trenó cortava em linha reta, era plana como um
mar. Dir-se-ia um imenso tanque gelado. A rail-road que atende esta parte
do território subia, do sudeste para nordeste, por Great Island, Columbus,
cidade importante do Nebraska, Schuyler, Fremont, depois Omaha. Seguia durante
todo seu percurso a margem direita do Platte River. O trenó, abreviando
esta extensão, tomou a corda do arco descrito pela via férrea.
Mudge não receava que o Platte River lhe embaraçasse o trajeto,
no pequeno cotovelo que este rio faz adiante de Fremont, porque as suas águas
estavam geladas. O caminho achava-se, pois, completamente livre de obstáculos,
e Phileas Fogg só tinha duas coisas a temer: uma avaria no aparelho,
uma mudança ou uma calmaria do vento.
Mas a brisa não abrandava. Pelo contrário. Soprava de vergar
o mastro, que os tirantes de ferro agüentavam solidamente. Estes fios
de metal, semelhantes às cordas de um instrumento, soavam como se algum
arco os fizesse vibrar. O trenó voava em meio a uma harmonia plangente,
de sonoridade muito particular.
Estas cordas dão a quinta e a oitava, disse Mr. Fogg.
E estas foram as únicas palavras que pronunciou durante a viagem.
Mrs. Aouda, cuidadosamente envolvida nas peles e mantas de viagem, estava,
quanto era possível, abrigada do frio.
Quanto a Passepartout, a face vermelha como o disco solar quando se deita
nas brumas, aspirava o ar penetrante. Com a reserva de imperturbável
confiança que possuía, tinha voltado a ter esperanças.
Em vez de chegarem de manhã em Nova York, chegariam à tarde,
mas havia ainda algumas probabilidades que fosse antes da partida do paquete
para Liverpool.
Passepartout tinha até mesmo tido ganas de apertar a mão do
seu aliado Fix. Não se esquecia de que fora o inspetor que pessoalmente
procurara o trenó de velas, e, portanto, o único meio que havia
de chegar a Omaha em tempo útil. Mas, por um não se sabe qual
pressentimento, manteve-se na sua reserva usual.
Uma coisa porém Passepartout nunca esqueceria, o sacrifício
que Mr. Fogg tinha feito, sem hesitar, para arrancá-lo das mãos
dos Siouxs. Nisso, Mr. Fogg tinha arriscado sua fortuna e sua vida… Não!
seu servidor jamais esqueceria! Enquanto cada um dos viajantes se entregava
a tão diversas reflexões, o trenó voava sobre o imenso
tapete de neve. Se passou por alguns creeks, afluentes ou sub-afluentes do
Little Blue River, ninguém percebeu. Os campos e os cursos de água
desapareciam sob uma brancura uniforme. A pradaria estava completamente deserta.
Compreendida entre a Union Pacific road e o entroncamento que une Kearney
a Saint Joseph, formava como que uma grande ilha desabitada. Nem uma vila,
nem uma estação, nem mesmo um forte. De tempo em tempo, via-se
passar como um relâmpago alguma árvore contorcida, cujo branco
esqueleto se torneava sob a brisa. Por vezes, bandos de aves selvagens alçavam
vôo. Às vezes, ainda, alguns lobos das pradarias, em alcatéias
numerosas, magros, esfaimados, incitados por uma necessidade feroz, disputavam
velocidade com o trenó. Então, Passepartout, revólver
na mão, preparava-se para fazer fogo sobre os mais próximos.
Se algum acidente tivesse detido o trenó, os viajantes, atacados por
estes ferozes carniceiros, teriam corrido os maiores riscos. Mas o trenó
aguentava firme, pegava a dianteira, e logo logo todo o bando uivador ficava
para trás.
Ao meio dia, Mudge reconheceu por alguns indícios, que passava pelo
leito gelado do Platte River. Nada disse, mas já tinha a certeza de
que, vinte milhas além, alcançaria a estação de
Omaha.
E, com efeito, não tinha passado uma hora, e este guia hábil,
largando o leme, se precipitou para as adriças e ferrou o pano, mas
o trenó, levado pelo impulso do vento que recebera, correu ainda meia
milha. Afinal parou, e Mudge, mostrando um ajuntamento de telhados branqueados
pela neve, disse: Chegamos.
Chegados! Chegados, com efeito, a esta estação que, por meio
de numerosos trens, está diariamente em comunicacão com o leste
dos Estados Unidos! Passepartout e Fix saltaram para terra e sacudiram seus
membros entorpecidos. Ajudaram Mr. Fogg e a jovem a descer do trenó.
Phileas Fogg acertou as contas generosamente com Mudge, ao qual Passepartout
apertou a mão, como a um amigo, e todos se precipitaram para a estação
de Omaha.
É nesta importante cidade de Nebraska que acaba a estrada de ferro
do Pacífico propriamente dita, que põe a bacia do Mississipi
em comunicação com o grande oceano. Para se ir de Omaha a Chicago,
a rail-road, sob o nome de “Chicago and Rock Island Railroad”,
corre diretamente para leste servindo cinqüenta estações.
Um trem direto estava prestes a partir. Phileas Fogg e os seus companheiros
apenas tiveram tempo de se precipitar num vagão. Nada viram de Omaha,
mas Passepartout confessou a si mesmo que não tinha motivos para se
lastimar, porque não era para ver que estavam ali.
Com extrema rapidez, o trem passou pelo Estado de Iowa, por Council Bluffs,
Des Moines, Iowa City. Durante a noite, atravessou o Mississipi em Davenport,
e por Rock Island entrou no Illinois. No dia seguinte, 10, às quatro
horas da tarde chegou a Chicago, já reconstruída das suas ruínas,
e mais soberba que nunca sobre as margens do seu belo lago Michigan.
Noventas milhas separam Chicago de Nova York. Trens não faltavam
em Chigago. Mr. Fogg passou imediatamente de um para outro. A elegante locomotiva
da “Pittsburg, Fort Wayne e Chicago Railway” partiu a toda velocidade,
como se compreendesse que o honrado gentleman não tinha tempo a perder.
Atravessou como um relâmpago Indiana, Ohio, Pensilvânia, New Jersey,
passando por cidades de nomes antiguados, em algumas das quais havia ruas
e tramways, mas ainda não casas. Finalmente o Hudson apareceu, e, em
11 de dezembro, às onze e quinze da noite, o trem parou na estação,
na margem direita do rio, diante do “pier” dos vapores da linha
Cunard, também chamada de “Britsh and North American Royal Mail
Steam Packet Co.”.
O China, com destino a Liverpool, tinha partido há quarenta e cinco
minutos!
CAPÍTULO XXXII
EM QUE PHILEAS FOGG TRAVA UMA LUTA DIRETA CONTRA A MÁ SORTE
Partindo, o China parecia ter levado com ele a última esperança
de Phileas Fogg.
Com efeito, nenhum dos outros paquetes que fazem o serviço direto
entre a América e a Europa, nem os transatlânticos franceses,
nem os navios da “White Star Line”, nem os vapores da Companhia
Imman, nem os da linha Hamburguesa, nem outros, poderiam servir para os propósitos
do gentleman.
Com efeito, o Pereire, da Companhia transatlântica francesa cujos
admiráveis barcos igualam em velocidade e excedem em comodidades todos
os das outras linhas, sem exceção só partiria dali a
dois dias, 14 de dezembro. Além disso, do mesmo modo que os paquetes
da Companhia hamburguesa, não ia diretamente a Liverpool ou a Londres,
mas ao Havre, e esta travessia suplementar do Havre a Southampton, atrasando
Phileas Fogg, anularia seus últimos esforços.
Quanto aos paquetes Imman, um dos quais, o City of Paris, punha-se ao mar
no dia seguinte, não se deveria nem pensar neles. Estes navios são
particularmente destinados ao transporte de emigrantes, suas máquinas
são fracas, navegam tanto a vela como a vapor, e a sua velocidade é
medíocre. Gastam na travessia de Nova York para a Inglaterra mais tempo
do que o que restava a Mr. Fogg para ganhar a aposta.
