Da Terra à Lua

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Júlio Verne

Parte 1

Capítulo I – O Clube do Canhão

Durante a Guerra de Secessão dos Estados Unidos, um novo clube muito
influente fundou-se na Cidade de Baltimore, no Estado de Maryland. Sabe-se
com que energia o instinto militar se desenvolveu entre esse povo de armadores,
de comerciantes e de industriais. Simples negociantes deixaram os seus balcões
para se improvisarem capitães, coron éis, generais, sem terem
passado pelas aulas de academias militares; em breve igualam na ?arte de guerra?
os seus colegas do Velho Continente, e como eles conseguiram brilhantes vitórias
à força de prodigalizarem balas, milh ões e homens.

Contudo, no que os americanos ultrapassaram singularmente os europeus foi
na ciência da balística. Não que as suas armas atingissem
mais alto grau de perfeição, mas porque ofereceram dimensões
inusitadas, tendo, por conseq üência, alcances desconhecidos até
então. No que respeita a tiros rascantes ou de rajada, os ingleses,
os franceses e os prussianos nada mais tinham a aprender; mas os seus canhões,
os seus obuses, os seus morteiros não passavam de pistolas de bolso
comparados com os formidá- veis engenhos bélicos da artilharia
americana.

Isto não deve espantar ninguém: os ianques, esses primeiros
mecânicos do Mundo, são engenheiros, como os italianos são
músicos e os alemães metafísicos – de nascen ça.
Nada mais natural que vê-los levar para a ciência da balística
a sua audaciosa engenhosidade. Daí esses canhões gigantescos,
muito menos úteis do que máquinas de costura, mas tão
espantosos como elas e ainda mais admirados.

Portanto, durante essa terrível luta entre nortistas e sulistas,
os artilheiros estiveram em primeiro lugar; os jornais dos Estados Unidos
celebravam as suas invenções com entusiasmo, e não havia
comerciante nem ingênuo basbaque que não quebrasse a cabeça,
de dia e de noite, e calculando trajetórias absurdas.

Ora, quando um americano tem uma idéia, procura logo outro americano
que a partilhe com ele.

Se chegam a ser três, elegem um presidente e um secretá- rio.
Se forem quatro, nomeiam um arquivista e a sociedade funciona. No caso de
serem cinco, convocam uma assembl éia geral e o clube fica constituído.
Foi assim que sucedeu em Baltimore. 0 primeiro a inventar um novo canh ão
associou-se ao primeiro que o fundiu e ao primeiro que o forjou. Foi esse
o início do Clube do Canhão. Um mês após a sua
formação, contava mil oitocentos e trinta e três membros
efetivos e trinta mil quinhentos e setenta e cinco sócios correspondentes.

Uma condição sine qua non era imposta a todos aqueles que
quisessem entrar na associação: ter imaginado ou pelo menos
aperfeiçoado uma arma, qualquer arma de fogo.

No entanto, para falar a verdade os inventores de revólver de quinze
tiros, de carabinas de repetição ou de sabres e pistolas não
gozavam de grande consideração aos artilheiros é que
era reconhecida primazia em todas as circunst âncias.

Fundado o Clube do Canhão, calcula-se facilmente o que produziu neste
gênero o gênio inventivo dos americanos.

Os engenhos de guerra tomaram proporções colossais, e os projéteis
foram, para além dos limites permitidos, cortar em dois os transeuntes
inofensivos. Todas essas inven- ções deixaram muito para trás
os tímidos instrumentos da artilharia européia.

Era uma reunião de ?anjos exterminadores?, que no entanto continuavam
a ser considerados as melhores pessoas do mundo.

Deve acrescentar-se que esses ianques, dotados de uma coragem sem limites,
não se limitaram às fórmulas e se dedicaram de corpo
e alma à arte da guerra. Havia entre eles oficiais de todas as patentes,
de tenentes a generais; militares de todas as idades: os que iniciavam a sua
carreira e os que nela envelheciam. Muitos deles ficaram para sempre no campo
de batalha e os seus nomes passaram a figurar no livro de honra do Clube do
Canhão. Daqueles que voltaram, a maior parte ostentava honrosos sinais
da sua indiscutível intrepidez: muletas, pernas de pau, braços
artificiais, mãos artificiais, maxilares de borracha, crânios
de prata, narizes de platina, nada faltava à coleção,
e Pitcaim chegou mesmo a calcular igualmente que no Clube do Canh ão
não chegava a haver um braço para quatro pessoas, e apenas duas
pernas para seis.

Todavia, esses valentes artilheiros não se importavam com tais ninharias,
e sentiam-se com todo o, direito de se ufanarem quando o boletim de uma batalha
mostrava um nú- mero de vítimas que decuplicava a quantidade
dos projéteis gastos.

Porém, num dia, num triste e lamentável dia, a paz foi assinada
pêlos sobreviventes da guerra, as detonações cessaram
pouco a pouco, os morteiros calaram-se, as peças de artilharia foram
amordaçadas por muito tempo e os canh ões, de cabeça
baixa, voltaram para os arsenais, as bala empilharam-se nos paióis,
as recordações sangrentas apagaram- se, os algodoeiros cresceram
magnificamente nos campos largamente adubados, as roupas de luto acaba ram
por desaparecer com as dores e as saudades, e o Clube do Canhão estagnou
em profunda inatividade.

– É desolador – disse uma noite o bravo Tom Hunter, enquanto as pernas
de pau se carbonizavam no fogo da lareira da sala de fumo. – Nada a fazer!
Nada a esperar! Que existência fastidiosa! Aonde vai o tempo em que
o canhão nos acordava todas as manhãs com as suas alegres detona
ções? – Esse tempo já não existe – respondeu o
fogoso Bilsby, procurando estirar os braços que lhe faltavam. – Então
sim, era um prazer! Inventavam uma peça de artilharia, e logo que a
fundiam corriam a experimentá-la nas fileiras do inimigo; depois, voltavam
ao acampamento com um encorajamento de Sherman ou um aperto de mão
de Mac- Clellan! Mas hoje, os generais voltaram para as suas ocupa ções
civis, e, em vez de projéteis, ?expedem inofensivos fardos de algodão!
Por Santa Bárbara. 0 futuro da artilharia está perdido na América.

– Sim, Bilsby – exclamou o Coronel Blomsberry – que cruéis decepções!
Um dia deixa a gente os hábitos tranqüilos, exercita-se no manejo
das armas, troca-se Baltimore pelos campos de batalha, porta-se como um herói,
e, dois anos, três anos mais tarde, é preciso desprezar o fruto
de tantas fadigas, adormecer numa deplorável inatividade e enfiar as
mãos nos bolsos.

Dissesse o que dissesse, o valente coronel seria impedido de dar um tal
sinal da sua inatividade, e, no entanto, não eram os bolsos que lhe
faltavam.

– E nenhuma guerra em perspectiva – disse então o famoso J. T. Maston,
coçando com a sua mão de ferro o seu crânio de guta-percha.
– Nem uma nuvem no horizonte, e isso quando há tanto a fazer na ciência
da artilharia! Eu terminei esta manhã o desenho, com plano, perfil
e eleva- ção, de um morteiro destinado a alterar as leis da
guerra! – Verdade? – replicou Tom Hunter, pensando involuntariamente na última
experiência do honrado J. T.

Maston.

– É verdade – respondeu Maston. – Mas de que servirão tantos
estudos levados a bom termo, tantas dificuldades vencidas? Não será
trabalhar à toa? Os povos do Novo Mundo parecem estar decididos a viver
em paz, e o nosso belicoso Tribune chega ao ponto de anunciar catástrofes
iminentes devido ao escandaloso crescimento da popula- ção.

– No entanto, Maston – retorquiu o Coronel Blomsberry -, continuam a bater-se
na Europa para manter o princípio das nacionalidades! – E então?
– E então! Talvez pudéssemos tentar qualquer coisa lá,
se aceitassem os nossos serviços…

– Tem pensado nisso? – escandalizou-se Bilsby. – Fazer bal ística
em proveito dos estrangeiros! – Vale mais isso do que não fazer nada
– respondeu o coronel.

– Sem dúvida – disse J. T. Maston -, seria melhor, mas não
devemos pensar sequer nesse expediente.

– E por quê? – perguntou o coronel.

– Porque no Velho Mundo têm idéias que contrariam todos os
nossos hábitos americanos. Essa gente acha que não se pode ser
general-chefe sem ter servido como tenente, o que equivaleria a dizer que
não se pode ser bom artilheiro a não ser que se tenha fundido
o canhão! Ora, isso é simplesmente…

– Absurdo! – replicou Tom Hunter, rasgando os braços do seu cadeirão
com o seu facão. – E, visto que as coisas estão neste pé,
só nos resta plantar tabaco ou destilar óleo de baleia.

– Como! – exclamou J. T. Maston, com voz retumbante. – Não passaremos
os últimos anos da nossa existência aperfei çoando armas
de fogo? Não se apresentará nova ocasi ão de experimentar
o alcance dos nossos projéteis? A atmosfera não se iluminará
mais com o clarão dos nossos canhões? Não surgirá
uma dificuldade internacional que nos permita declarar guerra a qualquer potência
transatlântica? Os franceses não afundarão um só
dos nossos barcos, e os ingleses não enforcarão, desprezando
os direitos humanos, três ou quatro dos nossos compatriotas? – Não,
Maston – respondeu o Coronel Blomsberry -; não teremos essa felicidade!
Não. Nenhum desses incidentes se produzirá e, mesmo que se produzisse,
não tiraríamos proveito algum dele. – A suscetibilidade americana
vai desaparecendo de dia para dia e nós vamos nos tornando efeminados.

– Sim, nós humilhamo-nos! – replicou Bilsby.

– E humilham-nos! – retrucou Tom Hunter.

– Tudo isso é verdade – replicou J. T. Maston com veemência.

– Há no ar mil razões para nos batermos e no entanto não
nos batemos. Economizam-se braços e pernas, e isso em proveito de pessoas
que não sabem que fazer deles! E sem precisarmos de ir procurar tão
longe um motivo de guerra… a América do Norte não pertenceu
outrora aos ingleses? – Sem dúvida – respondeu Tom Hunter, queimando
raivosamente a extremidade da sua muleta.

– Pois bem! – replicou J. T. Maston. – Por que é que a Inglaterra
não há-de pertencer por sua vez aos americanos? – isso seria
justo – retrucou o Coronel Blomsberry.- Entretanto – continuou J. T. Maston,
para concluir -, se não me dão ocasião para experimentar
o meu novo morteiro num campo de batalha, demito-me de membro do Clube do
Canhão, e corro a enterrar-me nas savanas do ArKansas! – E nós
segui-lo-emos – responderam em uníssono os interlocutores do audacioso
J. T. Maston.

Estavam as coisas nesse pé, e os espíritos exaltando-se cada
vez mais, o que ameaçava o clube de próxima dissolu ção,
quando um inesperado acontecimento impediu tão lamentável catástrofe.

Logo no dia seguinte, cada membro do clube recebia uma circular escrita
nestes termos: ?Baltimore, 3 de outubro.

0 Presidente do Clube do Canhão tem a honra de comunicar aos caros
colegas de que na sessão de 5 do corrente lhes fará uma exposição
da natureza a interessá-los vivamente: Conseqüentemente, pede-lhes
que, pondo de parte qualquer outro negocio, não deixem de comparecer
à reunião para que são convidados pela presente.

Muito cordialmente.

Impey Barbicane Presidente do Clube do Canhão.?

Capítulo II – Comunicação do Presidente
Barbicane

No dia 5 de outubro, às oito horas da noite, encontrava-se reunida
uma compacta multidão nos salões do Clube do Canhão.

Entretanto, o grande salão oferecia aos olhares um curioso espetáculo.
Estava maravilhosamente apropriado para o que se destinava. Altas colunas
compostas por canhões sobrepostos e apoiados em enormes morteiros sustinham
os finos lavores da abóbada. Panóplias de bacamartes, de arcabuzes,
de carabinas, de todas as espécies de armas de fogo antigas e modernas
se entrelaçavam pitorescamente nas paredes. A luz do gás emergia
de centenas de revólveres agrupados em forma de lustres, enquanto girândolas
de pistolas e candelabros feitos de espingardas reunidas em feixes completavam
a esplêndida iluminação. Os modelos de canhões,
as amostras de bronze, os alvos criva dos de tiros, as chapas quebradas pelo
choque das balas do Clube do Canhão, coleções completas
de soquetes e lanadas, os rosários de bombas, os colares de projéteis,
as grinaldas de obuses – em uma palavra, todos os utensílios do artilheiro
surpreendiam pela sua espantosa e admirável disposição
e faziam pensar que o seu verdadeiro fim era mais decorativo que mortífero.

No lugar de honra, resguardado por uma esplêndida vitrina, um pedaço
de culatra, quebrado e torcido, sob os efeitos da Pólvora, destroço
precioso do canhão de J. T. Maston.

No fundo da sala, o presidente, assistido por quatro secret ários,
ocupava uma espaçosa plataforma. 0 seu lugar, erguido sobre um reparo
esculpido, assemelhava-se, no seu todo, às robustas formas de um morteiro
de trinta e duas polegadas; estava assestado sob um ângulo de noventa
graus e suspensos em munhões, de tal modo que o presidente podia imprimir-lhe,
como às cadeiras de balanço, um movimento bastante agradável
nas ocasiões de grande calor. Sobre a secretária, grande placa
metálica, apoiada em seis obuses, via-se um tinteiro de requintado
gosto, admiravelmente cinzelado, e uma campainha de detona- ção,
que soava, nas ocasiões em que era tocada, como um revólver.
Durante as mais veementes discussões, essa campainha de novo gênero
mal chegava no entanto para cobrir a voz daquela legião de artilheiros
entusiasmados.

Impey Barbicane era um homem de quarenta anos, calmo, frio, austero, com
um espírito eminentemente sério e concentrado; exato como um
cronômetro, de um temperamento a toda prova e de um caráter inquebrantável;
pouco cavalheiresco, aventureiro, mas levando o seu espírito prático
até para os empreendimentos mais temerários; era por excelência
o homem da Nova Inglaterra, o nortista colonizador, o descendente desses Cabeças-redondas
tão funestos aos Stuarts, e implacável inimigo dos gentlemen
do Sul, esses antigos cowboys da mãe-pátria. Era de estatura
mediana, tendo, como rara exceção no Clube do Canhão,
todos os seus membros intactos. Em resumo: um ianque feito de uma única
peça.

Quando soaram as oito horas no relógio da grande sala, Barbicane,
como se fosse movido por uma mola, ergueuse subitamente; fez-se um silêncio
geral e o orador, num tom um pouco enfático, tomou a palavra nestes
termos: – Bravos colegas, de há muito tempo que uma paz infecunda veio
mergulhar os membros do Clube do Canhão numa lamentável inatividade.
Após um período de alguns anos, tão cheio de incidentes,
foi necessário abandonar os nossos trabalhos e deter-nos na senda do
progresso. Não receio proclamar em voz alta que uma guerra que voltasse
a colocar as armas nas nossas mãos seria bem-vinda…

– Sim, a guerra! – exclamou o impetuoso J. T. Maston.

Ouçam! Ouçam! – gritaram de todos os lados.

Mas a guerra – continuou Barbicane -, a guerra é impossível
nas circunstâncias atuais, e, apesar do que possa esperar o meu honrado
colega, passar-se-ão muitos anos antes que os nossos canhões
voltem a troar nos campos de batalha.

Devemos, portanto, tomar uma decisão e procurar em outro campo de
ação alimento para a atividade que nos devora! A assembléia
sentiu que o seu presidente ia abordar o Ponto delicado. Redobrou, portanto,
de atenção.

– Desde há alguns meses, meus bravos colegas – continuou Barbicane
– que pergunto a mim mesmo se, embora continuando a manter-nos dentro da nossa
especialidade, não poderíamos empreender alguma grande experiência
digna do século XIX, se os progressos da balística não
nos permitiriam levá-la a bom termo. Procurei, trabalhei, calculei,
e dos meus estudos resultou a convicção de que ?poderemos ter
êxito numa empresa que pareceria impraticável para qualquer outro
país. Este projeto, longamente elaborado, vai ser o objeto da minha
comunicação; é digno de vós, digno do passado
do Clube do Canhão, e não poderá deixar de fazer sensação
no Mundo.

– Muita sensação? – perguntou um artilheiro apaixonado.

– Muita sensação no verdadeiro sentido do termo! – respondeu
Barbicane.

– Não interrompam! – repetiram muitas vozes.

– Peço-lhes, portanto, caros colegas, para me darem toda a vossa
atenção.

Um frêmito correu pela assistência. Barbicane, depois de ter
num gesto rápido assegurado a posição de seu chapéu
na cabeça, continuou o seu discurso com voz calma.

– Não há um só de vós, caros colegas, que não
tenha visto a Lua, ou pelo menos não tenha ouvido falar nela. Não
se admirem de eu vir aqui falar do astro da noite. A nós está
talvez reservado sermos os colombos desse mundo desconhecido.

Compreendam-me, apoiem todo o vosso poder, e eu conduzi-los-ei à
sua conquista, e o vosso nome juntar-se-á ao dos trinta e seis Estados
que formam este grande país! – Viva a Lua! – exclamou o Clube do Canhão
numa só voz.

– A Lua tem sido muito estudada – prosseguiu Barbicane _; a sua massa, a
sua densidade, o seu peso, o seu volume, a sua constituição,
os seus movimentos, a sua distância, o seu papel no sistema solar estão
perfeitamente determinados; fizeram-se mapas selenográficos com uma
perfeição que iguala, se é que não ultrapassa,
a dos mapas terrestres; a fotografia deu do nosso satélite provas de
uma incomparável beleza. Resumindo, sabe-se da Lua tudo que as ciências
matemáticas, a astronomia, a geologia e a ótica podem ensinar
a seu respeito; mas até agora nunca foi estabelecida uma ligação
direta com ela.

Esta última frase excitou tal interesse e surpresa que chegou a produzir
grande agitação.

– Permitam-me – continuou ele – lembrar-lhes como certos espíritos
ardentes, embarcados em viagens imaginárias, pretenderam ter penetrado
os segredos do nosso satélite.

No século XVII, um certo David Fabricius gabou-se de ter visto com
os seus próprios olhos os habitantes da Lua. Em 1649, um francês,
Jean Baudoin, publicou a Viagem Feita ao Mundo da Lua pelo Aventureiro Espanhol
Dominguez Gonzalez. Na mesma época, Cyrano de Bergerac deu à
luz da publicidade aquela célebre expedição que tanto
êxito teve na França. Mais tarde, outro francês (porque
esses indiví- duos ocupam-se muito da Lua), chamado Fontenelle, escreveu
a Pluralidade dos Mundos, uma obra-prima do seu tempo; mas o avanço
da ciência esmaga as obras-primas1 Por volta de 1835, um folheto traduzido
do New York American contou que Sir John Herschell, enviado ao cabo da Boa
Esperança, para ali fazer estudos astronômicos, tinha conseguido,
por meio de um- telescópio aperfeiçoado por uma iluminação
interna, trazer a Lua para uma dist ância de oitenta jardas. Teria então
visto distintamente as cavernas em que viviam os hipopótamos, as verdes
montanhas orladas de rendas de ouro, carneiros com chifres de marfim, cabritos
brancos, habitantes com asas membranosas como as dos morcegos. Esta brochura,
obra de um americano chamado Locke, conheceu grande popularidade.

Mas em breve se reconheceu tratar-se de uma mistificação científica,
e os franceses foram os primeiros a rir-se dela.

– Rir de um americano! – exclamou J. T. Maston. – Mas isso é um caso
de guerra!…

– Tranqüilize-se, meu digno amigo. Os franceses, antes de rirem, tinham
sido perfeitamente iludidos pelo nosso compatriota.

Para terminar este rápido relato histórico, acrescentarei
que um certo Hans Pfael, de Roterdã, subindo num balão cheio
de um gás obtido do azoto, e trinta e sete vezes mais leve do que o
hidrogênio, atingiu a Lua após dezenove dias de travessia. Essa
viagem, como as tentativas precedentes, era simplesmente imaginária,
mas tratase de obra de um escritor popular na América, de um gênio
singular e contemplativo. Refiro-me a Edgar Poe.

– Viva Edgar Poe! – gritou a assembléia, eletrizada pelas palavras
do presidente.

– Acabei – continuou Barbicane – com essas tentativas a.

que chamarei puramente literárias, e perfeitamente insuficientes
para estabelecer relações com o astro da noite.

Assim, há alguns anos um geómetra alemão propôs
enviar uma comissão de sábios para as estepes da Sibéria.
Ali, em vastas planícies, deviam fazer desenhar imensas figuras geométricas,
por meio de refletores luminosos, entre outras a do quadrado da hipotenusa.
?Qualquer ser inteligente ?, dizia este geómetra, ?deve compreender
o destino cient ífico dessa figura. Portanto, os selenitas, se é
que existem, responderão com uma figura semelhante, e, uma ?vez estabelecida
a comunicação, será fácil criar um alfabeto que
permitirá trocar mensagens com os habitantes da Lua.? Assim falava
o geómetra alemão, mas o seu projeto não foi posto em
execução e até agora nenhuma ligação direta
foi estabelecida entre a Terra e o seu satélite. Mas está reservado
ao gênio Prático dos americanos a concretização
da relação com o Mundo sideral. 0 meio de conseguir é
sim?, fácil, certo, infalível, e vai ser o objeto da minha proposta.

Um barulho ensurdecedor, uma tempestade de aclamações acolheu
estas palavras.

Quando a agitação se acalmou, Barbicane recomeçou em
tom mais grave o seu interrompido discurso: – Sabeis bem – disse – que progressos
a balística tem feito desde há alguns anos e a que grau de perfeição
teriam chegado as armas de fogo se a guerra tivesse continuado.

Também não ignorais que, de modo geral, a força de
resist ência ? dos canhões e o poder expansivo da pólvora
são ilimitados. Pois bem, partindo deste princípio, perguntei
a mim mesmo se, por meio de um instrumento adequado, em condições
de resistência determinadas, não seria poss ível enviar
uma bala para a Lua.

A estas palavras, uma exclamação de estupefação
saiu de mil peitos ofegantes; depois fez-se um momento de silêncio,
semelhante a essa calma profunda que precede o ruído do trovão.
E, realmente, a tempestade rebentou mas uma tempestade de aplausos, de gritos,
de clamores, que fez tremer a sala. 0 presidente queria falar, mas não
podia. Só passados dez minutos é que ele conseguiu fazer-se
ouvir.

– Deixem-me concluir – continuou com voz fria. – Examinei a questão
sob todos os aspectos, abordei resolutamente o problema, e dos meus cálculos,
indiscutíveis, resulta que qualquer projétil dotado de uma velocidade
inicial de doze mil jardas por segundo, e dirigido para a Lua, chegará
necessariamente até lá. Tenho, portanto, a honra de vos propor,
meus valentes colegas, tentarem esta pequena experi ência! É
impossível descrever o efeito produzido pelas últimas palavras
do honrado presidente: Era uma desordem, um sussurro de vozes indescritível.
As bocas gritavam, à mãos batiam, os pés faziam estremecer
o pavimento. Todas as armas daquele museu de artilharia, disparadas ao mesmo
tempo, não teriam agitado mais violentamente as ondas sonoras. Isso
não pode surpreender.

Há artilheiros quase tão ruidosos quanto os seus canh ões.

Barbicane permanecia calmo no meio desses clamores entusiastas; talvez quisesse
dirigir ainda algumas palavras aos seus colegas, pois os seus gestos reclamavam
silêncio, e a sua campainha. fulminante detonou tão inútil
quanto violentamente. Nem sequer o ouviam. Pouco depois foi arrancado da sua
cadeira e levado em triunfo.

Passou das mãos dos seus fiéis camaradas para os braços
de unia multidão não menos exaltada.

0 passeio triunfal do presidente prolongou-se pela noite.

Foi uma verdadeira marcha iluminada por archotes.

Precisamente, como, se tivesse compreendido que se tratava dela, a Lua brilhava
nesse momento com uma serena magnificência, eclipsando com a sua intensa
radiação as luzes terrestres. Os ianques voltavam os olhos para
o seu disco cintilante; uns saudavam-na com a mão, outros com nomes
mais meigos; enquanto uns a mediam com o olhar, havia outros que a ameaçavam.

Somente por volta das duas horas, a emoção acalmou-se.

0 Presidente Barbicane conseguiu voltar para a sua casa, moído, cansado.
Um hércules não teria resistido a semelhante entusiasmo. A multidão
abandonou pouco a pouco as praças e as ruas.

No dia seguinte, mil e quinhentos jornais diários, ,semaná-
rios, mensais ou bimensais, apoderaram-se da questão, examinaram-na
sob os seus diferentes pontos de vista, físicos, meteorológicos,
econômicos ou morais, pela .perspectiva da preponderância política
ou da civilização. Perguntavam se a Lua seria um mundo morto,
se não estaria ainda em via de transformação. Se assemelharia
à Terra no tempo em que ainda não tinha atmosfera. Que espetáculo
apresentaria a parte invisível do nosso satélite? Se bem que
se tratasse ainda apenas de enviar uma bala ao astro da noite, todos viam
nela um ponto de partida para uma série de novas experiências;
todos esperavam que um dia a América penetrasse os últimos segredos
desse disco misterioso e alguns mesmo pareciam temer que a sua conquista alterasse
sensivelmente o equilíbrio europeu.

Discutido o projeto, nenhum jornal pós em dúvida a possibilidade
da sua realização; as revistas, os panfletos, os boletins e
os magazines publicados pelas sociedades científicas, literárias
ou religiosas, faziam ressaltar as suas vantagens, e a Sociedade de História
Natural de Boston, a Sociedade Americana das Ciências e das Artes de
Alabany, a Sociedade Geográfica e Estatística de Nova Iorque,
a Sociedade Filosófica Americana de Filadélfia, o Instituto
Smithsoniano de Washington, enviaram em cartas as suas felicitações
ao Clube do Canhão, com ofertas imediatas de coadjuvação
e de dinheiro.

A verdade, pode dizer-se, é que nunca nenhuma proposta reuniu tal
número de adesões; hesitações, dúvidas,
inquieta ções não ocorreram a ninguém. Quanto
às brincadeiras, às caricaturas, às canções
que teriam acolhido na Europa, e especialmente na França, a idéia
de enviar um projétil à Lua, teriam servido muito mal os seus
autores; nem todos os revólveres do mundo seriam capazes de garantir
a sua segurança contra a indignação geral. Há
coisas de que as pessoas não riem no Novo Mundo. Impey Barbicane tornou-
se, a partir desse d ia, um dos maiores cidadãos dos Estados Unidos,
qualquer coisa como o Washington da Ci- ência.

Capitulo III – O romance da Lua

Um observador dotado de uma vista infinitamente penetrante, e colocado nesse
centro desconhecido em redor do qual gravita o mundo, teria visto miríades
de átomos encherem o espaço na época caótica do
Universo. Mas, pouco a pouco, com os séculos, produziu-se uma mudança;
manifestou-se uma lei de atração e a ela obedeceram os átomos
outrora errantes; esses átomos combinaram-se quimicamente segundo as
suas afinidades, tornaram-se moléculas e formaram esses agregados nebulosos
de que estão semeadas as profundezas do céu.

Animaram-se então esses agregados de um movimento de rotação
em torno do seu ponto central. Esse centro, formado de moléculas vagas,
começou a girar sobre si m esmo e foi condensando-se progressivamente;
de resto, seguindo as leis imutáveis da mecânica, à medida
que o seu volume diminuía pela condensação, o seu movimento
de rotação acelerava-se e, persistindo esses dois efeitos, resultou
daí o aparecimento de uma estrela principal, novo centro do agregado
nebuloso.

Se o observador olhasse atentamente teria então visto as outras moléculas
do agregado comportarem-se como a estrela central, condensando-se a seu modo
por um movimento de rotação progressivamente acelerado, gravitando
em torno da central sob a forma de inúmeras estrelas.

Assim se formaram as nebulosas, que os astrônomos contam hoje em número
de cinco mil.

Entre essas cinco mil nebulosas existe uma a que os homens chamaram Via
Láctea, que comporta dezoito milhões de estrelas, das quais
cada uma se tornou o centro de um sistema solar.

Se o observador tivesse então examinado especialmente entre esses
dezoito milhões de estrelas uma das modestas e menos brilhantes, uma
estrela de quarta ordem a que chamamos orgulhosamente ?Sol?, todos os fenômenos
aos quais é devida a formação do Universo desenrolar
perante os seus olhos.

Efetivamente, teria visto esse sol, ainda no seu estado gasoso e composto
de moléculas móveis, girando sobre o seu eixo para concluir
o seu trabalho de concentração. Esse movimento, fiel às
leis da mecânica, havia de acelerar-se com a diminuição
de volume, e haveria de chegar um momento em que a força centrífuga
venceria a força centrípeta, que atrai as moléculas exatamente
para o centro.

Então ter-se-ia passado outro fenômeno diante dos olhos do
observador: as moléculas- situadas no plano do equador, soltando-se
como a pedra de uma funda cuja corda se quebra subitamente, teriam formado,
em redor do Sol, vá- rios anéis concêntricos semelhantes
aos de Saturno. Por sua vez, esses anéis de matéria cósmica,
animados por um movimento de rotação em redor da massa central,
teriam quebrado e decomposto em nebulosidades secund árias, isto é,
em planetas. Se o observador tivesse então concentrado toda a sua atenção
sobre esses planetas, tê- los-ia visto comportarem-se exatamente como
o Sol e provocar o nascimento de um ou vários anéis cósmicos,
origem desses astros de ordem inferior a que dão o nome de satélites.

Assim, indo do átomo à molécula, da molécula
ao agregado nebuloso, do agregado nebuloso à nebulosa, da nebulo20
sa à estrela principal, da estrela principal ao Sol, do Sol ao planeta,
e do. planeta ao satélite, temos toda a série das transformações
sofridas- pelos corpos celestes desde os primeiros dias do Universo.

0 Sol parece perdido nas imensidades do mundo estelar e no entanto está
ligado, segundo as atuais teorias da ciência, à nebulosa chamada
Via Láctea. Centro de um mundo, por mais pequeno que pareça
no meio das regiões etéreas, é no entanto enorme, pois
o seu volume é um milhão e quatrocentas mil vezes o volume da
Terra. Em torno dele gravitam oito planetas que nos primeiros tempos da cria-
ção lhe saíram das próprias entranhas. São
estes planetas, partindo-se do mais próximo para o mais remoto, Mercú-
rio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno.

Além destes circulam, regularmente, entre Marte e Júpiter,
outros corpos, de volume menos considerável, talvez restos errantes
de algum astro quebrado em milhares de peda ços. Destes, o telescópio
já descobriu noventa e sete.

Alguns dos corpos que o Sol mantém nas respectivas órbitas
elípticas, por força da grande lei da gravitação,
também têm seus satélites. Urano tem oito, Saturno, oito,
Júpiter, quatro, Netuno, talvez três, a Terra, um apenas, que
é dos menos importantes do mundo solar, a Lua, que o engenho audaz
dos americanos pretendia conquistar.

0 astro das noites, já pela proximidade relativa a que está,
já por virtude do espetáculo sempre renovado das diversas fases
que apresenta, partilhou sempre com o Sol a atenção dos habitantes
da Terra. A diferença é que olhar para o Sol cansa e os esplendores
da luz solar forçam a abaixar os olhos. A loura Felye é mais
humana e, mais cheia de modesta graça, deixa-se ver com complacência.
É suave para a vista, pouco ambiciosa e no entanto permitese por vezes
eclipsar o irmão, o radioso Apolo, sem nunca ser eclipsada por ele.
Os maometanos compreenderam o reconhecimento que deviam a essa fiel amiga
da Terra e por isso regularam os seus meses sobre a sua rotação.

Os primeiros povos votaram um culto especial a essa casta deusa. Os egípcios
chamavam-lhe Ísis; os fenícios Astartéia; os gregos adoraram-na
com o nome de Febe, filha de Latona e Júpiter, e explicavam os seus
eclipses pelas visitas misteriosas de Diana ao belo Endimião. A crer
na lenda mitológica, o leão de Neméia percorreu as campinas
da Lua antes do seu aparecimento na Terra, e o poeta Agenianax, citado por
Plutarco, celebrou nos seus versos os seus olhos meigos, o seu nariz encantador
e a sua boca amável, que figuram as partes luminosas da admirável
Selene.

Contudo, se os antigos compreenderam bem o caráter, o temperamento,
numa palavra, as qualidades morais da Lua do ponto de vista mitológico,
os mais sábios dentre eles permaneceram muito ignorantes em selenografia.

Entretanto, vários astrônomos das épocas longínquas
descobriram certas particularidades confirmadas hoje pela ci- ência.
Se os arcádios pretenderam ter habitado a Terra numa época em
que a Lua ainda não existia, se Tatius a considerou como um fragmento
destacado do disco solar, se Clearco, discípulo de Aristóteles,
fez dela um espelho polido sobre o qual se refletiam as imagens do oceano,
se outros, enfim, viram apenas nela um amontoado de vapores exalados pela
Terra, ou um globo semi gelado, que girava sobre si mesmo, alguns sábios,
por meio de sagazes observa ções, à falta de instrumentos
de ótica, suspeitaram pelo menos da existência da maior parte
das leis que regem o astro noturno.

Assim Tales de Mileto, quatrocentos e sessenta anos antes de Cristo, emitiu
a opinião de que a Lua era iluminada pelo Sol. Aristarco de Samos deu
a verdadeira explicação das suas fases. Cleômenes ensinou
que a Lua brilhava com uma luz refletida. 0 caldeu Barósio descobriu
que a duração dó seu movimento de rotação
era igual à da sua revolução, e explicou assim o fato
de a Lua apresentar sempre a mesma face. Por fim, Hiparco, dois séculos
antes da era cristã, reconheceu algumas desigualdades nos movimentos
aparentes do satélite da Terra.

Estas diferentes observações confirmaram-se mais tarde e serviram
aos modernos astrônomos. Ptolomeu, no século II, o árabe
Abul-Wefa, no século X, completaram as observa ções de
Hiparco acerca das desigualdades apresentadas pela Lua na linha ondulada da
sua órbita sob a ação do Sol.

Depois Copérnico, no século XV, e Ticho Brahe, no século
XVI, explicaram completamente o sistema do mundo e o papel desempenhado pela
Lua no conjunto dos corpos celestes.

Nessa época, os seus movimentos estavam mais ou menos determinados;
mas pouco se sabia da sua constituição física. Foi então
que Galileu explicou os fenômenos luminosos produzidos em certas fases
pela existência de montanhas, às quais atribuía uma altura
média de quatro mil e quinhentas toesas.

Depois dele, Hevélio, um astrônomo de Dantzig, avaliou as mais
elevadas dessas montanhas em duas mil e seiscentas toesas; mas o seu confrade
Riccioli elevou-as para sete mil. Herschell, nos fins do século XVIII,
armado de um poderoso telescópio, reduziu singularmente as medidas
precedentes.

Atribuiu mil e novecentas toesas às montanhas mais altas, e reduziu
a média das diferentes alturas para apenas quatrocentas toesas. Mas
também Herschell se enganava, e foram necessárias as observações
de Shroeter, Louville, Halley, Nasmyth, Bianchini, Partorf, Lohrman, Gruithuysen,
e sobretudo os pacientes estudos de Beer e de Moedler, para resolver definitivamente
a questão. Gra- ças a esses sábios, a altitude das montanhas
da Lua é perfeitamente conhecida hoje em dia. Beer e Moedier mediram
mil novecentas e cinco altitudes, das quais seis estão acima das duas
mil e seiscentas toesas, e vinte e duas acima das duas mil e quatrocentas.
0 seu mais alto cume domina de uma altura de três mil e oitocentas e
uma toesas a superfície do disco lunar.

Ao mesmo tempo, ia-se completando o conhecimento da Lua; esse astro mostrava-se
crivado de crateras e cada nova observação confirmava mais a
sua natureza essencialmente vulcânica. Da falta de refração
nos raios dos planetas ocultos por ela, concluiu-se que a atmosfera devia
faltar-lhe quase totalmente., Essa ausência de ar levava à conclusão
de haver igualmente ausência de água. Tomavase, portanto, evidente
que para viver na Lua os seus habitantes deviam ter um organismo especial,
diferindo essencialmente dos habitantes da Terra.

Enfim, graças aos novos métodos, instrumentos mais aperfei
çoados perscrutaram a Lua sem descanso, não deixando por explorar
nenhum ponto da sua superfície, e no entanto o seu diâmetro mede
duas mil cento e cinqüenta milhas, a sua superfície é a
décima terceira parte da superf ície do Globo e o seu volume
a quadragésima nona parte do volume do esferóide terrestre;
mas nenhum dos segredos podia escapar ao olhar dos astrônomos, e esses
há- beis sábios levaram ainda mais longe as suas prodigiosas
observações.

Assim, notaram que, durante a lua cheia, o disco surgia em certas partes
raiado por linhas brancas e durante as outras fases raiado por linhas negras.
Estudando com maior precis ão, conseguiram determinar com exatidão
a natureza dessas linhas. Eram sulcos compridos e estreitos, cavados entre
mar. s paralelas, levando geralmente aos contornos das crateras; tinham um
comprimento compreendido entre dez e cem milhas e uma largura de oitocentas
toesas. Os astrônomos chamaram-lhes ranhuras, mas não passaram
disso. Quanto à questão de se saber se essas ranhuras eram ou
não leitos secos de rios, não puderam resolvê-la de maneira
completa. Os americanos já concebiam tamb ém a esperança
de determinar com exatidão aquele fato geológico.

Quanto à intensidade da luz lunar, nada mais havia a aprender a esse
respeito; sabia-se que ela era trezentas mil ve24 zes mais fraca que a do
Sol e que o seu calor não tem ação apreciável
sobre os termômetros; quanto ao fenômeno conhecido pelo nome de
luz cendrada, explicasse naturalmente pelo efeito dos raios do Sol refletidos
na Terra e que depois da reflexão se dirigem para a Lua. Parece, por
este fenômeno, completar-se o disco lunar, quando este se apresenta
sob a forma de um crescente na sua primeira e última fase. Era este
o estado dos conhecimentos adquiridos a respeito do satélite da Terra,
e que o Clube do Canhão se Propunha completar em todos os campos: cosmográfico,
geológico, político e moral.

Capítulo IV – Barbicane toma as primeiras Providências

Entretanto, Barbicane não perdia um só instante. 0 seu primeiro
cuidado foi reunir os colegas nos escritórios do Clube do Canhão.
Ali, após várias discussões, concordaram em consultar
os astrônomos sobre a parte astronômica do empreendimento; uma
vez discutidas as respostas destes, examinaram então os meios mecânicos,
nada sendo negligenciado para assegurar o êxito dessa grande experi-
ência.

Uma nota muito precisa, contendo perguntas específicas, foi redigida
e dirigida ao Observatório de Cambridge, em Massachussetts. Essa cidade,
onde foi fundada a primeira universidade dos Estados Unidos, é justamente
célebre pelo seu observatório astronômico. Ali se encontram
reunidos cientistas do mais alto mérito; também funciona o potente
telescópio que permitiu a Bond detectar a nebulosa de Andrômeda
e a Clarke descobrir o satélite de Sírio. Este estabelecimento,
a todos os títulos célebre, justificava a confiança do
Clube do Canhão.

Assim, dois dias depois, a sua resposta, tão impacientemente esperada,
chegava às mãos do Presidente Barbicane.

Estava assim redigida: ?Cambridge, 7 de outubro.

Do diretor do Observatório de Cambridge ao presidente do Clube do
Canhão.

Logo que recebemos a vossa estimada carta de 6 do corrente, dirigida ao
Observatório de Cambridge, em nome dos membros do Clube do Canhão,
de Baltimore, o nosso gabinete reuniu-se imediatamente e julgou oportuno responder.

Em resumo: 1 – 0 canhão deverá ser instalado numa região
situada entre o equador e o grau 28? de latitude norte ou sul.

2 – Deverá ser apontado para o zênite do lugar.

3 – 0 projétil deverá ser animado de uma velocidade inicial
de doze mil j ardas por segundo.

4 – Deverá ser lançado no dia 1? de dezembro do próximo
ano, às dez horas e quarenta e seis minutos e quarenta segundos.

5 – 0 projétil chegará à Lua quatro dias após
a sua partida, precisamente à meia-noite do dia 4 de dezembro., no
momento em que o astro passa pelo zênite.

Os membros do Clube do Canhão devem, portanto, come çar sem
demora os trabalhos necessários para tal empreendimento, de tal ordem
a estarem prontos a operar no momento determinado, pois, se deixarem passar
essa data de 4 de dezembro, não voltarão a encontrar ,a Lua
nas mesmas condições em relação ao perigeu e ao
zênite senão dezoito anos e onze dias depois.

0 gabinete do Observatório de Cambridge põe-se inteira mente
à vossa disposição para as questões de astronomia
teórica, e pela presente junta as suas felicitações às
da América inteira.

Pelo gabinete, J. M. Belfast Diretor do Observatório de Cambridge.

0 Observatório de Cambridge tinha, na sua memorável carta,
estudado a questão do ponto de vista astronômico; tratava-se
no momento de resolver mecanicamente. Seria então que as dificuldades
práticas pareceriam intransponíveis em qualquer outro país
que não fosse a América. Ali não passaram de brincadeira.

0 Presidente Barbicane nomeara, sem perda de tempo, uma comissão
de execução dentro do Clube do Canhão. Essa comissão
devia, em três sessões, elucidar as três grandes questões
do canhão, do projétil e da pólvora; essa comiss ão
era formada por quatro membros, todos muito sábios nessas matérias:
Barbicane, com direito a voto de desempate no caso de as opiniões diferirem;
o General Morgan, o Major Elphiston e, por fim, o inevitável J. T.
Maston, ao qual foram confiadas as funções de secretário-relator.

No dia 8 de outubro reuniu-se a comissão em casa do Presidente Barbicane.
Como era importante que o estô- mago não perturbasse com os seus
impérios. Os apelos tão séria discussão, os quatro
membros do Clube do Canh ão tomaram lugar a uma mesa coberta de sanduíches
e de grandes bules de chá. Em seguida, J. T Maston atarraxou a caneta
ao gancho de ferro que lhe servia de mão e a sessão começou.

Barbicane tomou a palavra: – Meus caros colegas – disse -, temos de resolver
um dos mais importantes problemas da balística, essa ciência,
por excelência, que trata dos movimentos dos projéteis, isto
é, dos corpos lançados no espaço por determinada força
de impulsão, sendo depois abandonados a si próprios.

– Oh! A balística! A balística! – exclamou J. T. Maston, com
voz comovida.

– Talvez possa parecer mais lógico – continuou Barbicane – consagrar
esta primeira sessão à discussão de engenho…

– Com toda razão – respondeu o General Morgan.

– No entanto – replicou Barbicane -, após maduras reflex ões,
pareceu-me que a questão do projétil devia antecipar- se à
do canhão e que as dimensões deste se subordinariam às
daquele.

– Peço a palavra – exclamou J. T. Maston.

Foi-lhe concedida a palavra com a deferência que o seu prestigioso
passado exigia.

– Meus caros amigos – disse, num tom inspirado o nosso presidente tem razão
em dar a questão do projétil primazia sobre todas as outras!
Essa bala que vamos enviar para a Lua é a nossa mensageira, a nossa
embaixadora, e peço-lhes licença para a considerar de um ponto
de vista puramente moral.

Aquela nova maneira de encarar um projétil despertou singularmente
a curiosidade dos outros membros da comiss ão, e por isso eles prestaram
a mais viva atenção às palavras de J. T. Maston.

– Meus caros colegas – continuou este último serei breve; deixarei
de lado a bala física, a bala que mata, para ver apenas a bala matemática,
a bala moral. A bala é para mim a mais deslumbrante manifestação
do poderio humano; é nela que se resume esse poder por inteiro; foi
criando-a que o homem se aproximou mais do Criador! – Muito bem! – apoiou
o Major Elphiston.

– Realmente – exclamou o orador -, se Deus fez as estrelas e os planetas,
o homem fez a bala, esse criterium das velocidades terrestres, essa miniatura
dos astros errando no espaço, e que são afinal, para falar a
verdade, apenas projéteis! A Deus coube criar a velocidade da eletricidade,
a velocidade da luz, a velocidade das estrelas, dos cometas, dos satélites,
a velocidade do som, a velocidade do vento.

Mas a nós, os homens, pertence a velocidade da bala, cem vezes superior
à das locomotivas e dos mais rápidos cavalos.

J. T. Maston sentia-se transportado pela emoção; a sua voz
tomava acentos líricos cantando esse hino à bala.

– Querem números? – continuou. – Eis alguns e bem eloqüentes!
Tratemos simplesmente da modesta bala de vinte e quatro libras: se tem uma
velocidade oitocentas mil vezes menor do que a da eletricidade, seiscentas
e quarenta vezes menor do que a da luz, setenta e seis vezes menor do que
a da Terra no seu movimento de translação em redor do Sol, mas
que, no entanto, ao sair do canhão, ultrapassa a velocidade do som,
percorre duzentas toesas por segundo, duas mil toesas em dez segundos, quatorze
milhas por minuto, oitocentas e quarenta milhas por hora, vinte mil e cem
milhas por dia, isto é, 7.568.640 milhas por ano, ou seja, a velocidade
dos pontos do equador no movimento de rotação do Globo. Levaria,
portanto, onze dias a chegar à Lua, doze anos para atingir o Sol, trezentos
e sessenta anos para atingir Netuno, nos limites do sistema solar. Eis o que
faria essa modesta bala, obra das nossas mãos! Que sucederá
então quando, tornando essa velocidade vinte vezes maior, nós
a lançarmos com a rapidez de sete milhas por segundo. Ah, Bala esplêndida!
Soberbo projétil! Exulto ao pensar que serás recebida lá
em cima com todas as honras devida á um embaixador terrestre! Vivas
acolheram este retumbante discurso, e J. T. Maston, muito comovido, sentou-se
no meio das felicitações dos seus colegas.

– E agora – disse Barbicane -, que concedemos uma larga parte da nossa sessão
à poesia, ataquemos a questão diretamente.

Estamos prontos – responderam os membros da comiss ão mastigando
ao mesmo tempo cada um deles meia dúzia de sanduíches.

– Sabem qual é o problema a resolver – continuou o presidente.

– Trata-se de imprimir a um projétil uma velocidade de doze mil jardas
por segundo. Tenho razões para pensar que conseguiremos fazê-lo.
Mas observemos por agora as velocidades obtidas até hoje; o General
Morgan poderá esclarecer-nos a esse respeito.

– Muito facilmente – respondeu o general – pois fui durante a guerra membro
da comissão de experiências. Dir-lhes-ei, portanto, que os canhões
de cem de Dahlgreen, que tinham um alcance de duas mil e quinhentas toesas,
imprimiram ao seu projétil uma velocidade inicial de quinhentas j ardas
por ? segundo.

– Bem. E o columbiad de Rodman? – perguntou o presidente.

– 0 columbiad Rodman, experimentado no Forte de Hamilton, perto de Nova
Iorque, lançava uma bala, que pesava meia tonelada, a uma distância
de seis milhas, com uma velocidade de oitocentas jardas por segundo, resultado
que Armstrong e Palliser nunca obtiveram na Inglaterra.

– Oh!, os ingleses1 – exclamou J. T. Maston, apontando para o horizonte
o seu temível gancho.

– Portanto – disse Barbicane -, essas oitocentas jardas foram a velocidade
máxima atingida até hoje.

– Sim – respondeu Morgan.

Diria no entanto – replicou J. T. Maston – que se o meu morteiro não
tivesse explodido.

– Mas explodiu – disse Barbicane com um gesto benevolente.

– Tomemos, portanto, como ponto de partida a velocidade de oitocentas jardas.
Será preciso torná-la vinte vezes mais rápida. Vamos
reservar para outra sessão a discuss ão dos meios necessários
para conseguir essa velocidade.

Agora, chamarei a vossa atenção, caros colegas, sobre as dimensões
que convém dar ao projétil. Bem vêem que não se
trata, no caso presente, de projéteis pesando no máximo meia
tonelada! Por que não? – perguntou o major.

– Porque esse projétil – replicou vivamente J. T. Maston – deve ser
bastante grande para atrair as atenções dos habitantes da Lua,
se eles de fato existirem.

– Sim – respondeu Barbicane -, e por outra razão ainda mais forte.

– Que quer dizer com isso, Barbicane? – perguntou o major.

– Digo que não basta enviarmos um projétil e não nos
ocuparmos mais dele; é preciso que o sigamos durante o seu percurso
até o momento em que ele atingir o seu objetivo.

– 0 quê! – exclamaram a um tempo o general e o major, um pouco surpreendidos
com a proposta.

– Sem dúvida – respondeu Barbicane, muito seguro de si -; do contrário
a nossa experiência não obterá qualquer resultado.

– Mas então – replicou o major – vai dar a esse projétil dimensões
enormes? – Não! queiram ouvir-me: sabem que os instrumentos de ótica
adquiriram uma grande perfeição; com certos telesc ópios
já se conseguiu obter aumentos de seis mil vezes, e trazer a Lua para
cerca de quarenta milhas. Ora, a essa distância, objetos com sessenta
pés de lado são perfeitamente visíveis. Senão
se levou mais para diante o poder de penetração dos telescópios,
é porque esse poder se exerce em detrimento da sua nitidez, e a Lua,
que não é mais do que um espelho refletor, não emite
uma luz suficientemente intensa para que se possa admitiram simplifica- ções
que vão além desse limite.

– Pois bem! Que faremos agora? – perguntou o general. – Daremos ao nosso
projétil um diâmetro de sessenta pés? Não! Encarregar-se-á
então de tornar a Lua mais luminosa? – Perfeitamente! – Esta é
forte! – exclamou J. T. Maston.

– Sim; é muito, mas muito simples – respondeu Barbicane.

– Realmente, se conseguir diminuir a espessura da atmosfera atravessada
pela luz da Lua, poderei tornar essa luz mais intensa.

– Evidentemente.

– Pois bem. Para obter esse resultado, bastar-me-á instalar um telescópio
em qualquer montanha elevada. E é o que faremos.

– Rendo-me, rendo-me – disse o major. – Você tem um tal modo de simplificar
as coisas!… E que amplificação espera obter assim? . – Uma
amplificação de quarenta e oito mil vezes, que trará
a Lua para apenas cinco milhas, pelo que, para se tornarem visíveis,
os objetos apenas terão necessidade de ter nove pés de diâmetro.

– Perfeito! – exclamou J. T. Maston. – 0 nosso projétil terá,
portanto, nove pés de diâmetro? – Precisamente.

– Permita-me no entanto que lhe diga – continuou o Maior Elphiston – que
ele terá ainda um peso tal que…

Olhe, major – respondeu Barbicane. – Antes de discutir o peso do projétil,
deixe-me dizer-lhe que os nos 505 pais fizeram maravilhas nesse gênero.
Longe de mim a idéia de que a balística não fez progressos,
mas é bom sabermos que, desde a Idade Média, se obtêm
resultados surpreendentes, ousarei mesmo dizer mais surpreendentes do que
os nossos.

Esta agora! – replicou Morgan.

Justifique as suas palavras – disse vivamente J. T. Maston.

– Nada mais fácil – retorquiu Barbicane. – Tenho exemplos que apoiam
a minha afirmação. No cerco de Constantinopla, por Maomé
II, em 1453, lançaram balas de pedra que pesavam mil e novecentas libras,
pelo que deviam ter um bom tamanho.

– Oh! 0h1 – exclamou o major. – Mil e novecentas libras já é
um número apreciável.

– Em Malta, no tempo dos cavaleiros, um certo canhão do Forte Saint-Elme
arremessava projéteis que pesavam duas mil e quinhentas libras.

– Não é possível.

– E por fim, segundo um historiador francês, no reinado de Luís
XI, havia um morteiro que lançava bombas de quinhentas libras apenas;
mas essas bombas, partindo da Bastilha, um lugar onde os loucos encerravam
os ajuizados, iam cair em Charenton, um lugar onde os ajuizados encerravam
os loucos I – Muito bem! – disse J. T. Maston.

– Desde então que vimos nós, afinal? Os canhões de
Armstrong lançarem balas de quinhentas libras e os columbiads Rodman
projéteis de meia tonelada! Parece, portanto, que se os projéteis
ganharam em alcance perderam em peso. Ora, se nós pusermos todos os
nossos esfor ços, desse lado, devemos conseguir, com os progressos
da ciência, decuplicar o peso das balas de Maomé II e dos cavaleiros
de Malta.

– É evidente – respondeu o major. – Mas que metal tenciona então
utilizar para o fabrico do projétil? – Ferro fundido, muito simplesmente
– disse o General Morgan.

– Ferro fundido! – exclamou J. T. Maston, com profundo desdém. –
Trata-se de uma coisa muito vulgar para uma bala destinada a ir à Lua.

– Não exageremos, meu estimado amigo – respondeu Morgan -; o ferro
fundido chegará.

– Pois bem! – exclamou então o Major Elphiston. – Visto que o peso
é proporcional ao seu volume, uma bala de ferro fundido, medindo nove
pés de diâmetro, terá ainda um peso espantoso! – Sim,
se for maciça; não se for oca – disse Barbicane.

– Oca! Será então um obus? – Onde se poderão meter
cartas e amostras das produ- ções terrestres? – Sim, um obus
– replicou Barbicane. – É necessário que o seja; uma bala maciça
de cento e oito polegadas pesaria mais de duzentas mil libras, peso evidentemente
demasia do considerável; no entanto, como é necessário
assegurar uma certa estabilidade ao projétil, proponho que lhe demos
um peso de cinco mil libras.

– Qual será então a espessura das paredes do projétil?
– perguntou o major.

– Se adotarmos as proporções regulamentares – continuou Morgan
-, um diâmetro de cento e oito polegadas exigiria paredes de pelo menos
dois pés de espessura.

– Seria demasiado – respondeu Barbicane -; repare bem que não se
trata de uma bala destinada a perfurar chapas metálicas; bastar-lhe-á
ter paredes suficientemente fortes para resistir à pressão dos
gases da pólvora. Qual é portanto o problema? Que espessura
deve ter um obus de ferro fundido para pesar apenas vinte mil libras? 0 nosso
hábil calculador, o valente Maston, vai nos informar daqui a pouco.

– Nada mais fácil – replicou o estimado secretário da comiss
ão.

Ao dizer isto, traçou algumas fórmulas algébricas no
papel; viram surgir sob a sua pena nem elevados à segunda pot ência.
Teve mesmo o ar de extrair, sem lhe pôr a mão, uma certa raiz
cúbica, e disse por fim: – As paredes deverão ter apenas duas
polegadas de espessura.

– Será suficiente? – perguntou o major, com ar de dúvida.

– Não – respondeu o Presidente Barbicane. – Evidentemente que não.

– Então que devemos fazer! – inquiriu Elphiston, com um ar bastante
embaraçado.

– Utilizar outro metal diferente do ferro fundido.

– Cobre? – perguntou Morgan.

– Não; isso é ainda pesado demais. Tenho outra coisa melhor
a propor-lhe.

– 0 quê? – inquiriu o major.

– Alumínio – respondeu Barbicane.

– Alumínio?! – exclamaram os três colegas do presidente.

– Sem dúvida, meus amigos. Sabeis que um ilustre químico francês,
Henri Sainte-Claire Deville, conseguiu, em 1854, obter alumínio em
massa compacta. Ora, esse precioso metal tem a brancura da prata, a inalterabilidade
do ouro a tenacidade do ferro, a fusibilidade do cobre e a leveza do vidro;
trabalha-se facilmente e está muito disseminado na natureza, visto
que forma a base da maior parte das rochas.

