As Pupilas do Senhor Reitor

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Júlio Dinis

Capítulo I

José das Dornas era um lavrador abastado, sadio e de uma tão
feliz disposição de gênio, que tudo levava a rir; mas
desse rir natural, sincero e despreocupado, que lhe fazia bem, e não
do rir dos Demócritos de todos os tempos – rir céptico, forçado,
desconsolador, que é mil vezes pior do que o chorar.

Em negócio de lavoura, dava, como se costuma dizer, sota e ás
ao mais pintado. Até o Sr. Morais Soares teria que aprender com ele.
Apesar dos seus sessenta anos, desafiava em robustez e atividade qualquer
rapaz de vinte. Era-lhe familiar o canto matinal do galo, e o amanhecer já
não tinha para ele segredos não revelados. O sol encontrava-o
sempre de pé, e em pé o deixava ao esconder-se.

Estas qualidades, juntas a uma longa experiência adquirida à
custa de muito sol e muita chuva em campo descoberto, faziam dele um lavrador
consumado, o que, diga-se a verdade, era confessado por todos, sem esforço
de malquerenças e murmurações.

Diz-se que quem mais faz menos merece e que mais vale quem Deus ajuda do
que quem muito madruga, e não sei o que mais; será assim; mas
desta vez parecia que se desmentira o ditado, ou pelo menos que o fato das
madrugadas não excluíra o auxílio providencial, porque
José das Dornas prosperava a olhos vistos. Ali por fins de agosto era
um tal de entrar de carros de milho pelas portas do quinteiro dentro! S. Miguel
mais farto poucos se gabavam de ter. Que abundância por aquela casa!
Ninguém era pobre com ele; louvado Deus!

Como homem de família, não havia também que por a boca
em José das Dornas. Em perfeita e exemplar harmonia vivera vinte anos
com sua mulher, e então, como depois que viuvara, manifestou sempre
pelos filhos uma solicitude, não revelada por meiguices – que lhe não
estavam no gênio – mas que, nas ocasiões, se denunciava por sacrifícios
de fazerem hesitar os mais extremosos.

Eram dois estes filhos – Pedro e Daniel. Pedro, que era o mais velho, não
podia negar a paternidade. Ver o pai era vê-lo a ele; a mesma expressão
de franqueza no rosto, a mesma robustez de compleição, a mesma
excelência de musculatura, o mesmo tipo, apenas um pouco mais elegante,
porque a idade não viera ainda curvatura de certos contornos e ampliar-lhe
as dimensões transversais, como já no pai acontecia. Conservava-se
ainda correto aquele vivo exemplar do Hércules escultural.

Pedro era, de fato, o tipo de beleza masculina, como a compreendiam os antigos.
O gosto moderno tem-se modificado, ao que parece, exigindo nos seus tipos
de adoção o que quer que seja de franzino e delicado, que não
foi por certo o característico dos mais perfeitos homens de outras
eras.

A organização talhara Pedro para a vida de lavrador, e parecia
apontá-lo para suceder ao pai no amanho das terras e na direção
dos trabalhos agrícolas.

Assim o entendera José das Dornas, que foi amestrando o seu primogênito
e preparando-o para um dia abdicar nele a enxada, a foice, a vara, a rabiça,
e confiar-lhe a chave do cabanal, tão repleto em ocasiões de
colheita.

Daniel já tinha condições físicas e morais muito
diferentes. Era o avesso do irmão e por isso incapaz de tomar o mesmo
rumo de vida.

Possuía uma constituição quase de mulher. Era alvo e
louro, de voz efeminada, mãos estreitas e saúde vacilante.

O sangue materno girava-lhe mais abundante nas veias, do que o sangue cheio
de força e vida, ao qual José das Dornas e Pedro deviam aquela
invejável construção.

Votar Daniel à vida dos campos seria sacrificá-lo. Apertava-se
o coração do pobre pai, ao lembrar-se que os sóis ardentes
de julho ou os tufões regelados de dezembro haviam de encontrar sem
abrigo aquela débil criança, que mais se dissera nascida e criada
em berços almofadados e sob cortinados de cambraia, do que no leito
de pinho e na grosseira enxerga aldeã.

E desde então, desde que pensou nisto, um idéia fixa principiou
a laborara no cérebro daquele pai extremoso e a monopolizar-lhe as
poucas horas que o trabalho não absorvia.

De vez em quando o encontravam os amigos deveras preocupado, o que, sendo
nele para estranhar, excitava curiosidades e receio e desafiava interrogações.

O reitor foi um dos que mais se importou com a preocupação
do nosso homem.

Era este reitor um padre velho e dado, que há muito conseguira na
paróquia transformar em amigos todos os fregueses. Tinha o Evangelho
no coração – o que vale muito mais ainda do que tê-lo
na cabeça.

A qualidade de egresso não tolhia os ser liberal de convicção.
Era-o como poucos.

— Ó homem de Deus – disse pois o reitor um dia, resolvido deveras
a sondar as profundezas daquele mistério – que tens tu há tempos
a esta parte? Que empresa é essa em que me andas a cismar há
tantos dias?

— Que quer, Sr. Padre Antônio? um homem de família tem
sempre em que cuidar; tem a sua vida e tem a dos filhos.

Foi a resposta que obteve.

— Ora essa! – insistiu o padre – Bem alegre te via eu, em tempos mais
azados para tristezas, e bem alegres vejo muitos com bem outras razões
para o contrário. Mas tu! Que mais queres? Tens bons haveres para deixares
a teus filhos.; mas, quando não os tivesses, sempre eram dois rapazes;
e deixa lá, José; um homem é outra coisa que não
é uma mulher; onde quer se arranja; toda a terra é sua; em toda
a parte encontra o que fazer, e qualquer trabalho lhe está bem. Agora
os pobres que vejo por ai com um rancho de raparigas, coitadinhas, que ficam
mesmo ao desamparo de todo, se a sorte lhes roubar o pai… esses, sim, é
que não sei como podem ter um momento de alegria; e contudo encontrá-los
nas festas, que é um louvar a Deus.

— É assim, Sr. Reitor, eu sei que os há por aí
mais infelizes do que eu, mas…

— Mas então, quem tem saúde e a quem Deus não
falta com o pão nosso cotidiano, só deve erguer as mãos
ao céu para lhe tecer louvores. Mareia a tua vida, que teus filhos
não são nenhuns aleijados para precisarem pedir esmolas.

— Graças a Deus que não são, Sr. Reitor. O Pedro,
sobretudo, não me dá cuidados. O Senhor fê-lo robusto
e fero; é um homem para o trabalho; e quem pode trabalhar não
precisa de outra herança. Pelo trabalho, e com a ajuda de Deus, fiz
eu esta minha casa, que não é das piores, vamos; ele, com menos
custo, a pode agora aumentar, se quiser. Mas o Daniel já não
é assim. Aquilo é outra mãe – o Senhor a chame lá.
Um dia de ceifa é bastante para mo matar. É a sorte dele que
me dá cuidado.

— Então é só isso? Ora valha-te Deus! É verdade.
O pequeno é fraquito e decerto não pode com o trabalho do campo,
mas… para que queres tu o dinheiro, José? Acaso não terás
alguns centos de mil-réis ao canto da caixa para pôr o rapaz
nos estudos? Não podes fazer dele um lavrador? Fá-lo padre,
letrado ou médico, que não ficarás pobre com a despesa.

José das Dornas ao ouvir assim formulado o conselho do reitor sorriu
com a visível satisfação que sempre experimentamos, vendo
que um dos nossos pensamentos favoritos merece a aprovação de
alguém, antes de lho revelarmos.

— Nisso mesmo penava eu. Já me lembrou mandá-lo estudar,
mas tinha cá certos escrúpulos.

— Escrúpulos! Valha-te não sei que diga! Pois ainda és
desses tempos? Que escrúpulos podes ter em mandar ensinar teus filhos?
Fazes-me lembrar um tio meu que nunca permitiu que as filhas aprendessem a
ler; como se pela leitura se perdesse mais gente do que pela ignorância.

— Não é isso, Sr. Padre Antônio, não é
isso o que eu quero dizer; mas custa-me dar a meus filhos uma educação
desigual. Vê Vossa Senhoria. São irmãos e , mais tarde,
o que tomar melhor carreira e se elevar pelo estudo, há de desprezar
o que seguir a vida do pai, a ponto de que os filhos dum e doutro quase não
se conhecerão: é o que mais vezes se vê. Não é
uma injustiça que faço a Pedro a educação que
der a Daniel?

— Homem de Deus, não há desigualdade verdadeira, senão
a que separa o homem honrado do criminosos e mau. Essa sim, que é estabelecida
por Deus, que, na hora solene, extremará os eleitos dos réprobos.
Educa bem os teus filhos em qualquer carreira em que os encaminhes; educa-os
segundo os princípios da virtude e da honra, e não os distanciará,
acredita; porque, cumprindo cada um com o seu dever, serão ambos dignos
um do outro e prontos apertarão as mãos onde quer que se encontrem.
E no sentido mundano, julgas tu que fazes mais feliz Daniel, por o elevares
a uma classe social acima da tua! Aí, homem, como viver enganado! o
quinhão de dores e provações foi indistintamente repartido
por todas as classes, sem privilégio de nenhuma. Há infortúnio
e misérias que causam o tormento dos grandes e poderosos, e que os
pobres e humildes nem experimentam, nem imaginam sequer. Grande nau grande
tormenta: hás de ter ouvido dizer. Sabes que mais José? – concluiu
o reitor – manda-me o rapaz lá por casa, que eu lhe irei ensinado o
pouco que sei do latim, e deixa-te de malucar!

Com estas e idênticas razões foi o bom do padre convencendo
José das Dornas, que nada mais veementemente desejava do que ser convencido
– e, decorridos oito dias, via-se já Daniel passar, com os livros debaixo
do braço, a caminho da casa do reitor.

Capítulo II

— Ó ti’Tomásia – dizia, ao vê-lo passar, uma velha
que, sentada ao soalheiro, fiava, rezava padre-nossos e cabeceava com sono
– o pequeno do José das Dornas anda agora nos estudos?

— Pois não sabe que o pai o quer pôr a padre? – respondeu
a vizinha da porta de cima, ao passo que desenredava uma meada e fazia soltar
à dobadoura os mais inarmônicos gemidos.

— Toma que te dou eu! A coisa vai ser grande então!

— Bem se diz: mais anda quem tem o bom vento, do quem muito rema. Verá
você, ti’Custódia, que o Pedro, que se mata com trabalho, há
de ter sempre vida de galés, sem nunca levantar cabeça; e o
pelém do irmão é que há de pimpar de senhor e
dar leis em casa.

— Uma coisa assim! Já agora havia mister de um senhor abade
ou cônego na família! Ora este mundo sempre está!.

— E então veja que padre aquele! A mim não me engana
a pinta. É de boa raça. Não tem dúvida nenhuma.

— Sai ao lado da mãe, vizinha. Lembra-se do tio dele – o Joaquim
do Morgado? – Que menino!.

A inflexão com que este – que menino! – foi pronunciado era altamente
significativa. É de crer que o referido Joaquim do Morgado, cunhado
de José das Dornas, deixasse indeléveis recordações
entre as mulheres de sua época.

— Se me lembra! Aquilo era uma coisa por maior. Bastava dar-lhe um
pouco de trela, que ele aí estava! Nanja eu, comigo nunca ele fez farinha.

E dizendo isto, desviava a cara a abaixava-se para apanhar o novelo que deixara
cair, enquanto a vizinha fazia um gesto e resmoneava um aparte ininteligível,
que ambos pareciam contrariar a última asserção da velha
e pôr em dúvida a sua apregoada isenção de outros
tempos.

— Nem comigo, ti’Tomásia – disse, em tom já elevado,
esta do aparte – nem comigo, que ele bem sabia com quem se metia.

Desta vez, gesto e aparte pertenceram à outra interlocutora, e tinham
a mesma significação.

É certo, porém, que Daniel ia andando com seu latim e, dentro
em pouco tempo, já papagueava os substantivos e os adjetivos com incrível
e surpreendente velocidade.

José das Dornas divertia-se excessivamente a ouvi-lo. As declinações
ditas pelo filho em voz alta "lá lhe caiam no goto" como
ele dizia; e já procuravam imitá-lo nas suas horas de bom humor,
que, segundo já afirmamos, eram numerosas.

— Dize lá, rapaz, dize lá. Então como é?
Como é? Altrotoro, altrotoro, altrotoro. Ó tranca, ó
trinque, ai, diabos, diabos, diabos. Ah! Ah! Ah! Ora dize lá, rapaz,
dize lá.

E Daniel principiava a repetir as lições acompanhado das gargalhadas
de José das Dornas que, sem o saber, ia demonstrando com o exemplo
um grande preceito de instrução, tantas vezes recomendado: –
o de vencer, pelo estímulo do agradável, o fastio que acompanha
o estudo. De fato, a facilidade com que Daniel retinha já as enfadonhas
lições da arte do Padre Pereira era em parte devida à
maneira por que lhas amenizavam estes gracejos do pai; quanto mais arrevesados
eram os nomes, com mais vontade os decorava Daniel, para despertar com eles
a estranheza e hilaridade paternas.

Que estrondosas gargalhadas se não deram na noite em que repetia em
voz alta a declinação do relativo Qui e seus compostos!

— Ora essa! – dizia José das Dornas – que vem cá a ser
isso? Qui, qui, qui, qui… Ai que o Sr. Reitor quer ensinar-me ao filho a
língua dos cevados!

E toda a família desatava a rir, e Daniel mais que todos.

E assim procedia o menino Daniel nos seus estudos com grande aprazimento
do reitor, que muitas vezes dizia ao pai, em tom confidencial.

— Sabes que mais, José? O rapaz é esperto, e era até
um pecado desviá-lo do estudo, para que tem tanta queda. Olha que me
estudou as linguagens em oito dias!

José das Dornas não podia avaliar ao certo e gênero e
grau de dificuldade que vencera o filho; mas entendeu, lá de si para
si, que fora alguma coisa de heróico, e nesse dia não pode deixar
de olhar para o rapaz como se ele tivesse no rosto o que quer que fosse de
estranho – a auréola dos predestinados para grandes coisas.

— E então, Sr. Reitor – perguntou ele um dia ao mestre – o pequeno
vai bem?

— Otimamente. O Sulpicio para ele é já como água
de unto. Qualquer dia passo-o para o Eutrópio e dentro em pouco para
o Cornélio.

Estas sucessivas passagens do Sulpicio para o Eutrópio, e do Eutrópio
para o Cornélio, impressionaram profundamente José das Dornas.

Lá lhe pareceu aquilo uma façanha ginástica admirável.

— Faremos dele um padre Sr. Reitor?

— Que dúvida? E um padre às direitas.

Ora aqui é que o bom do pároco se enganava, como, pouco tempo
depois, ele próprio reconheceu.

Foi o caso que, ai por volta de um ano depois que o Daniel principiara os
estudos – tinha ele então doze para treze anos – começou o reitor
a observar que o rapaz lhe vinha um pouco mais tarde para a lição.
Ao princípio eram cinco, dez minutos, um quarto de hora de diferença.
Depois cresceu a demora a vinte, vinte cinco minutos, meia hora, e o padre
pôs-se a parafusar:

— Já não me vai parecendo bem a história. Dar-se-á
o caso que o rapaz me ande por aí a garotar? Se eu o sei! E então
que ia tão bem! Deixa-o vir, que eu sempre hei de querer saber o que
isto é. Nada, não vamos assim à minha vontade. Deixa-o
vir.

Se bem o pensou, melhor o fez. Chegou o pequeno, todo ofegante e suado, como
quem viera às carreiras, e o reitor, fitando-o com olhar severo e penetrante,
disse-lhe antes de lhe dar as bênçãos, que ele, de chapéu
na mão, lhe pedia:

— Olha cá, Daniel; donde vens tu a estas horas?

O rapaz fez-se vermelho como um lacre, e não atinou com a resposta.
Ficou-se a coçar na cabeça, a encolher-se, a engolir em seco,
a rosnar não sei o quê, e … mais nada.

— Anda que eu desconfio que me vais saindo garoto. E, se assim é,
tens que ver comigo. Grandessíssimo brejeiro! Teu pais manda-te para
o estudo ou para andares jogando pedra com a outra canalha?

— Eu não andei jogando pedra, não senhor! – exclamou
Daniel com uma tão eloqüente vivacidade que, sem possível
ilusão, atestava que ele não mentia.

— Então que fez vossemecê até estas horas?

Nova confusão do rapaz.

— Eu hei de saber; hei de mandá-lo vigiar, e depois direi a
seu pai.

Nos quinze dias que se seguiram a esta cena, Daniel foi pontual às
horas da escola. O reitor estava satisfeito com a emenda do rapaz, e lisonjeado,
lá muito para si, com o seu poder persuasivo e a conversão que
operava com uma simples admoestação.

Ao fim de duas semanas encontrou-se por acaso com José das Dornas,
e já não se lembrava até de lhe fazer queixa do filho,
que assim entrara obediente no bom caminho do dever. José das Dornas,
porém, é que se mostrava preocupado. Quanto mais o padre lhe
gabava a habilidade de Daniel, tanto mais o bom homem parecia constrangido,
limitando-se a soltar uns ininteligíveis monossílabos em sinal
de aprovação.

— Que tens tu, José? A modo que te estou estranhando! – exclamou
o reitor, já um pouco impaciente.

— É que, Sr. Padre Antônio, eu… a falar a verdade…
queria dizer-lhe uma coisa.

— Pois dize, homem, dize para ai. Então deste agora em fazer
cerimônias comigo?

— Eu sei o grande favor que o Sr. Reitor me faz ensinando o pequeno…

— Bem, bem, adiante; deixemo-nos agora disso. Se eu o ensino, é
porque quero e gosto. O que estimo é que ele aproveite, como de fato
aproveita; o mais são histórias.

— Pois muito agradecido. Mas dizia eu… sim… custa-me a explicar…

— Com S. Pedro! Fala, homem, dize lá o que tens a dizer.

— É que o rapaz a modo que é fraquito, e então…

— E então o quê ?

— Tenho medo que, estudando demais, me adoeça por aí,
e …

— Mas ele estuda demais?

— Não, senhor; mas… sim… queria eu dizer, que talvez fosse
bom que o Sr. Reitor o demorasse menos na aula. Digo eu isto, mas se vir que…

— Sim, sim, mas então… vamos a saber, então ele demora-se
muito?

— Não digo que seja muito. Tudo é necessário,
bem sei…Mas… quero eu dizer… para quem é fraco como ele… Como
sai às duas horas e vem só às trindades… e às
vezes à noite fechada…

O Reitor ficou como se lhe caíra o coração aos pés,
ficou… – diga-se a frase, visto que a autorizou quem podia – ficou desapontado.
Das duas horas às trindades, e à noite cerrada, às vezes,
quando ele lhe entrava em cada às três e lhe saia pouco depois
das cinco! Tinha assim o padre de modificar duplamente o seu juízo
– quanto ao rapaz e quanto a si – descrendo da conversão do primeiro
e do seu próprio poder de catequese. Este sacrifício em duplicado,
custou-lhe e conservou-o por algum tempo mudo. Esteve para contar ao pai a
história toda, mas calou-se. Tinha um coração generoso
afinal de contas e compreendeu que a revelação, iria afligir
o velho.

— Tens razão, homem – limitou-se pois a dizer – Tens razão.
O rapaz há de sair mais cedo. Eu olharei por isso. Mais alguns dias
só, para chegar cá a um ponto que eu quero, e depois será
como dizes.

E lá consigo dizia o bom padre.

— Deixa estar, meu Danielzinho, que eu hei de saber por onde tu me
vais, depois que te mando embora. Deixa estar, deixa, que me não tornas
a enganar, meu menino.

E foi para casa com firme resolução de elucidar este negócio.

Capítulo III

No dia seguinte deu Daniel a lição de costume, e às
cinco horas recebeu ordem de se retirar, – ordem cuja execução,
como era natural, não se fez esperar muito.

Ele a voltar costas, e o reitor a pôr o chapéu na cabeça
para lhe ir na pista.

A tarefa não era fácil; basta lembrar-mos da agilidade de Daniel,
natural à sua idade, e compará-la com os já trôpegos
movimentos do velho padre, que, com a pressa que levava, impelia diante de
si todas as pedras soltas do caminho.

Foi seguindo direito pelas ruas que o conduziam a casa de José das
Dornas e perguntando a quantos conhecidos encontrava, sentados pelas portas
ou debruçados nas janelas, se tinham visto passar o pequeno. Por muito
tempo foram as respostas afirmativas, o que satisfazia o reitor, pois indicavam-lhe
que, até aquele ponto, o rapaz não se havia extraviado, deixando
de seguir o caminho de casa.

Chegou, porém, a um largo, onde desembocavam diferentes ruas e azinhagas,
e as coisas mudaram então de face.

O reitor continuando a seguir seu sistema de indagações, tomou
a direção que devia ser mais prontamente o pequeno Daniel aos
lares paternos.

A porta duma casa térrea, que havia na esquina, dobava uma velha,
a qual, ao ver aproximar-se o reitor, ergueu-se, com toda a cortesia da cadeira
em que estava sentada.

— Muito boas tardes, tia Bernarda. Diga-me, viu passar por aqui o pequenito
do José das Dornas?

— Nosso Senhor venha na companhia de V.S.ª. Pois nada, não
senhor, Sr. Reitor. O rapazito passava dantes por aqui todas as tardes; mas
haverá coisa de quinze dias, ou três semanas, que já o
não tenho visto.

O reitor pôs-se a coçar na orelha. O delito começava
a fazer-se evidente.

— Esta agora – murmurava ele deveras zangado, e depois acrescentou
mais alto: – E eu que me esqueci de lhe dar um recado para o pai! Diacho!

— Se V.S.ª. quer, eu mando lá a minha neta.

— Nada, não; obrigado. A coisa também tem tempo. Fique-se
com Deus, tia Bernarda, e agradecido.

— Nanja por isso, meu senhor – E a velha fez reverência.

— Temos história – dizia o reitor, franzindo o sobrolho e tomando
por outro dos caminhos que comunicavam com o largo. – Perguntemos aqui – e
parou junto dum alpendre rústico, debaixo do qual estava sentado um
velho quase paralítico, que procurava nos raios do sol o calor que
lhe escasseava nos membros, já regelados pela idade.

— Boas tardes, tio Bonifácio – disse o reitor, elevando a voz
e parando defronte dele.

— Sr. Padre Antônio, um criado de V. Rev.ma.

— Sabe me dizer, tio Bonifácio, se o pequeno do José
das Dornas passou há pouco tempo por aqui?

O velho, já meio surdo, fez repetir a pergunta em tom mais elevado,
e depois dum momento de silêncio, durante a qual pareceu interrogar
a memória, já perra e enfraquecida.

— Sim senhor, vi – respondeu, acenando afirmativamente com a cabeça
– Vi sim senhor. Passou aqui com os bois, há meia hora.

— Com os bois!… Aí, esse é o Pedro. Falo no pequeno:
no Daniel.

— Ah!… nada… esse… ah! sim, sim… um que anda nos estudos?

— Esse mesmo.

— Sim, pelos modos que… agora neste instante passou ele a correr,
para o lado dos açudes.

— Obrigado, tio Bonifácio.

— O mafarrico do rapaz que terá para fazer do lado dos açudes?
– dizia o padre consigo, tomando a direção indicada. Efetivamente
pelo novo caminho que seguia, iam-lhe dando informações de Daniel,
acrescentando de mais a mais, que, havia coisa de duas semanas, era ele certo
por ali todas as tardes.

O reitor dava-se a perros, para atinar com o motivo de semelhante rodeio.

— Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo! Para que virá
o rapaz dar esta esquisita volta?

De certo ponto por diante faltaram-lhe as informações, porque
o sítio tornava-se quase despovoado.

A tarde ainda estava longe do seu fim; mas umas nevoazitas começavam
a levantar-se dos campos e lameiros, e o reitor, que tinha o seu reumático
a atender, já ia perdendo grande parte daquele fogo com que encetara
a pesquisa.

No meio dum estreito e alagado caminho, que seguia tortuosamente por entre
dois campos de centeio, parou e entrou a refletir:

— O rapaz sumiu-se. Para o ir procurar assim à toa e a estas
horas do dia não estou eu. Vão lá atrás do homem
da capa preta. Quem sabe onde o diabrete foi dar agora consigo? O pai que
o procure que tem obrigação disso. O melhor é retirar
em boa ordem, antes que venha o frio da noite.

Já se preparava para seguir o prudente conselho, que a si próprio
acabava de dar, quando lhe despertou a atenção um assobio agudo
e vibrante, cujo timbre lhe era tão conhecido como a toada da cantiga
que executava.

— Olá – disse o reitor, parando equilibrado sobre duas alpondras
no meio do lamaçal do caminho – Moiro na costa, ou eu me engano muito!

Pôs-se a escutar de novo, e cada vez mais parecia confirmar as suas
suspeitas, acabando de se convencer de todo, quando, ao assobiar, sucedeu
uma voz infantil, que ele logo reconheceu como a do discípulo, cantando,
ainda na mesma toada, que era de uma música popular, as seguintes coplas:

Morena, Morena
De olhos castanhos
Quem te deu, morena,
Encantos tamanhos?

Encantos tamanhos
Não vi nunca assim
Morena, morena,
Tem pena de mim.

Morena, morena,
De olhos rasgados
Teus olhos, morena,
São os meus pecados.

São os meus pecados
Uns olhos assim
Morena, morena,
Tem pena de mim.

Morena, morena,
Dos olhos galantes
Teus olhos, morena,
São dois diamantes.

São dois diamantes
Olhando-me assim
Morena, morena,
Tem pena de mim.

Morena, morena,
Dos olhos morenos
O olhar desses olhos
Concede-me ao menos.

Concede-me ao menos
Não sejas assim
Morena, morena,
Tem pena de mim.

– Temos o homem – disse o reitor, depois de ouvir a cantiga, e enfiou resoluto
pela rua adiante. Mas tendo dado alguns passos mais, parou como se mudasse
de tenção. –

– Nada, não convém que ele me veja. É preciso espiá-lo
sem que ele dê por isso.

Feita esta reflexão, passou um rápido exame ao terreno e retrocedeu.
Dobrou novamente a esquina da viela em que se introduzira; costeou o campo
do lado direito, até se lhe deparar uma cancela rústica, que
não lhe opôs a mínima resistência, e oculto pelo
centeio, caminhou, o mais prudentemente que pôde, até o lugar
correspondente àquele de onde partia a voz e daí por diante
até descobrir a caça que procurava. Não levou muito tempo
a realizar o seu intento.

Eis a cena que viu o reitor, acocorado ente o centeio, com a bengala fixa
no chão, mãos apoiadas na bengala, o queixo apoiado nas mãos

Capítulo IV

Defronte do campo, donde, com as melhores intenções deste
mundo, o reitor estava espionando, e separado apenas dele pela estreita e
úmida rua, de que já falamos, estendia-se um trato de terreno
inculto, muito coberto de tojo e de giestas, e dessa espontânea vegetação
alpestre, que, no nosso clima, enflora ainda mais os montes mais áridos
e bravios.

Dispersas por toda a extensão deste pasto, erravam as ovelhas e cabras
de um numeroso rebanho, de que eram os únicos guardadores, um enorme
e respeitável cão pastor e uma rapariguita de, quando muito,
doze anos de idade.

Até aqui nada de notável para o reverendo pároco.

Mas o que o maravilhou foi o grupo que formavam, naquele momento, a pequena
zagala, o cão e o nosso conhecido Daniel, por via de quem o bom do
padre empreendera tão trabalhosa excursão.

A pequena sentada junto de uma pedra informe e musgosa, folheava com atenção
um livro, dirigindo, de tempos em tempos, meios sorrisos para Daniel, que,
deitado aos pés dela, de bruços, com os cotovelos fincados no
chão e o queixo pousado nas mãos, parecia, ao contemplar embevecido
os olhos da engraçada criança, estar divisando neles todos os
dotes mencionados na canção da Morena, que lhe ouvimos cantar.

Jaziam ao lado dos dois uma roca espiada e os livros de Daniel.

Completava o grupo o cão, enroscado junto do pequeno estudante com
desassombrada familiaridade, e denunciando assim que o conhecimento entre
eles, e por conseguinte de Daniel com a pastora, não era já
de recente data.

Este grupo, apesar de toda a sua beleza artística, realçada
pelas meias tintas do crepúsculo e por o fundo alaranjado do céu,
sobre que se desenhavam os rendados das árvores ao longe, não
agradou de maneira nenhuma ao reitor, que, com um franzir de sobrolho, mostrou
claramente a contrariedade que ele lhe fazia experimentar.

Esteve para surgir entre o centeio e mostrar-se aos enlevados personagens
deste idílio infantil, severo e terrível, como o velho vulto
do gigante Adamastor, nas estâncias do grande épico.

Pôde, porém, conter-se e constrangeu-se a observar a cena, com
mal reprimido desagrado.

A pequena, que estivera por muito tempo inclinada sobre o livro, como a lutar
com alguma dificuldade de leitura, que procurava vencer por si, acabou por
fazer um gesto de impaciência, e, apontando com o dedo a palavra da
dúvida, colocou a página diante de dos olhos de Daniel, perguntando-lhe:

— Isto que quer dizer?

Daniel olhou por algum tempo para o livro, e afinal respondeu:

— Cataclismo.

— E o que vem a ser cataclismo?

Daniel ficou embaraçado. A falar a verdade, ele não sabia bem
o que era cataclismo. Não teve coragem para o dizer francamente e titubeou:

— Cataclismo… sim… cataclismo é… sim… eu sei o que é…
agora para to dizer é que … Cataclismo…

O reitor apesar da posição crítica em que estava, não
deixou de se zangar lá consigo, ao ver um discípulo seu não
poder desenredar-se de tais dificuldades filológicas.

Margarida, que era este o nome da pequena, adivinhou a causa da hesitação
de Daniel e delicadamente lhe pôs fim, olhando outra vez para o livro
e continuando a estudar em silêncio.

Daí a pouco voltou, porém, a consultar o seu pequeno mestre.

— E isto? Como se lê?

— Metempsicose – foi a reposta de Daniel

— E o que vem a ser?

Desta vez ainda o embaraço de Daniel era maior. Nunca ele soubera
o que fosse metempsicose, e, como pela segunda vez se via pilhado em falso,
perdeu a paciência. Saiu-se do aperto, como alguns professores em casos
análogos.

— Ora! Isso é uma coisa que leva muito tempo a explicar.

Margarida resignou-se a não entender.

Uma terceira interrogação. Desta vez foi a palavra pragmática
que a originou.

Daniel estava em maré de infelicidades. Esta acabou de o impacientar.
Tirando o livro comprometedor das mãos da discípula, disse com
certo despeito mal encoberto:

— Deixa-te de estudar, Margarida; não estou agora para isso.

— Mas depois… amanhã…

— Amanhã! Que tem? Sossega, que não te castigo. E demais
ainda tens muito tempo. Não vês que só venho e tarde?

— Mas…

— Mas… agora não quero que estudes, quero que cantes.

— Ora cantar! Que hei eu de cantar?

— A cantiga da Morena.

— Eu não gosto dela.

— Não?

— Eu, não.

— Então de qual gosta mais, Guida? – perguntou Daniel, dando
à pergunta, e sobretudo àquela familiar alteração
do nome de Margarida, uma música de afetuoso galanteio, que não
deixaria ficar mal ninguém.

— A da Cabreira, é muito mais bonita.

— Já não me lembra bem. Pois então canta a da
Cabreira.

— Agora não.

— Agora sim; e por que a não hás de cantar agora?

— A minha irmã Clara é que a sabe cantar bem, eu não.

— Ora adeus, ela é ainda uma criança – disse Daniel com
um soberbo gesto de homem – Eu quero-a ouvir de ti.

— Eu julgo que nem a sei.

— Sabes, sabes, ora vamos a ver.

— Olhe… eu canto, mas…

E Margarida pôs-se a cantar e com a voz tão sonora e agradavelmente
infantil, que, se o reitor estivesse despreocupado, em uma posição
mais cômoda e disposto a julgar com imparcialidade, confessaria que
era excelente. Mas na ausência destas condições de juízo
desapaixonado, foi um crítico como quase todos.

Ai vai o que ela cantava. em uma dessas singelas e monótonas melopéias
de quase todas as xácaras populares:

Andava a pobre cabreira
O seu rebanho a guardar,
Desde que rompia o dia
Ate a noite fechar.

De pequenina nos montes
Não tivera outro brincar,
Nas canseiras do trabalho
Seus dias vira passar.

— Assim como tu – disse Daniel.

Margarida sorriu, fazendo com a cabeça um movimento afirmativo, e
continuou:

Sentada no alto da serra
Pôs-se a cabreira a chorar,
Por que chorava a cabreira,
Ides agora escutar

"Aí! que triste a sina minha,
"Aí que triste o meu penar
"Que não sei de pai nem mãe,
"Nem de irmãos a quem amar

"De pequenina nos montes
"Nunca tive outro brincar
"Nas canseiras do trabalho
Meus dias vejo passar".