De tudo isto o gentleman se deu perfeitamente conta consultando seu Bradshaw,
que lhe fornecia, dia por dia, os movimentos da navegação transoceânica.
Passepartout estava arrasado. Ter perdido o paquete por quarenta e cinco
minutos, isso o matava. A culpa era sua, que, em vez de ajudar o patrão,
não tinha parado de semear obstáculos em seu caminho! E quando
revia em seu espírito todos os incidentes da viagem, quando sopesava
as quantias despendidas em pura perda e só no seu interesse, quando
pensava que aquela enorme aposta, com o acréscimo das despesas consideráveis
desta viagem agora perdida, arruinava completamente Mr. Fogg, cobria-se de
injúrias.
Mr. Fogg não lhe fez, contudo, nenhuma censura, e, ao deixar o embarcadouro
dos paquetes trasatlânticos, só disse estas palavras: Amanhã
veremos o que se pode fazer. Vamos.
Mr. Fogg, Mrs. Aouda, Fix, Passepartout atravessaram o Hudson no Jersey
City ferryboat, e subiram em um fiacre, que os conduziu ao hotel Saint Nicolas,
na Broadway. Quartos foram postos à disposição deles,
e a noite passou, curta para Phileas Fogg, que dormiu um sono perfeito, mas
bem longa para Mrs. Aouda e seus companheiros, aos quais a agitação
não permitiu repousar.
O dia seguinte era 12 de dezembro. Do dia 12, às sete da manhã,
ao dia 21, às oito e quarenta e cinco da noite, havia nove dias, treze
horas e quarenta e cinco minutos. Se, pois, Phileas Fogg tivesse partido na
véspera pelo China, um dos melhores cruzadores da linha Cunard, teria
chegado a Liverpool, depois a Londres, no prazo desejado.
Mr. Fogg deixou o hotel, sozinho, depois de ter recomendado ao criado que
o esperasse e avisasse Mrs. Aouda para que estivesse pronta a qualquer momento.
Mr. Fogg dirigiu-se para as margens do Hudson, e entre os navios atracados
ao cais, ou ancorados no rio, procurou atentamente os que estavam de partida.
Muitas embarcações tinham o sinal de partida e se preparavam
para se fazer ao mar na maré da manhã, porque neste imenso e
admirável porto de Nova York, não há dia em que cem navios
não façam rota para todos os pontos do globo; mas a maioria
eram embarcações a vela, e não podiam convir a Phileas
Fogg.
Este gentleman parecia dever falhar na sua última tentativa, quando
avistou ancorado diante da Bateria, a 200 metros ou mais, um navio de comércio
a hélice, de formas finas, e cuja chaminé, deixando sair grossas
nuvens de fumaça, indicava que se preparava para partir.
Phileas Fogg chamou um bote, embarcou nele, e, em poucas remadas, achou-se
na escada do Henrietta, vapor de casco de ferro,com todos os altos de madeira.
O capitão do Henrietta estava a bordo. Phileas Fogg subiu ao convés
e pediu para chamarem o capitão. Este apareceu logo.
Era um homem de cinqüenta anos, uma espécie de lobo marinho,
um resmungão que não deveria ser tratável. Olhos grandes,
raiados de cobre oxidado, cabelos vermelhos, pescoço encorpado não
tinha o aspecto de um homem delicado.
O capitão? perguntou Mr. Fogg.
Sou eu.
Eu sou Phileas Fogg, de Londres.
E eu, Andrew Speedy, da Cardiff.
Vai partir? Em uma hora.
Esta carregado para…
Bordeaux.
E sua carga? Pedras no porão. Sem frete. Parto em lastro.
Tem passageiros? Sem passageiros. Jamais passageiros. Mercadoria que estorva
e que discute.
Seu navio anda bem? Entre onze a doze nós. O Henrietta é bem
conhecido.
Quer me transportar para Liverpool, a mim e três pessoas? Para Liverpool?
Porque não para a China? Digo Liverpool.
Não! Não? Não. Estou de partida para Bordeaux, e vou
para Bordeaux.
Não importa o preço? Não importa o preço.
O capitão tinha falado com um tom que não admitia réplica.
Mas os armadores do Henrietta… retomou Phileas Fogg.
Os armadores, sou eu, respondeu o capitão. O navio me pertence.
Eu freto! Não.
Eu compro.
Não.
Phileas Fogg nem pestanejou. Entretanto a situação era grave.
Não estava sendo em Nova York como tinha sido em Hong Kong; nem com
o capitão do Henrietta como tinha sido com o patrão da Tankadère.
Até então o dinheiro do gentleman tinha dado conta dos obstáculos.
Mas desta vez o dinheiro falhava.
Entretanto, era preciso encontrar o meio de atravessar o Atlântico
de navio a menos que fosse atravessado de balão o que seria muito arriscado,
e, além disso, irrealizável.
Pareceu, contudo, que Phileas Fogg teve uma idéia, porque disse ao
capitão: Pois bem, quer me levar até Bordeaux? Não, nem
que me pagasse cem dólares! Ofereço dois mil.
Por pessoa? Por pessoa.
E são quatro? Quatro.
O capitão Speedy começou a coçar a testa, como se quisesse
arrancar-lhe a epiderme. Ganhar oito mil dólares, sem alterar a viagem,
aí estava uma coisa pela qual valia a pena pôr de lado sua antipatia
declarada por qualquer espécie de passageiro. Passageiros a dois mil
dólares, ademais, já não são passageiros, são
mercadoria preciosa.
Parto às nove horas, disse simplesmente o capitão Speedy,
com o senhor e os seus, se estiverem aqui…
Às nove horas, estaremos no navio! respondeu não menos simplesmente
Phileas Fogg.
Eram oito e meia. Desembarcar do Henrietta, subir para um veículo,
dirigir-se ao hotel Saint-Nicolas, trazer Mrs. Aouda, Passepartout, e até
o inseparável Fix, a quem graciosamente ofereceu passagem, tudo isso
foi feito pelo gentleman com a calma que não o abandonava em nenhuma
circunstância.
No momento em que o Henrietta aparelhava, todos os quatro estavam a bordo.
Quando Passepartout soube quanto custaria esta última travessia,
soltou um desses “Oh!” prolongados, que percorrem todas os intervalos
da escala cromática descendente! Quanto ao inspetor Fix, disse consigo
que decididamente o Banco da Inglaterra não sairia incólume
deste negócio. Com efeito; chegando e admitindo que o senhor Fogg não
lançasse mais alguns punhados ao mar, mais de sete mil libras (175.000
F) faltariam na sacola de bank-notes.
CAPÍTULO XXXIII
EM QUE PHILEAS FOGG SE MOSTRA À ALTURA DAS CIRCUNSTÂNCIAS
Uma hora depois, o vapor Henrietta ultrapassava o farol que sinaliza a entrada
do Hudson, dobrava a ponta de Sandy Hook e dava ao mar. Durante a jornada,
costeou Long Island, ao largo das luzes de Fire Island, e correu rapidamente
para leste.
No dia seguinte, 13 de dezembro, ao meio dia, um homem subiu ao convés
para determinar as coordenadas. Supõem, por certo, que este homem era
o capitão Speedy! Nada disso. Era Phileas Fogg, esq.
Quanto ao capitão Speedy, estava fechado e bem fechado à chave
no seu camarote, e soltava uivos que denotavam uma cólera, bem perdoável,
levada ao paroxismo.