É três vezes mais leve que o ferro, e parece ter sido criado
expressamente para nos fornecer o material para o nosso projétil! –
Viva o alumínio! – Exclamou o secretário da comissão,
sempre muito barulhento nos seus momentos de entusiasmo.

– Mas, meu caro presidente – disse o major -, o preço do alumínio
não é extremamente elevado? – Era – respondeu Barbicane -, nos
primeiros tempos da sua descoberta, uma libra de alumínio custava duzentos
e oitenta dólares; depois baixou para vinte dólares, e hoje,
finalmente, vale nove dólares.

– Mas a nove dólares por libra – replicou o major, que não
cedia facilmente – é ainda um preço enorme! Sem dúvida,
meu caro maior, mas não é inacessível.

Nesse caso quanto pesará então o projétil? – perguntou
Morgan.

– Eis o que resulta dos meus cálculos – respondeu Barbicane -; uma
bala de cento e oito polegadas de diâmetro e de doze polegadas de espessura
pesaria, se fosse de ferro fundido, sessenta e sete mil quatrocentas e quarenta
libras; em alumínio, o seu peso será, reduzido a dezenove mil
e duzentas e cinqüenta libras.

– Perfeito! Perfeito! – replicou o major. – Mas não vê que
a nove dólares a libra esse projétil custará…

– Cento e setenta e três mil duzentos e cinqüenta dólares,
sei-o perfeitamente; mas não receiem nada, meus amigos, o dinheiro
não faltará ao nosso empreendimento, asseguro- lhes.

– Há de chover dinheiro nos nossos cofres – afirmou J. T.

Maston.

Pois bem! que pensam do alumínio? – perguntou o presidente.

– Adotado! – responderam os três membros da comissão.

– Quanto à forma do projétil – continuou Barbicane -, importa
pouco, visto que, uma vez ultrapassada a atmosfera, ele se encontrará
no vácuo; proponho, portanto, a bala redonda, que girará sobre
si mesma, se isso lhe agradar, comportando-se conforme ditar a sua real fantasia.

Terminou assim a primeira sessão da comissão; a questão
do projétil estava definitivamente resolvida, e J. T. Maston alegrou-se
muito com a idéia de enviar um projétil de alum ínio
aos selenitas, ?o que lhes daria uma excelente idéia dos habitantes
da Terra?.

As resoluções tomadas nessa sessão produziram um grande
efeito no exterior. Algumas pessoas mais tímidas assustavam- se um
pouco com a idéia de uma bala pesando vinte mil libras se r lançada
através do espaço. Perguntavam a si próprias que canhão
poderia transmitir uma velocidade inicial suficiente para tal massa. A ata
da segunda sessão da comissão devia responder a essas questões.

No dia seguinte à noite, os quatro membros do Clube do Canhão
instalavam-se perante novas montanhas de sandu íches e à beira
de um – verdadeiro oceano de chá. A discussão retomou novamente
o seu curso e dessa vez sem preâmbulos.

– Meus caros colegas disse Barbicane _, vamos ocuparnos do engenho a ser
construído, do seu comprimento, da sua forma, da sua composição
e do seu peso. E provável que cheguemos a dar-lhe dimensões
gigantescas; mas, por maiores que sejam as dificuldades, o nosso engenho industrial
suplantá-las-á facilmente. Queiram, portanto, escutar- me e
não poupem as objeções que tiverem a fazerme.

Eu não receio! – Não esqueçamos – continuou Barbicane
– a que ponto a nossa discussão de ontem nos conduziu; o problema apresenta-
se agora sob esta forma: imprimir uma velocidade inicial de doze mil jardas
por segundo a um obus de cento e oito polegadas de diâmetro e com um
peso de vinte mil libras.

É este o problema. – disse o Major Elphiston.

Vou continuar – disse Barbicane. – Quando um projétil é lançado
no espaço, que se passa? É solicitado por três for- ças
independentes: a resistência do meio, a atração da Terra
e a força do impulso de que é animado.

– Examinemos essas três forças. A resistência ao meio,
isto é, a resistência do ar, será pouco importante. Realmente,
a atmosfera da Terra tem apenas quarenta milhas.

Ora, com uma rapidez de doze mil jardas, o projétil atravessá-la-á
em cinco segundos, e o tempo é bastante curto para que a resistência
do meio possa ser considerada como insignificante. Passemos, portanto, para
a atração da Terra, isto é, para o peso do obus. Sabemos
que esse peso diminuirá em razão inversa do quadrado das distâncias;
realmente, eis o que a física nos ensina: quando um corpo inerte cai
na superfície da Terra, a sua queda é de quinze pés no
primeiro segundo, e se esse mesmo corpo fosse – transportado a duzentas e
cinqüenta e sete mil cento e quarenta e duas milhas, ou, em outras palavras,
à distância a que a Lua se encontra, a sua queda ficaria reduzida
a uma meia linha, aproximadamente no primeiro segundo.

É quase a imobilidade. Trata-se, portanto, de vencer progressivamente
essa ação da gravidade. Como conseguiremos fazê-lo? Pela
força do impulso.

– E esta a dificuldade – disse o major.

É, realmente – replicou o presidente -; mas nós triunfaremos,
pois essa força de impulso que nos é necessária resultar
á do comprimento do engenho e da quantidade de pólvora utilizada,
sendo esta apenas limitada Pela resistência daquele. Portanto, ocupemo-nos
hoje das dimensões a dar ao canhão. É claro que podemos
instalá-lo em condi ções de segurança por assim
dizer infinitas, visto que não há necessidade de o manobrar.

– Tudo isto é claro – concordou o general.

Até aqui – disse Barbicane -, os canhões mais compridos, os
enormes columbiad, não ultrapassaram os vinte e cinco pés de
comprimento; vamos, portanto, espantar muita gente pelas dimensões
que seremos forçados a adotar.

. Sem dúvida! – exclamou J. T. Maston. – Por meu lado, peço
um canhão de pelo menos meia milha de comprimento! – Meia milha – exclamaram
o major e o general.

– Sim, meia milha, e será ainda curto demais.

– Vamos, Maston – respondeu Morgan. – Exagerado.

– Nada disto – respondeu o ardente secretário. – E não sei
por que me chamam exagerado.

– Porque vai longe demais! – Fique sabendo, senhor – respondeu J. T. Maston,
tomando os seus grandes ares -; fique sabendo que um artilheiro é exatamente
como uma bala: nunca vai longe demais! A discussão estava incidindo
sobre as personalidades, mas o presidente interveio.

– Tenham calma, meus amigos, e raciocinemos; é evidente que é
necessário um canhão de grande alcance, visto que o comprimento
da peça aumentará a expansão dos gases acumulados sob
o projétil, mas é inútil ultrapassar certos limites.

– Perfeitamente – disse o major.

Quais as regras estabelecidas em casos semelhantes? Vulgarmente, ó
comprimento de um canhão é de vinte a vinte e cinco vezes o
diâmetro da bala, e pesa duzentas e trinta e cinco a duzentas e quarenta
vezes o seu peso.

Isto não é suficiente – declarou com impetuosidade J.T.

Maston.

– Concordo, meu digno amigo, e, realmente, se nos cingirmos à proporção
referida, para um projétil de nove pés de largura pesando vinte
mil libras, o engenho teria apenas um comprimento de duzentos e vinte e cinco
pés e um peso de sete milhões e duzentas mil libras.

– É ridículo! – afirmou J. T. Maston. – Mais valia usar uma
pistola! – Também penso assim – retorquiu Barbicane -; é por
isso que me proponho quadruplicar esse comprimento e construir um canhão
de novecentos pés.0 general e o major fizeram algumas objeções;
mas no entanto essa proposta, vivamente apoiada pelo secretário do
Clube do Canhão, foi definitivamente adotada.

– Agora – disse Elphiston -, que espessura vamos dar às paredes do
canhão? Uma espessura de seis pés – respondeu Barbicane.

Não pensa por certo em erguer semelhante massa em cima de um reparo
– disse o major.

– Isso é que devia ser soberbo! – exclamou J. T. Maston.

– Mas impraticável – disse Barbicane. – Não, eu penso em moldar
esse engenho no próprio solo, com arcos de ferro forjado, rodeando-o
de um espesso revestimento de pedra e cal, de modo a que adquira toda a resistência
do terreno que o circunde. Uma vez a peça fundida, a alma será
cuidadosamente polida e calibrada, de maneira a impedir o ?vento? do projétil;
desse modo, não haverá qualquer desperdício de gases,
e toda a força expansiva da pólvora será utilizada, totalmente,
no impulso.

– Viva! Viva! – disse J.T. Maston. – Temos o nosso canhão! Ainda
não – disse Barbicane, acalmando o seu impaciente amigo.

– E por quê? – Porque não discutimos a sua forma. Será
um canhão, um obus ou um morteiro? – Um canhão! – replicou Morgan.

– Um obus! – opinou o major.

– Um morteiro! – exclamou J. T. Maston.

Ia iniciar-se nova discussão, bastante viva, pois cada um defendia
a sua arma favorita, quando o presidente os inter rompeu.

– Meus amigos – disse -, vamos ficar todos de acordo; o nosso columbiad
terá qualquer coisa de todas essas bocas de fogo. Será um canhão,
visto que a câmara da pólvora terá o. mesmo diâmetro
que a alma. Já que lançará obuses.

E. finalmente, será um morteiro, porque será apontado por
um ângulo de noventa graus, e porque, sem recuo possí- vel, inflexivelmente
ligado ao solo, comunicará ao projétil toda a força de
impulso acumulada dentro de si.

– Aprovado! Aprovado! – responderam todos os membros da comissão.

– Permitam-me uma simples reflexão – disse Elphiston -: esse canhão-obus-
morteiro será realmente estriado ? – Não – respondeu Barbicane
-, não; precisamos de uma velocidade inicial enorme, e bem sabem que
os projéteis saem menos velozes dos canhões estriados que dos
canh ões com alma lisa.

É isso mesmo.

Finalmente, temos o nosso canhão! – exclamou L ir. Maston.

– Ainda não é tanto assim – retorquiu o presidente.

– E porquê? – Porque ainda não sabemos de que metal será
feito.

– Vamos decidir isso sem demora.

– Ia propor-lhes isso.

Os quatro membros da comissão engoliram cada um deles uma dúzia
de sanduíches, seguida de uma xícara de chá, e a discussão
recomeçou.

– Meus estimados colegas – disse Barbicane -, o nosso canh ão deve
ter uma grande tenacidade, uma grande dureza a ser refratário ao calor,
insolúvel e inoxidável pela ação corrosiva dos
ácidos.

– Não há dúvida a esse respeito – respondeu o major.
– E, como será preciso utilizar uma quantidade considerável
de metal, não havemos de hesitar muito na escolha.

– Pois bem – disse Morgan -: proponho para o fabrico do columbiad a melhor
liga conhecida até hoje, isto é, cem partes de cobre, doze de
estanho e seis de latão.

– Meus amigos. – respondeu o presidente -; confesso que essa composição
deu excelentes resultados; mas, neste caso, custaria cara demais e seu emprego
seria muito difí- cil. Penso, portanto, que será preciso adotar
um material adequado, mas que custe pouco, como o ferro fundido.

Não é esta a sua opinião, major? Exatamente – respondeu
Elphiston.

Realmente – retorquiu Barbicane -, o ferro fundido custa dez vezes menos
do que o bronze; é fácil ? de manipular e molda-se bem em moldes
de areia. É de manipulação rápida, representando
assim economia de dinheiro e de tempo.

De resto, é um material excelente, e eu lembro-me de que, durante
a guerra, no cerco de Atlanta, algumas peças de ferro fundido dispararam
mil tiros cada uma, de vinte em vinte minutos, sem sofrerem qualquer alteração.

– No entanto, o ferro fundido é muito quebradiço – observou
Morgan.

– Sim, mas também é muito resistente; de resto, o canhão
não explodirá. Por isto respondo eu.

– Pode haver o azar de uma- explosão, embora tudo tenha sido feito
com a maior honestidade – replicou sentenciosamente J. T. Maston.

– Evidentemente – respondeu Barbicane. – Vou, portanto, pedir ao nosso digno
secretário para calcular o peso de um canhão de ferro fundido
com o comprimento de novecentos pés, com um diâmetro de interior
de nove pés e com paredes de seis pés de espessura.

– Imediatamente – respondeu J. T. Maston.

E como tinha feito na véspera, alinhou as suas fórmulas com
uma maravilhosa facilidade, dizendo ao fim de um minuto: Esse canhão
pesará sessenta e oito mil e quarenta toneladas.

– E a dois cents a libra (dez cêntimos), custará exatamente?…

– Dois milhões quinhentos e dez mil e setecentos dólares.

J. T. Maston, o major e o general olharam Barbicane com um ar inquieto.

– Pois bem, senhores – disse o presidente -; repetir-lhes-ei o que ontem
lhes disse: estejam tranqüilos, que os milh ões não nos
faltarão! Com esta garantia do presidente, a comissão separou-se,
depois de ter marcado nova sessão para o dia seguinte.

Restava ainda a questão da pólvora para tratar. 0 público
esperava com ansiedade essa última sessão. Dado o volume do
projétil e o comprimento do canhão, qual seria a quantidade
de pólvora necessária para produzir o impulso? Esse agente terrível,
cujos efeitos o homem no entanto, dominou, ia ser chamado a desempenhar o
seu papel em proporções nunca usadas.

Quando no dia seguinte deram início à sessão da comiss
ão, Barbicane deu a palavra ao Major Elphiston, que fora diretor das
fábricas de pólvora durante a guerra.

– Meus caros camaradas – disse aquele distinto químico -, vou começar
por citar números irrecusáveis, que nos servir ão de
base aos nossos cálculos. A bala de vinte e quatro, de que nos falava
anteontem o estimado J. T. Maston em termos tão poéticos, sai
da boca de fogo impelida apenas por dezesseis libras de pólvora.

– Está certo desse número? – perguntou Barbicane.

– Absolutamente certo – respondeu o major. – 0 canhão de Armstrong
utiliza apenas setenta e cinco libras de pólvora para um projétil
de oitocentas libras de peso, e o columbiad de Rodman só gasta cento
e sessenta libras de pólvora para enviar a sua bala de meia tonelada
a seis milhas de distância. Estes fatos não podem ser postos
em dúvida, pois eu próprio os fui tirar das atas da comissão
de artilharia.

– Perfeitamente – respondeu o general.

– Pois bem! – replicou o major. – A ilação a tirar destes
números é que a quantidade de pólvora não aumenta
na proporção do peso da bala: realmente, são precisas
dezesseis libras de pólvora para uma bala de vinte e quatro; em outros
termos, se, nos canhões vulgares, se utiliza uma quantidade de pólvora
equivalente a dois terços do peso do projétil, a proporcionalidade
não é constante. Fa- çam os cálculos e verão
que, para uma bala de meia tonelada, em vez de trezentas e trinta e três
libras de pólvora, essa quantidade foi reduzida para cento e sessenta
libras apenas.

– Aonde quer chegar? – perguntou o presidente.

– Se quer levar a sua teoria ao extremo, meu caro major – disse J. T. Maston
-, chegará à conclusão de que, quando a sua bala for
suficientemente pesada, não precisará de pólvora alguma!
– 0 meu amigo Maston é um brincalhão até com as coisas
sérias – replicou o major -, mas que se tranqüilize; proporei
até quantidades de pólvora que lisonjearão o seu amorpr
óprio de artilheiro. No entanto, quero observar que, durante a guerra,
e para os canhões maiores, o peso da pólvora foi reduzido, após
várias experiências, a um décimo da bala.

– Nada mais exato – disse Morgan. – Mas antes de decidir a quantidade de
pólvora necessária para dar o impulso, penso que é bom
ter conhecimentos sobre a sua natureza.

– Utilizaremos a pólvora de grãos grossos – respondeu o major
-, porque a sua combustão é mais rápida do que a do pólvora.

– Sem dúvida – replicou Morgan -; mas é altamente ?explosiva
e ao fim de algum tempo acaba por alterar a alma das peças.

– Bom! Aquilo que seria um inconveniente para um canhão destinado
a prestar longos serviços, não o é para o nosso columbiad.
Não corremos qualquer perigo de explosão. 0 que é preciso
é que a pólvora se inflame instantaneamente, para que o seu
efeito mecânico seja completo.

– Poder-se-ia – observou J. T. Maston – abrir vários buracos de maneira
a chegar-lhe o fogo em diversos pontos ao mesmo tempo.

– Sem dúvida – respondeu Elphiston -, mas isso tornaria a manobra
mais difícil. Prefiro, portanto, a minha bombardeira, que evita essas
dificuldades.

– Que seja assim – respondeu o general.

– Para carregar o columbiad – continuou o major Rodman utilizava uma pólvora
de grãos grandes como castanhas, feita com carvão de salgueiro,
mal torrado em caldeiras de ferro fundido. Essa pólvora era dura e
brilhante, não deixava quaisquer sinais na mão, continha em
grande proporção oxigênio e hidrogênio, ardia instantaneamente
e, apesar de ser altamente explosiva, não deteriorava sensivelmente
as bocas de fogo.

– Pois bem! – disse J. T. Maston. – Acho que não devemos hesitar
mais, pois a nossa escolha está feita.

– A não ser que prefira ouro pulverizado – replicou o maior, rindo,
o que lhe valeu um gesto ameaçador do seu suscetí- vel amigo.

Até então, Barbicane tinha-se mantido fora da discussão.

Deixava os seus colegas falarem e escutava-os. Era evidente que tinha a
sua idéia. Contentou-se simplesmente em dizer: – Então, meus
caros amigos: que porção de pólvora prop õem?
Os três membros do Clube do Canhão entreolharam-se por instantes.

– Duzentas mil libras – disse por fim Morgan.

– Quinhentas mil – replicou o major.

– Oitocentas mil! – exclamou J. T . Maston.

Dessa vez, Elphiston não ousou acusar o seu colega de ser exagerado.
Realmente, tratava-se de enviar até a Lua um projétil com o
peso de vinte mil libras, dando-lhe uma velocidade inicial de doze mil jardas
por segundo. Um momento de silêncio seguiu-se à tripla proposta
feita pelos membros do clube.

. Esse silêncio foi finalmente quebrado pelo presidente Barbicane.

– Meus estimados camaradas – disse com voz calma.

Parto do princípio de que a resistência do nosso canhão,
construído nas condições requeridas, é ilimitada.
Vou, portanto, surpreender o estimável L T. Maston dizendo-lhe que
foi tímido nos seus cálculos, e proponho que duplique as suas
oitocentas mil libras de pólvora.

– Um milhão e seiscentas mil libras de pólvora exclamou J.

T. Maston saltando na cadeira.

– Isto mesmo.

– Mas nessa altura será preciso pensar no meu canhão de meia
milha de comprimento.

– É evidente – disse o major.

Um milhão e seiscentas mil libras de pólvora – continuou o
secretário da comissão – ocuparão um espaço de
cerca de vinte e dois mil pés cúbicos; ora, como 0 vosso canhão
só tem capacidade para cinqüenta e quatro mil pés cúbicos,
ficará semi cheio, e a sua parte interior não será suficientemente
longa para que a expansão dos gases imprima ao projétil um impulso
suficiente.

Não havia nada a dizer: J. T. Maston dizia a verdade. Ficaram à
espera da resposta de Barbicane – No entanto – replicou o presidente -, continuo
a achar necessária essa quantidade de pólvora. Pensem bem: um
milhão e seiscentas mil libras de pólvora provocarão
o aparecimento de seis milhares de milhões de litros de gás.
Seis milhares de milhões! Percebem bem? – Mas então como devemos
proceder? – inquiriu o general.

É muito simples; é preciso reduzir essa enorme quantidade
de pólvora, conservando-lhe essa potência mecânica.

– Bom, mas por que meio? – Vou dizer-lhe – respondeu simplesmente Barbicane.

Os seus interlocutores devoravam-no com os olhos.

– Nada mais fácil, realmente – respondeu por fim Barbicane -, do
que reduzir essa quantidade de pólvora a um volume quatro vezes menor.
Todos conhecem essa curiosa maté- ria que constitui os tecidos elementares
dos vegetais, e que se chama celulose.

– Ah! – exclamou o maior -, compreendo-o, meu caro Barbicane.

– Essa matéria – disse o presidente – obtém-se no estado de
pureza Perfeita em diversos corpos, e sobretudo do algodão, que não
é mais do que a penugem das sementes do algodoeiro. Ora, o algodão,
combinado com o ácido azótico a frio, transforma-se numa substância
eminentemente insolúvel, eminentemente combustível, eminentemente
explosiva. Há alguns anos, em 1832, um químico francês,
Braconnot, descobriu essa substância, à qual chamou xiloidina.
Em 1838, outro francês, Pelouze, estudou as diversas propriedades dessa
substância, e, por fim, em 1846, Schonbein, professor de química
em Basiléia, a prop ôs como pólvora para a guerra. Essa
pólvora é o algodão azótico…

– Ou piróxilo – respondeu Elphiston.

– Ou o algodão-pólvora – replicou Morgan.

– Não há então nenhum nome americano a pôr por
baixo dessa descoberta? – exclamou J. T. Maston, impelido por um vivo sentimento
de amor-próprio nacional.

_ Infelizmente, não há nenhum – respondeu o major.

– No entanto, para satisfazer Maston – continuou o presidente -, dir-lhe-ei
que os trabalhos de um dos nossos concidadãos podem ser ligados ao
estudo da celulose, pois o colódio, que é um dos principais
agentes da fotografia, é simplesmente piróxilo dissolvido em
éter misturado com álcool, e foi descoberto por Maynard, que
nessa altura era estudante de Medicina em Boston.

– Um viva por Maynard e pelo algodão-pólvora! – exclamou então
o barulhento secretário do Clube do Canhão.

– Mas, voltando ao piróxilo – disse Barbicane.

– Conhecem as suas propriedades, que o tornam tão precioso para nós;
prepara-se com a maior das facilidades; mergulha-se o algodão em ácido
azófico fumegante, durante quinze minutos, depois lava-se em muita
água, secase e está pronto.

– Nada mais simples, realmente – anuiu Morgan.

– Além disso, o piróxilo é inalterável pela
umidade, qualidade preciosa a nosso ver, pois serão necessários
vários dias para carregar o canhão; é inflamável
a cento e setenta graus centígrados, em vez de duzentos e quarenta,
e a sua deflagração é tão rápida que pode
ser inflamado com pólvora vulgar sem que esta tenha tempo de se incendiar.

– Perfeito! – exclamou o major.

– No, entanto, é mais caro! – Que importa? – opinou J. T. Maston.

– Finalmente, comunica aos projéteis uma velocidade quatro vezes
superior à da pólvora. Acrescentarei mesmo que se lhe misturarmos
oito décimos do seu peso de nitrato de potássio, a sua potência
será ainda aumentada numa grande proporção.

Isso será necessário? – perguntou o major.

Creio que não – respondeu Barbicane. – Assim, em vez de um milhão
e seiscentas mil libras de pólvora, precisaremos apenas de quatrocentas
mil libras de algodão-pólvora, e, como se pode sem perigo comprimir
quinhentas libras de algodão em vinte e sete pés cúbicos,
essa matéria não ocupará senão uma altura de vinte
toesas no nosso columbiad.

– Desse modo, a bala terá de percorrer mais de setecentos pés
do cano de canhão, sob o esforço de seis milhões de litros
de gás, antes de levantar vôo para o astro da noite.

Nessa altura, J. T. Maston não pôde conter a sua emoção;
lançou-se nos braços do seu amigo com a violência de um
projétil e tê-lo-ia atirado abaixo se Barbicane não fosse
construído à prova de bomba.

Esse incidente encerrou a terceira sessão da comissão.

Barbicane e os seus audaciosos colegas, aos quais nada parecia impossível,
acabavam de resolver a questão tão complexa do projétil,
do canhão e da pólvora. 0 plano deles estava preparado. Restava
apenas executá-lo.

– Um simples pormenor, uma bagatela – dizia J. T. Maston.

Capítulo V – O Capitão Nicoles

0 público americano analisava com enorme interesse até os mais
insignificantes pormenores do empreendimento do Clube do Canhão e seguia
dia a dia as discussões da Comiss ão. Os mais simples preparativos
desse grande empreendimento, as questões de números que levantava,
as dificuldades mecânicas a resolver, em uma palavra, o ?seu acionamento?
apaixonava a opinião. pública ao mais alto grau.

Mais de um ano iria decorrer entre o início dos trabalhos e o seu
final; mas esse lapso de tempo não devia ser vazio de emoções;
o lugar a escolher para a construção do canh ão e do
projétil, o fabrico dos moldes, a fundição do columbiad,
o seu perigoso carregamento – tudo isso era mais do que o necessário
para excitar a curiosidade pública.

Uma vez lançado, o projétil escaparia aos olhares em poucos
décimos de segundo; o que lhe sucederia depois, o modo como ele se
comportaria no espaço, e por que forma atingiria a Lua, só um
pequeno número de privilegiados poderia ver com os seus próprios
olhos. Assim, os preparativos da experiência e os pormenores da execução
é que constituiriam o verdadeiro interesse para o público em
geral.

No entanto, o atrativo puramente científico do empreendimento foi
de súbito superexcitado por um incidente.

Sabe-se as numerosas legiões de admiradores e de amigos que o projeto
de Barbicane dera ao seu autor. No entanto, por mais honrosa, por mais extraordinária
que fos48 se, essa maioria não era a unanimidade. Um só homem,
um só em todos os Estados Unidos, protestou contra a tentativa do Clube
do Canhão; com violência, e Barbicane, tal é a natureza
humana, foi mais sensível a essa única voz discordante do que
aos aplausos de todos os outros.

No entanto, conhecia bem o motivo dessa antipatia, onde partia essa inimizade
solitária, porque era pessoal e de data, antiga, e por fim em que rivalidades
de amor próprio criaria raízes.

Aquele inimigo perseverante, nunca o presidente do Clube do Canhão
o tinha visto. Felizmente, pois o encontro desses dois homens teria certamente
tido más conseqüências.

Esse rival era um sábio como Barbicane, uma natureza orgulhosa, audaciosa,
convencida, violenta, um puro ianque.

Chamavam-lhe o Capitão Nicoles. Morava em Filadélfia.

Ninguém ignora a curiosa luta que se estabeleceu, durante a Guerra
de Secessão, entre o projétil e a couraça dos navios
blindados; aquele destinava-se a perfurar esta; esta estava decidida a não
se deixar perfurar. Daí adveio uma transformação radical
nos diversos Estados e nos dois continentes.

A bala e a couraça lutaram com um encarniçamento sem precedentes,
uma aumentando o seu volume, a outra adquirindo constantemente mais espessura.

Os navios, armados de peças de artilharia formidáveis, navegavam
debaixo de fogo ao abrigo da sua invulnerável carapaça. Os Merrimac,
os Monitor, os Ram Tênesse, os Weckausen lançavam projéteis
enormes, depois de se terem couraçado contra os projéteis dos
outros. Faziam aos outros aquilo que não queriam que lhes fizessem,
principio imoral sobre o qual se baseia toda a arte da guerra.

Ora, se Barbicane tinha sido um grande fundidor de projéteis, Nicoles
fora um grande forjador de chapas para couraças.

Um fundia noite e dia em Baltimore e o outro forjava dia e noite em Filadélfia.
Cada um seguia uma corrente de idéias radicalmente opostas.

Logo que Barbicane inventava uma nova bala, Nicoles in ventava nova couraça.
0 presidente do Clube do Canhão passava a vida, abrindo buracos, o
capitão impedindo que eles se abrissem. Daí nasceu uma rivalidade
que chegava a atingir as pessoas. Nicoles aparecia nos sonhos de Barbicane
sob a forma de uma couraça impenetrável contra a qual ele se
ia quebrar, e Barbicane aparecia nos sonhos de Nicoles como um projétil
que o trespassava de lado a lado.

No entanto, se bem que seguissem duas linhas divergentes, esses sábios
acabariam? por se encontrar, apesar de todos os axiomas da geometria; mas
seria naturalmente no terreno do duelo. Felizmente para esses cidadãos
tão úteis ao seu país, uma distancia de cinqüenta
a sessenta milhas separava-os um do outro, e os amigos de ambos encheram esse
caminho de tais obstáculos que nunca se encontraram.

Nesse momento, qual dos dois tinham levado a melhor é que não
se sabia; os resultados obtidos tornavam difícil uma apreciação
justa. No fim das contas, no entanto, o mais plausível era que a couraça
deveria ceder à bala.

No entanto, os homens competentes tinham dúvidas. Nas últimas
experiências, os projéteis cifindro-cônícos de Barbicane
foram quebrar-se como alfinetes nas placas de Nicoles; nesse dia, o fundador
de Filadélfia julgou-se vitorioso e passou a desprezar o seu rival;
mas, quando mais tarde este substituiu as balas cônicas por simples
obuses de seiscentas libras, o capitão teve de modificar a sua atitude.

Realmente, esses projéteis, se bem que por uma velocidade medíocre,
partiram, perfuraram, fizeram voar em pedaços as chapas do melhor metal.

Ora, estavam as coisas nesse ponto, a vitória parecia dever ficar
com a bala, quando a guerra acabou no próprio dia em que Nicoles terminava
uma nova couraça de aço forjado! Era uma obra-prima no seu gênero;
desafiava todos os projéteis do mundo. 0 capitão fê-la
transportar para o polígono de Washington, desafiando o presidente
do Clube do Canhão a quebrá-la. Barbicane, como a paz tinha
sido assinada, não quis tentar a experiência.

Então, Nicoles, furioso, ofereceu-se para expor a sua chapa ao choque
das balas mais inverossímeis, maciças, ocas, esféricas
ou cônicas. Recusa do presidente, que decididamente não queria
comprometer o seu último êxito.

Nicoles, ainda mais estimulado por aquela obstinação inqualificável,
quis tentar Barbicane, dando-lhe de partida todas as oportunidades. Propôs,
inclusive, pôr a sua chapa a duzentas jardas do canhão. Barbicane
obstinou-se na sua recusa. A cem jardas? Nem sequer a setenta e cinco.

– Então, a cinqüenta – clamou o capitão pela voz dos
jornais.

– Colocarei a minha chapa a vinte e cinco jardas e ficarei por detrás
dela! Barbicane mandou responder que, mesmo que o Capitão Nicoles se
pusesse na frente da chapa; ele não dispararia.

Nicoles, ao saber dessa réplica, não se conteve; insinuou
que a covardia era coisa indivisível, que um homem que se recusa a
disparar um tiro de canhão estava, por certo, muito perto de ter medo;
que, em suma, esses artilheiros que se batem a seis milhas de distância
substituíam prudentemente a coragem individual pelas fórmulas
matemáticas, e que, finalmente, há tanta coragem em esperar
tranqüilamente uma bala atrás de uma couraça, como em arremessá-la
segundo todas as regras da arte.

A essas insinuações, Barbicane nada respondeu; talvez nem
sequer as conhecesse, pois nessa altura os cálculos para o seu grande
empreendimento absorviam-no inteiramente.

Quando Barbicane fez a sua famosa comunicação ao Clube do
Canhão, a cólera do Capitão Nicoles subiu ao paroxismo.

Misturava-se nele uma inveja terrível e um supremo sentimento de
impotência! Como iria inventar qualquer coisa melhor que esse columbiad
de novecentos pés! Que coura ça poderia resistira um projétil
de vinte mil libras! Nicoles ficou primeiro aterrado, aniquilado, partido
por aquele ?tiro de canhão?, depois ergueu-se e resolveu esmagar a
proposta com o peso dos seus argumentos.

Atacou, portanto, muito violentamente os trabalhos do Clube do Canhão;
escreveu numerosas cartas, que os jornais não se recusaram a publicar.
Tentou demolir cientificamente a obra de Barbicane. Uma vez abertas as hostilidades,
chamou em sua ajuda argumentos de toda a ordem e, para falar a verdade, muitas
vezes tendenciosos e de baixo quilate.

Primeiro, Barbicane foi violentamente atacado nos algarismos indicados por
ele. Nicoles procurou provar por A + B a falsidade das fórmulas e acusou-o
de ignorar os princípios fundamentais da balística. Entre outros
erros e segundo os seus cálculos, dizia Nicoles, era absolutamente
impossível imprimir a qualquer corpo uma velocidade de doze mil jardas
por segundo; sustentou, de álgebra na mão, que, mesmo com essa
velocidade, um projétil tão pesado transporia os limites da
atmosfera terrestre! Não atingiria sequer as oito mil léguas.
Mais ainda. Dado, mas não concedido, que se pudesse conseguir tal velocidade,
o obus – não resistiria à pressão dos gases desenvolvidos
pela inflamação de um milhão e seiscentas mi! libras
de pólvora, e mesmo que resistisse a essa pressão não
suportaria pelo menos uma tal temperatura. Certamente se fundiria à
saída do columbiad e voltaria a cair como chuva de fogo sobre a cabeça
dos imprudentes espectadores.

Barbicane nem sequer pestanejava ao saber desses ataques e prosseguia a
sua obra.

Então, Nicoles tratou a questão focalizando outros aspectos;
sem falar da sua inutilidade sob todos os pontos de vista, considerava a experiência
como muito perigosa, quer para os cidadãos que viessem a autorizar
com a sua presen ça um espetáculo tão condenável,
quer para as cidades e vilas vizinhas desse deplorável canhão;
fez igualmente observar que se o projétil não atingisse o seu
objetivo – resultado absolutamente inalcançável – cairia fatalmente
sobre a Terra, e a queda de tal massa, multiplicada pelo quadrado da sua velocidade,
poria singularmente em risco qualquer ponto do Globo. Portanto, em tais circunstâncias,
e sem atacar os direitos dos cidadãos livres, tratava-se de um caso
em que se tornava necessária a intervenção do Governo,
uma vez que não se devia pôr em risco a seguran ça de
todos para satisfazer os caprichos de um só.

Vê-se a que exagero de opinião chegou o Capitão Nicoles.

Mas era ele o único a sustentar esse ponto de vista. Assim, ninguém
prestou atenção às suas agourentas profecias.

Deixaram-no, portanto, gritar à vontade, visto que assim o desejava.
Era o defensor de uma causa perdida antecipadamente; ouviam-no mas não
o escutavam, e não conseguiu arrancar nenhum admirador ao presidente
do Clube do Canhão. Este, de resto, nem sequer se deu ao cuidado de
retorquir aos argumentos do seu rival.

Nicoles, encurralado nas suas últimas trincheiras, e não podendo
sequer pôr em jogo a sua integridade física em prol da sua causa,
resolveu arriscar o seu dinheiro. Propôs, portanto, publicamente, no
Enquirer de Richmond, uma série de apostas concebidas nestes termos
e segundo uma propor ção crescente.

Apostou:

1 – Que os fundos necessários à empresa Clube do Canhão
não seriam atingidos ………………………………………………………..
1.000 dólares

2 – Que a operação da fundição de um canhão
de novecentos pés em impraticável e não teria……………………………………………………………………………………….2.000
dólares

3 – Que seria impossível carregar o columbiad, e que o piróxilo
se incendiaria sob a pressão do projétil ………………………………………………………………………..3.000
dólares

4 – Que o columbiad explodiria ao primeiro tiro……………………………….
4.000 dólares

5 – Que o projétil não só não alcançaria
uma distância de seis milhas, mas que cairia na terra uns segundos após
ter sido lançado………………………………………5.000
dólares

Como se vê, era uma quantia importante que arriscava Nicoles, apenas
para sustentar a sua invencível obstinação.

Apesar da importância da aposta, recebeu, a 19 de outubro, uma carta
lacrada, de um soberbo laconismo, concebida nestes termos:

"Baltimore, 18 de outubro. – Aceito – Barbicane."

Capítulo VI A Flórida e Texas

Entretanto, restava ainda uma questão a decidir: era necess ário
escolher um local favorável para a experiência.

Segundo a recomendação do Observatório de Cambridge,
o tiro devia ser dirigido perpendicularmente ao plano do horizonte, isto é,
em direção ao zênite; ora, a Lua só sobe ao zênite
nos locais situados entre os 00 e 280 de latitude, ou, em outros termos, como
a declinação lunar máxima é apenas de 280, tratava-se,
portanto, de determinar exatamente o ponto do Globo onde será fundido
o imenso columbiad.

A 20 de outubro, estando o Clube do Canhão reunido em sessão.
magna, Barbicane levou um magnífico mapa dos Estados Unidos, de Z.
Belitropp.

. Contudo, sem lhe dar tempo para o desenrolar, J. T. Maston pediu a palavra
com a sua habitual veemência e iniciou o debate nestes termos: – Estimados
colegas. A questão que aqui se vai tratar hoje te m um a verdade ira
importância nacional, e vai dar-nos ocasião para praticar um
grande ato de patriotismo.

Os membros do Clube do Canhão olharam uns para os outros, sem saber
onde o orador queria chegar.

– Nenhum de vós – prosseguiu o orador – tem a? idéia de transigir
com a glória do seu país, e, se existe um direito que os Estados
Unidos possam reivindicar, é o de ter o formidável canhão
do Clube do Canhão.

– Ora, nas circunstâncias atuais…

– Estimado Maston… – disse o presidente.

– Permita-me desenvolver o meu pensamento – replicou o orador. – Nas circunstâncias
atuais, somos obrigados a escolher um local muito próximo do equador,
para que a experi ência se faça em boas condições…

– Se me permite… – disse Barbicane.

– Peço a livre discussão de idéias – replicou o fervoroso
J. T.

Maston -, e mantenho que o território de onde deverá partir
o glorioso projétil deve pertencer aos Estados Unidos.

– Sem dúvida! – responderam vários sócios.

– Pois bem! Visto que as nossas fronteiras não são suficientemente
extensas, uma vez que ao sul o oceano nos opõe uma barreira intransponível;
já que é preciso procurar para além dos Estados Unidos,
e buscar num país limítrofe esse vigésimo oitavo paralelo,
trata-se de um estado de guerra legítimo e proponho que se declare
guerra ao México! – Não! Isto não! – gritaram de todos
os lados.

– Não!? – replicou J. T. Maston. – Eis uma palavra que me admiro
de ouvir neste recinto! Mas atendei!…

– Nunca! Nunca! – gritou o fogoso orador. – Mais cedo ou mais tarde essa
guerra há-de fazer-se, e peço que ela comece hoje mesmo.

– Maston! – gritou Barbicane, fazendo soar ruidosamente a sua campainha.
– retiro-lhe a palavra! Maston ainda quis replicar, mas alguns dos seus colegas
conseguiram contê-lo.

– Concordo – disse Barbicane – que a experiência só pode e
deve ser tentada em território dos Estados Unidos; mas, se o meu impaciente
amigo me tivesse deixado falar, se tivesse olhado para um mapa, saberia que
é perfeitamente inútil declarar guerra aos nossos vizinhos,
pois veria que certas fronteiras dos Estados Unidos se estendem para além
do vigésimo oitavo paralelo. Vejam que temos à nossa disposi
ção toda a parte meridional do Texas e da Flórida.

0 incidente não teve conseqüências. No entanto, foi com
pena que J. T. Maston se deixou convencer. Ficou, portanto, decidido que o
columbiad seria fundido e moldado ou no solo do Texas ou no da Flórida.
Mas essa decisão iria suscitar uma rivalidade sem precedentes nas cidades
desses dois Estados.

0 vigésimo oitavo paralelo, no seu encontro com a costa americana,
atravessa a Península da Flórida e divide-a em duas zonas mais
ou menos iguais. Depois, lançando-se no golfo do México, passa
pelo arco formado pelas costas do Alabama, do Mississipi e da Luisiana. Daí
passa ao Texas, do qual corta uma saliência, prolonga-se através
do México, transpõe Sonora, salta por cima da velha Califórnia.
e vai perder-se nos mares do Pacífico. Não havia, portanto,
senão as regiões da Flórida e do Texas, situadas ao sul
desse paralelo, que estivessem nas condições de latitude recomendadas
pelo Observatório de Cambridge.

1 A Flórida, na sua região meridional, não tem cidades
importantes.

Está apenas salpicada de fortes militares que asseguram a defesa
contra os Índios errantes. Uma só cidade, Tampa, podia reclamar
em favor de sua situação na disputa e apresentar-se com algumas
pretensões a ser a escolhida.

No Texas, pelo contrário, as cidades são mais numerosas e
mais importantes. Corpus-Christi, no Condado de Nueces, e todas as cidades
situadas ao longo do Rio Bravo, tais como Laredo, Comalites, San-Ignacio;
no Web, tais como Roma, Rio Grande City; no Starr, tais como Edimburgo; no
Hidalgo, Santa Rita e Panda; Brownsville no Cameran, formaram uma liga imponente
contra as pretensões da Flórida.

Assim, mal foi conhecida a decisão, os deputados do Texas e da Flórida
chegaram a Baltimore pela via mais rápida. A partir desse momento o
Presidente Barbicane e os membros mais influentes do Clube do Canhão
foram ,assediados dia e noite por formidáveis reclamações.
Se sete cidades da Grécia disputaram entre si a honra de ter visto
nascer Homero, aqui dois Estados inteiros ameaçavam baterse por causa
de um canhão.

0 presidente Barbicane não sabia o que fazer. As notas, os documentos,
as cartas cheias de ameaças choviam sobre a sua casa, Que partido deveria
tomar? No que se referia às condições do solo, à
facilidade de comunicações, da rapidez de transportes, os direitos
dos dois Estados eram verdadeiramente iguais. Quanto às personalidades
políticas, não tinham nada a ver com a questão.

Ora, essa hesitação, esse embaraço durava já
há certo tempo, quando Barbicane resolveu sair dele de vez: reuniu
os seus colegas e a solução que lhes propôs foi, como
vão ver, profundamente sensata.

– Pensando bem disse ele -, o que se está passando entre a Flórida
e o Texas reproduzir-se-á entre as cidades do Estado favorecido. A
rivalidade descerá do gênero à espé- cie, do Estado
à cidade e assim continuará. Ora, o Texas possui doze cidades
com as condições requeridas, que disputar ão entre si
a honra do empreendimento e nos arranjar ão novos aborrecimentos, ao
passo que na Flórida existe apenas uma cidade com as condições
necessárias. Vamos, pois, para a Flórida e para Tampa! Esta
decisão, tomada pública, aterrou os deputados do Texas. Apoderou-se
deles um furor indescritível e chegaram mesmo a dirigir provocações
abomináveis aos diversos membros do Clube do Canhão. Os magistrados
de Baltimore tinham apenas um partido a tomar e tomaramno.

Mandaram preparar um trem especial, meteram nele os texanos, de boa ou má
vontade, e obrigaram-nos a deixar a cidade a uma velocidade de trinta milhas
por hora.

Contudo, apesar de terem sido levados a tal velocidade, ainda tiveram tempo
de lançar um último e ameaçador sarcasmo aos seus adversários.

Fazendo alusão à pouca largura da Flórida, uma simples
península apertada entre dois mares, afirmaram que não resistiria
ao abalo do tiro e que se despedaçaria.

– Pois bem! Que se despedace! – responderam os da Flórida, com um
laconismo digno dos tempos antigos.

Capítulo VII – Colina das pedras

Resolvidas as dificuldades astronômicas, mecânicas e topogr áficas,
surgiu a questão do dinheiro. Tratava-se de arranjar uma soma enorme
para a execução do projeto. Nenhum particular, nenhum Estado
mesmo, poderia dispor dos milhões necessários.

0 Presidente Barbicane tomou, portanto, o partido de fazer do caso um assunto
de interesse universal e pedira todos os povos a sua colaboração
financeira. Era ao mesmo tempo o direito e o dever de toda a Terra intervir
nos- assuntos do seu satélite. A subscrição aberta com
esse objetivo estendeu- se de Baltimore a todo o Mundo.

A subscrição viria a ter um êxito para além de
toda a expectativa, não obstante tratar-se de quantias dadas, não
emprestadas. A operação em puramente desinteressada no sentido
literal da palavra, e não oferecia possibilidade alguma de lucro.

0 efeito da comunicação de Barbicane não se detivera
nas fronteiras dos Estados Unidos: atravessam o Atlântico e o Pacífico,
invadindo simultaneamente a Ásia e a Europa, a África e a Oceania.
Os observatórios dos Estados Unidos puseram-se imediatamente em ligação
com os observató- rios de outros países. Alguns, como os de
Paris, de São Petersburgo, do Cabo, de Berlim, de Altona, de Estocolmo,
de Varsóvia, de Hamburgo, de Buda, de Bolonha, de Malta, de Lisboa,
de Benares, de Madrasta, de Pequim – enviaram os seus cumprimentos ao Clube
do Canhão; outros mantiveram uma prudente expectativa.

Quanto ao Observatório de Greenwich, apoiado pelos outros vinte e
dois estabelecimentos astronômicos da Grã- Bretanha, foi peremptório:
negou ousadamente a possibilidade de êxito, e adotou as teorias do Capitão
Nicoles. Além disso, enquanto diversas sociedades científicas
prometiam enviar delegados a Tampa, o pessoal do Observatório de Greenwich,
reunido em sessão, passou bruscamente para:* a ordem do dia depois
de conhecida e rejeitada a proposta de Barbicane. Era a bela e boa inveja
inglesa e nada mais.

Resumindo: o efeito foi excelente no mundo científico, e daí
passou para as multidões, que, de uma maneira geral, se apaixonaram
pela questão. Esse fato tinha grande import ância, visto que
as massas iam ser chamadas a contribuir comum capital considerável.

A 8 de outubro, já o Presidente Barbicane havia lançado um
manifesto cheio de entusiasmo, no qual apelava para ?todos os homens de boa
vontade da Terra?. Esse documento, traduzido em todas as línguas, teve
grande êxito.

Foram abertas subscrições nas principais cidades dos Estados
Unidos para serem centralizadas no Banco de Baltimore, em Baltimore Street,
número 9. A subscrição estendeu-se pelos diferentes países
dos dois continentes.

Três dias após o manifesto do Presidente Barbicane, eram recebidos
quatro milhões de dólares nas diferentes cidades dos Estados
Unidos. Com tal quantia o Clube do Canhão podia desde logo começar
o seu projeto.

Contudo, alguns dias mais tarde, os Estados Unidos ficaram a saber que as
subscrições feitas no estrangeiro eram um verdadeiro êxito:
certos países distinguiam-se pela sua generosidade. Outros abriam a
bolsa menos facilmente.

Questão de temperamento.

. Eram cinco milhões quatrocentos e quarenta e seis mil seiscentos
e setenta e cinco dólares, que o público havia despejado nos
cofres do Clube do Canhão.

Que ninguém se surpreenda com a importância de tal soma.

Os trabalhos da fundição e brocagem, obra de pedra e cal,
do transporte dos operários, a sua instalação numa região
quase desabitada, a construção de fomos e de edifícios,
aquisição das ferramentas para as fábricas, a pólvora,
o projétil, deviam, segundo os cálculos, absorver quase inteiramente
essa quantia?. Certos tiros de canhão na Guerra da Secessão
custaram mil dólares; o do Presidente Barbicane, Único na história
da artilharia, podia bem custar cinco mil vezes mais.

A 20 de outubro, foi assinado um contrato com a fábrica de Goldspring,
perto de Nova Iorque, que, durante a guerra, tinha fornecido a Parrott os
seus melhores canhões.

Ficou estipulado entre as partes contratantes que a fábrica de Goldspring
se comprometia a transportar para Tampa, na Flórida Meridional, o material
necessário para a fundição do columbiad. Essa operação
deveria estar terminada, o mais tardar, no dia 15 de outubro próximo,
e o canhão devia ser entregue em bom estado, sob pena de uma indenização
de cem dólares por dia até o momento em que a Lua se apresentasse
nas mesmas condições, isto é, por quantos dias se podem
contar em dezoito anos e onze dias. 0 contato com os operários, o seu
pagamento, os arranjos necessários competiam à companhia de
Goldspring.

Este contrato, feito em duplicata e de bona fide, foi assinado por 1. Barbicane,
presidente do Clube do Canhão e J.

Murchison, como diretor da fábrica de Goldspring, tendo ambas as
partes dado plena aprovação às cláusulas estipuladas.

Desde a escolha feita pelos sócios do Clube do Canhão em detrimento
do Texas, toda a gente na América onde todos sabem ler, se achou no
dever de estudar geografia da Flórida. Nunca os livreiros venderam
tanto exemplares do Bartrams TravelinRorida, do Roman,, Natural History of
Fast and West Rida, do Wiflà2m?,, Territory of Florida, do Ck1and on
the Culture of the Sugar-Cane in East Florida. Foi preciso imprimir novas
e novas edições. Era um furor.

Barbicane tinha mais que fazer do que ler; queria ver com os seus Próprios
olhos e escolher a Posição do columbiad.

Assim, sem perder um instante, pôs à disposição
do Observat ório de Cambridge os fundos para a construção
de u telescópio e tratou com a casa Breadwill & Co., de Albany,
a fabricação do projétil de alumínio, e depois
deixou Baltimore, acompanhado por J . T. Maston, pelo Major Elphiston e pelo
diretor da fábrica de Goldspring.

No dia seguinte, os quatros companheiros chegaram a Nova Orleães.
AR embarcaram imediatamente no Também, aviso da Marinha, que o Governo
pusera à sua disposição.

Aquecidas as fornalhas, em poucos momentos deixaram de ver a costa da Luisiana.

Não foi longa a viagem. Dois dias, 400 milhas, tendo o navio chegado
à vista da costa da Flórida. Ao aproximarse, Barbicane viu-se
em presença de uma terra baixa, plana, com aparência de muito
pouco fértil. Depois de ter passado por unia série de enseadas
ricas em ostras e lagostas, o Tampko chegou finalmente à Baía
do Espírito Santo.

Essa baía divide-se em duas barras alongadas, a de Tampa e a de Hiffisboro,
cuja embocadura o navio. Pouco tempo depois, apareceu o Forte Broocke, com
as suas baterias erguidas acima das ondas, e surgiu a Cidade de Tampa, negligentemente
recostada no fundo do pequeno porto natural formado pela foz do Rio Hillisboro.

Foi ali que o Tampouco ancorou, no dia 22 de outubro, às sete horas
da noite; os quatro passagens desembarcaram imediatamente.

Barbicane sentiu o coração palpitar com violência quando
pisou o solo da Flórida; parecia tateá-lo com os pés,
como faz um arquiteto a uma casa cuja solidez pretenda experi mentar.

J. T. Maston escavava a terra com a ponta do seu gancho.

– Senhores – disse então Barbicane -, não temos tempo a perder,
e a partir de amanhã montaremos a cavalo a fim de efetuar um primeiro
reconhecimento ao território.

No momento em que Barbicane desembarcou, os três má habitantes
de Tampa tinham ido ao seu encontro, honra bem merecida pelo presidente do
Clube do Canhão que os favorecem com a sua escolha. Receberam-no no
meio de aclamações formidáveis; mas Barbicane fugiu às
ovações e dirigiu-se para o seu quarto no Hotel Franklin, negandose
a receber quem quer que fosse. 0 papel de homem célebre não
se coadunava com ele.

No dia seguinte, 23 de outubro, pequenos cavalos de raça espanhola,
cheios de vigor e de fogo, relinchavam sob as suas janelas. Mas em vez de
quatro cavalos, encontravam- se ali cinqüenta, com os seus cavaleiros.
Barbicane desceu, acompanhado pelos companheiros, e ficou admirado por se
encontrar no meio de semelhante cavalaria.

Observou também que cada cavaleiro trazia uma carabina a tiracolo
e estava também armado de pistolas.

A razão de tal armamento foi-lhe dada por um jovem habitante da Flórida,
que lhe disse: – Senhor, é por causa dos índios.

– Que índios? – Os selvagens que percorrem achamos por isso prudente
escoltar-vos.

– Ora! – murmurou J. T. Maston, subindo para a sua montaria.

– É mais seguro! – replicou o jovem natural da Flórida.

– Agradeço-lhe, senhores – disse Barbicane -; e agora, a caminho!
0 pequeno grupo partiu e desapareceu pouco depois numa nuvem de poeira. Eram
cinco horas da manhã. 0 Sol resplandecia e o termômetro marcava
já vinte e oito graus centígrados; mas uma fresca brisa marítima
amenizava essa temperatura excessiva.

Barbicane, ao deixar Tampa, desceu para o sul e seguiu ao longo da costa,
de modo a atingir o riacho. Esse riozinho corre para a Baía Hillisboro,
vinte quilômetro abaixo de Tampa.

Barbicane e sua escolta correram ao longo da margem direita subindo para
leste. Em breve, as ondas da baía desapareceram atrás de um
acidente do terreno e só a campina se oferecia aos olhares dos cavaleiros.

A Florida divide-se em duas partes: uma ao norte, mais populosa, menos abandonada,
tem Taffahassee por capital, e Pensacola, um dos principais arsenais marítimos
dos Estados Unidos; a outra, comprimida entre o Atlântico e o golfo
do México, que a estreitam entre as suas águas, é uma
península corroída pela corrente do Gulf, rio, língua
de terra perdida no meio de um pequeno arquipélago, constantemente
dobrada pelos pequenos navios do canal das Baamas. É a sentinela avançada
do as pradarias, e golfo das grandes tempestades. A superfície desse
Estado é de trinta e oito milhões, trinta e três mil duzentos
e sessenta e sete acres, dentro dos quais era preciso escolher um local situado
para aquém do vigésimo oitavo paralelo e em condi ções
convenientes para o empreendimento. Barbicane, à medida que calvagava,
examinava atentamente a configura ção e a particular distribuição
do solo.

A Florida, descoberta por Juan Ponce de Léon, em 1512, no dia de
Ramos, chamou-se primeiro Páscoa Flórida. Merecia bem pouco
esse nome encantador, dado às suas costas áridas e queimadas.
Mas, a poucos quilômetros da margem, a natureza do terreno mudou pouco
a pouco, e a região mostrou-se digna do primitivo nome; o solo era
entrecortado por uma rede de pequenos cursos de água, de rios, de charcos,
de pequenos lagos; julgar-se-ia a Holanda ou a Guiana; mas o campo dentro
em pouco erguia- se sensivelmente e em breve começou a mostrar as suas
planícies cultivadas, onde se davam todas as produ- ções
vegetais do Norte e do Sul; campos imensos, que o sol dos trópicos
e as águas conservadas na argila do solo beneficiavam, e depois, finalmente,
os seus prados cobertos de ananases, de inhames, de tabaco, de arroz, de algod
ão e de cana-de-açúcar, que se estendiam a perder de
vista, exibindo as suas imensas riquezas com descuidada prodigalidade.

Barbicane pareceu muito satisfeito com a progressiva eleva ção
do terreno, e, quando J. T. Maston o interrogou a esse respeito, disse: –
Meu digno amigo: temos um interesse primordial em fundir o nosso columbiad
em terreno extremamente alto.

– Para ficar mais perto da Lua? – indagou o secretário do Clube do
Canhão.

– Não – respondeu Barbicane, sorrindo. – Que importam alguns metros
a mais ou a menos? Não, mas no meio de terrenos elevados processar-se-ão
mais facilmente: não teremos de lutar contra as águas, o que
nos evitará tubagens compridas e caras, e isso é um pormenor
a considerar, quando se trata de abrir um poço de trezentos metros
de profundidade.

– Tem razão – disse então o engenheiro Murchison.

É preciso, tanto quanto possível, evitar os cursos de água
durante a perfuração; mas se encontrarmos nascentes não
tem importância; esgotá-las-emos com as nossas máquinas,
ou desviá-las-emos. Não se trata aqui de um poço artesiano,
estreito e escuro, onde a sonda, o cubo, a verruma, em uma palavra, todas
as ferramentas do perfurador trabalham às cegas. Não?, nós
trabalhamos sob o céu aberto, à luz do dia, com a pá
e a picareta na mão, e com o auxílio de algumas minas o nosso
trabalho será feito rapidamente.