Mas, ao desviar os olhos
Viu coisa que a fez pasmar.
Uma cabra toda branca
Se lhe fora aos pés deitar.

— Assim, pouco mais ou menos – disse Daniel, pousando a cabeça
nos braços encruzados sobre as urzes do chão.

Margarida prosseguiu:

Branca toda, como a neve,
Que nem se deixa fitar,
Coberta de finas sedas,
Que era coisa singular!

E, maliciosamente, com um sorriso de travessura infantil, passou os dedos
por entre os cabelos de Daniel.

Nunca a tinha visto antes
No seu rebanho a pastar,
E foi a fazer-lhe festa…
E foi para a afagar…

E continuava a correr as mãos pela cabeça de seu jovem companheiro,
que sorria.

Eis vai a cabra fugindo
Pelos vales sem parar;
Ia a cabreira atrás dela
Mas não a pôde alcançar.

E andaram assim três dias.
E três noites sempre a andar!
Até que a porta de uns paços
Afinal foram parar.

Chorava o rei e a rainha
Há dez anos sem cessar,
Que lhe roubaram a filha
Numa noite de luar.

E dez anos são passados
Sem mais dela ouvir falar,
Eis chega a cabreira à porta

À porta foi se sentar

"Ai que bonita cabreira…

E Margarida, ao cantar este verso, não pôde conservar-se séria,
vendo Daniel levantar os olhos para ela.

Que lá embaixo vejo estar!
E uma cabra toda branca
Que nem se deixa fitar

Meus criados e escudeiros
Ide a cabreira buscar".
Isto dizia a rainha,
Este foi seu mandar.

Foram buscar a cabreira
E a cabra de a acompanhar
Até a sala dos paços
Onde o rei a viu chegar.

"Pela minha c’roa de ouro
Eu quero agora apostar,
Que esta é a filha roubada
Numa noite de luar".

Milagre! Quem tal diria!
Quem tal pudera contar!
A cabrinha toda branca
Ali se pôs a falar.

A seguinte quadra foi cantada também por Daniel e sem ofensa da harmonia:

"Esta é a filha roubada
Numa noite de luar,
Andou sete anos no monte
Quem nasceu para reinar!"

O resultado da intervenção de Daniel foi acabarem os dois a
rir, com grande risco de deixarem incompleta a cantiga.

A rogos do seu companheiro, Margarida, passados alguns momentos, concluiu:

Que alegrias vão nos paços,
E que festas sem cessar!
A filha há tanto perdida,
No trono os pais vão sentar,

E vêm damas p’ra vesti-la
E vêm damas p’ra calçar,
E as mais prendadas de todas
Para as tranças lhe enfeitar

Vão procurar a cabrinha…
Ninguém a pôde encontrar;
Mas…

Foi olhando Daniel que a pequena Guida terminou:

Mas um anjo de asas brancas
Viram as céus a voar

E assim acabou a última quadra da xácara, e por algum tempo,
as duas crianças se conservaram caladas, como se quisessem seguir ainda,
até as derradeiras vibrações, as notas melodiosas daquela
voz, ao desvanecerem-se no espaço.

Daniel foi o primeiro a romper o silêncio,

— Então, vês como a soubeste até o fim? E cantaste-a
tão bem!

— Ora!

— Mas é noite, Guida, Repara. Olha que são horas de tu
ires juntar o gado.

E acrescentou, suspirando melancolicamente:

— Daqui a pouco estou eu de volta com o meu latim! E que lição
tamanha me marcou o padre esta manhã!

— Então de que tamanho é?

— Olha; vai vendo – disse Daniel, abrindo a Seleta e mostrando a Margarida
as folhas que o reitor lhe marcara para estudar. – É esta lauda…
e esta… e esta, até aqui.

— E então isso diz o que diz?

— Conta a vida lá de uns generais antigos que fizeram guerras
mortes e que quase sempre se matavam a si, quando não os matavam a
eles.

— E para que é preciso que saiba estas histórias quem
quer ser padre?

— Eu sei lá! Mas que estás tu a dizer? Padre! padre!
Não me fales em ser padre, Guida. Eles cuidam que eu quero mesmo ser
padre, estou querendo.

— Então?

— Ora quando chegar a hora eu lhas cantarei. Ainda está por
nascer o barbeiro que me há de abrir a coroa. O tio João das
Bichas disse-me noutro dia – a rir, já se sabe – que já tinha
em casa uma navalha afiada para isso; eu fui-lhe dizendo que bem deixava então
a navalha para o barbearem em morto.

— Mas o seu pai mata-o!

— Meu pai? Deixa-te disso. Meu pai não há de querer fazer-me
padre a força.

— Mas o Sr. Reitor?

— O Sr. Reitor não é cá chamado. Que se meta com
a sua vida. Ora é muito boa!

— E por que não quer ser padre, Danielzinho?

— Olhem que pergunta! Não quero ser padre, porque não
quero, porque gosto de ti, e, porque, afinal de contas, hei de vir a casar
contigo.

— Ora!

— Hei de, sim. Verás.

E dizendo isso, passou facilmente o braço pelo pescoço da pequena
Guida, e pousou-lhe na fronte um beijo que ainda nem sequer a fazia corar.

O reitor estava escandalizado e estupefato por quanto vira e ouvira.

Tivesse assistido em pessoa ao aparecimento do anticristo, que não
se maravilhara tanto.

Esta cena inofensiva, esta écloga entre duas crianças, parecia-lhe
mais abominável do que a outro qualquer as mais impudicas aventuras
daquele herói, que Byron imortalizou com o nome de D. Juan, nome, já
antes dele, de pouco austera memória.

Ao chegar a seus atônitos ouvidos, a vibração sonora
do beijo, que terminou o diálogo, o padre estremeceu como se acabasse
de escutar um silvo de serpente cascavel, e não pôde reprimir
uma interjeição desaprovadora, bastante audível, para
ser percebida por todas as personagens da cena que descrevemos.

— Não ouviste, Guida? Que foi aquilo? – disse Daniel, já
meio erguido e olhando com inquietação ao redor de si.

— Não é nada – respondeu esta, com pouco mais de frieza
de ânimo.

Mas, neste tempo, já o cão se havia levantado e ladrava furiosamente
na direção do lugar onde o reitor estava escondido.

— Aqui, Gigante, aqui! – bradava-lhe, em vão, Margarida.

— O que estará acolá no centeio para o cão ladrar
assim? – perguntou Daniel, já sem pinta de sangue.

E o cão ladrava cada vez mais, e parecia pronto para arremeter contra
um inimigo oculto.

O reitor, como é de prever, começava a achar-se muito pouco
à vontade.

— Aqui, Gigante – continuava a pequena, já cansada de bradar.

Mas Daniel, assustado, valeu-se do cão, como instrumento de exploração
e defesa, e soltou uma palavra imprudente:

— Busca, Gigante, pega!

Não foi preciso mais nada.

O Gigante galgou de um salto o estreito caminho que o separava do campo onde
o reitor cada vez suava mais com a iminência do perigo, e rompendo por
entre o centeio, veio pousar triunfantemente as patas dianteiras sobre os
ombros do pobre velho, que julgou ver a morte na figura deste monstruoso cão.

Como esses bonecos que fazem as delícias dos pequenos feirantes de
S. Miguel e do S. Lázaro, no Porto, e que ao abrir-se a caixa que os
contém, são repentinamente expelidos por uma mola interior,
o pároco, ao toque mágico do agigantado quadrúpede, ergueu-se,
de súbito, sobre os calcanhares, e, meio sufocado pelo susto e com
as faces enfiadas, bradou para Daniel:

— Chama este cão rapaz endemoniado! Ele mata-me!

Daniel é que não podia lhe valer, tão embasbacado ficou
com a inesperada aparição do mestre. A mulher de Ló por
certo não se conservou tão imóvel, depois do fatal momento
em que cedeu à sua irresistível curiosidade.

A pequena Margarida é que salvou a situação – como me
parece que se costuma dizer em política. Armou-se da maior severidade
que lhe era possível, e com a inflexão de voz imperiosa, pronunciou
um – "aqui Gigante!" – que foi prontamente obedecido.

O reitor estava salvo, mas ainda não senhor seu, e deveras chufado
com as circunstâncias ridículas que acompanharam a sua descoberta.
Ora, como sempre acontece , estas circunstâncias inabilitavam-no para
assumir o caráter severo, grave e pedagógico, necessário
a quem se propõe a dar uma repreensão ou a fazer uma prática
de moral.

Com muito bom senso renunciou, pois, o reitor a este projeto, e sem dar palavras,
virou costas e abandonou o lugar dessa aventura, interiormente quase tão
pouco satisfeito consigo como com o seu discípulo.

Daniel, passados alguns momentos mais de silencioso pasmo, desatou a rir,
a rir, a rir, desse expansivo e contagioso rir de criança, que não
tem outro igual. Esqueceu o que para ele havia de estranho e sério
em tudo aquilo, e as conseqüências que poderia ter, para só
se lembrar da carantonha que fazia o reitor a gritar que lhe acudissem, do
susto que apanhara, do aspecto sorumbático que levava ao partir, e
por isso tudo ria às bandeiras despregadas.

Vejam lá se o padre não fez bem em adiar o sermão para
ocasião mais oportuna?

Porém. Margarida? Essa é que não ria. Certo instinto
de delicadeza inato em quase todas as mulheres, não sei que vaga presciência
de infortúnio, que algumas, de criança possuem, parecia-lhe
estar dizendo que tudo aquilo, sem saber por quê, lhe poderia vir a
ser funesto.

E enquanto Daniel ria, ela, coitada, não se pôde conter, e começou
a chorar.

— Que tens tu, Guida? Isso que é? – perguntou-lhe Daniel, já
sério e meio sensibilizado – Por que choras assim?

— Deixe-me. Não sei bem… mas sinto uma tristeza… e tamanha…
tamanha! Vamos. É tarde, vou juntar o gado.

— E eu ajudo-te.

— Não. Vá para casa e corra bem, antes que o Sr. Reitor
chegue lá primeiro.

— Pois ele irá?

— Ande… corra.

Foi então que Daniel reconheceu que Margarida podia ter alguma razão
em não levar o caso a rir, e que não devia ser para ele uma
coisa de todo insignificante a aparição do padre ali. Por isso
disse adeus à sua companheira, e deitou a correr para casa.

Capítulo V

No dia seguinte, que era um domingo, vestia-se o reitor, na sacristia, para
celebrar a missa conventual. Entre as diversas pessoas que assistiam ao ato,
avistou ele o nosso conhecido José das Dornas, e a lembrança
do ocorrido na véspera surgiu-lhe outra vez ao espírito, acompanhada
de todas as circunstâncias desagradáveis que se deram então.
Durante a noite, havia o padre, à sós com o travesseiro, tomado
uma resolução. Foi, pensando nela, que no momento em que José
das Dornas se aproximou mais do lugar, em que ele se paramentava, lhe disse:

— Logo, depois da missa, espera-me lá fora, no adro, que temos
que conversar.

José das Dornas fez um sinal de assentimento, e entrou para a capela.

Nada ocorreu durante a missa, que exija especial referência. Foi dita
pela reitor com todas as formalidades do rito, e escutada pelo auditório,
e principalmente por José das Dornas, com respeitosa atenção.

Acabada ela, formaram-se diferentes grupos pelo adro, do qual uma frondosa
alameda fazia, naquela época do ano, um dos lugares mais apetecíveis
da terra; José das Dornas trocou meia dúzia de palavras com
alguns conhecidos seus. Falou no tempo, no aspecto das searas, nas mudanças
da lua, e pouco a pouco, foi ficando cada vez mais desacompanhado, porque
os aldeões iam dispersando, atraídos pela lembrança do
jantar que os esperava.

Finalmente achou-se de todo só e pôs-se de mãos nos bolsos,
a passear no adro. No entretanto ia fazendo suas conjeturas sobre os motivos
que levariam o reitor a mandá-lo esperar e sobre a natureza da conversação
que ia ter com ele.

De fato não tardou. O reitor saiu finalmente da sacristia, e dirigiu-se
imediatamente para José das Dornas, que se descobriu ao avistá-lo.

— Está à vontade, José, está à vontade.
Ora… nós temos que falar a respeito do teu pequeno.

— Então é preciso comprar-lhe mais alguns livros? O que
V.S.ª vir que…

— Nada, nada. A coisa agora é muito diferente.

— Então?

— É que… Ora escuta, José. Lembras-te de que eu te
disse, aqui há tempos, que o rapaz havia de ser padre?

— Se lembra? Muito bem. E eu disse…

— Bem, bem. Pois é… se queres que te fale a verdade… parece-me
que o melhor… é dar-lhe outra arrumação.

José das Dornas parou e pôs-se a olhar boquiaberto para o reitor.

— Então… o pequeno não tem memória para os estudos?

— Tem, tem e até demais… Mas… ouve cá; esta vida
de sacerdote quer vocações decididas. Não as havendo,
é um grande erro abraçá-la, e um grande pecado constranger
alguém a segui-la contra a vontade.

— Credo! pois quem diz menos disso? Mas então, acha o Sr. Reitor
que o rapaz não terá queda?

— Hum, hum… – murmurou o reitor.- Parece-me que não tem grande
queda, não.

— Valha-me Deus, mas… por que julga V.S.ª isso? E queira perdoar
se sou confiado em perguntar.

— Cá por certas coisas.

— E eu que até me parecia que o pequeno fora mesmo talhado para
a vida!

— Também eu o julgava.

— O seu gosto era ajudar a missa.

— Olha lá se o vês agora!

— Até pelos seus brinquedos. Olhe que não havia para
ele como armar igrejinhas e pregar sermões.

— Isso agora… quanto a gostos e brinquedos… parece-me que houve
sua mudança ultimamente.

— Então?

O reitor hesitava em falar a verdade inteira a José das Dornas; por
isso, a esta pergunta, começou ainda a titubear, e respondeu evasivamente:

— Sim… creio que já não se entretém muito com
igrejinhas…

— Ah! pois sim… mas… é que agora tem já outras canseiras…
Os estudos…

— Ah! os estudos… É o que me lembra.

— Olhe, Sr. Reitor – continuava José das Dornas, um tanto incr&eacuteeacute;dulo
a respeito da mudança de inclinação do filho – eu finalmente…
sim… como o outro que diz… – não sei lá as razões
que tem V.S.ª para pensar dessa forma… mas a mim está-me a parecer
que V.S.ª se engana.

O reitor tinha atingido os limites de sua grande paciência. Esta dúvida
de José das Dornas, ainda que formulada a medo, acabou por resolvê-lo
ser mais explícito.

— E se eu te disser, José das Dornas, – exclamou ele, parando
e voltando-se para o seu interlocutor – se eu te disser que teu filho Daniel
apesar dos seus doze ou treze anos, que será a idade dele, tem já
na aldeia a sua conversada?

José das Dornas parou como fulminado.

O reitor continuou seu caminho

— Que diz, Sr. Reitor?! – exclamou afinal José das Dornas, atrasado
já uns cinco ou seis passos, e na mesma posição em que
o deixara a revelação.

— O que sei! – respondeu o reitor, com eloqüente laconismo.

— Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo! Está
o mundo roto! Pois o rapaz… Oh, Sr. Reitor, palavra, que se fosse outra
pessoa que mo dissesse, eu não acreditava.

— E se eu te afirmar que vi, com os meus olhos, o teu Daniel sentado
no monte ao pé de da rapariga, cantando juntos, lendo juntos, e afirmando-lhe
o rapaz que nunca há de ser padre, pois queria casar com ela?

— Ora, ora, Sr. Reitor, essa é demais. Há de perdoar,
mas essa…

— E se eu te disser que ele lhe deu um beijo – acrescentou o padre
em tom confidencial.

— Um beijo!

— E se eu te disser que ele, todos os dias, me sai da aula às
cinco horas, e passa o resto da santa tarde junto da pequena?

— Ora o rapazinho!

— Então, já vês que não convém fazê-lo
padre. Para dar maus exemplos, temos cá, infelizmente, bastantes. E
quando o pano é assim em amostra, que fará a peça inteira.

— Mas que lhe havemos de fazer agora?

— Se te guiares pelos meus conselhos, aí tens um plano: deixa-te
de ordenar o rapaz. Pega nele e remete-o quanto antes para um colégio,
onde não lhe deixem por o pé em ramo verde. Fá-lo depois
médico… advogado… o que quiseres e que ele não repugne…

— Então quer dizer que o mande para Coimbra?

— Para Coimbra?… Eu sei?… Homem, a falar a verdade, semente desta
em Coimbra, é para dar uns frutos por aí além. Para o
Porto, onde ele possa estar sob as vistas dos parentes que lá tens,
vai muito melhor. Põe-mo a cirurgião. Eles hoje, dizem, que
saem de lá como de Coimbra, e olha que é uma boa carreira. O
nosso João Semana está velho, e, morrendo ele, não temos
por aqui mais ninguém. Mas é preciso tratar já disso.
Impõe-me o rapaz daqui para foras, se queres fazer dele alguma coisa
de jeito.

— Mas, ó Sr. Reitor, e quem era a cachopa?

— Isto agora é que já não é da tua conta.
Faze o que eu te digo, e deixa o resto.

E nestes termos se separaram os dois, tomando cada um a direção
da casa.

José das Dornas ainda este por algum tempo impressionado com o que
lhe acabara de dizer o reitor.

Há notícias de uma digestão demorada e laboriosa, como
a de certos alimentos.

Enquanto ela dura, o espírito não se acha à vontade
e como que se agita sob a influência de uma incômoda sensação;
mas, pouco a pouco, opera-se um íntimo trabalho assimilador, acalma-se
a espécie de febre digestiva, que acompanhara aquela elaboração
mental, e tudo entra na ordem. A notícia, que nos impressionara, perde
enfim quanto se nos havia figurado de estranho; sentimo-nos mais livres e
em mais felizes disposições para encararmos os fatos.

Assim aconteceu como José das Dornas: o que, ao princípio,
lhe avultara como calamidade, acabou por se transformar em uma coisa naturalíssima
e engraçada até; o que lhe parecera desmoronamento de um belo
edifício em construção, convenceu-se em pouco tempo que
não passava de uma reforma preparatória para futuro melhor;
e de carrancudo e pesaroso que ficara ao princípio, acabou por se tornar
prazenteiro e quase risonho.

— O rapaz sai-me da pele do diabo! Com quê, já tinha também
a sua conversada! Havia mister! Ah!, ah!, ah! E o reitor atrapalhado! Ah!,
ah!, ah! Agora é que eu lhe acho graça! E como soube dizer que
não havia de ser padre, porque queria casar. Ora o rapazinho! Esperto
é ele! Oh lá! Mas como diabo o ouviu o reitor? A falar a verdade…
o pequeno tem razão. Eu, que tão bem me dei com aquela santa,
que está no céu, como havia de obrigar um filho meu a não
gozar de uma felicidade como a minha! Deixar o rapaz… Quer casar?… Faz
ele muito bem. Deus lhe depare uma boa cachopa, que seja mulher de casa…
Mas quem seria a tal? Isso é que o padre não diz. Pois hei de
sabê-lo. Sempre mandarei o pequeno para o Porto… E que dúvida!
Nas terras grandes é que se fazem os homens… Há de ser cirurgião,
se quiser. O reitor lá nisso diz bem, O João Semana está
acabado… Padres não faltam… e com a esperteza do Daniel, era uma
pena não fazer dele uma outra coisa… Aí o rapazinho que é
os meus pecados! Ah!, ah!, ah! Sume-te! Já tem o sangue na guelra.
Madruga!

E com estes monólogos e as mais fagueiras disposições
de ânimo, chegou José das Dornas a casa, e jantou com apetite.
À mesa lançava, às furtadelas, maliciosos olhares para
o filho mais novo, o qual, sentindo-se sob iminente pronúncia, não
levantava os seus. O pai a custo podia suster o riso ao observá-lo.

Capítulo VI

E ainda bem não tinha decorrido uma semana, depois do que referimos,
já o pequeno Daniel era transferido para o Porto na melhor égua
da casa, em conformidade com o plano traçado pelo reitor.

O rapaz chorou muito ao partir. O pai sensibilizou-se, mas foi dominando
a sua emoção conforme pôde.

Daniel entrou na cidade invicta com pouca disposições de se
lhe afeiçoar. Matavam-no saudades da terra, da família, e mais
que todas a da sua pequena Guida, de quem nem ao menos lhe tinha sido possível
despedir-se, pois nem para isso lhe haviam dado ensejo.

Desde a tarde em que fora surpreendido pelo reitor no inocente colóquio
que tanto escandalizou o bom do pároco, nunca mais a tornara a ver,
nem dela ouvira falar. Somente, ao despedir-se do seu mestre, este lhe disse,
afagando-o nas faces e sorrindo afavelmente: -"Vai, que eu continuarei
com a lição da tua discípula". – Daniel não
pôde responder e partiu. Mas, ao ver sumirem-se atrás de si as
copas das árvores, a cuja sombra o esperava talvez Margarida, borbulhavam-se
as lágrimas nos olhos. Pobre criança!

E Margarida?… Essa mais pungentes sentia ainda as saudades. Sempre assim
acontece. Em todas as separações, tem mais amargo quinhão
de dores o que fica, do que o que vai partir. A este esperam-no novos lugares,
novas cenas, novas pessoas; sobretudo espera-o o atrativo do desconhecido,
que de antemão lhe absorve quase todos os pensamentos. Vai experimentar
outras sensações, e à força de distrair os sentidos,
é raro que não acabe por distrair o coração. Mas
ao que fica… lá estão todos os objetos que vê a recordar-lhe
as venturas que perdeu; ali as flores que colheram juntos, para as trocar
depois; acolá, a árvore a cuja sombra se sentaram; além
o ribeiro que arrebatou na corrente as pétalas, desfolhadas um dia,
do bem-me-quer fatídico, que os amantes interrogam; o tronco onde se
gravaram unidas as iniciais de dois nomes; o canto dos pássaros que
tantas vezes escutaram; o ponto da perspectiva, mais procurado pela vista
de ambos… Oh!, há bem mais alimentos para as saudades assim! E depois,
o que se ausenta vai esperançado nisto mesmo: em que a afeição,
que deixa, lhe será fielmente mantida até a volta; que evitarão
o esquecimento das promessas feitas tantas testemunhas que as presenciaram
e que, sem cessar, as recordarão; os que ficam antevêem que,
longe de tudo que possa falar-lhes delas, pouco a pouco se varrerão
essas promessas da memória do ausente, e, ao dizer o adeus da despedida,
um amargo pressentimento lhes segreda que dizem adeus a uma ilusão.

Ora é preciso saber que Margarida se sentia triste, profunda e inconsolavelmente
triste, sem que lhe acudisse à idéia tudo quanto havemos dito.
Porém, a nós, é-nos lícito analisar aquele tenro
coração de criança, afeiçoado para os sentimentos
e dotado de delicadíssimos instintos, como o de poucos, Alma voltada
à melancolia e que se habituara a sentir, sem se estudar! Não
há para mim mais simpática espécie de sofredores! os
mártires que se analisam, e nos fazem resenha e inventário dos
seus tormentos; esses que, todos os dias, desenvolvem em estilo imaginoso
a fisiologia do próprio coração indagam a teoria do padecer,
que, dizem eles, os tortura e o fazem com uma profundeza de vistas, verdadeiramente
filosófica… esses mártires… para falar a verdade, não
creio muito neles. Quem sofre deveras, tenho eu para mim, acha-se com pouca
vontade de esquadrinhar os mistérios do sofrimento e não se
põe com grandes filosofias a esse respeito. Eu julgo mais natural e
sincero fazer como a pequena Margarida, depois da partida de Daniel: subindo
todas as tardes ao outeiro silvestre onde tantas vezes ele se viera sentar
também, sentia cerrar-se-lhe o coração de tristeza, e
… desatava a chorar. Não sei que moda anda agora de se não
considerar o choro como a mais eloqüente expressão do pesar! Eu,
por mim, é dos sinais em que deposito mais fé.

Era bem justificada a saudade de Margarida. A curta biografia dela a fará
compreender.

Guida era o fruto único do primeiro matrimônio de seu pai, cuja
morte recente acabara de a fazer órfã de todo. Entregue ao domínio
de um madrasta, que não desmentia pela sua parte, a fama que de ordinário
acompanha este pouco simpático nome, tivera a experimentar, nos maus
tratamentos recebidos e na frieza ou declarada aversão, como que lhe
dispensavam os poucos cuidados de que se via objeto, toda a amargura de uma
existência sem carinhosas afeições, esse tão necessário
alimento ao coração das crianças. Arredada de propósito
de casa, e passando dias inteiros nos montes, a acompanhar o gado, habituou-se
de pequena a vida da solidão – e é sabido que hábitos
de melancolia se adquirem nesta escola. Foi, pouco a pouco, contraindo o caráter
triste e sombrio que é o traço indelével que fica de
uma infância, à qual se sufocaram as naturais expansões
e folguedos, em que precisa de transbordar a vida exuberante dela. Por isso
se afeiçoara a Daniel, o único que a viera procurar à
sua solidão e oferecer-se como o suspirado companheiro das suas horas
infantis. Vê-lo desaparecer agora, era assistir ao desvanecimento da
mais grata das ilusões, da mais intensa das suas alegrias; e a sensibilidade
nascente da pobre criança recebia uma nova têmpera nesta separação
dolorosa.

Capítulo VII

Mas deixemos as lágrimas, e as íntimas e não ostentosas
tristezas de Margarida, e vamos chamar ao primeiro plano da cena uma personagem
que, contra seus direitos de primogenitura, temos até agora deixado
oculta na penumbra dos bastidores.

Falamos de Pedro, o filho mais velho de José das Dornas.

Pedro, mais idoso que seu irmão cinco anos, teve uma infância
mais trabalhosa que a dele, mas bem menos digna de menção no
romance. Votado, como já disse, aos trabalhos da lavoura, as horas
que tinha de ociosidade empregava-as a dormir, sono que as fadigas do dia
faziam digno de inveja.

Por certo que os leitores não quereriam que eu lhes referisse aqui
as pequenas diversões daquela vida de rapaz da aldeia. Seria uma fastidiosa
enumeração de jogos e freqüentes lutas com os companheiros,
por vários motivos pueris. Isto quase aos dezessete anos. Enquanto
que Daniel estudava o latim e se distraia já da aridez das regras da
sintaxe, conversando a sós no monte com Margarida, Pedro trabalhava,
dormia, ou brincava no terreiro com os rapazes de sua idade, sem sentir outras
aspirações e achando-se até pouco a vontade junto das
mulheres, com quem não sabia conversar.

Não eram porém definitivas estas disposições
de espírito em Pedro, como se vai mostrar. Aos dezoito anos operou-se
a revolução.

Isto não quer dizer que a febre da adolescência principiasse
a fazer circular nas veias do moço lavrador esse sangue inflamado que
devora como uma oculta labareda; que ele tivesse dessas tristezas súbitas,
desses devaneios e não sei que fantasiar mal distintas felicidades,
desses arroubamentos, desse amor ideal, sem objeto, que é o mais puro
e espontâneo culto do coração humano. Nada disso. A natureza
não afinara a alma de Pedro para as sutilíssimas vibrações
desta ordem. Esta quinta-essência da sensibilidade não lhe fora
concedida. A gente da aldeia não conhece os prenúncios do amor,
que os poetas têm apregoado no seu lirismo, a ponto de se acreditar
por aí na universal realidade deles; sendo forçoso confessar
que muita gente há, que nunca na vida sentiu os tais vagos e erráticos
sintomas a que me refiro, e que contudo amam ou amaram deveras. Se serão
os bens ou mal organizados, não me atreverei a decidir, mas que os
há, isso, sustento eu. E Pedro era dos tais.

Querem saber como principiou nele a transformação a que aludo?
Tudo veio naturalmente, sem aquela intensidade de fenômenos precursores,
que, à imitação dos médicos, poderíamos
talvez chamar de críticos.

Um dia foi convidado para um serão. Aceitou contra vontade. Lá
divertiu-se mais do que julgou, e voltou contente, dormindo a sono solto depois.
Daí por diante não faltava a nenhuma dessas assembléias
campestres: fiadas, esfolhadas, espadeladas, ripadas; lá ia a toda
com sua viola, traste indispensável aos dandys da localidade.

Habituou-se por lá a conversar com as raparigas, e, dentro em pouco,
era mestre em trocadilhos e conceitos amorosos. Aventurou-se uma vez a cantar
ao desafio; a musa auxiliou-o, e dali em diante foi-lhe concedida a palma
nesse gênero de certames.

Com tais predicados não lhe podiam escassear aventuras de amores;
e não lhe escassearam.

Mas, em todo esse tempo, e apesar de todas as ocorrências, continuava
dormindo as suas noites placidamente e de um sono só, dando assim uma
excelente lição a esses amantes wertherianos que, por as mais
pequenas coisas, perdem o sono e o apetite. Ele não. Os seus arrufos,
as suas contrariedades não chegavam a esses excessos. Com o amor dá-se
o mesmo que com o vinho – Perdoem-me as leitoras o pouco delicado da confrontação;
mas bem vêem que ambos eles embriagam. É portanto lícito
compará-los. Diz de certas pessoas – que têm o vinho alegre –
de outras que – o têm triste – estúpido – bulhento – conforme
dá a alguns a embriaguez para a hilaridade.; a outros para os sentimentalismo,
a outros para a modorra ou para brigas. Pois com o amor é o mesmo.
Amantes há que celebram os seus amores, e até suas infelicidades
amorosas sempre em estilo de anacreôntica – esses têm o amor alegre;
outros que, quando amam, embora sejam ardentemente correspondidos, suspiram,
procuram os bosques solitários, que enchem de lamentos, e as praias
desertas, onde carpem com o alcião penas imaginárias – têm
estes o amor sombrio; a outros serve-lhes o amor de pretexto para espancarem
ou esfaquearem quantas pessoas imaginam que podem ser-lhes rivais ou estorvos,
e, nesses acessos de fúria, chegam a espancar e esfaquear o objeto
amado – são os do amor bulhento e intratável; há-os que
emudecem e embasbacam diante da mulher dos seus afetos, que em tudo lhe obedecem,
que a seguem como o rafeiro segue o dono, e experimentam um prazer indefinível
de adormecer-lhe aos pés – pertencem aos do amor impertinente e estúpido.
Poderia ir muito longe essa classificação, se fosse aqui o lugar
próprio para ela.

Basta, porém, que diga que o amor de Pedro das Dornas pertencia a
primeira categoria; – tinha de fato ele o amor alegre.

Pedro cantava sempre; tudo lhe servia de tema a uma série de quadras
improvisadas, de que fazia uso para alentar-se no trabalho. É verdade
que talvez isso fosse porque Pedro não tinha ainda encontrado o verdadeiro
amor, aquele que, dizem, uma vez só na vida se experimenta. Em todo
caso era o que sucedia com ele.

Mas o reitor estava sempre a pregar-lhe.

— Pedro, tu andas por aí muito à solta! Vê lá
onde vais cair.

— Ó Sr. Padre Antônio, a gente também precisa de
se divertir um bocado.

— Pois sim, mas tudo se quer em termos e que não venham depois
as lágrimas e os arrependimentos!

— Eu não hei de fazer coisa que…

— Sim, sim… Sabes o que eu te digo? O melhor, rapaz, é procurares
o que te faça arranjo, e então que seja deveras. Casa-te e deixa-te
de andar desnorteado, e nessa vida airada, que raro dá para bem.

— Ora, Sr. Reitor, ainda tão novo, hei de já tomar canseiras
de família?

— Queira Deus que, conservando-te assim como estás, nas as acarrete
mais pesadas ainda.

Não obstante os conselhos do reitor, Pedro não se sentia com
grande vocação matrimonial. Todas as suas afeições
eram efêmeras, e daquelas, em cujo futuro o próprio que as sente
não acredita, mas – lá vem uma vez que é de vez – diz
o ditado: e, com Pedro, não estava esta fórmula de sabedoria
popular destinada a ser desmentida.

Vejamos como foi isto. Ia Pedro nos vinte e sete anos já – era então
um rapaz vigoroso e sadio, de belas cores e músculos invejáveis.
Andava certa manhã ocupado a cortar milho em um campo, propriedade
da casa, o qual ficava situado na margem do pequeno rio, que atravessava a
aldeia em continuados meandros.

Próximo havia uma ponte de pedra de dois arcos, construção
já antiga, mas bem conservada ainda; o rio era nesse lugar pouco fundo,
e deixava à flor da água as maiores das pedras espalhadas pelo
seu leito, permitindo assim a passagem, a pé enxuto, de uma para outra
margem.

De joelhos sobre essas poldras, como por lá lhe chamam, desde o arco
até alguma extensão no sentido contrário ao da corrente,
um bando de lavadeiras molhava, batia, ensaboava, esfregava e torcia a roupa,
ao som de alegres cantigas, interrompidas às vezes por estrepitosas
gargalhadas; outras estendiam-na pelos coradouros vizinhos, e, algumas, mais
madrugadoras, principiavam a dobrar a que o sol da manhã havia já
secado.