O que tinha acontecido era muito simples. Phileas Fogg queria ir a Liverpool,
o capitão não quis conduzi-lo para lá. Então Phileas
Fogg tinha aceitado comprar passagem para Bordeaux, e, nas trinta horas que
esteve no navio, tinha manobrado tão bem recorrendo às suas
bank-notes, que a tripulação, marinheiros e fogueiros tripulação
um pouco contrabandista, que estava em péssimos termos com o capitão
lhe pertencia. Eis por quê Phileas Fogg comandava em lugar do capitão
Speedy, por quê o capitão estava trancado no camarote, e por
quê enfim o Henrietta se dirigia para Liverpool. E bastava, era evidente,
ver Mr. Fogg manobrar, para saber que Mr. Fogg tinha sido marujo.
E agora, como acabaria a aventura, é o que mais tarde se saberá.
Contudo, Mrs. Aouda não deixava de se sentir inquieta, apesar de nada
dizer. Fix, esse, tinha ficado estupefato a princípio. Quanto a Passepartout,
achava simplesmente adorável.
Entre onze a doze nós, tinha dito o capitão Speedy, e com
efeito o Henrietta se mantinha nesta média de velocidade.
Se, pois que ainda havia “se”! se, pois, o mar não ficasse
muito ruim, se o vento não saltasse para leste, se não sucedesse
nenhuma avaria ao barco, nenhum acidente à máquina, o Henrietta,
nos nove dias contados de 12 de dezembro a 21, poderia atravessar as três
mil milhas que separam Nova York de Liverpool. É verdade que uma vez
lá, o negócio do Henrietta somando-se ao do Banco, poderia levar
o gentleman um pouco mais longe de onde queria.
Durante os primeiros dias, a navegação se fez em excelentes
condições. O mar não estava muito duro; o vento parecia
fixo a nordeste; largaram-se as velas, e, sob suas goletas, o Henrietta andou
como um verdadeiro transatlântico.
Passepartout estava encantado. A última proeza de seu patrão,
da qual não queria ver as conseqüências, o entusiasmou.
Jamais a tripulação vira um rapaz mais alegre, mais ágil.
Fazia mil gentilezas para os marinheiros e os assombrava por suas piruetas
de malabarista. Com prodigalidade lhes dava os melhores nomes e as bebidas
mais atraentes. Para ele, manobravam como gentlemen, e os fogueiros atiçavam
as fornalhas como uns heróis. Seu bom humor, muito comunicativo, contagiava
todos. Esquecera o passado, os aborrecimentos, os perigos. Só pensava
na meta da viagem, tão próxima, e às vezes ardia de impaciência
como se tivesse sido aquecido nas fornalhas do Henrietta. Muitas vezes também,
o digno rapaz rodeava Fix; o olhava com olho que se diria comprido! mas não
lhe falava, porque já não existia nenhuma intimidade entre os
dois antigos amigos.
Demais, Fix, cumpre dizer, já não compreendia nada! A conquista
do Henrietta, a compra de sua tripulação, aquele Fogg manobrando
como um marinheiro consumado, todo este conjunto de coisas o aturdia. Não
sabia mais o que pensar! Mas, afinal, um gentleman que começava roubando
cinqüenta e cinco mil libras podia muito bem acabar por roubar uma embarcação.
E Fix foi naturalmente levado a crer que o Henrietta, dirigido por Fogg, não
iria de jeito nenhum para Liverpool, mas para algum ponto do mundo onde o
ladrão, agora pirata, se poria tranqüilamente em segurança!
Esta hipótese, devemos confessar, não poderia ser mais plausível,
e o detetive começava a arrepender-se muito seriamente de ter embarcado
nessa.
Quanto ao capitão Speedy, continuava a uivar no camarote, e Passepartout,
encarregado de lhe levar alimentos, não o fazia, apesar de ser muito
vigoroso, sem as maiores precauções. Mr. Fogg, esse, nem mesmo
parecia duvidar que houvesse um capitão a bordo.
No dia 13, passaram pela extremidade da Terra Nova. São más
paragens. Durante o inverno sobretudo, os nevoeiros são freqüentes,
os furacões temíveis. Desde a véspera, o barômetro,
que baixara repentinamente, fazia pressentir uma mudança próxima
na atmosfera. Com efeito, durante a noite, a temperatura se modificou, o frio
tornou-se mais intenso, e ao mesmo tempo o vento rodou para sudeste.
Era um contratempo. Mr. Fogg, para não se afastar de sua rota, teve
de ferrar as velas e forçar o vapor. Contudo, o andamento do navio
foi diminuindo, tendo em conta o estado do mar, cujas imensas ondas quebravam
contra a roda de proa. O navio começou a arfar violentamente, em prejuízo
da sua velocidade. O vento virava pouco a pouco furacão, e já
se previa o momento em que o Henrietta não pudesse mais se manter sobre
as ondas. Ora, se fosse preciso fugir diante do temporal, surgiria o desconhecido
com todas as suas conseqüências.
O semblante de Passepartout carregou-se ao mesmo tempo que o céu,
e, por dois dias, o excelente moço passou por transes mortais. Mas
Phileas Fogg era um marinheiro ousado, que sabia resistir ao mar, e continuou
o seu caminho sem sequer diminuir o vapor. O Henrietta, quando não
podia levantar-se sobre a vaga, atravessava-a, o mar varria-lhe o convés,
mas passava. Por vezes a hélice emergia, agitando suas pás no
ar vertiginosamente, quando alguma montanha de água levantava sua popa
para fora da superfície da água. Porém, o navio ia sempre
em frente.
Contudo o vento não soprou tão forte quanto poderiam ter esperado.
Não se tornou um deste tufões que passam a uma velocidade de
noventa milhas por hora. Soprou suportavelmente, mas infelizmente soprou com
obstinação do sudeste e não permitiu que se largasse
o pano. E contudo, como veremos, teria sido muito útil que tivesse
vindo em auxílio do vapor.
Dia 16 de dezembro, era o septagésimo quinto desde a partida de Londres.
Em resumo, o Henrietta não tinha ainda um atraso inquietante. Metade
da travessia, mais ou menos, já estava feita, e as piores paragens
tinham sido vencidas. No verão, poderiam ter tido certeza de sucesso.
No inverno, estavam à mercé do mau tempo. Passepartout não
emitia sua opinião. No fundo, tinha esperanças, e, se faltasse
vento, punha fé no vapor.
Ora, naquele dia, o maquinista tendo subido à coberta, encontrou
Mr. Fogg e falou acaloradamente com ele.
Sem saber bem porque por um pressentimento sem dúvida Passepartout
experimentou uma vaga inquietação. Teria dado uma de suas orelhas
para ouvir com a outra o que era dito. Contudo, pôde apanhar algumas
palavras, pronunciadas por seu patrão: Tem certeza do que disse? perguntou
Mr. Fogg.
Certeza absoluta, senhor, respondeu o maquinista. Não se esqueça
de que, desde nossa partida, temos tido as fornalhas sempre acesas, e que
se temos suficiente carvão para ir a pouco vapor de Nova York a Bordeaux,
não temos o bastante para ir a todo o vapor de Nova York a Liverpool.
Pensarei nisso, respondeu Mr. Fogg.
Passepartout tinha compreendido. Ficou mortalmente inquieto.
Ia faltar carvão! Ah! se meu patrão passa por esta, disse
ele consigo, ficará famoso! E tendo encontrado Fix, não conseguiu
se conter de colocá-lo a par da situação.
Pois então, lhe respondeu o agente com os dentes cerrados, julga
mesmo que vamos para Liverpool! Claro que sim! Imbecil! respondeu o inspetor,
que se afastou, encolhendo os ombros.
Passepartout esteve a ponto de fazê-lo engolir o qualificativo, cujo
sentido verdadeiro não podia aliás compreender; mas disse para
si que o infortunado Fix deveria estar muito desapontado, muito humilhado
em seu amor próprio, depois de ter tão atabalhoadamdente seguido
uma pista falsa em redor do mundo, e desculpou-o.
E agora que decisão iria tomar Phileas Fogg? Era difícii de
imaginar! Entretanto pareceu que o fleumático gentleman tinha tomado
uma, porque naquela mesma tarde mandou chamar o maquinista, e lhe disse: Atice
o fogo e vá em frente até acabar completamente o combustível.