– No entanto – replicou Barbicane -, se, pela elevação do
solo ou pela sua natureza, nós pudermos evitar a luta com as águas
subterrâneas, o trabalho será mais rápido e mais perfeito;
procuraremos, portanto, abrir o nosso fosso num terreno situado algumas centenas
de metros acima do ní- vel do mar.

– Tem razão, senhor Barbicane. – E, se não me engano, em breve
encontraremos um local adequado.

– Ah, como gostaria de estar já ouvindo o primeiro golpe de picareta!
– disse o presidente.

– E eu o último! – exclamou J. T. Maston.

– Lá chegaremos, senhores – respondeu o engenheiro -, e, podem crer,
a companhia de Goldspring não terá de lhes pagar a indenização
por mora.

– Por Santa Bárbara!, tem razão – replicou J. T. Maston –
cem dólares por dia até que a Lua se apresente nas mesmas condições,
isto é, durante dezoito anos e onze dias.

Sabe que seriam seiscentos e cinqüenta e oito mil e cem dólares?
– Não senhor, não sabemos – respondeu o engenheiro -, nem teremos
necessidade de o saber.

Por volta das dez horas da manhã, o pequeno de estacamento tinha
percorrido uma boa dúzia de milhas, aos campos férteis sucedera-se
a região das florestas. Ali cresciam as árvores mais variadas
corri uma profusão tropical.

Essas florestas quase impenetráveis eram formadas por limoeiros,
laranjeiras, romãzeiras, figueiras, oliveiras, damasqueiros, bananeiras
e grandes cepas de vinha, cujos frutos e flores rivalizavam em cor e perfume.
A sombra perfumada dessas árvores magníficas esvoaçava
todo um mundo de pássaros de cores brilhantes, no meio dos quais se
distinguiam principalmente os airões, cujo ninho devia ser um cofre
para ser digno dessas preciosidades emplumadas.

J. T. Maston e o major não podiam encontrar-se na presen ça
dessa natureza opulenta sem admirar tão esplêndidas belezas.
Mas o Presidente Barbicane, pouco sensível a essas maravilhas, tinha
pressa de continuar; aquela região tão fértil desagradava-lhe
pela sua própria fertilidade. Sem ser hidróscopo, sentia a água
debaixo dos seus pés e procurava, em vão, sinais de uma incontestável
aridez.

No entanto, iam avançando; foi preciso passar a vau vários
rios, e não sem perigo, pois estavam infestados de crocodilos de quinze
a dezoito pés de comprimento. J. T. Maston ameaçou-os ousadamente
com o seu temível gancho, mas só conseguiu ameaçar os
pelicanos, as narcejas e outras aves selvagens, habitantes daquelas margens,
enquanto grandes flamingos vermelhos o olhavam com ar estúpido.

Finalmente, esses hóspedes das zonas úmidas desapareceram
por sua vez; árvores menos espessas agrupavamse em bosques pouco densos;
alguns grupos isolados destacavam- se no meio de planícies infinitas,
onde perpassavam bandos de gamos assustados.

– Até que enfim! – gritou Barbicane, erguendo-se nos estribos.

– Aqui está a região dos pinheiros! – E dos selvagens! – acrescentou
o major.

Com efeito, surgiram no horizonte alguns índios; agitavamse, corriam
de um lado para o outro nos seus cavalos.

rápidos, brandindo longas lanças ou disparando as suas espingardas
de detonação surda; de resto, limitaram-se a essas demonstrações
hostis, sem inquietarem Barbicane e os seus companheiros., Estes encontravam-se
então no meio de uma planície rochosa, vasto espaço descoberto
de uma extensão de vários acres, que o sol inundava com os seus
raios escaldantes.

Era formado por uma grande elevação do terreno, que parecia
oferecer aos membros do Clube do Canhão todas as condições
requeridas para a instalação do columbiad.

– Alto! – exclamou Barbicane, parando. – Este lugar tem algum nome? – Chama-se
Colina das Pedras – esclareceu um dos da Flórida.

Barbicane, sem dizer palavra, desmontou, pegou nos seus instrumentos e começou
a calcular a posição com uma precisão extrema; o pequeno
grupo, reunido em volta dele, observava-o num silêncio profundo.

Nesse momento, o Sol passava no meridiano. Barbicane, passados alguns momentos,
enumerou rapidamente o resultado das suas observações: – Este
local fica situado a trezentas toesas acima do nível do mar, a 270
7′ de latitude e 50 7′ de longitude oeste; pela natureza árida e rochosa,
parece-me oferecer todas as condições favoráveis à
experiência; será, portanto, nesta planície que se erguerão
os nossos armazéns, as nossas oficinas, os nossos fornos, os dormitórios
dos nossos oper ários, e será daqui, daqui mesmo – repetiu batendo
com o pé no chão no cimo da Colina das Pedras -, que o nosso
projétil partirá para os espaços do mundo solar!

Capítulo VIII – Fundição da peça

Essa mesma noite, Barbicane e os seus companheiros voltavam a Tampa e o engenheiro
Murchison reembarcava no Tampico com destino a Nova Orleães, com o
intuito de recrutar um exército de operários e conseguir a maior
parte do material. Os membros do Clube do Canhão permaneceram em Tampa,
a fim de organizar os primeiros trabalhos com o auxílio do pessoal
da região.

Oito dias após a sua partida, o Tampico voltava à Baía
do Espírito Santo com uma frota de barcos a vapor. Murchison reunira
mil e quinhentos trabalhadores. Nos maus dias da escravatura, teria perdido
o seu tempo e o seu trabalho.

Mas desde que a América, a terra da liberdade, só contava
homens livres no seu seio, estes acorriam onde quer que lhes fosse oferecida
uma boa retribuição pelo seu trabalho.

Ora, o dinheiro não faltava ao Clube do Canhão; aos seus homens,
além de um salário alto, gratificações considerá-
veis e proporcionais. 0 operário que 1 tivesse embarcado para a Flórida
podia contar, depois de acabado o trabalho, com um* capital depositado em
seu nome no banco de Baltimore. A Murchison apenas se pôs, portanto,
o emba raço da escolha, e pôde mostrar-se exigente relativamente
à inteligência e habilidade dos seus operários. Podemos
acreditar que ele contratou para a sua legião de trabalhadores a elite
dos mecânicos, dos motoristas, – fundidores, caldeireiros, mineiros,
oleiros e ajudantes de todos os gê- neros, negros ou brancos, sem distinção.
Muitos deles levavam as famílias consigo. Era uma verdadeira emigração.

A 31 de outubro, às dez horas da manhã, toda essa gente desembarcava
no cais de Tampa; compreende-se o movimento e a atividade que reinavam nessa
pequena cidade que duplicava a sua população de um dia para
o outro.

Realmente, Tampa deveria ganhar muito com aquela iniciativa do Clube do
Canhão, não pelo número dos seus oper ários, que
se dirigiam imediatamente para a Colina das Pedras, mas graças à
afluência de curiosos, que convergiram pouco a pouco, de todos os pontos
do Globo, para a península da Florida. Durante os primeiros dias, ocuparamse
em descarregar os utensílios e ferramentas trazidos nos barcos, assim
como uni grande número de casas pré- fabricadas. Ao mesmo tempo,
Barbicane colocava os primeiros trilhos de uma estrada de ferro de quinze
milhas, destinada a ligar a Colina das Pedras a Tampa.

Sabe-se em que condições são construídas as
estradas de ferro na América; caprichosa nas suas voltas, ousadas nas
suas encostas, desprezando as obras de arte e a prudência, subindo colinas,
atravessando os vales, a estrada de ferro corre como um cego e sem se preocupar
com a s linhas retas; não foi dispendioso nem perturbador. No entanto,,
descarrilava e saltava com toda a liberdade. A estrada de ferro de Tampa à
Colina das Pedras foi uma simples bagatela, e não precisou nem de muito
tempo nem de muito dinheiro para que fosse construída.

Barbicane era, de resto, a alma de toda essa gente que acorrera à
sua chamada; animava-a, insuflava-lhe a sua coragem, o seu entusiasmo, a sua
convicção. Encontravase em toda a parte, sempre acompanhado
de J. T. Maston, zumbindo como uma mosca à sua volta. 0 seu espírito
prático engenhava mil invenções. Com ele não havia
obst áculo, dificuldade, embaraço algum. Ele era mineiro, pedreiro,
mecânico e artilheiro, com respostas para todas as perguntas e soluções
para todos os problemas.

Correspondia-se ativamente com o Clube do Canhão e com a fábrica
de Goldspring, e dia e noite, com as caldeiras e o vapor mantido em pressão,
o Tampico esperava as suas ordens na baía de Hillisboro.

No dia 1? de novembro, Barbicane deixou Tampa com um destacamento de trabalhadores
e logo no dia seguinte uma cidade de casas pré-fabricadas se ergueu
em redor da Colina das Pedras. Essas casas foram rodeadas por uma pali- çada,
e pelo seu movimento e ardor em breve parecia uma das grandes cidades dos
Estados Unidos. A vida foi no entanto regulada com toda a disciplina e os
trabalhos iniciaram- se numa ordem perfeita.

Sondagens cuidadosamente praticadas tinham permitido reconhecer a natureza
do terreno, e este pôde começar a ser cavado logo no dia 4 de
novembro. Nesse dia, Barbicane reuniu os chefes de oficina e disse-lhes então:
– Meus amigos, todos sabem por que os reuni nesta parte selvagem da Flórida.
Trata-se de fundir u m canhão com nove pés de diâmetro
interno, seis pés de espessura nas suas paredes e dezenove pés
e meio no seu revestimento de pedra; é, portanto, necessário
escavar um poço com o diâmetro de sessenta pés, e uma
profundidade de novecentos pés. Esta obra, considerável, deve
estar terminada em oito meses; ora, vocês têm dois milhões
quinhentos e quarenta e três mil e quatrocentos pés cúbicos
de terra para extrair em duzentos e cinqüenta e cinco dias, ou seja,
em números redondos, dez mil pés cúbicos por dia. Aquilo
que não oferecia qualquer dificuldade para mil operários trabalhando
à vontade sem embaraços será mais difícil num
espaço relativamente restrito. No entanto, visto que este trabalho
deve ser feito, far-se-á, e conto tanto com a sua coragem como com
a sua habilidade.

Às oito horas da manhã foi dada a primeira enxadada no solo
da Colina das Pedras, e desde esse momento a valente ferramenta não
ficou inativa um único instante na mão dos mineiros. Os operários
revezavam-se em turno de seis horas.

Decorrido o primeiro mês, tinha o poço atingido a profundidade
prevista para essa altura, ou seja, cento e doze pés.

Em dezembro foi duplicada essa profundidade e em janeiro triplicada. Durante
o mês de fevereiro, os trabalhadores tiveram de lutar contra um lençol
de água que surgiu atrav és da crosta terrestre. Foi necessário
utilizar bombas poderosas e aparelhos de ar comprimido para esgotar a água
e poder betumar os orifícios das nascentes, como se faz a um rombo
a bordo de um navio. Finalmente, dominaram essas malfadadas correntes. No
entanto, devido à pouca consistência do terreno, a roda cedeu
parcialmente e houve um pequeno desabamento. Imagine-se qual seria o espantoso
impulso daquele disco de pedra e cal com a altura de setenta e cinco toesas!
Esse acidente custou a vida a vários operários.

Foram necessárias três semanas para escorar o revestimento
de pedra e para voltar a colocar a pedra nas suas primitivas condições
de solidez. Mas, graças à habilidade do engenheiro e à
potência das máquinas utilizadas, voltou ao prumo a edificação,
momentaneamente comprometida, e os trabalhos de perfuração deram
prosseguimento.

Nenhum novo incidente deteve daí em diante a marcha das operações,
e a 10 de junho, vinte dias antes de expirarem os prazos fixados por Barbicane,
o poço, inteiramente revestido de pedra, atingiria a profundidade de
novecentos pés. No fundo, o trabalho dos pedreiros repousava sobre
um cubo maciço medindo trinta pés de espessura, ao passo que
no seu limite superior aflorava 0 solo.

0 Presidente Barbicane e os membros do Clube do Canhão felicitaram
calorosamente o engenheiro Murchison; o seu trabalho ciclópico fora
realizado em extraordinárias condi- ções de rapidez.

Durante esses oito meses, Barbicane não saiu nem por um instante
da Colina das Pedras; enquanto seguia de perto as operações
de perfuração, inquietava-se incessantemente com o bem-estar
e a saúde dos trabalhadores e teve a sorte de conseguir evitar epidemias
comuns às grandes aglomerações de homens, tão
desastrosas nessas regiões do Globo, expostas a todas as influências
climáticas.

É verdade que muitos operários pagaram com a vida as imprudências
inerentes a esses perigosos trabalhos; mas essas deploráveis desgraças
são impossíveis de evitar, e são pormenores com que os
americanos se preocupam muito pouco. Preocupam-se mais com a humanidade e
geral do que com o indivíduo em particular. No entanto, Barbicane professava
os princípios contrários e aplicava os em todas as ocasiões.
Assim, graças aos seus cuidados, à sua inteligência, à
sua útil intervenção nos casos difíceis, à
sua prodigiosa sagacidade, a média das catástrofes não
ultrapassou a dos países do Velho Continente citados pelo seu luxo
de precauções, entre outros a Fraliça, onde, se dá
uma média de um acidente por cada duzentos mil francos de trabalho.

Durante os oito meses que foram utilizados na operação da
perfuração, os trabalhos preparatórios da fundição
tinham sido conduzidos simultaneamente e com extrema rapidez; um estrangeiro
que chegasse na Colina das Pedras ficaria muito surpreendido com o espetáculo
que se oferecia aos seus olhos.

A seiscentas jardas do poço, e dispostos circularmente em redor desse
ponto central, erguiam-se mil e duzentos fornos de reverberação,
com a largura de seis pés cada um e separados uns dos outros por uni
intervalo de meia toesa.

A linha desenvolvida por esses mil e duzentos fornos atingia um comprimento
de duas milhas. Eram todos construídos pelo mesmo modelo, com a sua
alta chaminé quadrangular, e produziam o efeito mais singular. J. T.
Maston achava soberba essa disposição arquitetural. Lembrava-lhe
os monumentos de Washington. Para ele não existia nada mais belo, mesmo
na Grécia, ?onde, de resto, dizia ele, ?nunca estive?.

Lembram-se certamente de que na terceira sessão a comiss ão
se decidiu a utilizar o ferro fundido para columbiad, especialmente ferro
fundido gris. Esse metal é, com efeito, mais tenaz, mais dúctil,
mais macio, apropriado para todas as operações de moldagem,
e tratado com o carvão mineral é de uma qualidade superior para
as peças de grande resistência, como canhões, cilindros
de máquinas a vapor, prensas hidráulicas, etc.

Contudo, a fundição, se sofre apenas uma fusão, raramente
fica suficientemente homogênea, e é por meio de uma segunda fusão
que ?se depura e refina o ferro fundido, desembara çando-o dos seus
últimos depósitos terrosos.

Assim, antes de ser enviado para Tampa, o minério de ferro, tratado
nos altos-fornos de Goldspring e posto em contato com carvão e silício
aquecido a uma alta temperatura, tinha sido carbonado e transformado em ferro
fundido.

Após essa primeira operação, o metal foi transportado
para a Colina das Pedras. Mas tratava-se de cento e trinta e seis milhões
de libras de ferro fundido, quantidade muito difícil de enviar pela
estrada de ferro. Os preços do transporte duplicariam o preço
do material. Pareceu preferível fretar navios em Nova Iorque e carregá-los
com o ferro fundido em barras; foram necessárias nada menos de sessenta
e oito embarcações de mil toneladas, unia verdadeira frota,
que, a 3 de maio, saiu do porto de Nova Iorque e tomou a via do oceano ao
longo das costas americanas.

?Depois entrou no canal das Baamas, dobrou a ponta da Flórida e a
10 do mesmo mês, subindo a baía do Espírito Santo, foi
ancorar no porto de Tampa- Ali, os navios foram descarregados para os vagões
da estrada de ferro da Colina das Pedras, e, em meados de ja neiro, toda aquela
enorme quantidade de metal se encontrava no seu destino.

Compreende-se facilmente que não eram demais mil e duzentos fornos
para liquefazer ao mesmo tempo sessenta mil toneladas de ferro. Cada um –
desses fornos podia conter perto de cento e quatorze mil libras de metal;
tinham sido construídos segundo o modelo daqueles que serviram para
a fundição do canhão de Rodman; eram de forma trapezoidal,
e muito baixos.

A fornalha e a chaminé encontravam-se nas duas extremidades do forno,
de tal modo que este era aquecido em toda a sua extensão. Esses fornos,
construídos com tijolos refratários, compunham-se unicamente
de uma grelha, para queimar a hulha e de um crisol sobre o qual se colocavam
as barras de ferro para serem fundidas; esse crisol, inclinado por uni ângulo
de vinte e cinco graus, permitia que o metal se escoasse para as caldeiras
de recepção, de onde mil e duzentas caldeiras convergentes o
conduziam para o poço central.

No dia seguinte àquele em que os trabalhos de pedreiro e de perfuração
terminaram, Barbicane mandou proceder à confecção do
molde interno; tratava-se de erguer no centro do poço, e na direção
do seu eixo, um cilindro com a altura de novecentos pés e a largura
de nove, que enchesse exatamente o espaço reservado para a alma do
columbiad. Esse cilindro foi feito de uma mistura de terra argilosa e de areia
com feno e palha. 0 intervalo que ficava entre o molde interno e o revestimento
de alvenaria devia ser preenchido pelo metal fundido, que assim formaria uma
parede de seis pés de espessura em tomo do molde.

Esse cilindro, para se manter em equilíbrio, teve de ser consolidado
com armaduras de ferro e amparado de espaço a espaço com escoras
chumbadas, que contornavam o revestimento de pedra; após a fundição,
essas escoras deviam ficar perdidas no grosso da massa de metal, o que, aliás,
não oferecia inconveniente algum.

Essa operação terminou a 8 de julho, e a moldagem foi marcada
para o dia seguinte.

– A festa da fundição vai ser uma bela cerimônia – disse
J. T.

Maston ao seu amigo Barbicane.

– Sem dúvida – respondeu Barbicane -; mas não será
uma festa pública.

– Como! Não quer abrir as portas do recinto a quem aparecer? – Nem
pensar nisso, Maston; a fundição do columbiad é uma operação
delicada, para não dizer perigosa, e prefiro que se efetue a portas
fechadas. À partida do projétil fazemos festa, se quiserem,
mas antes disso não.

0 presidente tinha razão; a operação podia oferecer
perigos inesperados, aos quais uma grande afluência de espectadores
tornaria difícil remediar. Era preciso conservar a liberdade de movimentos.
Não foi, portanto, admitido ningu ém no recinto, com exceção
de uma delegação dos membros do Clube do Canhão, que
fez a viagem até Tampa.

Viu-se então o elegante Bilsby, Tom Hunter, o Coronel Blomsberry,
o Major Elphiston, o General Morgan e tutti quanti para quem a fundição
do columbiad se tornava um assunto pessoal. J. T. Maston tinha-se feito seu
cicerone e não lhes omitiu pormenor algum: conduziu-os por toda a parte,
levou-os aos armazéns, às oficinas, para o meio das máquinas
e forçou os a visitar os mil e duzentos fornos uns após outros.
Na última visita, os homens mostraram-se um tanto cansados.

A fundição devia ter lugar ao meio-dia em ponto; na véspera,
cada forno fora carregado com cento e quatorze libras de metal em barras,
dispostas em pilhas cruzadas, a fim de o ar quente poder circular livremente
entre elas.

Desde essa manhã, as mil e duzentas chaminés vomitavam para
a atmosfera as suas torrentes de chamas, e o solo era atingido por surdas
trepidações. As libras de metal a fundir eram tantas quantas
as libras de hulha a serem queimadas. Eram, portanto, sessenta e oito mil
toneladas de carvão, que projetava diante do disco do Sol uma espessa
cortina de fumaça negra.

0 calor tornou-se em breve insuportável no recinto dos fornos, cujos
roncos se assemelhavam ao ribombar do trov ão; poderosos ventiladores
saturavam continuamente de oxigênio todos aqueles focos incandescentes.

A operação, para ter êxito, precisava de ser rapidamente
conduzida. Ao sinal dado por um tiro de canhão, cada forno devia dar
passagem à fusão e vasar-se rapidamente.

Tomadas essas disposições, chefes e operários tiveram
o momento determinado com uma impaciência misturada com uma certa emoção.
Já não havia mais ninguém no recinto, e cada contramestre
fundidor encontrava-se no seu posto junto das aberturas por onde devia sair
o metal em fusão.

Barbicane e os seus colegas, instalados numa elevação pró-
xima, assistiam à operação. Diante deles encontrava-se
uma peça de artilharia, pronta a fazer fogo a um sinal do engenheiro.

Alguns minutos antes do meio-dia, as primeiras gotinhas de metal começaram
a aparecer, as caldeiras para onde elas corriam encheram-se pouco a pouco,
e, quando a liquefação do metal ficou completa, deixaram-nos
assentar durante alguns instantes, a fim de facilitar a separação
de substâncias estranhas.

Soou o meio-dia. Um tiro de canhão troou subitamente lançando
o seu clarão para os ares. Mil e duzentas aberturas por onde passava
a lava abriram-se ao mesmo tempo, mil e duzentas serpentes de fogo alastraram-se
para o poço central, desenrolando-se em anéis incandescentes.
Ali, precipitaram- se, com um ruído assustador, para uma profundidade
de novecentos pés. Era um espetáculo magnífico e comovente.
0 solo tremia, enquanto aquele oceano de ferro em fusão, lançando
para o céu turbilhões de fumo, volatilizava ao mesmo tempo a
umidade do molde e a expulsava pelas aberturas do revestimento de pedra sob
a forma de vapores impenetráveis. Essas nuvens artificiais desenrolavam
as suas espessas espirais e ergueram-se para o zênite até a uma
altura de quinhentas toesas. Algum indí- gena que vagueasse para além
dos limites do horizonte julgaria tratar-se da formação de uma
nova cratera nas entranhas da Flórida, e no entanto não se tratava
de erup- ção, nem de tromba, nem de tempestade, nem de luta
de elementos, nem de nenhum desses terríveis fenômenos que a
natureza é capaz de produzir! Não! Só o homem criara
aqueles vapores avermelhados, aquelas chamas gigantescas dignas de um vulcão,
aquelas ruidosas trepida- ções semelhantes às sacudidelas
de um tremor de terra, aqueles rugidos rivais dos furacões e das tempestades,
e era a sua mão que precipitava, num abismo cavado por ela, toda uma
catarata de metal em fusão.

Teria a operação da fundição tido êxito?
A resposta não sala de simples conjetura. No entanto, tudo levava a
crer no êxito, visto que o molde absorvera toda a massa do metal fundido
nos fornos. Fosse como fosse, devia ser imposs ível, durante muito
tempo, verificá-lo diretamente.

Realmente, quando o Major Rodman fundiu o seu canhão de cento e sessenta
mil libras, foram necessários quinze dias para se dar o arrefecimento.
Quanto tempo levaria então o monstruoso columbiad, coroado pelos seus
vapores de fumo e defendido pelo seu calor intenso, a aparecer aos olhos dos
seus admiradores? Era difícil de calcular.

A impaciência dos membros do Clube do, Canhão foi posta a uma
dura prova durante esse lapso de tempo. Mas nada se podia fazer. J. T. Maston
quase ia ficando assado devido à sua dedicação. Quinze
dias após a fundição, ainda se erguia para o céu
uma imensa coluna de fumo, e o solo queimava os pés num raio de duzentos
passos em redor do cume da colina.

Os dias foram passando e as semanas somaram-se umas às outras. Não
havia qualquer meio de arrefecer o imenso cilindro. Era preciso paciência,
e os membros do Clube do.

Canhão não tinham outro remédio senão esperar.

– Estamos a 10 de agosto – disse uma manhã J. T. Maston.

– Apenas quatro meses nos separam do dia 1? de dezembro! Retirar o molde
interior, calibrar a alma da peça, carregar o columbiad! Falta fazer
tudo isto! Não estaremos prontos! Nem sequer podemos nos aproximar
do canhão! Nunca mais arrefecerá! Isto seria uma cruel mistificação!
Tentaram acalmar o impaciente secretário, mas debalde..

Só Barbicane não dizia nada, mas o seu silêncio escondia
uma surda irritação. Ver-se detido por um obstáculo que
só o tempo poderia remediar – o tempo, um inimigo temí- vel
nas circunstâncias – e estar à mercê do inimigo era duro
para homens habituados à guerra.

No entanto, as observações diárias permitiram observar
uma certa mudança no estado do solo. Por volta de 15 de agosto, os
vapores projetados tinham diminuído consideravelmente de intensidade
e de espessura. Alguns dias depois, já o terreno exalava apenas um
ligeiro vapor, último alento do monstro fechado no seu caixão
de pedra. Pouco a pouco, os estremecimentos do solo acalmaram-se e o círculo
de calor diminuiu; os espectadores mais impacientes foram-se aproximando;
num dia ganharam duas toesas; no dia seguinte quatro, e no dia 22 de agosto,
Barbicane, os seus colegas e o engenheiro puderam finalmente pisar a parte
de metal solidificado que cobria o cimo da Colina das Pedras, local por certo
muito acolhedor, porque não era permitido ter ali os pés frios.

– Até que enfim! – declarou o presidente do Clube do Canh ão
com um imenso suspiro de satisfação.

Nesse mesmo dia recomeçaram os trabalhos. Procedeuse imediatamente
à extração do molde interior, a fim de libertar a parte
interna da peça; a picareta, o alvião, as ferramentas de broca
funcionaram sem descanso; o barro argiloso e a areia tinham adquirido uma
resistência extrema sob a ação do calor; mas, com a ajuda
das máquinas, conseguiram manobrar a mistura ainda escaldante pelo
contato com as paredes de ferro fundido. Desembarque do projétil em
Stones Hill materiais extraídos foram rapidamente levados em carros
movidos a vapor, e todos trabalharam tão bem, o ardor foi tal, a intervenção
de Barbicane foi tão premente e os argumentos 1 foram apresentados
com tal força sob a forma de dólares que, a 3 de setembro, todos
os vestígios do molde tinham desaparecido.

Começou imediatamente a operação de calibragem; as
máquinas foram instaladas sem demora e as poderosas brocas de polir
começaram a alisar as rugosidades do ferro fundido. Algumas semanas
mais tarde, a superfície interna do imenso tubo tinha totalmente assegurada
a sua forma cilíndrica e a alma da peça adquirido um polimento
perfeito.

Finalmente, a 22 de setembro, menos de um ano após a comunicação
de Barbicane, o enorme engenho, rigorosamente calibrado e de uma verticalidade
absoluta, verificada por meio de instrumentos delicados, estava pronto a funcionar.

Então só era preciso esperar pela Lua, mas tinham a certeza
de que ela não faltaria ao encontro.

A alegria de J. T. Maston não conheceu limites, e esteve prestes
a uma queda horrorosa, quando tentava perscrutar o fundo do enorme tubo de
novecentos pés. Sem o braço direito de Blomsberry, que o digno
coronel tinha felizmente conservado, o secretário do Clube do Canhão,
como um novo Eróstrato, teria encontrado a morte nas Profundezas do
columbiad.

0 canhão estava, portanto, terminado; não restavam dú-
vidas possíveis sobre a sua perfeita construção; assim,
a 6 de outubro, o Capitão? Nicoles pagou a aposta ao Presidente Barbicane
e este inscreveu nos seus livros, na coluna das receitas, uma quantia de dois
mil dólares.

Capítulo IX – Michel Ardan

Os grandes trabalhos empreendidos pelo Clube do Canhão estavam, por
assim dizer, terminados, e entretanto iriam decorrer ainda dois meses antes
de chegar o dia em que o projétil seria lançado para a Lua.
Dois meses que deviam parecer longos como anos para a impaciência universal!
Até então as mínimas peripécias da operação
tinham sido diariamente reproduzidas. pelos jornais, que eram? devorados com
um olhar ávido e apaixonado; mas era de temer que daí em diante
esse ?dividendo de notícias e interesses ? distribuído pelo
público fosse diminuindo, e todos se assustavam por ver desaparecer
a sua parte de emo- ções quotidianas.

No entanto, isso não sucedeu; o incidente mais inesperado, mais extraordinário,
mais incrível, veio de novo fanatizar os espíritos e lançar
o Mundo. numa excitação pungente.

No dia 30 de setembro, às três horas e quarenta e sete minutos
da noite, um telegrama, transmitido pelo cabo submarino entre Valentia (Irlanda),
a Terra Nova e a costa americana, chegou endereçado ao Presidente Barbicane.

0 digno presidente abriu o envelope, leu o telegrama e, apesar de todo o
seu autodomínio, os seus lábios empalideceram e os olhos perturbaram-se
com a leitura das palavras desse telegrama.

Eis o texto desse despacho, que agora figura nos arquivos do Clube do Canhão.

?França, Paris 30 de setembro, quatro horas da manhã.

Barbicane, Tampa, Flórida – Estados Unidos Substitua obus por projétil
cilindro cônico. Partirei dentro. Chegarei vapor Atlanta.

Michel Ardan.? Se aquela notícia fulminante, em vez de voar sobre
os fios elétricos, tivesse chegado simplesmente pelo correio, num envelope
fechado, se os empregados franceses, irlandeses, da Terra Nova, americanos,
não tivessem necessariamente conhecimento do telegrama, Barbicane não
teria hesitado um só momento. Ter-se-ia calado por medida de prudência
e para não desconsiderar a sua obra. Aquele telegrama podia esconder
uma mistificação, sobretudo vindo da parte de um francês.
Era preciso que um homem fosse muito audacioso para conceber sequer a idéia
de uma tal viagem. E, se esse homem existia, não seria um louco que
urgia encerrar numa cela e não numa bala? Todavia, o telegrama era
conhecido, pois os aparelhos de transmissão são pouco discretos
por natureza e a proposta de Michel Ardan corria já pelos diversos
Estados da União.

Assim, Barbicane não tinha qualquer motivo para se calar.

Reuniu, portanto, os seus colegas presentes em Tampa e, sem deixar ver o
seu pensamento, sem discutir o crédito que o telegrama pudesse merecer,
limitou-se a ler friamente o lacônico texto.

– Não é possível! É inverossímil! Pura
brincadeira! Troçaram de nós! Ridículo! Absurdo! – Toda
a série de expressões que servem para exprimir a dúvida,
a incredulidade, a tolice, a loucura prosseguiu durante vários minutos,
gestos que habitualmente acompanham essas expressões. Cada um sorria,
ria, encolhia os ombros ou ria, às gargalhadas, conforme a sua disposição.
Só J. T. Maston teve estas palavras soberbas: – É uma idéia.

– Sim – respondeu-lhe o major -, mas, se algumas vezes nos é permitido
ter idéias como esta, é com a condição de nem
sequer pensar em as pôr em execução.

– E por que não? – replicou vivamente o secretário do Clube
do Canhão, pronto para discutir. Mas não quiseram excitá-
lo mais.

No entanto, o nome de Michel Ardan circulava já na cidade de Tampa.
Os estrangeiros e os do local olhavam-se e dizi am graças, não
a respeito desse europeu – um mito, um indivíduo quimérico -,
mas a respeito de J. T. Maston, que acreditava na existência dessa personagem
lendária.

Quando Barbicane propôs o envio de um projétil à Lua
todos acharam natural, praticável, um puro assunto de balística!
Mas que um ser racional se oferecesse para embarcar nesse projétil
a fim de tentar essa viagem inverossímil, era uma proposta fantasista,
uma brincadeira, uma farsa, e, para utilizar uma palavra de que os franceses
têm a tradu- ção exata na sua linguagem familiar, um humbug
(mistifica- ção).

As troças duraram até a noite e pode dizer-se que toda a América
do Norte foi tomada de riso, o que não é nada habitual num país
em que as empresas impossíveis encontram facilmente adeptos, partidários.

No entanto, a proposta de Michel Ardan, como to as idéias novas,
não deixava de perturbar certos espíritos. Isto alterava o curso
das emoções habituais. ?Não tínhamos pensado nisto!?
Esse incidente tornou-se em breve uma obsess ão pela sua própria
estranheza. Pensavam nele. Quantas coisas negadas na véspera que o
dia seguinte tornou realidade! Por que razão não se faria um
dia essa viagem? Em todo caso, porém, o homem que assim queria arriscar-se
devia ser louco, e decididamente, visto que o seu projeto não podia
ser levado a sério; teria sido melhor calar-se, em vez de perturbar
toda a gente com as suas fantasias ridículas.

. Porém, antes de mais nada, existiria realmente essa personagem?
Grande pergunta! Aquele nome, ?Michel Ardan?, não era desconhecido
na América! Pertencia a um europeu muito citado pelos seus empreendimentos
audaciosos. Depois, o telegrama lançado através das profundezas
do Atlântico, essa designação do navio em que viajava,
a data da chegada próxima – todas essas circunstâncias davam
à proposta um certo caráter de verossimilhança. Era preciso
esclarecer o caso. Em breve, os indivíduos isolados reuniram- se em
grupos; os grupos foram-se condensando sob a influência da curiosidade,
como átomos em virtude da atração molecular, e, finalmente,
resultou dai uma multidão compacta que se dirigiu para a residência
do Presidente Barbicane.

Este, desde a chegada do telegrama não se tinha pronunciado; havia
permitido que se divulgasse a opinião de J. T.

Maston, sem manifestar aprovação nem censura; mantinha- se
calado e propunha-se esperar pelos acontecimentos; mas não contava
com a impaciência pública, e foi com um olhar satisfeito que
viu a população de Tampa amontoar- se sob as suas janelas. Em
breve, os murmúrios e as vociferações o obrigaram a aparecer.

Vemos que ele tinha todos os privilégios e, por conseqüência,
todos os aborrecimentos da celebridade.

Apareceu então à janela. Fez-se silêncio, e um cidadão,
tomando a palavra, fez-lhe claramente a pergunta seguinte: – A personagem
chamada Michel Ardan vem ou não a caminho da América? _ Senhores
– respondeu Barbicane -, sei tanto quanto vós.

– É preciso sabê-lo! – exclamaram vozes impacientes.

– 0 tempo não tem o direito de manter um país inteiro suspenso
– replicou o orador. – Modificou os planos do projétil como pede o
telegrama? – Ainda não, senhores; mas têm razão, temos
de saber com o que contamos. 0 telégrafo, que causou toda esta emoção,
poderá dar-nos as informações que nos faltam.

– Ao telégrafo! Ao telégrafo! – gritou a multidão.

Barbicane desceu e, precedendo a imensa multidão, dirigiuse para
os escritórios da administração.

Alguns minutos mais tarde, era enviado um telegrama para o escritório
dos armadores de navios de Liverpool. Pedia resposta às seguintes perguntas:
?Que espécie de navio é o Atlanta? ?Quando deixou a Euro pa??
?Traz a bordo um francês chamado Michel Ardan ? Duas horas depois Barbicane
recebia informações de uma precisão que não dava
lugar à menor dúvida.

?0 navio Atlanta, de Liverpool, partiu a 2 de outubro, para Tampa e leva
a bordo um francês inscrito no livro dos passageiros com o nome de Michel
Ardan.? Ao ter a confirmação do primeiro telegrama, os olhos
do presidente brilharam com uma chama súbita, os seus punhos fecharam-se
violentamente e ouviram-no murmurar: – É então verdade! É,
portanto, possível! Esse francês existe! E dentro de quinze dias
estará aqui! Mas é um louco! Um cérebro inflamado!…
Nunca consentirei…

No entanto, nessa mesma noite escrevia para a casa Breadwill & C?, pedindo-lhe
que suspendesse até nova ordem a fundição do projétil.

No dia 20 de outubro, às nove horas da manhã, os faróis
do Canal das Baamas assinalavam uma espessa fumaça no horizonte. Duas
horas mais tarde, um grande barco a vapor trocava com eles sinais de reconhecimento.
Imediatamente, o nome do Atlanta foi enviado para Tampa. As quatro horas,
o navio inglês dava entrada na Baía do Espírito Santo.
Às cinco passava na Enseada de Hillisboro a todo o vapor. Às
seis, ancorava no porto de Tampa.

A âncora ainda não tinha alcança do o fundo de areia
e já quinhentas embarcações rodeavam o Atlanta, e o navio
era tomado de assalto. Barbicane foi o primeiro a saltar na amurada do navio
e, com uma voz cuja emoção ele queria em vão esconder,
exclamava: – Michel Ardan Presente! – respondeu um indivíduo que se
encontrava no castelo da popa.

Barbicane, de braços cruzados, de olhar interrogador, olhava silenciosamente
o passageiro do Atlanta.

Os discípulos de Lavater ou de Gratiolet teriam decifrado sem dificuldade
no crânio e na fisionomia dessa personagem sinais indiscutíveis
de combatividade, isto é, coragem no perigo e tendência para
deitar abaixo obstáculos; sinais de benevolência e atração
pelo maravilhoso, instinto que leva certas pessoas a se apaixonarem pelas
coisas sobrehumanas; mas, em compensação, as tendências
de possessividade, dessa necessidade instintiva de possuir e de adquirir,
faltavam-lhe por completo.

Para concluirmos o tipo físico do passageiro do Atlanta, convêm
assinalar que as suas roupas eram largas, confort áveis, com as calças
e o casaco feitos com muito tecido, de tal modo que Michel Ardan se denominava
a si mesmo ?o mata-pano?, a gravata larga, o colarinho da camisa aberto, de
onde saía um pescoço robusto. Usava normalmente os punhos da
camisa desabotoados, pondo a descoberto unias mãos febris. Sentia-se
que, mesmo no mais forte inverno e dos perigos, aquele homem nunca teria frio
nem sequer nos olhos.

De resto, no tombadilho do barco, no meio da multidão, ele ia e vinha,
não estando nunca quieto -?navegando sobre as amarras?, como dizem
os marinheiros -, gesticulando, tratando toda a gente por tu e roendo as unhas
com uma avidez nervosa: era um desses originais que o Criador inventa num
momento de fantasia quebrando logo a seguir o molde.

Realmente, a personalidade moral de Michel Ardan oferecia um largo campo
às observações do analista. Esse homem espantoso vivia
numa eterna disposição para a hipérbole e não
tinha ainda ultrapassado a idade dos superlativos: os objetos surgiam na retina
dos seus olhos com dimensões desmedidas; daí uma gigantesca
associação de idéias; via tudo em grande, exceto as dificuldades
e os homens.

Era de resto uma natureza luxuriante, um artista por instinto, uma natureza
espiritual que não fazia fogo cerrado de ditos chistosos mas que sabia
esgrimir, como um hábil atirador, em qualquer conversa.

Nas discussões preocupava-se pouco com a lógica, era rebelde
aos silogismos, que nunca teria inventado, e tinha argumentos próprios.
Verdadeiro quebra-vidros, lançava em pleno peito argumentos ad hominem
de efeito seguro, e gostava de defender a todo o custo as causas desesperadas.

Entre outras manias, tinha a de se declarar ?um ignorante sublime? como
Shakespeare, e fazia profissão de menosprezar os sábios: ?São
pessoas?, dizia, ?que apenas marcam os pontos quando nós é que
jogamos a partida.? Era, em resumo, um boêmio do país dos montes
e das maravilhas, aventuroso, mas não aventureiro, um Faetonte conduzindo
o carro do Sol, um Ícaro com asas sobressalentes.

De resto, era homem que arriscava a sério a própria pessoa
e lançava-se de cabeça nos mais loucos empreendimentos.

Queimava os seus navios com mais pressa que Agátocles, e, pronto
a arriscar apele a todo o momento, acabava sempre por cair de pé, como
esses bonecos joãoteimoso com que as crianças se divertem.

Todavia, esse homem empreendedor tinha os defeitos pró- prios das
suas qualidades! Quem não arrisca não petisca, costuma dizer-se.
Mas Ardan arriscava muitas vezes sem nada conseguir. Era um perdulário,
um tonel das Danaides.

Homem perfeitamente desinteressado, de resto, tinha tão bom coração-
quanto cabeça. Prestável, cavalheiresco, seria incapaz de assinar
a sentença de morte do seu mais cruel inimigo, e vender-se-ia a si
mesmo como escravo para resgatar um negro.

Na França, na Europa, toda a gente conhecia essa brilhante e barulhenta
personagem. Não fazia incessantemente falar dele as cem vozes da Fama
ao seu serviço? Não vivia numa casa de vidro tomando o universo
inteiro por confidente dos seus mais íntimos segredos? Mas possuía
também uma admirável coleção de inimigos, entre
aqueles que ele tinha mais ou menos ferido, atirado abaixo sem piedade, acotovelando-
os para abrir passa em por entre a multidão.

No entanto, geralmente gostavam dele e tratavam-no como criança mimada.
Era, segundo a expressão popular, um homem ?para pegar ou largar?,
e o caso é que lhe pegavam.

Todos se interessavam pelas suas enormes ousadias.

A contemplação a que se entregava o presidente do Clube do
Canhão em presença daquele rival que o vinha relegar para segundo
plano foi rapidamente interrompida pelos vivas e hurras da multidão.
Esses gritos tornaram-se mesmo tão frenéticos e o entusiasmo
tomou formas tão pessoais que Michel Ardan, depois de ter apertado
centenas de mãos, nas quais quase ia deixando os seus dez dedos, teve
de se ir refugiar na sua cabina.

Barbicane segui-o sem ter pronunciado uma só palavra.

– É Barbicane? – perguntou-lhe Michel Ardan, quando ficaram a sós,
no tom em que teria falado a um amigo de há vinte anos.

– Sim – respondeu o presidente do Clube do Canhão.

– Bem! Bom dia, Barbicane. Como vai isso? Muito bem? Então tanto
melhor! Tanto melhor! Então – disse Barbicane entrando logo no assunto
-, está decidido a partir? – Absolutamente decidido.

Nada o deterá? Nada. Modificou o seu projétil como eu pedia
em meu telegrama? – Esperava a sua chegada. Mas – perguntou Barbicane, insistindo
de novo – refletiu bem?…

– Se refleti? Mas tenho algum tempo a perder? Vejo ocasi ão de ir
dar um passeio à Lua aproveito-a, mais nada.

Parece-me que o caso não merece muitas reflexões.

Barbicane devorava com o olhar aquele homem que falava do seu projeto de
viagem com uma leviandade, uma despreocupa ção tão completa
e uma tão perfeita ausência de inquietações.

– Mas, pelo menos – disse-lhe -, tem um plano, meios de execução?
– Excelentes, meu caro Barbicane, Mas permita-me que lhe faça uma observação:
gosto de contar a minha história de uma só vez a toda a gente
e que não se fale mais nisso.

Isso evitará as repetições. Portanto, salvo melhor
opinião, convoque os seus amigos, os seus colegas, toda a cidade, toda
a Flórida, toda a América, se quiser, e amanhã estarei
pronto a expor os meus meios e a responder a todas as objeções,
sejam elas quais forem. Isto lhe convém? – Convém – respondeu
Barbicane.

– Então, o presidente saiu da cabina e comunicou à multid
ão a proposta de Michel Ardan. As suas palavras foram acolhidas com
exclamações de alegria. Isso evitava qualquer dificuldade. No
dia seguinte, todos poderiam contemplar à sua vontade o herói
europeu. No entanto, alguns espectadores mais obstinados não quiserem
deixar a ponte do Atlanta. Passaram a noite a bordo. Entre outros. J. T.

Maston, que tinha atarraxado o gancho na amurada do convés e seria
preciso um cabrestante para o tirar de lá.

– É um herói! – exclamava em todos os tons -, e nós
não passamos de umas mulherzinhas aos pés desse europeu! Quanto
a Barbicane, depois de ter convidado os visitantes a retirarem-se, voltou
para a cabina do passageiro, e só saiu de lá à meia-noite.

Capítulo X – A Assembléia

No dia seguinte, o astro do dia levantou-se muito tarde para a impaciência
pública. Acharam-no preguiçoso, para um Sol que devia iluminar
semelhante festa. Barbicane, temendo as perguntas, indiscretas para Michel
Ardan, teria desejado reduzir os seus ouvintes a um pequeno número
de adeptos, aos seus colegas, por exemplo. Mas era o mesmo que tentar pôr
um dique no Niágara. Teve, portanto, de renunciar ao seu projeto e
deixar o seu novo amigo correr os riscos de uma conferência pública.
A nova sala da Bolsa de Tampai apesar das suas dimensões colossais,
foi considerada insuficiente para a cerimônia, pois a reunião
projetada tomava as proporções de um verdadeiro meeting.

0 local escolhido foi então uma vasta planície situada fora
da cidade; em poucas horas conseguiram abrigá-la. contra os raios do
Sol; os navios do porto – com as suas velas, os seus mastros, os seus aprestos,
forneceram o material necessário para a construção de
uma gigantesca barraca.

Em breve, um imenso toldo se estendia sobre a planície calcinada
defendendo-a dos ardores do Sol. Ali, trezentas mil pessoas encontraram lugar
e enfrentaram durante horas uma temperatura sufocante, esperando a chegada
do francês. Dessa multidão de espectadores a terça parte
podia ver e ouvir; um segundo terço via mal e não ouvia; quanto
ao terceiro, não via nem ouvia nada.

Não foi no entanto esse terço o mais avaro em prodigalizar
os seus aplausos.

Às três horas, Michel Ardan fez a sua aparição,
?acompanhado pelos principais membros do Clube do Canhão. Dava o braço
direito ao Presidente Barbicane e o esquerdo a J. T.

Maston, mais radioso que o Sol em pleno meio-dia, e quase tão rutilante.
Ardan subiu a uni estrado, do alto do qual o seu olhar abarcava uma imensa
extensão de chapéus pretos.

Não parecia nada embaraçado nem fazia poses. Estava ali como
em casa, alegre, familiar, ? amável. Às aclama- ções
que o acolheram respondeu com uma saudação graciosa; depois,
com a mão, pediu silêncio. Tomou então a palavra em inglês
e exprimiu-se, muito corretamente, nestes termos: – Senhores, apesar de estar
muito calor, vou roubar lhes uns momentos para lhes dar umas explicações
sobre uns projetos que parecem lhes ter interessado. Não sou nem orador
nem sábio e não contava ter de falar em público, mas
o meu amigo Barbicane disse – me que isto lhes daria prazer e eu prontifiquei-me
a faze-lo. Escutem-me, por tanto, com seiscentos mil ouvidos e desculpe In
os erros do autor.

Este começo nada cerimonioso agradou muito aos assistentes, que manifestaram
o seu agrado com um murmúrio de satisfação.

– Senhores – continuou Michel Ardan -, lembrem-se de que não é
proibido qualquer sinal de aprovação ou de desaprova ção.
Dito isto, vou começar. Não esqueçam que estão
tratando com um ignorante e que a sua ignorância vai tão longe
que chega a ignorar até mesmo as dificuldades. Parece- lhe, portanto,
que era uma coisa fácil, simples, natural, arranjar passagem num projétil
e partir para a Lua.

Essa viagem devia fazer-se mais cedo ou mais tarde, e quanto ao modo de
locomoção adotado, segue simplesmente a lei do progresso. 0
homem começou por viajar a quatro patas, depois, um belo dia, sobre
os dois pés, depois de carroça, em seguida de carruagem, depois
navios de carga, estradas de ferro; pois bem! 0 projétil é o
meio de transporte do futuro, e a bem dizer os planetas não são
mais que projéteis, simples balas de canhão lançadas
pela mão do Criador. Mas voltemos ao nosso veiculo. Alguns dos senhores
julgaram que a velocidade que lhe séria imprimida é excessiva;
mas não se verifica isso; todos os astros o superam em rapidez, e a
própria Terra, no seu movimento de translação em redor
do Sol, leva-nos três vezes mais depressa. Eis alguns exemplos. Peço-vos
apenas licença para me exprimir contando em léguas, pois não
estou muito familiarizado com as medidas americanas e receio atrapalhar-me
nos meus cálculos.

0 pedido pareceu simples e não representava qualquer dificuldade.

0 orador retomou o seu discurso: – Eis, senhores, a velocidade dos diferentes
planetas. Sou obrigado a confessar que, apesar da minha ignorância,
conhe ço exatamente esse pequeno pormenor astronômico; mas, antes
de se terem passado dois minutos, ficarão sabendo tanto quanto eu.
Com efeito, Netuno percorre cinco mil léguas por hora; Urano, oito
mil, oitocentas e cinqüenta e oito; Júpiter, onze mil seiscentas
e setenta e cinco; Marte, vinte e duas mil e onze; a Terra, vinte e sete mil
quinhentas; Vênus, trinta e duas mil cento e noventa; Mercú-
rio, cinqüenta e duas mil quinhentas e vinte; certos cometas, um milhão
e quatrocentas mil léguas! Quanto a nós, verdadeiros vagabundos,
pessoas pouco apressadas, a nossa velocidade não ultrapassará
as nove mil e novecentas léguas, e irá sempre decrescendo! Pergunto-lhes
se há razão para se extasiarem com isso, e se não é
evidente que essa velocidade será em breve ultrapassada por outras
ainda maiores, de que a luz e a eletricidade serão provavelmente os
agentes – mecânicos? Ninguém pareceu pôr em dúvida
esta afirmação de Michel Ardan.

– Meus caros ouvintes – continuou ele -, a crer em certos espíritos
limitados (é o qualificativo que lhes convém), a humanidade
será encerrada num círculo que não saberá transpor,
e condenada a vegetar neste Globo sem nunca poder lançar-se para os
espaços planetários. Não é nada disso! Nós
iremos à Lua, aos planetas, às estrelas, como hoje se vai de
Liverpool a Nova Iorque, facilmente, com rapidez e segurança, e em
breve o oceano atmosférico será atravessado, assim como os oceanos
da Lua. A dist ância é apenas uma palavra relativa e acabará
por ser reduzida a zero.

A multidão, apesar de predisposta a favor do herói francês,
ficou um pouco perplexa ao ouvir tão audaciosa teoria.

Michel Ardan pareceu compreender isso.

– Não parecem convencidos, meus estimados anfitriões – continuou
com um sorriso amável. – Pois bem. Raciocinemos um pouco. Sabem quanto
tempo seria necessário a um trem expresso para atingir a Lua? Trezentos
dias. Não mais. Um trajeto de oitenta e seis mil quatrocentas e dez
léguas, o que é isto? Nem sequer nove vezes a volta à
Terra; não existem marinheiros nem viajantes um pouco desembaraçados
que não tenham percorrido mais do que isso durante a sua existência?
Pensei que só levarei oitenta e sete horas no caminho! Julgam que a
Lua fica muito afastada da Terra e que é preciso pensar duas vezes
antes de tentar a aventura. Mas que diriam então se tratasse de ir
a Netuno, que gravita a mil cento e quarenta e sete milhões de léguas.
Eis uma viagem que poucas pessoas poderiam fazer, mesmo que custasse apenas
cinco soldos por quilômetro! 0 pró- prio Barão de Rothschild,
com os seus milhares de milhões, não teria com que pagar o seu
lugar, e por falta de quarenta e sete milhões ficaria pelo caminho!
Esta maneira de argumentar pareceu agradar muito à multid ão;
de resto, Michel Ardan, consciente do que fazia, lan- çava-se na sua
aventura com um impulso soberbo. Sabiase avidamente escutado e sentiu uma
admirável seguran- ça.

– Pois bem, meus amigos, essa distância de Netuno ao Sol não
é ainda nada se comparar à das estrelas; com efeito, para avaliar
o afastamento desses astros, é preciso entrar nessa numeração
deslumbrante em que o mais pequeno número é de nove algarismos,
e tomar por unidade os milhares de milhões. Peço-lhes perdão
por estar sendo tão prolixo sobre esta questão, mas ela é
de um interesse palpitante.

Ouçam e julguem! Alfa de Centauro está a oito mil milhares
de milhões de léguas, Vega a cinqüenta mil milhares de
milhões, Sírio a cinqüenta mil milhares de milhões,
Arturo a cinqüenta e dois mil milhares de milhões, a Estrela Polar
fica a cento e dezessete mil hares de milhões, Cabra a cento e setenta
mil milhares de milhões, as outras estrelas a milhares de milhões
e milhares de bilhões de léguas! E ainda há quem fale
da distância que medeia os planetas do Sol. E afirmariam que essa distância
existe! Erro Falsidade.

Aberração dos sentidos! Querem saber o que eu penso deste
mundo que começa no astro radioso e acaba em Netuno? Querem conhecer
a minha teoria? É muito sim ples! Para mim, o mundo solar é
um corpo sólido, homogêneo; os planetas que o compõem
comprimem-se, tocam-se, aderem e o espaço existente entre eles é
como o espaço que separa as moléculas do metal mais compacto:
prata, ferro, ouro ou platina. Tenho, portanto, o direito de afirmar e repito
com uma convicção que os convencerá a todos: a distância
é uma palavra vã, a distância nem sequer existe! Bem dito!
Bravo! Viva! – exclamou a multidão em uma só voz, eletrizada
pelos gestos, pela expressão do orador, pela ousadia das suas concepções.

– Não exclamou J. T. Maston, mais enérgico do que os outros
-, a distância não existe! E, levado pela violência dos
seus movimentos, pelo impulso do seu corpo, que teve dificuldade em dominar,
quase caiu do estrado abaixo, mas conseguiu recuperar o equilí- brio,
evitando uma queda que lhe teria provado brutalmente que a distância
não era uma palavra vã. Depois o discurso do empolgante orador
continuou: – Meus amigos, penso que esta questão se encontra agora
resolvida. Não os convenci a todos, pois fui tímido nas minhas
demonstrações, fraco nos meus argumentos, mas a culpa é
da insuficiência dos meus estudos teóricos. Seja como for, repito,
a distância da Terra ao seu satélite é realmente pouco
importante e indigna de preocupar um espírito sério. Creio que
não me estou antecipando muito dizendo que em breve serão estabelecidos
comboios de projéteis, nos quais se fará comodamente a viagem
da Terra à Lua.

Não haverá nem choques, nem sacudidelas, nem descarrilamentos
a recear, e o fim da viagem será atingido rapidamente, sem fadigas,
em linha reta, ?a vôo de abelha ?, para utilizar a linguagem dos seus
caçadores. Antes de vinte anos, metade dos habitantes da Terra terá
visitado a Lua! – Viva! Viva Michel Ardan! – gritaram os circunstantes, mesmo
os menos convencidos.

– Viva Barbicane! – respondeu modestamente o orador.

Este ato de reconhecimento para o promotor do empreendimento foi acolhido
por aplausos unânimes.

Agora, meus amigos – disse Michel, Ardan -, se tem algumas perguntas a fazer-me,
ireis embaraçar certamente um pobre homem como eu mas tentarei responder-lhes.

Até aquele momento o presidente do Clube do Canhão tinha razão
para estar satisfeito com a direção que tomava a discussão.
Versando sobre essas teorias especulativas, Michel Ardan, arrastado pela sua
viva imaginação, mostrava- se muito brilhante. Era preciso,
portanto, impedi-lo de se desviar para as questões práticas,
das quais se teria saído menos bem, sem dúvida nenhuma. Barbicane
apressou- se a tomar a palavra, e perguntou ao seu novo amigo se pensava que
a Lua ou os outros planetas fossem habitados.

– É um grande problema o que tu me pões, meu digno presidente
– respondeu o orador, sorrindo -; no entanto, se não me engano, homens
de grande inteligência como Plutarco, Swedenborg, Bemardin de Saint-Pierre
e muitos outros pronunciaram-se pela afirmativa. Situando-me do ponto de vista
da filosofia natural, serei levado a pensar como eles; direi que nada de inútil
existe neste mundo, e, respondendo à tua pergunta com outra pergunta,
amigo Barbicane, direi: são os mundos habitáveis? Se o são
é porque são habitados, porque o foram ou porque ainda o hão
de ser.