Pedro, do campo onde trabalhava, via estas raparigas, conhecidas quase todas,
mas sem que o vê-las o distraísse da tarefa em que andava empenhado.

À medida, porém, que, prosseguindo na ceifa, se aproximava
mais da beira do campo, imediato ao rio, como o adiantado do trabalho lhe
concedia mais vagares, pôs-se a reparar com atenção para
uma das lavadeiras e a achar certo prazer na contemplação.

Era uma rapariga de cintura estreita, mãos pequenas, formas arredondadas,
vivacidade de lavandisca, digna efetivamente das atenções de
Pedro e até de qualquer outro mais exigente que ele.

As mangas da camisa alvíssima, arregaçadas, deixavam ver uns
braços bem modelados, nos quais se fixavam os olhos com insistência
significativa. Um largo chapéu de pano abrigava-a do ardor do sol e
fazia-lhe realçar o rosto oval regular de maneira muito vantajosa.

De quando em quando, levantava ela a cabeça e sacudia, com um movimento
cheio de graça, a trança mais indomável, que, desprendendo-se-lhe
do lenço escarlate que a retinha, parecia vir afagar-lhe as faces animadas,
beijar-lhe o canto dos lábios, efetivamente de tentar.

Em um desses movimentos freqüentes, reconheceu que era observada, se
é que certo instinto, peculiar das mulheres bonitas, lho não
fizera já adivinhar. Sabendo-se observada, conjeturou que era admirada
também – conjetura que por mulher alguma é feita com indiferença
e muito menos por Clara – era o nome da rapariga – porque diga-se o que é
verdade, tinha um tanto ou quanto de vaidosa.

Lisonjeada, pois, com a descoberta, sentiu Clara desejos de se fazer apreciar
mais do que pelos olhos, de cujo conceito ela não já podia duvidar.

Elevou para isso a voz, e em uma toada conhecida, em uma dessas eternas e
popularíssimas músicas da nossa província, das que mais
espontaneamente entoam as lavadeiras nos ribeiros e as barqueiras aos remos,
cantou a seguinte quadra:

Ó rio das águas claras,
Que vais correndo pro mar.

Na pausa que, segundo as exigências da música, se faz ao fim
de dois versos, Clara torceu a roupa que estava lavando, e lançou com
disfarce, os olhos para o lugar, onde Pedro a escutava; e depois concluiu:

Os tormentos que eu padeço
Ai, não os vá declarar.

Pedro efetivamente estava recebendo com prazer o timbre agradável
daquela voz feminina; sentiu em si uma comoção estranha, visitou-a
a musa rústica, e atirando-se com vontade ao trabalho, elevou também
a voz, já tão conhecida por todos os freqüentadores de
arraiais e esfolhadas, e respondeu

Não declara quem não pode,
E não tem que declarar.

Na pausa olhou também para o lado onde estava Clara, a qual ria ocultamente
com as companheiras, que eram todas ouvidos. A luva fora levantada e principiava
o certame. O momento era solene! Pedro terminou:

Pois quem como tu é bela,
Não pode ter que penar.

Um murmúrio de aprovação se levantou do conclave feminino.

A reputação de Pedro não fora desmentida desta vez ainda.

Mas Clara não era menos repentista. Tinha fama de nunca haver cedido
o passo nestas pugnas incruentas, mas renhidas. É verdade que, no caso
presente, o contendor era de respeito; ela porém aventurou-se e não
fez esperar a resposta:

O que eu peno ninguém sabe,
Ninguém o pode saber;
Porque eu peno e não me queixo,
Em segredo sei sofrer.

Novos sinais e aprovação das mulheres, os quais estimularam
a emulação de Pedro. Ele respondeu:

Pois o sofrer em silêncio
É um dobrado sofrer;
Melhor contarmos tudo
A quem os possa entender.

Esta quadra ainda produziu mais efeito, do que as precedentes – graças
à insinuação que nela se fazia, e tendências que
mostrava para dar novo caráter ao desafio.

Clara aceitou a direção que lhe era indicada assim, e respondeu:

A quem me possa entender
Tudo eu quisera contar;
Mas os amigos são raros,
Não sei onde os encontrar.

E logo Pedro:

Encontra-os em cada canto
Quem os quiser procurar;
E um dos mais verdadeiros
Aqui te está a escutar.

Chegadas as coisas a este ponto, o combate prolongou-se por bastante tempo,
sustentado de parte a parte com igual denodo e perícia. No entanto,
a roupa ia-se lavando e o milho achava-se quase todo ceifado. Os contendores,
cada vez mais próximos, pareciam cada vez mais e coração
empenhados na luta. Mas tudo tem um fim neste mundo.

Com as respectivas tarefas, terminou a justa, ficando ambos os campeões
vencidos um por outro, pois ambos se reconheciam já seriamente apaixonados.

Pedro passou as canas de milho para o carro. Clara meteu a roupa na canastra;
e puseram-se a caminho. Encontraram-se na ponte, e travaram então um
diálogo em prosa, que foi a confirmação de quanto, em
verso, tinham dito já. E daí se originou uma afeição
mútua, que, desde o princípio assumiu em Pedro caráter
mais grave e prometedor de bons resultados, do que as antecedentes.

O reitor, que andava com os olhos sempre em cima do rapaz, disse-lhe dias
depois:

— Lembra-te dos meus conselhos, Pedro. Não vás mais longe.
Fica por onde estás, que não ficas mal.

Pedro já lhe não opôs os acostumados argumentos antimatrimoniais,
Calou-se. É que desta vez a coisa era mais séria; e demais Pedro
ia nos vinte e sete, e por isso começava a sorrir-lhe mais afavelmente
o remanso do matrimônio.

Mas para justificarmos a opinião do reitor a respeito da nova inclinação
de Pedro, digamos quem era Clara que assim de repente pusemos diante do leitor
sem prévia apresentação.

Capítulo VIII

Clara era a filha do segundo matrimônio do pai daquela mesma Margarida
ou Guida, cujos amores infantis tanto haviam já dado que entender ao
reitor.

O pai de Margarida fora pela primeira vez casado com uma prima, que nada
mais lhe havia trazido em dote, além de um afeição ilimitada
e de um coração excelente.

Durante a vida da primeira mulher viveu sempre ele a custa de muito trabalho,
pelo ofício de carpinteiro, não podendo até mandar aprender
a ler à filha, único fruto desta primeira união, pois
que de pequenina a teve de ocupar no trabalho.

A mãe de Margarida morreu, porém, deixando-a de idade de cinco
anos. O pai, como já dissemos, deu-lhe em pouco tempo madrasta, e,
na opinião do mundo, fez um ótimo negócio o carpinteiro.

De fato, a segunda mulher trouxe-lhe um dote avultado, e, dentro de alguns
dias, viam-no abandonar a ferramenta do ofício e entregar-se todo ao
fabrico e administração de suas novas terras, tornando-se um
dos mais conceituados lavradores dos arredores. Mas a próspera fortuna
do recente lavrador converteu-se em tormento e desventura para a desamparada
criança.

A madrasta, em pouco tempo mãe de uma outra rapariga, ciosa de toda
afeição e carícias paternas, que Margarida pudesse disputar
a sua filha, aborrecia-se e procurava sempre pretextos para a trazer por longe.

Daí, a causa daquela solidão a que fomos encontrar, quando
pela primeira vez nos apareceu. Margarida chorava sozinha ou baixava a cabeça
resignada. Tinha um caráter dócil e submisso, e não se
atrevia a protestar nem sequer por uma daquelas espontâneas e irrefletidas
revoltas, tão próprias da infância atribulada.

Com a morte do pai agravaram-se ainda mais estas tristes circunstâncias.
Livre da única repressão que podia coagir a completa má
vontade que tinha à enteada, aquela mulher de gênio violento
acabou por desprezá-la de todo. A cada passo lhe lançava em
rosto a pobreza de condição em que nascera, clamando que o pão
que lhe dava a comer era um roubo que fazia a sua própria filha.

Margarida ouvia; humilhavam-na estas contínuas e injustas recriminações,
mas até as lágrimas procurava ocultar, com medo que dessem causa
a novas iras. Limitava-se a rezar muito a Nossa Senhora, para que a levasse
para si.

A pobrezinha olhava para o futuro e via-o cerrado, sem um único raio
de luz em que fitasse os olhos, para atravessar com mais ânimo as trevas
completas do presente.

Uma só compensação experimentava a triste e desarrimada
criança, em troca de tantas dores e constante suplício: – era
a amizade de sua irmã.

Clara não herdara da mãe durezas de coração nem
violências de gênio. Afável no meio de suas alegrias de
infância, compadecia-se já pelo que via sofrer a irmã,
e admirando aquela resignação de mártir, que ela bem
se conhecia incapaz de mostrar em ocasião alguma da vida, principiou
a olhar para Margarida com certo respeito, que, pouco a pouco, degenerou em
prestígio e lhe cultivou no coração uma verberação
sem limites.

Muitas vezes as rudezas da mãe para com Margarida faziam-na chorar
também, e, às ocultas, vinha pedir perdão a esta de um
tratamento, de que ela bem percebia ser a causa involuntária.

Margarida, da sua parte, sentia-se grata ao generoso afeto de Clara, e em
pouco tempo ficou sendo esse laço o único pelo qual ela parecia
prender-se ainda ao mundo, que tão despovoado destas seduções
lhe andara sempre.

Pequenos episódios, na aparência insignificantes, corroboraram
em uma e outra estes sentimentos e influíram na sorte futura das duas
irmãs, que, ainda crianças, se diziam já amigas inseparáveis.

Em uma noite de inverno, a mãe de Clara deitara-se às nove
horas com a filha; e por um requinte de crueldade estúpida obrigara
Margarida a conservar-se a pé serandando, até concluir certa
tarefa que lhe marcara; e ao deixá-la só, dirigiu-lhe estas
palavras cheias de humilhação para a pobre rapariga:

— Minha rica, quem vier a este mundo, sem meios de levar melhor a vida,
não deve perder o costume de trabalhar, nem ganhar outros, com que,
ao depois, não possa. Fica a pé e tem-me essa obra acabada.

Margarida não tentou uma só queixa ou súplica, em seu
favor. Calou e obedeceu.

Era, como disse, no inverno; fazia um frio excessivo. A lareira estava apagada
já; da parede defumada pendia uma candeia, cuja luz bruxuleante era
a única a iluminar o recinto. O vento assobiava nas inúmeras
fendas da porta da cozinha e entrava em correntes impetuosas pelo tubo da
chaminé, indo inteiriçar os membros regelados da desditosa criança,
que, só a custo podia já suster a roca e torcer o fio, para
terminar o trabalho. O silêncio da noite era interrompido por mil ruídos
sinistros, próprios para amedrontar as imaginações supersticiosas
como sempre, mais ou menos, são as da gente de campo.

Margarida, naquele momento, sentiu mais amarga que nunca, a sua orfandade
e o seu desamparo. Chorou, chorou a ponto de se sufocar, e pediu à
Virgem que se compadecesse dela.

Lembrou-se então de quando a mandavam sozinha para o monte, e daquelas
raras entreabertas de felicidade que lhe fizera sentir a companhia do pequeno
Daniel.

As saudades desses dias nunca mais a deixaram. Com ela vivia sempre, com
elas se achava só, quando, olhando para o passado, lhe pedia uma recordação
de prazer, em paga de tanta tristeza que, no presente, lhe oferecia a vida,
de tantas sombras, com que lhe vinha o futuro.

Nessa noite pensou também em Daniel; pensado nele, e naqueles breves
momentos que vivera, esquecida do infortúnio, na solidão dos
montes, chegou a iludir-se, a imaginar-se transportada lá; e esqueceu
o frio e o medonho da noite – que um outro lhos fizera desvanecer a vara mágica
da fantasia; – e insensivelmente parou-lhe a mão que fiava, descaíram-lhe
os braços, vergou a cabeça melancólica, e o pensamento
perdeu-se em longa e abstrata contemplação que, sem transição
apreciável, terminou em um sono profundo. Encontraram-se e confundiram-se
os últimos devaneios da vigília, com os primeiros sonhos em
que flutuavam ridentes as mesmas imagens, fantasiadas ou recordadas naquela.

Clara não pudera, porém, adormecer com a idéia do sacrifício
imposta à irmã. Do leito, onde se deitara com a mãe,
ouvia o som do soluçar de Margarida, e isto era um martírio
para ela. A boa rapariga pedia a Deus que olhasse por a pobre desvalida da
irmã, que já não tinha nenhum amparo, e, rezando assim,
chorava ainda mais do que ela. Cedo, porém, um alto e pausado respirar
deu-lhe a certeza de que a mãe havia já caído no sono.

Clara não hesitou mais.

Com todas as precauções possíveis, deixou-se escorregar
de mansinho entre o leito e a parede, colocou sobre os ombros uma capa de
baeta que encontrou à mão, e, com muita cautela, passou-se para
a cozinha, onde Margarida já tinha adormecido. Clara não a acordou.
Depois de a agasalhar com uma manta do leito, agachou-se ao lado dela e tirando-lhe
sutilmente a roca da cinta, pôs-se por sua vez a trabalhar.

Eram duas horas da noite e a tarefa estava terminada. Margarida dormia…
sonhava ainda.

Neste instante, um som, que julgou partir da alcova, fez recear a Clara que
a mãe tivesse acordado; por isso, mal teve tempo de correr a meter-se
no leito, procurando não excitar a desconfiança materna, e não
pôde chamar a irmã para a mandar deitar.

Passados alguns momentos, Margarida despertou. Ao lembrar-lhe que adormecera
com o trabalho mal principiado ainda, apertou-se-lhe o coração,
e a pobre criança juntou as mãos de desesperada. Mas que espanto
ao ver espiada a roca e fiadas as estrigas que lhe haviam dado por tarefa!

A sua primeira idéia foi que tinha sido aquilo um milagre da Senhora,
a quem se havia encomendado e cujo auxílio fervorosamente suplicara.
Tinham-lhe contado a lenda daquela freira que, abandonado um dia a ermida
da Virgem, de quem era devota, cega por uma paixão mundana, voltara
mais tarde às portas do claustro, coberta de arrependimento e de vergonha:
e, quando esperava recriminações e opróbrios, soube que
ninguém tinha lhe dado pela falta, porque a Senhora se compadecera
dela, e revestindo a sua imagem, viera todos os dias fazer o serviço
da clausura.

Margarida acreditou em outro milagre desse gênero e com estas idéias
se foi deitar, rendendo expansivas ações de graças à
Virgem, por tão miraculosa intercessão.

Mas, pouco a pouco, a verdade foi lhe aparecendo mais distinta, e pela madrugada
acabaram de confirmá-la alguns vestígios evidentes de Clara
ter estado junto de si nessa noite, e enquanto ela dormia; denunciou-a um
lenço que ela deixara cair na pressa com que voltara à alcova.

Nessa manhã, pois, Margarida aproximou-se da irmã, e beijou-a
com efusão.

— Obrigada, Clarinha, Deus te há de recompensar essa bondade.

— Se achas que mereço alguma recompensa, por que ma não
dás tu mesma Guida?

— Eu, meu coração? Que recompensa podes esperar de uma
pobre?

— Que não queiras muito mal a minha mãe por tanto que
te mortifica, e que… me tenhas um pouco de amizade.

— Querer mal a tua mãe, doida! E posso eu querer mal a quem
me dá o pão, de que me sustento, o teto e os vestidos que me
cobrem? Que eu nada disto tenho, Clarinha.

— Não me digas isso.

— A minha amizade, pedes-me tu! E um pouco de amizade disseste! E,
a não ser a ti, a quem queres que eu vá dar toda esta que Deus
me pôs no coração para dar? Da tua mãe recebo eu
a esmola do pão e do abrigo, agradeço-lha e rogo a Deus por
ela; a ti devo-te mais; devo-te a esmola da consolação e do
conforto; por isso te estremeço e quero, Clarinha. E tu duvida-lo?

— Esmola! esmola! Que palavra! De quem recebes tu esmola em casa de
teu pai, Guida? – perguntou Clara, com uma viva expressão de nobre
orgulho que lhe estava no caráter.

Margarida sorriu melancolicamente a esta exaltação da sua irmã
e respondeu:

— Esta casa não é de meu pai, é de minha…

Ia dizer madrasta, mas conteve-se, receando dar à palavra uma entonação
menos afetuosa.

Clara saltou-lhe ao pescoço, e, por um daqueles impulsos irresistíveis
da sua índole generosa e expansiva, exclamou, beijando-a nas faces.

— Guida, Guida, esta casa ainda há de ser minha, e então
veremos se me fazes a desfeita de lhe não chamares de tua também.

Doutra vez tinha ido Margarida vender fruta ao mercado. Com inacreditável
exigência havia-lhe a madrasta fixado, de antemão, qual seria
o preço da venda, não lhe permitindo baixá-lo, e obrigando
a pequena, ao mesmo tempo, a não voltar para a casa sem a ter realizado.

Os maus tratos e ásperas repreensões esperavam infalivelmente
Margarida naquele dia, visto a exorbitância dos preços estabelecidos
e uma tão grande afluência de fruta na praça, que barateara
o gênero. A rapariga chorava e lamentava-se, enquanto os compradores
sorriam ao ouvir o preço excessivo que ela pedia pela fruta.

Nisto apareceu Clara, que, por acaso, atravessava a feira naquele momento.
Viu a irmã assim aflita, e aproximou-se dela.

— Que é isso, Guida? Tu choraste?

— E admiras-te ainda de me veres choras, Clarinha?

— Mas… dize-me, por que foi isto?

Margarida contou-lhe tudo.

Clara ficou a olhar para o chão pensativa.

— E de tanta gente rica que há por aí, ninguém
terá alma de pagar mais cara alguns vinténs esta fruta, para
fazer bem a uma pobre rapariga.

O acaso fez com que descobrisse um velho, que, naquele momento, atravessava
o lugar, fazendo provisão de fruta, e parecendo não regatear
muito.

— Ai – disse Clara, ao encarar com ele – o meu padrinho, o Sr. Cônego
Arouca! Queres tu ver, Guida, como eu te vendo a fruta?

— Que vais fazer, Clarinha?

— Escuta.

E, imediatamente, arrebatando a canastra das mãos da irmã,
Clara correu a colocar-se no caminho do velho cônego, quando este prosseguia
no seu feirado.

— Muito bons-dias, meu padrinho, deite-me as suas bênçãos.

— Tu por aqui, Clarita? Deus te abençoe, rapariga. Então
que fazes tu?

— Sou muito pouco afortunada, meu padrinho. Sabe?

— Sim, pequena? Então por quê? Não encontraste
noivo ainda?

— Ora! está a brincar. Não é isso.

— Então?

— Trago à feira uma canastra cheia de frutas, e ainda não
encontrei compradores.

— E o defeito é da fruta, ou de quem a vende?

— Há de ser de quem a vende que lá a fruta… essa boa
é.

— Boa, sim; mas cara…

— Ora essa! meu padrinho. Nós cá não somos mais
do que as outras. Vendemos pelo mesmo preço que elas vendem.

— Ora deixa cá ver a fruta. Então quanto queres tu por
isso? Um dinheirão?

Este exame era simplesmente por formalidade, pois o cônego tinha resolvido,
de si para si, ser o feirante de toda a fruta, embora fosse dura como pedra,
e cara como o açafrão.

— Se for para o meu padrinho, o que quiser – respondeu Clara.

— Está bom. Não é má de todo. Passa-me
ai para a canastra do criado, enquanto eu faço as contas.

E, ao passo que a filhada cumpria a ordem recebida, ele mexia, e remexia
nos bolsos do colete, donde tirou não sei que moeda em ouro, que quadruplicava
o preço da fruta, e passou-a para as mãos de Clara, dizendo:

— Aí tens; o que crescer é para um lenço.

— Então muito obrigada, meu padrinho. E deite-me suas bênçãos.

— Vai com Deus, rapariga, e faz visitas à tua gente – respondeu
o cônego, dando-lhe a mão a beijar.

Clara voltou a correr para junto de Margarida, bradando-lhe:

— Vê, vê, não te aflijas. Fruta vendida, e uns créscimos
para tremoços.

Margarida agradeceu-lhe com um olhar, orvalhado de lágrimas de gratidão.

Assim continuou este viver por muitos anos mais, até que a mãe
de Clara adoeceu. Durante a moléstia, foi Margarida desvelada e incansável
enfermeira, colhendo sempre, em paga dos seus carinhos, modos rudes e ásperos,
expressões inequívocas de aversão que nunca deixava de
sentir por ela. A heróica rapariga não afrouxava por isso na
afetuosa caridade com que a tratava.

A doença agravou-se, e a morte foi declarada inevitável.

Neste momento solene, como que se abrandou o coração e falou
a consciência da moribunda, mostrando-lhe a injustiça do seu
procedimento para com Margarida.

À hora da morte chamou-a junto de si, e, apertando-lhe as mãos,
disse-lhe entre soluços:

— Guida – pela primeira vez lhe deu este nome afetuoso – perdoa-me!
Deus alumiou-me o espírito. Só agora conheço a minha
maldade e as tuas virtudes. Perdoa-me minha filha, e sê generosa até
o fim,. Clara fica só, é ainda muito criança. Lembra-te
que ela é tua irmã, aconselha-a, e estima-a, olha-me por ela.
Perdoa-lhe o ser filha de… tua madrasta.

Foram as derradeiras palavras que disse.

Margarida caiu sufocada de choro, junto do leito da morta. Não lhe
restava no coração a menor sombra de ressentimento contra aquela
que a fizera tão infeliz. Eram sinceras, como poucas, as lágrimas
dessa órfã.

Passado tempo, sentiu que um braço a levantava. Voltou-se: era o reitor,
que olhava para ela comovido.

— Muito bem, Guida, muito bem! – exclamou o velho com entusiasmo –
Essas lágrimas são generosas, são verdadeiras jóias
da tua boa alma. Elas devem ser de grande alívio para aquela cujo maior
pecado neste mundo foi o muito que te fez padecer.

E daí por diante ficou o reitor tendo por súbito conceito a
Margarida.

Capítulo IX

Depois da morte da madrasta, a sorte de Margarida tomou uma feição
mais favorável.

Vivendo na companhia da irmã, nunca mais teve que suportar aquelas
humilhações continuadas que a faziam corar.

Antes, no modo porque era tratada em casa, parecia ser ela a senhora de tudo,
e Clara a que recebia o benefício; contra estas aparências só
a sua modéstia protestava.

Clara possuía um coração excelente, mas faltava-lhe
cabeça para superintender nos negócios da casa; por isso pedira
a Margarida que os gerisse ela e lhe deixasse ir gozando a apetecida liberdade
dos seus dezoitos anos.

O pároco, por tutor das duas órfãs, sancionou e dirigiu
com seus conselhos esta disposição de coisas.

Mas um tal sistema de viver não podia bastar por muito tempo a Margarida.
Havia no caráter desta rapariga um fundo de dignidade pessoal que lhe
não deixava aceitar a vida plácida, que cordialmente a irmã
lhe talhara.

Habituara-se muito cedo ao trabalho e como ele contava.

— Se o desprezo agora – dizia ela a si mesma, pensando nisto, – quem
sabe se um dia, ao procurá-lo, ele fugirá?

Sentia-se jovem, com forças e coragem; envergonhava-se da ociosidade.
Entre os projetos, que formou então, um lhe sorriu sempre mais que
todos.

Margarida tinha uma educação pouco vulgar para a sua condição.
Várias circunstâncias haviam gradualmente concorrido para lhe
aperfeiçoar. Daniel fora, como sabemos, o seu primeiro mestre, e quando
outra razão não houvesse, as saudades que a vista e a leitura
dos livros ainda lhe causavam, lembrando-lhe aquele tempo, levá-la-iam
a procurá-los com prazer. Seguira-se a Daniel o reitor, conforme ao
que prometera ao discípulo. Vendo o padre a inclinação
da sua pupila para a leitura, fazia-lhe, de quando em quando, alguns presentes
de livros, depois de os passar pela crítica dos seus rígidos
princípios morais, e julgá-los salutares. Margarida lia-os com
ardor, e, pouco a pouco, costumou-se a lê-los com reflexão também.
Não sendo muito abundantes as bibliotecas da terra, era obrigada a
reler, mais que uma vez, os mesmos livros – o que é sempre uma vantagem
para a instrução colhida neles.

Além do interesse crescente que ia encontrando na leitura, um motivo
mais oculto lhe alimentava esse ardor – motivo que ele própria quase
ignorava, ou pelo menos não dizia a si. – Como que desta se forma se
aproximava de Daniel. Das duas inteligências de criança, que
se tinham visto a par, como duas aves que brincam na relva, uma levantara
vôo e subira; que admirava que a outra, saudosa, ensaiasse as forças
para a acompanhar? Para, ao menos, a não perder de vista de todo? Há
destes motivos ocultos das nossas ações, que passam desconhecidos.

O que é certo é que a sede de saber devorava Margarida. O hábito
da meditação, que adquirira, permitia à sua inteligência
tirar grandes riquezas da pequena mina em que trabalhava.

Um acontecimento favoreceu ainda estas tendências.

Um dia, acolheu-se à aldeia, a viver vida e privações
de miséria, um destes desgraçados, a quem as ondas do mundo
arrojam, náufragos e quebrantados, à praia. Era um homem, que,
saindo em criança ainda, daquela mesma aldeia, entrara, sob os sorrisos
da sorte, na vida das cidades. A instrução, a riqueza, as honras,
tudo o rodeara do prestígio que parece assegurar a felicidade. Se ele
a sentiu então, não o sei eu; – um dia, porém, como o
Jó da Escritura, viu as mão da desgraça baixar sobre
sua cabeça, privá-lo das riquezas, das dignidades e da família,
e deixá-lo só; só ao declinar a vida, só quando
já não há no coração fogo para alimentar
esperanças, vigor no braço para arrotear caminhos novos!

Este homem sacudiu a poeira dos sapatos à porta das cidades, onde
sonhara meio século, e veio, tendo por único arrimo a consciência,
procurar o teto que, nu, o abrigara na infância e quase o recebia na
velhice como de lá saíra, – teto que nem já era seu.

É uma história vulgar a deste homem. Insistir nela seria contar
ao leitor coisas sabidas.

A quem reservará a sorte o privilégio de ignorar uma história
assim?

Era, pois, um desgraçado. Isto bastava para que, ao seu lado, visse,
olhando-o compadecido, o rosto de Margarida e, animando-o, os sorrisos de
Clara.

O infortúnio chamou para junto do leito da miséria deste velho
desanimado, estas duas mulheres. Ao lado de todas as cruzes aparecem desses
vultos compassivos.

Com que havia de recompensar a devoção heróica de duas
juventudes à velhice empobrecida, quem nada tinha a dar?

Não lhe exigiam elas a recompensa, é certo; mas pedia-lha a
alma.

Dos amigos que tivera, só lhe restavam quatro; e esses lhe valeram.
Eram quatro livros…

Talvez os leitores já estivessem imaginado que este homem trouxera
ainda quatro amigos para a diversidade, sem serem livros. Custa-me desenganá-los;
mas não trouxe.

Foi nestes livros que Margarida encontrou novos alimentos para a leitura.
Não sei bem ao certo quais eram eles.

Estas leituras, dirigidas agora pela crítica esclarecida e o são
juízo do pobre velho, valeram imenso a Margarida, que, dentro em pouco
chegou a uma cultura intelectual, a que nunca tinha aspirado.

Por isso, na ocasião de formar projetos, para se dignificar aos próprios
olhos pelo trabalho, sorria-lhe principalmente a carreira do ensino. Ensinar
era aprender, ensinar era amar; e estas duas necessidades daquele espírito
generosos, aprender e amar, se satisfaziam assim.

Cultivar inteligências e cultivar afeições!… Que futuro!
A alma no íntimo apaixonada, de Margarida, exultava só com a
idéia.

Restava obter o consentimento de Clara, e que tática nãos seria
necessária para isso?

— Clarinha – disse-lhe pois um dia Margarida – vou pedir-te um favor!

— É possível! – exclamou Clara, sinceramente admirada.
– É esta a primeira vez que me pedes um favor, Guida. repara bem.

— Tanto mais razão para mo concederes, filha; não é
verdade?

— Assim me pedisses mil, Guida, para todos te conceder também.
Ora dize.

— Sabes? eu não me dou com esta vida de senhora, em que tu me
tens. Que queres, minha filha? Isto de trabalhar é hábito que
se ganha de pequena e não se perde mais…

— Mas, então – disse Clara, pondo-se séria como se suspeitasse
vagamente o que a irmã lhe ia dizer.

— Queria que me deixasses trabalhar.

— Mas não trabalhas tu tanto, mais do que eu, Guida? Podia eu,
sem ti, olhar por estas coisas de casa, de que não entendo, de que
não quero entender? Só se queres vir a lavar ao ribeiro comigo.
Ora! Guida, essas mãos delgadas já não foram feitas para
isso.

— O que dizes que eu tenho que fazer, Clarinha, não é
trabalho que ocupa muitas horas, como sabes. Resta-me ainda tanto tempo!…
Olha que os dias são muito grandes.

— Mas que queres tu afinal?

— Sabes?… uma coisa que eu desejava… uma coisa que me faria alegre
até!… não desejas tu ver-me andar alegre? não me ralhas
tu pelas minhas tristezas?

— Mas vamos ver o que tu querias; o que é que te daria essas
alegrias grandes? Alguma loucura grande também?

— Não é, não. Olha… se eu tivesse umas poucas
crianças para ensinar…

Clara não a deixou continuar.

— Tu, tu, minha irmã!… Ensinares tu as filhas dos outros?!
Viveres de educar filhos alheios!

— Oh! orgulhosa! Então isso é alguma vergonha? Anda,
lá, que o Sr. Reitor te ouvia…

— Mas que se diria de mim, Guida? Sempre tem coisas! Repara bem, que
se diria de mim?

— Que és uma boa alma, Clarinha, tu que reparte comigo a tua
casa, o teu…

— Guida! – exclamou Clara, interrompendo-a com um tom de repreensão.

— E que se dirá de mim, se não me concederes o que eu
te peço? o que se terá dito?

— Que és muito boa em não me abandonares, em me dares
conselhos, em me perdoares as minhas doidices.

— Mas não é também por o que dirão, que
eu te peço isto não; é porque o coração
me leva a pedir-to.

— Guida, por amor de Deus! Perde essa idéia! É uma desfeita
que me fazes.

— Não é, minha filha, não é. Pois bem,
pergunte-se ao Sr. Reitor, e se ele disser que…

— Ora, o Sr. Reitor, sim! Basta ser pedido teu para ele aprovar.

— Estás sendo muito má – disse Margarida, afagando-a.

Depois de alguma luta, foi resolvido consultar o pároco, ficando cada
uma com a liberdade de pleitear a causa própria.

Clara tinha alguma razão em suspeitar da imparcialidade do juiz. O
pároco, tutor das duas raparigas, costumara-se a admirar o bom senso
e a inteligência superior de Margarida a ponto de confiar mais nela
do que em si mesmo.

Decidiu pois a demanda em favor da irmã mais velha, excitando contra
si um amuo de Clara, que durou três dias. Era extensão excepcional
dos despeitos da boa rapariga; mas é que desta vez sempre se tratava
de Margarida, e em tais assuntos Clara era intolerante.

Em resultado de tudo isto, passados dias, começou Margarida sua tarefa
de educação, à qual se entregava com amor. As crianças
afluíam-lhe, atraídas por aquela suavidade de maneiras, que
constituía um dos mais fortes atrativos do caráter dela.

Esta fase mais bonançosa da existência de Margarida já
não conseguiu porém modificar-lhe o caráter pensativo
e suavemente melancólico, que a infância oprimida lhe fizera
contrair. Adquirira já o hábito da tristeza e das lágrimas,
e este, como todos os hábitos, não se perde facilmente.

No meio das recentes felicidades da sua vida, ela própria, por muitas
vezes, se surpreendia a chorar.

— Não é isto uma ofensa a Deus? – dizia então
consigo – Por que choro eu? Não tenho a amizade de Clara, amizade extremosa,
como ainda a não recebi de ninguém? Eu devo estar alegre e bendizer
ao Senhor, que não desvia de mim os seus olhares de misericórdia.

Em um momento de expansiva conversação, Clara disse-lhe um
dia, vendo-a assim triste:

— Não me dirás tu, Guida, o que hei de fazer para te
ver rir e estar alegre?

— Olha, Clarinha, a gente é como as flores, que umas nascem
com cores vermelhas que alegram, outras com cores escuras que entristecem.
Olha tu as violetas e os suspiros, que te digam por que nasceram assim e por
que, crescendo na mesma terra e sendo alumiadas pelo mesmo sol, não
têm as cores brilhantes da rosa.

— Bem respondido, sim senhora; daqui em diante hei de chamar-te sempre
a minha violeta.

— Criança! E tu, Clarinha, nunca te sentes triste?

—Triste por quê? Que tenho eu a desejar para ser feliz de todo?

— Tens razão. Tu… nada.

— E tu? – perguntou Clara, fitando os olhos da irmã.

— Eu…

E Margarida sem responder ficava mais triste ainda do que até ali.

Clara impacientava-se.