Instantes depois, a chaminé do Henrietta vomitava turbilhões
de fumaça.
O navio continuou assim a andar a todo vapor; mas, como tinha sido avisado,
dois dias mais tarde, dia 18, o maquinista fez saber que o carvão acabaria
naquele dia.
Que não deixem o fogo baixar, respondeu Mr. Fogg. Pelo contrário.
Abram as válvulas.
Naquele dia, por volta do meio dia, depois de ter tomado a altura do sol,
e calculado a posição do navio, Phileas Fogg fez vir Passepartout,
e deu-lhe a ordem de ir buscar o capitão Speedy. Era como se tivessem
mandado o bom moço desacorrentar um tigre, e ele desceu ao tombadilho,
se dizendo: Positivamente ficará raivoso! Com efeito, alguns minutos
mais tarde, em meio a gritos e pragas, uma bomba chegava ao tombadilho. Esta
bomba, era o capitão Speedy. E era evidente que ela iria explodir.
Onde estamos? tais foram as primeiras palavras que pronunciou no meio das
sufocações de cólera, e se não ficasse apoplético,
jamais ficaria.
Onde estamos? repetiu, a face congestionada.
A setecentas e setenta milhas de Liverpool (300 léguas), respondeu
Mr. Fogg com uma calma imperturbável.
Pirata! exclamou Andrew Speedy.
Mandei-o chamar, senhor…
Corsário! …senhor, retomou Phileas Fogg, para pedir que me venda
o seu navio.
Não! por todos os diabos, não! É que vou ser obrigado
a queimá-lo.
Queimar meu navio! Sim, pelo menos seus altos, porque estamos sem combustível.
Queimar meu navio! gritou o capitão Speedy, que já nem podia
mais sequer pronunciar as sílabas. Um navio que vale cinqüenta
mil dólares (250.000 F).
Aqui tem sessenta mil (300.000 F)! respondeu Phileas Fogg, oferecendo ao
capitão um maço de bank-notes.
Isso teve um efeito mágico sobre Andrew Speedy. Não se é
americano sem que a visão de sessenta mil dólares lhe cause
uma certa emoção. O capitão esqueceu em um instante sua
cólera, sua encarceramento, todos as queixas contra seu passageiro.
O navio tinha vinte anos. Aquilo poderia vir a ser uma mina de ouro!… A
bomba não poderia mais explodir. Mr. Fogg arrancara seu estopim.
E o casco de ferro ficará para mim, disse em um tom singularmente
doce.
O casco de ferro e a máquina, senhor. Fechado? Fechado.
E Andrew Speedy, pegando o maço de bank-notes, contou e embolsou.
Durante esta cena, Passepartout estava lívido. Quanto a Fix, quase
que teve um enfarto. Quase vinte mil libras gastas, e ainda por cima este
Fogg abandonava ao vendedor o casco e a máquina, isto é, quase
o valor total do navio! É bem verdade que a quantia roubada do Banco
era de cinqüenta e cinco mil libras! Quando Andrew Speedy tinha embolsado
o dinheiro: Senhor, disse Mr. Fogg, que tudo isso não lhe cause admiração.
Saiba que perco vinte mil libras se não estiver em Londres dia 21 de
dezembro, às oito e quarenta e cinco da noite. Ora, perdi o paquete
de Nova York, e como se recusava a me levar a Liverpool…
E fiz bem, pelos cinqüenta mil diabos do inferno, exclamou Andrew Speedy,
pois com isso ganhei pelo menos quarenta mil dólares.
Depois, mais pausadamente: Sabe uma coisa, acrescentou, capitão?…
Fogg.
Capitão Fogg, pois bem, há um yankee no senhor.
E depois de ter feito ao seu passageiro o que ele julgava um comprimento,
ia embora, quando Phileas Fogg lhe disse: Agora este navio me pertence? Claro,
da quilha até à ponta dos mastros; tudo o que for madeira, claro.
Bem. Faça demolir as divisões internas e aquecer a caldeira
com os destroços.
Imaginem o que foi preciso consumir de madeira seca para conservar o vapor
com suficiente pressão. Naquele dia, o tombadilho, os camarotes de
convés, as cabinas, os alojamentos, a falsa coberta, tudo foi abaixo.
No dia seguinte, 19 de dezembro, queimou-se a mastreação,
as peças de substituição, as antenas. Abateram-se os
mastros, foram cortados a machadadas. Passepartout, rachando, cortando, serrando,
fazia o trabalho de dez homens. Era um furor de demolição.
No dia seguinte, 20, os pavezes, as obras mortas, e a maior parte da coberta
foram devorados. O Henrietta não era mais que uma embarcação
rasa como um pontão.
Mas, nesse dia, foi avistada a costa da Irlanda e as luzes de Fastenet.
Contudo, às dez horas, o navio estava ainda na altura de Queenstown.
Phileas Fogg não tinha mais de vinte e quatro horas para chegar a Londres!
Ora, era o tempo necessário para o Henrietta chegar a Liverpool mesmo
navegando a todo o vapor. E o vapor iria faltar afinal ao audacioso gentleman.
Senhor, disse então o capitão Speedy, que tinha acabado se
interessando por seus projetos, lamento de verdade. Tudo está contra
si! Não estamos senão diante de Queenstown.
Ah! exclamou Mr. Fogg, é Queenstown, esta cidade de que vemos as
luzes é Queenstown? Sim.
Podemos entrar no porto? Não antes das três. Só com
maré cheia.
Esperemos! respondeu tranqüilamente Phileas Fogg, sem revelar em seu
rosto que, por uma suprema inspiração, iria tentar mais uma
vez vencer a sorte adversa! Com efeito, Queenstown é um porto da costa
da Irlanda na qual os transatlânticos que vêm dos Estados Unidos
deixam na passagem as suas malas postais. As cartas são levadas a Dublin
por expressos sempre prontos para partir. De Dublin chegam a Liverpool por
vapores de grande velocidade precedendo em doze horas os barcos mais rápidos
das companhias marítimas.
Estas doze horas que assim ganhava o correio da América, Phileas
Fogg pretendia também ganhá-las. Em lugar de chegar no Henrietta,
no dia seguinte à tarde, em Liverpool, chegaria ao meio dia, e, por
conseguinte, teria tempo para estar em Londres antes das oito horas e quarenta
e cinco minutos da noite.
Pela uma da madrugada, o Henrietta entrou com o mar alto no porto de Queenstown,
e Phileas Fogg, depois de ter recebido um vigoroso aperto de mão do
capitão Speedy, deixava-o no casco arrasado do seu navio, que ainda
valia a metade do que tinha vendido! Os passageiros desembarcaram depressa.
Fix, neste momento, teve um desejo feroz de deter o senhor Fogg. Mas não
o fez! Por quê? Que combate se travava nele? Teria mudado de idéias
a respeito de Mr. Fogg? Compreendera afinal que se enganara? Tadavia, Fix
não abandonou Mr. Fogg. Com ele, com Mrs. Aouda, com Passepartout,
que já nem gastava o tempo para respirar, subiu no trem de Queenstown
à uma e meia da madrugada, chegou a Dublin com o dia nascendo, e embarcou
logo num desses vapores verdadeiros fusos de aço, só movidos
por máquinas que desdenhando elevar-se sobre as ondas, passam invariavelmente
através delas.
Ao meio dia menos vinte, em 21 de dezembro, Phileas Fogg desembarcou afinal
no cais de Liverpool. Não estava a mais de seis horas de Londres.
Mas neste momento, Fix se aproximou, pôs a mão no seu ombro,
e, exibindo seu mandado: É o senhor Phileas Fogg? disse ele.
Sim, senhor.
Eu o prendo, em nome da Rainha!