– Muito bem! – as primeiras filas dos espectadores, cuja opinião
tinha força de lei para as últimas.

– Não se pode responder com mais lógica e justeza – disse
o presidente do Clube do Canhão. – A questão é, portanto,
esta: os mundos são habitáveis? Creio nisto, pela minha parte.

– E eu . tenho a certeza – respondeu Michel Ardan.

– No entanto – replicou um dos assistentes -, há argumentos contra
a habitabilidade dos mundos. Seria preciso evi dentemente que os princípios
da vida fossem modificados.

Assim, para apenas falar de planetas, deve-se ficar queimado e gelado em
outros, conforme eles forem mais ou menos afastados do Sol.

– Lamento muito – respondeu Michel Ardan – não reconhecer pessoalmente
o meu honrado interlocutor, mas tentarei responder-lhe. A objeção
tem o seu valor, mas creio que podemos combatê-la com algum êxito,
assim como todas as que se referem à habitabilidade dos mundos. Se
fosse físico, diria que, se há menos calor em movimento nos
planetas vizinhos do Sol, e, pelo contrário, mais nos planetas afastados,
esse simples fenômeno basta para equilibrar o calor e tornar a temperatura
desses mundos suport ável para seres organizados como nós. Se
eu fosse naturalista, dir-lhe-ia, como – muitos sábios ilustres, que
a natureza nos fornece na Terra exemplos de animais que vivem em condições
bem diferentes de habitabilidade; que os peixes respiram num meio mortal para
os outros animais; que os anfíbios têm uma dupla existência,
bastante difícil de explicar; que certos habitantes dos mares se mant
êm nas camadas de uma grande profundidade, suportando aí, sem
serem esmagados, pressões de cinqüenta ou sessenta atmosferas;
que diversos insetos aquáticos, insens íveis à temperatura,
se encontram simultaneamente nas fontes, de água a ferver e nas planícies
geladas dos oceano polares; e, por fim, que precisamos de reconhecer na natureza
uma diversidade nos meios de ação muitas vezes incompreensível,
mas não menos real, e que vai até o Todo-Poderoso. Se fosse
químico dir-lhe-ia que os aerólitos, esses corpos evidentemente
formados fora do mundo terrestre, revelaram quando analisados traços
indiscut íveis de carbono; que essa substância apenas deve a
sua origem a seres organizados, e que, segundo as experi- ências de
Reichenbach, ela deve ter sido necessariamente ?animalizada?. Por fim, se
fosse teólogo, dir-lhe-ia que a Redenção divina parece,
segundo São Paulo, ter sido apli cada não apenas à Terra
mas a todos os mundos celestes.

Mas não sou teólogo, nem químico, nem naturalista,
nem físico. Assim, na minha perfeita ignorância das grandes leis
que regem o Universo, limito-me a responder: não sei se os mundos são
habitados, e porque não sei é que vou lá ver! Teria o
adversário das teorias de Michel Ardan argumentos para apresentar?
É impossível dizê-lo, pois os gritos da multidão
impediram qualquer voz de se fazer ouvir. Quando o silêncio se restabeleceu
nos grupos mais afastados, o orador, triunfante, contentou-se em acrescentar
as observa ções seguintes: – Pensei bem, meus estimáveis
ianques, que uma questão tão importante mal é aflorada
por mim; não venho aqui fazer curso algum nem defender tese sobre assunto
tão vasto. Existe toda uma série de argumentos a favor da habitabilidade
dos mundos. Deixo-os de lado. Permitamme apenas que insista num ponto; às
pessoas que garantem que os planetas não são habitados é
preciso responder: podem ter razão, se for demonstrado que a Terra
é o melhor dos mundos, mas isto não é verdade, apesar
do que possa ter dito Voltaire. Tem apenas um satélite, enquanto Júpiter,
Urano, Saturno e Netuno têm vários ao seu serviço, vantagem
que não é nada para desdenhar. Mas o que sobretudo torna o nosso
Globo pouco confortável é a inclinação do seu
eixo sobre a sua órbita. Daí a desigualdade dos dias e das noites;
daí a aborrecida diversidade das estações. No nosso infeliz
esferóide, faz ,sempre ou calor demais ou frio excessivo; gela-se no
inverno e arde-se no verão; é o planeta das constipações,
das corizas, dos fluxos do peito, ao passo que à superfície
de Júpiter, por exemplo, em que o eixo está muito pouco inclinado,
os habitantes poderiam gozar de temperaturas invariáveis; há
a zona das primaveras, a zona dos verões, a zona dos outonos e a zona
dos invernos perpétuos; cada habitante pode escolher o clima que mais
lhe agrade e ficar durante toda a vida ao abrigo das variações
da temperatura. Concordarão certamente que Júpiter é
superior ao nosso planeta pelo menos nisto, sem falar já das revoluções
anuais, que duram doze anos cada uma! Além disso, é evidente
que, sob esses auspícios e nessas maravilhosas condições
de existência, os habitantes desse mundo afortunado são seres
superiores, que os sábios são mais sábios, os artistas
mais artistas, os maus menos maus e os bons melhores. Que falta ao nosso esferóide
para atingir tamanha perfeição? Pouca coisa! Um eixo de rotação
menos inclinado sobre a sua órbita.

– Pois bem! – exclamou uma voz impetuosa unamos os nossos esforços,
inventemos máquinas e endireitemos o eixo da Terra! Uma tempestade
de aplausos saudou esta proposta, cujo autor era, como não podia deixar
de ser, J. T. Maston. Era provável que o fogoso secretário se
deixasse arrastar pelos seus instintos de engenheiro ao fazer aquela ousada
proposta. No entanto, é preciso dizê-lo – porque é a verdade
-: muitos o apoiaram com os seus gritos, e, sem dúvida, se tivessem
tido o ponto de, apoio reclamado por Arquimedes, os americanos teriam construído
uma alavanca capaz de erguer o mundo e endireitar o seu eixo. Mas o ponto
de apoio era o que faltava a esses temerários mecâ- nicos.

Entretanto, essa idéia, ?eminentemente prática?, conheceu
enorme êxito.

Capitulo XI – Ataque e réplica

Esse incidente parecia pôr termo à discussão. Era a palavra
final e parecia não se poder encontrar melhor. No entanto, quando a
agitação se acalmou, ouviram-se estas palavras pronunciadas
com voz forte e severa: – Agora que o orador deu mais do que deveria dar à
sua fantasia, quererá voltar ao seu assunto, expondo menos teorias,
e discutir a parte prática da sua expedição? Todos os
olhares se dirigiram para a personagem que assim falava. Era um homem magro,
seco, de rosto enérgico e com uma barba cortada à americana,
que se adensava debaixo do queixo. No meio da agitação que de
vez em quando se produzia na multidão, ele tinha pouco a pouco conseguido
chegar à primeira fila dos espectadores. Ali, de braços cruzados,
de olhar brilhante e ousado, fixava imperturbavelmente o herói da assembléia.
Depois de ter formulado o seu pedido, calou-se e não pareceu ficar
nada perturbado pelos milhares de olhos fixos nele, nem pelo murmúrio
desaprovador provocado pelas suas palavras. A resposta fazia-se esperar e
ele voltou a fazer a pergunta, com o mesmo tom preciso, e depois acrescentou:
– Estamos aqui para nos ocuparmos da Lua e não da – Tem razão,
senhor – respondeu Michel Ardan -;a discuss ão afastou-se um tanto
do assunto principal. Voltemos à Lua.

– Senhor – replicou o desconhecido -, pretende que o nosso satélite
seja habitado. Pois bem. Se existem habitantes na Lua devem viver sem respirar,
pois (e previno-o no seu interesse) não há uma única
molécula de ar na superfície da Lua.

Ao ouvir esta afirmação, Ardan endireitou a sua juba fulva;
compreendeu que a luta ia travar-se com aquele homem no mais vivo da questão.
Olhou-o fixamente por sua vez e disse: Ali, sim? Não há ar na
Lua! E quem afirmou isto? – Os sábios.

– Senhor – respondeu Michel -, fora de brincadeira que tenho o maior respeito
pelos que sabem, mas um profundo desdém pelos que não sabem.

– Conhece alguns que pertençam a essa última categoria? –
Claro! Na França existem alguns que afirmam que matematicamente ? o
pássaro não pode voar, e outros cujas teorias demonstram que
o peixe não foi feito para viver na água.

– Não se trata desses, senhor, e eu poderia citar em apoio da minha
afirmação nomes que o senhor não recusaria.

– Nesse caso, senhor, iria embaraçar um pobre ignorante que, de resto,
não deseja mais do que instruir-se.

– Por que aborda então questões científicas se não
as estudou? – perguntou o desconhecido, com bastante rudeza.

– Por quê? – replicou Michel Ardan. – Pela mesma razão que
aquele que não desconfia do perigo é sempre arrojado! É
verdade que nada sei mas é precisamente a minha fraqueza que faz a
minha força.

– A sua fraqueza chega à loucura – respondeu o desconhecido com manifesto
mau humor.

– Tanto melhor – replicou o francês -, se a minha loucura me levar
à Lua! Barbicane e os seus colegas devoravam com o olhar aquele intruso
que tão ousadamente se opunha ao empreendimento.

Ninguém o conhecia, e o presidente, pouco tranqüilo pelas conseqüências
daquela discussão, olhava o seu novo amigo com certa apreensão.
A multidão estava atenta e seriamente inquieta, pois essa luta tinha
como resultado chamar a atenção sobre os perigos ou mesmo sobre
as verdadeiras impossibilidades da expedição.

– Senhor – continuou o adversário de Michel Ardan -, são numerosas
e indiscutíveis as razões que provam a ausência de qualquer
atmosfera na Lua. Direi mesmo, a priori, que se essa atmosfera jamais existiu
deve ter sido subtra- ída pela Terra. Mas prefiro opor-lhe fatos irrecusáveis.

– Oponha, senhor – respondeu Michel Ardan, com uma delicadeza perfeita.
– Oponha tudo quanto lhe agradar! – Sabe – disse o desconhecido – que, quando
os raios luminosos atravessam um meio como o ar são desviados da linha
reta, ou, em outros termos, sofrem uma refração.

Pois bem! Quando as estrelas são ocultas pela Lua, nunca os seus
raios, rasando as margens do disco lunar, sentiram o menor desvio ou deram
o mais ligeiro indício de refração.

Dai a conclusão evidente de que a Lua não é envolvida
numa atmosfera.

Todos olharam para o francês, pois, uma vez admitida a observação,
as conseqüências seriam perfeitamente rigorosas.

– Realmente – respondeu Michel Ardan -, eis o seu melhor argumento, para
não dizer o único, e um sábio sentir-se-ia talvez embaraçado
em lhe responder; eu dir-lhe-ei apenas que esse argumento não tem valor
absoluto, pois supõe o diâmetro angular da Lua perfeitamente
determinado, o que não é assim. Mas passemos à frente,
e diga-me, meu caro senhor, se admite a existência de vulcões
na superfície da Lua? – De vulcões extintos, sim; ativos, não,
– No entanto, deixe-me acreditar, sem os limites da lógica, que esses
vulcões estiveram em atividade durante um certo período! Isto
é certo; mas, como eles podiam fornecer por si pró- prios o
oxigênio necessário para a combustão, a sua erup- ção
não prova de modo nenhum a existência de uma atmosfera lunar.

– Adiante então – respondeu Michel Ardan -, e deixemos de lado esse
gênero de argumentos para passarmos às observa ções
diretas. Mas previno-o de que vou citar nomes para a frente.

– Cite.

– Bem. Em 1715, os astrônomos Louville e Halley, observando o eclipse
do dia 3 de maio, notaram certas cintilações de uma natureza
estranha. Esses jatos de luz, rápidos e freqüentes, foram atribuídos
por eles a tempestades que se desencadeavam na atmosfera da Lua.

– Em 1715 – replicou o desconhecido -, os astrônomos Louville e Halley
tomaram por fenômenos lunares fenômenos puramente terrestres,
tais como bólides ou outros, que se produziam na nossa atmosfera. Eis
o que responderam os sábios ao enunciado desses fatos, e eis o que
eu respondo com eles. ? – Adiante – respondeu Ardan, sem se mostrar perturbado
com a resposta. – Herschell, em 1787, não observou um grande número
de pontos luminosos na superfície da Lua? – Sem dúvida; mas
próprio Herschell não origem desses pontos luminosos – concluiu
daí que houvesse necessariamente uma atmosfera lunar – disse Michel
Ardan.

– Bem respondido que é muito forte o seu adversário -; vejo
em, selenografia. – muito forte, senhor, e acrescento hábeis observadores,
aqueles que mais arduamente estudaram o astro noturno, Os senhores Beer e
Moedler, estão de acordo comigo sobre a absoluta falta de ar na sua
superf ície.

Deu-se um movimento na assistência, que pareceu convencer- se com
os argumentos daquela singular personagem eu ainda Michel Ardan com a – Adiante
– responde um fato importância maior calma -, e cheguemos agora. Um
hábil astrônomo francês, o senhor Laussedat, observando
o eclipse de 18 de julho de 1860, verificou que as extremidades do crescente
solar estavam arredondadas e truncadas. Ora, esse fenômeno só
pode ter sido produzido por um desvio dos raios do Sol através da atmosfera
da Lua, e não existe outra explicação.

– Mas isso é verdade? – perguntou vivamente o desconhecido.

– Absolutamente verdade.

Um movimento inverso levou de novo a multidão para o seu herói
favorito, cujo adversário ficou silencioso. Ardan voltou a falar, e,
sem se envaidecer com a sua última van tagem, disse simplesmente: –
Meu caro senhor, que não nos podemos pronunciar de, um modo absoluto
contra a existência de atmosfera na superfície da Lua; essa atmosfera.
é provavelmente pouco densa, bastante sutil, mas atualmente a ciência
admite geralmente que ele existe.

– Não nas montanhas – replicou o desconhecido, que não queria
perder a partida.

– Não, mas no fundo dos vales, e não ultrapassando em altura
algumas centenas de pés.

– Em todo o caso, fará bem em tomar precauções, pois
esse ar será terrivelmente rarefeito.

– Meu caro senhor, haverá sempre ar suficiente para um homem só;
de resto, uma vez chegado lá em cima, tentarei economizá-lo
o mais possível e só respirarei nas grandes ocasiões!
Uma formidável gargalhada. chegou aos ouvidos do misterioso interlocutor,
que estendeu o olhar pela multidão, enfrentando- a com orgulho.

– Portanto – continuou Michel Ardan, com um ar descontraído -, já
que estamos de acordo sobre a probabilidade da exist ência de uma certa
atmosfera, vemo-nos forçados a admitir a presença de uma certa
quantidade de água. É uma conseqüência que muito
me alegra. De resto, meu amável contraditor, permita-me que lhe faça
ainda uma observa- ção. Nós só conhecemos um dos
lados da Lua, e se ela tem pouco ar no lado que nós vemos pode ser
que tenha muito do outro lado.

– E por que razão? – Porque a Lua, sob a ação da atração
terrestre, tomou a forma de um ovo, que nós vemos da extremidade mais
pequena. Daí essa conseqüência, devida aos cálculos
de Hansen, de que o seu centro de gravidade se encontra situado no outro hemisfério.
Daí a conclusão de que todas as massas de ar e de água
devem ter sido arrastadas para a outra face do nosso satélite nos primeiros
dias da sua criação.

– Pura fantasia! – exclamou o desconhecido.

Não ! Pura teoria, que se apoia nas leis da mecânica e que
me parece difícil refutar. Apelo, portanto, para esta assembl éia
e ponho a questão de saber se a vida, tal como existe na Terra, é
possível à superfície da Lua! Trezentos mil ouvintes
aplaudiram ao mesmo tempo a sua proposta. 0 adversário de Michel queria
continuar falando mas já não conseguia fazer-se ouvir. Os gritos
e as amea- ças caíam sobre ele como uma saraivada.

– Basta! Basta! – diziam uns.

– Expulsem este intruso! – repetiam outros.

– Fora! Fora! – exclamava a multidão, irritada. No entanto, ele,
firme, agarrado ao estrado, não se mexia e deixava passar a tempestade,
que teria tomado proporções formid áveis se Michel Ardan
não a tivesse apaziguado com um gesto. Era demasiadamente cavalheiro
para abandonar o seu adversário em tais extremos.

– Deseja acrescentar mais algumas palavras? – perguntoulhe, no tom mais
gracioso.

– Sim – respondeu o desconhecido, com irritação. – Oha, dizendo
melhor, não; uma só: para perseverar na empresa é preciso
que seja…

– Imprudente! Como pode tratar-me assim, a mim, que pedi ao meu amigo Barbicane,
para que o projétil fosse cilindro-cônico, a fim de não
andar às voltas na viagem, à maneira dos esquilos? – Mas infeliz-
a formidável repercussão do tiro vai fazê-lo em pedaços
logo à partida! – Meu caro contraditor: acaba de mencionar a verdadeira
e única dificuldade; no entanto, acredito demais no gênio industrial
dos americanos para pensar que eles não a possam resolver! – E o calor
desenvolvido pela velocidade do projétil ao atravessar as camadas da
atmosfera? – As paredes do projétil são espessas e eu atravessarei
rapidamente a atmosfera.

– Mas os víveres? E a água? min- Calculei que Poderia levar
víveres para um ano e a ha travessia durará apenas quatro-dias1
– E ar para respirar durante o caminho? – Fabricá-lo-ei por meio de
processos químicos.

– E a queda na Lua, se alguma vez lá chegar? – Será seis vezes
menos rápida do que uma queda na Terra, visto que a gravidade é
seis vezes menor na superfície da Lua.

– Mas mesmo assim será suficiente para o espatifar como se fosse
de vidro! – E quem me impedirá de retardar a minha queda por meio de
foguetes convenientemente dispostos e inflamados na ocasião oportuna?
– Mas, enfim, suponho que todas as dificuldades sejam resolvidas, todos os
obstáculos aplainados reunindo todas as probabilidades em seu favor,
admitindo que chegue à Lua são e salvo, corno volta? – Não
voltarei! Ao ouvir aquela resposta, que pela sua simplicidade, raiava o sublime,
a multidão ficou muda. Mas o seu silêncio foi mais eloqüente
do que teriam sido os seus gritos de entusiasmo.

0 desconhecido aproveitou para protestar uma última vez.

– Morrerá infalivelmente – exclamou -, e a sua morte, que terá
sido a morte de um insensato, nem sequer servirá de coisa alguma para
a ciência.

– Continue, meu generoso desconhecido: verdadeiramente os seus prognósticos
são , realmente, muito agradá- veis.

– Ah! Isto é demais! – exclamou o adversário de Michel Ardan
-, e não sei por que razão continuo uma rosto estava radiante.
Por vezes, o estrado parecia balançar como um navio sobre as ondas.
Mas os dois heróis da assembl éia tinham pés de marinheiro;
não vacilaram e o seu bar co chegou sem avarias ao porto de Tampa.
Michel Ardan conseguiu fugir aos últimos abraços dos seus vigorosos
admiradores; escapou-se para o Hotel Franklin. Entretanto uma cena curta tinha
lugar entre a personagem misteriosa e o presidente do Clube do Canhão.

– Venha – disse num tom seco.

0 seu antagonista seguiu-o até o cais, e em breve os dois se encontravam
sozinhos.

– Que m é o senhor? – perguntou Barbicane.

0 Capitão Nicoles.

– Já o suspeitava. Até agora, o acaso nunca o tinha posto
no meu caminho…

Vim propositadamente para isto! – Insultou-me! – Publicamente.

– E há de justificar esse insulto.

Agora mesmo.

– Não. Desejo que tudo se passe estritamente entre nós.

Existe um bosque situado a três milhas de Tampa: o bosque Skernaw.
Conhece-o? – Conheço.

– Agrada-lhe penetrar lá bem cedo, às cinco horas da manh
ã, por um dos lados? – Sim, se à mesma hora o senhor lá
penetrar pelo outro.

– E não esquecerá a sua espingarda? – perguntou Barbicane.

– Assim como o senhor não esquecerá a sua – respondeu Nicoles.

Depois destas palavras friamente pronunciadas, o Presidente do Clube do
Canhão e o capitão separaram-se.

Capítulo XII – Michel Ardan resolve pendência
de honra

Enquanto as convenções desse duelo eram discutidas en tre o
. presidente e o capitão, que se adivinhava terrível e selvagem,
no qual cada um dos adversários se entregaria a uma verdadeira caça
ao homem, Michel Ardan descansava das fadigas do triunfo. Descansar não
era a expressão justa, pois as camas americanas podem rivalizar em
dureza com as mesas de mármore ou de granito.

Ardan dormia portanto bastante mal, voltando-se e tornando a voltar-se entre
as toalhas que lhe serviam de len- çóis, e pensava em instalar
uma cama mais confortável que aquela no seu projétil, quando
um ruído violento o arrancou aos seus sonhos. Pancadas desordenadas
abalavam a porta. Pareciam ser desferidas por um instrumento de ferro. Gritos
formidáveis misturavam-se com aquelas pancadas na porta, demasiadamente
matinais.

– Abre! – gritavam? – Pelo amor de Deus, abre depressa! Ardan não
tinha qualquer razão para aquiescer a um pedido feito de maneira tão
ruidosa. No entanto, levantou-se e abriu a porta no momento em que esta ia
ceder aos esfor- ços do obstinado visitante. 0 secretário do
Clube do Canh ão entrou de repente no quarto. Uma bomba não
teria entrado com menos cerimônia.

– Ontem à noite – exclamou abruptamente -, o nosso presidente foi
publicamente insultado durante a assembléia.

Provocou o seu adversário, que é, nem mais, nem menos, o Capitão
Nicoles. Batem-se esta manhã no bosque de Skersnaw! Soube tudo pela
boca do próprio Barbicane! Se ele for morto, os nossos projetos ficam
aniquilados! É preciso impedir tal duelo. Ora, um único homem
no mundo pode ter suficiente domínio sobre Barbicane para o deter,
e esse homem é Michel Ardan.

Enquanto J. T. Maston assim falava, Michel Ardan, renunciando a interrompê-lo,
tinha vestido as suas largas calças, e menos de dois minutos depois,
os dois amigos corriam pelas ruas de Tampa.

Foi durante essa rápida correria que Maston pôs Ardan ao corrente
da situação. ?Disse-lhe quais eram as verdadeiras causas da
inimizade de Barbicane e de Nicoles – porque essa inimizade era de velha data
-, quais os motivos que até então, graças a amigos comuns,
tinham impedido o presidente e o capitão de se encontrarem frente a
frente; acrescentou que se tratava unicamente de uma rivalidade entre couraças
e projétis e que finalmente a cena da assembl éia fora apenas
uma ocasião durante muito tempo procurada por Nicoles para satisfazer
antigos rancores.

Nada mais terrível do que esses duelos particulares à americana,
durante os quais os dois adversários se procuram através das
matas, se espreitam no canto dos bosques como animais selvagens. Em momentos
assim é que os adversários devem 1 invejar as qualidades maravilhosas
tão naturais nos índios das planícies, a sua rápida
inteligência e engenhosa astúcia, o seu instinto para encontrar
rastos e sinais do inimigo. Um erro, uma hesitação, um passo
em falso podem conduzir à morte. Nesses encontros, os ianques fazem-se
muitas vezes acompanhar pelos seus cães, e, simultaneamente nos papéis
de caçadores e caça, perseguem-se durante horas.

– Que diabo de pessoas são vocês? – exclamou Michel Ardan,
quando o seu companheiro lhe descreveu com muita energia toda essa encenação.

– Nós somos assim – respondeu modestamente J. T.

Maston. – Mas apressemo-nos.

Michel Ardan e Maston correram através da planície, ainda
úmida do orvalho, atravessaram plantações de arroz e
pequenos rios, meteram por atalhos, mas mesmo assim não conseguiram
atingir antes das cinco horas e meia o bosque de Skersnaw. Barbicane devia
ter transposto a sua orla há cerca de meia hora.

Viram um velho lenhador ocupado em fazer feixes com ramos de árvores
abatidos pelo seu machado.

– Viu entrar no bosque um homem armado com uma .espingarda, Barbicane…
o meu melhor amigo? 0 digno secretário do Clube do Canhão pensava,
ingenua mente, que o seu presidente devia ser conhecido por todos.

– Mas o lenhador não parecia compreendê-lo.

– Um caçador – disse então Michel Ardan.

– Um caçador? Sim – respondeu o lenhador.

– Há muito tempo? – Há pouco mais ou menos uma hora.

– Tarde, demais! – exclamou Maston.

– E ouviu tiros de espingarda? – perguntou Michel Ardan.

– Não.

– Nem um só? . Nem um. Esse caçador parece não estar
fazendo boa caçada.

– Que fazer? – disse Maston.

– Podemos entrar no bosque e correremos o risco de apanhar uma bala que
não nos é destinada.

– Ali! ?- exclamou Maston com uma expressão que não enganava
-, prefiro dez balas na minha cabeça do que uma só na cabeça
de Barbicane.

– Então para a frente – disse Ardan, apertando a mão do seu
companheiro.

Alguns segundos mais tarde, os dois amigos desapareciam no mato. Era um
emaranhado de árvores muito espessas, feito de ciprestes gigantes,
sicômoros, oliveiras, tamarindos, tulipeiros, carvalhos e de magnólias.
Essas diversas árvores emaranhavam os seus ramos numa mistura inextricável,
sem permitir que a vista se estendesse ao longe. Michel Ardan e Maston caminhavam
um perto do outro, passando silenciosamente através das ervas altas,
abrindo caminho através das trepadeiras vigorosas, interrogando com
o olhar os arbustos ou os ramos perdidos na sombria espessura da folhagem
e esperando a cada passo a temível detona- ção das espingardas.
Quanto aos rastos que Barbicane devia ter deixado da sua passagem através
do bosque, eralhes impossível reconhece-los, e eles caminhavam como
cegos pelos caminhos mal desbravados, nos quais um ín dio teria detectado
sem hesitação a pista do seu adversá- rio.

Após uma hora de vãs pesquisas, os dois companheiros detiveram-se.
A sua inquietação redobrava a cada segundo.

– Tudo já deve ter acabado – disse Maston, desencorajado..

– Um homem como Barbicane não podia ter usado astúcia contra
o seu inimigo, nem preparado qualquer armadilha, nem feito qualquer manobra.
É demasiado franco. Demasiado corajoso. Foi para a frente, direto ao
perigo, e chegou sem dúvida bastante distante do lenhador para que
o vento tenha levado até ele a detonação de uma arma.

– Mas nós. Nós. – disse Michel Ardan. – Desde a nossa entrada
no bosque, teríamos ouvido…

– E se chegamos tarde demais! – exclamou J. T. Maston, com uma expressão
de desespero.

Michel Ardan não achou nada para responder; Maston e ele continuaram
o caminho interrompido. De tempos a tempos, soltavam grandes gritos; chamavam
quer Barbicane quer Nicoles; mas nem um nem outro dos dois adversários
respondeu à sua chamada. Alegres bandos de pardais, despertos pelo
ruído, desapareciam por entre as ramadas, e alguns gamos assustados
fugiam precipitadamente pelo meio do mato.

A procura prolongou-se ainda durante uma hora mais. A maior parte do bosque
já tinha, sido explorada. Nada denunciava a presença dos contendores.
Era de porem dúvida a afirmação do lenhador, e Ardan
ia renunciar a prosseguir durante mais tempo um reconhecimento inútil
quando, de repente, Maston o deteve.

– Silêncio! – disse ele.. – Alguém está ali.

– Alguém? – inquiriu Michel Ardan.

Sim, um homem! Parece imóvel. Mas não tem a espingarda nas
mãos. Que faz ele? – Mas você o reconhece? – perguntou Michel
Ardan, cuja vista não o ajudava nessas ocasiões.

– Sim, sim – respondeu Maston. – Está voltando.

– E é?…

– 0 Capitão Nicoles! Nicoles! – exclamou Michel Ardan, que sentiu
um violento aperto no coração.

– Nicoles desarmado! Não tem então nada a recear do seu adversário?
– Vamos ter com ele – disse Michel Ardan -: assim, saberemos o que aconteceu.

Ele e o seu companheiro ainda não tinham dado cinqüenta passos
quando pararam para examinar mais detidamente o capitão. Imaginavam
ir encontrar um homem sedento de sangue e todo entregue aos seus pensamentos
de vingan- ça! Ao vê-lo, ficaram totalmente, espantados.

Uma faixa de malha apertada estendia-se entre dois tulipeiros, e, no meio
dessa rede, um passarinho, com as asas apanhadas nas malhas, debatia-se soltando
pios lastimosos.

0 caçador de pássaros que ali colocara aquela rede inextricável
não era um ser humano, mas, sim, uma aranha venenosa comum na região,
do tamanho de um ovo de pomba e munida de patas enormes. 0 horroroso animal,
no movimento de se precipitar sobre a sua vítima, tivera de retroceder
e procurar asilo nos ramos altos? dos tulipeiros, pois um inimigo temível
viera ameaçá-lo por sua vez.

Realmente, o Capitão Nicoles, com a espingarda por terra, esquecendo
os perigos da sua situação, ocupava-se em libertar o mais delicadamente
possível a vítima apanhada entre as malhas da teia da monstruosa
aranha. Quando terminou, deu a liberdade ao passarinho, que bateu alegremente
as asas e desapareceu, Nicoles, enternecido, viu-o fugir através dos
ramos, e de súbito ouviu estas palavras pronunciadas com voz comovida:
– 0 senhor é um homem corajoso.

Voltou-se. Michel Ardan encontrava-se em frente dele, re petindo em todos
os tons: E um homem gentil.

– Michel Ardan! – exclamou o capitão. – Que vem – fazer aqui, senhor?
– Apertar-lhe a mão, Nicoles, e impedi-lo de matar Barbicane ou de
ser morto por ele.

– Barbicane – exclamou o capitão -, que eu procuro há duas
horas sem o encontrar – Onde se esconde ele?…

– Nicoles! – ? disse Michel Ardan. – Isto não é delicado.
É preciso respeitar sempre o adversário; esteja tranqüilo:
se Barbicane estiver vivo, nós o encontraremos. Por outro lado, e é
Michel Ardan quem lho diz, já não haverá qualquer duelo
entre-os dois.

– Entre o Presidente Barbicane e eu – respondeu gravemente Nicoles – existe
uma tal rivalidade que só a morte de um de nós…

– Vamos! Vamos! – replicou Michel Ardan homens como vocês dois podem
ter-se detestado, mas têm de passar a estimar-se. Não se baterão.

– Bater-me-ei, senhor.

– Não.

– Capitão – disse então J. T. Maston, muito comovido. – Eu,
sou amigo do presidente, sou como se fosse ele próprio; se quer absolutamente
matar alguém, dispare sobre mim, que será exatamente o mesmo.

– Senhor – disse Nicoles apertando convulsivamente a coronha da espingarda
-, essas brincadeiras…

– 0 amigo Maston não graceja e eu compreendo a sua idéia de
se deixar matar em vez do homem de que é amigo! Mas nem ele nem Barbicane
cairão sob as balas do Capitão Nicoles, pois tenho uma proposta
a fazer aos dois rivais, uma proposta tão sedutora que eles se apressarão
a aceitar.

– E qual é? – perguntou Nicoles? com visível incredulidade.

– Um pouco de paciência – replicou Ardan -: só posso comunicá-lo
na presença de Barbicane.

– Vamos então procurá-lo – exclamou o capitão.

Imediatamente, os três homens se puseram a caminho; o capitão,
depois de ter descarregado a sua espingarda, pô- la ao ombro e avançou
com passos irregulares, sem nada dizer.

Durante ainda mais meia hora as pesquisas foram inúteis.

Maston tinha tristes pressentimentos. Observava severamente Nicoles, pensando
se o capitão não teria satisfeito os seus desejos de vingança
e se o pobre Barbicane não se encontraria, ensangüentado, já
sem vida, no fundo de algum talude. Michel Ardan parecia ter os mesmos pensamentos,
e ambos interrogavam já com o olhar o Capitão Nicoles quando,
de súbito, Maston se deteve.

0 busto imóvel de um homem deitado debaixo de uma gigantesca árvore
surgia a vinte passos, semi-escondido pelas folhagens.

– É ele! – disse Maston.

Barbicane não se mexia. Ardan mergulhou o seu olhar no do capitão,
mas este não se mexeu. Ardan deu então alguns passos, gritando:
– Barbicane! Barbicane! Não obteve resposta. Ardan precipitou-se para
o amigo; mas, no momento em que ia agarrar-lhe o braço, detevese, soltando
um grito de surpresa.

Barbicane, de lápis na mão, traçava fórmulas
e figuras geom étricas num papel, enquanto a sua espingarda, descarregada,
jazia por terra.

Absorvido no seu trabalho, o sábio, esquecendo por sua vez o duelo
e a vingança, nada ouvira nem ouvia.

Mas, quando Michel Ardan pousou a mão sobre a dele, levantou- se
e olhou-o com ar espantado.

– Ali! – exclamou finalmente. – Descobri, meu amigo, descobri! – Os meios!
– Masque meios? – Meios de anular o efeito da repercussão na partida
do projétil! – Realmente? – perguntou Michel Ardan, olhando o capitão
pelo canto do olho.

– Sim! Água pura que servirá de mola… Ah, Maston – exclamou
Barbicane -, também aqui.

– Ele mesmo – respondeu Michel Ardan -, e permita-me que te apresente ao
mesmo tempo o digno Capitão Nicoles! – Nicoles! – exclamou Barbicane,
manifestando sua surpresa.

– Perdão, capitão – disse – tinha esquecido… estou pronto…

Michel Ardan interveio sem deixar aos dois inimigos tempo de se interpelarem.

– Por Deus! – disse -, ainda bem que dois valentes homens como os senhores
não se encontraram mais cedo. Teríamos agora a chorar um ou
outro. Mas graças a Deus, que se meteu no caso, já não
temos nada a recear. Quando se esquece o ódio para se mergulhar nos
problemas de mec ânica ou para pregar partidas às aranhas, é
porque esse ódio não é perigoso para ninguém.

E Michel Ardan contou ao presidente a história do capitão.

– Pergunto agora – disse, concluindo – se dois seres bons como os senhores
foram feitos para dilacerarem mutuamente a cabeça a tiros de espingarda?
Havia nessa situação, um pouco ridícula, alguma coisa
de tão inesperado que Barbicane e Nicoles não sabiam bem que
atitude manter em relação um ao outro. Michel Ardan sentiu –
o bem e decidiu apressar a reconciliação.

– Meus bravos amigos – disse, deixando aparecer nos lábios o seu
melhor sorriso -, entre os dois nunca houve sen ão um mal-entendido.
Nada mais. Pois bem! Para provar que está tudo acabado entre vocês,
e visto que são pessoas prontas e arriscar a pele, aceitem francamente
a proposta que lhes vou fazer.

– Fale – disse Nicoles.

– 0 amigo Barbicane julga que o seu projétil irá direitinho
à Lua.

– Sim, certamente – replicou o presidente.

– E o amigo Nicoles tem a certeza de que ele voltará a cair na Terra.

– Estou certo disto – exclamou o capitão.

– Bom! replicou Michel Ardan. – Não tenho a pretensão de os
pôr de acordo; mas digo-lhes muito francamente: venham comigo, e ficarão
sabendo se ficamos pelo caminho.

– Hem? – exclamou J. T. Maston, estupefato.

Ao ouvirem aquela inesperada proposta, os dois rivais tinham olhado um para
o outro. Observavam-se com aten- ção. Barbicane esperava a resposta
do capitão. Nicoles as palavras do presidente.

– Então? – disse Michel Ardan no seu tom mais conciliador.

Visto que não há repercussão a temer…

– Aceito! – exclamou Barbicane.

– Viva! Bravo! Hip! Hip! Hip! Hurra! – exclamou Michel Ardan, estendendo
a mão aos dois adversários. – E agora, que o assunto está
solucionado, meus amigos, permitam-me que os trate à francesa. Vamos
almoçar.

Nesse mesmo dia, toda a América soube o que havia passado entre o
Capitão Nicoles e o Presidente Barbicane, assim como o seu singular
desenlace. 0 papel desempenhado nesse encontro pelo cavalheiresco europeu,
a sua inesperada proposta, que fazia desaparecer as dificuldades, a aceita
ção simultânea dos dois rivais, essa conquista do continente
lunar para a qual a França e os Estados Unidos iam marchar de comum
acordo, tudo se reunia para aumentar mais ainda a popularidade de Michel

Capítulo XIII – O vagão-projétil

Depois de terminado o célebre columbiad, o interesse do público
incidiu imediatamente sobre o projétil, esse novo veículo destinado
a transportar através do espaço os três ousados aventureiros.
Ninguém se tinha esquecido de que, no seu telegrama de 30 de setembro,
Michel Ardan pedia uma modificação nos planos feitos pelos membros
da Comiss ão.

0 Presidente Barbicane pensava então com razão que a forma
do projétil importava pouco, pois, após ter atravessado a atmosfera
em poucos segundos, o seu percurso devia efetuar-se no vácuo total.
A Comissão adotara, portanto, a forma redonda, a fim de que o projétil
pudesse girar sobre si mesmo e comportar-se segundo a sua fantasia.

Mas, desde o momento em que era transformado em veículo, o caso era
diferente. Michel Ardan não queria viajar à maneira dos esquilos;
queria subir de cabeça para cima e pés para baixo, com tanta
dignidade como na barquinha de uni balão, mais depressa sem dúvida,
mas sem se entregar a uma série de cambalhotas pouco convenientes.

Novos planos foram, portanto, enviados à casa Breadwill & C?,
de Albany, com a recomendação de serem executados sem demora.
0 projétil, assim modificado, foi fundido a 2 de novembro e enviado
imediatamente à Colina das Pedras pela estrada de ferro do leste. A
chegou sem acidentes ao seu local de destino. Michel Ardan, Barbicane e Nicoles
esperavam com a mais viva impaciência aquele ?vagãoproj étil?
no qual deviam tomar lugar para voarem à descoberta de uni novo mundo.

É preciso concordar que se tratava de unia magnífica peça
de metal, de um produto metalúrgico que fazia a honra ao gênio
industrial dos americanos. Acabava-se de obter pela primeira vez o alumínio
numa quantidade tão considerável, o que podia ser justamente
considerado como uni resultado prodigioso. Esse precioso projétil cintilava
sob os raios do Sol. Ao vê-lo com as suas formas imponentes e encimado
pelo seu chapéu cônico, tomar-se-ia de boa vontade por unia dessas
torres em forma de pimenteiros, que os arquitetos da Idade Média suspendiam
nos cantos dos cas telos fortificados.

– Fico à espera -. dizia Michel Ardan -.de ver de lá sair
um homem de armas, usando um arcabuz e armadura de aço.

Estaremos lá dentro como feudais, e com um pouco de artilharia faríamos
frente a todos os exércitos selenitas, se é que os há
na Lua! – Então, o veículo agrada-te? – perguntou Barbicane
ao seu amigo.

– Sim, Sim!, sem dúvida – respondeu Michel Ardan, que o observava
como artista. – Lamento apenas que as suas formas não sejam mais esguias,
o seu cone mais gracioso; devia ser terminado com uni tufo de enfeites em
metal lavrado, com unia quimera, por exemplo, uma carranca ou uma salamandra
saindo do fogo com as fauces escancaradas…

– Para quê? – disse Barbicane, cujo espírito, positivo, era
pouco sensível às belezas da arte.

– Para quê, amigo Barbicane! Visto que me perguntas, creio que nunca
o compreenderás.

– Mas diz, meu caro companheiro.

– Pois bem; conforme a minha opinião, é preciso por sempre
uni pouco de arte naquilo que se faz. É melhor. Conheces unia peça
indiana que se chama 0 Carro da Criança? – Nem sequer de nome – respondeu
Barbicane.

– Isto não me espanta – replicou Michel Ardan. – Fica sabendo que,
nessa peça, há um ladrão que, no momento de furar a parede
de unia casa, pergunta a si mesmo se fará ao seu buraco a forma de
unia lira, de uma flor, de um pássaro ou de uma ânfora. Dize-me,
então, amigo Barbicane, se tu fosses membro do júri condenarias
esse ladrão? – Sem hesitar – respondeu o presidente do Clube do Canh
ão -, e com a agravante do arrombamento.

– E eu absolvê-lo-ia, amigo Barbicane! Por isto, nunca poder ás
compreender-me! – Nem sequer tentarei, meu valente artista.

– Mas pelo menos – replicou Michel Ardan -, visto que o exterior do nosso
projétil deixa muito a desejar, permitamme que o decore à minha
vontade, e com todo o luxo conveniente aos embaixadores da Terra! – A esse
respeito, meu bom Michel – respondeu Barbicane – , podes agir segundo a tua
fantasia, pois te deixaremos proceder à vontade.

Porém, antes do agradável, o presidente do Clube do Canh ão
tinha pensado no útil, e os meios inventados por ele para diminuir
os efeitos de repercussão foram aplicados com perfeita inteligência.

Barbicane havia pensado, não sem razão, que nenhuma mola seria
suficientemente poderosa para amortecer o choque, e, durante o seu famoso
passeio no bosque de Skersnaw, acabara por resolver essa grande dificuldade
de unia forma engenhosa. Era à água que ele ia pedir que lhe
prestasse esse notável serviço. Vamos ver como.

0 projétil devia ser cheio até a altura de três pés
com unia camada de água destinada a suportar uni disco de madeira perfeitamente
estanque, que ficaria encostado às paredes internas do projétil.
Era sobre essa verdadeira jangada que os viajantes tomariam lugar. Quanto
à massa líquida, era dividida por compartimentos horizontais,
que o choque da partida devia quebrar sucessivamente. Então, cada lençol
de água, do mais baixo ao mais alto, saindo por tubos que iam ter à
parte superior do projétil, serviria assim de mola, e o disco, munido
de tampões extremamente poderosos, apenas podia bater na parte inferior
depois do sucessivo esmagamento dos diversos tabiques. Sem dúvida,
os viajantes sentiriam ainda unia violenta sacudidela após a massa
líquida ter saído completamente, mas o primeiro choque devia
ser quase inteiramente anulado por aquele amortecedor de grande potência.

É verdade que três pés de água numa superfície
de cinqüenta e quatro pés quadrados deviam pesar perto de onze
mil e quinhentas libras; mas a expansão dos gases acumulados no columbiad
bastaria, segundo a opinião de Barbicane, para vencer esse acréscimo
de peso; de resto, o choque devia expulsar toda a água em menos de
uni segundo, e o projétil voltaria a ter rapidamente o seu peso normal.

Eis o que tinha imaginado o presidente do Clube do Canh ão, e de
que modo ele pensava ter resolvido a grave questão da repercussão.
Esse trabalho, inteligentemente compreendido pelos engenheiros da Casa Breadwill,
foi maravilhosamente executado; unia vez produzido o efeito e a água
expelida para fora, os viajantes poderiam desembara çar-se facilmente
dos tabiques quebrados e desmontar o disco móvel onde se apoiariam
no momento da partida.

Quanto às paredes superiores do projétil, eram revestidas
de uni espesso acolchoado de couro, aplicado sobre espirais do melhor aço,
que tinham a leveza das molas de reló- gio. Os tubos de escape, dissimulados
sob esse acolchoado, não deixavam sequer desconfiar da sua existência.

Assim, tinham sido tomadas todas as precauções possí-
veis e imaginárias para amortecer o primeiro choque, e para se deixarem
esmagar, como dizia Michel Ardan, era preciso que fossem de muito má
raça?.

0 projétil media exteriormente nove pés de largura por doze
de altura. Para não ultrapassar o peso previsto, tinham diminu ído
ligeiramente a espessura das suas paredes externas e reforçado a parte
inferior, que devia suportar toda a violência dos gases desenvolvidos
pela deflagração do piróxilo. Sucede assim nas bombas
e obuses cilindro-cônicos, cujo fundo é sempre mais espesso.

Penetrava-se nessa torre de metal por unia estreita abertura feita nas paredes
do cone. Fechava hermeticamente por meio de unia chapa de alumínio,
preso no interior por meio de fortes parafusos de pressão. Os viajantes
poderiam sair à vontade da sua prisão móvel, logo que
atingissem o astro da noite.

Contudo, não era preciso apenas ir: forçoso era também
ver. Nada mais fácil. Realmente, sob o acolchoado encontravam- se quatro
vigias de vidro de lente, de grande espessura, duas abertas na parede circular
do projétil, unia terceira na parte inferior e a última no seu
chapéu cônico.

Os viajantes teriam, portanto, oportunidade de observar, durante o seu percurso,
a Terra que acabavam de abandonar, a Lua de onde se aproximavam e os espaços
constelados do céu. No entanto, essas vigias estavam protegidas contra
os choques da partida por placas solidamente presas, fáceis de ser
retiradas desatarraxando os parafusos interiores. Desse modo, o ar contido
no projétil não podia escapar, e as observações
tornavam-se possíveis.

Todos esses mecanismos, admiravelmente estabelecidos, funcionavam com a
maior facilidade, e os engenheiros não se tinham mostrado menos inteligentes
no arranjo do vag ão-projétil.

Recipientes solidamente presos eram destinados a conter a água e
os víveres necessários aos três viajantes; estes podiam
até ter fogo e luz com o gás armazenado num recipiente especial,
sob unia pressão de várias atmosferas.

Bastava virar unia chave e durante seis dias esse gás devia iluminar
e aquecer esse confortável veículo. Como se vê, nada daquilo
que era essencial à vida e mesmo ao bemestar faltava. Além disso,
graças aos instintos de Michel Ardan, o agradável viera juntar-se
ao útil sob a forma de objetos de arte; teria feito do projétil
unia verdadeira galeria de arte se o espaço não lhe faltasse.
De resto, enganarse- iam se julgassem que três pessoas ficassem apertadas
nessa torre de metal. Tinha unia superfície de cinqüenta e quatro
pés quadrados, mais ou menos, por dez pés de altura, o que permitia
unia certa liberdade de movimentos.

Não estariam mais à vontade no mais confortável dos
vag ões de estrada de ferro dos Estados Unidos.

Estamos resolvida a questão dos víveres e da iluminação,
restava a do ar. Era evidente que o ar encerrado dentro do projétil
não seria suficiente para a respiração dos viajantes
durante quatro dias; cada homem consome, em cerca de uma hora, todo o oxigênio
contido em cem litros de ar.

Barbicane, os seus companheiros e os dois cães que tencionavam levar
deviam consumir, em vinte e quatro horas, dois mil e quatrocentos litros de
oxigênio, ou, em peso, aproximadamente sete libras. Era, portanto, necessário
renovar o ar do projétil. Como? Por um processo muito simples, o dos
senhores Reiset e Regnault, indicado por Michel Ardan durante a discussão
da assembléia.

Sabe-se que o ar se compõe principalmente de vinte e unia partes
de oxigênio e de setenta e nove partes de azoto.

Ora, que se passa ao ato da respiração? Um fenômeno
muito simples. 0 homem absorve o oxigênio do ar, eminentemente apropriado
para manter a vida, e repele o azoto intato. 0 ar expirado perdeu perto de
cinco por cento do seu oxigênio e contém um volume aproximadamente
igual de ácido carbônico, produto definitivo da combustão
dos elementos do sangue pelo oxigênio inspirado. Sucede ent ão
que num meio fechado, e após um certo tempo, o ar é substituído
pelo ácido, gás essencialmente venenoso.

A questão reduz-se então ao seguinte: ficando o azoto intato,
*era preciso refazer primeiro o oxigênio absorvido, e depois destruir
o ácido carbônico expirado. Nada mais fácil por meio de
clorato de potássio e de potassa cáustica.

0 clorato de potássio é uni sal que se apresenta sob a forma
de palhetas brancas; quando é levado a uma temperatura superior a quatrocentos
graus, transforma-se em cloreto dê potássio, e o oxigênio
que contém liberta-se inteiramente. Ora, dezoito libras de clorato
de potássio dão sete libras de oxigênio, isto é,
a quantidade necessária aos viajantes durante vinte e quatro horas.
Eis como eles iam rarefazer o oxigênio.

Quanto à potassa cáustica, é uma matéria muito
ávida de ácido carbônico, misturado com o ar, e basta
agitá-lo para que se apodere dele e forme bicarbonato de potássio.
Eis o que eles teriam de fazer para absorver o ácido carbônico.

Combinando esses dois meios, tinham a certeza de dar ao ar viciado todas
as suas propriedades vivificantes. Era o que dois químicos, os senhores
Reiset e Regnault, tinham experimentado com êxito. Mas, é preciso
dizê-lo, a experi- ência tinha-se realizado até então
em animais. Qualquer que fosse a sua precisão científica, ignorava-se
totalmente como os homens a suportariam.

Foi essa a observação feita na sessão onde se tratou
dessa grave questão. Michel Ardan não queria pôr em dúvida
a possibilidade de viver no meio desse ar fictício, e ofereceuse para
experimentar antes da partida. Mas a honra de tentar essa prova foi energicamente
reclamada por J. T.

Maston.

– Visto que não parto – disse o bravo artilheiro posso pelo menos
morar no projétil durante oito dias.

Não teria sido amável recusar-lhe esse pedido. Quantidades
suficientes de clorato de potássio e de potassa cáustica foram
postas à sua disposição, bem como víveres para
oito dias; depois, tendo apertado as mãos dos seus amigos, no dia 12
de novembro, às seis horas da tarde, Maston deslizou para o projétil,
tendo expressamente recomendado que não lhe abrissem a prisão
antes do dia 20. A tampa foi então fechada.

No dia 20 de novembro, às seis horas em ponto, a tampa foi aberta.
Os amigos de J. T. Maston não deixavam de estar uni pouco inquietos.
Mas logo se tranqüilizaram ao ouvirem unia voz alegre que soltava uni
formidável hurra.

Em breve, o secretário do Clube do Canhão aparecia no alto
do cone numa atitude triunfante. Tinha engordado!

Capítulo XIV – O telescópio e os últimos
preparativos

A 20 de outubro do ano precedente, depois de fechada a subscrição,
o presidente do Clube do ? Canhão tinha creditado ao Observatório
de Cambridge as quantias necessárias para a construção
de um instrumento de ótica.

Antes do mais, foi preciso optar entre os telescópios e as lunetas.
As lunetas apresentam vantagens sobre os telesc ópios. Com igualdade
de objetivas, permitem obter aumentos mais consideráveis, porque os
raios luminosos que atravessam as lentes perdem menos pela absorção
de que pela reflexão sobre o espelho metálico dos telescópios.
Mas a espessura que se pode dar a uma lente é limitada, pois, sendo
demasiado espessa, não deixa passar os raios luminosos.

Além disso, a construção dessas grandes lentes é
excessivamente difícil e precisa de um tempo considerável, que
se mede em anos.

Portanto, se bem que as imagens fossem mais bem iluminadas nas lunetas,
vantagem inapreciável quando se trata de observar a Lua, cuja luz é
simplesmente refletida, decidiram- se pela utilização de uni
telescópio, que é de execu- ção mais rápida
e permite obter unia ampliação maior. No entanto, como os raios
luminosos perdem unia grande parte da sua intensidade ao atravessar a atmosfera,
o Clube do Canhão resolveu instalar o instrumento numa das mais altas
montanhas dos Estados Unidos, o que diminuiria a espessura das camadas aéreas.

Quanto à questão do local, foi prontamente resolvida. Tratava-
se de escolher unia montanha alta, e as montanhas altas não são
numerosas nos Estados Unidos.

Contudo, visto que o Clube do Canhão queria que o telesc ópio,
assim como o columbiad, ficassem instalados nos Estados Unidos, contentavam-se
com as Montanhas Rochosas, e todo o material necessário foi dirigido
para o cimo de Long?s Peak, no território do Missuri.

Todavia, o telescópio das Montanhas Rochosas, antes de servir ao
Clube do Canhão, prestou imensos serviços à astronomia.
Graças ao seu poder de penetração, as pro fundidades
do céu foram sondadas até os últimos limites, o diâmetro
aparente das estrelas pôde ser rigorosamente medido, e o senhor Clarke,
do Observatório de Cambridge, decompôs a nebulosa com forma de
caranguejo de Taurus, que o refletor de Lorde Rosse nunca pudera decompor.

Estava-se a 22 de novembro. A partida suprema devia ter lugar dez dias mais
tarde. Restava apenas levar a bom termo unia única operação.
Operação delicada, perigosa, exigindo precauções
infinitas e contra o bom sucesso da qual o Capitão Nicoles fizera a
sua terceira aposta. Tratava- se de carregar o columbiad e introduzir-lhe
as quatrocentas mil libras de algodão-pólvora. Nicoles pensara,
e talvez com certa razão, que a manipulação de tal quantidade
de piróxilo poderia provocar graves catástrofes, e que essa
massa eminentemente explosiva se inflamaria por si mesma sob a pressão
do projétil.

Havia, realmente, graves perigos, ainda acrescidos pela despreocupação
e a leviandade dos americanos, que não se preocupavam em nada, durante
a Guerra da Secessão, em ir carregar os seus canhões de charuto
na boca. Mas Barbicane tinha tomado a peito ter êxito e não naufragar
à vista do porto; escolheu, portanto, os seus melhores oper ários
e fê-los trabalhar sob a sua vigilância. Não os deixando
um só momento com o olhar, e à força de prudência
e de precauções, soube pôr do seu lado todas as possibilidades
de êxito.

Antes de tudo, não levou todo o carregamento para a Colina das Pedras.
Fe-lo transportar pouco a pouco em caixotes hermeticamente fechados. A munição
tinha sido dividida em embalagens de quinhentas libras o que perfazia oitocentos
grandes cartuchos cuidadosamente confeccionados pelos mais hábeis operários
de Pensacola. Cada caixote podia conter dez cartuchos e chegava uni após
outro pela estrada de ferro de Tampa; desse modo, não havia nunca mais
de cinco mil libras de piróxilo ao mesmo tempo dentro do recinto. Logo
que cada caixote chegava era des carregado por operários que caminhavam
de pés descal- ços, e cada cartucho transportado para o orifício
do columbiad, para o qual descia por meio de guindastes acionados manualmente.
Todas as máquinas a vapor tinham sido afastadas, e os mais pequenos
fogos apagados numa zona de duas milhas de raio. Era já muito ter de
proteger essa enorme quantidade de algodão-pólvora dos ardores
do sol, mesmo em novembro. Desse modo, trabalhavam de preferência durante
a noite, com unia luz produzida no vácuo, e que, por meio dos aparelhos
de Ruhnlkorff, criava uni dia artificial até ao fundo do columbiad.
Ali, os cartuchos eram arrumados com unia perfeita regularidade e ligados
entre si por meio de uni fio metálico destinado a levar simultaneamente
a faísca elétrica para o centro de cada uni deles. Realmente,
por meio da pilha é que o fogo devia ser comunicado a essa massa de
algodão-pólvora. Todos esses fios, rodeados de material isolante,
iam reunir-se em uni só estreito. orifício aberto na altura
onde devia ser mantido o projétil. Nesse ponto, atravessaram a espessa
parede de ferro fundido, subindo até ao solo por uni dos respiradouros
do revestimento de pedra conservado para esse fim. Unia vez chegado ao cimo
da Colina das Pedras, o fio, preso a postes por unia distância de duas
milhas, ia ter a unia – poderosa pilha de Bunzen munida de uni aparelho interruptor.
Bastava, portanto, carregar com o dedo no botão do aparelho para que
a corrente fosse instantaneamente restabelecida e pegasse fogo as quatrocentas
mil libras de algodão-pólvora. Desnecessário é
dizer que a pilha só devia entrar em atividade no último momento.