— Olha, Guida. Há muito tempo que ando vontade de te dizer uma
coisa; mas… como que até me chega vergonha de te falar nisto. Eu
não entendo nada destes enredos de justiça; mas… lembra-me,
em vida de minha mãe, ouvir-te dizer muitas vezes que… nada disto
era teu e… que dela recebias tu… a… a…

— A esmola do agasalho que me dava; e era… e é assim.

— E era e é assim! Guida! Eu não sei lá como os
homens fazem estas coisas. Mas se eu sou agora, como dizes, a senhora de tudo,
não quero mais ouvir-te falar deste modo. Quero que olhes, como teu,
tudo o que me pertence; que não me tornes a dizer essa palavra tão
feia, que ainda agora te ouvi. De outro modo, fico de mal contigo; isso fico.
Já o merecias por te estares a cansar com trabalho, sem precisão.

Margarida sorriu.

— E quando, para o futuro vier alguém tomar parte consigo nestes
bens, pensará assim como tu?

— Alguém! … como alguém?

— Sim; julgo que não estás para freira, Clarinha.

— Ai, e pensas nisso já? Pois bem, se assim for, hei de escolher
quem seja digno de ser teu amigo, ou então…

— Está bom, está bom. Dá cá um beijo, e
não falemos mais nisso. Farei tudo como dizes.

E a tristeza de Margarida não terminava ainda.

No entretanto o reitor ia-se afeiçoando todos os dias mais às
suas pupilas.

À mais velha dizia:

— Toma-me conta de Clara. É rapariga e amiga de brincar. Faz
com que te confie todos os seus segredos. Serve-te do poder que tens sobre
ela para a guiares, minha filha. Dá-lhe parte do teu juízo.

E por outro lado, dizia a Clara:

— Olha lá, rapariga. Tu anda-me com juízo, ouviste? É
bom rir e estar alegre, mas em termos, em termos. Segue os conselhos de tua
irmã e faz por imitá-la.

E consigo só, dizia, ao lembraram-lhe as duas:

– Excelentes corações! Deus lhe dê na terra a felicidade,
que eu lhes desejo e que são dignas. A Clarita bem está… Tem
dos bens da fortuna, não lhe faltarão arrumações;
mas a pobre Margarida… Se ao menos, por felicidade, tiver um cunhado que
seja um homem de bem!…


Capítulo X

Foi por isso que o reitor, ao perceber um dia a inclinação recíproca
de Clara e Pedro das Dornas, exultou com a descoberta.

Amigo das duas famílias, e conhecedor da boa índole de Clara
e dos sentimentos generosos de Pedro, ele só antevia ventura na projetada
união.

Em relação aos dotes, não havia entre os noivos grande
desigualdade, e, em vista disso, não era provável que, da parte
de José das Dornas, surgissem dificuldades sérias.

Por outro lado, a boa alma do noivo tranqüilizaria o reitor, em relação
à sorte de Margarida: ele a saberia estimar como ela merecia. Esta
consideração, sobretudo, fazia o contentamento do padre. Daí,
aquele conselho dado a Pedro – conselho que encontrou este em muito boas condições
de o observar.

Passados dias, procurou o reitor o seu amigo José das Dornas e comunicou-lhe
que Pedro estava resolvido a casar, e lhe pedira para servir de embaixador
em solicitar o consentimento paterno.

Como tinha conjeturado, o projeto passou sem oposição da parte
de José das Dornas, que antes ficou muito contente com a novidade.
Somente pediu o adiamento da época dos esponsais, para quando chegasse
do Porto, Daniel, que devia, naquele ano, terminar a sua formatura na escola
de medicina na Cidade Invicta.

Clara tinha, antes disso, respondido ao pároco, perguntando-lhe este
se aceitava o pedido de Pedro, que desejaria consultar a irmã. Aprovou
o Padre esta atenção delicada, e esperou-se pela resposta de
Margarida, de quem não havia grandes impedimentos a recear. Estava
Margarida a ler, quando Clara foi ter com ela.

Era já então uma simpática figura de mulher a de Margarida.
Não se podia dizer um tipo de beleza irrepreensível, mas havia
em toda aquela figura um ar de afabilidade e de meiguice tal, que nem avultavam
essas pequenas incorreções, só reveladas a um exame minucioso
e indiferente; mas a primeira, a grande, a invencível dificuldade era
conservar esta precisa indiferença ao vê-la. Os olhos, sobretudo,
negros como poucos, sabiam fixar-se com tanta penetração e bondade,
que só a contemplá-los, esquecia-se de tudo o mais. Não
possuía uma desses tipos fascinantes que atraem as vistas; era fácil
até passar por ela, desatendendo-a, mas fitada uma vez, o olhar deixava-a
com pena, e a memória conservava-a com amor. A boca tomava-lhe naturalmente
uma expressão de triste meditar, entreabrindo-se-lhe, de quando em
quando, os lábios por uma dessas mais profundas inspirações
que dissimulam um suspiro,

Clara aproximou-se da irmã sem ser pressentida e sentou-se junto dela.

O grupo graciosos, que ambas formavam assim, tentaria qualquer artista que
o visse.

A aparência jovial de Clara fazia realçar, pelo contraste, o
vulto melancólico de Margarida. Naquela tudo era reflexos de desanuviada
alegria interior, nesta difundia-se incessantemente uma dessas meias sombras,
como as que produzem as pequenas nuvens brancas que, sem ofuscar inteiramente
a luz do sol, lhe mitigam contudo um pouco o resplendor dos raios.

Clara tomou as mãos da irmã, sem romper o silêncio.

— Que tens tu, Clara? – perguntou-lhe Margarida – Não sei que
te leio nos olhos. Desconfio que me vais dizer alguma coisa.

— E vou.

— E parece ser de importância, ao que vejo; estás tão
séria! – acrescentou Margarida sorrindo.

— É que é deveras sério e muito sério o
que te vou dizer.

— Então?

— Querem-me casar.

— Ah!

— E olha, Guida, eu julgo que o meu noivo é um bom rapaz…
mas… sempre queria saber o que tu pensas dele, e se merece a tua aprovação.

— A minha!? E também te é precisa, filha?

— É, sim; pudera não. Já o disse ao Sr. Reitor
e ele concordou.

— Sois todos muito bons para comigo. Mas que te hei eu de dizer! Que
te diz o coração?

— Ora, o coração…

— O coração, sim. Por que não? Quando é
bom, como é o teu, deve-se sempre ouvir, e … quer-me parecer que
já o consultaste, antes de mim…

— Falo a verdade. É certo que já.

— E que te disse ele?

— Aconselha-me… que sim.

— Que mais queres?

— Que também me aconselhes.

— O mesmo que o coração, já se sabe.

— Não, senhora, com franqueza, aquilo que pensares.

— E quem é o noivo?

— O Pedro do José das Dornas.

— Ah!… Por certo que é um bom casamento. Conquanto pouco conheça
ainda esse rapaz, ouço dizer que é honrado, trabalhador, e …
de mais a mais, está bem.

— Então, aprovas?

— Se te fosse necessária a minha aprovação, dir-te-ia
que estimo até muito que se faça esse casamento, e que sejas
feliz.

Clara abraçou-a com efusão, e correu a dar parte ao Reitor
do resultado da entrevista.

Margarida ficou só.

O que acabara de ouvir da boca da irmã deixava-a pensativa. A idéia
de que a vida de Clara em breve se ia associar a de uma pessoa estranha, não
podia deixar de lhe fazer sentir graves preocupações pelo destino
dela e seu.

Era um problema proposto à solução do futuro, e Deus
só sabia como o futuro o teria de resolver. Clara ia entrar na vida
de família; ia cedo transformar em amor de esposa e de mãe todos
aqueles tesouros de sentimentos que, até então, a ela só
confiara, a ela, Margarida, à desvalida da sorte, à órfã
e esquecida sempre, e talvez dali em diante, ainda mais esquecida e mais desamparada
de afetos! Ao pensar nisso, não podia evitar certas angústias
de coração. Era mais uma afeição que lhe roubavam!
Pois nem esta lhe pertencia? E depois, como seria considerada pelo marido
de Clara? Humilhações, pudera-as suportar de sua madrasta ,
mas receava não ter já resignação bastante para
as receber de mais ninguém.

É certo que o bom nome de Pedro a tranqüilizava; mas quantas
decepções sobre os melhores caracteres humanos nos prepara uma
íntima convivência com eles? Quantos defeitos ocultos, ignorados
do mundo, a vida de família faz evidentes, a ponto de tornar inevitáveis,
discórdias, que aos olhos do vulgo nunca se justificam?

A corrente destes pensamentos tomou, porém, de uma maneira gradual,
diverso curso. O nome da família de Pedro não era desconhecido
para Margarida.

Andava-lhe associada à mais grata recordação da amargurada
infância da órfã. Quem em tão pequeno número
contava os corações que haviam simpatizado com o seu, que muito
era que se recordasse com saudade do pequeno estudante de latim que, de tão
longe, vinha sentar-se ao pé dela e falar-lhe com um afeto que até
então desconhecera?

Desde que as apreensões do reitor haviam ocasionado a partida de Daniel,
nunca mais Margarida lhe falara. Via-o todos os anos, quando ele vinha passar
as férias à aldeia, e não podia ocultar a si própria
a afetuosa atenção com que ainda então o observava.

Mas, pelos seus novos hábitos de vida, Daniel distanciara-se daquela
que conhecera em criança; nem dela talvez se lembrasse já. Margarida
pensava agora no caso, que os aproximava assim, e não podia, sem uma
vaga inquietação de espírito, ver, no futuro, a possibilidade
de uma entrevista com ele.

Os caráteres concentrados como o de Margarida alimentam-se ordinariamente
de uma idéia fixa… – Quantas vezes de uma ilusão? Que forma
o segredo inviolável da sua existência inteira. Abre-lhes ela
as portas de um mundo imaginário, para onde se refugiam dos embates
do mundo real, que impressionam dolorosamente a sua delicada sensibilidade.
Quando os encontramos sós, estes melancólicos devaneadores,
acreditemos que lhes povoam a solidão formas invisíveis, criadas
à poderosa evocação da sua fantasia; o silêncio
em que o virmos cair, dissimula-lhes os misteriosos diálogos na linguagem
desconhecida e intraduzível desse fantástico mundo. É
uma singular loucura procurar distraí-los, chamando-os à consideração
das coisas reais. A mais doce consolação, a mais festiva alegria
daquelas almas, é aquilo mesmo que se nos afigura tristeza.

Deixem-nos assim. Não queiram erguer-lhes a fronte que involuntariamente
se inclina, não tentem iluminar-lhes com sorrisos a fisionomia, sobre
a qual se derrama uma severa gravidade; não se esforcem por lhes tirar
dos lábios comprimidos uma palavra qualquer, o fogo da vida, que parece
tê-los abandonado, deixou somente a superfície, para mais intenso
se lhes concentrar no coração.

Margarida tinha também o seu pensamento secreto que, em momentos assim,
acariciava com amor.

Esse pensamento de longe lhe viera; há muito lhe era companheiro.
Assim como nas trevas da noite os olhos involuntária e quase irresistivelmente
se fixam no mais pequenino ponto luminoso, que lhes surja na obscuridade,
assim se voltava o pensamento de Margarida para o último raio, que
lhe luzira débil de entre as sombras da existência passada. A
cândida afeição de Daniel era esse raio; através
das diversas fases da sua vida a acompanhara sempre a imagem dele, modificando-se
conforme a natureza dos sonhos em cada uma. Aos vinte e dois anos, que Margarida
contava agora, recebera essa imagem toda a vida, de que um coração
juvenil anima as suas criações queridas.

De fato, não fora sem comoção de suspeitosa natureza,.
que a imagem de Daniel adolescente viera, por mal percebidas gradações,
afugentar das reminiscências da boa rapariga e do pequeno Daniel, que
ela conhecera outrora; não foi sem íntimas turbações
de ânimo que, de envolta com as memórias suaves desse curto passado,
a fantasia lhe começou a misturar vagas aspirações para
um futuro que, agradavelmente e melancolicamente também, agitava o
coração da ingênua cismadora.

Era bem triste, depois de sonhos assim, acordar na amarga realidade do presente
desencantado; mas era inevitável. O destino decidira de outra sorte.

– Vamos – dizia Margarida a si mesmo – Que mulher sou eu? Quando precisava
de dobrada força para o trabalho, ainda me ponho a pensar… não
sei em quê. Pensar!… É um luxo, com que não podem os
pobres – acrescentava, sorrindo amargamente – É um prazer de ricos
e ociosos. A nós, sai-nos muito caro cada minuto desperdiçado
a pensar assim.

– Clara vai casar – cismava ela depois – É forçoso que me separe
dela. Bendito seja Deus, que me inspirou esta divina idéia de viver
pelo trabalho; dele só e com ele deve ser agora principalmente o meu
viver. É custoso, porque querias devera a esta pobre criança,
mas é necessário. Um dia podia causar-lhe involuntariamente
mal, se ficasse. Hei de partir.

Capítulo XI

Procedia-se com toda atividade aos preparativos do casamento contratado.

José das Dornas não cabia em si de contente. A formatura de
um dos seus filhos, e a perspectiva do vantajoso casamento de outro eram para
isso motivos de sobejo.

Acrescentem agora que o ano tinha sido fértil, que o enxoframento
das suas vinhas prometia excelentes resultados, e poderão julgar se
tinha ou não razão o robusto lavrador para andar satisfeito
e para cantar, amiúde, a sua cantiga favorita:

Papagaio, pena verde,
Não venhas ao meu jardim;
Todas as penas se acabam,
Só as minhas não tem fim.

Depois de haver superintendido em todos os aprestes que se faziam na casa,
para receber o novo adepto da ciência hipocrática, José
das Dornas, cedendo àquela irresistível necessidade, tão
geral em todos nós, de transmitir aos outros parte das nossas alegrias,
comunicando-lhes a narração delas, saiu e transportou-se à
loja do Sr. João da Esquina, ponto de reunião da mais escolhida
sociedade da terra.

— Ora viva Sr. José das Dornas; passasse muito bem, é
o que estimo – disse o merceeiro do fundo da loja, onde, em pé sobre
um banco de pau, se ocupava a dependurar velas de sebo para satisfazer a requisição
de um freguês.

— Deus seja aqui – respondeu José das Dornas, sentando-se familiarmente
em um dos bancos, que havia por fora do mostrador.

— Muito calor, Dr. José – observou-se o merceeiro adiantando-se.

— De morrer – acrescentou o lavrador, tirando o chapéu e passando
o lenço pela cabeça escalvada.

— E então que se diz de novo? – perguntou o outro, pagando-se
da importância do gênero que acabava de aviar.

— Que se há de dizer? Que se vive, como Deus quer, e cada um
pode. Os velhos, como eu, com os seus achaques. – Tal foi a resposta de José
das Dornas, morto já por encontrar uma transição natural
para falar do filho, sem quebra de modéstia paternal.

— Então já se sabe que o Padre Custóias é
quem prega este ano o sermão da Senhora do Amparo? – disse João
da Esquina, que sempre que perguntava o que ia de novo, é porque tinha
alguma coisa a responder.

— Sim? – exclamou com afetada admiração José das
Dornas, a quem naquele momento a notícia importava muito mediocremente.

— É verdade. E a filarmônica é que vai tocar.

— Então a festa é de espavento!

— A confraria tem no cofre perto de cem mil-réis.

— Está feito!

— E diga-me, Sr. José, que lhe parece da pega do nosso reitor
com os do Amparo? Não acha que é um despotismo?

— Eu sei? Olhadas as coisas de certo modo, o homem não deixa
de ter alguma razão.

— O quê, senhor, o quê? – exclamou indignado o merceeiro
– Não tem razão nenhuma. Não me diga isso. Ora… pois
fale a verdade. De quem é a cera das promessas que fazem à Senhora?
Não é dela? A quem compete então o direito de a vender?
À confraria, que é a sua procuradora. Isto é claro como
água.

— Pois sim… não digo menos disso… mas… os direitos paroquiais…
enfim, não sei, não sei – murmurava José das Dornas,
ansioso por dar de mão ao assunto, sobredelicado para ele, que tinha
amizade nos dois partidos, muito fora do seu propósito naquela ocasião.

— Que direitos, que direitos? Tortos lhe chamo eu. Eu bem sei o que
aquilo é… Lembra-se do que o reitor de Cisnande fez ao do Mártir?
Pois temos outra aqui.

— Homem – insistiu José das Dornas, deveras impaciente por não
ver aproximar-se a conversa do tópico desejado, antes afastando-se
cada vez mais dele. – Não diga isso do Padre Antônio; você
bem sabe que o quinhão do nosso reitor é o quinhão dos
pobres. Mas… eu dessas coisas não entendo, nem quero entender; parece-me
contudo que era bom que andassem nisso com prudência e aconselhados
por quem possa dizer alguma coisa a tal respeito.

— Então o juiz da confraria é algum tolo? Olhe que o
João da Semana é homem para fazer frente ao reitor se…

Como já tivemos ocasião de dizer, João da Semana era,
por aquele tempo, o único facultativo da freguesia, e lisonjeiramente
conceituado na opinião pública da terra.

Desde que José das Dornas ouviu pronunciar o nome do velho cirurgião,
alegrou-se por lhe parecer preparar-se a índole da conversa em sentido
favorável ao assunto que ele mais pretendia tratar; por isso, logo
se apressou em observar:

— João da Semana é homem fino, bem sei. Mas é
também amigo velho do reitor; são amigos de tu, e por isso duvido
que queira deixar ir as coisas ao mal. De mais a mais, está velho e…

A conjunção devia ser a ponte de passagem para o assunto suspirado;
mas o merceeiro cortou-lhe no princípio.

— Velho, sim., mas robusto como poucos rapazes. Olhe vossemecê
que aquela alminha já às cinco horas da manhã tem visitado
mais de sete ou oito doentes.

José das Dornas julgou este terreno favorável para lançar
os alicerces da ponte que queria construir.

— Isso lá é assim; bem precisa de quem o ajude; e dentro
em pouco…

João da Esquina ainda desta vez lhe baldou a tentativa.

— Mas diz você que ele é amigo do reitor? Também
eu sou; mas isso não quer dizer nada, o que é de direito…

— Pois sim; eu não digo menos que isso; mas enfim…um cirurgião
tem o tempo tão ocupado… ainda se meu filho…

— Uma quarta de açúcar – bradou uma rapariga, que nesta
ocasião entrava na loja, e por essa forma, uma vez mais, impediu que
José das Dornas realizasse o seu intento.

Quando a freguesa se retirou ele, prosseguiu com constância digna de
melhor sorte:

— Mas ainda, se meu filho…

O tendeiro, porém, que, com a transação que operara,
tinha deixado escapar o fio da conversa, julgou que se tratava de Pedro e
perguntou:

— Então quando casa ele com a Clarita dos Meadas?

— Veremos; provavelmente breve; chegando do Porto o outro rapaz…

— Olhe que foi bem bom arranjo, Sr. Zé – continuou o tendeiro
com impertinente falta de percepção – Só o campo dos
Bajuncos é uma tal peça de lavra!

— E sobretudo é boa cachopa a rapariga; lá isso é.
Pois… quando vier o outro… – teimava o lavrador.

De novo um feirante veio interromper o discurso ao pobre do pai, que se vingou
mandando-o interiormente ao diabo. Já ia desesperando de conseguir
a realização do seu inocente propósito quando o reitor,
passando pela porta da loja, lhe perguntou:

— Então vem hoje o homem ou não?

— Eu espero que sim, Sr. Reitor – disse José das Dornas, levantando-se
e descobrindo-se. – Pelo menos não recebi notícias em contrário.

— Vê se me mandas avisar, logo que chegue que o hei de querer
ir ver.

— Não há de haver dúvida.

— Adeus.

E o padre continuou seu caminho, cortejando amavelmente, com um movimento
de bengala, João da Esquina, que apesar de partidário dos do
Amparo, não colheu friamente a saudação. Mas afinal,
graças às palavras do padre, tomou a conversa o rumo desejado
de José das Dornas.

— Como que então temos cirurgião novo cá na terra?
Ora Deus o ajude – disse João da Esquina.

— Enquanto João da Semana viver, há de custar a afreguesar-se
o rapaz – observou o pai traindo no gesto, porém, convencimentos contrários
ao que em palavra exprimia.

— Deixe lá. Há gente para ambos. A terra já vai
dando para dois, graças a Deus. E o rapazinho saiu esperto!

— Lá isso diga-se o que é a verdade, não é
agora por ser meu filho, mas todos o confessaram. Criança era ele ainda,
e já o reitor se espantava da memória do rapaz. E se você
visse, Sr. João, o livro que ele escreveu? Chamam-lhe lá teses,
ou não sei quê. Pelo modos, sem escrever aquilo, não podem
ter as cartas de examina. Eu tenho um que me mandou. Como sabe, eu daquilo
nada entendo, mas bem vejo que é obra acabada e bem feita. Deixe estar
que lho hei de trazer, para ver.

— Eu disso pouco sei dizer, não é a minha especialidade.

Não estamos habilitados para declarar aqui qual fosse a especialidade
do Sr. João da Esquina.

— Pois sim, bem sei; – continuou o pai – mas sempre há de encontrar
coisa que o perceba. O João da Semana também tem um que o Daniel
lhe mandou, e disse-me que está coisa asseada; e o Sr. reitor afirmou-me
que bem se conhece que o rapaz não se esqueceu do latim, porque em…
geografia, parece-me que foi geografia que ele disse, nisto que ensina a escrever
com letras dobradas, não tem nada que se lhe note.

— Bom é isso – replicou o tendeiro, já um pouco distraído
a somar as parcelas do seu livro de assentos.

José das Dornas continuou:

— Quer saber, Sr. João? Olhe que, pelos modos, o rapaz até
lá provou… Já sei que se vai admirar, mas olhe que é
fato, assim o leu no fim do livro o Sr. Reitor, até lá provou…
que não há doenças.

João da Esquina interrompeu efetivamente a sua tarefa, para fitar
no seu interlocutor uns olhos espantados.

— Que não há doenças?!

— É verdade – respondeu o lavrador, saboreando em delícias
a estupefação do seu vizinho.

— Essa agora! – dizia este ainda no mesmo tom de espanto – mas como
se entende isso?

— Assim como eu digo.

— Ó Sr. José das Dornas, então que é este
reumatismo que me não deixa mexer?

— Não sei. Diz ele que é outra coisa; lá lhe dá
um nome, mas é tão arrevesado, que me não ficou.

— Que não há doenças! Essa lá me custa
a engolir! Então para que andou o rapaz a estudar, e o que vem fazer
para cá, se não há doenças? Faz o favor de me
dizer?

— Ele não me disse que…

Mas João da Esquina estava muito ofendido nas suas crenças,
para o deixar continuar:

— Que não há doenças! Sempre é uma, a falar
a verdade! Não, não há! Que diabo viu ele então
lá no hospital? Ora essa! E que disseram lá os… mestres a
isso?

— É o que eu estou morto por lhe perguntar. Mas o Sr. João
admira-se? E então se eu lhe disser que ele provou também que
um homem é a mesma coisa que um macaco?

João da esquina fechou com impetuosidade o livro dos assentos.

— Irra! Está a caçoar comigo, Sr. José? Ele podia
lá dizer semelhante coisa?

— Pergunte ao Sr. Reitor, que assim o explicou: pergunte, se não
acredita.

— Eu não, pois… Macaco! Então eu sou macaco? Então
vossemecê é macaco? Então ele é macaco? Então
nós somos… Ora, isso não pode ser.

— Você, Sr. João, cuida que eles entendem as coisas assim
como nós. Isso tem lá sentido.

— Outro sentido! Que diabo de sentido há de ter? Todos sabem
o que é um homem, todos sabem o que é um macaco. Não
vejo que outro sentido seja. Macaco! Irra! Não, essa agora é
que me não entra cá.

— Ele, salvo seja – observou José das Dornas, rindo – aqueles
diabos parecem às vezes mesmo gente, lá isso parecem; o Sr.
João nunca os viu?

— Vi, vi; tenho visto muitos.

— Olhe que fazem coisas! Que, fora a alma, já se sabe…

— Pois sim; mas o… mas a cauda?

— Ah! lá isso… – respondeu o lavrador embaraçado.

— Ora então, aí tem – disse João da Esquina com
ar triunfante, capaz de fulminar Lamarck.

— Deixe ver se me lembro de outras que ele provou…

— Não; essa já não é má! Mas, ó
Sr. José, deveras ele disse?

— Ora essa, vizinho! Palavra que sim.

— Macacos! O rapaz não estava em si decerto. Macacos! Mas então
que queria ele dizer afinal? Pois nós somos macacos, Sr. José?
Ora diga?

— Não sei. Eles lá o lêem, lá o entendem.

— Vão para o diabo. Bem me importa a mim o que eles lêem
e o que eles entendem. Não está má essa! Macacos!

Durante este solilóquio de João da Esquina, fazia José
das Dornas por lembrar-se de mais outra das proposições, que
publicamente sustentara seu filho, perante o júri escolar.

— Ah! é verdade – exclamou afinal. – esta também lhe
vai fazer mossa. Já estou vendo… Diz que sustentou lá também
que a gente, verdadeiramente, devia andar com as mãos pelo chão.

O gesto de tendeiro foi tão violento, que José das Dornas acrescentou
como corretivo:

— Ele não diz isto bem assim, mas lá por umas outras
palavras, que eu não tinha entendido, mas que o Sr. reitor explicou.

João da Esquina conservava sobre José das Dornas um olhar desconfiado.

— Vai me parecendo que o Sr. José tem estado mas é a
caçoar comigo.

— Ó homem! Com a verdade com que eu falo, assim Deus salve a
minha alma.

— Então com que havemos de andar a quatro como, com sua licença,
as cavalgaduras?

— Não; ele tanto não quer dizer.

— Não quer? Mas se ele diz…

— Sim, mas ele não diz…

E os dois olhavam-se embaraçados. José das Dornas não
podia resignar-se a tirar a conseqüência, um tanto dura, formulada
pelo tendeiro; mas também não lhe corria escapula razoável.
João da Esquina aguardava em vão a resposta.

Afinal José das Dornas saiu-se de entre as duas pontas dilemáticas
deste " diz e não diz", graças a evasiva costumada
em casos tais:

— Homem, eles lá sabem o que querem dizer na sua.

— Eu julgo que não é necessário ser grande doutor
para defender isso. Mas que ande quem quiser com as mãos pelo chão,
que eu por mim…

— Outro – continuava José das Dornas – Disse que há muito
pouca diferença entre um … um alimento ou elemento, diz que é
a comida que a gente come, e um veneno.

João da Esquina já não podia espantar-se mais; limitou-se
a observar com ironia:

— Pois, quando ele vier, cozinhe-lhe vossmecê um guisado de cabeças
de fósforos com rosalgar, a ver como ele se dá. Se é
a mesma coisa… Sempre ao que ouço! estes médicos de agora!

— Enfim, mostrou muito outra coisa o rapaz e de que eu agora não
me lembro. Pelos modos deixou-os todos maravilhados.

— Se lhe parece que não!… sendo todas desse jaez.

Para os leitores, alheios a certas noções de ciência
e que se sintam tentados, como o Sr. João da Esquina, a duvidar da
veracidade de quanto José das Dornas referira, devo eu, em bem do caráter
sisudo do honrado lavrador, acrescentar aqui, à maneira de nota elucidativa,
informando-me com pessoa competente, soube que as proposições
que tanto impressionaram o tendeiro tinham seus fundamentos em várias
opiniões e teorias filosóficas mais ou menos à moda.

Daniel, com o amor extravagante natural a quem deixa aos vinte anos os bancos
das escolas, afeiçoara-se àquelas proposições
que, formuladas, pudessem aparentar-se mais paradoxais, não hesitando
em levar às últimas conseqüências os princípios
sistemáticos de algumas escolas e seitas.

Esta vulgar tentação da juventude não lhe granjeou grandes
créditos no conceito de João da Esquina, a cujo bem senso repugnavam
as asserções, que, pelo relatório do José das
Dornas, lhe vieram assim, nuas e cruas, ao conhecimento.

Assim que o lavrador virou as costas, João da Esquina murmurou com
os seus botões:

– Nada, para mim não serve o doutor. Se ele diz que não há
doenças, que há de vir cá vir fazer? E depois, pôr-me
em dieta de vidro moído e cebola albarrã ou outras coisas assim,
e mandar-me a correr de quatro pelos montes. Nada. Quero-me com o João
da Semana, que é homem sério, e não tem destas esquisitices
da moda.

Capítulo XII

Ao deixar José das Dornas, na tenda do seu vizinho da esquina, o
reitor, apoiado na grossa bengala de cana, companheira fiel das fadigas de
muitos anos, foi seguindo pelos caminhos poucos cômodos de sua paróquia,
entrando na casa dos mais pobres, onde levava a esmola e o conforto das doutrinas
evangélicas que tão singelamente sabia pregar.

Era esta, para ele, tarefa habitual.

Sentava-se com familiaridade à cabeceira do jornaleiro doente, ele
próprio lhe arrefecia os caldos, lhe temperava os remédios e
lhos ajudava a tomar; guiava com conselhos e ensinava com o exemplo os enfermeiros
que, entre a gente pobre dos campos, são quase sempre os mais pequenos
da família, aqueles que, pela idade, representam ainda uma parte pouco
produtiva da receita; porque os outros reclamam-nos as exigências do
trabalho.

No cumprimento desta obra de misericórdia, atravessou o reitor quase
toda a aldeia, e com o coração apertado pelos infortúnios
que vira, e desafogada a consciência pelo bem que fizera, continuava
placidamente a sua tarefa abençoada.

Depois de muito andar e de muito consolar misérias, parou por algum
tempo por debaixo das faias, que assombravam um largo terreiro, e sentou-se
com o fim de ganhar forças para prosseguir.

Enquanto descansava foi dar balanço às algibeiras, que trouxera
bem providas de casa. Este balanço foi desanimador para os projetos
ulteriores do velho. A esmola, essa sublime gastadora, que nunca abandonava
a direita do pároco nestas visitas pastorais, havia-lhe esgotado o
capital, sem que ele desse por isso.

O reitor mostrou-se mortificado; não que lamentasse o dinheiro gasto
assim, mas porque estava longe de casa, e tinha ainda mais infelizes a socorrer.

Poucas cogitações financeiras de um ministro de Estado, perante
um deficit no orçamento, valem as do pároco naquela ocasião.
Apertando entre o indicador e o pólex o lábio inferior e com
o olhar imóvel próprio das profundas abstrações
do espírito, conservou-se por bastante tempo irresoluto, entre o prosseguir
a sua visita com as mãos vazias, e o transferir para outra vez o complemento
dela.

Nem um nem outro alvitre lhe agradavam porém.

De vez em quando tornava a procurar nas algibeiras, a ver se lhe passava
despercebida alguma moeda, que o tirasse de maiores dificuldades. Mas de nada
lhe valia a pesquisa.

Enfim levantou-se; radiava-lhe a fisionomia com um ar de resolução
como se afinal lhe ocorrera o pensamento desejado; e foi já com andar
firme e decidido que continuou o seu caminho, murmurando consigo mesmo não
sei que palavras pouco perceptíveis, acompanhada ás vezes de
certa mímica de mãos.

Depois de trezentos passos, pouco mais ou menos, dados assim, achou-se o
reitor defronte de uma casa branca, cujas funções eram bem indicadas
pelo ramo de loureiro que pendia à porta e pelo coro e vozes e ruído
de gargalhadas e juras, que vinham do interior dela.

O padre tomou a direção desta casa.

Não o surpreendeu o espetáculo que presenciou, porque o esperava.

Alguns lavradores e homens de ofício, sentados à volta de uma
banca de madeira, todos formidavelmente munidos de grandes copos de vinho,
estavam ali recebendo simultâneas as comoções de beberronia
e de jogo de parar. Cada um deles seguia de olhos atentos as evoluções
do baralho de cartas, moído e sebento, que um banqueiro, igualmente
dotado desta última qualidade, executava a prestidigitação
de consumado artista; o ardor do ganho, a recíproca desconfiança
que os animavam, rompiam ainda através dos densos nevoeiros que pareciam
toldar aquelas vistas avinhadas.

Havia um considerável monte de cobre e alguma prata no meio a mesa
e montes parciais, mais ou menos bem providos, ao lado de cada jogador. A
cada sorte, que se decidia entre um silêncio e ansiedade de suspender
quase a respiração, seguia-se um vozear infernal composto de
exclamações de júbilo dos felizes e pragas dos sacrificados.

O reitor assomou ao limiar da porta, em um desses momentos de tumulto. Discutia-se,
quase tão desordenadamente como nas mais importantes sessões
dos nossos parlamentos, a legalidade e a inteireza da mão última
do jogo.

A correr parelhas com a pouca moderação das palavras, só
a das libações do vinho. Os copos vazavam-se e enchiam-se com
rapidez pasmosa, e o taberneiro a cada um que se despejava traçava
um sinal a giz na porta vermelha da cozinha.

O aparecimento do reitor causou sensação.

O primeiro movimento dos circunstantes ao darem por ele, foi o de esconderem
as cartas e o dinheiro; mas, na impossibilidade de o fazer a tempo, levantaram-se
e, com ar de embaraço, tiraram o chapéu e baixaram os olhos.