CAPÍTULO XXXIV
QUE PROPORCIONA A PASSEPARTOUT A OPORTUNIDADE DE FAZER UM TROCADILHO
INFAME, MAS TALVEZ INÉDITO
Phileas Fogg estava na prisão. Tinham-no trancafiado no posto policial
da Custom House, a alfândega de Liverpool, e aí deveria passar
a noite esperando ser transferido para Londres.
No momento da detenção, Passepartout tinha tentado se precipitar
sobre o detetive. Os policemen impediram. Mrs. Aouda, aterrada pela brutalidade
do fato, nada sabendo, nada compreendia. Passepartout lhe explicou a situação.
Mr. Fogg, este honesto e corajoso gentleman, ao qual ela devia a vida, estava
preso como ladrão. A jovem protestou contra tal alegação,
seu coração se indignou, e as lágrimas correram de seus
olhos, quando viu que nada podia fazer, nada tentar, para salvar seu salvador.
Quanto a Fix, tinha prendido o gentleman porque seu dever lhe comandava
prendê-lo, fosse culpado ou não. A justiça decidiria.
Mas então um pensamento veio a Passepartout, o pensamento terrível
de que ele era decididamente a causa do toda aquela desgraça! Com efeito,
por quê tinha ocultado o que se passava de Mr. Fogg? Quando Fix tinha
se revelado, revelado sua qualidade de inspetor de polícia e a missão
de que tinha sido encarregado, por quê tinha decidido não avisar
o patrão? Este, prevenido, teria sem dúvida dado a Fix provas
de sua inocência; teria demostrado seu erro; em todo o caso, não
teria levado às suas custas e nas suas costas este mal agradecido agente,
cujo primeiro cuidado tinha sido prendê-lo, no momento em que punha
o pé no solo do Reino Unido. Ao pensar em suas faltas, em suas imprudências,
o pobre rapaz era tomado de irresistíveis remorsos. Chorava, dava pena
vê-lo. Queria dar com a cabeça na parede! Mrs.Apesar e ele tinham
ficado, apesar do frio, no peristilo da alfândega. Não queriam
nem um nem a outra deixar o lugar. Desejavam rever ainda uma vez Mr. Fogg.
Quanto a este gentleman, estava bem e em regra arruinado, e justo no momento
em que ia alcançar seu objetivo. Esta detenção o perdia
irrevogavelmente. Tendo chegado ao meio dia menos vinte em Liverpool, dia
21 de dezembro, tinha até as oito horas e quarenta e cinco minutos
para se apresentar no Reform Club, ou seja nove horas e quinze minutos e não
precisaria mais de seis para chegar a Londres.
Neste momento, quem tivesse penetrado no posto policial da alfândega,
teria encontrado Mr. Fogg, imóvel, sentado num banco dê madeira,
sem cólera, imperturbável. Resignado, não sabemos, mas
este último golpe não o tinha podido emocionar, pelo menos aparentemente.
Teria se formado nele uma dessas tempestades secretas, terríveis porque
são reprimidas, e que não eclodem senão no último
momento com uma força irresistível? Não sabemos. Mas
Phileas Fogg estava ali, calmo, aguardando… o quê? Conservaria alguma
esperança? Confiaria ainda no sucesso, quando a porta desta prisão
estava trancada sobre ele? Fosse como fosse, Mr. Fogg tinha cuidadosamente
posto seu relógio sobre uma mesa e olhava os ponteiros avançarem.
Nem uma palavra escapava de seus lábios, mas seu olhar tinha uma fixidez
ímpar.
Em todo caso, a situação era terrível, e, para quem
não pudesse ler naquela consciência, ela se resumia assim: Homem
honesto, Phileas Fogg estava arruinado.
Homem desonesto, estava preso.
Teria então o pensamento de se salvar? Pensava em procurar se este
posto apresentaria uma saída praticável? Pensava em fugir? Seríamos
tentados a acreditar que sim, porque, em certo momento, inspecionou o quarto.
Mas a porta estava solidamente fechada e as janelas guarnecidas de barras
de ferro. Voltou a se sentar, e tirou da carteira o roteiro da viagem. Na
linha que trazia estas palavras: 21 do dezembro, sábado, Liverpool,
acrescentou: 80.° dia, 11 h 40 da manhã, e esperou.
Uma hora soou no relógio da Custom-house. Mr. Fogg constatou que
o seu relógio estava dois minutos adiantado em relação
a ele.
Duas horas! Admitindo que tomasse neste momento um expresso, poderia ainda
chegar a Londres e ao Reform Club antes das oito e quarenta e cinco da noite.
Sua testa enrugou-se ligeiramente…
Às duas e trinta e três, um barulho ressoou do lado de fora,
um barulho tumultuoso de portas que se abriam. Ouviu-se a voz de Passepartout,
ouviu-se a voz de Fix.
O olhar de Phileas Fogg brilhou um instante.
A porta do posto policial se abriu, e viu Mrs. Aouda, Passepartout, Fix,
que se precipitaram para ele.
Fix estava sem fôlego, cabelos em desalinho… Não podia falar!
Senhor, balbuciou, senhor… perdão… uma semelhança deplorável…
Ladrão está preso há três dias… está…
livre!…
Phileas Fogg estava livre! Foi até o detetive. Olhou diretamente
para seu rosto, e, fazendo o único movimento rápido que jamais
tinha feito em sua vida, recuou seus dois braços para trás,
depois, com a precisão de um autômato, bateu com seus dois punhos
no infeliz inspetor.
Bem dado! exclamou Passepartout, que, se permitindo um infame trocadilho,
bem digno de um francês, acrescentou: Cáspite! eis o que se pode
chamar de um soco inglês bem aplicado! Fix, derrubado, não pronunciou
palavra. Levara o que tinha merecido. Mas de imediato Mr. Fogg, Mrs. Aouda,
Passepartout deixaram a alfândega. Lançaram-se em um veículo,
e, em alguns minutos, chegaram à estação de Liverpool.
Phileas Fogg perguntou se havia um expresso prestes a partir para Londres…
Eram duas e quarenta… O expresso tinha partido havia trinta e cinco minutos.
Phileas Fogg solicitou então um trem especial.
Havia diversas locomotivas a vapor de grande velocidade; mas, atendendo
às exigências do serviço, o trem especial só poderia
deixar a estação às três horas.
Às três horas, Phileas Fogg, depois de ter dito algumas palavras
ao maquinista sobre uma certa gratificação, corria em direção
a Londres, em companhia da jovem e do seu fiel servidor.
Era preciso percorrer em cinco horas e meia a distância que separa
Liverpool de Londres coisa muito fácil quando a via está livre
em todo o percurso. Mas houve atrasos forçados, e, quando o gentleman
chegou à estação, nove horas menos dez soavam em todos
os relógios de Londres.
Phileas Fogg, depois de ter dado a volta ao mundo, chegava com um atraso
de cinco minutos!…
Tinha perdido.
CAPÍTULO XXXV
EM QUE PASSEPARTOUT NÃO PEDE PARA SEU PATRÃO REPETIR DUAS
VEZES UMA ORDEM DADA
No dia seguinte, os moradores de Saville Row teriam ficado bem surpresos,
se lhes tivessem dito que Mr. Fogg tinha voltado para casa. Portas e janelas,
tudo estava fechado. Nenhuma mudança se tinha produzido exteriormente.
Com efeito, após ter deixado a estação, Phileas Fogg
tinha mandado Passepartout comprar algumas provisões, e tinha voltado
para casa.
O gentleman tinha recebido com sua impassividade habitual o golpe que o
ferira. Arruinado! e por culpa deste inspetor de polícia trapalhão!
Após ter caminhado a passos seguros durante um longo percurso, após
ter ultrapassado mil obstáculos, arrostado mil perigos, tendo ainda
tempo para fazer algum bem pelo caminho, morrer na praia por um fato brutal,
que não poderia prever, e contra o qual estava desarmado: era terrível!