A 28 de novembro, os oitocentos cartuchos estavam colocados no fundo do
columbiad. Essa parte da operação correu sem problemas; todavia,
quantas perturbações, quantas inquietudes e apreensões
tinham assaltado o Presidente Barbicane! Em vão proibira o acesso à
Colina das Pedras; todos os dias os curiosos escalavam as paliçadas,
e alguns, levando a imprudência até a loucura, iam fumar no meio
das embalagens de algodão pólvora. Barbicane enfurecia-se diariamente.,
J. T. Maston secundava-o o melhor possível, caçando os intrusos
com grande vigor e apanhando as pontas de cigarros ainda acesas que os ianques
atiravam para aqui e para ali. Rude tarefa, pois mais de trezentas mil pessoas
se comprimiam em redor das paliçadas.

Michel Ardan tinha-se oferecido para escoltar os caixotes até a boca
do columbiad; mas, tendo sido surpreendido com um enorme charuto na boca,
enquanto afastava os imprudentes aos quais ele dava aquele funesto exemplo,
o presidente do Clube do Canhão viu bem que não podia contar
com aquele intrépido fumador, e foi obrigado a vigiá-lo especialmente.

Finalmente, como há um Deus para os artilheiros, nada explodiu e
o carregamento foi levado sem incidentes. A terceira aposta do Capitão
Nicoles estava, portanto, muito periclitante. Faltava introduzir o projétil
no columbiad e colocá-lo sobre a espessa camada de algodão pólvora.

Todavia, antes de proceder a essa operação, os objetos necessários
aos três, aliás muito numerosos, foram colocados com ordem no
vagão-projétil, e, se tivessem deixado, Michel, Ardan teria
ocupado todo o espaço reservado aos viajantes. Não se pode imaginar
o que esse amável francês queria levar para a Lua. Uma verdadeira
carga de inutilidades. Mas Barbicane interveio e ele teve de se restringir
ao estritamente necessário.

Vários termômetros, barômetros e lunetas foram guardados
na caixa dos instrumentos.

Os viajantes tinham curiosidade em examinar a Lua durante o trajeto, e,
para facilitar o reconhecimento desse mundo novo, levavam um excelente mapa
de Beer e Moedier, o Mapa Selenográfico, publicado em quatro folhas
que passa por verdadeiro, por ser uma obra-prima de observação
e de paciência. Reproduzia com escrupulosa exatidão os mínimos
pormenores dessa parte do astro voltada para a Terra: montanhas, vales, círculos,
crateras, elevações, fen das – viam-se ali nas suas dimensões
exatas, a sua orienta ção fiel, a sua denominação,
desde os montes Doerfel e Leibniz, cujos altos cumes se erguem na parte oriental
do disco, até o Mar do Frio, que se estende pelas regiões circumpolares
do Norte.

Era, portanto, um precioso documento para os viajantes, pois podiam estudar
o território antes de lá chegar.

Levavam também três espingardas e três carabinas de caça
com sistema de balas explosivas; além disso, pólvora e chumbo
em grande quantidade.

_ Não se sabe com quem teremos de tratar – dizia Michel Ardan. –
Homens ou animais, poderão não gostar de visitas! É preciso,
portanto, tomar precauções.

Acrescentemos que às armas de defesa pessoal se juntavam picaretas,
alviões, serras manuais e outros instrumentos indispensáveis,
sem falar do vestuário conveniente para todas as temperaturas, desde
o frio das regiões polares até os calores da zona tórrida.

Michel Ardan gostaria de levar para a sua expedição um certo
número de animais, não um casal de cada espécie, pois
não via necessidade de aclimatar na Lua serpentes, tigres, crocodilos
e outros animais malignos.

– Não – dizia ele a Barbicane -, mas alguns animais de tração,
bois ou vacas, burros ou cavalos, ficariam bem na paisagem e seriam de grande
utilidade para nós.

Concordo, meu caro Ardan – respondia Barbicane -, mas o nosso vagão-projétil
não é a Arca de Noé. Não tem a capacidade nem
se destina ao mesmo fim -. Assim, fiquemos nos limites do possível.

Finalmente, após longas discussões, foi combinado que os viajantes
se contentariam em levar uma excelente cadela de caça, pertencente
a Nicoles, e um vigoroso terra-nova, de força prodigiosa. Várias
caixas dos cereais mais úteis foram postas no número dos objetos
indispensáveis. Se tivessem deixado Michel Ardan fazer o que? queria,
ele teria levado também alguns sacos de sementes para lá os
se mear. Em todo o caso, sempre levou uma dúzia de arbustos, que foram
cuidadosamente envolvidos em palha e guardados a um canto do projétil.

Faltava, ainda, a importante questão dos víveres, pois era
preciso prever o caso de desembarcarem numa zona d a Lua completamente estéril.
Barbicane conseguiu levar ví- veres que chegariam para um ano. Mas,
é preciso acrescentar para não espantar ninguém, que
esses víveres consistiam em conservas de carne e de legumes reduzidos
ao seu mais simples volume sob a ação da prensa hidráulica,
e que essas conservas tinham grande quantidade de elementos nutritivos; não
eram refeições muito variadas, mas em tal viagem não
podiam mostrar-se muito exigentes. Havia, também, uma reserva de aguardente,
que podia chegar a cinqüenta galões. A água chegaria apenas
para dois meses.

Realmente, depois das últimas observações dos astrônomos,
ninguém colocava em dúvida a presença de uma certa quantidade
de água na superfície da Lua. Quanto aos víveres, era
insensato pensar que os habitantes da Terra não encontrariam lá
com que se alimentar. Michel Ardan não tinha dúvida nenhuma
a esse respeito. Se as tivesse, não partiria.

– Por outro lado – disse ele um dia aos seus amigos -, não estaremos
completamente abandonados pelos nossos camaradas da Terra, e eles terão
o cuidado de não nos esquecer.

– Certamente que não – replicou J. T. Maston.

– Como? – perguntou Nicoles.

– Nada mais simples – respondeu Michel Ardan. 0 columbiad fica no mesmo
lugar, não é verdade? Pois bem! Todas ?as vezes que a Lua se
apresentar nas condições favoráveis de zênite,
ou mesmo de perigeu, isto é, mais ou menos uma vez por ano, não
poderão enviar-nos um obus carregado de víveres que nós
esperaremos a uma hora prefixada? – Viva! Viva! – exclamou J. T. Maston, como
homem que tinha a sua idéia -; bem dito. Certamente, meus bons ami
gos, que nós não os esqueceremos.

– Conto com isto! Como vêem, teremos regularmente not ícias
do Globo, e, por nosso lado, seremos bem desajeitados se não conseguirmos
arranjar meio de comunicar com os nossos bons amigos da Terra! , Destas palavras
transpirava uma tal confiança que Michel Ardan, com o seu ar determinado,
a sua soberba valentia, teria arrastado todos os membros do Clube do Canhão
atrás de si. 0 que ele dizia parecia simples, elementar, fácil,
de êxito seguro, e seria preciso gostar verdadeiramente e de um modo
mesquinho deste miserável globo terráqueo para não seguir
os três viajantes na sua expedi- ção lunar.

Quando os diversos objetos foram colocados no projétil, a água
destinada a servir de mola foi introduzida entre os tabiques e o gás
de iluminação no respectivo recipiente.

Quanto ao clorato de potássio e à potassa cáustica,
Barbicane, temendo possíveis atrasos do trajeto, mandou carregar uma
quantidade suficiente para renovar o oxigênio e absorver o ácido
carbônico durante dois meses. Um aparelho extremamente engenhoso, de
funcionamento autom ático, encarregava-se de dar ao ar as suas qualidades
vivificantes e de o purificar de forma completa. Logo estava pronto o projétil,
e só faltava mete-lo no fundo do columbiad. Operação
cheia de. dificuldades e de perigos.

0 enorme obus foi então levado para o cimo da Colina das Pedras._
Ali, poderosos guindastes levantaram-no e mantiveram- no suspenso por cima
do poço de metal.

Foi um momento palpitante. Se as correntes se quebrassem com aquele enorme
peso, a queda de tal massa teria certamente provocado a inflamação
do algodão pólvora..

Felizmente, nada disso se passou e algumas horas mais tarde o vagão-projétil
descia suavemente para a alma do canhão, repousava sobre a camada de
piróxilo, um verdadeiro cobertor fulminante. A sua pressão não
teve outro efeito senão o de calcar mais fortemente a carga do columbiad.

– Perdi – disse o. Capitão Nicoles, entregando ao Presidente Barbicane
uma quantia aproximada de três mil dólares.

Barbicane não queria receber aquele dinheiro da parte de um companheiro
de viagem, mas teve de ceder perante a obstinação do capitão,
que queria cumprir todos os seus compromissos antes de deixar a Terra.

– Agora – disse Michel Ardan -, só me resta desejar-lhe uma coisa.

– Que coisa? – perguntou Nicoles.

– É que perca as outras duas apostas! Desse modo temos a certeza
de não ficarmos pelo caminho.

Capítulo XV – Fogo!

O dia primeiro de dezembro tinha chegado, dia decisivo, pois se a partida
do projétil não se efetuasse nessa mesma noite, às dez
horas, quarenta e seis minutos e quarenta segundos, passar-se-iam mais de
dezoito anos para que a Lua se apresentasse nas mesmas condições
de zênite e de perigeu.

0 tempo estava magnífico; apesar da aproximação do
inverno, o Sol resplandecia e iluminava com os seus raios esta Terra que três
dos seus habitantes iam deixar em troca de um novo mundo.

Quantas pessoas dormiram mal na véspera desse dia tão impacientemente
aguardado! Quantos peitos estavam oprimidos pelo pesado fardo da espera! Todos
os corações palpitavam de inquietação, exceto
o de Michel Ardan. Essa personagem impassível ia e vinha como habitualmente,
mas nada denunciava nela qualquer preocupação invulgar. 0 seu
sono tinha sido tranqüilo, como o sono de Turenne, antes da batalha,
encostado ao reparo de um canhão.

Desde a manhã que uma multidão imensa cobria as planícies
que se estendem a perder de vista em redor da Colina das Pedras. De quarto
em quarto de hora, o trem de Tampa trazia novos curiosos; essa emigração
tomou rapidamente proporções fantásticas, e, segundo
os relatos do Tampa-Tow Observer, durante esse dia memorável, cerca
de cinco milhões de espectadores pisaram o solo da Flórida.

Desde há um mês que grande parte dessa multidão se encontrava
acampada em redor do recinto, e lançava os alicerces de uma cidade
que depois se veio a chamar Ardan?s.

Barracas, cabanas, tendas, casebres, espalhavam-se pelo campo, e essas habitações
efêmeras abrigavam uma popula ção suficientemente numerosa
para fazer inveja às maiores cidades da Europa.

Todos os povos da Terra ali tinham os seus representantes; todos os dialetos
do Mundo se falavam ali ao mesmo tempo. Dir-se-ia a confusão das línguas,
como nos tempos bíblicos da Torre de Babel. Ali, as diversas classes
da sociedade americana confundiam-se numa igualdade absoluta.

Banqueiros, lavradores, marinheiros, moços de recados, plantadores
de algodão, negociantes, barqueiros, magistrados, acotovelavam – se
numa sem-cerimônia primitiva.

Os crioulos da Lusitânia confraternizavam com os agricultores de Indiana;
os gentlemen de Kentucky e de Tennessee, as senhoras da Virgínia, elegantes
e altivas, conversavam com caçadores semi-selvagens dos lagos e com
os negociantes de gado de Cincinnati. Usavam na cabeça chapéu
de castor branco com abas largas, ou o clássico Panamá e vestiam
calças de algodão azul das fábricas de Opelousas, cobriam
o corpo com blusas elegantes de pano cru, cal- çando botinas de cores
vivas, exibiam extravagantes len- ços de fina cambraia, e faziam cintilar
nos peitilhos das suas camisas, nas suas mangas, nas suas gravatas, nos seus
dez dedos e até mesmo nas orelhas, todo um sortimento de anéis,
de alfinetes, de brincos, cujo alto preço igualava o mau gosto. Mulheres,
crianças, criados, em toaletes não menos opulentas, acompanhavam,
seguiam, precediam, rodeavam, esses maridos, esses pais, esses patrões,
que se assemelhavam a chefes de tribo no meio das suas inumer áveis
famílias.

À hora das refeições toda essa gente precipitava-se
sobre os alimentos peculiares dos Estados do Sul e devorava, com um apetite
ameaçador para o abastecimento da Flórida, esse alimentos que
repugnariam a um estômago europeu, como rãs de fricassê,
macacos recheados, gambá assado e opôs ainda em sangue, grelhado.

Mas, como compensação, que variedade de licores e de bebidas
ajudava essa alimentação indigesta! Que gritos excitantes, que
vociferações ressoavam nas tabernas repletas de copos, frascos
e garrafas de formas inverossímeis! – Aqui há o licor de mentol!
– gritava um desses vendedores com voz tonitroante.

– Sangria de vinho de Bordéus! – replicava outro num tom esganiçado.

– E gin-sling! – repetia este.

E coquetel Brandy-smash! gritava aquele.

– Quem quer provar o verdadeiro mint-julet à última moda –
exclamavam esses hábeis comerciantes, fazendo passar rapidamente, de
uni copo para outro, como prestidigitadores, o açúcar, o limão,
a hortelã-pimenta, o gelo picado, a água, o conhaque e o ananás
fresco que compõem essa bebida refrescante.

Essas incitações, habitualmente dirigidas às gargantas
secas e sedentas sob a ação escaldante das especiarias, repetiam-
se, cruzavam-se no ar e produziam um balindo ensurdecedor.

Mas nesse primeiro de dezembro, esses gritos eram raros. Os vendedores teriam
enrouquecido em vão tentando provocar os fregueses. Ninguém
pensava nem em comer nem em beber, e às quatro horas da tarde circulavam
entre a multidão muitos espectadores que nem sequer tinham comido o
seu almoço habitual Sintoma mais significativo ainda: a violenta paixão
dos americanos pelo jogo tinha sido vencida pela emoção.

Quem reparasse nos pauzinhos do tempins deitados no chão, os dados
do creps a dormir nos copos, a roleta imó- vel, o cribbage abandonado,
as cartas do uíste, do vinte-eum, do vermelho e do negro, do montinho
e do faro, encerradas nos seus invólucros intatos, compreenderia que
o acontecimento do dia absorvia tudo e não deixava lugar para qualquer
outra distração.

Até à noite, uma agitação surda, sem clamor,
como a que precede as grandes catástrofes, correu entre aquela multid
ão ansiosa. Um indescritível mal-estar reinava nos espíritos,
um torpor penoso, um sentimento indefinível que apertava o coração.
Todos desejavam ?que tudo acabasse depressa ?.

No entanto, por volta das sete horas, aquele pesado silêncio dissipou-se
bruscamente. A Lua erguia-se no horizonte.

Vários milhões de vivas saudaram o seu aparecimento: tinha
sido pontual ao encontro. Os clamores subiram até o céu; os
aplausos explodiram de todos os lados, enquanto a loura Febe brilhava tranqüilamente
num céu admirável e acariciava aquela multidão embriagada
pelos seus raios mais afetuosos.

Nesse momento, apareceram os três intrépidos viajantes.

Ao vê-los, a multidão redobrou os seus gritos. Unanimemente,
instantaneamente, o hino nacional dos Estados Unidos saiu de todos os peitos
ofegantes, e o Yankee-Doodle, cantado em coro por cinco milhões de
vozes, ergueu-se como uma tempestade sonora até os últimos limites
da atmosfera.

Depois, após aquele irresistível impulso, o hino calou-se,
as últimas harmonias dissiparam-se pouco a pouco e uni frêmito
silencioso pairou acima da multidão, profundamente impressionada. Entretanto,
o francês e os dois americanos tinham entrado no recinto reservado,
em redor do qual se comprimia a multidão imensa. Estavam acompanhados
pelos membros do Clube do Canhão e missões enviadas pelos observatórios
europeus. Barbicane, frio e calmo, dava tranqüilamente as suas últimas
ordens. Nicoles, de lábios apertados, com as mãos cruzadas atrás
das costas, caminhava com passo firme e medido. Michel Ardan, sempre à
vontade, vestido como uni perfeito viajante, com polainas de couro nos pés,
a sua bolsa de viagem a tiracolo, flutuando no seu vasto traje de veludo castanho,
de charuto na boca, distribuía de passagem calorosos apertos de mão
com unia prodigalidade principesca. Era impagável de verve, de alegria,
rindo, gracejando, fazendo ao digno J. T. Maston molecagem de garoto, em unia
palavra, mostrava-se franc ês, e, pior ainda, parisiense até
o último segundo.

Soaram as dez horas. Tinha chegado o momento de tomarem lugar no projétil;
a manobra necessária para a descida, o aparafusar da tampa, o recuo
dos guindastes e dos andaimes debruçados – sobre a boca do columbiad
levavam certo tempo.

Barbicane tinha acertado o seu relógio com uni décimo de segundo
de diferença pelo do engenheiro Murchison, encarregado de lançar
fogo à pólvora por meio da faísca elétrica; desta
forma, os viajantes, encerrados no seu projétil, poderiam seguir com
o olhar o ponteiro que marcaria o momento preciso da sua partida.

A hora das despedidas havia chegado. A cena foi comovente; apesar da sua
alegria febril, Michel Ardan sentia-se comovido.

J. T. Maston tinha encontrado sob as suas pálpebras secas unia velha
lágrima que reservara sem dúvida para aquela ocasião.
Deixou-a cair sobre a testa do seu querido e bravo presidente.

– Se eu também partisse? – perguntou. – Ainda tem tempo! – Impossível,
meu velho Maston – respondeu Barbicane.

Alguns instantes mais tarde, os três companheiros de viagem estavam
instalados no projétil, cuja tampa tinham aparafusado interiormente,
e a boca do columbiad, inteiramente liberta, abria-se livremente para o céu.

Nicoles, Barbicane e Michel Ardan encontravam-se definiti vamente encerrados
no seu vagão de metal.

Quem poderia descrever a emoção universal, chegada ent ão
ao seu paroxismo? A Lua avançava num firmamento de límpida pureza,
apagando à sua passagem as luzes cintilantes das estrelas; percorria
então a constelação de Gêmeos e encontrava-se quase
a meio caminho do horizonte e do zênite. Todos deviam, portanto, compreender
facilmente que apontavam para a frente do alvo, como o caçador aponta
para diante da lebre que deseja atingir.

Uni silêncio assustador pairava sobre toda essa cena. Não havia
uni sopro de vento na terral Nem uni sopro nos peitos! Os corações
não ousavam bater. Todos os olhares, assustados, fixavam as bocas escancaradas
do columbiad.

Murchison seguia com o olhar o ponteiro do seu cronômetro.

Faltavam apenas quarenta segundos para o momento da partida, e cada segundo
parecia durar um século.

Ao vigésimo, houve um frêmito geral e ocorreu à multidão
que os viajantes encerrados no projétil contavam também esses
terríveis. segundos! Gritos isolados ouviram-se: – Trinta e cinco!
Trinta e seis! Trinta e sete! Trinta e oito! Trinta e nove! Quarenta! Fogo!
Imediatamente, Murchison, premindo o interruptor do aparelho, restabeleceu
a ligação e lançou a faísca elétrica para
o fundo do columbiad.

Uma detonação espantosa, inaudita, sobre-humana, de que nada
poderia dar uma idéia, nem o ribombar do trovão, nem o estrondo
das erupções, produziu-se instantaneamente, Um imenso feixe
luminoso saiu das entranhas do solo como de uma cratera. A terra tremeu, e
algumas pessoas mal puderam ver por instantes o projétil cortando vitoriosamente
o ar por entre vapores chamejantes.

Capítulo XVI – Um novo astro

Um novo astro assa mesma noite, a palpitante notícia tão impacientemente
esperada estourou como uma bomba nos Estados Unidos, e, daí, lançada
através do oceano, correu por todos os fios telegráficos do
Globo. 0 projétil fora visto, graças ao gigantesco refletor
de Long?s Peak.

Eis a nota redigida pelo diretor do Observatório de Cambridge. Contém
a conclusão científica dessa grande experiência do Clube
do Canhão.

?Long?s Peak, 12 de dezembro.

Aos Exmos.. Srs. Membros do Gabinete do Observatório de Cambridge.

0 projétil lançado pelo columbiad da Colina das Pedras foi
visto pelos senhores Belfast e J. T. Maston, a 12 de dezembro, às oito
horas e quarenta e sete minutos da noite, tendo a Lua entrado no seu último
quarto.

Esse projétil não atingiu o seu objetivo. Passou ao lado,
mas suficientemente perto, no entanto, para ser retido pela atração
lunar.

Ali, o seu movimento retilíneo transformou-se num movimento circular
de unia rapidez vertiginosa, e foi arrastado seguindo unia órbita elíptica
em volta da Lua, da qual se tornou uni verdadeiro satélite.

Os elementos desse novo astro não puderam ainda? ser determinados.
Não se conhece nem a sua velocidade de translação, nem
a de rotação. A distância que o separa da superfície
da Lua pode ser avaliada em, aproximadamente, quatro mil quinhentos e cinqüenta
quilômetros.

Agora, podem dar-se duas hipóteses, que poderão levar a unia
modificação no estado das coisas: Ou a atração
da Lua acabará por se impor e os viajantes atingirão o objetivo
da sua viagem; ou, mantido numa ordem imutável, o projétil ficará
gravitando em redor do disco lunar até ao fim dos séculos.

Será isso que as observações hão de mostrar
uni dia, mas até aqui a tentativa do Clube do Canhão só
teve como resultado dotar com um novo astro o nosso sistema solar.

J. M. Belfast.? Quantas questões levantava este inesperado desenlace.
Que situação cheia de mistérios o futuro reservaria às
investiga ções da ciência. Graças à coragem
e dedicação de três homens, aquele empreendimento, bastante
fútil na apar ência, de enviar uni projétil à Lua,
acabava de ter uni resultado imenso, cujas conseqüências eram incalculáveis.
Os viajantes, prisioneiros num novo satélite, não tinham atingido
o seu objetivo, mas faziam pelo menos parte do mundo lunar; gravitavam em
torno do astro da noite, e, pela primeira vez, o olhar humano podia penetrar
todos os seus mistérios. Os nomes de Nicoles, de Barbicane e de Michel
Ardan deverão ficar para sempre célebres nos anais da astronomia,
pois esses ousados exploradores, ávidos por alargar o círculo
dos conhecimentos humanos, se lançaram audaciosamente através
do espaço, e puseram em jogo as suas vidas na mais notável tentativa
dos tempos modernos.

Quando a nota de Long?s Peak foi conhecida, causou no mundo inteiro uma
sensação de surpresa e de receio. Seria possível ir em
auxílio dos ousados habitantes da Terra? Não, sem dúvida,
pois eles encontravam-se fora da humanidade ao transporem os limites impostos
por Deus às criaturas terrestres. Poderiam ter ar durante dois meses.
Tinham víveres para uni ano. Mas depois?… Os corações
mais insens íveis palpitavam com esta terrível questão.

Apenas uni homem não queria admitir que a situação
fosse desesperada. Só uni tinha confiança, era o seu amigo dedicado,
audacioso e resoluto como eles, o valente J. T.

Maston.

Ele não os perdia de vista. A sua residência foi desde então
o posto de Long?s Peak; o seu horizonte, o espelho do imenso refletor. Logo
que a Lua surgia no horizonte, ele enquadrava-a no campo de visão do
telescópio e não a perdia nem uni instante de vista, seguindo-a
ininterruptamente na sua marcha através do espaço; observava
com eterna paciência a passagem do projétil sobre o seu disco
de prata, e verdadeiramente o digno homem estava em perpétua comunicação
com os seus amigos, que não desesperava de voltar a ver um dia.

Havemos de nos corresponder com eles – dizia ele a quem o queria ouvir -,
logo que as circunstâncias o permitam.

Teremos notícias deles e eles terão notícias nossas!
Eu conhe ço-os, são homens engenhosos. Os três levaram
para o espaço todos os recursos da arte, da ciência e da indústria.

Com isso, faz-se o que se quer, e hão de ver que eles se hão
de sair bem da situação!

Segunda Parte A VOLTA DA LUA

Capitulo I – A primeira meia hora

Que se teria passado? Que efeito teria produzido aquele espantoso abalo?
0 plano dos construtores do projétil teria sido bem sucedido? E o choque
fora porventura amortecido pelas molas, pelas quatro cunhas, pelas almofadas
de água, pelos tabiques quebradiços? Ter-se-ia conseguido dominar
o terrível impulso da velocidade inicial de doze mil jardas, que bastaria
para atravessar Paris ou Nova Iorque num segundo? Evidentemente, está
era a questão que a si mesma fazia a multidão que testemunhou
aquela emocionante cena. Todos esqueciam o propósito da viagem para
pensar apenas nos viajantes! E se alguém dentre eles – J.

T. Maston, por exemplo – tivesse podido espreitar o interior do projétil,
que teria visto? Naquela altura, nada. A escuridão era profunda dentro
do projétil. Mas as paredes cilindro-cônicas haviam resistido
maravilhosamente. Nem unia fenda, nem unia dobra, nem unia deformação.
0 admirável projétil não sofrera a mínima alteração
apesar da violenta deflagração da pólvora, e muito menos
se transformara numa chuva de alumínio, como muita gente boa temia.

No interior, a desordem era mínima. Alguns dos objetos tinham sido
violentamente atirados de encontro à cúpula, mas os mais importantes
pareciam estar em boas condi- ções. Os respectivos suportes
estavam intatos.

Sobre o disco móvel, que baixara até o fundo do projétil,
depois de quebrados os tabiques e de escoada a agora, jaziam três corpos.
Barbicane, Nicoles e Michel Ardan ainda respirariam? Não se teria transformado
o projétil num ataú- de de metal que transportava três
cadáveres pelo espa- ço?… , Alguns minutos após a partida,
uni dos três corpos fez uni movimento. Depois, agitou os braços,
soergueu a cabeça e conseguiu pôr-se de joelhos. Era Michel Ardan.
Apalpouse, soltou uni sonoro ?hem? e disse: – Michel Ardan, inteiro. Vejamos
os outros.

0 corajoso francês quis levantar-se, mas não conseguiu pôr-se
de pé. A cabeça rodava e o sangue, violentamente injetado, –
cegava-o. Sentia-se como um bêbado.

– Brr! – fez ele. – Isto produz-me o mesmo efeito de duas garrafas de Corton.
Só que talvez seja menos agradável de engolir! Em seguida, passando
repetidas vezes a mão pela testa e esfregando as têmporas, gritou
com voz firme: – Nicoles! Barbicane.

E esperou ansiosamente. Nenhuma resposta. Nem mesmo uni suspiro que indicasse
que o coração dos companheiros continuava a bater. Voltou a
chamá-los, mas o sil êncio persistiu.

– Diabos! – resmungou. Têm todo o ar de quem caiu de cabeça
de uni quinto andar! Bah! – acrescentou com aquela imperturbável confiança
que nada podia afetar -, se uni franc ês conseguiu pôr-se de joelhos,
dois americanos não ter ão qualquer dificuldade em levantar-se.
Mas, antes, o melhor é esclarecer a situação.

Ardan sentia que pouco a pouco as forças lhe voltavam.

Acalmava-se-lhe o sangue, que ia retomando a circulação normal.
Após repetidos esforços, conseguiu equilibrar-se, e levantar-se.
Tirou da algibeira um fósforo e riscou-o.

Em seguida aproximou-o do bico de gás que acendeu. 0 recipiente estava
intato. 0 gás não se escapara. Se tal tivesse acontecido, nem
o odor característico passaria despercebido, nem Michel Ardan teria
podido acender impunemente o fósforo em um ambiente saturado de hidrogênio.

0 gás, combinado com o ar, teria produzido uma mistura detonante,
e a explosão acabaria aquilo que o abalo inicial talvez houvesse começado.

Assim que acendeu o bico de gás, Ardan examinou os corpos dos companheiros,
que estavam tombados uni sobre o outro, como massas inertes: Nicoles por cima,
Barbicane por baixo.

Ardan levantou o capitão, encostou-o a uni sofá e aplicoulhe
vigorosas fricções. Esta massagem, inteligentemente feita, reanimou
Nicoles, que abriu os olhos, recobrou instantaneamente o sangue-frio e agarrou
na mão de Ardan.

Depois, olhando à sua volta, perguntou: – E Barbicane? – Calma, uni
de cada vez – respondeu serenamente Michel Ardan. – Comecei por ti, Nicoles,
porque estavas à mão.

Tratemos agora de Barbicane.

Dito isto, Ardan e Nicoles levantaram o presidente do Clube do Canhão
e deitaram-no no sofá. Barbicane parecia estar mais combalido do que
os companheiros. Perdia sangue.

Mas Nicoles tranqüilizou-o quando verificou que a hemor ragia provinha
de uni ligeiro ferimento no ombro. Unia simples esfoladela que tratou de comprimir
cuidadosamente.

Não obstante, Barbicane levou algum tempo a recuperar os sentidos,
o que assustou uni pouco os seus dois amigos, que se fatigavam a friccioná-lo.

– Respira ainda – dizia Nicoles, aplicando o ouvido no peito do ferido.

– Sim – volvia Ardan -, respira como uni homem que ganhou o hábito
de o fazer todos os dias. Friccionemos, Nicoles, friccionemos! E os dois improvisados
médicos tantas e tão boas massagens lhe deram que Barbicane
recobrou os sentidos. Abriu os olhos, levantou-se, apertou a mão dos
dois amigos e as suas primeiras palavras foram estas: Nicoles, vamos a caminho?
Nicoles e Ardan entreolharam-se. Ainda não tinham tido tempo para pensar
no projétil. Muito naturalmente, haviam- se preocupado primeiro com
eles próprios.

– É verdade… Será que vamos a caminho? – repetiu Michel
Ardan.

– Ou será que estamos tranqüilamente pousados no solo da Flórida?
– aventou por sua vez Nicoles.

– E não estaremos no fundo do golfo do México? – acrescentou
Michel Ardan.

– Esta agora! – exclamou o Presidente Barbicane- A dupla hipótese
sugerida pelos companheiros teve como efeito imediato a recuperação
total de Barbicane.

Como quer que fosse, naquele momento nada podia saber acerca da real situação
do projétil. A sua aparente imobilidade e a falta de comunicação
com o exterior não permitiam a resolução do problema.
Era possível que o projétil seguisse já a sua rota no
espaço. Mas não era menos poss ível que, após
unia curta ascensão, tivesse caído por terra…

ou mesmo no golfo do México – probabilidade que a pouca largura.
da península da Flórida tornava viável.

0 caso era grave, o problema interessante. Era necessário resolvê-lo
e depressa. Barbicane, excitado e triunfando pela energia moral da debilidade
física, levantou-se. Pôs-se à escuta. No exterior, silêncio
absoluto. Mas a espessura do acolchoamento das paredes era suficiente para
absorver todos os ruídos vindos da Terra. Entretanto, houve unia circunstância
que não escapou a Barbicane: a temperatura no interior do projétil
era particularmente elevada. Tirou de imediato uni termômetro da caixa
que o protegia e consultou- o. 0 instrumento assinalava quarenta e cinco graus
cent ígrados.

– Sim! – bradou entusiasmado. – Vamos a caminho! Este calor provém
das paredes do projétil. É a conseqüência do atrito
com as camadas atmosféricas. Em breve diminuirá, porquê
já devemos estar cruzando o vácuo. Não tarda que tenhamos
de suportar um frio intenso.

– Como? – Não se conteve Michel. Ardan. ?És então de
opinião que já estamos fora dos limites da atmosfera terrestre?
– Sem dúvida alguma, Michel. Ouve: são dez horas e cinqüenta
e cinco, o que significa que partimos há perto de oito minutos. Ora,
a menos que a velocidade inicial tenha diminuído com o atrito, seis
segundos bastariam para que ultrapassássemos as dezesseis léguas
de atmosfera que circundam o nosso esferóide.

– Perfeito – intrometeu-se Nicoles -; mas, em sua opinião, em que
proporção terá atuado o atrito. na redução
da velocidade? – Julgo que na proporção de uni terço
– esclareceu Barbicane.

E prosseguiu: – É unia redução considerável,
mas, com base nos meus cálculos, é certa. Logo, se partimos
animados de uma velocidade inicial de doze mil jardas, à saída
da atmosfera ela estaria reduzida a sete mil oitocentas e trinta e duas jardas…
portanto, em qualquer dos casos, já superamos as tais dezesseis léguas.

– E isto significa – concluiu Michel Ardan – que o amigo Nicoles perdeu
mais duas apostas, como, aliás, eu previra: quatro mil dólares
porque o columbiad não explodiu e cinco mil porque o projétil
subiu a unia altitude superior a seis milhas.

Vá, Nicoles, puxa o dinheiro da bolsa! – Nada de pressas – respondeu
o capitão. ~ Primeiro, asseguremo-nos da situação, depois
faremos contas… É muito provável que as previsões de
Barbicane estejam certas e eu tenha perdido os nove mil dólares; mas
ocorreume unia outra hipótese que pode tornar nula a aposta.

– Qual, pode-se saber? – perguntou muito interessado Barbicane.

– Suponham que, por qualquer motivo, a pólvora não foi inflamada
e que, portanto, ainda não partimos.

Com a breca, capitão! – exclamou Michel Ardan.

Eis unia hipótese digna da minha cabeça. Não falas
a sério! Acaso não saímos machucados do abalo provocado
pelo disparo? Não me vi obrigado a reanimar-te? E o ombro do presidente
não sangra ainda? – De acordo, Michel; todavia, permite-me unia pergunta
– insistiu Nicoles.

À vontade, capitão.

– A detonação foi com certeza formidável. Ouviste-a?
– Não – respondeu Ardan, muito surpreendido. -.Para falar a verdade,
não ouvi nenhuma detonação.

E você, Barbicane? Também não.

– E então? – rematou Nicoles.

– De fato.,.. murmurou o presidente. – Por que não a ouvimos? Os
três amigos entreolharam-se, perplexos. Encontravamse perante um fenômeno
inexplicável. E, no entanto, o projétil partira, pelo que a
detonação teve de produzir-se.

– Em primeiro lugar é preciso saber onde estamos – comandou Barbicane.
– Desçamos as portinholas! Essa operação, extremamente
simples, depressa foi executada.

As porcas que mantinham os parafusos nas chapas exteriores da vigia direita
cederam à pressão de unia chave-inglesa. Tiraram-se os parafusos,
tapando os orifícios por eles deixados com obturadores guarnecidos
com borracha. A chapa exterior descaiu, entrando na respectiva dobradiça,
como unia portinhola, e logo apareceu o vidro penticular que fechava a vigia.
Vigias idênticas estavam localizadas na espessura da parede oposta,
na cúpula e no centro da placa que constituía o 66 chão?
do projétil. Esta disposição possibilitava que fossem
feitas observações em quatro direções diferentes:
do firmamento pelas vigias laterais, da Terra e da Lua pelas aberturas superior
e inferior.

Barbicane e os dois companheiros tinham-se precipitado para a vigia. Nem
uni só raio luminoso a penetrava. Unia profunda obscuridade envolvia
o projétil. Isto não impediu o Presidente Barbicane de bradar:
– Não, meus amigos, não caímos em terra! Nem estamos
imersos no fundo do golfo do México! Sim, elevamo-nos no espaço!
Vejam estas estrelas que cintilam na noite e a impenetrável escuridão
que se adensa entre nós e a Terra! ~ Viva! Viva! – exclamaram em uníssono
Michel Ardan e Nicoles.

Realmente, aquela treva compacta provava que o projétil deixara a
Terra, porque o solo, então vivamente iluminado pelo luar, teria sido
avistado pelos viajantes se nele estivessem pousados. Por outro lado, aquela
obscuridade demonstrava ainda que o projétil passara a camada atmosf
érica,. porque a luz difusa espalhada no ar havia de provocar nas paredes
metálicas uni reflexo, de que também não se vislumbravam
sinais. Esse reflexo teria iluminado a vigia, e a verdade é que da
vigia só se via a noite circundante.

Não havia mais lugar para dúvidas. Os viajantes tinham deixado
a Terra.

– Perdi – disse Nicoles.

– Dou-te os meus parabéns! – acudiu logo Ardan.

– Aqui estão os nove mil dólares – anunciou o capitão,
tirando da algibeira uni maço de notas.

– Quer que lhe passe um recibo? – perguntou Barbicane, agarrando as notas.

– Se isto não o incomoda… – declarou Nicoles. – Sempre é,
como direi… mais regular…

E o Presidente Barbicane, com toda a fleuma e seriedade, tal como se encontrasse
no seu gabinete, arrancou a folha de papel branco do seu bloco de notas, redigiu
a lápis o recibo, datou-o, assinou-o, rubricou-o e o entregou ao capit
ão, que o guardou na carteira.

Michel Ardan, descobrindo-se, fez uma pequena vênia aos companheiros
e não disse palavra. Tanta formalidade em tais circunstâncias
emudecera-o. Nunca tinha visto nada tão ?americano?.

Terminada a cerimônia, Barbicane e Nicoles haviam voltado para junto
da vigia e contemplavam as constelações. As estrelas eram pontos
brilhantes sobre o fundo negro do céu. Mas daquele ponto não
se via o astro da noite, que, deslocando-se de leste para oeste, se elevava
placidamente na direção do zênite. 0 fato provocou unia
dúvida em Ardan.

– E a Lua? – perguntou ele. – Será que ela vai faltar ao nosso encontro?
– Sossega, homem – quem lhe respondia era Barbicane. – 0 nosso satélite
está à nossa espera. Nós é que não podemos
vê-lo desta posição. Abramos a outra vigia lateral.

No momento em que Barbicane ia se afastar para destacar a vigia oposta,
a sua atenção foi despertada pela aparição súbita
de uni objeto brilhante. Era uni disco enorme, cujas colossais dimensões
não podiam ser avaliadas. A face que estava voltada para a Terra apresentava-se
profusamente iluminada. Dir-se-ia uma Lua mais pequena refletindo a luz da
maior. Acercava-se com unia prodigiosa velocidade e parecia descrever em torno
da Terra unia órbita que interceptava a trajetória do projétil.
0 seu movimento de translação era acompanhado por uni movimento
simultâ- neo de rotação. Comportava-se, portanto, como
todos os corpos celestes isolados no espaço.

– Eh! – exclamou Michel Ardan. – Que é aquilo? Uni outro projétil?
Barbicane não respondeu. Aquela aparição surpreendia-o
e inquietava-o. Uni choque não era impossível, e, a dar-se,
teria resultados deploráveis: ou provocaria uni desvio na trajetória
do projétil, ou retirar-lhe-ia a velocidade adquirida, precipitando-o
em direção à Terra, ou, enfim, a força atrativa
do asteróide afastá-lo-ia irresistivelmente.

0 Presidente Barbicane alcançara rapidamente todas as conseq üências
das três hipóteses, que de unia ou de outra maneira comprometiam
fatalmente a experiência. Os companheiros, esses olhavam emudecidos
o espaço. 0 objeto aumentava prodigiosamente de volume à medida
que se aproximava. Todavia, mercê de unia ilusão de ótica,
poderse- ia pensar que era o projétil que lhe corria ao encontro.

– Com mil diabos! – bradou Michel Ardan. – Os dois comboios vão chocar!
Os viajantes recuaram instintivamente. Sentiram um medo terrível, que,
no entanto, se dissipou alguns segundos depois.

0 asteróide passou a umas centenas de metros do projétil e
desapareceu, não tanto devido à velocidade de que ia animado,
mas porque a face oposta à Lua se confundiu imediatamente com a profunda
escuridão do espa- ço.

– Boa viagem! – suspirou aliviado Michel Ardan. – E inacreditável!
Então o infinito não é bastante grande para permitir
que uni pequeno projétil passe sem perigo pelo espaço?… Essa
agora! Mas, afinal, que globo luminoso era aquele? Eu sei… – disse Barbicane.

Por Deus! Sabes tudo! – É uni bólide – prosseguiu Barbicane
-, uni enorme bólide que a força de atração terrestre
transformou em satélite.

_ Ali, sim! – admirou-se Michel Ardan. – Então a Terra tem também
duas luas como Marte? – Sim, meu amigo, embora geralmente se diga que tem
apenas uma. Essa segunda Lua é tão pequena e possui unia velocidade
tão grande que os habitantes da Terra não podem vê-la.
Todavia, tendo em conta determinadas perturba ções, uni astrônomo
francês logrou descobrir esse segundo satélite e estabelecer
a seu respeito alguns dados.

Com base nas suas observações, esse bólide completa
a sua revolução em tomo da Terra somente em três horas
e vinte minutos, o que significa que está animado de prodigiosa velocidade.

– E todos os astrônomos admitem a existência desse saté-
lite? – interrogou Nicoles.

– Não – respondeu Barbicane mas se, como nós, quase lhe tocassem,
não teriam mais dúvidas. É verdade… estou pensando
que esse bólide, que nos causaria graves problemas se chocasse com
o projétil, vai permitimos determinar com precisão a nossa posição
no espaço.

De que maneira? – interessou-se Ardan. Pela distância em que o encontramos,
estávamos exatamente a oito mil cento e quarenta quilômetros
da superfície terrestre.

– Mais de duas mil léguas! – exclamou Michel Ardan. – Isto quer dizer
que batemos os comboios expressos daquele Globo que se chama Terra! – Assim
creio – admitiu Nicoles, consultando o cronômetro.

– São onze horas, o que quer dizer que deixamos a continente americano
há apenas treze minuto.

– Só treze minutos? surpreendeu-se Barbicane.

– E verdade – confirmou Nicoles. – E, se a nossa velocidade inicial de doze
mil jardas se mantivesse constante, atingirí- amos cerca de dez mil
léguas à hora! – As coisas estão correndo muito bem,
meus amigos – declarou o presidente -, mas há uni problema que permanece
insolúvel: por que não ouvimos a detonação do
columbiad? Como a tal pergunta ninguém sabia responder, a conversa
ficou por ali. Barbicane, embora entregue às suas reflex ões,
predispôs-se então a destapar a segunda vigia late ral. A operação
foi bem sucedida, pelo que através dela a Lua iluminou o interior do
projétil com unia fulgurante luz.

Nicoles, como homem econômico que era, apagou o bico de gás,
de que já não careciam, e cuja claridade prejudicava a observação
dos espaços interplanetários.

0 disco lunar refulgia nesse momento em toda a sua pureza.

Os raios que emitia, libertos dos vapores que toldam a atmosfera terrestre,
filtravam-se através da vigia e inundavam de reflexos prateados o interior
do projétil. 0 negro véu do firmamento duplicava o esplendor
da Lua, que, no vácuo do éter, impróprio para a difusão
da luz, não ofuscava o das estrelas vizinhas. 0 céu, visto desta
maneira, oferecia um aspecto totalmente novo, de que os olhos humanos não
podiam suspeitar.

Não é difícil imaginar com que interesse os audazes
companheiros contemplavam o astro da noite, supremo objetivo da sua viagem.
0 satélite da Terra, no seu movimento de translação,
avizinhava-se pouco a pouco do zênite, ponto matemático que devia
atingir cerca de noventa e seis horas depois. As suas planícies e montanhas,
todo o seu relevo, não se distinguiam com maior clareza do que quando
observadas de qualquer ponto da Terra. Contudo, a sua luz, através
do vácuo, desenvolvia-se com unia intensidade incomparável.
0 disco resplandecia como uni espelho de platina. Da Terra, que se perdia
na distância sob os seus pés, os viajantes já quase não
se lembravam.

0 Capitão Nicoles foi o primeiro a recordar o Globo abandonado.

– Sim – concordou Michel Ardan ~, é bom que não sejamos ingratos
para com ele. Unia vez que abandonamos a pá- tria, é justo que
lhe dediquemos os nossos últimos olhares.

Quero rever a Terra antes que desapareça completamente da minha vista!
Para satisfazer os desejos do companheiro, Barbicane come çou a desembaraçar
a vigia do fundo do projétil, precisamente aquela que possibilitava
a observação direta da Terra. 0 disco, que a força da
projeção levara até o ?chão? do projétil,
deu algum trabalho para desmontar. Os seus fragmentos, colocados cuidadosamente
às paredes, podiam ter utilidade, numa emergência. Apareceu,
então, um vão circular, de cinqüenta centímetros
de diâmetro, vazado na parte inferior do projétil, fechado por
meio de um vidro de quinze centímetros de espessura e reforçado
por uma armadura de cobre. Por baixo, tinha adaptada uma chapa de alumínio
segura por parafusos.

Desatarraxadas as porcas e tirados os parafusos, a chapa deslizou, e a comunicação
visual com o exterior ficou estabelecida.

Ardan ajoelhara-se junto ao vidro: estava escuro, como se fosse opaco.

– Então! – exclamou ele. – Onde está a Terra? – A Terra está
ali – apontou Barbicane.

– 0 quê! – estranhou Ardan. – E aquele fiozinho estreito…

aquele crescente prateado? – Aquele mesmo, Michel. Dentro de quatro dias,
na lua cheia, exatamente no instante em que chegarmos ao nosso objetivo, entrará
a Terra na fase da terra nova. Nessa altura, ela aparecer-nos-á sob
a forma de um crescente muito estreito, que não tardará a desaparecer
por alguns dias na sombra impenetrável.

– Aquilo… é a Terra? – repetia Michel Ardan, abrindo os olhos quanto
podia para ver a fatiazinha do planeta natal.

A explicação do Presidente Barbicane era exata. A Terra achava-se
em relação ao satélite na sua última fase. Estava
no minguante, pelo que dela só se avistava uni estreito crescente desenhado
a rigor no fundo negro do céu. A luz, azulada por efeito da espessura
da camada atmosférica, era menos intensa do que a do crescente lunar.
0 crescente terrestre possuía, entretanto, consideráveis dimensões.

Alguns pontos, vivamente iluminados, sobretudo na parte côncava do
arco, denunciavam a presença de altas montanhas.

Mas, de vez em quando, desapareciam sob espessas manchas, que nunca se vêem
na superfície do disco lunar.

Eram os anéis de nuvens, concentricamente dispostos em torno do esferóide
terrestre.

Contudo, devido a uni fenômeno natural, idêntico ao que se dá
na Lua quando está no primeiro e último oitante, podia divisar-se
todo o contorno do globo terrestre. 0 disco deste aparecia bem visível
em virtude de uni efeito de luz cendrada, menos apreciável que a luz
cendrada da Lua.

E a razão desta menor intensidade é fácil de compreender.

Esse reflexo, quando se produz na Lua, é devido aos raios solares
que a Terra reflete na direção do seu satélite; quando
se produz na Terra, resulta do fenômeno contrário, isto é,
passa a ser a Lua a refletir os raios solares na direção da
Terra. Ora, a luz terrestre é, aproximadamente, treze vezes mais intensa
do que a lunar, fato que se explica pela diferença de volumes dos dois
corpos. Daí a razão por que, no fenômeno da luz cendrada,
a parte obscura do disco da Terra se destaca menos nitidamente do que a do
disco da Lua, unia vez que a intensidade do fenômeno é proporcional
ao poder iluminante dos dois astros. Convém acrescentar ainda que o
crescente terrestre parecia desenhar unia curva mais alongada que a do disco.
Puro efeito de irradiação, nada mais.

Em suma, eis tudo o que eles viam desse esferóide perdido na obscuridade
– astro menor do sistema solar, que, para os grandes planetas, se põe
e nasce tal e qual unia simples estrela da manhã ou da noite! Imperceptível
ponto do espa ço, o Globo onde haviam deixado tudo o que mais amavam
na vida era apenas um crescente fugitivo! Os três amigos olharam-no
demoradamente sem falar, mas unidos no mesmo sentimento, enquanto o projétil
se afastava a unia velocidade uniformemente decrescente. Depois, unia irresistível
sonolência venceu-os. Fadiga do corpo e da alma? Certamente, porque,
após a excitação das últimas horas passadas na
Terra, outra reação não era de se esperar.

– Bem já que é preciso dormir, durmamos – disse Michel.

Os três amigos imergiram num profundo sono.

Mas não dormiram nem uni quarto de hora. Barbicane levantou- se subitamente
e, despertando os companheiros, gritou: – Achei! – Que é que tu achaste?
– perguntou Michel Ardan, saltando do seu pequeno leito.

– A razão por que não ouvimos a detonação do
columbiad! – E qual é? – perguntou Nicoles.

– Não ouvimos a detonação, porque o nosso projétil
se deslocava a unia velocidade superior à da propagação
do som! E, pouco depois de se terem estendido nos catres, os

Capítulo II – A instalação

Uma vez ouvida esta curiosa mas por certo exata explica- ção,
os três amigos voltaram a mergulhar num profundo sono. Aquele projétil,
vagando no vazio absoluto, podia oferecer ao seus hóspedes uni repouso
absoluto.

Deste modo, o sono dos três viajantes teria podido prolongar- se indefinidamente
se um imprevisto rumor não os tivesse despertado por volta das sete
horas da manhã de 2 de dezembro, cerca de oito horas depois da partida.

Aquele rumor era um latido muito característico.

– Os cães! São os cães! – exclamou Michel Ardan, levantando-
se de um pulo.

– Têm fome – concluiu Nicoles.

– Meu Deus! – prosseguiu Michel. – Esquecemo-nos deles! – Onde estão?
– quis saber Barbicane.

Procuraram e encontraram um dos animais enroscado debaixo do sofá.
Amedrontado, atordoado pelo choque inicial, conversara-se no seu canto até
o momento em que sentiu o estímulo da fome e, com ele, as forças
para latir.

Era a simpática Diana, que, ainda cheia de medo, ia ,saindo do seu
esconderijo, não sem antes se fazer muito rogada.

Michel Ardan tentava encorajá-la com as suas mais doces palavras:
– Vem, Diana, vem i minha pequenina! Tu, cujo destino será assinalado
nos anais cinegéticos! Tu, que os pagãos teriam dado por companheira
ao deus Anúbis, e os cristãos por amiga a São Roque!
Tu, digna de seres moldada no bronze do rei dos Infernos, como esse cachorrinho
que Júpiter ofereceu à bela Europa em troca de uni beijo! Tu,
cuja celebridade ofuscará a dos heróis de Montargis e do Monte
São Bernardo! Tu, que, elevando-te nos espaços interplanetários,
serás por força a Eva dos cães selenitas! Tu justificarás
lá em cima esta frase de Toussene: ?No início, Deus criou o
homem e, vendo-o tão débil, deu-lhe o cão!? Vem Diana!
Vem aqui! Diana, lisonjeada ou não, avançava lentamente, emitindo
gemidos comovedores.

– Bem! – disse Barbicane. Encontramos a Eu, mas por onde andará o
Adão? Adão! – exclamou Michel Adão não pode estar
longe! Está por aí, em qualquer canto! Chamemo-lo! Satélite,
aqui? Sat élite.

Mas Satélite não aparecia. Diana continuava a gemer. Entretanto,
verificaram que não estava ferida e deram-lhe unia apetitosa mistura
de pão com pedacinhos de carne, que pôs termo aos seus lamentos.

Quanto a Satélite, parecia ter-se volatilizado. Foi necessá-
rio procurar pacientemente para o descobrir num dos compartimentos superiores
do projétil, para onde uni inexplicável impulso o havia violentamente
lançado. 0 pobre animal, muito atordoado, estava num estado lastimoso.

– Com mil diabos? – bradou Michel. – A nossa experiência de aclimatação
está comprometida! Desceram o infeliz cão com as maiores precauções.
A ca beça tinha batido na cúpula e tudo indicava que seria difícil
recuperá-lo de tal pancada. Apesar disso, estenderam-no confortavelmente
sobre uma almofada, e ali Satélite deixou escapar uni longo suspiro.

Vamos curar-te – disse Michel. – Somos responsáveis pela tua existência.
Preferia perder uni braço a perder unia pata do meu pobre Satélite!
E, dizendo isto, deu uni pouco de água ao ferido, que a bebeu avidamente.

Prestados estes cuidados, os viajantes puseram-se a ob5ervar a Terra e a
Lua. A Terra era apenas uni disco cendrado, cujo crescente se esbatera uni
tanto desde a véspera, embora o seu volume permanecesse enorme em relação
ao da Lua, que se aproximava cada vez mais da forma do circulo perfeito.

– Por minha fé! – acabou de dizer Michel. Ardan estou mesmo aborrecido
por não termos partido no momento da terra cheia, quero dizer, quando
o nosso Globo se encontrava em oposição com o Sol.

– Por quê? – inquiriu Nicoles.

– Porque teríamos visto sob a luz inteiramente nova os nossos continentes
e mares, estes resplandecendo sob a projeção dos raios solares,
aqueles mais escuros, tal como se reproduzem em certos mapas-mundi. Como gostaria
de ver os pólos terrestres, sobre os quais nenhum olhar humano pousou
ainda! – Sem dúvida, tudo isso está muito certo – atalhou Barbicane.

– Mas, se a Terra estivesse em terra cheia, a Lua estaria em lua nova, isto
é, invisível no meio da irradiação solar. E a
nós convém mais ver o ponto de chegada que o de partida.

– Tem toda razão – concordou o Capitão Nicoles. – De resto,
quando atingirmos a Lua, teremos tempo, durante as longas noites lunares,
de observar a nosso bel-prazer esse Globo onde formigam os nossos semelhantes!
– Os nossos semelhantes! – surpreendeu-se Michel Ardan.

– Mas agora são tão nossos semelhantes como os selenitas!
Nós habitamos uni mundo novo, cuja a População somos
nós… 0 Projétil! 0 meu semelhante, Barbicane, e Barbicane
o semelhante de Nicoles. Além de nós, fora de nós, a
humanidade acaba. Somos únicos habitantes deste? microcosmo, até
o instante e que rios tornemos simples selenitas! Dentro de oitenta e oito
horas aproximadamente Precisou o capitão.

– 0 que significa?… perguntou Michel Ardan. Que são oito e meia
– esclareceu Nicoles.

– Pois bem – respondeu Michel -, não conseguiu vislumbrar razões
que nos possam impedir de almoce imediatamente.

Na verdade, os habitantes do novo astro não podia sobreviver sem
comer, e os seus estômagos sentiam já o efeitos da fome. Michel
Ardan, como bom francês que era, proclamou-se cozinheiro-chefe, importante
função para a qual não tinha, aliás, concorrentes.
0 gás proporcionou Os Poucos graus de calor suficientes para os preparativos
culin ários e a arca de provisões forneceu os gêneros
para a primeira refeição.

Procederam em seguida ao inventário dos instrumentos.

Os termômetros e os barômetros resistiram, salvo uni termômetro
de mínima, cujo reservatório se partiu. Uni excelente aneróide,
retirado do estojo acolchoado que o protegia, foi pendurado numa das paredes.
Naturalmente, as indicações do aparelho diziam apenas respeito
à press ão da atmosfera existente dentro do projétil,
cujo índice hidrométrico também indicava. Naquele instante
a agulha oscilava entre 760 e 765 milímetros. Assinalava, Portanto,
?bom tempo?.

Barbicane trouxera também várias bússolas, que foram
encontradas intatas. Compreende-se que naquelas condi- ções
as suas agulhas estivessem ?loucas?, isto é, sem direção
constante. De fato, dada a distância a que o projétil estava
da Terra, o pólo magnético não podia exercer sobre os
instrumentos qualquer ação *sensível. Contudo, aquelas
bússolas, unia vez transportadas para a superfície lunar, talvez
pudessem indicar quaisquer fenômenos magnéticos ali existentes.
Em todo o caso, seria interessante saber-se se o satélite da Terra
estava, como esta, submetido à influ- ência magnética.
Quanto aos utensílios, picaretas, enxadas e outras ferramentas que
Nicoles havia selecionado propositadamente, bem como as sacas de sementes
variadas e as plantas que Michel Ardan se propunha transplantar em solo selenita,
estavam em ordem.

Barbicane verificou, também, que os foguetes e os outros fogos de
artifício não haviam sofrido danos. Eram de fato peças
importantes, dotadas de potentes cargas, que estavam destinadas a atenuar
a queda do projétil quando este arrastado pela força de atração,
caísse na superfície da Lua.