Houve um momento de silêncio, empregado por o reitor em reconhecer
os delinqüentes, e durante o qual estes não ousaram levantar os
olhos.

— Não é regedor, sosseguem – disse enfim o, reitor ainda
no, limar da porta – e pena é que não o seja para vos meter
a todos na cadeia. – E adiantando-se na taberna, continuou: – Santa vida esta!
Assim é que é ganhar o reino do céu! Sim, senhores! Aqui
estão uns poucos de santos varões, que empregam bem o seu tempo!
Respeitáveis e exemplares patriarcas, de quem muito se pode esperar
como educadores de família! Sim, senhores! – E, mudando para um tom
mais severo: – Vossas mulheres estafam-se com o trabalho, para dar um bocado
de pão negro aos filhos e a vós esta vida regalada, não
é assim? Ainda agora encontrei o teu pequeno, Manuel, que pedia esmola
pela porta dos vizinhos; não tens vergonha? – Tua mulher, Francisco,
estava há pouco de cama e teve de mandar à cidade a filha mais
nova com uma canastra de hortaliça, com que ela mal podia; ia a vergar,
a pobre pequena. Achas isso bonito? Teu irmão, João, ainda não
há três dias que foi pedir emprestado, chorando, ao José
das Dornas, dinheiro para pagar ao mestre da fábrica, em que traz o
filho na cidade; talvez tu não tivesses para lho emprestares? – Não
há muito o pobre José Maia se me queixou a mim, de que tu, Damião,
ainda lhe não tinhas pago por inteiro o preço daqueles bois
que lhe compraste. Mas que importam essas pequenas coisas? Que importa lá
a miséria que vai por casa, se não falta o dinheiro para o vinho
e para o jogo! Isso é o que se quer! E tu – acrescentou voltando-se
para o taberneiro, que, de trás do mostrador, assistia calado a toda
essa cena: – Tu vais engordando à custa destas misérias todas.
Passam fome as mulheres e as crianças, para te encher as gavetas e
a barriga! Ó Santo Deus! – e tanta desgraça, que por aí
vai, e tanta gente sem pão para comer!

— Essa é boa! o meu ofício é vender vinho, vendo-o;
faço o meu dever – resmungou o taberneiro despeitado.

— Fazes também o teu dever, enchendo com outro tanto de água
as pipas de vinho que vendes? e permitindo em tua casa estes costumes proibidos
pelos homens e amaldiçoados de Deus? – estes jogos infernais, que têm
levado tantas cabeças à forca, e tantas almas ao inferno? É
esse também o teu ofício? Pois deixa estar avisarei o regedor,
para que te dê a recompensa, por o bem que o cumpres.

O taberneiro não redargüiu.

O reitor voltou-se de novo para os jogadores, ainda silenciosos.

— Chego ao meio de vós com as mãos e as algibeiras vazias.
Vede. O dinheiro, com que sai de casa, ficou-me por esses caminhos, alguns
nas casas de muitos dos que vejo agora aqui. A esses não estou disposto
a perdoar a dívida, pois vejo que não precisavam da esmola,
que eu lhes dei; os outros, que têm para perder no pecado, também
hão de ter para a obra de misericórdia, ou tisnada trazem já
a alma pelo fogo do inferno. Tenho ainda muitos pobres para ver, e não
trago já dinheiro comigo. Peço esmola para os pobres – prosseguiu
o reitor em voz alta, e aproximando-se da mesa – quem não dará
aqui esmola para os pobres? – Amanhã, continuando vós nesta
vida, eu pedirei também esmola para vós. Lembrai-vos disso.

E a um por um estendia o chapéu, fitando-os com um gesto nobre de
composta severidade.

O respeito que lhe impunha a figura do ancião, pedindo desinteressadamente
pela pobreza, e em muitos, a voz da consciência, coroaram do melhor
êxito a inspiração do pároco.

Houve quem lhe despejasse no chapéu todo o dinheiro que tinha diante
de si.

— E tu?

— Não tenho nada – respondeu este homem com ar abatido – perdi
e devo.

— Não tens nada! – redargüiu o padre com amargura – tens
sim; tens cinco filhos e uma velha mãe moribunda.

O homem cobriu o rosto, para ocultar as lágrimas.

— A que vem esse choro agora? Pois julgavas tu que matarias a fome
à tua família por essa maneira? Para que te deu Deus os braços
robustos, homem, e o peito valente, se os negas ao trabalho? – E voltando-se
para os jogadores que sabia mais abastados prosseguiu com maior veemência:
– E vós tivestes alma para vos entregardes a este jogo danado com um
homem, que punha em cima da mesa o pão e o sangue dos seus filhos e
de sua mãe! Vergonha e desgraça sobre vós, miseráveis,
se dentro de um dia não compensardes o mal que fizestes, abrindo por
vossas mãos a este pai e filho desnaturado a carreira do trabalho,
que é da honra igualmente – dentro de um dia como podeis e deveis.
Eu vos forçarei a isso . Homens, que tão bens servis para perder,
servi um dia ao menos para salvar. Não podes pagar?… Alguém
pagará a tua parte.

— Não pode pagar, não – confirmou o taberneiro – que
a mim me deve ele uma conta, e não pequena, de vinho.

— Ah, sim? – disse o reitor, voltando-se para o da observação.
– Pois hás de ser tu que pagarás a parte dele. Ainda não
deste nada. Dá-me a sua dívida.

— Mas, Sr. Reitor… – balbuciou o taberneiro.

— Consideras-te mais que os outros! Só se for por seres o mais
culpado.

— Não, senhor… De boa vontade lha perdôo, lá
por isso… – e acrescentou falando consigo o taberneiro: – Não cedo
grande coisa, que perdida a tinha eu há muito.

Depois desta abundante colheita, o reitor continuou:

— Compensem ao menos com esta boa ação o pensamento diabólico,
que vos juntou aqui. E agora ide para vossas casas, e para o trabalho. Lembrai-vos
que mal vai a família e a fazenda do que se esquece na taberna assim;
e retenha-vos essa lembrança, se ainda não tendes endurecido
de todo o coração. O que entra rico nestas casa, sai a pedir;
se entrar pobre, sai criminoso. Ide. Fugi às tentações
destes inimigos – isto dizia tomando as cartas da mesa – e fazei como eu quando
as tiverdes à mão. – E, com um rápido movimento do braço,
fez voar todo o baralho até ao fogo, que em pouco tempo o reduziu a
cinzas.

E pondo outra vez o chapéu na cabeça, saiu da sala.

Após ele foram saindo também os jovens consócios da
taberna, que não se sentiam com alma de continuar ali.

Para alguns tinha de ser a última tentação.

O que menos contrito se mostrou foi o dono do estabelecimento que deu ao
diabo a intervenção do pároco na pacífica diversão
de meia dúzia de fregueses honestos e tementes a Deus. No entretanto
o reitor ia prosseguindo a sua visita e distribuindo pelos necessitados o
dinheiro dos ociosos. Sorria de satisfação o velho, ao fazê-lo.

— As grandes ventanias – monologava ele – são também
um mal para o lavrador, porque lhe derrubam as searas, mas… como se não
podem evitar… que se faz? – levantam-se nos montes as asas de um moinho,
e elas aí estão aproveitadas. Aproveitemos pois também
da loucura má desses perdulários, já que pude acabar
com ela de todo. Se a água é muita nas presas, não se
deixa extravasar à toa, abre-se um regueiro, que a leve onde ela seja
precisa. Ó Santo Deus! e então que há por aí terras
tão sequinhas de água! Doer-me-ia a consciência se tivesse
enchido a bolsa com as esmolas dos laboriosos e poupados; mas com as destes…
ora… folgo e orgulho-me.

Capítulo XIII

Ao chegar a um largo todo plantado de sobreiros, quase seculares, que havia
no centro da aldeia, ainda o bom do pároco levava as algibeiras bem
fornecidas.

A tarde aproximava-se do fim, estendiam-se já as sombras muito mais
para o oriente, e coloriam-se de vermelho afogueado as vidraças voltadas
ao ocaso.

O reitor encaminhou-se para uma das casas de mais miserável aparência
que havia naquele lugar.

— Terminemos por este – dizia o velho consigo.

Empurrou adiante de si a porta desta casa, e ia entrar, quando deu de rosto
com Margarida, que saia.

Os olhos vermelhos da sua pupila, a expressão de dor que trazia no
semblante, chamaram a atenção do reitor.

— O que tens, Margarida? – perguntou ele, como solicitude – Esses olhos
são de quem chorou.

— É que me despedaça o coração ouvi-lo.

— Então está mais doente?

— Está muito mal.

— E onde ias tu?

— A casa. O boticário quer o dinheiro dos remédios…

— Que não vá arruinar-se o homem. Deixa que tem de me
ouvir. É pior que o pior dos seus cáusticos. Porém, não
tem dúvida, que eu venho bem provido. Entra, mas antes alegra-me este
rosto. Vamos.

E os dois entraram na sala. O interior da casa não contradizia o aspecto
de fora.

Era a casa de um pobre.

Com a cabeça encostada nas mãos e os cotovelos apoiados na
mesa, estava um homem escanecido e pálido – tão absorto, que
nem deu pela chagada do reitor, o qual se aproximou dele lentamente.

Este homem era o infeliz que servia de mestre a Margarida.

O pároco ficou por algum tempo a observá-lo em silêncio;
vendo porém que não era sentido, dirigiu-lhe a palavra.

— Que grande dormir é esse, Sr. Álvaro, que nem dá
pela chegada de um amigo?

O velho levantou finalmente a cabeça como sobressaltado por aquela
voz.

— Ah! é o Sr. Reitor? Não dormia, não …

— Então?

— Pensava.

— Em quê?

— Em quê? E falta-me em que pensar? Na minha vida passada e na
futura, que está próxima já.

— O passado – disse o reitor, sentando-se do outro lado da mesa e sem
desviar os olhos do velho Álvaro – é um sonho, que se sonhou.
E quando dele, felizmente, não ficaram remorsos, que peçam reparações,
arrependimentos ou… penitências, perde-se muito tempo a pensar nele
assim. Da vida futura… bom é ter nela sempre o pensamento, decerto;
mas quem sabe lá quando nos está próxima?

— Sei-o eu. Há dois dias que me sinto fraco, muito fraco. Nem
já pude sair para, como costumava, ir ver o pôr-do-sol lá
acima dos degraus da capela do Calvário.

— Isso lá… todos nós temos dessas fraquezas, sem causa.
Há dias assim. E então desanima por isso?

— Desanimar! – replicou o velho, sorrindo tristemente – E que ânimo
tenho ainda para perder? Há muito que ele me falta na vida. Bem vê
– continuou apontando para Margarida – que tenho precisado de um braço
para me sustentar.

— Grande ânimo tem o que sai das grandes provações
com a cabeça levantada. Para que se faz de cobarde diante de quem lhe
conhece e admira a coragem? A Cristo, também houve uma mulher que lhe
limpou o suor da fronte vergada; e mais era um ânimo divino, aquele.

— Não, eu não sou forte – continuou o velho doente –
Colocado, como estou, entre a morte e a vida, receio-me de ambas. desfalece-me
o alento diante das provações continuadas de uma; assusta-me
a incerteza, o desconhecimento da outra. O meu coração é
muito da terra, para poder ser forte. Os meus olhos ainda não se secaram
para as lágrimas…

— Bem aventurados os que choram! – redargüiu o reitor.

— Como me há de sustentar a vida, se há muito que, onde
busco a consolação, encontro só o desespero? – continuou
o enfermo – Ao findar o dia, gostava eu de me ir sentar lá fora, a
ver descer o sol; mas, dentro em pouco tempo, tomava-me de uma tristeza profunda
e rompia em lágrimas, que não podia estancar. Aquele descimento
do sol lembrava-me outros ocasos. Eu tenho visto tantos! um dia, em volta
de mim, apagaram-se os esplendores da riqueza. O meu coração
era de homem… padece: mas Deus sabe que não foi para ele esta a prova
mais terrível. Outro dia apagou-se a luz da vida no olhar da esposa
adorada; outro, nos rostos de duas crianças inocentes, que, ainda a
morrer, me sorriem; então sim, fez-se noite em minha alma… Era isto
que me recordavam aqueles ocasos.

— Mas então para que procurava essas ocasiões de tristeza,
diga? – perguntou Margarida com afabilidade e quase sorrindo. – Olhe, se às
mesmas horas se voltasse para o outro lado, para aquele onde o sol nunca vai
se esconder, nem as estrelas, havia muitas vezes de avistar a lua que subia,
a lua que não deixava que a sua noite fosse escura de todo. Também
ela o afligiria assim?

— Também ela. As vezes a vi. Lembrava-me então que, para
mim igualmente, ao apagarem-se as mais ardentes afeições do
meu coração, nasceu a luz do teu afeto, melancólica e
suave como a dela, Margarida; entristecia-me com a lembrança.

— Por que? – perguntou Margarida.

— Porque tentando descobrir a força misteriosa que te aproximava
da minha desventurada velhice, a ti, a quem, pela idade, só alegrias
deviam atrair, encontrava apenas a explicá-la a tristeza dessa alma,
tristeza que é o segredo do teu coração, que a ninguém
revelas, e que Deus queira que não acabe por te devorar um dia.

Margarida desviou os olhos da vista fixa e penetrante do velho, e respondeu,
fingindo sorrir.

— Pois então, dessa vez, meu bom amigo, era bem sem razão
que se entristecia.

— Prouvera a Deus que o fosse… que o seja. Mas, bem vêem, havia
em mim muita amargura, para me ser suportável a vida. Se o pavor nos
está nos lábios, não há doçura de mel que
o disfarce. Vergava pois o peso da existência. Pedia fervorosamente
a Deus que me tirasse deste martírio, e era sincera a prece, era! Persuadi-me
eu que, ao ouvir bater a minha última hora, a saudaria com júbilo;
e agora que bem sinto que chegou… e chamam-me forte ainda! agora ou ouvi-la,
assusto-me, estremeço… Está próximo a revelar-se o
mistério… e que segredos me descobrirá? Que verá minha
alma ao rasgar-se a nuvem que caminha diante dela? Que verá minha alma
depois do túmulo? Que verá minha alma no dia de amanhã?

— A glória eterna, a bem aventurança do Céu –
respondeu o reitor com a firme convicção da fé.

O velho Álvaro fitou nele um olhar demorado e perscrutador, e depois,
escondendo o rosto entre as mãos, exclamou quase soluçando:

— Senhor! Senhor! por que me negais o bálsamo de uma crença
como esta!

O reitor contemplava com olhos de piedade. Para a sua alma, ingênua
e sinceramente cristã, era desconhecida e quase inconcebível
esta excitação febril, a que certa ordem de meditações
arrebata alguns espíritos ilustrados. A dúvida, esse demônio
inquietador, nunca dirigira às suas crenças piedosas a interrogação
fria e implacável, que as faz estremecer. Elas protegiam-lhe ainda,
como dantes, a cabeceira do leito contra os maus sonhos dos filósofos,
e, alumiado pela sua luz, achava-se também o bondoso pároco
no fim da viagem da vida, sem se lembrar de perguntar a que porto chegaria.
Sabia-o de pequeno; desde então lhe repetia o nome de contínuo.
Como que já aspirava as auras desses país e às vezes
quase se iludia a ponto de o julgar entrever. Era feliz na sua fé.

Contudo o reitor era destes homens que têm coração para
se compadecer de todos os infortúnios, daqueles mesmos que a sua inteligência
não compreende bem.

A solicitude, com que se aproximava dos infelizes, não podia comparar-se
à do médico, que procura sondar e conhecer o mal, para o debelar
apropriadamente; era antes como a da mãe, que responde a todos os gritos
do filho estremecido com beijos e lágrimas, e, se não cura assim
a causa da dor, porque a desconhece mitiga-a, por as simpatias que revela.

As palavras cheias de resignação cristã, que o reitor
dirigiu ao atribulado enfermo, serenaram a este um pouco as amarguras do espírito,
que o espinho da dúvida pungia; e foi com verdadeira gratidão,
que apertou as mãos do padre, quando este se preparava para retirar-se.

Uma das razões, que o levaram a resumir sua visita, foi o parecer-lhe
ter ouvido o rumor de altercação um pouco viva, travada à
porta da casa, entre Margarida, que momentos antes deixara a sala, e outra
pessoa, cuja voz parecia vir da rua.

Ao aproximar-se, o reitor percebeu melhor que sua pupila falava em tom suplicante,
e o interlocutor, se não com aspereza, com menos cordura, do que o
pároco desejaria. Isto obrigou-o a apressar o passo.

— Mas, por amor de Deus, fale mais baixo que não vá ele
ouvir. Eu lhe prometo que tudo se lhe pagará – dizia Margarida, quando
o reitor chegava junto deles.

— Que é? – perguntou este com modo desabrido, saindo para a
rua e fechando atrás de si as portas da casa.

O personagem que falava com Margarida baixou logo de tom ao reconhecer o
reitor, e respondeu com certa timidez:

— Era uma continha que trazia; mas uma vez que aqui a menina se responsabiliza…
Eu sou o senhorio. Sim, porque V.S.ª bem vê que se eu estivesse
no seu caso de poder fazer esmola de boa vontade…

— Quem lhas pede? – disse asperamente o velho padre, tomando o papel
das mãos do credor, que falara assim. – Para pagar aos vampiros como
você, é que se pedem esmolas aos outros; aos que tem coração.
Aluguer de dois meses – Olham a grande coisa! Então é o que
se lhe deve? Ai tem – acrescentou, contando-lhe o dinheiro. – Não repare
o ir quase todo em cobre; mas é dinheiro de esmolas, e poucas se realizam
em prata cá na terra.

— Mas, Sr. Reitor, eu não exijo de V.S.ª… eu confio…

— Leve isso daqui, homem! e saia você também que me está
inquietando o espírito.

O senhorio foi embolsando o dinheiro, insignificante preço de dois
meses de aluguer daquele miserável casebre, e retirou-se com uma alegria
profunda.

— Restam cento e dez – disse o pároco, vendo o dinheiro que
lhe ficara. – Chegará para os remédios? – perguntou olhando
para Margarida.

Esta fez um gesto de dúvida.

— Nesse caso, eu vou falar com o boticário, que não é
mau sujeito afinal, e hei de resolvê-lo esperar até amanhã;
E de caminho, irei também visitar o filho e José das Dornas,
que deve já ter chegado.

Estas últimas palavras não foram escutadas com indiferença
por Margarida.

— O Sr… Daniel chega hoje? – perguntou ela.

— Pelo menos o pai espera-o.

E acrescentou como para consigo

— Agora para aí vem estabelecer-se o rapaz. Deus queira que
ele sossegue aquela cabeça, que, segundo me informam, não tem
sido lá das mais assentes. Vai tu para casa também, Margarida.
O teu mestre fica mais sossegado e espero que dormirá.

O que é preciso é mandar recado ao João da Semana que
o venha ver. Acho-o muito abatido e mudado nos modos. Aquilo não está
bom. não. Adeus. Eu vou avisar a Maria do Caleiro que venha tratar
do doente. É uma esmola que se faz também à pobre mulher.

E o reitor saiu para realizar estes diversos intentos; Margarida, depois
de se despedir do seu velho mestre, que de fato parecia mais sossegado, partiu
também para casa.

Entre os pensamentos que a dominavam na volta, um dos mais persistentes era
o que a anunciada vinda de Daniel lhe sugerira; e contudo nada de extraordinário
havia no fato. Se quiséssemos dizer quanto lhe ocorria a este respeito,
ver-nos-íamos embaraçados. São tão vagas, tão
difíceis de apreender, as idéias que evocam em nós a
lembrança de uma pessoa querida!

Capítulo XIV

O grande acontecimento do dia realizava-se enfim.

Pelas cinco horas da tarde, parava à porta de José das Dornas
a mais vigorosa e anafada das suas éguas, e dela se desmontava Daniel,
em trajos de jornada e com a clássica caixa de lata ao tiracolo, sinal
evidente de formatura completa.

A vizinhança toda afluiu curiosa às portas e às janelas
para ver o facultativo novo e julgar dele pelas primeiras impressões.
Era uma coleção de olhos arregalados e bocas abertas, a convidar
o lápis de um artista.

— Ainda é tão novinho! – dizia uma mulher.

— Não sei o que me parece um cirurgião sem barba – observava
um velho filosoficamente. – Parece um estrangeiro.

— Lá bonito é ele – notava uma rapariga.

— Olhem que boniteza! Um homem quer-se um homem – argüiu um alentado
rapagão ao ouvi-la.

Neste tempo, porém, já Daniel estava rodeado pelo pai, irmão
e criados de um e de outro sexo, em cujos semblantes luziam naquela ocasião
sorrisos de júbilo não afetado.

Daniel era agora um esbelto rapaz de vinte e três anos, de aspecto
mais varonil, mas conservando ainda a mesma delicadeza de organização,
que o caracterizara na infância, e que tantas apreensões fizera
conceber ao pai.

No meio daqueles homens do campo distinguia-se singularmente o seu tipo quase
setentrional, e com grande vantagem para ele no conceito das mulheres, que
umas às outras faziam baixinho esta observação, traída,
porém, pelos olhares que lhe lançavam.

Trocaram-se cordiais abraços, baratearam-se parabéns e cruzaram-se
perguntas, às quais era quase impossível responder de pronto,
tantas e tão simultaneamente se faziam.

Enfim entraram para a sala.

O leitor concordará comigo, decerto, que será melhor deixar
passar estes momentos de expansões e retirarmo-nos discretamente, como
hóspedes importunos sempre nestas cenas de tanta alegria doméstica.
Deixemos Daniel gozar-se à vontade dos abraços da família,
e preparar-se para sofrer, como puder, os apertos de mãos oficiosos
de amigos e conhecidos, que não tardarão a vir cumprimentar
o zelador de suas importantíssimas saúdes.

Entremos, pois, com estes. que é a companhia que melhor nos convém.
Entre os primeiros encontramos logo o reitor.

O bom pároco caminhou para Daniel com os braços abertos e lágrimas
de alegria a bailarem-lhe nos olhos, Ficara com afeição ai rapaz,
desde que o tivera por discípulo.

Falou-lhe desses tempos com saudades e perguntou-lhe se ainda se lembrava
do latim.

Daniel, em resposta, declinou-lhe, sorrindo, hora, horae, e até ao
ablativo do singular, com grande satisfação do velho que, em
paga,. terminou com uma prática sobre os deveres do médico na
sociedade, recheada de preceitos de excelente moral. Daniel escutou-o com
fisionomia atenta; mas, diga-se o que é verdade, com o espírito
um tanto distraído.

Veio também João Semana – João Semana, o velho cirurgião,
de quem já temos falado, homem rude, franco, jovial, que apertou a
mão de Daniel, pondo em exercício uns músculos de oitenta
anos, que fariam a vergonha dos nossos rapazes de vinte.

Apesar dos seus muitos anos, tinha ainda João Semana hábitos
de atividade, a que não sabia fugir.

Erguia-se com estrelas, almoçava com luz e montava a cavalo, para
começar o giro clínico, que lhe tomava o dia quase todo, e nunca
reprimia a velocidade de sua pacífica e bem intencionada azêmola,
para gozar por mais tempo de um ponto de vista pitoresco, para escutar o gorjeio
de alguma ave oculta na folhagem, nem para cortar a flor desabrochada à
borda dos caminhos, ou de entre a relva dos campos. Nada disso; se abrandava
o trote da égua, era nos sítios mais azados a quedas, se parava,
era à porta dos doentes ou a ouvir alguma consulta, à qual,
até a cavalo, respondia, e nos mais lacônicos termos possíveis.

Dava-se nele uma necessidade de movimento e de agitação, à
qual em vão fora resistir. Quem o quisesse ver morto, era condená-lo
à inação, privá-lo daqueles sóis ardentíssimos
e chuvas excessivas a que, havia mais de meio século, andava sujeito.

Viam-no sempre alegre, da mesma alegria de José das Dornas, a alegria
sem sombras.

Era perdido por anedotas, das quais podia dizer-se um repositório
vivo. Os frades era ordinariamente os seus heróis preferidos; contra
eles tinha sempre um gracejo aparelhado e pronto a correr caminho.

Esta bossa anedótica é sempre de grande valor para o facultativo
que aspira à vida clínica. Uma história contada a tempo,
e com graça, vale bem três récipes, pelo menos.

Cirurgião dos pobres, por encargo oficial, era-o João Semana
também, e sê-lo-ia sempre, por impulsos do coração,
que lhe não deixava presenciar um infortúnio qualquer, sem simpatizar
com o que sofria, e sem empregar os meios para o aliviar.

Muitas vezes, na mão, que estendia ao pulso dos seus doentes, ia escondida
a esmola, que manifestamente se envergonhava de dar, por aquela repugnância
a ostentações de todo o gênero, que constituía
um dos distintivos do seu caráter.

A conversa de João Semana com Daniel, não entendida, e por
isso admirada pelos circunstantes, versou sobre medicina. As exaltadas crenças
teóricas de Daniel, e a casuística inflexível e fria
do velho prático acharam-se em conflito.

João Semana era céptico em relação à ciência
moderna. Quando Daniel lhe citava um autor em voga, ou se referia a uma descoberta
notável, a um medicamento novo, João Semana encolhia os ombros,
sorrindo.

— Tudo isso é muito bonito – dizia ele, com poucas contemplações
para com a impaciência do seu jovem colega – mas não me serve
para nada. Era o que me faltava se eu, que não tenho tempo para dormir,
me punha agora a ler essas coisas todas. Que nomes! que moléstias que
eu nunca vi, em sessenta anos de prática! Sabe você, Daniel?
Eu penso que lá por fora, nessas terras grandes, há fábricas
de moléstias novas, que felizmente por lá se gastam também;
cá à aldeia não chegam; é o que sei lhe dizer.
Você para cá virá, você para cá virá
– há de ver que na prática a coisa reduz-se a muito pouco, mais
gástricas, menos gástricas e disse.

Daniel falou em mil assuntos: nos aperfeiçoamentos da análise
médica, no microscópio, na eletricidade, na química,
na anatomia patológica, com um ardor de proselitismo, próprio
da idade; chegou a persuadir-se que sua eloquência conseguiria, enfim,
vencer o indiferentismo teórico do clínico.

Recebeu, portanto, uma impressão desagradável, quando ao terminar
um bem elaborado período em honra da ciência moderna, obteve
em resposta a frase do costume:

— Isso é tudo muito bonito, mas você para cá virá,
você para cá virá, e então falaremos.

Nesta parte, tornava-se, pois, impossível a conciliação.
Era o antagonismo permanente entre a teoria e a prática, revelado em
uma das suas multiplicadíssimas manifestações.

Mais arrojado do que o empirismo de João Semana, era, sem dúvida,
o sistema médico do barbeiro, que também tinha uma clínica
na aldeia, à qual, para maior exemplo de observância à
lei, pertenciam duas autoridades: o regedor e o presidente da câmara.

O barbeiro entrou risonho, cerimoniático, afável, modesto,
penteado, felino – perfeita personificação do ideal do barbeiro,
todo mesuras, todo senhorias, todo humildades, todo delicadezas velhacas.

E quantos estavam na sala o rodearam de atenções, e o próprio
João Semana, com grande espanto de Daniel, o interrogou com referência
a uma doente, de quem tratavam juntos.

Com audácia, mal encoberta por transparente modéstia, o barbeiro
expôs assim a sua opinião.

— Enquanto a mim, e até onde chegam as minhas fracas luzes,
aquilo é o flato que lhe subiu ao coração. Por isso a
doentinha tem aqueles pasmos, que se vêem. Ora os sinapismos, puxando-lhe
os humores para os pés, algum bem lhe podem fazer. Mas eu por mim,
Sr. João Semana, penso que nestas doenças de retrocesso a matéria
reimosa não sai sem sedenho. E que ali há matéria reimosa,
– e fel, que é ainda pior – isso é que há. Já
vê então… mas isto digo eu; agora lá os senhores que
estudaram… – acrescentou humildemente, mas obliquando para Daniel um olhar,
de quem estava satisfeito de si.

Daniel tratou senhorilmente este colega de contrabando, e na ocasião
em que ele se entranhava, mais entusiasmado, na exposição de
uma teoria sua, na qual ferviam os humores, os flatos, as matérias
reimosas, os postemas e não sei que mais, em indigesta caldeirada,
interrompeu-o, perguntando-lhe secamente:

— Teve hoje muito que fazer, mestre?

O barbeiro acolheu a pergunta com um sorriso e uma mesura.

— Está feito. Apenas fiz três visitas.

— E quantas barbas?

O mestre mordeu os beiços antes de responder:

— Nenhuma.

Este colega do célebre Oliveiro – o gamo – não gostava que
lhe falassem na única das coisas em que era eminente.

É uma fraqueza esta mais comum à humanidade, do que talvez
se julga.

João Semana reparar nesta curta cena, e tomando de parte Daniel, aconselhou-o
a que poupasse o barbeiro, e o aceitasse como colega, sob pena de indispor
contra si a mesma gente da terra.

— Meu caro amigo – concluía ele – quem quiser viver bem neste
mundo, faz vista grossa a muita coisa. Está bom, está!

E, como para não perder um hábito antigo, acrescentou:

— Você quer saber? Quando eu andei no Porto, conheci um frade,
que era pregador de nomeada. Pois não havia outro passa-culpas como
aquele; não gostava de meter medo a ninguém com as penas do
inferno. O prior do convento chegou um dia a dizer-lhe que ralhasse mais contra
o pecado, que não fosse tão bom de contentar; respondeu-lhe
o frade: "Não que, reverendíssimo padre, é preciso
tento; nem o diabo se deve tratar muito mal, porque ele tem por aí
muitos amigos". Ora pense nisto, e adeus, que vou à minha vida.

E saiu.

O resultado de tudo foi uma grande depressão no entusiasmo de Daniel,
pelo modo de vida que adotara.

Finalmente retiraram-se as visitas.

São quase trindades; a família toda, incluindo os criados,
que na aldeia fazem quase parte dela, está reunida em conclave na eira,
a experimentar cada qual, como à porfia, a sagacidade e ciência
do novo facultativo, interrogando-o sobre todos os pequenos incômodos
sentidos, de que a memória lhes pode sugerir ainda notícia.
É esta a prova tremenda, que espera o estudante de medicina em tempo
de férias, ou ao terminar a formatura – prova mil vezes mais decisiva
para o seu futuro, de quantos diplomas lhe possa dispensar a douta corporação,
da qual recebe os títulos profissionais.

Um perguntava a Daniel se a grama era mais fresca do que a cevada; outro
qual a razão porque os pigmentos da conserva nunca lhe faziam mal enquanto
a salada de alface lhe causava uma irritação no estômago
infalível; vinha outro que desejava saber se seria melhor purgar-se
no quarto crescente, se no minguante da lua; queixava-se um de arrepios, que
sentia ao deitar-se na cama, e principalmente no inverno; outro do muito que
suava no verão; um velho criado da casa, viúvo inconsolável,
fez-lhe a história circunstanciada da doença de que morrera
a mulher, havia dez anos, pedindo a Daniel que a diagnosticasse, e lhe expusesse
o tratamento que a devia ter salvo; em contraste com esta medicina retrospectiva,
vinha uma rapariga perguntar, muito ingenuamente, se lhe poderia fazer mal
ir a uma romaria de aí a oito dias: José das Dornas também
quis saber se o caldo de abóbora era melhor para a saúde do
que o de nabos. Uma velha interrogou Daniel sobre a doença das galinhas,
e o próprio Pedro, tentado por este exemplo, fez algumas perguntas
sobre a dos perdigueiros.

Daniel via-se em talas para satisfazer a tantas exigências, que não
timbravam de racionais, e procurava deslindar-se airosamente delas com aquele
desculpável grau de charlatanismo, mais ou menos correto e disfarçado,
que todas as sociedades do mundo, rústicas e urbanas, são as
primeiras a exigir aos médicos. Querem elas que se lhes responda sempre,
e com desaforada segurança, às suas interrogações
absurdas, preferindo serem iludidas, a ficarem sem resposta, a qual muitas
vezes, em consciência, medicina alguma do mundo lhes poderia dar.

Peço, portanto, um bill de indenidade para Daniel.

Capítulo XV

Pedro foi quem, ao cerrar da noite, pôs fim a este interrogatório,
que levava jeito de eternizar-se.

— Vem daí dar um passeio, Daniel; e de caminho hei de mostrar-te
a minha mulher… a que há de ser.

— Ah!… é verdade que estás para casar. Estimo que ma
dês ocasião de tomar desde já conhecimento com a que dentro
em pouco chamarei irmã. Espero encontrá-la digna de ti. Vamos
lá.

— Ide, ide, rapazes – observou José das Dornas – Vais ver uma
guapa cachopa, Daniel. Mas tu conhecê-la… É uma filha dos Meadas.

— Ah!… sim… tenho uma idéia.