Da soma considerável que tinha levado ao partir, só lhe restava
um saldo insignificante. Sua fortuna era só as vinte mil libras depositadas
no Baring Irmãos, e essas vinte mil libras, ele as devia aos seus colegas
do Reform Club. Após tantas despesas, ganhar a aposta não o
teria enriquecido sem dúvida, e é provável que não
tivesse procurado se enriquecer sendo desses homens que apostam por honra
mas a aposta perdida o arruinava totalmente. E mais, a decisão do gentleman
estava tomada. Sabia o que lhe restava fazer.
Um quarto da casa de Saville Row tinha sido reservado para Mrs. Aouda. A
jovem estava desesperada. Por certas palavras pronunciadas por Mr. Fogg, compreendera
que este meditava algum plano funesto.
Sabemos, com efeito, a que deploráveis extremos são levados
às vezes esses ingleses monomaníacos sob a pressão de
uma idéia fixa. Também Passepartout, sem parecer, vigiava seu
patrão.
Mas, assim que chegou, o honesto rapaz tinha subido ao seu quarto e apagado
o bico que brilhava há oitenta dias. Tinha encontrado na caixa do correio
uma conta da companhia do gás, e pensou que era mais que tempo de parar
com esta despesa pela qual era responsável.
A noite passou. Mr. Fogg tinha deitado, mas teria dormido? Quanto a Mrs.
Aouda, não pôde ter um só instante de repouso. Passapartout,
este, tinha vigiado como um cão à porta de seu patrão.
No dia seguinte, Mr. Fogg o chamou e recomendou-lhe, em termos muito breves,
que cuidasse do almoço de Mrs. Aouda. Para ele, ele se contentaria
com uma xícara de chá e uma torrada. Mrs. Aouda que o desculpasse
no almoço e no jantar, porque todo seu tempo estaria consagrado a colocar
em ordem seus negócios. Não desceria. À noite somente,
e pedia a Mrs. Aouda permissão para encontrá-la por alguns instantes.
Passepartout, tendo recebido o programa do dia, tinha que se conformar com
ele. Olhava seu patrão sempre impassível, e não podia
se decidir a deixar o quarto. Seu coração estava aflito, sua
consciência torturada por remorsos, porque se acusava mais que nunca
deste irreparável desastre. Sim! se tivesse avisado Mr. Fogg, se lhe
tivesse revelado os projeto do agente Fix, Mr. Fogg não teria certamente
arrastado o agente até Liverpool, e então…
Passepartout não pôde se conter.
Meu patrão! senhor Fogg! exclamou, amaldiçoe-me. É
por minha culpa que…
Não acuso ninguém, respondeu Phileas Fogg no tom mais calmo.
Vá.
Passepartout deixou o quarto e veio encontrar a jovem, à qual participou
as intenções de seu patrão.
Madame, acrescentou, por mim nada posso, nada! Não tenho nenhuma
influência sobre o espírito de meu patrão. A senhora,
talvez…
Que influência teria, respondeu Mrs. Aouda. Mr. Fogg não sente
influência alguma! Compreendeu alguma vez que o meu reconhecimento estava
prestes a transbordar! Leu alguma vez em meu coração!… Meu
amigo, é preciso não o deixar, um só instante. Disse
que ele manifestou a intenção de falar comigo esta noite? Sim,
madame. Trata-se sem dúvida de salvaguardar sua situação
na Inglaterra.
Esperemos, respondeu a jovem, que ficou toda pensativa.
Assim, durante todo o domingo, a casa de Saville Row esteve como se tivesse
estado desabitada, e, pela primeira vez desde que morava nessa casa, Phileas
Fogg não foi ao seu club, quando onze e meia soaram na torre do Parlamento.
E por quê este gentleman teria se apresentado ao Reform Club? Seus
colegas já não o esperavam mais. Pois que, na véspera
à noite, naquela data fatal do sábado dia 21 de dezembro, às
oito horas e quarenta e cinco, Phileas Fogg não tendo aparecido no
salão do Reform Club, sua aposta estava perdida. Nem era necessário
que fosse ao seu banqueiro retirar a soma de vinte mil libras. Seus adversários
tinham em mãos um cheque assinado por ele, e bastaria um simples lançamento
feito no Baring para que as vinte mil libras lhes fossem creditadas.
Mr. Fogg não tinha por quê sair, e não saiu. Ficou no
seu quarto e pôs em ordem seus negócios. Passepartout não
cessou de subir e descer a escada da casa de Saville Row. As horas não
andavam para este pobre rapaz. Escutava à porta do quarto do patrão,
e, fazendo isso, não julgava cometer a menor indiscrição!
Olhava pelo buraco da fechadura, e imaginava ter esse direito! Passepartout
temia a cada instante alguma catástrofe. Às vezes, pensava em
Fix, mas uma reviravolta se tinha produzido em seu espírito. Não
queria mais mal ao agente de polícia. Fix tinha se enganado como todo
mundo a respeito de Phileas Fogg, e, seguindo-o, prendendo-o, não tinha
feito mais que o seu dever, enquanto que ele… Esta idéia o oprimia,
e ele se julgava o último dos miseráveis.
Quando, por fim, Passepartout se achava infeliz demais para ficar sozinho,
batia à porta de Mrs. Aouda, entrava no quarto, sentava-se a um canto
sem dizer palavra, e contemplava a jovem sempre pensativa.
Pelas sete e meia da noite, Mr. Fogg mandou perguntar a Mrs. Aouda se o
podia receber, e alguns instantes depois, a jovem e ele estavam a sós
no quarto.
Phileas Fogg pegou uma cadeira e sentou perto da lareira, de frente para
Mrs. Aouda. Seu rosto não refletia nenhuma emoção. O
Fogg do regresso era exatamente o Fogg da partida. Mesma calma, mesma impassibilidade.
Permaneceu sem falar por cinco minutos. Depois, erguendo os olhos para Mrs.
Aouda: Madame, disse, me perdoa por tê-la trazido para a Inglaterra?
Eu, Mr. Fogg!… respondeu Mrs. Aouda, comprimindo os batimentos de seu coração.
Por favor, me deixe concluir, retomou Mr. Fogg. Quando tive o pensamento
de levá-la para longe daquele país, que se tornara tão
perigoso para si, era rico, e contava colocar uma parte da minha fortuna à
sua disposição. Sua existência teria sido feliz e livre.
Agora, estou arruinado.
Eu sei, senhor Fogg, respondeu a jovem, e eu perguntarei do meu lado: Me
perdoa por tê-lo seguido e quem sabe? ter talvez, o atrasando, contribuído
para a sua ruína? Madame, não podia ficar na Índia, e
sua salvação só estaria assegurada se se afastasse o
suficiente para que aqueles fanáticos não a pudessem recapturar.
Assim, senhor Fogg, retomou Mrs. Aouda, não contente de me livrar
de uma morte horrível, se sentiu obrigado a assegurar minha posição
no estrangeiro? Sim, madame, respondeu Fogg, mas os acontecimentos se viraram
contra mim. Entretanto, do pouco que me resta, peço licença
para dispor a seu favor.
Mas, senhor Fogg, o senhor, que será feito do senhor? perguntou Mrs.
Aouda.
Eu, madame, respondeu friamente o gentleman, eu não preciso de nada.
Mas como, senhor, encara a sorte que o espera? Como convém encarar,
respondeu Mr. Fogg.
Em todo caso, retomou Mrs. Aouda, a miséria não saberia alcançar
um homem como o senhor. Seus amigos…
Não tenho amigos, madame.
Seus parentes…
Já não tenho parentes.
Eu o lamento então, senhor Fogg, porque o isolamento é coisa
triste. Imagine! nem um coração onde lançar suas máguas.
Dizem contudo que a dois a própria miséria é ainda suportável.
Dizem, madame.
Senhor Fogg, disse então Mrs. Aouda, que se levantou e estendeu sua
mão para o gentleman, quer ao mesmo tempo uma parente e uma amiga?