0 mesmo espetáculo! Em toda a sua extensão, a esfera celeste
formigava de estrelas e de constelações de unia maravilhosa
pureza, que fariam perder a cabeça a uni astrônomo. De uni lado
o Sol, qual boca de forno inflamado, disco deslumbrante sem auréola,
destacava-se do fundo negro do céu. Do outro lado, a Lua refletia a
luz do Sol, aparentemente imóvel no meio do mundo estelar. Depois,
unia mancha muito nítida que parecia furar o firmamento e tinha ainda
unia estreita orla prateada: era a Terra! Os observadores não conseguiam
desviar os olhos daquele espetáculo inédito, do qual nenhuma
descrição poderá dar unia pálida idéia.

Capítulo III – Um erro de cálculo

A noite escoou-se sem novidade. Para falar a verdade, a palavra -noite- não
é lá muito apropriada.

E que a posição do projétil não se alterara
em relação ao Sol. Sob o ponto de vista astronômico, era
dia na parte inferior do projétil e? noite na parte superior., Sempre
que se utilizar os termos ?noite? e ?dia?, eles exprimem, conseq üentemente,
o lapso de tempo que transcorre entre o nascer e o por do Sol na Terra.

0 sono dos viajantes foi tanto mais sossegado quanto a ilusão da
imobilidade do projétil parecia ser um fato irrecusável, isto
apesar da extraordinária velocidade de que ia animado.

Naquela manhã do dia 3 de dezembro, os viajantes despertaram com
uni som alegre mas inesperado. 0 canto de uni galo ressoara no interior do
projétil.

Michel Ardan foi o primeiro a pôr-se de pé. Trepou ao topo
do projétil e, fechando uma caixa entreaberta, disse entre dentes:
_ Vê se te calas! Queres botar a perder os meus planos? Nicoles e Barbicane
tinham também acordado.

– Uni galo? – surpreendera-se Nicoles.

– Não, meus amigos! – apressou-se a responder Michel. – Fui eu que
quis despertá-los com esta vocalização de sabor campestre!
Dito isto, soltou uni cocorocó esplêndido, que teria feito honra
ao mais orgulhoso dos galináceos.

Os dois americanos não conseguiram conter o riso.

– Grande talento… – comentou Nicoles, olhando o companheiro com uni ar
de suspeita.

– Bem, sabem… – explicou Michel -, é uma brincadeira da minha terra.
Muito gaulesa. Imita-se o galo na melhor sociedade! – E mudando de assunto:
– Barbicane, sabes em que pensei toda a noite? – Como queres que saiba? –
perguntou Barbicane.

– Nos nossos amigos de Cambridge. Já reparaste que sou uni perfeito
ignorante no que respeita a matemáticas. Ê- me, portanto, impossível
imaginar como puderam os sábios do observatório calcular a velocidade
inicial de que o projétil deveria ser animado ao deixar o columbiad
a fim de conseguir alcançar a Lua.

– Queres dizer – replicou Barbicane -, para atingir o ponto neutro em que
se equilibram as atrações terrestres e lunar, porque a partir
desse ponto, situado a cerca de nove décimos do percurso, há-de
o projétil cair na Lua apenas pelo efeito do seu próprio peso.

– Mas que seja assim – admitiu Michel -; mas, insisto, como puderam eles
calcular a velocidade inicial? – Nada mais simples… – respondeu Barbicane.

– Queres dizer que eras capaz de fazer esse cálculo? – voltou a perguntar
Michel Ardan.

– Com toda a certeza. Nicoles e eu te-lo-íamos estabelecido, se a
nota do observatório não nos tivesse poupado esse trabalho.

– Pois bem, meu velho confessou Michel -; a mim era mais fácil cortar-me
a cabeça, começando pelos pés, do que me obrigarem a
resolver tal quebra-cabeças1 – Ora, porque não sabes álgebra
– replicou tranqüilamente Barbicane.

– E de me ensinar a maneira de calcular a velocidade inicial do nosso projétil?
– Sim, meu bom amigo. Considerando todos os dados do problema, distância
do centro da Terra ao centro da Lua, raio da Terra, massa da Terra e massa
da Lua, posso estabelecer exatamente, através de unia simples fórmula,
a velocidade que devia ter animado à partida 0 nosso projétil.

0 capitão, homem habituado a superar todas as dificuldades, pôs-se
a fazer contas com uma rapidez espantosa.

Divisões e multiplicações nasciam-lhe sob o lápis.
Os algarismos crivavam a página branca. Barbicane seguia a opera ção
com os olhos, enquanto Michel Ardan apertava a cabeça com as mãos
para tentar minorar os efeitos de uma enxaqueca que começava a perturbá-lo.

– E então? – perguntou Barbicane, depois de alguns minutos de siléticio.

– Então, concluídos os cálculos – respondeu Nicoles
-i o zero, isto é, a velocidade do projétil ao sair da atmosfera,
para poder atingir o ponto de igual atração, devia ser de…

– De? … fez Barbicane.

– De onze mil e cinqüenta e uni metros no primeiro segundo.

– Hem! – exclamou Barbicane, dando uni pulo. -0 que diz? – Onze mil e cinqüenta
e uni metros.

– Maldição! – bradou o presidente, fazendo uni gesto de desespero.

– Que é que te deu? – perguntou muito surpreendido M Michel. Ardan.

– 0 que é que me deu! Deu-me que, se naquele momento a velocidade
houvesse diminuído de um terço, isto significa que a velocidade
inicial deveria ter sido de…de dezesseis mil quinhentos e setenta e seis
metros – precisou Nicoles.

– E o Observatório de Cambridge garantiu que onze mil metros à
partida seriam suficientes! Bonito serviço! E o nosso projétil,
que foi disparado apenas com essa velocidade! – E então? – perguntou
Nicoles.

– Então a velocidade não é suficiente! – Não
é suficiente?…

– Não, nem chegaremos ao ponto neutro! – Com a breca! – Nem sequer
a meio do caminho! – Raio de projétil! – vociferou Michel Ardan, saltando
como se estivessem a ponto de chocar com o esferóide terrestre.

– E voltaremos a cair na Terra!

Capítulo IV – Os frios do espaço

A revelação teve o efeito de uni raio. Quem poderia esperar
uni semelhante erro de cálculo? Barbicane recusava-se a admiti-lo.
Nicoles; reviu os seus cálculos. Estavam certos.

Quanto à fórmula que haviam estabelecido, a sua exatidão
estava fora de dúvidas. Feita a verificação, o resultado
manteve-se: era necessária unia velocidade inicial de dezesseis mil
quinhentos e setenta e seis metros no primeiro segundo para atingir o ponto
neutro.

Os três amigos olharam-se em silêncio. Do almoço ningu
ém mais se lembrou. Com os dentes cerrados, as sobrancelhas carregadas
e os punhos convulsivamente contra ídos, Barbicane olhava através
– da vigia. Nicoles cruzara és braços e reexaminava os cálculos.
Michel. Ardan murmurava: – Grandes sábios, não haja dúvidas.
Bonita confusão em que nos meteram! Daria de bom grado vinte moedas
de ouro para cair em cima do Observatório de Cambridge e esmagá-lo
com todos esses falseadores; de algarismos! De súbito, o capitão
fez unia reflexão que ecoou no espírito de Barbicane.

Agora reparo! – disse ele. – São sete horas da manhã. Partimos,
portanto, há trinta e duas horas. Mais de metade do nosso trajeto está
percorrido e, que eu saiba, não estamos caindo! Barbicane manteve-se
em silêncio. Mas, após ter lançado unia rápida
olhadela na direção do capitão, pegou num compasso que
lhe servia para medir a distância. angular do Globo terrestre. Em seguida,
através da vidraça inferior, procedeu a unia observação
rigorosa, graças à imobilidade aparente do projétil.
Levantou-se então, limpando a testa molhada de suor, e anotou no papel
alguns algarismos.

Nicoles compreendeu que o presidente pretendia deduzir da medida do diâmetro
terrestre a distância do projétil á Terra. Olhava-o ansiosamente.

– Não! – quase gritou Barbicane, alguns instantes depois. – Não,
não caímos! Estamos já a mais de cinqüenta mil lé-
guas da Terra! Transpusemos o ponto em que o projétil pararia se a
velocidade à partida fosse apenas de doze mil jardas! Continuamos a
subir! – É evidente – raciocinou em voz alta Nicoles – que a nossa
velocidade inicial, sob impulso das quatrocentas mil libras de algodão-pólvora,
ultrapassou as doze mil jardas pedidas.

Isto explica que tivéssemos encontrado, passados apenas treze minutos,
o segundo satélite, que gravita a mais de duas mil léguas da
Terra.

– E tal explicação é tanto mais provável – acrescentou
Barbicane quanto é certo que o projétil ficou aliviado de parte
substancial do seu peso quando expeliu a água contida entre tabiques.

– Exato! disse Nicoles.

– Ah!, meu caro Nicoles – exclamou Barbicane estamos salvos! – Se é
assim – rematou tranqüilamente Michel Ardan -, acho melhor almoçarmos.

Nicoles não se enganava. A velocidade inicial fora, felizmente, superior
à indicada pelo Observatório de Cambridge, mas nem por isso
deixara a prestigiosa instituição de se enganar.

Os viajantes, já refeitos do falso alarma, sentaram-se à mesa
e almoçaram alegremente. Se comeram muito, falaram mais ainda. A confiança
era agora maior do que antes do ?incidente algébrico?.

– E por que razão não havemos de vencer? – repetia Michel
Ardan. – Por que não havemos de chegar? Vamos a caminho.

Diante de nós não há obstáculos. Não
há pedras no nosso trajeto. A estrada está livre, mais livre
do que a do navio que se debate no mar, mais livre do que a do balão
que luta com os ventos! Ora, se o navio chega ao porto de destino, se o balão
sobe até onde lhe apraz ? por que não há-de o nosso projétil
atingir o alvo que visou? – Atingirá – assegurou Barbicane.

– Nem que seja apenas para honrar o povo americano – acrescentou Michel
Ardan -, o único povo que seria capaz de levar a bom termo tal empresa,
o único que podia ver nascer no seu seio um Presidente Barbicane! Ah!
Só uma coisa me inquieta: agora, que acabaram as nossas preocupa ções,
em que nos havemos de ocupar? Vamos nos aborrecer terrivelmente! Barbicane
e Nicoles acenaram que não.

– Bem fiz eu em prevenir-me, meus amigos – prosseguiu Michel Ardan. – Basta
que peçam. Tenho à disposição de vocês xadrez,
damas, baralhos de cartas e dominós! Só me falta um bilhar!
– 0 quê? Trouxeste semelhantes ninharias? – perguntou Barbicane.

– Trouxe – respondeu Michel -, e não só para nossa distração,
mas também na louvável intenção de introduzir
esses nos botequins da Lua.

– Meu amigo – disse Barbicane -, se a Lua é habitada, os seus habitantes
apareceram alguns milhares de anos antes dos da Terra, porque ninguém
pode pôr em dúvida, que esse astro seja mais velho que o nosso.
Se, por conseguinte, os selenitas existem há centenas de milhares de
anos, se tem o cérebro estruturado como o nosso, inventaram já
tudo o que nós inventamos e até aquilo que havemos de inventar
no decurso dos séculos vindouros.

Em outras palavras, nada têm a aprender conosco, enquanto nós
teremos tudo a aprender com eles.

– Que dizes? – perguntou Michel Ardan. – Pensas então que tiveram
artistas com Fídias, Miguel Angelo e Rafael? – Sim.

– E poetas como Homero, Virgilio, Milton, Lamartine e Hugo? – Tenho certeza.

E filósofos como Platão, Aristóteles, Descartes e Kant?
– Não duvido.

– E sábios como Arquimedes, Euclides, Pascal e Newton? – Jurá-lo-ia.

– E cômicos como Arnal e fotógrafos como… como Nadar? – Com
certeza.? – Bem, amigo Barbicane, se eles são assim tão evoluídos,
por que não tentaram comunicar-se com a Terra? Por que não lançaram
uni projétil lunar em direção à superfície
terrestre? – E quem te disse que não o fizeram? – perguntou por sua
vez Barbicane, muito sério.

– Realmente – acrescentou Nicoles -, isso até seria mais fácil
para eles do que para nós, e por dois motivos: primeiro, porque a atração
é seis vezes menos intensa na superf ície da Lua do que na da
Terra, o que possibilitaria imprimirlhe unia velocidade de oito mil léguas
em vez de oitenta mil, o que requereria unia força propulsora dez vezes
menor.

– Então – insistiu Michel -, eu repito: por que não o fizeram?
– E eu – replicou Barbicane – volto a insistir: quem te disse que não
o fizeram? – Quando? – Há milhares de anos, antes da aparição
do homem na Terra.

– E o projétil? Onde está o projétil? – Meu amigo –
contemporizou Barbicane -, o mar cobre cinco sextos do nosso Globo. – Por
isto, há cinco boas razoes para supor que o projétil lunar,
se foi lançado, esteja agora no fundo do Atlântico ou do Pacífico.
A menos que se tivesse enterrado em alguma fenda, na época em que a
crosta terrestre não estava suficientemente solidificada.

– Meu velho – retorquiu Michel -, tens sempre unia explica- ção
para tudo. Inclino-me diante da tua sabedoria. Todavia, há unia hipótese
que me é mais cara: a de que os selenitas, sendo mais velhos e sábios
que nós, nem sequer tenham inventado a pólvora.

Nessa altura, Diana intrometeu-se na conversa, soltando uni sonoro latido.
Reclamava a sua ração.

– Ah! – fez Michel Ardan. – Com a discussão até nos esquecemos
de Diana e de Satélite.

Unia abundante sopa foi rapidamente preparada e oferecida à cadela,
que a devorou com grande apetite.

– Olha, Barbicane – dizia Michel -, o que deveríamos ter feito era
transformar o projétil numa segunda Arca de Noé e levar para
a Lua uni casal de todos os animais domésticos.

– Sem dúvida – respondeu Barbicane -, mas não teríamos
espaço. Ora, dava-se um jeito! – disse Michel. – Apertávamos
um pouco.

– A verdade é que um boi, uma vaca, uma égua e um cavalo ser-nos-íam,
muito úteis no continente lunar – opinou Nicoles. – Mas este foguete
não podia transformar-se numa estrebaria, nem num estábulo.

– Mas ao menos – disse Michel Ardan – poderíamos ter trazido uni
burro, uni pequeno e simples burro, o corajoso e paciente animal que o velho
Sileno gostava de montar! Como eu gosto dos pobres burros! São os animais
menos favorecidos da criação: não só lhes batem
enquanto vivos, como ainda depois de mortos.

– Que queres dizer? – inquiriu Barbicane.

– Ora essa – exclamou Michel Ardan. – Então não lhes aproveitam
a pele para fazer tambores? Barbicane e Nicoles não puderam deixar
de rir perante tão extravagante reflexão. Mas- a uni grito do
alegre companheiro calaram-se: Michel. estava curvado sobre o nicho de Satélite.
Quando se levantou, disse: – Satélite já não está
doente.

– Ali! – fez Nicoles.

– Não – prosseguiu Michel -, está morto. É uma pena
– acrescentou com unia voz melancólica. – Temo, minha pobre Diana,
que não possas perpetuar a tua espécie na Lua? Realmente ? o
infortunado Satélite não conseguira sobreviver ao grave ferimento.
Estava morto, bem morto. Michel Ardan, muito perturbado, olhava os amigos.

– Agora temos uni problema – murmurou Barbicane. – Não podemos manter
aqui o seu cadáver por mais quarenta e oito horas.

– Não, claro que não – apoiou Nicoles. – As nossas vigias
estão fixadas por dobradiças, podem abrir-se. Abriremos unia
e lançaremos o corpo no espaço.

Após ter refletido durante alguns instantes, o presidente disse:
Sim, teremos: de ir para essa solução, mas será necessá-
rio que observemos com rigor as precauções.

– Por quê? – perguntou Michel.

– Por duas razões fáceis de compreender – respondeu Barbicane.
– A primeira relaciona-se com o ar existente dentro do projétil, que
não podemos desperdiçar.

– Mas se nós o podemos refazer!…

– Só em parte. Apenas refazemos o oxigênio, meu caro Michel.
A propósito, temos de estar atentos ao aparelho, não vá
ele fornecer oxigênio em quantidade excessiva, porque tal excesso nos
traria perturbações fisiológicas muito graves. Se, porém,
refazemos o oxigênio, não produzimos o azoto, gás que
os pulmões não absorvem e que deve permanecer intato. Ora o
azoto escapar-se-ia rapidamente pela vigia aberta.

– Oh! Mas é só o tempo de lançar o pobre Satélite…
disse Michel.

– De acordo, mas temos que ser rápidos.

– E qual é a segunda razão? – perguntou Michel.

– A segunda razão diz respeito ao frio exterior. Porque é
intensíssimo, não o podemos deixar penetrar no projétil,
sob pena de nos gelarmos vivos.

Todavia o Sol…

0 Sol aquece o nosso projétil, que lhe absorve os raios, mas não
o vácuo em que flutuamos neste momento. Onde não há ar,
não há calor, nem luz difusa, e do mesmo modo que há
noite, há frio onde os raios do Sol não batem diretamente. A
temperatura exterior é apenas a que prov ém da irradiação
estelar, isto é, a mesma que banharia o Globo terrestre se um dia o
Sol se extinguisse.

– 0 que não é de temer… – considerou Nicoles.

– Quem sabe? – contrapôs Michel Ardan. – De resto, mesmo admitindo
que o Sol não se extinga, não pode dar-se o caso de a Terra
se afastar dele? – Pronto! – exclamou Barbicane. – Aí está Michel
com as suas idéias! – Oh! Acaso não se sabe que a Terra atravessou
a cauda de uni cometa em 1861? Ora, suponhamos que uni cometa, com unia força
de atração superior à atração solar, se
avizinha da Terra. A órbita terrestre inclinaria na direção
do astro errante e a Terra, transformada em satélite, seria arrastada
a unia distância tal que os raios do Sol deixariam de ter qualquer ação
na sua superfície.

– Isso pode acontecer, realmente – confirmou Barbicane -, mas as conseqüências
de semelhante afastamento poderiam ser bem menos temíveis do que tu
supões.

– E por quê? – Porque o frio e o calor se equilibrariam ainda no li
o Globo.

Estimou-se que, se tivesse sido arrastada pelo cometa de 1861, a Terra não
chegaria a receber, â máxima distância do Sol, calor igual
a dezesseis vezes o calor que na situa- ção atual a Lua lhe
envia, calor esse que, concentrado no foco das lentes mais potentes, não
produz qualquer efeito apreciável.

– E então? – insistiu Michel.

– Calma – aconselhou Barbicane. E prosseguiu: – Estimouse também
que no seu periélio, isto é, à distância mais próxima
do Sol, a Terra teria suportado uni calor igual a vinte e oito mil vezes o
do verão. Contudo, esse calor, capaz de vitrificar as matérias
terrestres e de vaporizar as águas, teria dado origem a uni anel de
nuvens de tal maneira espesso que atenuaria a excessiva temperatura. Daí
unia compensação entre os frios do afélio e os calores
do periélio e unia temperatura média provavelmente suportável.

– Mas em quantos graus se estima a temperatura dos espa ços interplanetários?
– perguntou Nicoles.

– Outrora – respondeu Barbicane -, acreditava que era unia temperatura excepcionalmente
baixa. Calculando o seu decrescimento termométrico, chegava-se a números
da ordem dos milhões de graus abaixo de zero. Foi Fourier, compatriota
de Michel e ilustre sábio da Academia das Ci- ências, quem reduziu
esses números a estimativas mais exatas. Segundo ele, a temperatura
do espaço não vai além dos sessenta graus negativos.

Ora! – disse Michel.

É mais ou menos a temperatura – prosseguiu Barbicane – que foi observada
nas regiões polares, na Ilha Melville e em Forte Refiance, que era
de cerca de cinqüenta e seis graus centígrados abaixo de zero.

– Resta saber – observou Nicoles – se Fourier se enganou nas avaliações.
Se bem me lembro, uni outro sábio franc ês, Pouillet, estima
a temperatura do espaço em cento e sessenta graus abaixo de zero. E
que nós verificaremos.

– Não por hora – advertiu Barbicane -, porque os raios solares, incidindo
diretamente no nosso termômetro, dar-nosiam, ao contrário, unia
temperatura muito elevada. Mas, quando chegarmos à Lua, durante as
noites de quinze dias que alternadamente ensombram cada uma das faces do astro,
teremos tempo para levar a cabo essa experiência, porque o nosso satélite
move-se no vácuo.

– Afinal, que entendes tu por vácuo? – perguntou Michel. – E o vácuo
absoluto? – É o vácuo completamente privado de ar.

– E nesse vácuo o ar não é substituído por nada?
– É. Pelo éter – precisou Barbicane.

– Ali! E o que é o éter? – 0 éter, meu amigo, é
unia aglomeração de átomos imponderáveis, que,
relativamente às suas dimensões, segundo dizem as obras de física
molecular, estão tão afastados uns dos outros como o estão
os corpos celestes entre si no espaço. Essa distância, porém,
é inferior a um terço de milionésimo de milímetro.
São esses átomos que, através do movimento vibratório
de que estão animados, produzem a luz e o calor, chegando a alcançar
quatrocentos e trinta trilhões de vibrações por segundo,
numa amplitude que não excede quatro ou seis décimos milésimos
de milímetro.

– Bilhões de bilhões! – exclamou Michel Ardan. – Enfim, algu
ém já mediu essas oscilações? Tudo isso, amigo
Barbicane, são números de sábios que enchem os ouvidos
mas nada dizem ao espírito.

– Mas é indispensável calcular…

– Não. É preferível comparar. Uni trilhão nada
diz. Uni termo de comparação, ao contrário, diz tudo.
Exemplo: se me disseres que o volume de Urano é setenta e seis vezes
superior ao da Terra, o de Saturno novecentas, o de Júpiter mil e trezentas
e o do Sol um milhão e trezentas mil, fico absolutamente indiferente.
Por isso, prefiro, e de longe, as antigas comparações do Double
Liégeois, que nos informam muito por baixo: o Sol é unia abóbora
com dois pés de diâmetro, Júpiter unia laranja, Saturno
unia pequena maçã avermelhada, Netuno uma tangerina, Urano unia
enorme cereja, a Terra uni grão-de-bico, Venus uma ervilha, Marte uma
grande cabeça de alfinete, Mercúrio um grão de mostarda,
e Juno, Ceres, Vêsta e Palas simples grãos de areia! Ao menos
assim a gente sabe a que ater-se! Depois desta tirada de Michel Ardan contra
os sábios e os trilhões que rabiscam sem pestanejar, trataram
de desembara çar-se do corpo de Satélite. Nada mais havia a
fazer do que lançá-lo no espaço, do mesmo modo que os
marinheiros lançam os cadáveres ao mar.

A 4 de dezembro, os cronômetros marcavam 1 cinco horas da manhã,
quando os viajantes acordaram. Iam decorridas cinqüenta e quatro horas
de viagem. No que respeita a tempo, apenas haviam excedido em cinco horas
e quarenta minutos a metade da duração prevista para a sua permanência
no projétil; mas, quando a trajeto, tinham já cumprido perto
de sete décimas partes do percurso total, particularidade esta que
era conseqüência da regular diminui ção da velocidade.

Assim que Michel desceu, aproximou-se da vigia lateral e, de súbito,
deixou escapar unia exclamação de surpresa.

– Que é que foi agora? – inquiriu Barbicane.

0 presidente aproximara-se também da vigia. Avistou uma espécie
de saco espalmado, que flutuava no exterior e alguns metros do projétil.
0 objeto parecia imóvel e, no entanto, estava animado do mesmo movimento
ascensional que impulsionava o projétil.

– Que raio de coisa é aquela? – repetia Michel Ardan, estupefato.
– Será uni desses corpúsculos espaciais que o nosso projétil
retém no seu raio de atração e que nos vai acompanhar
até a Lua? 0 que me espanta – confessou Nicoles – é que o peso
espec ífico daquele corpo, por certo inferior ao do projétil,
lhe permita manter-se tão rigorosamente ao mesmo nível! – Nicoles
– disse Barbicane, após um momento de reflexão -, não
sei que objeto é aquele, mas sei perfeitamente a razão por que
se mantém ao lado do projétil.

– E qual é? – Não nos esqueçamos, meu caro capitão,
que flutuamos no vácuo e que no vácuo os corpos caem ou movem-se,
o que é a mesma coisa, com unia velocidade igual, seja qual for o seu
peso e a sua forma. É o ar que, pela sua resistência, determina
as diferenças de peso. Quando se obtém pneumaticamente o vácuo
num tubo, os objetos lá existentes, quer se trate de grãos de
poeira ou de chumbo, caem todos com a mesma rapidez. Aqui, no espaço,
– a mesma causa determina o mesmo efeito.

– Certíssimo – disse Nicoles. – Tudo o que alijarmos acabará
por acompanhar o projétil na sua viagem até a Lua.

– Ali! – gritou Michel.

– Que tens, homem de Deus? – perguntou Nicoles.

– Eu sei, eu advinho o que é aquele falso bólide! Não
é uni asteróide o que nos acompanha! Nem sequer uni fragmen
to de planeta! – Que é então? – perguntou Barbicane.

– É o nosso infeliz cão! É o companheiro de Diana!
Na verdade, aquele objeto deformado, irreconhecível, reduzido a nada,
era o corpo de Satélite, espalmado como uma gaita de fole vazia, que
subia, subia sempre! Era o corpo de Satélite

Capítulo V – Um momento de embriaguez

Eis como um fenômeno curioso, mas lógico, fora do comum, mas
explicável, se produzia em singulares condições.

Todo o objeto alijado do projétil tendia a seguir a mesma trajetória
e a parar apenas quando ele parasse. Esta a mat éria que uma noite
inteira de conversa não pode esgotar.

A emoção dos três companheiros crescia, aliás,
à medida que se aproximava o fim da viagem. Esperavam o imprevisto,
os fenômenos mais fantásticos. Na disposição de
espírito em que estavam, nada os teria espantado.

Superexcitada, a imaginação ia-lhes adiante do projétil,
cuja velocidade diminuía acentuadamente, sem que disso se apercebessem.
Mas a Lua aumentava de dimensão a olhos vistos, a tal ponto que acreditavam
bastar-lhes estender a mão para nela tocar.

No dia seguinte, 5 de dezembro, logo às cinco da manhã, todos
estavam de pé. Este devia ser o último dia de viagem, se os
cálculos estivessem exatos. Nessa mesma noite, à meia-noite,
dentro de dezoito horas e no preciso momento da lua cheia, alcançariam
o resplandecente disco.

Avizinhava-se a hora em que se completaria aquela viagem – a mais extraordinária
de todos os tempos. Não admira, portanto, que desde manhã, através
das vigias prateadas pelo luar, os três viajantes não cessassem
de sau dar o astro da noite, a lua, com confiantes e alegres burras! A lua
avançava majestosamente no firmamento estrelado.

Apenas alguns graus mais, e ela alcançaria o ponto exato do espaço
onde se daria o seu encontro com o projétil. De acordo com as suas
próprias observações, Barbicane calculou que a abordariam
pelo hemisfério norte lá onde se alongam as imensas planícies
e rareiam as montanhas. Circunst ância favorável, se a atmosfera
lunar, como se pensava, estivesse apenas concentrada nos locais mais baixos.

– Por outro lado – considerou Michel Ardan -, uma planície é
mais adequada a um desembarque do que uma montanha.

Um selenita que descesse na Europa no cimo do Monte Branco, ou na Ásia
no pico do Himalaia, não teria propriamente chegado! – De mais a mais
– acrescentou Nicoles -, num terreno plano o projétil ficará
imóvel logo que o toque. Numa vertente, pelo contrário, rolaria
como uma bola, e, como não somos esquilos, não sairíamos
de lá sãos e salvos. Logo, tudo vai bem.

Na verdade, o êxito da audaciosa experiência parecia assegurado.

Apesar disso, algo preocupava Barbicane. Por ém, como não
queria inquietar os companheiros, nada disse.

0 fato é que a direção que o projétil tomava,
rumava para o hemisfério norte da Lua, provava que a sua trajetória
fora ligeiramente modificada. 0 tiro, matematicamente calculado, deveria levar
o projétil mesmo até o centro do disco lunar. Se não
o alcançasse, era porque tinha havido um desvio. Que circunstância
o teria provocado? Barbicane não o sabia, assim como estava impedido
de determinar a import ância do fato por lhe faltarem pontos de referência.

Esperava, todavia, que não tivesse outro resultado senão o
de levá-lo na direção do bordo superior da Lua, região
muito mais propícia à alunissagem.

Barbicane contentou-se, portanto, em observar freqüentemente a Lua
para ver se a trajetória do projétil se mantinha, e decidiu
guardar para si a inquietação que sentia.

A situação tornar-se-ia dramática se o projétil,
falhando o alvo, se perdesse nos espaços interplanetários.

Naquele momento, a Lua, em vez do aspecto achatado de um disco, deixava
perceber a sua convexidade. Se o Sol a tivesse iluminado obliquamente com
os seus raios, a sombra projetada teria feito sobressair as altas montanhas
em nítido relevo. 0 olhar teria podido mergulhar nos escancarados abismos
das crateras e seguir as caprichosas fendas que zebram a imensidade das planícies.
Mas todo o relevo estava ainda nivelado por um intenso esplendor. Distinguiam-
se apenas as largas manchas que dão à Lua a aparência
de um rosto humano.

– Rosto? Seja – dizia Michel Ardan. – Mas, e sinto-o muito pela amável
irmã de Apolo, um rosto crivadinho de bexigas1 Já muito próximos
do destino, os viajantes olhavam fascinados aquele mundo novo. A imaginação
levava-os a passear por aquelas regiões desconhecidas. Trepavam aos
picos elevados, desciam às profundezas? das enormes crateras.

Aqui e ali, julgavam ver vastos mares mal contidos pela atmosfera rarefeita,
e cursos de água que colhiam o tributo das montanhas. Debruçados
no abismo, esperavam surpreender os rumores daquele astro, eternamente mudo
nas solidões do espaço.

Essa última parte da jornada deixou-lhes palpitantes recorda ções.
Anotaram-lhes os mais ínfimos pormenores. Uma vaga inquietação
penetrava-os à medida que se acercavam do fim da viagem. Tal inquietude
teria redobrado se tivessem apercebido de quanto era medíocre a velocidade
até o almejado alvo. É que então o projétil já
quase não pesava. 0 seu peso decrescia sem cessar e devia desaparecer
totalmente sobre a linha onde as atrações lunar e terrestre
se neutralizam, o que iria provoca surpreenden tes efeitos.

A despeito das suas preocupações, Michel. Ardan não
se esqueceu de preparar a refeição matinal com a habitual pontualidade.
Comeram com grande apetite. Nada mais excelente do que as carnes em conserva.
Alguns copos de um bom vinho francês coroaram a refeição.
A este propó- sito, Michel Ardan fez notar que as vinhas lunares, aquecidas
por aquele ardente sol, deviam produzir vinhos dos mais generosos – se é
que lá existiam. Em todo o caso, o previdente francês não
se esquecera de incluir na sua bagagem algumas preciosas cepas do Médoe
e da Côte-D?Or, nas quais depositava grandes esperanças.

0 aparelho Reiset e Regnault funcionava com extrema precis ão. 0
ar mantinha-se num estado de perfeita pureza.

Nenhuma molécula de ácido carbônico resistia à
potassa, e quanto ao oxigênio era certamente de primeira qualidade,
dizia o Capitão Nicoles. 0 reduzido vapor de água existente
no projétil misturava-se com o ar, atenuando-lhe a secura.

Muitas das casas de Paris, Londres ou Nova Iorque, tal como muitas salas
de teatro, não possuíam decerto condições tão
higiênicas.

Contudo, para funcionar cem por cento era necessário que o aparelho
fosse mantido em perfeito estado, pelo que todas as manhãs Michel inspecionava
os reguladores de saí- da, experimentava as torneiras e regulava com
o pirômetro a intensidade do gás. Até ali tudo tinha corrido
bem, e os viajantes, imitando o respeitável J. T. Maston, começavam
a ganhar carnes, de tal forma que ninguém os reconheceriam se o seu
encerramento durasse mais alguns meses.

Em uma palavra, sucedia-lhes o que acontece aos frangos na capoeira: engordavam.

Olhando através das vigias, Barbicane viu o cadáver do cão
e os diversos objetos lançados do projétil, que o acompanhavam
obstinadamente. Diana uivava lugubremente ao pressentir os restos de Satélite.
Todos aqueles despojos pareciam tão imóveis como se estivessem
pousados em terreno sólido.

– Sabem, meus amigos – dizia Michel Ardan -, que se um de nós não
tivesse resistido ao abalo da partida, teríamos sido forçados,
com muita pena embora, a enterrá-lo, que digo eu, a ?eterizá-lo?,
uma vez que aqui o éter substitui a terra! Imaginem que esse cadáver
acusador nos seguiria pelo espa ço como um remorso! – Teria sido muito
triste – disse Nicoles.

Finalmente, os três companheiros de viagem, cujos pulm ões
estavam afetados por incompreensível causa, mais do que ébrios,
queimados pelo ar que lhes incendiava o aparelho respiratório, caíram
sem sentidos no pavimento do projétil.

Que se passava? De onde provinha a causa daquela estranha embriaguez, cujas
conseqüências podiam ser desastrosas? De uma simples imprudência
de Michel, que, com rara felicidade, Nicoles pôde remediar a tempo.

Depois de um desmaio que durou alguns minutos, o capit ão foi o primeiro
a recuperar os sentidos e as faculdades intelectuais.

Apesar de ter almoçado apenas há duas horas, sentia uma fome
terrível que o atormentava como se não comesse há vários
dias. Tudo nele, estômago e cérebro, estava superexcitado no
mais alto grau.

Levantou-se e naturalmente pediu a Michel uma refeição suplementar.
Michel, desmaiado ainda, não respondeu.

Nicoles quis então preparar algumas chávenas de chá,
destinadas a facilitar a ingestão de uma dúzia de sanduíches.

Em primeiro lugar, tratou de arranjar lume, pelo que acendeu um fósforo.
Foi enorme a surpresa ao ver brilhar o enxofre com um clarão tão
intenso que os olhos só a custo podiam suportar. Do bico de gás,
que acendeu também, jorrou uma chama comparável aos jatos de
luz elétrica.

Uma revelação acudiu de imediato ao espírito de Nicoles.
A intensidade da luz, as perturbações psicológicas que
experimentara, a excitação das faculdades morais e afetivas
– tudo se explicava e compreendia.

– 0 oxigênio! – exclamou ele.

E, curvando-se para o aparelho de ar, notou que a torneira vertia jorros
de gás incolor, insípido e inodoro, eminentemente vital, mas
que, no estado puro, ocasiona as mais graves perturbações no
organismo. Por desatino, Michel deixara completamente aberta a torneira do
aparelho! Nicoles tratou de estancar o escoamento do oxigênio, de que
a atmosfera estava saturada, e que teria causado a morte aos viajantes, não
por asfixia, mas por combustão.

Uma hora depois, o ar, menos carregado, permitia aos pulm ões um
funcionamento normal. Pouco a pouco, os três amigos restabeleciam –
se da embriaguez, mas tiveram de curtir o oxigênio como o bêbado
curte o vinho.

Quando soube qual era a parte de responsabilidade que lhe tocava no incidente,
Michel nem por isso se mostrou muito preocupado. Afinal, aquela inesperada
embriaguez quebrara a monotonia da viagem. Muitas tolices foram ditas sob
o efeito dessa ebriedade, mas tão depressa se disseram como se esqueceram.

– Depois – acrescentou o alegre francês -, não estou nada aborrecido
por ter provado um pouco desse capitoso gás.

Sabem, meus amigos, que seria Curioso fundar um estabelecimento com salas
de oxigênio, onde as pessoas de organismo débil pudessem viver
uma vida mais ativa durante algumas horas? Imaginem reuniões em que
o ar estivesse saturado desse fluido heróico, teatros cujas administra
ções o fornecessem em alta dose no decurso dos espetáculos…
Que paixão, que fogo, que entusiasmo na alma dos atores e dos espectadores!
E se, em vez de uma simples assembléia, se pudesse saturar um povo
inteiro, que acréscimo de produção e. de vida o gás
lhe proporcionaria! De uma nação esgotada talvez se fizesse
uma na- ção cheia de vitalidade, e mais de uma conheço
eu, na nossa velha Europa, que deveria ser submetida a um rigoroso regime
de oxigênio, a bem da sua saúde! – Michel falava com tal animação
que quase se acreditava estar a torneira ainda demasiado aberta. Mas, apenas
com uma frase, Barbicane esfriou-lhe o entusiasmo.

– Tudo isso está muito bem, amigo Michel – disse-lhe -, mas és
capaz de nos explicar de onde vieram estas galinhas que entraram na nossa
representação? – As galinhas? – Sim.

De fato, uma meia dúzia de galinhas e um soberbo galo passeavam de
um lado para o outro, esvoaçando e cacarejando.

– As desajeitadas! – exclamou Michel. – Foi o oxigênio que lhes deu
volta à cabeça! – Mas, com a breca, que queres fazer destas
galinhas? – perguntou Barbicane.

– Aclimatá-las à Lua, ora essa! – Então por que as
escondidas? – Por brincadeira, meu estimado presidente, uma simples brincadeira
que afinal se malogrou ingloriamente! 0 meu plano era largá-las na
Lua sem vos dizer nada. Hem? Qual seria o vosso espanto ao ver estes voláteis
terrestres debicando nos campos lunares?…

– Ah, garoto, eterno garoto! – replicou Barbicane. – Nem precisas que o
oxigênio te suba à cabeçal Estás sempre como nós
estávamos sob a influência desse gás. És um louco!
– Ah, sim! E quem te diz que não estávamos então no nosso
perfeito juízo? – perguntou Michel Ardan.

Após esta reflexão filosófica, os três amigos
trataram de arrumar o projétil. Galinhas e galos voltaram às
gaiolas.

Contudo, enquanto procediam a essa operação, Barbicane e os
dois companheiros tiveram a nítida sensação de um novo
fenômeno.

A partir do momento em que deixaram a Terra, tanto o peso deles como o do
projétil e dos objetos que continha haviam sofrido uma progressiva
redução. Se não podiam verificar tal perda em relação
ao projétil, chegaria o momento em que esse efeito se lhes tomaria
sensível a eles próprios e aos utensílios e instrumentos
de que se serviam.

Escusado será dizer que uma balança normal não poderia
acusar tal redução porque o peso destinado a pesar o objeto
perderia precisamente o mesmo que o próprio objeto. Todavia, por meio
de uma balança de mola, por exemplo, cuja tensão é independente
da atração, conseguir-se-ia a exata avaliação
dessa perda.

Sabe-se que a atração, ou, dito de outro modo, a gravidade,
é proporcional às massas e está na razão inversa
do quadrado das distâncias. Daí a seguinte conseqüência:
se a Terra estivesse sozinha no espaço, se os outros corpos celestes
desaparecessem subitamente, o projétil, de acordo com a lei de Newton,
haveria de pesar tanto menos quanto mais afastado estivesse da Terra, mas
sem nunca perder por completo o peso, visto que a atração terrestre
sempre havia de fazer-se sentir, fosse que tal fosse a dist ância.

No caso presente, porém, havia de chegar o momento em que o projétil
deixaria de estar sujeito às leis da gravidade, pondo de parte os demais
corpos celestes, cuja ação se podia considerar como nula.

Realmente, a trajetória do projétil estava traçada
entre a Terra e a Lua. À medida que se afastava da terra, a atração
terrestre descrevia na razão inversa do quadrado das dist âncias,
mas simultaneamente a atração lunar .aumentava na mesma proporção.
Assim, havia de chegar a um ponto em que, neutralizadas as duas atrações,
o projétil deixaria de ter peso. Se a massa da Lua e a da Terra fossem
iguais, esse ponto localizar-se-ia precisamente a meio da distância
entre os dois astros. Porém,, tendo em consideração a
diferença de massas, fácil se tornava calcular que o tal ponto
se situava aos 47/52 da viagem, ou seja, em números mais claros, a
setenta e oito mil cento e quatorze léguas da Terra.

Nesse ponto, qualquer corpo que não contivesse em si mesmo meios
de deslocação ou de velocidade ficaria eternamente imóvel,
visto que a força de atração dos dois astros se equivaleria
e não haveria, conseqüentemente, preponder ância de nenhuma
delas.

– Ora, se a força de impulsão tivesse sido calculada com rigor,
o projétil devia atingir esse ponto com uma velocidade nula e total
ausência de gravidade, extensível aos objetos que transportava.

– Que aconteceria então? Três hipóteses e se apresentavam:
Ou o projétil, se porventura conservasse ainda uma certa velocidade
que lhe permitisse transpor o ponto de igual atração, cairia
na Lua em virtude da preponderância da atração lunar em
relação à terrestre.

Ou, por falta de velocidade para atingir esse ponto, voltaria a cair na
Terra, graças ao predomínio da atração terrestre
sobre a lunar.

OU, finalmente, animado de uma velocidade suficiente para atingir o ponto
neutro, mas insuficiente para ir além dele, ficaria eternamente suspenso
nesse lugar, como o pretenso túmulo de Maomé, entre o zênite
e o nada.

Tal era a situação, cujas conseqüências Barbicane
explicou de forma clara aos companheiros. A questão interessavalhes
profundamente. Então, como haviam de saber se o projétil atingiria
esse ponto neutro, situado a setenta e oito mil cento e quatorze léguas
da Terra? No preciso instante em que eles e os objetos que os rodeavam deixassem
de estar sujeitos aos efeitos da gravidade.

Até ali, os viajantes, embora verificando que tais efeitos decresciam
progressivamente, ainda não tinham sentido a ausência total daquela
força. Mas naquele dia, por volta das onze horas da manhã, Nicoles,
ao largar um copo na mão, viu que o mesmo, em vez de cair, ficava suspenso
no ar.

– Ah! – exclamou Michel Ardan. – Ora aí está um passe de física
recreativa.

E logo tratou de tirar dos apoios respectivos diversos objetos, como armas
e garrafas, que, abandonados a si mesmos, se mantiveram suspensos como por
milagre. Até Diana, uma – vez colocada no espaço recriou, mas
sem qualquer astúcia, a maravilhosa suspensão inventada pelos
Gaston e pelos Rober-Houdin. A cadela, aliás, não parecia aperceber-se
de que flutuava no ar.

Os três companheiros, eles próprios, transportados aos domínios
do maravilhoso, experimentavam, entre surpreendidos e estupefatos, apesar
dos raciocínios científicos, uma sensação de total
leveza, que lhes era proporcionada pela ausência de peso. Se estendiam
um braço, nada o impedia de ficar estendido. A cabeça vacilavallíes
sobre os ombros. Os pés já não se apoiavam no chão
do projétil.

Estavam como ébrios, com o sentido de equilíbrio desequilibrado.

0 fantástico criou homens sem imagem reflexa ou sem sombra. Mas no
projétil, a realidade, mediante a neutralização das forças
atrativas, criara homens sem peão e a quem nada pesava! De repente,
Michel, tomando impulso, deixou o projétil e ficou suspenso ?no ar,
como o – monge da Cuisine des Anges, de Murillo.

Poucos instantes depois, juntavam-se-lhe os dois amigos, e os três,
no centro do projétil, simbolizavam uma ascens ão maravilhosa.

– É isto possível? É verossímil? É real?
– perguntou Michel.

Não. E todavia é1 Ah, se Rafael nos visse assim, que Assun
ção não teria esboçado na tela.

– A assunção não pode durar – disse Barbicane. – Logo
que o projétil passe o ponto neutro, ficaremos sujeitos à atração
lunar.

– E apoiaremos os pés na cúpula do projétil – concluiu
Michel.

– – Não – emendou Barbicane -, porque o projétil, cujo centro
de gravidade é muito baixo, há de voltar-se pouco a pouco.

– Bom, já percebi. Vai ficar tudo de pernas para o ar.

– Descansa, Michel – interveio Nicoles. – Não há que temer
a mínima desarrumação. Nenhum objeto sairá do
seu lugar, porquanto a evolução do projétil far-se-á
de um modo insensível.

– De fato – explicou Barbicane -, quando o projétil passar para al&eacuteacute;m
do ponto em que as atrações se anulam, a sua base, porque é
relativamente mais pesada, arrastá-lo-á para uma posição
perpendicular à Lua. Mas para que este fenô- meno ocorra é
preciso que tenhamos passado a linha neutra.

– Passar a linha neutra! – exclamou Michel. -,Façamos como os marinheiros
que passam o equador: festejemos condignamente o fato! Um ligeiro movimento
lateral levou Michel até a parede acolchoada.

Ali, pegou numa garrafa e em copos, que foi colocar no espaço, diante
dos companheiros. Em seguida, bebericando alegremente, saudaram a linha com
um tríplice hurra 0 equilíbrio de atrações durou
apenas uma hora, ao fim da qual os viajantes começaram a se sentir
atraídos para o fundo do projétil. Barbicane julgou mesmo ver
que a ponta cônica do projétil se afastava um pouco da posição
precedente, que o apontava para a Lua, ao mesmo tempo que a base, por um movimento
inverso, dela se aproximava. A atração lunar predominava portanto
sobre a terrestre. A descida em direção ao astro da noite começava
de uma forma ainda imperceptível, já que devia ser apenas, no
primeiro segundo, de um milímetro e um terço, isto é,
quinhentos e noventa milésimos de finha. Mas, pouco apouco, a força
de atração acentuaria, a descida tornar-se-ia mais perceptível
e o projétil, arrastado pelo peso da base, voltaria o cone superior
para a Terra e desceria, com uma velocidade crescente, até a superfície
lunar. 0 objetivo seria, portanto, atingido. Nesse momento nada podia impedir
o êxito da empresa, e Nicoles e Michel Ardan partilharam da alegria
de Barbicane.

Capítulo VI – Conseqüências de um
desvio

Barbicane já não sentia qualquer inquietação,
se não sobre o êxito da viagem, pelo menos a respeito da força
de impulsão do projétil, cuja velocidade virtual o levava a
ultrapassar a linha neutra. Portanto, nem voltaria à Terra nem se imobilizaria
no ponto de anulação das atrações. Das hip óteses
aventadas, uma única ainda não se realizara: a chegada do projétil
ao alvo pela ação da atração lunar.

Na realidade, era uma queda de oito mil duzentas e noventa e seis léguas
sobre um astro onde a gravidade tem apenas a sexta parte do valor da terrestre.
Apesar disso, a queda seria formidável, pelo que todas as precauções
deviam ser tomadas sem demora.

Havia a considerar duas espécies de precauções: uma
destinada a amortecer o choque no momento em que o projétil caísse
no solo lunar, outra tendente a retardar-lhe a queda, tornando-a, conseqüentemente,
mais suave.

Para amortecer o choque, pena era que Barbicane não dispusesse dos
mesmos meios que tão eficazmente haviam atenuado o abalo da partida,
isto é, da água para servir de almofada e dos tabiques quebradiços.
Estes ainda existiam, mas faltava a água, visto que nada aconselhava
a utilizar para esse fim a reserva de que dispunham, reserva preciosa no caso
de vir a faltar-lhes o elemento líquido nos primeiros dias de permanência
no solo lunar.

A reserva era insuficiente para servir de almofada. A camada de água
armazenada no projétil à partida, sobre a qual assentava o disco
estanque, ocupava nada menos de aos pés de altura, tendo por base uma
área de cinqüenta pés quadrados. Era uni volume de seis
metros cúbicos, que pe178 sava cinco mil setecentos e cinqüenta
quilos. Ora, os recipientes da reserva não comportavam nem a quinta
parte daquele volume. Obviamente, havia que renunciar ao emprego desse poderoso
meio de amortecer o choque da chegada.

Por uni feliz acaso, Barbicane não se contentara em empregar apenas
água e munira o disco móvel com fortíssimas molas, destinadas
a minorar o choque na base do projétil, depois da destruição
dos tabiques horizontais. Essas molas também não se haviam perdido,
mas necessitavam de ser reajustadas, assim como o disco móvel precisava
de ser reposto na posição inicial. Tornava-se fácil manipular
e levantar todas essas peças, dado que o seu peso era naquele momento
diminuto.

E assim se fez. As diferentes partes foram reajustadas sem qualquer dificuldade.
Com alguns parafusos e porcas, a quest ão resolveu-se, já que
a respeito de ferramentas estavam os viajantes bem fornecidos. Em breve, o
disco, totalmente recomposto, assentou sobre os seus suportes de aço,
como unia mesa nos seus pés. A recolocarão apresentava, contudo,
um inconveniente: a vidraça inferior ficava obstruída, o que
impossibilitaria os viajantes de observar a Lua por aquela abertura, quando
começassem a cair na perpendicular do globo lunar. Mas assim tinha
de ser. Mas ainda se poderia avistar vastas regiões lunares pelas vigias
laterais, como se vê a Terra da barquinha de uni aeróstato.

A montagem do disco exigiu unia hora de trabalho. Passava do meio-dia quando
os preparativos foram dados por concluídos. Depois, Barbicane procedeu
a novas observa- ções sobre a inclinação do projétil;
mas, com grande pesar, verificou que ele não se voltara o suficiente
para iniciar a queda, antes parecia seguir unia curva paralela ao disco lunar.
0 astro da noite brilhava esplendidamente no espaço, enquanto do lado
oposto o astro do dia o incendiava com os seus raios de fogo.

A situação era inquietante.

Conseguiremos chegar? – perguntou Nicoles.

– Procedamos como se estivéssemos para chegar – respondeu laconicamente
Barbicane.

– Grandes medrosos me saíram! – censurou Michel Ardan.

– Chegaremos e mais depressa do que desejamos.

Tal resposta fez com que Barbicane retomasse os trabalhos preparatórios
e se ocupasse de imediato com a inspeção dos engenhos destinados
a amortecer a queda.

Convém aqui lembrar o meeting que teve lugar em Tampa, na Flórida,
durante o qual o Capitão Nicoles se apresentou como inimigo de Barbicane
e como adversário de Michel Ardan. Ao Capitão Nicoles, que sustentava
que o projétil se partiria como uni vidro, Michel respondera que lhe
amorteceria a descida por meio de foguetes convenientemente dispostos.

Realmente, possantes engenhos pirotécnicos, montados na base de projétil
para funcionar no exterior, podiam produzir uni movimento de recuo e, com
seqüentemente, diminuir numa certa proporção a velocidade
do projétil. É verdade que esses foguetes tinham de arder no
vácuo, mas o oxigênio não lhes, faltaria, porque a própria
combinação pirotécnica o forneceria, como acontece com
os vulcões lunares, cuja erupção nunca deixou de dar-se
por falta de atmosfera em torno da Lua.

Barbicane munira-se, portanto, de vários engenhos pirotécnicos,
contidos em pequenos tubos de aço que dispunham de rosca, que se podiam
atarraxar à base do projétil.

Interiormente, os tubos afloravam-lhe o fundo. Exteriormente destacavam-se-lhe
em cerca de meio pé. Eram ao todo vinte. Unia abertura, especialmente
contra o efeito e localizada no disco móvel permitia acender a mecha
de que uni estava provido. Devido à sua colocação todo
o efeito se produzia para o lado de fora. As misturas que entrariam em fusão
foram previamente introduzidas sob pressão nos tubos. Bastava, portanto,
retirar os obturadores metálicos engastados na base do projétil
e substituí-los pelos tubos, que se ajustavam rigorosamente às
aberturas deixadas por aqueles.

Essa operação foi concluída às três horas.
Tomadas tais precauções, nada mais havia a fazer senão
esperar. .

Entretanto, o projétil aproximava-se visivelmente da Lua.

Era evidente que estava submetido à sua influência numa certa
proporção. Mas a velocidade própria, impulsionava-o também
numa direção oblíqua. A resultante destas duas forças
era unia linha que muito provavelmente se transformaria numa tangente. Unia
coisa, porém, era clara: o projétil não cairia normalmente
para a superfície da Lua, porque, sendo assim, a parte inferior, em
virtude do seu peso, deveria estar voltada para o astro.

As inquietações de Barbicane redobravam, visto que o projétil
resistia às influências da gravitação. 0 desconhecido
dos espaços interestelares, abria-se diante dele. Ele, o homem de ciência,
julgara ter previsto todas as hipóteses possí- veis: regresso
à Terra, queda na Lua ou imobilidade sobre a linha neutral E eis que
unia outra, carregada de todos os terrores do infinito, surgia inopinadamente.
Para enfrentá- la sem desânimo, era preciso ser-se uni sábio
resoluto como Barbicane, uni ente fleumático como Nicoles ou uni audacioso
aventureiro como Michel Ardan.

0 assunto dominou daí em diante todas as conversas. Outros homens
teriam considerado o problema do ponto de vista prático. A si próprios
teriam perguntado para onde os arrastaria o vagão-projétil.
Eles, não. Limitaram-se a tentar descobrir a causa que provocara aquele
efeito.

– Quer dizer que descarrilhamos. Mas porquê? – Receio – aventou Nicoles
– que o columbiad, apesar de todas as precauções tomadas, não
tenha sido apontado com a exatidão necessária. Uni erro, por
muito pequeno que fosse, bastava para nos pôr fora da atração
lunar.

– Teria sido então uni erro de pontaria? – perguntou Michel.

– Não, não o creio – disse Barbicane. – A perpendicularidade
do canhão era rigorosa; a direção para o zênite
do lugar incontestável. Ora, como a Lua passava pelo zênite,
devíamos atingi-la em cheio. Há outra razão, mas não
atino com ela…

– Não chegaremos muito tarde? perguntou de chofre Nicoles.

– Muito tarde? – ecoou Barbicane.

Sim – explicou Nicoles. – A nota do Observatório de Cambridge diz
que o trajeto deve completar-se em noventa e sete horas, treze minutos e vinte
segundos. 0 que quer dizer que, mais cedo, a Lua não estará
ainda no ponto indicado, e que, mais tarde, já lá não
se encontrará.

– De acordo – replicou Barbicane. – Mas nós partimos em 1? de dezembro,
às dez horas, quarenta e seis minutos e setenta e cinco segundos da
noite, e devemos chegar à meia-noite do dia 5, no momento preciso em
que a Lua estiver em plenilúnio. Pois bem, estamos a 5 de dezembro
e são três e meia da tarde. Deveriam bastar, portanto, oito horas
e meia para atingirmos o alvo. Então por que é que não
chegamos? – Não será por excesso de velocidade? – lembrou Nicoles.
– Porque sabemos agora que a velocidade inicial foi maior do que supúnhamos.

– Não! Cem vezes não! – bradou Barbicane. – Uni excesso de
velocidade, se a direção do projétil fosse boa, não
nos impediria de atingir a Lua. Não! Houve um desvio! Fomos desviados.

– Por quem? Por quê? – interrogou Nicoles.

– Nada posso dizer – confessou Barbicane.

– Olha, Barbicane – disse então Michel -, tens interesse em saber
a minha opinião sobre o desvio? – Fala, homem.

– Eu nem meio dólar dava para o saber! Desviamo-nos, é um
fato. Para onde vamos, tanto faz como tanto fez! Vê-lo-emos na altura
própria. Que diabo! Uma vez que estamos sendo arrastados por esse espaço,
acabaremos por ir parar a algum centro de atração.

A indiferença de Michel Ardan não podia contentar Barbicane.

Não que este se inquietasse com o futuro! 0 que o preocupava era
o desvio do seu projétil, cuja razão queria conhecer custasse
o que custasse.