Cumpre-me confessar que Daniel não tinha tal idéia das filhas
do Meadas. Enquanto esteve no Porto e até nos curtos intervalos de
férias que passara na terra, vivera ele muito estranho à vida
do campo, para se recordar ainda das alcunhas, pelas quais, na aldeia, mais
geralmente são conhecidas as famílias, do que ainda pelos verdadeiros
nomes e sobrenomes.

José das Dornas é que tinha uma idéia ao dizer aquilo;
era a de fazer lembrar ao filho o episódio da infância, que decidira
da sua vida inteira.

Mas, ainda sob o risco de indispor o ânimo das leitoras contra uma
das principais personagens desta singelíssima história, farei
aqui a desagradável, mas conscenciosa declaração, de
que a imagem de Margarida andava, por aquele tempo, tão desvanecida
já na memória de Daniel, que nem o nome, pelo qual fora sempre
designada na terra a família de Margarida, lhe pôde avivar os
traços.

Havia muitos anos que Daniel observava um sistema de vida, que de todo o
trazia desafeito dos hábitos campestres e indiferente ás coisas
e pessoas da localidade que o vira nascer.

Encarnara-se intimamente nele o espírito das cidades. As momentosas
questões que ocupavam as cabeças sérias da aldeia, faziam-no
sorrir: as distrações que entretinham as mais levianas, obrigavam-no
a bocejar.

Daniel não deixara mentir o prognóstico que aquelas duas boas
velhas, das quais não sei se o leitor ainda se lembrará, tinham
feito do jovem estudante de latim ao verem-no passar, sobraçando os
livros, para a casa do reitor. Durante os seus anos de estudo fora efetivamente
o filho de José das Dornas herói de numerosas aventuras de amor,
de mui diverso caráter.

Deixando-se impressionar de circunstâncias insignificantes, que outro
espírito, menos exaltado, receberia com indiferença, andava
ele quase de contínuo sob o império, fértil em deleitosas
sensações, de uma paixão nascente.

Este coração, eminentemente acessível e irritável,
não tivera quase, até final, um instante de sossego.

Eu disse este coração – quase me estou arrependendo de me ter
servido da palavra.

Entraria de fato, como elemento destas paixões efêmeras, tão
instantâneas como a combustão da pólvora, essa víscera
simpática que, a despeito dos médicos e da medicina, eu julgo
o sacrário augusto dos sublimes e duradouros sentimentos que constituem
o dote mais valioso do nosso patrimônio moral? Não sei; antes
me quer parecer que não.

Daniel amava de imaginação; nem eu vejo bem como pudesse amar
de outra maneira quem, por vezes, se deixou levar por futilidades quase ridículas.

O coração não é tão sujeito a fraquezas
desta ordem; ou eu ando muito enganado.

Houve, por exemplo, uma mulher que, durante alguns meses, conseguiu assenhorar-se
dos pensamentos do nosso herói pela maneira individualíssima
e inimitável, com que sabia dizer aquele gracioso ágora minhoto,
tão levianamente criticado pela gente da capital.

Ora diga-me se é este um fenômeno do coração,
e não antes um como desvario da cabeça, mais azada a tais singularidades.

Mas o que é certo que, fosse pela cabeça, fosse pelo coração,
Daniel achara-se, em todas as ocasiões que viera a férias, suficientemente
apaixonado para escapar à influências das formosas da sua terra.
Envolvia-o uma como que atmosfera de isolamento – para me servir de uma frase
da língua científica – e nesse ambiente não floresciam
os amores bucólicos.

Raras vezes mostrou recordar-se daquelas suas afeições de criança,
que tantas lágrimas lhe tinham já feito verter.

Só um dia em que, passeando nos campos, chegara por acaso ao pequeno
outeiro, onde sucedera a inocente cena de idílio, tão mal encarada
pelo reitor, foi que lhe veio à idéia essa passagem da infância,
já quase esquecida; e a imaginação lhe apresentou então
o vulto, suave e meigo da pequena Guida, como uma visão momentânea,
rodeada pelo branco perfume da poesia e da saudade.

Lembrou-se dessa vez de perguntar por ela. Disseram-lhe que tendo ficado
órfã de pai e mãe, vivia só com a irmã
e que ensinava meninas – tarefa que raras vezes lhe permitia sair de casa.

Daniel nunca mais renovou a pergunta.

Fora isto talvez dois anos antes da sua vinda definitiva para aldeia. Não
admira, pois, que com estas disposições mentais estivesse muito
longe de pensar em Margarida, quando, com segunda intenção,
o pai pronunciou o apelido da família da noiva de seu irmão.

Foi como por demais que Daniel disse ter uma idéia desse apelido,
o qual lhe soara quase como novo.

Acompanhando Pedro, levava ele, portanto, o espírito inteiramente
despreocupado, e somente um pouco movido pela curiosidade de ver a destinada
esposa de seu irmão mais velho.

Tinha-se por conhecedor em belezas femininas, e agradava-lhe sempre a análise,
aplicada a esta especialidade estética.

Àquela hora do dia são os caminhos a aldeia muito freqüentados
pela gente que regressa do trabalho a casa.

Os dois irmãos a cada passo se encontravam com vários grupos
de aldeões – homens, mulheres e crianças – que todos os saudavam
com as fórmulas sabidas; -"guarde-os Deus" – e "louvado
seja Nosso Senhor Jesus Cristo", – às quais ambos correspondiam
com outras análogas.

Subiam eles a encosta de uma pequena colina, no alto da qual, sob o fundo
magnífico do céu ainda iluminado pelos últimos rubores
do crepúsculo, se delineava o vulto negro de uma cruz de granito, quando
lhes chegou aos ouvidos o som de vozes longínquas, cantando concertadas;
simultaneamente pararam a escutá-las.

Pouco a pouco, a música tornava-se mais distinta, e cedo, ao lado
do cruzeiro, desenharam-se também as figuras graciosas de um bando
de raparigas, que voltavam à aldeia, entoando em coro uma saudação
à Virgem Maria – a predileta da piedade popular. Harmonizavam-se tão
bem aquelas vozes frescas e juvenis; combinava-se tão admiravelmente
a poética melancolia do lugar e da hora com a daquela toada singelíssima,
que Daniel sentiu-se comovido.

Os dois irmãos puseram-se de lado para deixar passar as raparigas;
e nem o mais estouvado deles teve coragem de interromper com a menor frase
de galanteio o coro piedoso que elas, sem interrupção, continuaram
cantando; e até de todo se perderem as vozes pela distância,
conservaram-se ambos silenciosos e imóveis.

Como se esta cena reconciliasse Daniel com a vida do campo, logo que prosseguiram
o caminho, ele exclamou, mais para si talvez do que para o irmão.

— Digam o que quiserem, há na aldeia belezas magníficas.
A cena é inexcedível – e isto dizia, correndo com a vista o
horizonte vasto que o rodeava – e as personagens, às vezes, são
bem dignas de atenção!

As raparigas do coro tinham-lhe ensinado a apreciar um gênero de beleza,
a que, até então fora indiferente.

Preciso é também que se diga desta vez, trazia Daniel, por
exceção, o coração, ou como quiserem, a cabeça
em disponibilidade – circunstância que não pouco concorreu para
o efeito produzido.

Chegaram enfim a casa das irmãs.

Era uma pequena, modesta, mas graciosa habitação, um pouco
fora já do centro do povoado.

A solidão em que ela ficava, própria a fomentar saudades, sem
quebrantar com desalentos, agradaria aos menos poetas. Havia tanto sussurrar
de folhagem, tanta pureza de ares, tanto desafogo de horizontes em volta dela,
que uma íntima serenidade se insinuava na alma do que parava ali. A
tênue claridade daquela ameníssima noite de estio mais realçava
ainda a poesia do lugar.

A casa era toda caiada de branco; abria para a rua duas largas janelas envidraçadas
que alguns pequenos vasos de flores adornavam. De um e de outro lado prolongava-se
um lanço de muro de sólida alvenaria, igualmente caiado, e que
a folhagem do pomar interior sobrepujava, caindo para o caminho as balsâminas
em festões verdes e floridos.

Foi à porta deste muro que Pedro bateu familiarmente, dizendo para
Daniel que estava saboreando o prazer daquela perspectiva.

— É aqui.

Uma voz e mulher correspondeu ao sinal de Pedro.

Era a de Margarida.

— Sou eu, Margarida, abre – disse Pedro – Sou eu e uma visita.

Passados alguns momentos, a porta girou nos gonzos, abrindo passagem para
um vasto pátio ou quinteiro, assombrado de ramadas, o qual, naquele
momento, atravessavam ainda algumas aves domésticas, retardadas, a
procurarem o abrigo das capoeiras.

Margarida que fora a que abrira a porta, ao ver Daniel, retirou-se sobressaltada
para a quase obscuridade, que interiormente projetava a ombreira.

— Não se assuste, Margarida – disse Pedro sorrindo ao perceber-lhe
o movimento. – Não se assuste ; é tudo gente da casa. Este é
o meu irmão, Daniel, o nosso cirurgião novo. Esta é a
minha cunhada, que já assim lhe posso chamar – acrescentou, voltando-se
para o irmão – é muito acanhada, e por isso não repares…

Daniel dirigiu um cumprimento distraído a Margarida, cujas feições
não pôde distinguir pela pouca luz que as iluminava. Demais eram
estas feições, como já atrás dissemos, daquelas
que exigem um exame mais demorado para se lhes sentir toda a sua beleza.

Podia dizer-se delas o mesmo que destas óperas, privadas de combinações
brilhantes, que não deixam impressão em quem uma só vez
as escuta; mas acabam por patentear segredos em harmonia aos ouvidos que repetidamente
as recebem, segredos que nunca se esquecem.

— Onde está a Clara? – perguntou Pedro, entrando, seguido do
irmão.

— No poço, julgo eu – respondeu Margarida, com a voz ainda trêmula
de comoção.

E, muito tempo depois de os ver passar, ali se conservou imóvel, com
o olhar vago, a fronte inclinada e o seio inquieto. O que ia neste momento
por o coração da pobre rapariga? Adivinha-o decerto a leitora,
se já pensou na delicada sensibilidade deste caráter de mulher.

A indiferença, com que Daniel passara por ela, o modo por que a saudara,
a frieza com que lhe ouvira o nome… tudo lhe mostrou que a não conhecia
já.

Dolorosa descoberta para aquela alma, tanto mais amorável, quanto
mais se encobria de manifestar os seus tesouros de afetos!

Foi com certa revolta de delicadeza feminina, com uma quase má vontade
contra si própria, que ela, sondando o íntimo do coração,
reconheceu o sentimento que o inquietava assim.

Como que se interrogava com a severidade do mentor para com o discípulo
mal encaminhado.

— Que loucura é esta, mulher? Pois ainda tens dessas criancices,
doida? Que pensavas tu? Que esperavas? Era acaso possível que ele se
lembrasse de ti?… E para quê? Não foi melhor que se esquecesse?
Dize.

Em situações como esta, opera-se em nós uma espécie
de separação em duas entidades de sentir contrário.

Arvora-se uma em juiz, interroga da maneira que vimos, fala em nome da razão,
julga, repreende, condena a outra quando, sob o severo exame da primeira,
mais subjugada parece, conserva, na sua humilhação, intato o
espírito de independência; assim como, curvada a cabeça
às admoestações da preceptora, a pequena discípula
sente em si o instinto de rebelião, que mal pode reprimir.

Em Margarida também se dava este antagonismo. Faltava-lhe a razão,
como dissemos; mais baixo, como a medo, murmurava-lhe outra coisa não
sei que voz mais atendida por ela.

— Podias – segredava-lhe essa voz – podias e devias esperar que ele
se lembrasse, sim. Acaso o esqueceste, tu?

Diga-se a verdade. Até aquele momento, Margarida conservava uma ilusão,
muito escondida dos outros e de si, mas nunca mais de todo extinta.

Avaliando, por os seus, os sentimentos dos mais, não podia convencer-se
de que, em Daniel, estivessem inteiramente apagados os vestígios daquela
infância, gozada em comum por ambos. Pensava que ele a reconheceria
logo, ao vê-la, que lhe não ouviria pronunciar o nome, sem que
a memória o repetisse; que o primeiro olhar seria fértil em
recordações, que bastariam só para ressuscitar o passado
inteiro.

Enganara-se; conheceu que se enganara, agora que o vira passar-lhe assim;
e apesar de toda a força de sua razão, Margarida sentiu enevoarem-se-lhe
os olhos de lágrimas, e a alma de melancolias.

Afinal de contas a boa da rapariga tinha um coração de mulher.

Perdoem-lhe esta fraqueza. Não há caráter humano que
as não tenha iguais; assim fora possível sujeitá-las
à rigorosa análise dos seus recônditos mistérios.

Capítulo XVI

Os dois irmãos dirigiram-se ao lugar onde, segundo as indicações
de Margarida, deviam encontrar Clara.

O ranger da bomba do poço, e a voz da alegre rapariga, que cantava
– pois nela dir-se-ia ser o canto, como nas aves, a mais natural expressão
– serviam-lhes de guia.

Tomando por uma rua extensa, revestida de limoeiros, através de cuja
espessura coava já, a custo, a claridade nascente do luar, conseguiram
aproximar-se, sem que fossem percebidos.

Clara cantava: Vem livrar-me com teus olhos,

Que eu por eles me perdi;

Dá-me a vida com teus beijos,

Já que por beijos morri. Porém, ao voltar naturalmente a cabeça,
descobriu Pedro na companhia do irmão; vendo-se surpreendida assim,
interrompeu de súbito o trabalho e o canto, e meia confusa, saudou-os
com os olhos baixos e a voz embaraçada.

Foi curta a apresentação, e em nada cerimoniática. Pedro
odiava etiquetas, ou antes, ignorava-as.

A figura de Clara, inundada pelos raios de lua, que já se levantava
esplêndida no horizonte, fez conceber a Daniel uma subida opinião
do bom gosto do seu irmão.

Não era Daniel homem para se coibir, por acanhamentos, em observação,
que tanto o deleitava. Sem disfarces, nem precauções, analisava,
feição por feição, aquela fisionomia simpática,
e como que lhe delineava com a vista o perfil, onde se continuavam graciosamente,
por suaves inflexões, as mais elegantes curvas.

Clara, adivinhando-se objeto daquela inspeção minuciosa de
conhecedor e entusiasta, não ousava erguer os olhos. Dir-se-ia que,
magnificamente condensados, os raios visuais, que a envolviam daquela maneira,
lhe tomavam os movimentos até mal a deixarem respirar.

Pedro sentia certo desvanecimento, lendo a tácita aprovação
da sua escolha, na expressão do olhar do irmão.

Clara conseguiu afinar dominar o enleio dos primeiros instantes, dirigindo-se
a Pedro:

— Então isto faz-se? – disse ela, ainda não de todo serenada
da primeira confusão, e descendo e apertando nos punhos as mangas da
camisa, que tinha arregaçadas – Trazer assim uma visita, sem dizer
nada à gente.

— É meu irmão – dizia Pedro sorrindo.

— Que tem que seja? Não é para assim vir ter com uma
pessoa, que anda cá no seu trabalho. E sem fazer barulho, então!
– Ora sempre! – Ora sempre! – E ao dizer isto, lançava para o noivo
um olhar que, tentando ser de repreensão, só conseguiu enlevá-lo.

— Olhe, Clarinha – disse Daniel, adiantando-se e dando às palavras
o tom de amigável familiaridade – O culpado fui eu. Mas que quer? É
costume antigo que tomei. Quando era rapaz, gostava já muito de ouvir
os rouxinóis que cantavam nos laranjais da nossa casa; mas eles, percebendo-me,
calavam-se. Sabe o que eu fazia então? Ia-me devagarinho, pé
ante pé, onde eles estavam, e lá me ficava a ouvi-los cantar
horas e horas. Foi o que fiz agora.

A lisonja não desagradou de todo a Clara, que respondeu gracejando:

— Os rouxinóis já não cantam neste tempo.

— Mas cantam outras vozes sonoras como as deles e mais felizes ainda;
pois nem as fazem calar as neves do inverno, nem os ardores do estio. Era
uma dessas que nós paramos para ouvir.

Clara, sentindo-se pouco à vontade para responder ao galanteio, disfarçou-se,
afastando-se como para regar as flores de um alegrete vizinho.

Pedro aproximou-se dela.

— Nunca mais – murmurou-lhe a rapariga ao ouvido – tornes a fazer uma
destas, Pedro. Também não sei como a Guida vos deixou entrar
assim. Eu lho direi.

— Ora vamos, Clara – disse Pedro, auxiliando-a na tarefa da rega –
não vás agora ralhar com a Margarida, que mais embaraçada
ficou ela do que tu.

— Sim!? Pois ai está, vês? Não tinha razão
para isso. A Margarida é outra coisa. O Sr. Daniel não falou
ainda com a Margarida? – continuou Clara, já mais senhora sua, e fazendo
uso desimpedido do olhar, que fitou no interpelado. – Ela é que saberia
responder bem. Quando quer, sabe dizer coisas… Até o Sr. Reitor,
muitas vezes, não tem que lhe responda. O Pedro que o diga.

Pedro fez um sinal de assentimento.

Este duo em honra de Margarida não causou grande impressão
em Daniel, que continuava a fitar Clara com persistente atenção,
encantado pelo timbre daquela voz, por aqueles movimentos, cheios de graça
e de vida, e pela inimitável expressão do olhar, meio de bondade
e meio de malícia, que ainda a branca claridade da lua fazia realçar
o seu fulgor.

A conversa tomou, pouco a pouco, familiar e jovial caráter de intimidade.
Só, alguma vez, uma frase mais cortesã de Daniel vinha tirar
a Clara a frieza de ânimo necessária à resposta – isto
com grande estranheza sua, pois não se tinha por demasiado tímida.

— Pobre João Semana! dizia Clara em um dos seus momentos de
malícia. – Quem mais o chamará agora, depois de haver na terra
médico novo?

— Está enganada; – respondeu Daniel – quando mais ninguém
o chamasse, teria por si a melhor de todas as freguesias, a das raparigas.

— Agora? E então por que o haviam de querer?

— Porque os médicos novos tem o mau costume de desejarem saber
das doenças do coração, e dessas não querem elas
tratar.

— Não sei por que não; pois não são tão
perigosas? Eu sempre ouvi dizer que se morria disso.

— Se se morre? Morre-se a todo momento até. Mas, pelos modos,
é um morrer de que se gosta.

— Deixe lá; sempre é morte, não pode ser muito
boa.

— Ora! Morre-se a cantar: Dá-me a vida com teus beijos,

Já que por beijos morri, Não era assim que se dizia?

Clara não pode suster o riso, e Pedro fez coro com ela.

— Ora, responda: se o médico tomasse a receita a sério,
e quisesse dar vida à sua doente?

— Isso mais devagar.

— Aí tem: é por esse motivo que não é bom
consultar os médicos novos. O João Semana é que não
é capaz dessas atenções, julgo eu… E que as tivesse…

Tal foi a feição predominante do resto do diálogo, que
só terminou quando a lua ia já alta no firmamento, com toda
a pompa de um desanuviado plenilúnio.

— Sabes tu – dizia Daniel ao irmão quando juntos se retiravam
– que não podia escolher mais galante noiva? Em toda a aldeia não
há outra decerto que se lhe ponha a par.

Isto foi dito já na rua, mas próximo da porta do quintal onde
se demorara Clara, a cujos ouvidos chegaram distintamente estas palavras de
Daniel.

Se elas lhe poderiam ser indiferentes, pergunto eu às leitoras bonitas.
Sendo sinceras comigo, não se atreverão a condenar este sentimento
de vaidade, que moveu o coração de Clara. Se a vaidade constituísse
pecado capital, talvez que certa particularidade do paraíso muçulmano
tivesse sua razão de ser.

Clara era pouco reservada.

Tudo quanto sentia, fossem tristezas, fossem alegrias, vinha-lhe do coração
aos lábios, por um movimento de expansão irreprimível.

Procurando, pois, a irmã, contou-lhe tudo quanto lhe dissera Daniel,
o que ela lhe respondera, e, finalmente, as últimas palavras, que lhe
havia escutado.

Margarida não foi senhora de seu coração a ponto de
não sentir certa amargura, ao comparar a intensidade da impressão
produzida por sua irmã no ânimo de Daniel, que péla primeira
vez a via, à indiferença, com que ela fora desatendida – ela,
por quem deviam falar tantas memórias do passado.

Eu já disse que Margarida não era de natureza tão superior,
que não tivesse dessas desculpáveis fraquezas. Muito para apreciar
é já a placidez nas ações, se como ela, se não
desmente nunca; seria exigência demasiada e um excessivo querer apurar
a natureza humana ao grau da perfeição quase divina, pretender
que, no mundo oculto dos pensamentos e dos afetos, reine também a inalterável
serenidade, que só pode ser de anjos, e nunca de criaturas, a quem
de contínuo os vendavais das paixões salteiam.

O que posso assegurar a respeito de Margarida – e já não é
pouco assegurar – é que este movimento de ciúme – nem eu sei
se tal nome lhe posso dar – se envenenou, convertendo-se em má vontade
contra o objeto, que lho desafiara.

Margarida não sentiu, para com a irmã, nenhum desses odiozinhos
feminis, que em tantas tempestades se desencadeiam às vezes.

Calou-se, sorriu até, e pensou consigo:

— E de que me serviria se fosse de outra sorte? Melhor é que
a memória lhe seja sempre infiel; melhor, muito melhor para o sossego
do meu espírito. Ainda bem.

Era ainda a razão que falava; mas o coração? Aí,
o coração!…

É inevitável a luta, sempre que a um espírito vigoroso
e lúcido anda associado um coração que sente, que se
comove sob a influência dos estímulos naturais dos afetos humanos.

Quando o coração é de gelo, a razão dirige desafogada,
imperturbável, em linha reta, o caminho da vida; quando a razão
abdica e o coração domina, o movimento é irregular, mas
livre; caprichoso, mas resoluto; funesto, mas incessante; porém se
o coração e a cabeça medem forças iguais, a cada
momento param para lutar, como atletas destemidos. De qualquer lado que tenha
de se decidira vitória, será disputada, até o último
instante, pelo contendor vencido; a pausa terá sido inevitável;
a reação enérgica; e a crise violenta.

Podem passar ignoradas de todo as peripécias desse combate íntimo;
mas a aparente tranqüilidade exterior mais lhe exacerbará a crueza.

Margarida escutou por muito tempo a irmã, sem saber como acolher aquelas
ingênuas confidências; afinal lembrou-lhe, sorrindo, que devia
ser menos sensível à opinião de estranhos quem, dentro
em tão pouco tempo, ia ligar o seu destino ao destino de outro.

Clara possuía um gênio, com o qual não se davam as apreensões.
Não calculava conseqüências. A vida para ela era o presente.
Raras vezes lhe lembrava o passado; o futuro não lhe tomava muitos
momentos de meditação também. As palavras e os atos irrefletidos
eram nela freqüentes. De nada suspeitava. A sua confiança em todos
e em tudo chegava a ser perigosa. Um inesgotável fundo de generosidade,
elemento principal daquele caráter simpático, levava-a ao cepticismo
em relação à malevolência e à má
fé que outros possuíssem. Parecia muitas vezes afrontar a opinião
do mundo, e não era por a desprezar, mas porque não pensava
nela.

Quem possui um caráter assim, se se não perde, se se não
perde inocentemente, é porque tem a defendê-lo a Providência,
porque o abrigam as asas do seu anjo da guarda.

Ouvindo depois a observação da irmã, Clara desatou a
rir.

— Que me estás aí a dizer, Guida? Que me estás
tu a dizer? Então, por eu me casar, devo deixar de fazer gosto de mim?
Olha, eu não me quero com gente muito sisuda. A ti perdôo-te,
porque enfim… és muito boa também, mas ainda assim não
perdias se … – E, mudando subitamente de tom, acrescentou com um pouco de
malícia na voz e no olhar: – Ora diz-me cá uma coisa, Guida,
com toda essa tua seriedade, não gostarias também que um rapaz,
assim como Daniel, dissesse de ti o mesmo? Anda, confessa.

— Doida!

— Tu és mais velha, bem sei, mas eu sou dentro em pouco mulher
casada e por isso posso fazer-te destas perguntas já. Anda, responde.

Esta jovialidade de Clara não foi recebida pela irmã sem confusão.

Em vez de responder, limitou-se a apertá-la nos braços, dizendo-lhe
quase ao ouvido:

— Então, Clara! É preciso ser menos criança. Quem
está para tão cedo tomar canseiras de família… A falar
a verdade…

— E cuidas tu que me hão de tirar esta alegria as tais canseiras?
Ai. Guida isso é que não. Com’assim… Olha, eu já não
nasci para tristezas.

— E talvez seja melhor – disse Margarida, respondendo a Clara, e pode
ser que, em parte, à seus próprios pensamentos.

Capítulo XVII

Era meio dia, um meio dia de verão ardente, asfixiante, calcinador,
a hora em que tudo repousa, em que as aves se escondem na folhagem, as plantas
inclinam as sumidades, desfalecidas de seiva, e os ribeiros quase nem murmuram,
de débeis e exaustos que vão.

Nem uma tênue viração fazia sussurrar as alamedas e os
soutos nos vales ou os pinheiros dos montes.

Apenas pelas sarças volteavam, como em danças caprichosas,
enxames de insetos alados, sendo o seu zumbido importuno, ou o cantar longínquo
dos galos, os únicos sons a interromperem o silêncio daquela
hora.

Os caminhos e os campos estavam desertos; povoadas e fumegantes as cozinhas,
onde a família do lavrador se reúne para a refeição
principal do dia.

Mas quem estendesse a vista pelo extenso lanço de estrada a macadame,
que corta em linha reta a povoação, e onde, naquele momento,
o sol batia em cheio sem ser impedido por a menor folha de árvore,
ou beira de telhado, descobriria o vulto de um cavaleiro, caminhando a trote
e envolto na densa nuvem de poeira, levantada pelos pés da cavalgadura.

Este cavaleiro era João Semana.

Trajava com toda singeleza o velho cirurgião. Um fato completo de
linho cru, botas amarelas de solidez de construção, à
prova de todo o tempo, chapéu de palha, de abas descomunais, tudo abrigado
daquele sol canicular por uma enorme umbela de paninho vermelho, rival em
dimensões de uma tenda de campanha, eis o vestido característico
do nosso homem.

As rédeas flutuavam à solta, sinal evidente da distração
do cavaleiro e dos admiráveis instintos e superior discrição
da alimária, que mostrava conhecer a palmos o caminho de casa e para
ela se dirigia mais apressada que de costume.

Causava dó olhar para a fisionomia de João da Semana naquela
ocasião. As faces de vermelhas, que naturalmente eram, quase se lhe
haviam feito negras; o suor corria-lhe, como lágrimas pelas faces abaixo.

Mas o heróico octogenário não desanimava. Sorvia filosoficamente
a sua pitada, assoava-se com ruído, e soltando depois um desses ahs,
bem guturais – eloqüentíssima expressão das delícias
que o olfato pode proporcionar a um mortal – dava mostras de consolado.

De caminho, ia João Semana lançando um olhar de comiseração
para os milhos dos campos adjacentes à estrada, algum do qual o calor
e a escassez das águas tinha definhado; e ao contemplá-lo parecia
mais sentir por ele, do que por si, a insuportável temperatura daquele
ambiente.

João Semana era também proprietário rural, e portanto,
apaixonado pela lavoura, conhecedor das leis de cultura, e experiente prognosticador
do futuro das novidades agrícolas; por isso, examinando com profunda
curiosidade o aspecto dos campos, cujos donos pela maior parte conhecia, quase
chegara a esquecer-se de que um ardentíssimo sol lhe dardejava sobre
a cabeça raios ameaçadores, tentando em vão exercer naquela
robusta constituição a sua influência maligna.

A égua é que não se esquecia assim facilmente disso,
e, cada vez mais rápida, procurava furtar-se a tão incômodo
calor, e ao seu inevitável cortejo de moscas, que a traziam impacientemente,
não obstante os folhudos ramos de carvalho, com os quais João
Semana lhe enfeitara o pescoço.

Depois de cinco minutos mais de trote acelerado, tomou o pobre animal, com
manifesta ansiedade e sem esperar sinal do cavaleiro, por uma rua estreita,
que abrindo-se ao lado esquerdo da estrada, seguia, sob espesso toldo de verdura
por entre duas quintas fronteiras.

Era um oásis, depois do deserto.

João Semana, porém, parecia tão indiferente ao vantajoso
da mudança, como o fora à desagradabilíssima influência
dos raios do sol, em campo descoberto.

Daí por diante começavam a ser mais freqüentes as habitações,
e, ao barulho que fazia a égua sobre o terreno sólido e nas
pedras soltas do caminho, assomava a cada janela uma cabeça. e João
Semana recebia um cumprimento e um convite para jantar, a ambos os quais ele
correspondia com benevolente familiaridade e às vezes com gracejos
sempre bem recebidos e festejados.

Logo ao princípio, foi um velho, em mangas de camisa, e de cabeça
já despovoada de cãs, que segurando uma enorme tigela de caldo
de tronchuda e vagens coroado por uma pirâmide de boroa esmigalhada,
apareceu à porta da cozinha, e disse com a boca meio ocupada por mantimentos,
e sorrindo:

— É servido do meu jantar, Sr. João Semana? É
pobre, sim, mas dado com a melhor vontade.

— Obrigado, tio José das Bicas, vou ver se lá em casa
a Joana tem também o meu caldo em bom andamento.

— Então vá com a graça do Senhor, vá, que
o calor não se sofre.

— Está picante, está. – E, andando sempre e falando,
já com as costas voltadas, perguntou: – E como vão os seus milhos,
Sr. José?

— Ora!… nem me fales nisso! A sequeira é muita.

— Veremos se para a lua nova haverá mudança de tempo.

— Deus o queira.

— Há de querer.

E prosseguiu no seu caminho.

Mais adiante, foi uma mulher idosa que espreitou do postigo de uma casa meia
arruinada.

João Semana desta vez foi o primeiro a saudar.

— Bons dias, tia Rosa. Então como vai lá o seu velho?
Fero e rijo, hein?

— Muito agradecida a V.S.ª. Está fraquinho ainda, e por
isso…

— Pois que saia, que saia. É preciso também trabalhar
para deitar foras as moléstias; nós não podemos fazer
tudo. Que passeie, diga-lhe que passeie. O mais que lhe pode acontecer, é
que dêem com ele as moças, mas disso não se morre.

— Já não está em idade para tanto, Sr. Doutor.

— Fie-se nele, fie-se nele; olhe que são os piores.

E, dando uma gargalhada, dobrou a esquina e tomou por outra rua.

Do interior de um pardieiro saiu-lhe ao encontro uma rapariga do povo, magra,
remendada, e como rosto que denotava aflição.

— Muitos boas tardes, Sr. João Semana – disse a pobre rapariga
com voz chorosa.

— Que temos lá, Maria? Alguma novidade?

— É que… dizia ela, hesitando e baixando os olhos.

— Fala; despacha-te, que vou com pressa.

— É que me esqueci do que me disse daquele remédio para
minha mãe…

— Então onde diabos tinhas tu o juízo, galo doido? Ai
que vocês andam-me com essas cabecinhas não sei por que terras,
e eu que vos ature depois. Aposto que te lembras melhor do que te disse ontem
o teu conversado?

— Ora, o Sr. João Semana tem coisas! É que não
sei se o remédio era todo para uma vez, ou…

— É o que eu digo; é o que eu digo. estouvada! Cabeça
no ar! Quantas vezes te repeti que era para três porções!
Cuidas que eu não tenho mais que fazer, do que andar sempre a cantar
a mesma cantiga por este mundo de Cristo? Ora vamos!

— E há de ser distantes da comida, que?…

— Que diabo aprendeste tu então de tudo o que eu te recomendei,
fazes favor de me dizer? Pois não te expliquei, cabeça de bogalho,
que era para dares meia hora depois das comidas? Que tinhas tu nos ouvidos?

— Muito agradecida, Sr. João Semana; e perdoe por as almas,
mas… a gente tem tanta coisa na cabeça…

— Valha-te uma figa.

E quando a rapariga se ia já a retirar, ele acrescentou, mudando e
tom:

— Olha cá, ó Maria, ouves?

A rapariga voltou-se. Levava os olhos vermelhos de chorar.

— Então que diabo é isso? Por que choras tu?

— Nada, Sr. João Semana: é cá de nossa vida.

— Quanto te levou o boticário pelo remédio?

— Seis vinténs.

— E… dize-me… E mataste hoje a galinha para tua mãe?

— Dei-lhe o resto de ontem.

— E para amanhã?

E a rapariga calava-se, embaraçada e triste.

João Semana tossiu para desimpedir a laringe de um pigarro importuno,
e pôs-se a olhar atentamente para um troco de árvore que lhe
ficava à direita, como se lhe achasse o que quer que fosse extravagante.

Durante esse tempo, mexia nos bolsos do colete e depois nas algibeiras das
calças; em seguida, olhando em roda, como se receasse ser observado,
curvou-se sobre o pescoço da égua e introduziu uma moeda de
prata na mão da pobre rapariga, dizendo-lhe como modo rápido
e desabrido:

— Toma lá. Olha agora se te pões por aí a dar
à língua, como costumas. Aflige bem tua mãe, aflige!