Me quer para sua mulher? Mr. Fogg, a esta palavra, tinha também se
levantado. Tinha um brilho não usual nos olhos, um tremor nos lábios.
Mrs. Aouda o olhava. A sinceridade, a retidão, a firmeza e a doçura
deste belo olhar de uma nobre mulher que tudo ousa para salvar aquele a quem
tudo deve, o espantaram a princípio, depois o comoveram. Fechou os
olhos por um instante, como que para evitar que aquele olhar lhe penetrasse
mais fundo… Quando os reabriu: Eu a amo! disse simplesmente. Sim, na verdade,
por tudo o que há de mais sagrado no mundo, eu a amo, e sou todo seu!
Ah!… exclamou Mrs. Aouda, levando sua mão ao coração.
Passepartout foi chamado. Veio imediatamente. Mr. Fogg tinha ainda em sua
mão a mão de Mrs. Aouda. Passepartout compreendeu, e seu grande
rosto radiou como o sol no zênite das regiões tropicais.
Mr. Fogg lhe perguntou se não seria muito tarde para ir avisar o
reverendo Samuel Wilson, da paróquia de MaryleBone.
Passepartout sorriu o seu melhor sorrir.
Nunca muito tarde, disse.
Eram só oito e cinco.
Será amanhã, segunda feira! disse.
Amanhã, segunda feira? perguntou Mr. Fogg olhando a jovem.
Amanhã, segunda feira! respondeu Mrs. Aouda. Passepartout saiu, correndo.
CAPÍTULO XXXVI
EM QUE PHILEAS FOGG VOLTA A SUBIR NO MERCADO
É tempo de dizer aqui que reviravolta de opinião tinha acontecido
no Reino Unido, quando se soube da prisão do verdadeiro ladrão
do Banco um certo James Strand prisão que tinha acontecido em 17 de
dezembro, em Edimburg.
Três dias antes, Phileas Fogg era um criminoso que a polícia
perseguia de todo jeito, e agora era o mais honesto gentleman, que realizava
matematicamente sua excêntrica viagem ao redor do mundo.
Que efeito, que repercussão nos jornais! Todos os apostadores a favor
ou contra, que tinham já esquecido este caso, resuscitaram como por
magia. Todas as transações voltavam a ter valor. Todos os comprometimentos
reviviam, e, é preciso dizer, as apostas recomeçavam com uma
nova energia. O nome de Phileas Fogg foi novamente preferencial no mercado.
Os cinco colegas do gentleman, no Reform Club, passaram estes três
dias em uma certa inquietação. Phileas Fogg, que eles tinham
esquecido, reaparecia a seus olhos! Onde estaria neste momento? Em 17 de dezembro
dia em que James Strand foi preso havia setenta e sete dias que Phileas Fogg
tinha partido, e nenhuma notícia dele! Teria sucumbido? Teria renunciado
à luta, ou continuaria seu caminho seguindo o roteiro combinado? E
sábado 21 de dezembro, às oito e quarenta e cinco da noite,
iria aparecer, como o deus da exatidão, sobre a soleira do salão
do Reform Club? Temos que renunciar a pintar a ansiedade em que, durante três
dias, viveu todo este mundo da sociedade inglesa. Expediram-se despachos para
a América, para a Ásia, para se ter notícias de Phileas
Fogg! Mandaram vigiar de manhã à noite a casa de Saville Row…
Nada. A própria polícia não sabia mais o que tinha acontecido
ao detetive Fix, que se tinha tão atabalhoadamente lançado sobre
uma falsa pista. O que não impediu que se fizessem novas apostas em
maior escala. Phileas Fogg, como um cavalo de corrida, chegava à última
rodada. Não o cotavam mais a cem, mas a vinte, a dez, a cinco, e o
velho paralítico, lord Albermale, esse, ao par.
Assim, sábado à noite, havia multidão em Pall Mall
e nas ruas visinhas. Era como que uma imensa aglomeração de
corretores, estabelecidos permanentemente nas proximidades do Reform Club.
A circulação estava impedida. Discutiam, disputavam, apregoavam
os Phileas Fogg como títulos dos fundos ingleses. Os policemen tinham
muita dificuldade em conter os populares, e à medida em que se aproximava
a hora em que Phileas Fogg deveria chegar, a emoção tomava proporções
inacreditáveis.
Nesta noite, os cinco colegas do gentleman estavam reunidos desde as nove
da manhã no grande salão do Reform Club. Os dois banqueiros,
John Sullivan e Samuel Fallentin, o engenheiro Andrew Stuart, Gauthier Ralph,
administrador do Banco da Inglaterra, o cervejeiro Thomas Flanagan, todos
esperavam com ansiedade.
No momento em que o relógio do grande salão marcou oito e
vinte e cinco, Andrew Stuart, levantando-se, disse: Senhores, em vinte minutos
o prazo combinado entre Mr. Phileas Fogg e nós terá expirado.
A que horas chegou o último trem de Liverpool? perguntou Thomas Flanagan.
Às sete e vinte e três, respondeu Gauthier Ralph, e o trem
seguinte só chega à meia noite e dez.
Ora, senhores, retomou Andrew Stuart, se Phileas Fogg tivesse chegado pelo
trem das sete e vinte e três, já estaria aqui. Podemos pois considerar
a aposta como ganha.
Esperemos, não nos pronunciemos, respondeu Samuel Fallentin. Sabe
que o nosso colega é um excêntrico de primeira. Sua exatidão
é bem conhecida. Não chega jamais nem muito tarde nem muito
cedo, e se aparecesse aqui no último minuto, eu não ficaria
nada surpreso.
E eu, disse Andrew Stuart, que estava, como sempre, muito nervoso, eu veria
e não acreditaria.
Com efeito, retomou Thomas Flanagan, o projeto de Phileas Fogg era insensato.
Qualquer que fosse sua exatidão, não poderia impedir os atrasos
inevitáveis de se produzirem, e um atraso de dois ou três dias
somente bastariam para comprometer sua viagem.
Devem notar, além disso, acrescentou John Sullivan, que não
recebemos nenhuma notícia de nosso colega, e entretanto os fios telegráficos
não faltavam no seu percurso.
Perdeu, senhores, retomou Andrew Stuart, cem vezes perdeu! Sabem, além
disso, que o China o único paquete de Nova York que ele poderia ter
pego para chegar a Liverpool em tempo hábil chegou ontem. Ora, eis
a lista dos passageiros, publicada pela Shipping Gazette, e o nome Phileas
Fogg não figura nela. Admitindo as possibilidades as mais favoráveis,
nosso colega está apenas na América. Avalio em vinte dias, pelo
menos, o atraso que sofrerá em relação à data
combinada, e o velho lord Albermale sofrerá, ele também, por
suas cinco mil libras! É evidente, exclamou Gauthier Ralph, e amanhã
só teremos que apresentar no Baring Irmãos o cheque de Mr. Fogg.
Neste momento o relógio do salão soou oito e quarenta.
Ainda cinco minutos, disse Andrew Stuart.
Os cinco colegas se entreolharam. Podemos supor que os batimentos de seus
corações tivessem sofrido uma pequena aceleração,
porque afinal, mesmo para excelentes jogadores, a partida era forte! Mas nada
queriam deixar transparecer, porque, por proposta de Samuel Fallentin, sentaram-se
a uma mesa de jogo.
Não daria minha parte de quatro mil libras na aposta, disse Andrew
Stuart, sentando-se, nem mesmo se me oferecessem três mil novecentos
e noventa e nove! O ponteiro marcava, neste momento, oito e quarenta e dois.
Os jogadores tinham pego as cartas, mas, a cada instante, seus olhares se
voltavam para o relógio. Podemos afirmar que, qualquer que fosse sua
segurança, jamais minutos lhes tinham parecido tão longos! Oito
e quarenta e três, disse Thomas Flanagan, cortando as cartas que lhe
apresentava Gauthier Ralph.