Enquanto isto, o projétil continuava a deslocar-se lateralmente em
relação à Lua, e com ele todo o cortejo de objetos alijados.
Tomando pontos de referência na Lua, que estava a menos de duas mil
léguas, Barbicane pôde até concluir que a velocidade se
ia tornando uniforme. Nova prova de que não haveria queda. A força
de impulsão sobrepunha- se ainda à atração lunar,
mas a trajetória do projétil aproximava-o decerto do disco lunar,
pelo que podia esperar-se que, a menor distância, a ação
da gravidade predominasse e provocasse finalmente a queda.

Os três companheiros, por nada de melhor terem para fazer, prosseguiam
com as observações. Continuavam, por ém, sem poder determinar
a disposição topográfica do satélite. A projeção
dos raios solares nivelava todos os relevos.

Barbicane obstinava-se em encontrar unia solução para o insolúvel
problema que se lhe deparava.

As horas decorriam e a situação mantinha-se. 0 projétil
aproximava-se visivelmente da Lua, mas era também visí- vel
que não a atingiria. Quanto a saber-se até que distância
o projétil se aproximaria da sua superfície pouco ou nada se
podia avançar, visto que essa distância seria a resultante das
duas forças – a atrativa e a repulsiva – que atuavam sobre o móvel.

– Só peço unia coisa – repetia Michel. -: passar tão
perto da Lua quanto possível para lhe desvendar os segredos! – Amaldiçoada
seja a causa que fez – desviar o nosso projétil – desabafou Nicoles.

– Amaldiçoada seja – apoiou Barbicane, como se de repente se fizesse
luz no seu espírito -; maldito seja o bólide que se cruzou conosco!
– Hem! – fez Michel Ardan.

– Que quer dizer? – perguntou Nicoles, surpreendido.

– Quero dizer – respondeu convictamente Barbicane – que o nosso desvio se
deve apenas a esse corpo errante.

– Mas ele nem sequer nos roçou… – objetou Michel.

– Não importa. A sua massa, comparada com a do nosso projétil,
era enorme, e bastou essa atração para afetar a nossa direção.

Tão pouco! – exclamou Nicoles.

É verdade, Nicoles; mas por pouco que fosse – replicou Barbicane
-, numa distância de oitenta e quatro mil léguas, seria o bastante
para nos fazer errar a Lua! A direção seguida pelo projétil
arrastava-o para o hemisfé- rio setentrional da Lua. Os viajantes estavam
longe daquele ponto central onde deveriam cair, se a trajetória não
tivesse sofrido uni irremediável desvio.

Passava meia hora da meia-noite. Barbicane estimou em mil e quatrocentos
quilômetros a distância que os separava da Lua – distância
um pouco superior ao comprimento do raio lunar, e que devia diminuir à
medida que avançassem em direção ao pólo norte.
Na ocasião, o projétil encontrava- se, não à altura
do equador, mas na direção do décimo paralelo, e a partir
dessa latitude, cuidadosamente assinalada no mapa até o pólo,
Barbicane e os companheiros puderam observar a Lua em melhores condições.

Realmente, mediante o uso dos binóculos, a distância de mil
e quatrocentos quilômetros reduziu-se a quatorze ou seja, três
léguas e meia. 0 telescópio das Montanhas Rochosas estava ainda
em ?vantagem, mas a atmosfera terrestre afetava-lhe consideravelmente a potência
ótica. Eis a razão por que, postado no projétil, Barbicane
alcançava com o seu binóculo certos pormenores que não
podiam ser observados da terra.

– Meus amigos – disse então o presidente com unia voz grave -, não
sei para onde vamos, não sei se voltaremos a ver o globo terrestre.
Apesar disso, procedamos como se uni dia estes trabalhos pudessem vir a ser
úteis aos nossos semelhantes. Mantenhamos o espírito liberto
de toda e qualquer preocupação. Somos astrônomos. Este
projétil é uni posto espacial do Observatório de Cambridge.
Façamos o que temos a fazer: observemos! Dito isto, o trabalho foi
iniciado com extrema precisão, de tal maneira que conseguiram reproduzir
fielmente os diversos aspectos da Lua às distâncias variáveis
que o projétil foi ocupando em relação ao astro.

Cerca das duas da manhã, Barbicane encontrava-se à altura
do vigésimo paralelo lunar, não longe da pequena montanha de
mil quinhentos e cinqüenta e nove metros que tem o nome de Pítias.
A distância do projétil à Lua não excedia os mil
e duzentos quilômetros, que os binóculos reduziam para três
léguas.

As duas e meia da manhã, o projétil encontrava-se em frente
do trigésimo paralelo lunar, a unia distância de mil quilômetros,
reduzida a dez pelos instrumentos óticos.

Continuava a parecer impossível que pudesse atingir qualquer ponto
do disco. A velocidade de translação do projétil, relativamente
medíocre, era inexplicável para o Presidente Barbicane. Aquela
distância da Lua, essa velocidade deveria ser. considerável para
manter o projétil, apesar da força de atração.
Havia nesse fato uni fenômeno cuja razão lhe escapava ainda.
Não tinha tempo para investigar-lhe as causas.

0 relevo lunar desfilava sob os olhos dos viajantes, que dele não
queriam perder o mínimo pormenor.

Perto das quatro horas da manhã, na altura do qüinquagésimo
paralelo, a distância do projétil à Lua reduzia- se a
seiscentos quilômetros. À esquerda, corria uma linha de montanhas
caprichosamente recortada por unia luz intensa. À direita, ao contrário,
cavava-se um buraco negro, como uni imenso poço, insondável
e escuro, furado no solo lunar.

Às seis horas, o pólo lunar fez a sua aparição.
0 disco não era mais aos olhos dos viajantes do que uma metade violentamente
iluminada. A outra desaparecera nas trevas.

Subitamente, o projétil transpôs a linha de demarcação
entre a luz intensa e a sombra absoluta, e mergulhou instantaneamente numa
noite profunda.

Na altura em que se produzia tão bruscamente aquele fen ômeno,
o projétil rasava o pólo norte da Lua a menos de cinqüenta
quilômetros de distância. Tinham-lhe bastado portanto alguns segundos
para mergulhar nas trevas eternas do espaço. A transição
operara-se de forma tão rápida, sem matizes, sem diminuição
gradual da luz, sem atenua ção das ondulações
luminosas, que o astro parecia terse apagado sob a influência de uni
poderoso sopro.

– A Lua fundiu-se, desapareceu! – exclamou Michel Ardan.

Na verdade, não se enxergava qualquer reflexo ou sombra.

Do disco, ainda há pouco resplandecente, nada restava.

A obscuridade era completa e tornava-se ainda mais profunda devido à
cintilação das estrelas. Era o ?negro? de que se impregnam as
noites lunares, que 1 duram trezentas e cinqüenta e quatro horas e meia
em cada ponto do disco – longa noite que resulta da igualdade existente entre
os movimentos de translação e rotação do satélite,
uni sobre si próprio, outro à volta da Terra. 0 projétil,
imerso no cone de sombra do disco, estava fora do alcance dos raios solares
como qualquer dos pontos da sua parte invis ível.

Capítulo VII – Parábola ou Hipérbole

iriam, passavam o tempo fazendo experiências, como se estivessem tranqüilamente
instalados num confortável gabinete de trabalho.

A isto poder-se-ia contrapor que homens de tão rija têmpera,
que não se atemorizavam por tão pouco, ou que tinham mais que
fazer do que se abandonar à incógnita da sua sorte, estavam
acima de semelhantes preocupações.

A verdade, porém, é que não eram senhores do projétil.

Não podiam travar-lhe a marcha nem modificar-lhe a direção.

0 marinheiro muda a seu bel-prazer o rumo do navio; o aeronauta pode imprimir
ao seu balão movimentos verticais.

Eles, porém, não podiam exercer qualquer ação
sobre o seu veículo. Nenhuma manobra lhes era possível. E daí
aquela disposição de deixar andar, de ?deixar correr?, segundo
a expressão marítima.

Onde estavam naquele momento, às oito da manhã do dia que
na Terra era o sexto do mês de dezembro? Decerto nas vizinhanças
da Lua, de tal maneira perto que o astro lhes parecia com o aspecto de uni
imenso quebra-luz negro desdobrado no firmamento. Quanto à distância
que os separava, era impossível avaliá-la. 0 projétil,
mantido por forças inexplicáveis, rasara o pólo norte
do satélite a menos de cinqüenta quilômetros. Mas, decorridas
duas horas sobre o instante em que o projétil entrevia no cone de sombra,
teria aquela distância diminuído ou aumentado? A falta de pontos
de referência para estimar a direção e a velocidade do
projétil era total. Talvez se afastasse rapidamente do disco, de forma
a deixar em breve a sombra pura. Talvez se aproximasse sensivelmente, a ponto
de chocar com qualquer pico elevado do hemisfério invisível,
o que poria fim à viagem, mas sem dúvida com prejuízo
dos viajantes.

Levantou-se a este propósito uma discussão, em que Michel
Ardan, sempre pródigo em explicações, emitiu a opinião
de que o projétil, retido pela atração lunar, acabaria
por cair no astro, como os aeró1itos caem na superfície do globo
terrestre.

– Em primeiro lugar, meu amigo – respondeu-lhe Barbicane -, nem todos os
aer61itos caem na Terra, mas apenas uma pequena parte. Logo, se de fato passamos
ao estado de aerólito, isto não significa, necessariamente,
que nos despenquemos na superfície da Lua.

– No entanto – insistiu Michel -, se nos aproximássemos bastante…

– Puro erro – atalhou Barbicane. – Pois não viste já milhares
de estrelas cadentes riscar o céu, em certas épocas? – Pois
bem, essas estrelas, ou, melhor, esses corpúsculos, só brilham
porque aquecem quando deslizam nas camadas atmosféricas. Ora, se atravessam
a atmosfera, passam a menos de dezesseis léguas do Globo, onde, todavia,
caem raramente. 0 mesmo pode acontecer ao nosso projétil: passar perto,
muito perto mesmo da Lua e, apesar disso, não cair lá.

– Visto isso – declarou Michel. -, tenho muita curiosidade em saber como
se comportará no espaço o nosso veículo errante.

– Há duas hipóteses – esclareceu Barbicane, depois de alguns
instantes de reflexão.

– Quais são? – -0 projétil pode descrever uma de duas curvas
matemá- ticas, e seguirá uma ou outra, consoante a velocidade
de que estiver animado, velocidade que neste momento não sei avaliar.

– Sim – interveio Nicoles -, descreverá uma parábola ou uma
hipérbole.

– Certo – confirmou Barbicane. – Até uma certa velocidade seguirá
a parábola, e a hipérbole se a velocidade for mais acentuada.

– Gosto desses palavrões – exclamou Michel Ardan. – É ouvi-los
e compreendê-los, está bem1 Mas, por favor, o que é isso
de parábola? – Meu amigo – explicou Barbicane -; parábola é
uma curva de segunda ordem que resulta da seção de um cone por
um plano paralelo a um plano tangente ao cone.

– Ah! Ah! – fez Michel Ardan, com um ar satisfeito.

– É isto mais ou menos – ajudou Nicoles – a trajetória que
descreve uma bomba lançada por um morteiro.

– Muito bem. E a hipérbole? – quis saber Michel Ardan.

– A hipérbole, Michel, é uma curva de segunda ordem produzida
pela interseção de uma superfície cônica e de um
plano paralelo ao seu eixo. Tem dois ramos separados um do outro, que se prolongam
indefinidamente nos dois sentidos.

– É possível i – exclamou Michel, Ardan, com a maior seriedade,
como se acabassem de lhe dar uma notícia grave. – Nicoles, presta muita
atenção ao que vou dizer. Do que eu gosto na tua definição
de hipérbole (eu ia dizer ?hiperpatranha?) é que ainda é
menos clara do que a palavra que quiseste definir! Nicoles e Barbicane pouco
ligaram aos gracejos de Michel Ardan, já que se haviam envolvido numa
discussão científica.

Que curva seguiria o projétil? Eis o que os apaixonava.

Um teimava na hipérbole, o outro insistia na parábola. Fundamentavam
as respectivas afirmações em razões eriçadas de
x. A argumentação era feita numa linguagem que fazia pular Michel.
A discussão decorria acesa, e nenhum dos adversários queria
sacrificar ao outro a curva da sua predileção.

Como a disputa científica se prolongava, Michel Ardan acabou por
se impacientar.

– Ora esta! – disse ele. Senhores de co-seno, acabam ou não de atirar
à cabeça um do outro parábolas e hipérboles? Eu
só quero saber a única coisa que interessa no meio de tudo isto.
Já se sabe que seguimos uma das suas curvas.

Muito bem. Agora pergunto: para onde nos levarão elas? – A parte
nenhuma – respondeu Nicoles.

– Como? A parte nenhuma? – Mas é evidente – corroborou Barbicane.
– São curvas que não se fecham, que se prolongam até
o infinito! – Ah, sábios1 – exclamou Michel. – Sábios do meu
cora ção!… Eh, olhem lá? Que nos importa a parábola
ou a hipérbole, se ambas nos mandam para o espaço infinito!
Barbicane e Nicoles não puderam, dessa vez, deixar de sorrir.

Nunca uma questão mais ociosa fora tratada em momento menos oportuno.
A sinistra verdade era que o projétil, marchando hiperbólica
ou parabolicamente, nunca mais regressaria à Terra ou reencontraria
a Lua.

Que sucederia aos audaciosos viajantes num futuro muito próximo?
Se não morressem de fome, se não soçobrassem pela sede,
pereceriam dentro de dias à míngua de ar, quando o gás
se esgotasse. Isto se o frio não os enregelasse primeiro.

0 certo é que, por mais importante que fosse a economia de gás,
o excessivo abaixamento da temperatura ambiente os obrigaria ao consumo de
uma certa quantidade. Em rigor, podiam passar sem luz, mas nunca sem calor.
Por felicidade, o calor desenvolvido pelo aparelho Reiset e Regnault ajudava
a elevar um pouco a temperatura do interior do projétil, pelo que,
sem grandes gastos, pôde manter- se num grau suportável.

Como já foi dito, as observações através das
vigias tornaram- se difíceis. A umidade do interior do projétil
condensavase nos vidros e congelava de imediato. Era necessário combater
aquela opacidade com sucessivas fricções. Mesmo assim, foi possível
verificar alguns fenômenos do mais alto interesse.

Realmente, se aquele disco invisível tivesse atmosfera, não
era natural que se vissem estrelas cadentes a sulcá-la com as suas
trajetórias? Se o próprio projétil atravessasse as camadas
fluidas, não era provável que se surpreendesse algum ruído
repercutido pelo ecos lunares, tal como o ribombar de um trovão, o
estrépito de uma avalancha, as detonações de um vulcão
em atividade? E se alguma montanha vulcânica as ornamentasse com um
rubro penacho de relâmpagos, não se avistariam as suas intensas
fulgurações? Tais fatos, se cuidadosamente observados, serviriam
para elucidar de forma decisiva a obscura quest ão da constituição
lunar. Eis por que Barbicane e Nicoles, postados junto às vigias, como
se fossem astrônomos, observavam com escrupulosa paciência a noite
circundante.

Até então, o disco permanecera mudo e escuro, sem responder
às múltiplas interrogações que lhe punham aqueles
ardentes espíritos.

Tal silêncio sugeriu a Michel esta reflexão aparentemente justa:
– Se alguma vez voltássemos a fazer esta viagem, seria bom que escolhêssemos
a fase da lua nova.

– Tens razão – disse Nicoles -: essa circunstância seria mais
favorável. É certo que a Lua, mergulhada nos raios solares,
não seria visível durante a viagem; mas, em compensa- ção,
ver-se-ia a Terra, que estaria ?cheia?. Além disso, se fôssemos
arrastados à volta da Lua, como agora acontece, teríamos pelo
menos a vantagem de lhe ver o solo, agora invisível, magnificamente
iluminado! – Isto é que é falar, Nicoles! – aplaudiu Michel
Ardan. – Que pensas tu disto, Barbicane.

– Penso – respondeu o ponderado presidente – que, se alguma vez voltássemos
a fazer esta viagem, partiríamos na mesma época e nas mesmas
condições. Suponham que tivéssemos alcançado o
nosso objetivo; não seria melhor encontrar continentes cheios de luz
do que regiões mergulhadas numa noite escura? A nossa instalação
não se faria em circunstâncias mais favoráveis? Claro
que sim. Quanto ao lado invisível, tê-lo-íamos visitado
durante as viagens de reconhecimento no globo lunar. Assim, a fase de lua
cheia foi muito bem escolhida. A idéia era chegar ao objetivo, mas,
para lá chegar, era necessário que não houvesse desvios
de rota.

Quanto a isso, nada tenho a objetar – disse Michel Ardan. – A verdade é
que perdemos uma bela oportunidade de ob servar a outra face da Lua. Quem
sabe se os habitantes dos outros planetas não estão mais adiantados
do que os sábios da Terra no que diz respeito aos seus satélites?
A esta observação de Michel Ardan, poder-se-ia responder muito
simplesmente do seguinte modo: sim, há outros sat élites, cujo
estudo, por estarem mais pr6ximos, se torna mais fácil. Os habitantes
de Saturno, de Júpiter e de Urano, se é que existem, puderam
estabelecer com suas luas comunica ções mais fáceis.
Os quatro satélites de Júpiter gravitam às distâncias
de cento e oito mil duzentas e sessenta léguas, cento e setenta e duas
mil e duzentas léguas, duzentas e setenta e quatro mil e setecentas
léguas e quatrocentas e oitenta mil cento e trinta léguas. Todavia,
essas distâncias são contadas a partir do centro do planeta.
Subtraindo- lhes o comprimento do respectivo raio, que é de dezesseis
a dezoito mil léguas, vê-se que o primeiro satélite está
menos afastado dá superfície de Júpiter do que a Lua
está da Terra. Das oito luas de Saturno, quatro estão igualmente
mais próximas: Diana está a oitenta e quatro mil e seiscentas
léguas; Tétis a sessenta e duas mil novecentas e sessenta e
seis; a quarenta e oito mil cento e noventa e uma, e, finalmente, Mimas a
uma distância mé- dia de trinta e quatro mil e quinhentas. Dos
oito satélites de Urano, o primeiro, Ariel, está apenas a cinqüenta
e uma mil quinhentas e vinte léguas do planeta.

Isto significa que, na superfície desses três astros, uma experi
ência análoga à do Presidente Barbicane teria apresentado
menores dificuldades. Assim, se os respectivos habitantes tentaram a aventura,
é possível que tenham reconhecido a constituição
daquela metade do disco que todos os satélites ocultam eternamente
dos olhos dos habitantes dos outros astros principais. Mas, se nunca deixarem
os seus planetas, não estão mais avançados que os astrônomos
da Terra.

. Entretanto, o projétil descrevia nas trevas uma trajetória
que a inexistência de pontos de referência não permitia
cal cular. Ter-se-ia modificado a sua direção, quer por influência
da atração lunar, quer pela ação de algum astro
desconhecido? Barbicane não podia dizê-lo. Mas a verdade é
que se dera uma alteração na posição relativa
do veículo, altera ção de que Barbicane se apercebeu
por volta das quatro horas da manhã.

Consistia a alteração no seguinte: a base do projétil
voltara- se para a superfície lunar e mantinha-se na perpendicular
que passava pelo eixo da Lua. A atração., ou seja, a gravidade,
operara tal modificação. A parte mais pesada do projétil
inclinara-se para o disco, exatamente como se nele fosse cair.

E cairia? Os viajantes iam finalmente atingir o tão almejado alvo?
Não. Com a ajuda de um ponto de referência, aliás pouco
explicável, Barbicane teve a certeza de que o projétil não
se aproximava da Lua: deslocava-se descrevendo uma curva concêntrica
ao astro.

0 ponto de referência atrás citado foi um clarão luminoso
que Nicoles assinalou de ;súbito no limite do horizonte formado pelo
disco negro. Aquele clarão não podia ser confundido com uma
estrela. Era uma incandescência avermelhada, que, pouco a pouco, se
avolumava – prova incontestável de que o projétil se deslocava
na sua direção, e de que não se dirigia normalmente para
a superfície do astro.

– Um vulcão! E um vulcão em atividade – gritou Nicoles. –
Uma erupção dos fogos interiores da Lua. Aquele mundo não
está, portanto, extinto.

– Sim! É uma erupção – confirmou Barbicane, que estudava
cuidadosamente o fenômeno com o seu binóculo de noite.

– Que outra coisa poderia ser senão um vulcão? – Mas então
– raciocinou Michel Ardan -, para alimentar aquela combustão, é
preciso ar. Portanto, há uma atmosfera envolvendo aquela parte da Lua.

– Talvez haja – admitiu Barbicane -, ou talvez não. 0 vulcão
pode, mercê da decomposição de certas matérias,
forne cer a si próprio o oxigênio e lançar assim chamas
no vá- cuo. ?Estou mesmo para crer que aquela deflagração
tem a intensidade e o brilho dos objetos cuja combustão ocorre no meio
de oxigênio puro. Não nos apressemos, portanto, em afirmar a
existência de uma atmosfera lunar.

A montanha vulcânica devia estar situada perto do quadrag ésimo
quinto grau de latitude sul da parte invisível do astro.

Mas, com grande decepção de Barbicane, a curva que o projétil
descrevia levava-o para longe do ponto onde fora assinalada a erupção,
pelo que não lhe foi possível estudá- la convenientemente.

Meia hora depois, o tal ponto luminoso desaparecia por detrás do
escuro horizonte. De qualquer forma, a simples verificação do
fenômeno era já um fato notável para os estudos selenográficos:
provava que o calor não desaparecera ainda das entranhas daquele globo.
Ora, se há por lá calor, quem pode garantir que o reino vegetal
e mesmo o reino animal não tenham resistido até hoje às
influências destrutivas? A existência daquele vulcão em
atividade, se viesse a ser reconhecida sem reservas pelos sábios da
Terra, daria sem dúvida muitos argumentos favoráveis à
controversa teoria da habitabilidade da Lua.

Barbicane abandonara-se às suas reflexões, ao mudo devaneio
onde se encastelavam os misteriosos segredos do mundo lunar. Tentava descobrir
o fio comum a todos os fatos até então observados, quando um
novo incidente o trouxe bruscamente à realidade.

Era mais do que um fenômeno cósmico: era um verdadeiro perigo,
cujas conseqüências podiam ser desastrosas.

De repente, do meio do éter, daquelas profundas trevas, uma enorme
massa aparecera. Era como que uma lua, mas uma lua incandescente, com um brilho
tanto mais insustent ável quanto brusco era o contraste com a completa
escuridão do espaço. A massa, de forma circular, lançava
uma luz que enchia o projétil. Os rostos de Barbicane, Nicoles e Michel
Ardan, violentamente. banhados por aque les feixes esbranquiçados,
ganhavam a aparência espectral, lívida, baça, que os físicos
produzem com a luz artificial de álcool impregnado de sal.

– Com mil diabos! – exclamou Michel Ardan. Como nós estamos horrendos!
Que raio de lua é aquela? – É um bólide – esclareceu
Barbicane. Um bólide inflamado, no vácuo? – Sim.

0 globo de fogo era de fato um bólide. Barbicane não se enganava.
Mas se os meteoros cósmicos observados da Terra apresentam, de uma
maneira geral, uma luz um pouco inferior à da Lua, ali, no sombrio
éter, resplandecem.

Esses corpos errantes trazem consigo o princípio da sua incandescência.
0 ar ambiente não é necessário à sua deflagração.
E se, realmente, alguns desses bólides atravessam as camadas a atmosféricas
a duas ou três léguas da Terra, outros há que, ao contrário,
descrevem a sua trajetória a uma distância em que não
existe atmosfera.

Vem a propósito lembrar que, em 27 de outubro de 1844, um desses
bólides desapareceu à distância de cento e oitenta e duas
léguas. Alguns desses meteoros têm de três a quatro quilômetros
de diâmetro e são animados de velocidades que podem ir até
setenta e cinco quilômetros por segundo, na direção inversa
do movimento da Terra.

0 globo cadente, subitamente aparecido da sombra a uma distância de
pelo menos cem léguas, devia ter de diâmetro dois mil metros,
segundo cálculo de Barbicane. Avançava com uma velocidade próxima
de dois qui18metros por segundo, ou seja, trinta léguas por minuto,
e a sua trajetória cortava a rota do projétil, pelo que devia
atingi-lo dentro de alguns minutos. Conforme se aproximava, aumentava de volume
em enorme proporção.

. Imagine-se, se puder, a situação dos viajantes. É
impossí- vel descrevê-la. Apesar da sua coragem, do seu sanguefrio,
da sua indiferença perante o perigo, estavam mudos, imóveis,
com os membros contraídos, tomados por um horrível pavor. 0
projétil, a que não podiam alterar a marcha..

corria na direção daquela massa ígnea, mais intensa
do que as goelas abertas de um forno de reverberação.

Parecia que ia precipitar-se num abismo de fogo.

Barbicane agarra as mãos dos companheiros, e os três olhavam,
através das pálpebras semicerradas, aquele asteróide
incandescente. Se neles não estivesse embotado ,o pensamento; se, no
meio daquele pavor, ainda o cérebro fosse capaz de raciocinar, considerar-se-iam
por certo perdidos! Dois minutos depois da brusca aparição do
bólide – dois séculos de angústia! -, o projétil
parecia prestes a colidir.

De repente, porém, o globo de fogo explodiu como uma bomba, mas sem
ruído, como, aliás, era natural, já que o som não
podia produzir-se no meio do vácuo, por ser causado apenas pela agitação
das camadas de ar.

Nicoles soltou um grito. Ele e os companheiros precipitaram- se para as
vigias. Que espetáculo! Que pena poderia descrevê-lo? Que paleta
poderia reproduzir aquela riqueza de cores? A luz que saturava o éter
propagava-se com uma incompar ável intensidade, porque os asteróides;
a dispersavam em todos os sentidos. Num dado momento, chegou a sert ão
viva que Michel, arrastando Barbicane e Nicoles para junto da vigia em que
se encontrava, exclamou: – Ei-la visível, enfim! Eis a invisível
Lua.

E os três, através do eflúvio luminoso de alguns segundos,
entreviram a misteriosa face oculta, que o olhar humano via pela primeira
vez.

Que distinguiram, àquela distância que não podiam avaliar?
Algumas faixas alongadas sobre o disco, verdadeiras nuvens formadas num meio
atmosférico muito restrito, do qual emergiam, não só
todas as montanhas, mas também relevos de pouca importância,
círculos, crateras escancaradas, caprichosamente dispostas, análogas
às da face vis ível. Depois, imensos espaços, não
já planos áridos, mas verdadeiros mares, oceanos largamente
espraiados, que refletiam no seu liquido espelho toda a deslumbrante magia
dos fogos do espaço. Finalmente, na superfície dos continentes,
vastas manchas escuras, idênticas às produzidas por imensas florestas
sob o rápido clarão de um relâmpago…

Seria isto um erro, uma miragem, uma ilusão de ótica? Poderiam
eles sancionar cientificamente uma observação tão superficial?
Ousariam pronunciar-se sobre o problema da habitabilidade do satélite,
fundados em tão precário exame da face invisível? Amorteceram,
entretanto, as fulgurações do espaço. Decresceu pouco
a pouco o fugaz brilho. Os asteróides foram- se dispersando, seguindo
diferentes trajetórias, e apagaram- se na distância. 0 éter
retomou a habitual tenebrosidade. As estrelas, eclipsadas por instantes, cintilaram
no firmamento, e o disco, que fora apenas entrevisto, perdeu-se de novo na
impenetrável noite.

Capítulo VIII – O hemisfério meridional

O projétil acabava de escapar a um terrível e imprevisto perigo.
Quem poderia imaginar que viessem a encontrarse com esses bólides?
Esses corpos errantes podiam pôr os viajantes em sérios perigos.
Eram, para eles, outros tantos perigos disseminados por aquele mar etéreo,
aos quais, ao contrário dos navegadores, não podiam fugir. Mas
acaso se queixavam aqueles aventureiros do espaço? Não, visto
que a natureza lhes proporcionara o esplêndido espetáculo da
explosão de um meteoro cósmico, e esse incomparável fogo
de artifício, que nenhum saberia imitar, iluminara durante alguns segundos
a face oculta da Lua.

Através dessa rápida vista, apareceram continentes, ma197
res e florestas. Emprestaria, portanto, a atmosfera as suas moléculas
vivificantes àquela face desconhecida? Problema ainda sem solução,
eternamente posto à curiosidade humana! Eram então três
horas e meia da tarde. 0 projétil prosseguia a sua órbita em
volta da Lua. Ter-lhe-ia o meteoro modificado a trajetória? Havia motivos
para receá-lo. Todavia, o projétil devia descrever uma curva
rigorosamente submetida às leis da mecânica racional. Barbicane
continuava a pensar que essa curva era uma parábola e não uma
hipérbole. No entanto, se esta hipótese se confirmasse, o projétil
deveria sair muito rapidamente do cone de sombra projetado no espaço
do lado oposto do Sol. Realmente, esse cone é muito estreito, tão
pequeno é o diâmetro angular da Lua quando comparado com o do
astro do dia.

Ora, até esse momento, o projétil vagara na sombra profunda.

Qualquer que fosse a sua velocidade – e não podia ser pequena -,
o período de ocultação persistia. Este era um fato evidente,
mas que talvez não devesse ocorrer no suposto caso da trajetória
rigorosamente parabólica. Mais um problema para atormentar o cérebro
de Barbicane, verdadeiramente aprisionado num círculo de incógnitas
de que não conseguia desembaraçar-se.

Nenhum dos viajantes pensava em repousar. Todos aguardavam que algum fato
inesperado viesse lançar uma nova luz sobre os estudos uranográficos.
Cerca das cinco horas, Michel Ardan distribuiu, à maneira de jantar,
alguns pedaços de pão e carne fria, que foram engolidos rapidamente
pelos três amigos, sem que nenhum abandonasse, por um instante sequer,
as vigias, cujos vidros se embaciavam incessantemente com a condensação
dos vapores.

Às cinco horas e quarenta e cinco minutos da tarde, Nicoles, de binóculo
assestado, assinalou nas proximidades do bordo meridional da Lua e na direção
seguida pelo projétil alguns pontos brilhantes, que se destacavam da
sombria cortina do céu. Dir-se-ia uma sucessão de pontos afilados,
dispostos numa linha sinuosa. Estavam vivamente iluminados.

Assim aparece o lineamento terminal da Lua. Não havia engano. Não
se tratava já de um simples meteoro: aquela aresta luminosa não
apresentava nem a cor nem a mobilidade próprias desses corpos errantes.
Muito menos, seria um vulcão em atividade. Desse modo, Barbicane não
hesitou em exclamar: – 0 Sol! – Quê? 0 Sol? – perguntaram Nicoles e
Michel Ardan.

– Sim, meus amigos, é o próprio astro radiante que ilumina
os cimos daquelas montanhas situadas no bordo meridional da Lua. É
evidente que nos acercamos do,010 sul! – Depois de termos passado pelo pólo
norte… – murmurou Michel. – Isto quer dizer que demos a volta ao nosso saté-
lite! – Sim, meu caro Michel.

– E que já não temos que recear as tais hipérboles,
parábolas ou outras curvas abertas.

– Não. Agora a curva é fechada.

– Como se chama?…

– Eclipse. Em vez de se perder nos espaços interplanetários,
é provável que o projétil comece a descrever uma órbita
elíptica em volta da Lua.

– É verdade! – E que se transforme em satélite.

– Lua da Lua! – exclamou Michel Ardan.

– Contudo, convém que saibas, meu bom amigo – avisou Barbicane -,
que nem por isto ficamos em melhor situação! – Sim, mas de outra
maneira, bem mais agradável! – rematou o despreocupado francês,
com o mais agradável dos sorrisos.

0 Presidente Barbicane tinha razão. Ao descrever uma órbita
elíptica, o projétil ia, sem dúvida, gravitar eternamente
à volta da Lua, como um subsatélite. Seria um novo astro do
mundo solar, um microcosmo povoado por três habitantes, que, dentro
em pouco, pereceriam por falta de ar.

Barbicane não podia, portanto, contentar-se com tal situa- ção,
imposta ao, projétil pela dupla influência das forças
centrípeta e centrífuga. Ele e os companheiros iam rever a face
iluminada do disco lunar. Talvez que a existência se lhes prolongasse
o bastante para poderem uma última vez a terra cheia, soberbamente
iluminada pelos raios de Sol! Talvez pudessem dizer um último adeus
àquele Globo que não deviam voltar a avistar! Depois, o projétil
não seria mais do que uma massa extinta, morta, semelhante a esses
inertes asteróides que circulam no éter. Uma única consola
ção lhes; restava: iam deixar enfim aquelas insondá-
veis trevas e voltar à luz, às zonas banhadas pela irradia-
ção solar! Entretanto, as montanhas que Barbicane reconhecera
iamse destacando cada vez mais da massa escura. Eram os Montes Doerfel e Leibniz;
que se elevam ao sul da região circumpolar da Lua.

Capitulo IX – Ticho

Às seis horas da tarde, o projétil passava pelo pólo
sul, a menos de sessenta quilômetros, distância igual à
de que se tinha aproximado do pólo norte. A curva elíptica desenhava-
se, portanto, rigorosamente.

Naquele momento, os viajantes reentraram no benfazejo eflúvio dos
raios solares. Reviam as estrelas que se moviam com lentidão de oriente
para ocidente. Saudaram o astro radiante com um triplo hurra. Além
da luz, o Sol enviava- lhe o calor, que aquecia as paredes de metal.

– Ah! – disse Nicoles -, como fazem bem estes raios de calor! Com que impaciência,
depois de tamanha noite, os selenitas devem esperar a reaparição
do astro do dial – Sim – concordou Michel Ardan, saboreando, por assim dizer,
aquele luminoso éter -; a vida é luz e calor! Naquele instante,
a base do projétil tendia a afastar-se li geiramente da superfície
lunar, de maneira a seguir uma órbita elíptica bastante alongada.
Daquele ponto, se a Terra estivesse ?cheia?, Barbicane e os companheiros poderiam
te-la visto. Mas, como estava mergulhada na irradiação do Sol,
mantinha-se absolutamente invisível. Um outro espetáculo atraiu-lhes
o olhar, o que oferecia a região austral da Lua, que os binóculos
aproximavam a um oitavo de légua. Os três. amigos não
arredavam pé das vigias e examinavam os mínimos pormenores daquele
estranho continente.

Os montes Doerfel e Leibniz formam dois grupos distintos, que se desenvolvem
perto do pólo sul. 0 primeiro grupo alonga-se desde o pólo até
o octogésimo quarto paralelo, sobre a parte oriental do astro; o segundo,
que se recorta no bordo oriental, vai do sexagésimo quinto grau ao
pólo.

Sobre os caprichosos contornos das suas arestas, apareciam camadas extensas
e deslumbrantes, tal como as assinalou o Padre Secchi. Com mais segurança
do que o ilustre astrônomo romano, Barbicane não teve dificuldade
em reconhecer- lhes a natureza.

É neve! – exclamou ele. Neve? – repetiu Nicoles.

– Sim, Nicoles; neve cuja superfície está profundamente gelada.
Vejam como reflete os raios luminosos. As lavas arrefecidas não dariam
uma reflexão tão intensa. Há, portanto, água e
ar na Lua. Menos do que se poderia desejar, mas o fato já não
pode ser contestado.

Não, não podia sê-lo! E, se algum dia Barbicane voltasse
à Terra, as suas notas testemunhariam o fato, a todos os títulos
notável no domínio das observações selenográficas.

0 projétil prosseguia, indiferente, a sua rota, mas lá embaixo
aquele caos não se modificava, Sucediam-se incessantemente círculos,
crateras e montanhas esburacadas. Nem uma planície, nem um mar. Era
uma Suíça, uma Noruega intermináveis. Finalmente, no
centro daquela região gretada, precisamente no ponto culminante, apareceu
o deslumbrante Ticho, a mais esplêndida montanha do disco. lu nar, à
qual a posteridade ligará sempre o nome do ilustre astrônomo
dinamarquês.

Ticho concentra em si uma tal luminosidade que os habitantes da Terra podem
avistá-la sem a ajuda de embora esteja a uma distância de cem
binóculos, muito mil léguas.

Imagine-se, naquele momento, qual deveria ser a intensidade daquela luz
para os olhos de observadores colocados a centro e cinqüenta léguas
apenas! Através daquele puro éter, o seu fulgar era de tal forma
insustentável que Barbicane e os seus amigos tiveram de escurecer as
lentes dos binóculos com o fumo do gás, a fim de lhe poder suportar
o brilho. Depois, atônitos, emitindo apenas algumas interjeições
admirativas, limitaram-se a olhar, a contemplar.

Todos os sentimentos, todos os sentidos se lhes concentraram no olhar, tal
como a vida, sob o domínio de uma emoção violenta, se
concentra por inteiro no coração.

Como Aristarco e Copérnico, Ticho pertence ao sistema de montanhas
radiantes. Mas é de todas a mais completa e característica e,
conseqüentemente, o melhor testemunho dessa extraordinária ação
vulcânica que originou a forma- ção da Lua.

A distância que separava os viajantes dos cumes anulares de Ticho
não era assim tão considerável que não pudessem
observar-lhe os principais pormenores. Mesmo sobre o aterro que constitui
a circunvalação de Ticho, as montanhas, agarradas aos flancos
dos taludes interiores e exteriores, dispunham-se em gigantescos degraus.
A oeste pareciam mais elevados uns trezentos a quatrocentos metros do que
a leste. Nenhum sistema de castrametação terrestre era comparável
àquela fortificação. Uma cidade que tivesse sido construída
no fundo daquela cavidade circular seria absolutamente inacessível.

Inacessível e maravilhosamente deitada sobre aquele solo rico em
acidentes pitorescos! A natureza, realmente, não deixara plano e vazio
o fundo da cratera, que possuía a sua orografia especial, um sistema
de montanhas que dela fa ziam um mundo à parte. Os viajantes distinguiram
nitidamente cones, colinas centrais, notáveis movimentos de terreno,
naturalmente dispostos para receber as obras primas da arquitetura selenita.
Ali, desenhava-se um local prop ício para a construção
de um templo; aqui, o lugar próprio para um fórum; além,
o que poderia comparar-se aos alicerces de um palácio; mais além,
o plano de uma cidadela.

E tudo isto dominado por uma montanha central. Tratavase de um vasto circuito,
onde a antiga Roma caberia dez vezes! – Ali! – exclamou Michel Ardan entusiasmado
com o que via. – Que grandiosa cidade se construiria naquele anel de montanhas!
Cidade tranqüila, refúgio pacífico, longe de todas as misérias
humanas. Como viveriam ali, calmos e isolados, todos os misantropos, todos
os que odeiam a humanidade, todos aos que aborrecem a vida social! – Todos!
Não haveria espaço para eles! – comentou simplesmente Barbicane.

Capítulo X – Questões graves

O projétil transpusera, entretanto, a cintura de muralhas de Ticho.
Barbicane e os dois amigos observaram então com escrupulosa atenção
aqueles riscos brilhantes que a célebre montanha dispersa tão
curiosamente por todos os horizontes.

A que se deveria aquela radiosa auréola? Que fenômeno geológico
originaria aquela ardente cabeleira? Esta questão preocupava com razão
Barbicane.

Na verdade, sob os seus olhos alongavam-se em todas as direções,
feixes luminosos de bordos levantados e côncavos no meio, uns de vinte,
outros de cinqüenta quilômetros de largura. Aqueles brilhantes
rastros corriam, em certos lugares, até trezentas léguas de
Ticho, e pareciam cobrir, sobretudo a leste, nordeste e norte, metade do hemisfério
meridional. Um dos jatos de luz espraiava-se até o círculo de
Neandro, situado no quadragésimo meridiano. Um outro ia sulcar, encurvando-se,
o Mar do Néctar e quebrar-se na cadeia dos Pireneus, depois de ter
percorrido quatrocentas léguas. Outros ainda, para as bandas do oeste,
cobriam de uma luminosa rede os Mares das Nuvens e dos Humores.

Qual seria a origem daqueles cintilantes raios que apareciam tanto nas planícies
quanto nos relevos, qualquer que fosse a altura que atingissem? Partiam todos
de um centro comum: a cratera de Ticho. Dela emanavam.

Herschel atribui aquele fulgurante aspecto às primitivas correntes
de lava coaguladas pelo frio, opinião que não foi aceita. Outros
astrônomos viram nesses inexplicáveis raios uma espécie
de fragmentos de rocha, que se amontoam por norma em volta das geleiras, fiadas
de blocos erráticos, que tivessem sido projetados na época da
forma ção de Ticho.

– E por que não? – perguntou Nicoles a Barbicane, que citava as diversas
opiniões, rejeitando-as todas.

– Porque a regularidade das linhas luminosas e a violência necessária
para levar a tais distâncias as matérias vulcânicas são
inexplicáveis.

– Na verdade! – intrometeu-se Michel Ardan. – Parece-me fácil explicar
a origem desses raios.

– Achas que sim? – interpelou-o Barbicane.

– Acho – prosseguiu Michel. – Basta dizer que é uma gigantesca fratura
em forma de estrela, idêntica à que produz a colisão de
urna bala ou de uma pedra numa vidraça! Ah, sim!?- retrucou Barbicane,
sorrindo. – E que mão seria capaz de atirar a pedra e provocar um tal
choque? – A mão não é necessária – replicou Michel,
que não desistia tão facilmente. – Quanto à pedra, admitamos
que seja um cometa.

– Claro, os cometas! – exclamou Barbicane – Abusa-se deles! Meu caro Michel,
a tua explicação não é de toda má, mas
o teu cometa é que está a mais. 0 choque que produziu aquela
fratura pode ter vindo do interior do astro. Uma contração violenta
da crosta lunar, provocada pelo resfriamento, bastaria, segundo penso, para
justificar tal efeito.

– Uma contração, qualquer coisa como uma cólica lunar…
– concordou Michel Ardan.

– De resto – acrescentou Barbicane ?_, esta é também a opinião
do sábio inglês Nasmyth, e parece-me explicar cabalmente a irradiação
dessas montanhas.

– 0 tal Nasmyth não é nenhum tolo – concedeu Michel Ardan.

Os viajantes, a quem um tal espetáculo não podia cansar, admiraram
por muito tempo ainda os esplendores de Ticho.

0 projétil, impregnado de eflúvios luminosos, no meio da dupla
irradiação do Sol e da Lua, devia assemelhar-se a um globo incandescente.
Os três companheiros passaram subitamente de um frio penetrante a um
calor intenso. A natureza preparava-os assim para se tornarem selenitas.

Tornarem-se selenitas. Esta idéia trouxe de novo à baila a
questão da habitabilidade da Lua. Depois do que tinham visto, poderiam
resolvê-la? Poderiam estar a favor ou contra? Michel Ardan levou os
dois amigos a emitir a esse respeito uma opinião, perguntando-lhes
se admitiam a exist ência de animalidade e de humanidade no mundo lunar.

– Creio que podemos responder – disse Barbicane -; mas, quanto a mim, a
pergunta deve ser formulada de outro modo. Pô-la-ei em outros termos,
se não te importas…

– Fica à vontade – concordou Michel.

– Ora bem – prosseguiu Barbicane -: o problema é duplo e exige uma
dupla solução. É a Lua habitável? Foi a Lua habitada?
– Muito bem – disse Nicoles. – Comecemos por indagar se é habitável.

– Para falar a verdade, nada sei a esse respeito – adiantou Michel Ardan.

– E eu respondo que não – afirmou Barbicane. – No estado atual, com
aquele invólucro atmosférico, decerto muito reduzido, e a maioria
dos mares secos, com insuficiência de água e de vegetação,
com dias e noites de trezentas e cinqüenta e quatro horas, a Lua não
me parece habitável, e não se me afigura propícia ao
desenvolvimento do reino animal, nem capaz de ocorrer às necessidades
da existência, tal como nós a compreendemos.

– De acordo – interveio Nicoles. – Mas não será habitada por
seres diferentes de nós? – Ora aí está uma pergunta –
replicou Barbicane – cuja resposta é bem mais difícil. Apesar
disso, tentarei dá-la. Antes, porém, perguntarei a Nicoles o
seguinte: é ou não o movimento o resultado lógico da
vida, qualquer que seja a sua organização? É evidente
que sim – respondeu Nicoles.

Pois bem, meu caro companheiro: nesse caso, responderlhe- ei que observamos
os continentes lunares a uma dist ância de quinhentos metros, e que
nada nos pareceu dotado de movimento na superfície da Lua. A presença
de uma qualquer humanidade ter-se-ia revelado através de apropriações,
de construções diversas, ou mesmo de ruí- nas. Ora, que
vimos nós? Por todo o lado, e sempre, o trabalho geológico da
natureza, nunca o trabalho do homem.

Se existem portanto na Lua representantes do reino animal, só podem
estar escondidos nas insondáveis cavidades que o olhar não consegue
atingir. E isto eu não admito, porque, mesmo assim, teriam deixado
indícios da sua passagem por aquelas planícies, que uma camada
atmosf érica decerto cobre, por pouco elevada que seja. Ora, a verdade
é que tais indícios não são visíveis em
parte alguma.

Sobra, conseqüentemente, a hipótese de uma espécie de
seres vivos à qual o movimento, que é a vida, seja estranho!
– Em outras palavras: criaturas vivas que não vivem – sintetizou Michel
Ardan.

– Precisamente – concordou Barbicane. – 0 que para nós não
tem qualquer sentido.

– Podemos então formular a nossa opinião – concluiu Michel.

– Sim – disse Barbicane.

– Pois ai vai – prosseguiu Michel Ardan -: a comissão cientí-
fica reunida no projétil do Clube do Canhão, depois de ter fundamentado
a sua argumentação em fatos perfeitamente confirmados, decidiu
por unanimidade de votos, acerca da questão da atual habitabilidade
da Lua, o seguinte: não, a Lua não é habitável.

Esta decisão foi consignada pelo Presidente Barbicane no seu bloco
de notas, onde figura a ata da sessão de 6 de dezembro.

– Agora – sugeriu Nicoles – abordemos a segunda questão, que me parece
indissociável da primeira. Assim, perguntarei à digna comissão:
se a Lua não é habitável, será que já foi
habitada? – Tem a palavra o cidadão Barbicane – anunciou Michel.

– Meus amigos – começou Barbicane -, não precisei de fazer
esta viagem para ter uma opinião sobre a passada habitabilidade do
nosso satélite. Acrescentarei que as nossas observações
mais não fizeram do que confirmá-la.

Creio, afirmo mesmo que a Lua foi habitada por uma espé- cie humana
organizada à semelhança da nossa, que produziu animais anatomicamente
análogos aos terrestres, mas acrescento que o tempo dessas espécies
humanas ou animais passou, e que estão para sempre extintas! – Isso
significa que a Lua é um mundo mais velho do que a Terra? – perguntou
Nicoles.

– Não – declarou com convicção Barbicane -; é
um mundo que envelheceu mais depressa, e cuja formação e deforma
ção foram mais rápidas. Relativamente, as forças
organizadoras da matéria foram muito mais violentas no interior da
Lua do que no do Globo terrestre. 0 atual aspec to daquele disco gretado,
atormentado e rugoso, prova-o demasiado. A Lua e a Terra mais. não
eram, na sua origem, do que massas gasosas. Esse gases passaram ao estado
líquido sob diversas influências, e, mais tarde, formou-se a
massa sólida. Mas, quase com certeza, o nosso esferóide era
ainda gasoso ou líquido, quando a Lua, já solidificada pelo
arrefecimento, se tornou habitável.

Depois, Nicoles, que pretendia concluir o que havia come- çado, pôs
de novo a seguinte questão sobre o problema que acabavam de abordar:
– A Lua foi habitada? A resposta foi unânime e afirmativa.

Entretanto, durante aquela discussão, fértil em teorias um
tanto arrojadas, embora fossem apenas o resumo de idéias gerais adquiridas
pela ciência neste domínio, o projétil aproximara-se rapidamente
do equador lunar, afastandose simultânea e regularmente do disco.

Capítulo XI – Luta contra o impossível

Durante muito tempo, Barbicane e os companheiros olharam, mudos e pensativos,
aquele mundo que apenas tinham visto de longe, como Moisés a terra
de Canaã, e de que se afastavam definitivamente. A posição
do projétil em relação à Lua modificara-se. A
sua base estava nesse momento voltada para a Terra.

Ao verificar tal alteração, Barbicane não deixou de
surpreender- se. Se o projétil devia gravitar à volta do satélite,
seguindo uma órbita elíptica, por que razão não
lhe apresentava a parte mais pesada, como faz, a Lua em face da Terra? Havia
algo de obscuro nisto.

Pela simples observação da marcha do projétil, podia
verificar- se que ele seguia, ao afastar-se da Lua, uma curva idêntica
à que havia quando da aproximação. Traçava, portanto,
uma elipse muito alongada, que se prolongava provavelmente até o ponto
de igual atração, onde se neutralizam as influências da
Terra e do seu satélite.

Tal foi a conclusão que Barbicane tirou dos fatos observados, conclusão
que, aliás, foi partilhada pelos seus dois amigos.

– E logo choveram as perguntas.

– E chegados a esse ponto morto, que nos acontecerá? – perguntou
Michel Ardan.

– Isso é uma incógnita – respondeu Barbicane.

– Mas podem antecipar-se algumas hipóteses, suponho…

– Duas – precisou Barbicane -: ou a velocidade do projétil é
insuficiente, e nesse caso ficará eternamente imóvel nessa linha
de dupla atração…

Prefiro a outra, seja qual for – comentou Michel. Velocidade é suficiente
– concluiu Barbicane -, e então retomará a rota elícita,
e gravitará eternamente à volta do astro da noite.

– Alternativa pouco consoladora – opinou Michel.

– Passar ao estado de humildes servidores de uma Lua que estamos habituados
a considerar como nossa serva. Eis o futuro que nos espera.

Barbicane e Nicoles nada disseram.

– Ali! calam-se? – continuou o impaciente Michel.

– Mas se não há nada a dizer… – justificou-se Nicoles.

– E não haverá nada a tentar? – Nada – respondeu Barbicane.
– Ou pretendes lutar contra o impossível? – E por que não? Um
francês e dois americanos hão de recuar diante de semelhante
palavra? – Mas que queres fazer ? – Dominar este movimento que nos arrasta!
– Dominá-lo? – Sim – insistiu Michel, entusiasmando-se.

– Travá-lo, modificá-lo, usá-lo, enfim, de maneira
a realizarmos os nossos projetos.

– E como? – 0 problema é vosso! Os artilheiros que não são
senhores dos seus projéteis não são artilheiros. Se é
o projétil que manda no artilheiro, o melhor é que o artilheiro
se meta dentro do canhão lugar do projétil.

Belos sábios, sim, senhor. Ei-los que não sabem o que há
de fazer depois de me terem induzido…

– Induzido – exclamaram Barbicane e Nicoles. – Induzido! Que queres dizer?
– Nada de recriminações! – avisou Michel. Eu não me queixo!
0 passeio agrada mel. 0 projétil convém-me! Mas, por favor,
façamos tudo o que for humanamente possível para cairmos em
qualquer lugar, já que não o podemos fazer na Lua! – Mas nós
também não queremos outra coisa, meu caro Michel – replicou
Barbicane. – Só que não temos meios.

– Não podemos modificar o movimento do projétil? – Não.

– Nem diminuir-lhe a velocidade? – Não.

– Nem mesmo aliviando-o, como se alivia um navio com excesso de carga? –
Que queres alijar? – perguntou por sua vez Nicoles. – Não temos lastro
a bordo. E, de resto, parece-me que, se alivi- ássemos o projétil,
a velocidade aumentaria.

Diminuiria – insistiu Michel.

Aumentaria – teimou Nicoles.

– Nem diminuiria nem aumentaria – asseverou Barbicane, pondo fim à
disputa dos dois amigos -, porque flutuamos no vácuo, onde o peso específico
não conta.

Sendo assim – exclamou resolutamente Michel Ardan -, só há
uma coisa a fazer.

– 0 quê? – quis saber Nicoles.

– Almoçar! – respondeu o imperturbável e audacioso franc ês,
que propunha sempre esta solução quando se apresentavam as mais
difíceis conjunturas.

De fato, se esta operação não podia ter qualquer influência
sobre a direção do projétil, podia ser tentada sem inconveniente,
e até com muito êxito do ponto de vista do estô- mago.
Decididamente, aquele Michel tinha boas idéias.

Almoçaram, portanto, às duas horas da manhã, mas a
hora pouco importava. Michel serviu a habitual refeição, coroada
com uma preciosa garrafa da sua reserva secreta. Se, depois disto, as idéias
não lhes brotassem do cérebro, seria de pôr em dúvida
a qualidade do Chamberti.

Terminada a refeição, recomeçaram as observações.

Em volta do projétil mantinham-se, a uma distância invari-
ável, os objetos que haviam sido alijados. Era evidente que o projétil,
no seu movimento de translação à volta da Lua, – não
atravessara nenhuma atmosfera, porque o peso espec ífico daquele s
diferentes objetos lhes teria alterado a marcha relativa.

Do lado do esferóide terrestre nada havia a assinalar. A Terra, que
fora ?nova? na véspera à meia-noite, tinha apenas um dia. Seria
necessário que decorressem mais dois dias, para que o seu crescente,
desembaraçado dos raios solares, viesse servir de relógio, aos
selenitas, visto que, mercê do movimento de rotação ,
cada um dos seus pontos passam de vinte e quatro em vinte e quatro horas pelo
mesmo meridiano da Lua.

Do lado da Lua o espetáculo era diferente. 0 astro brilhava em todo
o seu esplendor, no meio de inumeráveis constela ções,
sem que os seus, raios lhes diminuíssem a pureza.

No disco, as planícies retomavam já aquele tom escuro que
se vê da Terra. 0 resto do nimbo continuava cintilante, e, no meio de
toda aquela cintilação, destacava-se ainda Ticho, como um sol.

Barbicane não tinha maneira de avaliar a velocidade do projétil,
mas o raciocínio demonstrava-lhe que essa velocidade devia decrescer
uniformemente, de acordo com as leis da, mecânica racional.

Realmente, admitido foi que o projétil ia descrever uma órbita
à volta da Lua, essa órbita tinha de ser necessariamente elíptica.
A ciência assim o demonstra. Nenhum mó- vel que gravite em volta
de um corpo atraente escapa a essa lei. Todas as órbitas descritas
no espaço são elíticas, tanto as dos satélites
em volta dos planetas, quanto as dos planetas em volta do Sol, como ainda
a do Sol em volta do astro desconhecido que lhe serve de um dos focos.

Por que razão o projétil do Clube do Canhão contrariava
esta disposição natural? Ora, nas órbitas elípticas,
o corpo atraente ocupa sempre um dos focos da elipse. Há portanto um
momento em que o satélite está mais próximo, e outro
em que se encontra mais afastado do astro em volta do qual gravita. Quando
a Terra está mais perto do Sol, diz-se que se encontra no periélio,
e no afélio no caso contrário. Com a Lua passa-se algo de idêntico:
dizemos que está no perigeu ou no apogeu consoante e encontre mais
próxima ou mais distante da Terra. Se o projétil se tornasse
satélite da Lua e quiséssemos usar expressões análogas,
com as quais se enriquecer á a linguagem dos astrônomos deveríamos
dizer que atingiria o ?aposselenico? no ponto mais distante e o ?perisselênico?
no mais próximo.

Nesse último caso, o projétil devia atingir o máximo
de velocidade; no primeiro, o mínimo. Ora, era evidente que ele – se
dirigia para o ponto ?aposselénico?, pelo que Barbicane tinha razão
em pensar que a velocidade havia de decrescer até esse ponto, para
depois voltar a aumentar, pouco a pouco, à medida que se aproximasse
de novo da Lua. A velocidade chegaria mesmo a ser absolutamente nula se aquele
ponto coincidisse com o de igual atração.