A rapariga não teve uma só palavra com que lhe agradecer. Quis-lhe
tomar as mãos para beijá-las; João Semana furtou-lhas
rapidamente, dizendo-lhe com simulada aspereza:

— Larga, larga. Não me venhas cá com essas imposturas,
que eu não sou para isso.

O melhor dos agradecimentos tinha-o ele nas lágrimas, que desciam
pelas faces da pobre, na expressão de entranhado afeto, que lhe animava
o olhar.

O velho cirurgião sabia compreender estas coisas, apesar das aparências
de homem endurecido de que fazia ostentação.

Ao afastar-se do lugar da cena que descrevemos, dizia ele para si.

— Excelente vida! Lucrativa clínica! rendeu-me esta consulta,
na verdade! Quem não há de fazer casa assim?

Estava o bom homem a fingir de interesseiro consigo mesmo!

Dentro em pouco tinha-se esquecido do que praticara.

Mais adiante, esperava um lavrador robusto, sentado na soleira da porta,
a comer um fêvera de bacalhau. Assim que João Semana se aproximou
levantou-se o homem e tirando o barrete:

— Nosso Senhor venha em sua companhia.

— Bons dias; então que há?

— Queria que vossemecê me dissesse se minha mulher pode comer
uma sardinha assada.

— Pode, mas de caminho avisa o padre que a venha sacramentar.

— Credo! mas então…

— Adeus, minhas encomendas. A perguntas tolas não se dá
respostas. Forte descoco!

E, sem mais palavras, estimulou o passo da égua.

O consultante sentou-se de novo, e voltando-se para dentro, disse:

— Ouviste-o? Ora aí tens.

Respondeu-lhe um suspiro.

Ainda não pararam aqui as consultas. Ao passar por uma azenha, o moleiro,
vindo à porta, anunciou ao velho facultativo que a mulher não
queria tomar remédio algum.

— Está no seu direito; – respondeu João Semana – e que
queres que eu lhe faça?

— Mas, sendo precisos?

— Sabes que mais, Francisco? Eu, se me não casei, não
foi para agora andar a aturar as impertinências das mulheres do meu
próximo. Atura-a , atura-a, rapaz, que são ossos do ofício.

E continuou cavalgando, e deixou o moleiro embasbacado. Depois de se ter
afastado, acrescentou, elevando a voz, mas sem se voltar para trás.

— Olha lá: sempre lhe vai dizendo que se amanhã não
a encontrar melhor, prego-lhe um cáustico nas costas, que lhe dá
de fazer ver estrelas ao meio dia. Ora anda.

Enfim, em um largo assombrado de castanheiros, foram duas crianças
as que lhe interromperam a passagem; assim que o avistaram, ergueram-se do
chão, onde estavam sentadas, tirando chapéu, e pondo-se a coçar
na cabeça.

— Que temos nós, pequenada? – perguntou João Semana.

Um dos pequenos foi o relator da comissão.

— O nosso Luís está doente, e a mãe manda pedir
ao Sr. Doutor para o ir ver.

— Está bem; lá irei de tarde; e como está tua
mãe?

— A mãe diz que está melhor, mas ela chora tanto!

— Tens razão, Manuel, em duvidar da saúde do que chora.
Pois eu verei isso. Vá; ide jantar e fazer rir vossa mãe, que
é meia cura já.

Por tal forma ia sendo o bondoso João Semana cumprimentado, interrogado
e consultado, e ele a responder a tudo com a máxima expedição
possível, que já lhe não sofreiam delongas as reclamações
imperiosas do estômago.

Chegou assim ao largo da igreja da freguesia, e atravessou-o por diante da
residência do reitor. Deitou de soslaio os olhos para as janelas da
casa paroquial, e, como as visse fechada, picou a égua, para ver se
escapava sem vir à fala, e evitava novo empecilhos.

Não conseguiu, porém , o seu intento.

Uma das vidraças correu-se repentinamente e o reitor apareceu à
janela, animado de sorrisos, e com um guardanapo na mão…

— Ó João Semana! Ó homem! Ó velhote! Pschiu!
– bradava ele.

João Semana foi obrigado a voltar-se.

— Que é lá?

— Espera; fala à gente.

— Vou com pressa.

— Então andas por fora com um calor desses? Isso é criar
malignas, homem.

— Que queres tu, abade? Meu pai caiu na patetice de me arranjar este
modo de vida. Se lhe tivesse dado na mania fazer-me padre, outro galo me cantara.

— Cuidas então que não tenho canseiras.

— Aí, dão-te muito que fazer as tuas ovelhas; estou vendo.

—E não dão pouco.

— Só a cardá-las com as côngruas e derramas! Por
isso estás magro. Para vos sustentar suamos nós outros.

O reitor sorria sem a menor sombra de ofensa.

— Vamos a saber: queres provar meu arroz?

— Eu? Já não tenho estômago criado para comidas
de padres. Padre, abade e egresso de mais a mais! Safa! Morria de indigestão
esta noite.

— Anda lá, anda lá; ainda não perdoaste aos frades.
Morres impenitente.

— Como queres tu que eu lhes perdoe o terem gozado sem mim aquela santa
vida de convento?

— Santa sim; porém sem mortificações, não.

— Oh! Decerto que não. Os melhores cozinheiros têm às
vezes os seus descuidos, e os paladares de V.Rev.mas, lá de quando
em quando, aturam o esturro no arroz, sal de mais na sopa, pimenta de menos
no guisado, ou outra coisa assim, lá isso…

— Valha-te não sei que diga. A vida é para ti, homem,
que, com oitenta, estás fero e robusto, e levas jeito de assistir ao
nascimento do século vinte.

— É para veres que fêveras eu sou. Se tivesse a tua vida
viveria como Noé. Mas tu estás a palanque e à fresca
e eu aqui estatelado a dar-lhe trela. Adeus, meu amigo.

— Olha cá, espera, homem. Então nem um cálice
do meu bastardo, hein? Olha que é do que tu gostas.

— Prefiro uma garrafa em minha casa.

— Lá franco no pedir és tu! Mas do que ninguém
se gaba é de saber o gosto do teu moscatel.

— Querias talvez que eu te mandasse um presente de vinho? Era o que
me faltava! Presentes de vinho! E a um frade!…

E dizendo isto, pôs-se a caminho, achando-se, dentro em pouco, a distância
já considerável das residência.

De repente, como se lhe ocorresse uma lembrança cuja comunicação
não podia sofrer demoras, voltou de novo atrás, e elevando a
voz:

— Ó abade, tu não sabes a história daquele frade
franciscano que?…

— Não sei, não; ora conta lá, João Semana,
conta – disse o reitor, debruçando-se no peitoril da janela, e já
com aspecto risonho.

— Havia lá no convento – principiou João Semana – uma
pintura muito grande representando a ceia de Cristo; e era pintura a que mais
atraía as meditações piedosas do tal reverendo, o qual,
de olhos fitos naquele quadro, passava horas e horas esquecido de tudo o mais.
Outro farde, que tinha notado isto, não pôde ter mão em
si que lhe não perguntasse com aquela voz de lamúria de franciscano
manhoso: "Em que pensais vós, irmão, quando com tanta atenção
olhais para este quadro?" "Nos tormentos que por nós padeceu
o Salvador" – respondeu o tal. "E longos foram na verdade!"
– continuou o primeiro. "Mas por que esta pintura mais do que as outras,
vos traz tão santas idéias? Não tendes na sacristia a
do Descimento da Cruz e aquela do Senhor preso à coluna?" "É
verdade, irmão,! – diz-lhe então o franciscano com cara de mortificação
– "é verdade, mas olhai que não menor tormento era este
de ter doze pessoas à mesa, e tão pouco de comer em cima dela".

E João Semana, dizendo isto, roçou as esporas pela barriga
da égua, e partiu, acompanhado de uma grande gargalhada do reitor,
que era perdido por as anedotas de João Semana.

— Onde diabo vai este homem buscar estas coisas? – dizia o reitor chorando
de tanto que se riu.

E João Semana ia quase a dobrar a esquina quando de novo o suspendeu
a voz do padre, bradando-lhe:

— Ó João Semana, olha lá.

— Que é? – respondeu o facultativo, já com certo mau
humor – Tu queres que eu fique hoje sem jantar?

— É só uma pergunta.

— Dize.

— Não sabes que chegou ontem o Danielzinho do Dornas?

— Como não sei? Pois não estive eu já com ele?

— Ah, sim? E então que te perece o homem?

— Que me há de parecer? Bem. – e depois acrescentou: – Bem e
mal.

— Como é isso? Bem e mal?

— Sim , o rapaz éeacute; talentoso, e nas cidades talvez fizesse figura;
para aqui não serve.

— Ah! João Semana!… Ciúmes…

— Estás doido? Tomara eu que ele me descarregasse de parte desta
tarefa, mas… dize-me lá tu se aquele corpo franzino, aquela pele
de mulher pode aturar metade, a quarta parte, a décima parte do que
eu tenho aturado.

— Lá isso.

E dizendo isto, sempre conseguiu dobrar a esquina.

O reitor fechou a janela e foi jantar. Sentado à mesa ainda sorria
de quando em quando, repetindo à meia voz:

— Doze pessoas à mesa, e tão pouco de comer em cima dela!
Ora o diabo do homem…

Capítulo XVIII

Enfim, chegou João Semana ao lugar, onde se erguiam os seus solares.

A égua saudou a aparição dos telhados domésticos
com a mais melodiosa das suas emissões de voz.

O próprio João Semana não foi insensível à
perspectiva, que o dobrar do último cotovelo de uma rua tortuosa lhe
patenteou, porque o seu estômago tinha também necessidades que,
como todos os outros, manifestava. Ao aproximar-se, recebeu, porém,
uma desagradável impressão.

Avistou encostado à porta da casa o criado de uma freguesa sua, o
qual provavelmente vinha requisitar-lhe a assistência e talvez com toda
pressa. Tais estorvos, à hora do jantar, eram da maior impertinência
para João Semana. Doente que lhe quisesse fazer a vontade, não
devia adoecer a hora tão crítica.

O seu pressentimento saiu verdadeiro. Ainda ele se não desmontara,
e já o criado que o esperava, lhe dizia, com grande impaciência
do facultativo:

— A Sr.ª D. Leocádia mandou-me esperar por V.S.ª para
lhe pedir o favor de ir, logo que chegasse, à casa dela.

— Quem está lá doente?

— Não sei dizer a V.S.ª

— Pelo costume é toda a gente. Todos se queixam, pelo menos,
quando eu lá vou. E… vamos a saber, e é de pressa?

— Julgo que sim, senhor, visto que me mandaram esperar.

— Isso não tira. Seria para se verem livres de ti, e parece-me
que têm razão.

— Ora, isso é graça.

— É graça, é, mas… Vamos lá ver o que
me quer a Sr.ª D. Leocádia. A falar a verdade… a esta hora…
Valha-me Deus, valha. – E voltando-se para o criado pequeno, que viera ajudá-lo
a desmontar, continuou suspirando:

— Deixa estar, Miguel, deixa estar. Eu…como assim, não me
desmonto. Torno a sair.

Mal acabara de dizer estas palavras, correu-se uma vidraça do andar
superior, e a cabeça de uma velha criada, convenientemente armada de
largo pente de tartaruga, assomou à janela. esta aparição
foi logo seguida das seguintes palavras, muito açucaradas:

— Ouviu, Sr. João Semana? Não vá, sem primeiro
subir.

— Pois que há?

— Tenho que lhe dizer.

— Diga então daí.

—Ora essa! Não é maneira de falar a que diz. Suba, se
faz favor, suba primeiro.

— Mas essa senhora que espera?

— É um instante só.

— Valha-a Deus! – disse João Semana, apeando-se e preparando-se
para obedecer à criada. Já do portal, voltou-se para o mensageiro
do recado, dizendo-lhe: – Espere um bocadinho, que eu vou já.

— Nada, nada – acudiu de cima a criada – Pode estar fazendo falta às
senhoras. É melhor ir, que o Sr. João Semana vai já também.

— Mas… – quis objetar o criado.

—Vá, vá. Basta o tempo que se demorou já aqui,
e sem precisão, porque eu cá daria o recado. Diga em casa que
já o Sr. João está lá num momento.

Isto foi dito com certo tom intimativo, ao qual o criado, habituado a obedecer,
não pôde resistir. Partiu.

Logo em seguida, a expedita velha disse, em tom mais baixo, mas não
menos imperioso, para o rapaz, que ficou a segurar as rédeas da égua:

— Miguel, avia-te, meu pasmado; mete essa cavalgadura na cavalariça,
e anda por cima.

— Mas o patrão…

— Anda, papalvo, faze o que eu te digo.

E Miguel assim o fez.

Quando João Semana entrou na sala, onde era esperado pela criada,
e ia perguntar a notícia prometida, ficou surpreendido, achando a mesa
posta e uma enorme malga de sopa, exalando odoríferos e apetitosos
vapores.

— Que é isto? Que foi fazer? – disse o velho cirurgião,
olhando para a criada, a qual procedia azafamada aos mais preparativos para
o jantar. – Então tirou a sopa, e eu tenho de sair ainda.

— Que sair? que sair? Era o que faltava. Não basta o calor que
tem apanhado já? Ande lá, ande lá, que, enquanto não
cair deveras doente, não há de escarmentar, já vejo.

— Mas, mulher, não viu o que eu disse àquele criado?

— Deixe lá. Daqui até a casa tem ele de parar em mais
de quatro tabernas e de se demorar meia hora em cada uma, pelo menos. Verá
que há de ainda chegar primeiro do que ele. Vamos, vamos. É
jantar.

— Se eu nem mandei desaparelhar a égua!

— Alguém teve esse cuidado. Ande, que o caldo arrefece.

— E aquelas senhoras que tem pressa?

— Ora adeus! Ainda não conheces aquela gente? Fervem em pouca
água. Sempre assim foram. Afinal verá que há de passar
de alguma enxaqueca de D. Leocádia, algum flato de pequena, ou uma
indigestão do procurador; e ainda acredita naquilo!

Evidentemente João Semana ia-se deixando convencer. Aproximara-se
pouco a pouco da cadeira, hesitando ainda na aparência, mas no íntimo
resolvido já.

Ia enfim a sentar-se, quando a criada o interpelou de novo, exclamando:

— Então que é isso? Assim mesmo como está? Nem
muda e fato?

— Para quê?… Não estou com tantos vagares…

— Não, então, se é para comer de afogadilho, mais
vale fazer primeiro a visita. Assim nem lhe presta o que come. Eu guardo o
jantar então, visto isso.

Joana – era o nome a criada – bem sabia que tal proposta não podia
já ser recebida por João Semana, cujo apetite se irritara com
as exalações da sopa; foi a razão pela qual ela se mostrou
tão pronta em reunir a ação às palavras, retirando
da mesa o serviço.

O êxito desta tática foi completo.

João Semana impediu-a, dizendo:

— Deixe ficar, já agora deixe ficar. Também para me vestir
não é preciso muito tempo.

E, depois destas palavras, descalçou-se, enfim, os pés em uma
chinelas, que tinham sido botas, pôs-se sem cerimônia em mangas
de camisa, sentou-se à mesa, e rompeu um ataque em forma contra a volumosa
e apetrechada tigela, que tinha defronte de si.

A cozinha de João Semana era de um caráter portuguesíssimo,
e eu, ainda que me valha a confissão os desagrados de alguma leitora
elegante, francamente declaro aqui que, para mim, a cozinha portuguesa é
das melhores cozinhas do mundo.

Dou razão nisto a João semana.

As combinações extravagantes das cozinhas estrangeiras – galicismos
culinários, por exemplo – repugnavam-lhe tanto ao estômago, como
aos ouvidos, mais pechosamente sensíveis dos nossos severos puritanos,
a outra qualidade de galicismos.

Queria-se ele com a carne de porco bem assada e o arroz do forno açafroado
– esses dois importantes elementos de gozo para os paladares portugueses;
queria-se com o prato clássico da orelheira de porco, e até
com aquele outro prato tão castiço como qualquer período
de Fr. Luís de Souza – prato que valeu aos portuenses um epíteto
gloriosamente burlesco; queria-se com todas estas iguarias, quase desterradas
das mesas modernas, de preferência aos manjares exóticos, cuja
nomenclatura tem a propriedade de fazer ignorar ao conviva o que lhe dão
a comer.

Por isso, João Semana, nas raras vezes que vinha ao Porto, era freguês
certo das mesas do Rainha, as únicas que mantêm, sem mescla de
estrangeirices, as velhas tradições nacionais.

Em Portugal, terra de lhaneza um tanto rude, mas não afetada, o dono
da casa não costumava dantes experimentar a imaginação
dos seus convivas com enigmas culinários.

Não havia cá a usança de se dar a qualquer pastel ou
empada o nome de um general do exército; a qualquer açorda o
de um ministro célebre; a qualquer doce balofo e insípido o
de um poeta da moda.

Este costume, graças ao qual parece que os modernos Vatéis
misturam às vezes aos ingredientes dos seus tachos e caçarolas
um pouco de sal da sátira, era desconhecido entre nós.

Menos espirituosa, porém mais filosófica do que a nomenclatura
culinária da moda, a nossa, a tradicional, realizava o desideratum
a que todas as nomenclaturas aspiram – o de valerem por definições.

Se um conviva tinha a curiosidade de perguntar ao seu Anfitrião o
que continha este ou aquele prato, uma só resposta o satisfazia; era
um frango guisado, um peru recheado, uma língua de vaca afogada…
coisas que toda a gente entendia logo. Hoje, a primeira resposta é
um nome francês bárbaro, absurdo, que, contra as promessas da
gramática, não dá a conhecer a coisa, nem as suas propriedades;
e por isso uma segunda pergunta é inevitável; a não querer
cada qual resignar-se a comer o que não sabe o que é – tormento
insuportável.

Hoje, época de programas, inventaram-se os programas dos jantares
à imitação dos dos concertos, dos deputados e dos ministros.
Com oito dias de antecipação publica-se o elenco de um banquete,
para que cada qual procure decifrar o que vai comer, e estude a maneira como
se come.

João Semana é que nisto, como em tudo mais, não queria
saber de modas.

E senão vejam-no desta vez esgotar a tigela avolumada de substancial
caldo de abóbora, aviar a formidável posta de carne cozida,
com presunto, acompanhando-a com o indispensável arroz, salada de alface
e azeitonas; atacar com igual denodo, uma porção de roast-beef,
não revendo sangue sob a faca, à moda inglesa, mas portuguesmente
assado, e como estou convencido assavam os seus carneiros aqueles heróis
da Ilíada; tudo isto acompanhado de excelente vinho palhete, o qual
ele ingeria aos copos de meio quartilho; em seguida uma carregação
de pêras de amorim, sem conta peso, nem medida…

Durante o jantar não estivera calado João Santana.

Cada prato sustentara-lhe uma reflexão crítica, um discurso
laudatório, ou um anedota, que fazia rebentar de riso a Sr.ª Joana.

Ao descobrir o prato de carne assada, exclamou João Semana em tom
de satisfação manifesta:

— Que tentação me desperta este terceiro inimigo da alma!

A criada riu-se, mas observou:

— Não diga isso; Santo Antônio?

— O quê? Então você não sabe o que disse
aquele frade, quando estavam a jantar? Nos conventos era costume, enquanto
se comia… – Ó Joana, deixe-me ver esse limão – ocupar-se algum
frade com leituras devotas . – E vá-me deitando aí mais vinho.
– Um dia, a comunidade escutava um desses reverendo… – O diabo desta faca
não corta nada… – um sermão sobre os perigos aos quais os
viventes andam sujeitos, neste vale de lágrimas. – Olhe, chegue para
aqui essas azeitonas. – Vede, irmão, dizia o tal frade… – Este ano
as batatas não foram grande coisa… – vede como é difícil
fugirmos às tentações dos três grandes inimigos
da alma. – Ó Joana, o padeiro está servindo mal: não
tem senão côdea o pão. – O mundo e seus encantos perigosos;
o diabo e seus poderes maléficos, e a carne, ai meus irmãos…
e a carne e as suas tentações mágicas. – Chegando a este
ponto, o frade pousa o livro, suspira, estende o prato ao seu vizinho fronteiro,
dizendo: "Tão fortes são, que nem lhes resisto eu, pobre
pecador; uma posta desse terceiro inimigo, que tão bem assado está".

Gargalhada da criada, e vitória formal de João Semana sobre
o inimigo em questão.

À sobremesa o mesmo sistema. A pêra de amorim atraiu um elogio
do facultativo e mereceu as honras de um caso.

— Excelente fruta! disse João Semana, ao comer a duodécima.
Tinha razão aquele frade, que do púlpito dizia: "Ó
meus amados ouvintes, que miserável é a condição
humana! Vede como a desgraça do mundo veio de uma má tentação.
Eva perdeu-nos por uma maçã! Se ao menos fosse por uma pêra,
meus fiéis ouvintes, ainda se poderia desculpar, mas por uma maçã!"

— Ora! Essa é sua, Sr. João Semana – disse Joana rindo.
– O frade havia de dizer semelhante coisa! Pois olhe, aqui está quem
se perderia mais depressa por uma maçã, – acrescentou ela, pouco
depois, e preparando o café.

— Bem! – disse João Semana, ao concluir a sua refeição.
– Estou como um abade! O pior é ter agora de sair para ir visitar a
Sr.ª Leocádia.

— Sair, já! Isso tem tempo – acudiu a criada.

— Como? Pois ainda havia de as fazer esperar mais?

— Descanse ao menos um bocado. Está costumado a passar pelo
sono, e, se o não faz, fica doente para todo dia.

— Que remédio senão ter paciência!

— É um bocadito mais.

—Nada, nada, não pode ser. Vou sair já – insistiu João
Semana, procurando porém uma posição mais cômoda,
com grave risco da resolução que exprimia. Joana percebeu este
movimento e previu o que sucederia, se conseguisse entreter o amo cinco minutos
mais. Não hesitou.

— Ainda se fosse para outra parte, não digo que não;
mas para casa da D. Leocádia!… Eu já sei o que querem dizer
aquelas pressas. A D. Leocádia esta manhã, provavelmente, abriu
a boca três vezes ou espirrou duas, e por isso imagina já que
está a morrer. Louvado seja Deus, nunca vi quem tenha mais medo de
adoecer; uma coisa assim! Não é senhora de meter um bocado de
pão na boca, sem perguntar ao cirurgião se lhe poderá
fazer mal. Pois não se lembra daquela vez que o mandou chamar, porque
tinha deixado de noite, por esquecimento, uma açucena no quarto e pela
manhã julgou que estava envenenada?

— É verdade – dizia João Semana, fechando os olhos e
bocejando. – Não era açucena, era uma bela… há! há!
há!… – isto foi um bocejo que o interrompeu, e com voz já
mal percebida concluiu depois: – era uma beladona.

— Ou isso.

Joana, espiando como médico atento, estes sintomas, prosseguiu.

— Esta gente parece de vidro. A filozinha da pequena é outra
que tal. É uma pena que tal. É uma pena, que qualquer ventinho
leva. E dizem bonita aquilo! Lá na minha terra chamava-se bonito quem
era sadio e tinha boas cores.

— Você está agora como… aquele frade que,… – tentou
dizer João Semana mas não concluiu. Tomou-o sono profundo, denunciado
dentro em de pouco tempo, por um ruidoso ressonar. Joana escutando-o, aproximou-se
nos bicos dos pés, examinou-lhes os olhos, e vendo-os cerrados, sorriu,
e dizendo a meia voz:

— Sempre caiu! Agora tem para uma hora pelo menos. E fechando as janelas,
deixou o amo ressonando na mesma cadeira de braços que adormecera.

Capítulo XIX

Quando a Sr.ª Joana chegou à sala imediata, achou-se na presença
de uma visita inesperada. Era Daniel, que de braços abertos, caminhou
para ela, chamando-lhe "a sua boa Joana".

Por muito tempo fora Daniel o querido da velha criada do cirurgião,
a qual não se cansava de apregoar por toda a parte que não havia
aí menino de rosto mais galante e de modos mais bonitos, do que o filho
mais novo de José das Dornas. Quando a idade veio imprimir cunho mais
varonil àquela beleza, Joana, como mulher que era afinal, não
foi insensível à perfeição do tipo masculino que
tantas atenções tinha já merecido ao seu afeiçoado,
durante a vida de cidade.

Ultimamente, porém, um pequeno azedume de má vontade viera
misturar-se à simpatia da boa mulher. Em Daniel via um futuro rival
de João Semana, e a dedicação fanática, que votava
ao amo, não a deixava encarar desassombrada a probabilidade dessa luta
e, sem algum despeito, o novo atleta, que aparecia na arena, de encontro ao
velho colosso.

Joana bem se fingia tranqüila, dizendo às suas conhecidas e comadres
que enquanto João Semana fosse vivo, ninguém havia de poder
fazer-lhe sombra; mas lá no fundo, não estava muito satisfeita.

Ainda assim – tal é o poder das antigas afeições – ao
ver Daniel vir para ela tão abertamente amável, esqueceram-lhe
todas as más prevenções, que contra ele tinha, e recebeu-o
nos braços com expansão igual.

— Jesus! que mocetão! Ora quem há de dizer que é
este o menino a quem eu dava biscoitos, e que trepava, como um gato, pela
pereira do quintal acima?! E então como gostava daquelas pêras
.

— E quando o seu patrão tinha uns quatro pêssegos muito
grandes, que destinava para o vigário da vara, e eu lhos furtei, inventando
depois nós ambos uma história muito comprida de ratoneiros,
a que não se deu pouco que fazer ao regedor.

— Sempre foi uma, essa! E o vigário foi quem mais se zangou
com a graça. E daquela vez que o menino entornou o tinteiro por cima
do livro dos assentos do Sr. José Semana?

— Aí, é verdade. Por sinal que você depois lhe
disse que foi o gato.

— E, coitado, foi ele o que pagou. Levou uma sova mestra! O pobre bichano
não podia imaginar por quê.

— É provável que ele não perdesse muito tempo
a investigar a razão do fato. Foi bem mais razoável, fugindo.

— O menino era um traquinas! Era uma coisa por maior.

— Há de lembrar-me sempre com saudades, Joana, de quando se
cozia o pão em casa, e eu vinha ao sair da aula, buscar o bolo, que
você me guardava no forno. Lembra-se?

— Ora, como se fosse hoje. E daquela tarde em que o menino foi beber
água fria logo por cima! O meu amo parecia que me matava.

— Que bons tempos esses, Joana!

— Se eram! Agora já o menino não quer da nossa fruta,
nem do nosso bolo. Quem sabe se no-lo comerá por outra forma?

— Como?!

— Recebendo algumas das medidas e avenças que, até agora,
eram só do Sr. João Semana – disse a criada com ciúme
renascente.

— Está doida, Joana? nem seu amo tem receios de que eu lhe faça
mal, nem eu vontade de lho fazer. Graças a Deus, eu não preciso
para comer de andar a furtar o pão daqueles que tantas vezes e de tão
boa vontade mo oferecia. Para o ajudar, isso sim, estou pronto, que não
é pouco pesada a cruz que ele traz.

— Não é, não, menino! – exclamou, já sensibilizada
e reconciliada de todo com Daniel, a velha criada. E, suspirando, continuou:

— Aquilo é um negro de trabalho. Aí, se ele faltasse
o que seria dos pobres! Eu bem sei que o menino há de fazer o que poder,
que tem bom coração, isso tem; mas quem lhe deu as forças
dele? Aquele corpo é de ferro. Não faz idéia. desde pela
manhã, até a noite, não tem aquele pobre de Cristo um
momento de sossego.

— Ele está cá?

— Está agora a passar pelo sono. E mais tinha um recado com
pressa. Foi preciso usar de malícia para o fazer descansar.

— Pois, Joana, eu vinha para agradecer-lhe a visita que me fez, mas
deixe-o dormir.

— Ele há de gostar de o ver; que olhe que é muito seu
amigo, Danielzinho. Ele tem aqueles modos assim secos, mas… Inda ontem aqui
esteve a dizer que o menino há de vir a ser cosa grande.

— Não, agora já não cresço mais.

— Ora! bem sabe o que eu quero dizer. Está a rir.

— Eu lhe digo, Joana. Eu que vim meter-me nesta terra, é porque
tenho ambições. Lá isso tenho. A si, digo-lhe baixinho,
o meu grande desejo é vir a ser…

— O quê? – perguntou Joana, com curiosidade feminina.

— Nada menos que regedor cá na aldeia.

— Ora… fala sério?

— Pois isso é coisa lá que se brinque?

— Então para que quer ser regedor?

— E não é uma posição tão bonita?

— Não lhe digo que não. Pois olhe, com o tempo isso não
será difícil. O Sr. João Semana já esteve para;
ele é que não quis. Mas o que é, é que o menino
está aqui, está casado.

— Por que diz isso?

— Ora! o pai há de arranjar-lhe noiva rica.

— E então há por cá muito desse gênero?

— Se há? Boa! Olhe; aí tem a filha do morgado da Cova
do Frade, que é uma moça bonita.

— Aí, muito bonita! Parece mesmo uma dália vermelha.

— Que está a dizer? É uma rapariga escarolada e sadia.

— Lá escarolada será, e então tem muito dinheiro?

— Para cima de vinte mil cruzados.

— Ih! que dinheirão!

— Então acha pouco?

— Está claro. Mulher com menos de quarenta contos, Joana, não
me serve.

— Quarenta contos! Quanto é quarenta contos?

— São cem mil cruzados.

— Credo! O que aí vai! Então não casa decerto,
também lhe digo.

— Se a não encontrar cá, trago mulher da cidade. Olhe
que são mais bonitas. Uma senhora, que saiba tocar piano, que saiba
cantar, que ande à moda.

— Sume-te! Sempre as tais modas! É no que eles pensam. Ora que
graça acham àquelas coisas.

— Você não sabe o que diz, Joana. Inda hei de vê-la
andar à moda, a si também.

— A mim?

— A si, sim, minha senhora, e então por que não?

— Alguma estará nesse dia para suceder.

— Mas olhe cá, Joana, e quando você me vir passar de braço
dado com a minha senhora, ela com o vestido de seda a arrastar pelo chão…

— Isso! Olhe que há de ficar em bom estado. Passeie pelo tojo
e verá.

— Um pé muito pequenino; eu gosto dos pés muito pequeninos,
Joana.

— Também muito pequenos demais não servem para andar.
Querem-se em termos.

— Nada, quero-os muito pequeninos: e depois uma vozinha que mal se
perceba.

— Ora essa! Então não se há de ouvir o que ela
diz?

— Vocês cá não tem nada disso.

— Isso não. O pé mais pequeno que eu conheço…
é um da filha do Mateus, que teve, salvo seja, um raminho em criança
e ficou aleijadinha… e agora voz que não se perceba… olhe, tem
a ti’Ana do regedor, que, desde que lhe caiu aquela constipação
no peito, ninguém lhe entende a palavra.

Neste ponto do diálogo, entrou Miguel, rapaz do serviço da
casa, com um bilhete na mão.

— Sr.ª Joana – disse ele- vieram entregar este bilhete para o
patrão.

— Temos mais alguma impertinência. Está bem, deixe ficar.

— É que esperam pela resposta, Sr.ª Joana.

— Pois que esperem, Miguel. O patrão está a dormir, e
eu não o vou agora acordar por causa disse. Do mando de quem vem?

— Diz que das do Meadas.

— Aí, então é a pedir por algum pobre. Não
fazem outra coisa as raparigas. Têm vagar, destas fortunas é
que nos aparecem. Mas a carta não vem fechada… Ó menino, então
leia-a.

— Porém… – ia a observar Daniel.

— Não tem dúvida, pode ler. Isto não é
de segredo.

Obedecendo às instâncias de Joana, Daniel abriu a carta e leu:
"Meu bom Sr. João Semana:

— Isso! – anotou a criada – Façam-lhe a boca doce.

Daniel continuou lendo:

"O nosso pobre doente está mal, muito mal. Corta o coração
vê-lo padecer assim. Se não for possível salvá-lo,
ao menos que se não veja desamparado ao morre. É tão
compadecido o seu coração, Sr. João Semana, abre-se tão
depressa à caridade, que me atrevo a pedir-lhe que venha ver este desgraçado.
A consciência lho pagará.

Da sua respeitosa amiga

Margarida

— Bonitas palavras – disse Joana – não tem dúvida nenhuma;
o pior é que não se aduba o caldo com elas.

— De quem é esta carta? – perguntou Daniel. – Eu já ouvi
este nome de …

— Olhem, quem o pergunta? Pois de quem é ela, homem de Deus,
senão da irmã de sua cunhada, da que há de ser?

— Ah! bem me parecia. Mas… da irmã! e ela escreve assim? –
continuou Daniel, admirado da boa ortografia e singeleza de frase da carta
que tinha ainda na mão, e para a qual tornou a olhar.

— Pois que julga que é essa rapariga? Bem digo eu que o menino
já se esqueceu de todo da sua terra. Então saiba que não
há aí quem se ponha ao lado de Margarida, em falar e escrever.
Esse homem por quem elas pedem… – e, interrompendo-se – É verdade,
ó Miguel – disse para o criado – vai dizer que ficou entregue, anda.