Depois um minuto de silêncio se fez. O vasto salão do club
estava tranqüilo. Mas, lá fora, ouviu-se a barulheira da multidão,
em que dominavam às vezes gritos agudos. O pêndulo do relógio
marcava os segundos com uma regularidade matemática. Cada jogador poderia
contar as divisões sexagesimais que feriam seus ouvidos.
Oito e quarenta e quatro! disse John Sullivan numa voz em que se percebia
uma emoção involuntária.
Não mais que um minuto, e a aposta estaria ganha. Andrew Stuart e
seus colegas não jogavam mais. Tinham abandonado as cartas! Contavam
os segundos! Ao quadragésimo segundo, nada. Ao quinquagésimo,
nada ainda! Ao quinquagésimo quinto segundo, ouviram uma espécie
de trovoada lá fora, aplausos, hurrahs, e até imprecações,
que se propagaram em maremoto contínuo.
Os jogadores se levantaram.
Ao quinquagésimo sétimo segundo, a porta do salão se
abriu, e o pêndulo não tinha marcado o sexagésimo segundo,
quando Phileas Fogg apareceu, seguido por uma multidão em delírio
que tinha forçado a entrada do club, e com a sua voz calma: Aqui estou,
senhores, disse.
CAPÍTULO XXXVII
EM QUE FICA PROVADO QUE PHILEAS FOGG NADA GANHOU FAZENDO A VOLTA AO MUNDO,
A NÃO SER A FELICIDADE
Sim! Phileas Fogg em pessoa.
Devemos nos lembrar de que às oito horas da noite vinte e cinco horas
mais ou menos depois da chegada dos viajantes a Londres Passepartout tinha
sido encarregado por seu patrão de avisar o reverendo Samuel Wilson
a respeito de certo casamento que deveria se realizar no dia seguinte mesmo.
Passepartont tinha então partido, encantado. Ele se dirigiu a passos
rápidos à residência do reverendo Samuel Wilson, que ainda
não tinha voltado. Naturalmente, Passepartout esperou, mas esperou
uns vinte bons minutos pelo menos.
Resumindo, eram oito horas e trinta e cinco quando saiu da casa do reverendo.
Mas em que estado! Os cabelos em desordem, sem chapéu, correndo, correndo
como nunca se viu ninguém correr, derrubando os que passavam, se precipitando
como um vendaval sobre as calçadas! Em três minutos, estava de
volta à casa de Saville Row, e tombou, sem ar, no quarto de Mr. Fogg.
Não podia falar.
Que aconteceu? perguntou Mr. Fogg.
Meu patrão… balbuciou Passepartout, casamento… impossível.
Impossível? Impossível… para amanhã.
Por quê? Porque amanhã… é domingo! Segunda, respondeu
Mr. Fogg.
Não… hoje… sábado.
Sábado? Impossível! É, é, é, é!
exclamou Passepartout. Enganou-se em um dia! Chegamos vinte e quatro horas
antes… mas não restam mais que dez minutos!…
Passepartout tinha agarrado seu patrão pelo colete, e o arrastava
com uma força irresistível.
Phileas Fogg, assim levado, sem ter tempo para refletir, deixou seu quarto,
deixou sua casa, saltou para um cab, prometeu cem libras ao cocheiro, e após
ter esmagado dois cães e colidido com cinco veículos, chegou
ao Reform Club.
O relógio marcava oito horas quarenta e cinco, quando apareceu no
grande salão.
Phileas Fogg tinha completado a volta ao mundo em oitenta dias!…
Phileas Fogg tinha ganho sua aposta de vinte mil libras! E agora, como é
que um homem tão exato, tão meticuloso, tinha podido cometer
este erro de dia? Como se acreditava no sábado à noite, 21 de
dezembro, ao desembarcar em Londres, quando estava na sexta, 20 de dezembro,
setenta e nove dias somente após sua partida? Eis a razão deste
erro. Bem simples.
Phileas Fogg tinha, sem dúvida ganho um dia sobre seu itinerário
e isto unicamente porque tinha feito a volta ao mundo indo para leste, e teria,
pelo contrário, perdido este dia indo em sentido inverso, ou seja para
oeste.
Com efeito, andando para o leste, Phileas Fogg ia à frente do sol,
e, por conseguinte os dias diminuíam para ele tantas vezes quatro minutos
quanto os graus que percorria naquela direção. Ora, temos trezentos
e sessenta graus na circunferência terrestre, e estes trezentos e sessenta
graus, multiplicados por quatro minutos, dão precisamente vinte e quatro
horas isto é, o dia inconscientemento ganho. Em outros termos, enquanto
Phileas Fogg, andando para leste, viu o sol passar oitenta vezes pelo meridiano,
seus colegas que tinham ficado em Londres só o viram passar setenta
e nove vezes. Eis porque, naquele dia, que era sábado e não
domingo, como supunha Mr. Fogg, eles o esperaram no salão do Reform
Club.
E é o que o famoso relógio de Passeportout que tinha sempre
conservado a hora de Londres teria constatado se, ao mesmo tempo que os minutos
e as horas, tivesse marcado os dias! Phileas Fogg tinha portanto ganho as
vinte mil libras. Mas como tinha gasto pelo caminho cerca de dezenove mil,
o resultado pecuniário era medíocre. Todavia, e isso já
foi dito, o excêntrico gentleman só tinha, nesta aposta, procurado
a luta, não a fortuna. E mesmo, as mil libras restantes, as dividiu
entre o honesto Passepartout e o infeliz Fix, a quem era incapaz de querer
mal. Apenas, e por respeito às regras, descontou do seu servidor o
preço das mii e novecentas horas do gás consumido por sua culpa.
Naquela mesma noite, Mr. Fogg, tão impassível, tão
fleumático, dizia a Mrs. Aouda: O casamento ainda lhe convém,
madame? Mr. Fogg, respondeu Mrs. Aouda, é a mim que cabe fazer essa
pergunta. Estava arruinado, agora está rico…
Me desculpe, madame, esta fortuna lhe pertence. Se não tivesse tido
a idéia do casamento, meu criado não teria ido à casa
do reverendo Samuel Wilson, eu não teria sido avisado do meu erro,
e…
Querido senhor Fogg… disse a jovem.
Querida Aouda… respondeu Phileas Fogg.
Como é fácil supor o casamento se realizou quarenta e oito
horas mais tarde, e Passepartout, soberbo, resplandecente, deslumbrante, figurou
como padrinho da jovem. Não a tinha salvo, não lhe deviam aquela
honra? Somente, no dia seguinte, ao alvorecer, Passepartout bateu com insistência
na porta de seu patrão.
A porta se abriu, e o impassível gentleman apareceu.
O que é que há, Passepartout? Isso, senhor! É que acabo
de perceber agora há pouco…
O quê? Que poderíamos ter feito a viagem a volta ao mundo em
setenta e oito dias apenas.
Sem dúvida, respondeu Mr. Fogg, não atravessando a Índia.
Mas se eu não tivesse atravessado a Índia, não teria
salvo Mrs. Aouda, ela não seria minha mulher, e…
E Mr. Fogg fechou tranqüilamente a porta.
Assim pois Phileas Fogg tinha ganho sua aposta. Tinha feito em oitenta dias
a viagem ao redor do mundo! Tinha empregado para fazê-la todos os meios
de transporte, paquetes, railways, carruagens, iates, navios mercantes, trenós,
elefante. O excêntrico gentleman tinha desenvolvido nesta empresa suas
maravilhosas qualidades de sangue frio e de exatidão. Mas afinal? O
que tinha ganho neste deslocamento? O que alcançara com esta viagem?
Nada, diriam? Nada, vá lá, a não ser uma sedutora mulher,
que por mais inverosímil que possa parecer o tornou o mais feliz dos
homens! Na verdade, não faríamos, por menos que isso, a Volta
ao Mundo?
FIM
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