Estudava Barbicane as conseqüências dessas diferentes situa ções,
para procurar tirar o melhor partido delas, quando foi subitamente interrompido
por um grito de Michel Ardan.

– Santo Deus! – exclamava ele. – Temos de confessar que somos mesmo estúpidos!
Não digo que não – disse Barbicane. – Mas por – Porque temos
um meio bem simples de reduzir a velocidade que nos afasta da Lua, e não
a usamos.

– E que meio é esse? – A força de recuo dos nossos foguetes.

– É verdade! – exclamou Nicoles.

– Não a utilizamos – volveu Barbicane -, mas vamos utilizá-
la.

Quando? – inquiriu Michel.

Quando chegar o momento. Reparem, meus amigos, que, na posição
em que está o projétil, posição ainda oblíqua
em relação ao disco lunar, os foguetes poderiam alterarlhe a
direção e afastá-lo em vez de aproximá-lo da Lua.

Ora, eu creio que é a Lua que pretendem atingir. Não é
verdade? De preferência – respondeu Michel.

– Então esperem. Por qualquer razão inexplicável, o
projétil tende a voltar a base para a Terra. É provável
que, no ponto de igual atração, o seu chapéu cônico
esteja rigorosamente apontado para a Lua. Nesse momento, é também
possível que a velocidade seja nula. Esse será o instante de
agir; e, com a ajuda dos nossos foguetes, talvez possamos provocar uma queda
direta na superfície do disco lunar.

Bravo! – entusiasmou-se Michel.

– 0 que não fizemos nem poderíamos ter feito na nossa primeira
passagem pelo ponto neutro, porque o projétil estava ainda animado
de uma velocidade muito elevada.

– Bem pensado – disse Nicoles.

– Aguardemos pacientemente – prosseguiu Barbicane. – Coloquemos todos os
trunfos do nosso lado. Depois de tanto ter desesperado, começo a acreditar
que alcançaremos o nosso objetivo! Este otimismo provocou os sonoros
vivas de Michel Ardan.

E nenhum daqueles audazes loucos se recordava já das perguntas a
que tinham dado uma resposta negativa: ?Não! A Lua não é
habitada! Não! A Lua nem provavelmente é habitável!?
E, não obstante, iam fazer tudo para lá chegar! Faltava resolver
um único problema: em que momento preciso atingiria o projétil
o ponto de igual atração, onde os viajantes arriscariam tudo?
Para calcular, com a diferença de alguns segundos, esse momento, Barbicane
mais não tinha do que recorrer às suas notas de viagem e extrair
delas as diferentes alturas tomadas nos paralelos lunares. Deste modo, o tempo
gasto a percorrer a distância que separava o ponto neutro e o pólo
sul devia ser igual à distância existente entre o pólo
norte e o ponto neutro. As horas que representavam os tempos observados no
percurso estavam cuidadosamente anotadas, pelo que o cálculo se tornava
fácil.

Barbicane concluiu que o ponto neutro seria atingido à uma hora da
madrugada de 8 de dezembro. Eram naquele momento três horas da madrugada
de 7 de dezembro. Desta forma, se nada lhe perturbasse a marcha, o projétil
atingiria o ponto desejado dentro de vinte e duas horas.

Os foguetes, que tinham sido concebidos para amortecer a queda. do projétil
na Lua, iam então ser utilizados pelos ousados viajantes para obterem
um efeito absolutamente contrário. Como quer que fosse, estavam prontos,
e nada mais havia a fazer do que esperar pelo momento de lhes lançar
fogo.

– Como não há nada que fazer – disse Nicoles faço uma
proposta.

Que proposta? – perguntou Barbicane.

– Proponho que durmamos.

– A esta hora! – disse Michel Ardan.

– Há quarenta horas que não fechamos os olhos – lembrou Nicoles.
– Algumas horas de sono ajudar a restabelecer as forças.

– Nunca! – replicou Michel.

– Bem – rematou Nicoles façam o que entenderem! Eu vou dormir! E,
deitando-se no divã, Nicoles não tardou a roncar como uma bala
de quarenta e oito.

– Este Nicoles; é um homem de juízo – disse daí a pouco
Barbicane. – Vou seguir-lhe o exemplo.

Instantes depois, secundava com o seu baixo contínuo o roncar abaritonado
do capitão.

-, Decididamente – ponderou Michel Ardan, quando se viu sozinho -, estes
homens práticos saem-se às vezes com idéias oportunas.

E, estendendo as compridas pernas, apoiando a cabeça nos grandes
braços, Michel Ardan acabou também por adormecer.

Todavia, aquele sono não podia se nem prolonga sossegado.

No espírito dos três homens agitavam-se demasiadas preocupações,
pelo que, algumas horas depois, cerca das sete horas da manhã, estavam
todos de pé.- 0 projétil continuava a afastar-se da Lua, inclinando
cada vez mais a sua parte cônica para o astro. Fenômeno inexplicável
até então, mas que servia inteiramente os projetos de Barbicane.

Mais dezessete horas e o momento de agir chegaria.

Aquele dia parecia interminável. Por muito audazes que fossem, os
viajantes estavam vivamente impressionados com a aproximação
daquele instante em que tudo se decidiria: ou cairiam na Lua, ou ficavam eternamente
acorrentados a uma órbita imutável. Contaram, uma a uma, as
horas, que passavam com uma lentidão exasperante. Barbicane e Nicoles
embrenharam-se obstinadamente nos seus cálculos.

Michel passeou de um lado para o outro, no estreito espaço existente
entre as paredes do projétil, lançando ávidos olhares
ao impassível satélite.

Por vezes, recordações da Terra atravessavam-lhes rapidamente
o espírito. Reviam os amigos do Clube do Canh ão, sobretudo
o que lhes era mais caro, J. T. Maston.

Naquele momento, o digno secretário devia estar no seu posto das
montanhas Rochosas. Se acaso avistava o projétil no espelho do seu
gigantesco telescópio, que pen saria? É que depois de tê-lo
visto desaparecer por detrás do pólo sul da Lua, via-o reaparecer
pelo pólo norte! Era, portanto, o satélite de um satélite!
Teria J. T. Maston anunciado ao Mundo aquela inesperada notícia? Seria
aquele o desenlace da grande empresa?…

Entretanto, o dia passou-se sem incidentes. A meia-noite terrestre chegou.
0 dia 8 de dezembro ia começar. Mais uma hora e o ponto de igual atração
seria alcançado. Que velocidade animava então o projétil?
Era impossível avaliá- la. Mas nenhum erro iria fazer gorar
os cálculos de Barbicane.

À uma hora da manhã, a velocidade devia ser e seria nula.

Por outro lado, um outro fenômeno havia de assinalar a passagem do
projétil pela linha neutra. Ali, as duas atrações, a
terrestre e a lunar, anular-se-iam. Os objetos ?deixariam de ter peso?. Esse
fato singular, que no percurso da ida tanto surpreendera Barbicane e os companheiros,
devia ocorrer de novo no regresso em idênticas condições.
Seria nesse exato momento que deviam atuar.

-0 chapéu cônico estava já sensivelmente voltado para
o disco lunar, pelo que o projétil se apresentava na posição
ideal para o integral aproveitamento da força de recuo produzida pela
impulsão dos foguetes. Os viajantes tinham, portanto, a seu favor todas
as probabilidades de êxito. Se a velocidade do projétil fosse
completamente anulada no ponto morto, qualquer movimento na direção
da Lua, por muito ligeiro que se revelasse, bastaria para provocar a queda
na superfície lunar.

– Faltam cinco minutos para uma – revelou Nicoles.

– Está tudo a postos – volveu Michel Ardan, aproximando uma mecha
da chama de gás.

Espera – disse Barbicane, com o cronômetro na mão. Naquele
momento, a gravidade já não produzia qualquer efeito.

Os viajantes sentiam-lhe bem a ausência. Estavam muito perto do ponto
neutro, se é que não o ,tinham mesmo atingido I …

– Uma hora! – anunciou Barbicane.

Michel Ardan aproximou a mecha inflamada de um rastilho que acionava instantaneamente
os foguetes. Nó interior do projétil, não se. ouviu nenhuma
detonação. Mas, pelas vigias, Barbicane avistou um clarão,
que depressa se extinguiu.

0 projétil experimentou um certo abalo, que foi sentido no interior.

Os três amigos se olhavam, escutavam sem falar, respirando apenas.
Era possível ouvir-lhes o bater do coração no meio de
tão absoluto silêncio.

Caímos? – perguntou por fim Michel Ardan.

– Não – respondeu Nicoles -, visto que a base do projétil
não se voltou para o disco lunar.

Entretanto, Barbicane, que abandonara as vigias, voltou-se para os dois
companheiros. Estava horrivelmente pálido, tinha a fronte enrugada
e os lábios contraídos.

– Caímos, sim! – disse ele.

Ah!?- exclamou Michel Ardan – Para a Lua? Para a Terra! – respondeu Barbicane.

A verdade é que uma tremenda queda começara. A velocidade
que o projétil conservava levara-o para além do ponto morto.
A explosão dos foguetes não o sustivera. Essa velocidade, que
na ida arrastara o projétil para fora da linha neutra, arrastava-o
ainda no regresso. A física impunha que, na sua órbita elíptica,
o projétil voltasse a passar por todos os pontos por onde já
passara.

Era uma queda terrível, de setenta e oito mil léguas de altura,
que nenhuma mola poderia amortecer. De acordo com as leis da balística,
o projétil devia se chocar com a Terra a uma velocidade igual à
que o animava ao sair do columbiad, ou seja, a uma velocidade de ?dezesseis
mil metros no último segundo!? Estamos perdidos – disse friamente Nicoles.

– Pois bem; se morrermos – redargüiu Barbicane, com uma espécie
de entusiasmo religioso -, o resultado da nossa viagem será magnificamente
alargado! É o Seu próprio se gredo que Deus nos revelará!
Na outra vida, a alma não necessitará, para saber, de máquinas
ou de instrumentos, porque se identificará com a sabedoria eterna!
– De fato – comentou Michel Ardan -, o Outro Mundo todo é bem capaz
de nos fazer esquecer esse astro ínfimo que se chama Lua.

Barbicane cruzou os braços sobre o peito, com um movimento de sublime
resignação e exclamou: – Que o Céu nos guarde!

Capítulo XII – As sondagens da Susquebanna

– Então, tenente, como vai a sondagem? – Creio, senhor, que a operação
está perto do fim – respondeu o Tenente Bronsfield. – Mas quem havia
de dizer que encontraríamos uma tal profundidade tão perto de
terra, a uma centena de léguas apenas da costa americana9 – Realmente,
Bronsfield, é uma enorme depressão – concordou o Capitão
Blomsberry. – Neste local há um vale submarino escavado pela Corrente
de Humboldt, que segue as costas da América até o Estreito de
Magalhães.

– Estas grandes profundidades – prosseguiu o tenente – são bem pouco
favoráveis à colocação dos cabos telegráficos.

0 ideal é uma planície lisa, como aquela em que assenta o
cabo americano entre Valentia e a Terra Nova.

– Sem dúvida, Bronsfield. Mas, com sua licença, em que ponto
estamos? – Senhor – respondeu o tenente -, neste momento, temos vinte e um
mil e quinhentos pés de linha fora, e a bala da sonda ainda não
tocou no fundo, porque, nesse caso, a sonda subiria por si própria.

– Engenhoso aparelho, o do tal Brook – disse o Capitão Blomsberry.
– Com ele, obtêm-se sondagens de grande exatidão.

– Fundo! – gritou um dos timoneiros da proa, que vigiava a operação.

– Qual é a profundidade? – perguntou o Capitão Blomsberry.

– Qual é a profundidade? – perguntou o capitão.

– Vinte e um mil setecentos e sessenta e dois pés – respondeu o tenente,
anotando o número na sua agenda.

– Bem, Bronsfield – disse o capitão -, vou registrar esse resultado
no meu mapa. Agora, mande içar a sonda para bordo. É trabalho
para várias horas. Entretanto, o maquinista que acenda as fornalhas,
a fim de que estejamos prontos para partir logo que terminem. São dez
horas da noite, tenente. Vou-me deitar.

– Faz muito bem, senhor! – replicou cortesmente o Tenente Bronsfield.

0 capitão da Susquehanna, um homem bom como poucos, e um humilde
servidor dos seus oficiais, regressou ao camarote, tomou um gole de aguardente,
o que mereceu do despenseiro intermináveis mostras de satisfação,
deitou- se, não sem ter saudado o seu camareiro pelo modo como fazia
a cama, e adormeceu profunda e pacificamente.

Eram então dez horas da noite. 0 décimo primeiro dia do mês
de dezembro ia terminar numa magnífica noite.

A Susquehanna, corveta de quinhentos cavalos, da marinha dos Estados Unidos,
procedia as sondagens no Pacífico, aproximadamente a cem léguas
da costa americana, frente à alongada península que se destaca
da costa do Novo México.

0 vento amainara pouco a pouco. Não havia a menor perturba ção
nas camadas atmosféricas. A flâmula da corveta, imóvel,
pendia inerte do mastaréu do joanete.

0 Capitão Jonathan Blomsberry – primo direto do Coronel Blomsberry,
um dos membros mais ardentes do Clube do Canhão, que desposara uma
Horschbidden, tia do capitão e filha de um honrado comerciante do Kentucky
-, o Capit ão Blomsberry, dizíamos, não poderia ter desejado
melhor tempo para levar a bom termo as delicadas operações de
sondagem. A sua corveta nem mesmo tinha sentido a enorme tempestade que, varrendo
as nuvens amontoadas sobre as Montanhas Rochosas, havia de permitir que se
observasse a marcha do famoso projétil. Tudo corria de feição,
e ele, com o fervor de um presbiteriano, não se cansava de agradecer
ao Céu essa graça.

A série de sondagens levadas ao cabo pela Susquehanna tinha por fim
reconhecer os fundos mais propícios ao estabelecimento de um cabo submarino,
que devia ligar as ilhas Havaí à costa americana.

Era um importante projeto, devido à iniciativa de uma poderosa companhia,
cujo diretor, o inteligente Cyrus Field, planejara mesmo dotar todas as ilhas
da Oceânica com unia vasta rede elétrica, empresa grandiosa e
digna do gê- nio americano.

À corveta Susquehanna estavam justamente confiadas as primeiras operações
de sondagem. Durante a noite de 11 para 12 de, dezembro, a sua posição
era exatamente a seguinte: 270 7′ de latitude norte e 410 37′ de longitude
a oeste do meridiano de Washington.

A Lua, na altura no último quarto, despontava no horizonte.

Depois da retirada do Capitão Blomsberry, o Tenente Bronsfield reuniu-se
com outros oficiais no tombadilho. 0 aparecimento da Lua fez com que devotassem
todos os seus pensamentos ao astro, que os olhos de um hemisfé- rio
inteiro então contemplavam. Os melhores binóculos de marinha
não poderiam descortinar o projétil que errava em torno do globo
lunar. Contudo todos estavam assestados na direção do disco
cintilante, que milhões de olhares miravam ao mesmo tempo.

– Partiram há dez dias – disse em dado momento o Tenente Bronsfield.
– Que lhes terá acontecido? – Chegaram, meu tenente! – exclamou um
jovem aspirante -, e fazem o que faz todo o viajante que chega a um novo país:
passeiam i – Estou certo disso, visto que é você que me diz,
meu jovem amigo – comentou, sorridente, o Tenente Bronsfield.

– No entanto – continuou outro oficial -, não se pode pôr em
dúvida que chegaram. 0 projétil deve ter atingido a Lua no momento
em que estava cheia, no dia 5 à meia-noite: Estamos a 11 de dezembro,
o que perfaz seis dias. Ora, seis vezes vinte e quatro horas, sem obscuridade,
há tempo de sobra para uma pessoa se instalar confortavelmente.

Parece que estou vendo os nossos corajosos viajantes acampados no fundo
de um vaie, na margem de um rio lunar, perto do projétil semi enterrado
nos fragmentos vulc ânicos: o Capitão Nicoles começando
as suas operações de nivelamento, o Presidente Barbicane a passar
a limpo as notas de viagem e Michel Ardan a perfumar as solidões lunares
com o aroma das suas cigarrilhas.

– Sim, deve ter sido assim; foi assim! – exclamou o jovem aspirante, entusiasmado
com a bela descrição do superior.

– Quero acreditar nisso – declarou o Tenente Bronsfield, que não
se entusiasmava tão facilmente. – Infelizmente, nunca teremos notícias
diretas do mundo lunar.

– Perdão, meu tenente – objetou o aspirante -; então o Presidente
Barbicane não pode escrever? Uma gargalhada geral acolheu esta pergunta.

– N&atiatilde;o me refiro a cartas – precisou vivamente o jovem.

– A administração dos correios não é para aqui
chamada.

– E a administração das linhas telegráficas? – inquiriu
ironicamente um dos oficiais.

– Também não – respondeu o aspirante, que não desarmava.

– Mas é fácil estabelecer comunicações gráficas
com a Terra.

– Ah, sim! E como? – Através do telescópio de Long?s Peak.
Bem sabe que ele pode aproximar a Lua a duas léguas das Montanhas Rochosas,
o que permite ver na superfície lunar objetos que tenham nove pés
de diâmetro. Pois bem; bastava que os nossos engenhosos amigos construíssem
um gigantesco alfabeto! Que escrevessem palavras de cem toesas de comprimento
e frases de uma légua, para poderem enviarnos notícias.

0 jovem aspirante foi ruidosamente aplaudido, já que imagina ção
não lhe faltava. 0 próprio Tenente Bronsfield acabou por concordar
que a idéia até era realizável, e acrescentou que, através
da emissão de feixes de raios luminosos, por meio de espelhos parabólicos,
se conseguiria tamb ém estabelecer comunicações diretas.
De fato, esses raios seriam tão visíveis em Vênus e Marte
como o é da Terra o planeta Netuno. Acabou por dizer que os pontos
brilhantes já observados nos planetas mais próximos poderiam
muito bem ser sinais feitos à Terra. Contudo, observou ainda que, se
por aquele meio ? se pudessem conseguir, notícias do mundo lunar, não
era possível enviar para lá notícias do mundo terrestre,
a menos que os selenitas tivessem à sua disposição instrumentos
apropriados às observações a grande distância.

– Evidentemente – volveu um dos oficiais. – Mas o que sobretudo nos deve
interessar é o que aconteceu aos viajantes, o que fizeram e o que viram.
Se a experiência for coroada de êxito, do que não duvido,
será repetida. 0 columbiad continua embutido no solo da F16rida. É
apenas uma questão de pólvora e de projéteis, e todas
as vezes que a Lua passar pelo zênite poder-se-lhe-á enviar um
?carregamento ? de visitantes.

– 0 evidente – disse o Tenente Bronsfield – é que J.T. Maston irá
juntar-se, um destes dias, aos seus amigos.

– Se ele me quiser – garantiu o aspirante -, estou pronto para acompanhá-lo.

– Oh! voluntários não faltarão – replicou Bronsfield.

– Metade dos habitantes da Terra, se os deixarem, terão em breve
emigrado para a Lua! Esta conversa entre os oficiais da Susquehanna prolongouse
até muito perto da uma hora da manhã. Seria difícil relatar
os assombrosos sistemas, as espantosas teorias que foram emitidas por aqueles
audaciosos espíritos. Depois da experiência que Barbicane intentara,
nada parecia impossí- vel aos americanos. Já projetavam expedir
não uma comiss ão de sábios, mas uma colônia inteira,
e um exército completo, com infantaria, artilharia, para conquistar
o mundo lunar.

À uma hora da manhã, a sonda ainda não estava completamente
içada. Faltavam dez mil pés, o que requeria ainda um trabalho
de várias horas. Tal como o comandante havia ordenado, as fornalhas
haviam sido acessas, e a pressão subia. A Susquehanna poderia partir
no mesmo instante.

Naquele momento – era uma hora e dezessete minutos da manhã -, dispunha-se
o Tenente Bronsfíeld a deixar o tombadilho e a se recolher ao seu camarote,
quando um silvo longínquo e perfeitamente inesperado lhe despertou
a atenção.

Ele e os camaradas começaram por atribuir aquele silvo a uma fuga
de vapor. Mas, levantando a cabeça, aperceberam- se de que tal rumor
se produzia nas camadas mais elevadas da atmosfera.

Não tiveram tempo para se interrogar. 0 silvo ganhara uma assustadora
intensidade, e de súbito apareceu-lhes, diante dos olhos deslumbrados,
um enorme bólide, inflamado pela velocidade da queda e pelo atrito
nas camadas atmosféricas.

A massa ígnea avolumou-se, caiu com barulho sobre o gurupés
da corveta, partindo-o rente pela roda da proa, e afundou-se nas ondas com
um rumor de ensurdecer.

Alguns pés mais perto, e a Susquehanna soçobraria com vidas
e bens.

Nesse instante, o Capitão Blomsberry apareceu semi vestido, e, precipitando-se
para o castelo da proa, para onde tinham corrido os oficiais, perguntou: –
Com licença, meus senhores; que aconteceu? E o aspirante, fazendo-se
por assim dizer eco de todos, exclamou: 1 – Meu comandante, são eles
que voltam!

Capítulo XIII – J. T. Maston volta à cena

emoção foi grande a bordo da Susquehanna. Oficiais e marinheiros
esqueciam o terrível perigo que acabavam de correr, o quanto estiveram
perto de ser esmagados e de ir a pique. Só se lembravam da catástrofe
que culminava aquela viagem. A mais audaciosa empresa de todos os tempos exigira,
como tributo, a vida dos audazes aventureiros que a intentaram.

?São eles que voltam?, dissera o jovem aspirante, e todos o compreenderam.
Ninguém duvidava que o bólide fosse o projétil do Clube
do Canhão. Quanto à sorte dos viajantes, as opiniões
dividiam-se.

– Estão mortos! – garantia um.

– Estão vivos – teimava outro. – As águas são profundas
e amorteceram-lhes a queda.

– Mas faltou-lhes o ar – opinava ainda outro -, e morreram com certeza asfixiados!
– Queimados! – exclamavam outros. – 0 projétil, ao atravessar a atmosfera,
nada mais era do que uma massa incandescente.

– Que importa! – concluíram por unanimidade. – Vivos ou mortos, o
importante é tirá-los de lá.

Entretanto, o Capitão Blomsberry reunira os oficiais e, com a concordância
de todos, conduzia o conselho. Tratava-se de tomar uma rápida decisão.
0 mais urgente era pescar o projétil. A operação era
difícil, mas não impossível. Faltavam, porém,
à corveta os engenhos necessários, que teriam de ser simultaneamente
possantes e precisos. Resolveu- se, portanto, demandar o porto mais próximo
e avisar o Clube do Canhão da queda do referido projétil.

Esta resolução foi tomada por unanimidade. A escolha do porto
levantou alguma discussão. É que a costa vizinha não
possuía qualquer ancoradouro no vigésimo sétimo grau
de latitude. Mais acima, para além da península de Monterey,
localizava-se a importante cidade que lhe. deu o nome.

Mas, construída nos confins de um verdadeiro deserto, nem sequer
estava ligada ao interior por uma rede telegráfica, e só a eletricidade
podia difundir com a necessária rapidez aquela grave notícia.

Alguns graus mais além, abria-se a baía de São Francisco.

A partir da capital da região do ouro, as comunicações
com o centro da União eram fáceis?. A todo o vapor, a Susquehanna
chegaria ao porto de São Francisco em menos de dois dias. A corveta
devia, portanto, zarpar sem demora.

As caldeiras estavam sob pressão. Podia-se partir imediatamente.

Havia ainda no fundo duas mil braças de sonda. 0 Capitão Blomsberry,
porém, não quis perder um tempo precioso a içá-la
e resolveu mandar cortar a linha.

– Prender-lhe-emos a ponta a uma bóia – sugeriu ele -, e esta sinalizará
o ponto exato onde caiu o projétil.

– De resto – acrescentou o Tenente Bronsfield sabemos qual é, rigorosamente,
a nossa posição: vinte e sete graus e sete minutos de latitude
norte por quarenta e um graus e trinta e sete minutos de longitude oeste.

– Bem, senhor Bronsfield – prosseguiu o capitão peço licen-
ça para lhe recomendar que mande cortar a linha. Uma resistente bóia,
reforçada com um par de chapas, foi lançada ao mar. A ponta
da linha foi-lhe solidamente fixada por cima.

Aquela bóia, sujeita apenas à oscilação da vaga,
não devia derivar muito.

Foi nessa altura que o engenheiro mandou prevenir o capit ão que
havia pressão e que, conseqüentemente, podiam partir. 0 capitão
enviou-lhe os seus agradecimentos por esta excelente comunicação.
Depois fixou a rota na direção nor-nordeste. A corveta manobrou
e dirigiu-se a todo o vapor para a baía de São Francisco. Eram
três horas da manhã.

Um percurso de duzentas léguas não era grande coisa para um
navio rápido como a Susquehanna. Bastariam trinta e seis horas para
devorar aquela distância. Assim, treze horas e vinte e sete minutos
da tarde do dia 14 de dezembro, entrava em São Francisco.

À vista daquele navio da marinha nacional, que chegava a grande velocidade,
com o gurupés raso e o mastro do traquete escorado, atraiu singularmente
a curiosidade pú- blica. Uma multidão compacta amontoou-se de
imediato no cais, para seguir de perto o desembarque.

Depois de fundearem, o Capitão Blomsberry e o Tenente Bronsfíeld
desceram para um escaler de oito remos, que os pôs rapidamente em terra.

Saltaram para o cais.

– 0 telégrafo? – perguntaram, sem responder às mil perguntas
que lhes eram dirigidas.

Foi o próprio capitão do porto que os conduziu â estação
telegráfica, no meio de uma imensa multidão.

Blomsberry e Bronsfield entraram na estação, enquanto a multidão
se acotovelava à porta.

Minutos mais tarde, um despacho em quadruplicado foi expedido: o primeiro
para o secretário da Marinha, Washington; o segundo para o vice-presidente
do Clube do Canh ão, Baltimore; o terceiro para o digno J. T. Maston,
Long?s Peak, Montanhas Rochosas; e o quarto para o subdiretor do Observatório
de Cambridge, Massachussets.

Estava concebido nestes tempos: ?A 200 7′ latitude norte por 410 37′ longitude
oeste, em 12 de dezembro, à uma hora e dezessete minutos, projétil
columbiad caiu Pacífico.

Enviem instruções. Blomsberry, comandante Susquehanna.

Cinco minutos depois, toda a cidade de São Francisco sabia o que
se passara. Antes das seis da tarde, os restantes Estados da União
tiveram conhecimento de catástrofe.

Depois da meia-noite, através do cabo telegráfico, toda a
Europa sabia o resultado da grande experiência americana.

Renunciamos a descrever o efeito produzido em todo o Mundo por aquele inesperado
desenlace.

Logo que recebeu o despacho, o secretário da Marinha ordenou por
telégrafo ao Susquehanna para se manter na baía de São
Francisco, com as caldeiras sob pressão. Dia e noite devia estar pronta
a fazer-se ao mar.

0 Observatório de Cambridge reuniu-se em sessão extraordin
ária, e, com a peculiar serenidade que distingue as corporações
de sábios, discutiu paulatinamente a questão sob o ponto de
vista científico.

No Clube do Canhão houve explosão. Os artilheiros estavam
todos reunidos. 0 vice-presidente, o digníssimo Wilcome, lia precisamente
aquele prematuro telegrama, no qual J. T. Maston e Belfast anunciavam que
o projétil acabava de ser avistado no gigantesco refletor de Long?s
Peak.

Esta comunicação afirmava, ainda por cima, que o projétil,
retido pela atração da Lua, desempenhava o papel de subsatélite
do mundo solar.

– Sabemos agora que o aconteceu na realidade.

Entretanto, a chegada do despacho de Blomsberry, que tão formalmente
contradizia o telegrama de J. T. Maston, provocou a divisão no seio
do Clube do Canhão. Formaram- se dois partidos. De um lado, o das pessoas
que admitiam a queda do projétil e, conseqüentemente, o regresso
dos viajantes. Do outro, o dos que, fazendo fé nas observa ções
de Long?s Peak, opinavam que o comandante da Susquehanna errara. Para estes
últimos, o suposto projétil não passava de um bólide,
nada mais do que um bólide, um globo cadente que, na sua queda, atingira
e avariara a proa da corveta. Não se sabia lá muito bem como
rebater tal argumentação, porque a velocidade de que o corpo
ia animado devia ter dificultado a sua observação. Daí
que o comandante e os oficiais da Susquehanna pudessem terse enganado, de
boa-fé, embora. Contudo, havia um argumento que militava a seu favor:
é que se o projétil tivesse caído em terra, o embate
com o esferóide terrestre só poderia ter ocorrido no vigésimo
sétimo grau de latitude norte, e – tendo em conta o tempo decorrido
e o movimento de rotação da Terra – entre o quadragésimo
primeiro e o quadragésimo segundo grau de latitude oeste.

Como quer que fosse, o Clube do Canhão decidiu por unanimidade que
o irmão de Blomsberry, Bilsby e o Major Elphiston se dirigissem sem
demora para São Francisco, e, uma vez lá chegados, arranjassem
os meios de retirar o projétil das profundezas do oceano.

Esses dedicados homens partiram de imediato, estrada de ferro, que em breve
atravessaria toda a América Central, levou-os a Saint-Louis, onde os
esperava um rápido coachmail.

Justamente no mesmo instante em que o secretário da Marinha, o vice-presidente
do Clube do Canhão e o subdiretor do Observatório de Cambridge
recebiam o despacho de São Francisco, experimentava o digno J. T. Maston
a mais violenta emoção de toda a sua vida – emoção
que nem a explosão do seu célebre morteiro lhe causara, e que
por pouco lhe ia custando a vida.

0 leitor lembra-se, por certo, de que o secretário do Clube do Canhão
partira alguns instantes depois do projétil – e qua ? se tão
depressa como este – para a estação de Long?s Peak, nas Montanhas
Rochosas. 0 sábio J. Belfast, diretor do Observatório de Cambridge,
acompanhava-o. Assim que chegaram, os dois amigos instalaram-se sumariamente
e nunca mais deixaram o cimo do enorme telescópio.

Sabe-se que o gigantesco instrumento fora concebido segundo o sistema de
refletores a que os ingleses chamam front view. Esta disposição
fazia com que os objetos sofressem uma só reflexão, tornando-os,
conseqüentemente, mais nítidos. Deste fato resulta que J. T. Maston
e Belfast, para procederem às observações, tinham de
se colocar na parte superior do instrumento e não na parte inferior.
Subiam até lá através de uma escada de caracol, obra-prima
de leveza. Por baixo, abria-se-lhes um verdadeiro poço de metal, cujo
fundo era um espelho metálico, e que tinha duzentos e oitenta pés
de profundidade.

Ora, era na estreita plataforma, que circundava o cimo do telescópio,
que os dois sábios passavam a vida a maldizer a luz do dia que lhes;
escondia da vista, a Lua, e as nuvens que a velavam durante a noite.

Imagine-se, portanto, qual foi a sua alegria, quando, decorridos alguns
longos dias de espera, avistaram o veículo que transportava os amigos
no espaço. Esta alegria deu lugar a uma profunda decepção,
quando, fiando-se em observa ções incompletas, puseram a correr
mundo a errada afirmação de que o projétil se tornara
um satélite da Lua, gravitando numa órbita imutável.

Desde aquele instante, o projétil desaparecera, desaparecimento tanto
mais explicável quanto é certo que passava, naquela altura,
por detrás do disco visível da Lua. Avalie-se então a
impaciência do impetuoso J. T. Maston e do não menos ardoroso
companheiro, quando chegou o momento em que o projétil devia reaparecer
sobre o disco visível! A cada minuto da noite procuraram avistá-lo
de novo, mas debalde! Desta frustração resultaram discussões
incessantes e violentas entre. eles. Belfast afirmava que o projétil
não estava visível, enquanto J. T. Maston sustentava que ele
?se lhe metia pelos olhos dentro!? – É o projétil! – insistiu
J. T. Maston.

– Que projétil! _? negava Belfast. – É uma avalancha que rola
por alguma montanha lunar.

– Então, vê-lo-emos amanhã.

– Não! Nunca mais o veremos1 Desapareceu no espaço.

– Sim! – Não! E naqueles momentos em que as intenções
choviam como granizo, a bem conhecida irritabilidade do secretário
do Clube do Canhão constituía um permanente perigo para o estim
ável Belfast.

Aquela existência a dois cedo se tornaria impossível se um
inesperado acontecimento não viesse cortar as constantes discussões.

Na noite de 14 para 15 de dezembro, os dois irreconciliá- veis amigos
estavam ocupados em observar o disco – lunar.

Como era hábito, J. T. Maston injuriava o sábio Belfast, que,
por seu lado, lhe respondia ao pé da letra. 0 secretário do
Clube do Canhão teimava, pela milésima vez, que tinha avistado
o projétil, acrescentando mesmo que conseguira divisar a cara de Michel
Ardan através de uma das vigias.

Em dado momento, o criado de Belfast apareceu na plataforma – eram dez horas
da noite – e entregou-lhe o telegrama enviado pelo comandante da Susquehanna.

Belfast rasgou o envelope, leu e soltou um grito.

– Hem! – fez J. T. Maston.

– 0 projétil! – E então? – Caiu na Terra! Um novo grito, um
verdadeiro urro desta vez, respondeulhe.

Belfast voltou-se para J. T. Maston. 0 infeliz, imprudentemente debruçado
no tubo de metal, desaparecera no imenso telescópio. Uma queda de duzentos
e oitenta pés! Belfast, fora de si, precipitou-se para a abertura do
refletor.

Respirou. J. T. Maston, pendurado pelo seu gancho de metal, estava suspenso
num dos esteios que mantinham o afastamento do telescópio, de onde
soltava formidáveis berros.

Belfast clamou pelos ajudantes, que não tardaram a acorrer.

Montaram talhas e içaram a custo o imprudente secret ário
do Clube do Canhão.

Um quarto de hora depois, os dois sábios desciam a vertente das Montanhas
Rochosas, e dois dias mais tarde chegavam, ao mesmo tempo que os seus amigos
do Clube do Canhão, a São Francisco.

Elphiston, o irmão de Blomsberry e Bilsby precipitaram-se ao encontro
deles, assim que chegaram.

– Que vamos fazer? – perguntaram.

– Tirar da água o projétil – respondeu J. T. Maston -, e o
mais depressa possível!

Capítulo XIV – O salvamento

O local onde o projétil se afundara estava devidamente assinalado.
Faltavam, porém, os instrumentos para o agarrar e trazer à superfície.
Era preciso concebê-los e depois fabricá-los. Os engenheiros
americanos não podiam sentirse embaraçados com tão pouco.
Estavam certos de içar o projétil, apesar do seu peso, aliás
aligeirado pela densidade do líquido em que estava mergulhado, desde
que as fateixas o fixassem e pudessem contar com a ajuda do vapor.

Não ?era, porém, suficiente pescar o projétil. Era
preciso agir quanto antes para salvaguarda dos viajantes. A ningu ém
passava pela cabeça que não estivessem ainda vivos.

– Sim! – repetia incessantemente J. T. Maston, cuja confian ça era
comunicativa -, os nossos amigos são homens hábeis, e não
podem ter caído como tolos. Estão vivos e bem vivos, mas é
preciso que nos apressemos para os encontrar com vida. Não são
os víveres nem água que me preocupam. Um nos de sobral Mas o
ar, o ar. Não tarda que o ar lhes falte. Vamos! Depressa! Depressa!
E a verdade é que andavam todos numa roda-viva. Adaptou- se a Susquehanna
ao seu novo fim. Prepararam-se as suas poderosas máquinas de molde
a acionar os cabos destinados a içar o projétil. Este, sendo
de alumínio, pesava apenas dezenove mil duzentas e cinqüenta libras,
peso muito inferior ao do cabo que foi levantado em condições
idênticas. A única dificuldade consistia, portanto, em agarrar
um projétil cilindro cônico, cujas paredes, lisas, toma vam a
operação bastante complicada.

Com este fim, o engenheiro Murchison, que acorrera a São Francisco,
construiu enormes arpéus dotados de um sistema automático, que,
se lograssem agarrar o projétil com as suas possantes tenazes, não
mais o largariam. Preparou, também, escafandros, de tal forma impermeáveis
e resistentes, que permitiam aos mergulhadores reconhecer o fundo do mar.
Fez igualmente embarcar na Susquehanna aparelhos de ar comprimido, de uma
concepção muito engenhosa.

Eram verdadeiras câmaras com muitas vigias, e que podiam descer a
grandes profundidades, através da introdução de água
em certos compartimentos. Esses aparelhos existiam já em São
Francisco, onde serviram para a construção de um dique submarino,
o que constituía, um feliz acaso, porque não teria havido tempo
para construí- los.

Não obstante, apesar da perfeição desses aparelhos,
apesar do engenho dos sábios encarregados de os utilizar, o êxito
da operação ainda não era certo. Quantas incertezas persistiam
ainda, e bem justificadas, uma vez que se tratava de trazer o projétil
de uma profundidade de vinte mil pés1 Depois, mesmo que o conseguissem,
como teriam os viajantes suportado aquele terrível choque, que nem
talvez vinte mil pés de água amorteceriam suficientemente? Importava,
em suma, trabalhar e depressa. J. T. Maston pressionava os seus operários
dia e noite. Ele estava disposto quer a envergar o escafandro, quer a experimentar
os aparelhos de ar, para ir verificar a situação dos seus corajosos
amigos.

Contudo, apesar de toda a diligência empregada na constru ção
dos diferentes engenhos, e não obstante as consider áveis somas
postas à disposição do Clube do Canhão pelo Governo
da União, passaram ainda cinco dias – cinco séculos – antes
que todos os preparativos estivessem terminados.

Durante esse período, a opinião pública subira ao rubro.
Através dos fios e dos cabos elétricos, os telegramas cruzavam
o Mundo em todas as direções. 0 salvamento de Barbicane, Nicoles
e Michel Ardan era um assunto de interesse internacional. Todos os povos que
haviam contribuído para a subscrição do Clube do Canhão
atribuí- ram um especial significado à salvação
dos viajantes.

Finalmente, as amarras, as câmaras-de-ar e os arpéus autom
áticos foram embarcados na Susquehanna. J. T. Maston, o engenheiro
Murchison e os delegados do Clube do Canh ão ocupavam já os
seus camarotes. Restava apenas partir.

A 21 de dezembro, às oito horas da noite, a corveta levantou ferro,
com mar de feição. Corria uma brisa de nordeste e fazia frio.
Toda a população de São Francisco estava apinhada no
cais, emocionada e silenciosa. Reservava as manifesta ções de
regozijo para o regresso.

Deu-se ao vapor a máxima pressão, e a hélice da Susquehanna
levou-a rapidamente para o largo.

É inútil relatar as conversas que houve a bordo entre oficiais,
marinheiros e passageiros. Todos comungavam do mesmo pensamento. Todos aqueles
corações palpitavam sob a mesma emoção.

Todavia, enquanto se corria em seu socorro, que faziam Barbicane e os companheiros?
Que lhes teria acontecido? Estariam em condições de tentar alguma
audaciosa manobra para conquistar a liberdade? Ninguém podia dizê-lo.
A verdade é que todos os meios teriam falhado! Imersa a perto de duas
léguas de profundidade, aquela prisão de metal desafiava todos
os esforços dos prisioneiros.

A Susquehanna, depois de uma veloz travessia, devia chegar ao local do acidente
às oito horas da manhã do dia 23 de dezembro. Porém,
foi necessário esperar pelo meio-dia para se obter a posição
exata. A bóia, na qual se fixara a linha da sonda, ainda não
fora avistada.

Ao meio-dia, o Capitão Blomsbeny, ajudado pelos oficiais que controlavam
a observação, calculou a sua posição na presença
dos delegados do Clube do Canhão. Houve um momento de ansiedade. Verificou-se
que a corveta estava a oeste e a escassos minutos do local exato onde o projétil
desaparecera nas ondas.

Corrigiu-se, portanto, a rota do navio, de maneira a que alcançasse
aquele ponto preciso.

Ao meio-dia e quarenta e sete minutos, localizou-se a bóia.

Estava em perfeito estado, e, por certo, pouco derivara.

– Até que enfim! – exclamou J. T. Maston.

– Podemos começar? – perguntou o Capitão Blomsberry.

– Sem perder um- segundo – respondeu J. T. Maston.

Trataram de tomar todas as precauções para que a corveta se
mantivesse em completa imobilidade.

Antes de tentar içar o projétil, o engenheiro Murchison quis
primeiro saber que posição ocupava sobre o fundo oceânico.

Os aparelhos submarinos, destinados a esta operação, receberam
o seu aprovisionamento de ar?. 0 manejo desses engenhos tinha os seus perigos,
porque, a vinte mil pés de profundidade, e sob tão consideráveis
press ões, expunham-se a rupturas cujas conseqüências seriam
desastrosas.

J. T. Maston, o irmão de Blomsberry e o engenheiro Murchison tomaram
lugar na câmara-de-ar, sem se preocuparem com os eventuais perigos.
0 comandante orientava da ponte a operação, pronto a parar ou
a içar as correntes ao menor sinal. A hélice fora desengatada,
e toda a força das máquinas estava aplicada ao cabrestante,
pelo que seria fácil trazer rapidamente para bordo todos os aparelhos.

A descida começou à uma hora e vinte e cinco minutos da tarde,
e a câmara, devido ao peso dos reservatórios, cheios de água,
desapareceu sob a superfície do oceano.

A emoção dos oficiais e dos marinheiros partilhava-se agora
entre os prisioneiros do projétil e os do aparelho submarino.

Quanto a estes, esqueciam-se de si próprios. Colados aos vidros das
vigias, observavam atentamente a massa líquida que atravessavam.

A descida foi rápida. Às duas horas e dezessete minutos, J.

T. Maston e os companheiros atingiram o fundo do Pacífico.

Mas nada viram, a não ser um árido deserto, que já
nem era animado pela fauna e flora marinhas. Á luz das lâmpadas,
dotadas de possantes refletores, podiam ver as sombrias camadas de ? água
num raio bastante extenso, mas o projétil mantinha?se invisível.

A impaciência dos audazes mergulhadores era indescritível.

Como o aparelho estava em comunicação elétrica com
a corveta, fizeram o sinal combinado, e a Susqt4eh.anna passeou a câmara
na distancia, de uma milha, suspensa a alguns metros acima do fundo.

Deste modo, exploraram toda a planície submarina, enganados a cada
instante por ilusões de ótica que lhes cortavam a respiração.
Aqui, um rochedo, além, uma intumesc ência do fundo, que se lhes
afiguravam como sendo o projétil tão procurado. Depois, no momento
seguinte, reconheciam o erro e desesperavam-se.

– Mas onde estão eles? Onde estão? – exclamava J. T.

Maston.

E o pobre homem chamava em altos gritos por Nicoles, Barbicane e Michel
Ardan, como se os seus infelizes amigos pudessem ouvi-lo ou responder-lhe
através daquele impenetr ável meio! A pesquisa continuou nessas
condições, até o momento em que o ar do aparelho, viciado,
obrigou os mergulhadores a subir. Começaram a içá-lo
por volta das seis horas da tarde, e só à meia-noite a operação
terminou.

– Amanhã continuamos – disse J. T. Maston, quando pisou a coberta
da corveta.

Sim – respondeu o Capitão Blomsberry. Mas em outro local.

De acordo.

J. T. Maston continuava a acreditar no êxito das buscas, enquanto
os companheiros, a quem já ia esmorecendo o entusiasmo das primeiras
horas, compreendiam a enorme dificuldade da empresa. 0 que parecia fácil
em São Francisco tornava-se ali, em pleno oceano, quase irrealizável.
As probabilidades de êxito diminuíram numa grande propor- ção.
Só o acaso podia ajudá-los a encontrar o projétil.

No dia seguinte, 24 de dezembro, não obstante as fadigas da véspera,
retomou-se a operação. A corveta deslocouse alguns minutos para
oeste, e o aparelho, cheio de ar, levou os mesmos exploradores para as profundezas
do oceano.

0 dia inteiro foi passado em infrutíferas buscas. 0 leito do mar
estava deserto. 0 dia 25 nada trouxe de novo. 0 dia 26 também não.

Era desesperador. Todos pensavam naqueles desventurados, encerrados no projétil
há vinte e seis dias! Talvez que naquele momento sentissem já
os primeiros sintomas de asfixia, se é que tinham escapado à
formidável queda. 0 ar esgotava-se, e, sem dúvida, com ele a
coragem, o ânimo.

– 0 ar é possível – considerava teimosamente J. T. Maston
– , mas o ânimo nunca.

A 28, após mais dois dias de buscas, perdera-se toda a esperança.
0 projétil era um átomo na imensidade do mar.

Havia que renunciar a encontrá-lo.

Entretanto, J. T. Maston não, queria ouvir falar em renúncia,
em partida. Não queria abandonar o local sem, pelo menos, ter avistado
o túmulo dos seus amigos. Mas o comandante Blomsberry não podia
ceder a essa obstinação, pelo que, a despeito das reclamações
do digno secretário, deu ordem de aparelhar.

As nove horas da manha do dia 29 de dezembro, a Susquehanna, virando a proa
a nordeste, retomou a rota da bala de São Francisco.

Eram dez horas da manhã. A corveta afastava-se em velocidade moderada,
como que com pena, do lugar da cat ástrofe, quando o marinheiro que
estava sentado nas barras do joanete, e que observava o mar, gritou de súbito:
– Bóia a sotavento! Os oficiais olharam na direção indicada.
Com os seus óculos, viram que o objeto assinalado tinha, de fato, o
aspecto dessas bóias que servem para balizar os canais das balas e
dos rios. Mas, pormenor singular, tinha no vértice do seu cone, que
emergia da água cinco a seis pés, uma bandeira que flutuava
ao vento. A bóia- resplandecia ao sol, como se as suas paredes fossem
feitas de chapas de prata.

0 Comandante Blomsberry, J. T. Maston e os delegados do Clube do Canhão
subiram à ponte e examinaram aquele objeto errante que vogava sobre
as ondas.

Olhavam todos com uma febril ansiedade, mas em silêncio.

Ninguém ousava dar voz ao pensamento que atravessava o espírito
de todos.

A corveta aproximou-se a menos de duzentas e quarenta braças do objeto.

Um frêmito perpassou por toda a tripulação. A bandeira
da bóia era a americana.

Ouviu-se então um verdadeiro rugido. Era o bravo J. T.

Maston que acabava de cair como uma massa. Esquecendo, por um lado, que
o seu braço direito fora substituído por um gancho de ferro,
e, por outro, que um simples barrete de guta-percha lhe protegia a – caixa
craniana, acabava de vibrar na própria cabeça uma formidável
pancada.

Precipitaram-se para ele. Levantaram-no. Fizeram com que recuperasse os
sentidos. E quais foram as suas primeiras palavras? – Ali!, grandes brutos1
Grandíssimos idiotas. Refinadíssimos ignorantes que nós
somos.

– O que há?… perguntava-se à sua volta.

– Mas, por favor, explique-se…

0 que há, grandes imbecis – berrou o terrível secretário
-, o projétil pesa apenas dezenove mil duzentas e cinqüenta libras!
– E então? – E que só desloca vinte e oito toneladas, ou seja,
cinqüenta e seis mil libras, e que, conseqüentemente, flutua! Ali!,
como o digno homem sublinhou o verbo flutuar. E era a verdade! Todos, todos
aqueles sábios se haviam esquecido dessa lei fundamental: mercê
do seu menor peso espec ífico, o projétil, depois de ter sido
levado pela queda até às maiores profundidades do oceano, devia
naturalmente voltar à superfície! E agora flutuava tranqüilamente
ao sabor das ondas…

Lançaram-se as embarcações ao mar. J. T. Maston e os
seus amigos precipitaram-se nelas. A emoção estava no auge.
Os corações palpitavam, enquanto os escaleres avan- çavam
para o projétil. Que conteria ele? Vivos ou mortos? Vivos, vivos, a
menos que a morte tivesse levado Barbicane e os dois companheiros depois de
terem arvorado a bandeira.

1 Pairava um profundo silêncio sobre os escaleres. Todos os corações
palpitavam. Os olhos não viam. Uma das vigias do, projétil estava
aberta. Alguns pedaços de vidro, que restavam no caixilho, provavam
que a vidraça fora quebrada.

A vigia estava então a cinco pés do nível da água.

Um dos escaleres acostou ao projétil, o de J. T. Maston.

Este precipitou-se para a vidraça quebrada…

Naquele momento, ouviu-se uma voz alegre e clara, a voz de Michel Ardan,
que exclamava em tom de vitória: – Tudo bem, Barbicane. Tudo bem! Barbicane,
Michel Ardan e Nicoles jogavam dominó.

Capítulo XV – Para terminar

não está esquecida, decerto, a enorme simpatia que envolvera
os três viajantes quando da sua partida. Se no come ço da empresa
causaram tal emoção no Velho e no Novo Mundo, qual seria o entusiasmo
que os esperava no regresso? Aqueles milhões de espectadores que na
altura invadiram a península da F16rida não se precipitariam
para rever os sublimes viajantes? Aquelas legiões de estrangeiros,
que acorreram de todos os pontos do Globo às costas americanas, deixariam
porventura o território da União sem voltarem a ver Barbicane,
Nicoles e Michel Ardan? Não, e a ardente paixão do público
iria com certeza corresponder à grandeza da empresa. Criaturas humanas
que tinham deixado o esferóide terrestre, quê regressavam depois
dessa estranha viagem, pelos espaços celestes, não podiam deixar
de ser recebidos como o será, um dia, o profeta Elias quando voltar
a descer à Terra.

Vê-los primeiro, ouvi-los depois, tal era o desejo de todos.

E este desejo seria em breve realizado pela grande maioria dos habitantes
da União.

Barbicane, Michel Ardan, Nicoles e os delegados do Clube do Canhão,
que regressaram sem demora a Baltimore, foram ali acolhidos com um entusiasmo
indescritível. Os apontamentos de viagem do presidente Barbicane estavam
prontos para ser entregues à publicidade.

0 New York Herald comprou o manuscrito por um preço ainda desconhecido,
mas cuja importância foi com certeza muito elevada. De fato, durante
a publicação da Viagem à Lua, a tiragem daquele jornal
ascendeu a cinco milhões de exemplares. Três dias depois do regresso
dos viajantes à Terra, os pormenores mais insignificantes da expedição
eram conhecidos. Restava apenas ver os heróis da aventura sobre- humana.

A exploração de Barbicane e dos seus amigos à volta
da Lua permitira pôr à prova as diversas teorias admitidas no
que respeita ao satélite terrestre. Aqueles sábios tinham observado
de visu, e em condições muito particulares. Sabia- se agora
quais os sistemas que deviam ser rejeitados e quais os que deviam ser admitidos,
no que respeita à forma ção, à origem e à
habitabilidade daquele astro. 0 seu passado, o seu presente e o seu futuro
tinham mesmo desvendado os seus últimos segredos. Que se podia objetar
a observadores conscienciosos, sabendo-se que haviam feito, a menos de quarenta
quilômetros, um levantamento dessa curiosa Montanha de Ticho, a mais
estranha do sistema orográfico lunar? Que responder àqueles
sábios, cujos olhares mergulharam nos abismos do Círculo de
Platão? Como contradizer aqueles audaciosos aventureiros, que os acasos
de uma experiência levaram acima dessa face invis ível do disco,
que até então nenhum olhar humano vira? Cabia-lhes agora o direito
de impor os limites a essa ciência selenográfica que recompusera
o mundo lunar, como Cuvier o esqueleto de um fóssil, e de dizer: ?A
Lua foi um mundo habitável e habitado antes da Terra! A Lua é
um mundo inabitável e agora desabitado!? Para festejar o regresso do
mais ilustre dos seus membros e dos seus dois companheiros, o Clube do Canhão
pensou em organizar um banquete, mas um banquete digno daqueles triunfadores,
digno do povo americano, e em tais condições que todos os habitantes
da União pudessem tomar parte nele.

Todos os grandes terminais de estradas de ferro foram ligados entre si por
meio de carris volantes. Depois, em todas as gares, embandeiradas com as mesmas
bandeiras, decoradas com os mesmos ornatos, armaram-se mesas uniformemente
guarnecidas. A determinadas horas, calculadas com- exatidão e indicadas
em relógios elétricos que estavam certos até o segundo,
a população foi convidada a tomar lugar às mesas do banquete.

Durante quatro dias, de 5 a 9 de janeiro, os trens pararam, como é
normal acontecer aos domingos na União, e todas as vias ficaram livres.

Só a uma locomotiva muito rápida, que puxava, um vagão
de honra, foi permitido circular durante aqueles quatro dias nas linhas das
estradas de ferro dos Estados Unidos.

Na locomotiva, conduzida por um maquinista e o foguista, ia também,
por especial deferência, o digno J. T. Maston, secretário do
Clube do Canhão.

0 vagão fora reservado ao Presidente Barbicane, ao Capit ão
Nicoles e a Michel Ardan.

Ao silvo da máquina, depois dos burras e de todas as onomatopéias
de admiração da língua nativa, o trem deixou a gare de
Baltimore, atingindo em breve uma velocidade de oitenta léguas por
hora. Mas o que. era esta velocidade comparada com, a que alcançaram
os três heróis ao sair do columbiad? Desse modo, foram de uma
cidade a outra encontrando as populações à mesa, que
os saudavam com as mesmas aclamações e os mesmos bravos. Percorreram
o Leste da União, atravessando a Pensilvânia, o Connecticut,
o Massachussetts, o Vermont, o Maine e a Nova Brunswick; o Norte e o Oeste,
passando por Nova Iorque, Ohio, Michigan e Wisconsin; desceram para o Sul
pelo Ilinóis, Missuri, Arkansas, Texas e Luisiana; correram ao Sudeste
pelo Alabama e a Flórida; voltaram a subir pela Geórgia e pelas
Carolinas; visitaram o centro pelo Tennessee, Kentucky, Virgínia e
Indiana; e, finalmente, uma vez passada a estação de Washington,
regressaram a Baltimore.

Durante quatro dias, puderam os três amigos acreditar que os Estados
Unidos estavam à mesa de um único e enorme banquete, para os
saudar em uníssono e com os mesmos hurras! A apoteose era digna daqueles
heróis que a Fábula teria guindado às fileiras dos semideuses.

Contudo, conduzirá a algum resultado prático essa experi-
ência sem precedentes nos anais das viagens? Estabelecer- se-ão
alguma vez comunicações diretas com a Lua? Criar-se-á
um serviço de navegação através do espaço,
para servir a circulação no mundo solar? Ir-se-á de um
planeta a outro, de Júpiter a Mercúrio, ou, mais tarde, de uma
estrela a outra da Polar a Sírio? Descobrir-se-á um meio de
locomoção que permita visitar esses sóis que abundam
no firmamento? A estas perguntas ninguém poderá responder. Mas,
conhecendo- se o audacioso engenho da raça anglo saxônica, ningu
ém por certo se espantará que os americanos procurem tirar o
melhor partido da experiência do Presidente Barbicane. .

A verdade é que, algum tempo depois do regresso dos viajantes, o
público acolheu muito favoravelmente os anúncios de uma sociedade
em comandita (limited), com um capital de cem milhões de dólares,
dividido em cem mil ações de mil dólares cada. Denominava-se
Sociedade Nacional de Comunicações Interestelares e tinha Barbicane
por presidente, o Capitão Nicoles por vice-presidente, J. T.

Maston por secretário da administração e Michel Ardan
por diretor da circulação.

E, como o temperamento americano gosta, no que toca a negócios, de
prever tudo, mesmo a falência, foram antecipadamente designados para
juiz-comissário o digníssimo Harry Troloppe e Francis Dayton
para síndico!

FIM

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