Depois do Miguel se retirar, Joana continuou:

— Esse homem por quem pede, foi mestre delas. Pelos modos era pessoa
que teve do seu; mas hoje está quase a pedir. Para aí veio,
e aí tem vivido. As raparigas do Meadas, que são dois corações
de anjos – lá isso são – têm-no socorrido sempre. Coitadas!
Não, eu devo dizer o que é verdade, o seu Pedro leva uma mulher
como se quer; mas olhe, quem levar a Margarida, não vai mais mal servido.
Este pobre homem tem-lhe ensinado, em paga, a ler e a escrever, que é
um primor, segundo dizem. A Margarida principalmente; porque pelos modos,
a Clarita tem menos paciência . Mas, a Margarida?… até cá
o Sr. João Semana o diz, pode-se ouvir. Agora até ela dá
lição em casa. Não sabia? Pois dá. Ora, o tal
pobre de Cristo está a morrer, e, segundo diz o patrão, não
deita o mês fora. As raparigas então, credo! Isso é um
cuidado por aí além, nem que fossem filhas. Mas o que eu não
sei é se o Sr. João lá irá hoje. Fica-lhe tão
longe do seu giro.

— Mas há de deixar o homem assim?

— Então? Cada um faz aquilo que pode, que a mais não
é obrigado. Olhe… sabe o que me lembra? Por que não vai o
menino lá? Não diz que quer ajudar o Sr. João Semana?
Pois aí tem.

— Para me ficar depois com zanga.

— Credo! Zanga, não; eu só dizia que… Demais, isso
não lhe rende cinco réis. Bem vê o que ela diz: A consciência
é que paga. Ora, eu bem sei que as pequenas quiseram pagar, quiseram;
cáaacute; o patrão é que não deixou. Não sei se
fez bem, porque afinal… elas têm por onde paguem. Mas vá, vá.
Além de que…

— Eu por mim vou; não me custa; mas se o seu amo se ofende?

— Não, não ofende; amanhã lá irá.
Demais, as raparigas são agora quase da família do menino; é
natural que o procurem primeiro.

— Pois então nem espero que ele acorde. Você diz-lhe…

— Sim, sim: não tenha dúvida; eu cá lhe digo.

E, chamando outra vez Daniel, que ia a retirar-se, continuou:

— E então, olhe. Também pode fazer-nos ainda outro favor.
Eu tenho, desde esta manhã, um recado para o Sr. João Semana
ir à casa do João da Esquina, lá do seu vizinho da tenda.
Não lho dei, porque enfim… hoje ficava-lhe bastante longe, e, aqui
para nós, não andam muito bem em dia as contas com o tendeiro;
como ao menino lhe fica perto da casa, se não lhe custasse, ia por
lá.

— Também irei, o ponto está em que o homem me queira.

— Se não quiser, que mande fazer um de encomenda. Era o que
faltava! Já vê que eu não tenho nenhuma má vontade
contra o menino, até lhe dou freguesia.

Daniel agradeceu os dois fregueses que a velha Joana lhe cedera, com poucos
auspícios de lucros, e saiu sem esperar que o seu velho colega acordasse.

A pressa com que Daniel saiu e a facilidade em aceder à proposta de
Joana, tinha um motivo. E aí estamos nós para o explicar, e
referimo-nos outra vez ao caráter do nosso herói.

A carta de Margarida falara-lhe à imaginação. Achou-a
tão singular, na sua simplicidade, por ser escrita por uma rapariga
da aldeia, que não pôde eximir-se de fantasiar um tipo de romance,
o qual logo suspirou por conhecer.

Segundo as instruções de Joana, Daniel pôde, dentro de
um quarto de hora, achar-se à cabeceira do enfermo, para quem se pedira
o socorro de João Semana.

Mas, contrariamente ao que esperava, foi Clara e não Margarida que
ele encontrou ali.

Capítulo XX

A princípio, a substituição desagradou a Daniel, por
lhe dissipar umas vagas fantasias, com que tinha vindo; mas Clara não
era mulher junto de quem se pudesse sentir por muito tempo a falta de outra.

Daniel, passados alguns minutos, achava-se conformado.

— Olhem quem nos vem! Bem dizia eu ontem; dentro em pouco, ninguém
quer saber do João Semana.

— Devo lembrar-lhe Clarinha, que é à força, quase,
que eu venho aqui, porque não houve quem tivesse a idéia de
me mandar chamar – replicou Daniel, sorrindo. – Não lhe disse eu que
as raparigas seriam fiéis ao João Semana? Veja, nem a Clarinha
nem a mana se lembraram de mim, sendo eu da família quase.

— Bem vê que pouco se lhe podia prometer – respondeu Clara, lançando
para a humilde mobília do quarto um olhar expressivo.

—Nem a recompensa da consciência, que sua irmã prometia
a João Semana?

— Com franqueza lho digo; eu por mim tinha-me lembrado de o chamar,
tinha.; mas Guida é que não quis.

— E por que não quis sua irmã?

— Eu sei lá? Eu já não estou acostumada a perguntar
a razão por que ela diz isto ou aquilo. Para quê? Afinal de contas,
não sei fazê-la mudar de tenção.

— Então é assim teimosa?

— Teimosa? Não, credo; mas é que depois de falar com
ela… não sei como isto é… eu sou que mudo sempre. Mas, já
que veio, entre; aqui tem o nosso doente.

E, dando ao gesto a expressão de desesperança, acrescentou,
baixando a voz e suspirando:

— Isto!… coitado!

O doente era o velho que já conhecemos, agora de todo prostrado por
uma caquexia, infalivelmente mortal.

Realizara-se o seu pressentimento. Vida… só lhe restava para agradecer
com o olhar, mais já do que com palavras, os cuidados quase filiais,
de que as duas raparigas o rodeavam.

A idade e os padecimentos morais deste homem haviam-se tornado elementos
quase invencíveis, do mal que lentamente lhe minava as forças.

O único alívio, no seu leito de dor, era a vista das duas irmã.
Faziam-lhe bem os sorrisos de Clara, e as lágrimas de Margarida – duas
expressões diversas da mesma simpatia.

Daniel aproximou-se do leito do enfermo; do outro lado, ficava-lhe Clara.

A luz era escassa na alcova. As feições de Clara tinham tomado
uma expressão de melancolia, a qual aquelas sombras pareciam aumentar.

Junto à cabeceira de um enfermo é onde mais pronta e naturalmente
se estabelece entre duas pessoas um trato familiar.

A etiqueta e as reservas do costume sentem-se mal colocadas e intempestivas
ali.

Se é sincera a compaixão para o que padece, perde-se a frieza
necessária à estrita observância das insignificantes convenções
sociais. Não são possíveis as afetações
nem os constrangimentos, quando a mesma generosa simpatia domina o pulsar
de dois corações.

Por isso, entre Daniel, como médico, e Clara, como enfermeira, crescera,
rapidamente, certa familiaridade, a qual não pouco concorrer para fazer
demorado o exame do doente, cuja moléstia era de uma evidência
e de uma fatalidade de êxito, que deviam facilitar a tarefa do seu estudo.

Depois… nunca é tão cheia de atrativos a mulher, como ao
velar, solícita, por o doente que estima. Às mais levianas revela-se-lhes
então a grandeza e a sublimidade da sua missão na terra. O coração,
que as vaidades podem trazer abafado, estremece e acorda ao primeiro grito
de dor; o instinto feminino revive com toda a espontaneidade de abnegação,
dá-lhes à voz inflexões de ternura, ao olhar requebros
de meiguice, e aquela deliciosa fraqueza de ânimo que nos pedia proteção
e amparo, transforma-se em coragem heróica, diante da qual nós,
os que nos supúnhamos fortes, cedemos subjugados.

Um momento destes, na vida da mulher, absolve-a de todos os pequenos defeitos,
que temos por costume censurar nela.

Quando o império do amor e de piedade deve reger a vida, aceita então
ela de nós, com sorrisos de brandura, o cetro de soberana.

E nessas ocasiões bem conhece que o prestígio, que exerce,
é absoluto; perde então a timidez habitual e olha-nos desassombrada.

Sucedia isto com Clara. Achava-se à vontade ali; fitava sem constrangimento,
os expressivos olhos negros de Daniel, como se para nele espiar o passar das
idéias, que o exame do doente lhe fosse sugerindo.

Se ela soubesse que, enquanto o fitava assim, mal na doença o deixava
pensar!

O enleado agora era Daniel. Com os olhos no rosto cadavérico do enfermo,
comprimindo-lhe ainda o pulso abatido e descarnado, quase não tinha
consciência do que fazia.

Sem olhar, sentia que a vista de Clara se fixava nele – porque há
fenômenos assim, – e sentindo-o – desgraçada natureza a sua!
– em vez de médico impassível e atento, já não
era senão o estudante de vinte anos, com toda a sua ardente imaginação.

Enfim terminou aquele exame, longo, mas distraído, e, depois de algumas
perguntas feitas ao doente, Daniel voltou à sala para receitar.

Clara acompanhou-o e encostou-se familiarmente às costas da cadeira
na qual Daniel se sentara.

Era o bastante para tirar a este toda a tranqüilidade.

A seu pesar, a mão tremia-lhe ao escrever.

Clara pôs-se a rir.

— De que se ri? – perguntou Daniel, voltando-se

— Está-me a lembrar, ao ver tremer-lhe a mão assim, que
o João Semana costuma dizer, quando assina uma receita, que assina
uma sentença de morte.

Daniel sorriu também, ou simulou sorrir.

— Isto é nervoso – disse ele, levantando-se.

— Nervoso? Então também é nervoso! Eu cuidei que
isso era só das senhoras da cidade.

— Enganava-se.

— Então que é ser nervoso?

— É… por exemplo, não ter firmeza na mão ao
escrever, quando nos seguem os movimentos com uns olhos assim como os seus
Clarinha.

— Ah! Deve então ser má doença, que obriga os
outros a andarem com os olhos fechados – redargüiu Clara, com certo tom
de zombaria.

Daniel ia replicar, quando um gemido do enfermo chamou Clara à alcova.

Enfim, passados alguns segundos, Daniel muito a custo preparava-se para sair.

Clara voltou, trazendo-lhe água para as mãos; ato naturalíssimo
e sem significação – porém Daniel era destes homens,
para quem quase não há atos sem significação.

Lavando-se, e enquanto Clara sustentava a bacia, aventurou-se um olhar para
a gentil rapariga, a qual o recebeu com firmeza.

Como este olhar se prolongasse, Clara disse com um sorriso de ironia aparente
através do gesto de ingenuidade de que o acompanhou.

— Está tão distraído, a pensar… no seu doente
talvez, que nem repara que se está a lavar em seco.

Daniel baixou os olhos e abreviou a operação.

Quando ia retirar-se, ouviu Clara que lhe diziam gracejando:

— Quando se lhe deve pela visita, Sr. Doutor?

A esta pergunta, esteve iminente de sair da boca de Daniel um galanteio,
que ele susteve a tempo, por não sei que pressentimento, que lhe dizia
que esse jogo podia ter seus perigos. Limitou-se a responder:

— Deve-se-me um pouco de afeição pela boa vontade, quando
mais não seja.

— Já vejo que é fácil de contentar.

— Acha então de pouco valor a afeição?

— Como não pede muita…

— É que receio que já não tenha muita para me
dar.

— Tão pobre me faz disso?

— Pois não dispôs já da melhor?

— A afeição de que dispus, não lhe podia servir.

— Acha?

Esta pergunta, ou mais do que ela, a inflexão de voz com que foi dita,
o olhar de que foi acompanhada, era imprudente.

Clara desviou a vista diante deste olhar de Daniel.

— Ouça – disse ela, mais séria já do que até
ali, – A gente tem sempre no coração duas afeições
diferentes, penso eu; uma, que se dá toda a uma pessoa, e julgo que
uma só vez na vida; outra que se dá às porções,
mais a uns menos a outros, mas que nunca se acaba. Para querer a este pobre
velho, que ali está dentro – e quero-lhe deveras – nada tive de tirar
à afeição grande, que tinha a Margarida. Conte por isso
que ainda tenho afeição – dessa – para lhe dar. A Guida não
terá que sofrer com isso… nem os outros.

Havia uma delicada correção nestas palavras de Clara, que produziu
efeito no ânimo de Daniel. Inclinou-se, e com sorriso não constrangido,
replicou, estendendo-lhe a mão:

— Agradecido, Clarinha. Essa mesma é a que me deve; pois não
seremos dentro em pouco tempo, irmãos.?

E separaram-se.

— Que diabo de homem sou eu? – dizia Daniel consigo. – Pois não
ia principiando apaixonar-me por a mulher do meu irmão? Quando terei
eu força para me vencer nestas coisas? mas é que tem uns olhos
esta rapariga, e umas maneiras!…

E, sob o domínio destas novas impressões, a impressão
que da carta de Margarida havia recebido, desvanecera-se de todo.

Não era, porém, esta a única mudança que se tinha
de operar nele, aquele dia.


Capítulo XXI

Cumprindo a promessa que tinha feito a Joana, foi o novo clínico fazer
sua segunda visita.

O leitor deve estar lembrado de que o doente era o nosso já conhecido
João da Esquina, ou, pelo menos, alguém da sua respeitável
família.

Ao apresentar-se, em lugar de João Semana, Daniel foi recebido com
uma visagem, pouco lisonjeira, do dono da casa, impressionado ainda talvez
com as revolucionárias, e em nada tranqüilizadoras opiniões
médicas, que conhecia no seu vizinho.

— Então como é isto? É o senhor que vem?… –
dizia o homem, meio desconfiado, e como hesitando em entregar-se aos cuidados
da medicina nova.

— É verdade; sou eu – respondeu Daniel. – O João Semana
não podia vir hoje para estes sítios e, como me lembrou que
talvez fosse de pressa a doença.

Um sorriso encrespou os lábios do tendeiro.

— A doença? – Ah!… – Então nós sempre temos
doenças?! – perguntou o João da Esquina com certo ar de finura
triunfante.

— Pois que dúvida? – disse Daniel, muito longe de imaginar o
sentido oculto da interrogação. – Não mandou chamar um
médico? É provável que não seja para o consultar
sobre alguma demanda.

João da Esquina meneava a cabeça com ar de satisfação.

— Portanto, segue-se que temos doenças? Bem, bem.

— Mal, mal – emendou Daniel , sorrindo.

— Eu cá me entendo. Afinal há de vir para o bom caminho,
e no mais também, se Deus quiser.

— No mais? – repetia Daniel, sem entender o anfiguri.

— No mais sim, no mais. Ora diga-me – continuou ele, tomando Daniel
de parte e falando-lhe quase ao ouvido – parece-me que eu sou algum macaco?

O filho de José das Dornas olhou espantado para os eu interlocutor,
e principiou a suspeitar que a moléstia, que exigia os cuidados do
médico, era desarranjo intelectual.

— Macaco? O Sr. João da Esquina macaco?! Essa agora ! Como me
queres que eu suponha tal absurdo?

— Absurdo!? – exclamou jubiloso o merceeiro. – É o que eu digo.
Assim, assim é que eu gosto de os ver.

— Esquisita monomania! – comentava para si Daniel.

João da Esquina continuou no mesmo tom, meio irônico, meio confidencial:

— E acha que me ficaria muito bem, se me pusesse a andar por aí
com as mãos pelo chão?

Daniel muito fora, naquele momento, das razões que motivavam estas
perguntas, achava-as tão extravagantes, que sentia agravarem-se cada
vez mais as apreensões, relativamente ao estado intelectual do tendeiro.

— Decerto que não seria exemplo muito para tentar – respondeu
Daniel, não podendo outra vez disfarçar um sorriso.

— Ah! Então parece-lhe isso?

— Acaso as íntimas convicções do Sr. João
da Esquina repelirão esta maneira de pensar?

— O senhor é que parece ter mudado de idéias.

Lembrou-se então Daniel que talvez tivesse alguma vez pronunciado,
diante de indiscretos, uma ou outra frase, menos favorável em relação
a João da Esquina, a qual, tendo-lhe sido transmitida, desse por tal
forma, motivo a esta desconfiança.

— Estou supondo que o Sr. João da Esquina tem não sei
que prevenção contra mim. Pode ser que lhe viessem referir algumas
palavras minhas, as quais julgue ofensivas à sua dignidade; mas creia
que são menos verdadeiras. As coisas alteram-se sempre ao passar de
boca em boca.

— Então, dá o dito por não dito?

— Tudo o que lhe for injurioso, creia que o não disse eu – respondeu
Daniel.

O tendeiro mais tranqüilo a respeito do novo médico, o qual ele
via assim abjurar solenemente as suas teorias subversivas do estado regular
das coisas na sociedade e no mundo, não duvidou encetar os estiradíssimos
capítulos da sua longa história mórbida.

Pouparei ao leitor o ouvi-los. Imaginem uma interminável exposição
de todos os incômodos sentidos há vinte anos, e cortada de variados
episódios, alheios ao assunto principal, ou mantendo com eles laços
imaginários.

A propósito da moléstia, veio, por exemplo, a campo a história
minuciosa de uma demanda sobre uma pensão de duas frangas, o relatório
das despesas feitas com os melhoramentos em uma propriedade sua, e as desavenças
entre ele, tesoureiro da confraria do Sacramento, e o secretário da
mesma.

Daniel escutava-o distraído.

No fim, fundando-se em uma outra circunstância que lhe ficara de todo
o arrazoado, fez o diagnóstico, e formulou alguns preceitos médicos,
mencionando, entre outros medicamentos que aconselhou, as preparações
do arsênico.

Lembrança imprudente!

A palavras arsênico, João da Esquina estremeceu, e de novo se
lhe assombrou o olhar da desconfiança.

A quarta das opiniões teóricas de Daniel, as quais lhe tinham
sido referidas por José das Dornas, aparecia-lhe agora de novo com
toda a sua aparência sinistra e homicida.

— Arsênico? – exclamou ele com voz quase rouca de susto e de
indignação. – O senhor quer que eu tome arsênico?!

— Que dúvida? – respondeu Daniel. – É um medicamento
heróico, prodigioso em muitos casos.

— Eu tenho conhecido os prodígios que ele obra. Vale por dois
gatos!

— Ora adeus! A questão está na maneira de o tomar.

— Arsênico! mas que idéia! esta não esperava eu!
Arsênico!

— Está enganado. O arsênico até…

— Engorda também, não é verdade? – perguntou o
tendeiro, com amarga ironia na voz.

— E ainda que lhe pareça que não.

— Para o senhor vale tanto como o toucinho. Eu já cá
sabia .

— Mas ouça. Olhe… na Áustria… na Áustria,
os cavalos de boa raça recebem sempre na aveia uma porção
de arsênico, o qual lhes dá um aspecto luzente, elegante, vigoroso
e inexcedível.

O exemplo beliscou o amor próprio do Sr. João da Esquina, que
redargüiu com despeito:

— Muito obrigado pela notícia. Isso talvez anime a gente da
Áustria, ou certos doutores que eu conheço, que pensam que um
homem é como qualquer animalejo dos tais, e que pode andar a quatro
como eles também. Eu por mim…

— Mas aí tem outro exemplo – continuou Daniel. – Em certas partes
da Alemanha há povoações inteiras, nas quais o arsênico
é comido com um prazer excessivo.

— Pois que se regalem.

— Mas olhe que é fato. São verdadeiros toxicófagos
esses povos.

— Eu logo vi que haviam de ser assim uma coisa; homens é que

— E então as pessoas novas e, ainda mais, as raparigas são
as que usam dele com avidez, e o que é certo é que conservam
assim um ar de mocidade, uma frescura,. uma nutrição e uma força
que, segundo a frase dos autores, parece que lhes permite voar.

— Para o outro mundo?

— Não senhor. É verdade isto que lhe digo.

— Eu já sei, eu já sei que, para o senhor, pão
e arsênico deve ser tudo a mesma coisa. Mas eu por mim…

— Porém, sossegue, eu não quero obrigar o meu amigo a
jantar arsênico; aplico-lhe apenas como medicamento e com as devidas
precauções…

— Escusa de se dar a esse trabalho. Disso o dispenso eu. É coisa
que me não há de entrar na boca. Arsênico! Que tal está!

— Mas esse receio é indigno de um homem de coragem, permita-me
que lho diga.

Nesse tempo tinha entrado na loja, onde se passava o diálogo, a cara
metade do Sr. João da Esquina, a Sr.ª Teresa de Jesus, gorda e
rubicunda matrona, que saudou Daniel com sorrisos amáveis, e disse
para o marido, com a voz mais melodiosa deste mundo:

— Toma arsênico, menino, toma. E por que não hás
de tomar arsênico?

O Sr. João da Esquina fitou na mulher um olhar sombrio.

Dir-se-ia que estava vendo nela uma nova Clitemnestra, de conjugícida
memória.

— Toma-o tu, se gostas – foi a resposta que lhe deu, em tom de voz
cheia de amargas exprobrações.

— É que me não será preciso a mim – redargüiu
a senhora suspirando.

Este suspiro foi o prelúdio da história dos seus complicados
males.

A crônica não foi menos longa, nem menos fértil em episódios,
do que a do marido. Os nervos, já se sabe, representam um papel importantíssimo
na série de catástrofes, que a organização da
Sr.ª Teresa vira cair sobre si durante os quarenta anos e nove anos de
sua existência.

Daniel foi miraculosos de paciência na atenção que lhe
deu, e sublime de sisudez e compostura nos conselhos que em seguida recomendou.

O pobre rapaz olhava com saudades para a porta da rua, sem ver possibilidade
de a transpor tão cedo.

Enfim, quando julgava haver terminado a sua missão, e tomava jeito
de retirar-se, as seguintes palavras da Sr.ª Teresa vieram a apertar-lhe
o coração:

— Mas não é tanto por nós que mandamos chamar
facultativo. A doença principal da casa é outra. Aos nossos
achaques já nos vamos acostumando. Foi por causa da pequena. Quer ter
o incômodo de subir?

Daniel não pôde reter um suspiro de impaciência. Se aquelas
tinham sido doenças de segunda ordem, que monstruosa história
patológica lhe estava reservada ainda?

Os dois cônjuges fizeram-no subir adiante de si.

Pelas escadas, Daniel, apesar dos eu mau humor, não pôde deixar
de sorrir, ouvindo a Sr.ª Teresa, a qual fechava o cortejo, dizer para
o marido:

— Toma arsênico, João. Ora não hás de tomar
arsênico?

— Não me digas isso, mulher! – respondia João da esquina,
quase alterado.

Dentro em pouco, estavam na presença da menina Francisca, filha única
deste bem talhado par.

Se os amáveis sorrisos da esposa tinham já procurado dar a
Daniel compensação ao menos cordial acolhimento feito pelo tendeiro,
o sobressalto e a confusão com que a menina estendeu para ele um pulso,
sofrivelmente modelado, conseguiram mais eficazmente esse mesmo resultado.

Era esta menina a trigueira mais trigueira de toda a aldeia. Ingrata para
com esta cor maravilhosa, que, tingindo certos tipos fisionômicos como
o dela, é de efeitos surpreendentes, tinha porém a fraqueza
indesculpável de se afligir por não ser corada!

Era idéia fixa na menina Francisca; uma conversação
de quarto de hora, que se tivesse com ela, bastava para a fazer avultar.

Debalde protestava contra tal injustiça o brilho esplêndido
de uns olhos que, naquela tez, realçavam como poucos. Dera-lhe para
se reputar infeliz por aquilo e não havia maneira de distraí-la.

A doença, que atualmente molestava esta progênie dos senhores
da Esquina, era uma impertinência nervosa, dessas para as quais se receitam
banhos de mar.

Daniel não deixou de os aconselhar: mas não terminou as visitas
com o conselho.

Os tais olhos pretos sobre aquelas faces, esquisitamente trigueiras, davam-lhe
deveras que pensar.

Agora não tinha ele pressa de ir embora.

Por onde andaria a imagem de Clara?

Prolongando-se a visita, era inevitável a descoberta da corda sensível
da enferma. Mais cedo ou mais tarde, um queixume indiscreto a poria em relevo.
Assim aconteceu. Daniel ficou sabendo que mal oculto entenebrecia aquele coração,
e preparou-se para ser eloqüente na apologia da cor trigueira.

João da Esquina tinha saído da sala. O pobre homem já
não podia suportar a sua cara metade, a qual, pela décima vez,
lhe repetia:

— Toma arsênico, filho, toma. Não posso saber por que
não hás de tomar arsênico?

Só, na presenças das duas mulheres, deitou Daniel ombros à
empresa de distrair a menina Francisca.

Entre outras muitas coisas, afirmou, por sua conta e risco, que as belezas
célebres, essas que inspiraram os grandes poetas, os grandes artistas
e os grandes amores, tinham sido trigueiras, e, especificando, citou Dido,
Natércia, Cleópatra, Beatriz, Fornarina, Laura, Inês de
Castro, etc., etc. Desta gente toda, a Sr.ª Teresa e sua filha só
conheciam Inês de Castro, porque havia meses que tinham visto representar
uma obra dramática, produção inédita de não
sei que Shakespeare rústico, na qual entrava esta senhora, mais maltratada
ainda das mãos do trágico, que das dos "brutos matadores".

A mãe fez notar à filha que de fato não era das mais
alvas a moçoila que desempenhou a parte da heroína daquela vez.

Além destes argumentos histórico-apologéticos, a respeito
da cor trigueira, Daniel, aproveitando uma curta ausência da Sr.ª
Teresa, segredou à menina algumas amabilidades de efeito salutar. Ela
teve a condescendência de sorrir.

Diga-se a verdade: nunca até então escutara também mais
gentil conforto contra o motivo das suas penas.

Daí até o fim da entrevista foi toda sorrisos.

Daniel, quando saiu, ia muito bem conceituado pela parte feminina da família
e prometeu voltar.

João da Esquina conservava-se ainda um pouco frio.

De mais a mais, quando Daniel passou pela loja, a Sr.ª Teresa que era
para ele de uma amabilidade monstruosa, disse para o marido:

— Toma arsênico, João; que teima a tua em não tomar
arsênico!

Esta insistência produziu calafrios na espinha dorsal do tendeiro.

— Ó mulher, não me digas isso! Que cisma! – exclamou
ele irritado.

Na noite desse dia, pela primeira vez, deixou a menina de lavar o rosto com
água misteriosa, que o barbeiro lhe vendera por um bom preço,
afirmando-lhe possuir a virtude de tornar brancas, com o tempo, as mais escuras
africanas.

Capítulo XXII

No dia seguinte, Daniel voltou. A família Esquina, até sem
exceção do elemento masculino, sorriu-lhe cordialmente.

O que fizera esquecer assim ao tendeiro as suas negras apreensões,
e abrira em sorrisos aqueles sobrecenhos da véspera?

O leitor, que toma a peito, decerto, a varonil rijeza de caráter do
tesoureiro da confraria do Sacramento, não me perdoaria se eu não
explicasse o fenômeno.

Foi o caso que, na véspera, depois que Daniel se retirou, a menina
Francisca, ainda pensativa e enleada, veio à janela para o ver passar,
e ao perdê-lo de vista, retirou-se suspirando.

Este suspiro entrou pelos ouvidos da mãe, a qual chegava à
sala naquela ocasião.

A Sr.ª Teresa teve uma idéia.

Este fenômeno dava-se, de vez em quando, na esposa do Sr. João
da esquina.

— Tem umas maneiras muito bonitas este rapaz – disse ela, fixando na
filha o olhar mais investigador que tinha à sua disposição.

— Tem – respondeu esta secamente.

— Ou ele ou o João Semana, a quem ninguém pode tirar
da boca uma palavra delicada. Este é coisa mais fina.

— É – replicou a outra.

— Bem mostra que tem vivido entre gente polida e educada.

— Bem – continuava a menina.

— E não lhe hão de faltar bons casamentos, a esse rapaz.

— Não – dizia a filha.

— Isso há de ser bonito agora. Todas as raparigas da terra a
enfeitarem-se para lhe agradar. Há de ter que ver.

— Há de.

A Sr.ª Teresa principiava a impacientar-se com o laconismo da filha.

— Mas acham-se muito enganadas – continuou ela – um rapaz assim não
cai facilmente. Estas nossas raparigas são umas estúpidas. Louvado
seja Deus. Não sabem dizer duas palavras. E desembaraço é
o que se quer.

— É…

— E por que não o hás de tu ter, menina? – acrescentou
ela, em tom mais baixo e insinuante.

— Eu?

— Tu, sim, por que não? Para que gastou teu pai contigo, a mandar-te
aprender os verbos, senão para poderes agora mostrar o que és,
e diferençar-te das outras?

A menina desta vez nem um monossílabo pronunciou. Encolheu os ombros
só.

— Bem se via que o Sr. Daniel logo conheceu com quem lidava. Cuidas
tu que ele se gastava assim com qualquer Maria do monte? Diz-lhe que sim.
Ele bem sabe que seria deitar pérolas a porcos. Por isso, menina, não
deixes perder a ocasião. Acredita que darás muito gosto a teus
pais, se…

A Sr.ª Teresa vacilou ao principiar a condicional, em que ela queria
conservar a conveniente dignidade materna.

— Se?… perguntou a filha, e foi este de todos os monossílabos,
que até ali tinha soltado, o mais embaraçoso para a mãe.

— Se… sim… quero eu dizer, que eu e o teu pais não levaríamos
mal se… um dia o Sr. Daniel nos viesse pedir a tua mão.

O ar de satisfação, que se desenhou no rosto da esposa do Sr.
João da Esquina, mostrou que ela estava contente consigo pela construção
final da frase.

A menina ao ouvi-la, baixou os olhos; devia ver-se corar, se tal fenômeno
fosse de possível observação nas faces dela. Enquanto
a palavras, limitou-se a balbuciar um &ququot;Ora!" eloqüente de graciosa
confusão.

A Sr.ª Teresa passou à loja, onde estava o marido.

— Ó João, olha que nós temos de conversas – disse-lhe
ela, sentando-se ao pé do mostrador.

— Vens falar-me do arsênico outra vez? – perguntou o marido inquieto.

— Não! Ainda que, para dizer a verdade, não sei por que
não o hás de tomar.

— E a dar-lhe!

— Mas ouve. Essa visita de Daniel do Dornas não te deu o que
pensar?

— Deu-me que pensar, deu. E vou já mandar dizer-lhe que escusa
de cá voltar, porque…

— Não sejas tolo, homem! Abre os olhos e vê – exclamou
a Sr.ª Teresa, com ar de mistério.

— O quê? – perguntou João da esquina, não, podendo
deixar de abrir instintivamente os olhos.

— Que idade tem o Daniel?

— Eu sei lá?

— Vinte e tantos anos, vá. E que idade tem a Chica?

— Ela nasceu logo depois do cerco…

— Faz vinte anos para setembro.

— E daí?

— E daí? E quanto virá herdar o Daniel por morte do pais?

— Eu te digo… para cima de trinta mil cruzados, não falando
em…

— E ainda perguntas: "E daí?".

João da Esquina olhou para a mulher significativamente, e não
deu palavra. Tinham-se compreendido os dois.

Passados momentos, murmurou o homem:

— Olha que não era mau, se…

— Vê lá então agora…

— O pior é…

— Pois sim, eu não digo que…

— Mas ele já?… sim…

— Não, porém…

— Então quem sabe se…

— Isto é… até certo ponto.

— É verdade que também…

— Sim, pois está claro, e…

— E mau era que já…

— Com certeza… demais…

— Agora o que é preciso, é…

— Isso com o tempo… bem vês que…

Não sei se o leitor penetrou bem o sentido deste diálogo, cortado
de expressivas reticências, e ao qual falta para o interpretar, a eloqüência
do olhar e de gestos, que os dois cônjuges trocavam entre si. É
certo que eles se compreenderam assim, e largas horas ficaram discutindo os
teres e haveres de Daniel, e as probabilidades e vantagens de uma união
entre a casa dos Esquina e a dos Dornas, as quais, com os anos, podiam fornecer
sofríveis elementos para a confecção de um brasão
heráldico.

A Sr.ª Teresa foi encarregada por o marido de excitar na menina o ardor
pela conquista, e industriada em dirigir o negócio de maneira a "prender
o melro por asa" – foi a frase imaginosa, da qual João da Esquina
se serviu.

— O pior há de ser o pai: mas segura-me tu o rapaz, que eu depois
tomarei a meu cargo a empresa – dizia ele.

Conspirados assim os dois, sentiam-se radiosos de esperanças no futuro.

João da Esquina estava de tão condescendente disposição
de espírito, que a sua cara metade aventurou um pedido.

— Agora para seres bonito, João, devias tomar arsênico.

O tendeiro deu um murro no mostrador.

— Não te calarás com isso, Teresa?!

Aí ficam expostas as razões dos sorrisos, com que o próprio
João da Esquina recebeu Daniel, à segunda visita.

A mãe conduziu-o aos aposentos da menina e teve o discreto cuidado
de se distrair à janela enquanto Daniel interrogava a doente.

O sistema de tratamento encetado continuou, e com igual êxito. Daniel
desta vez, ao retirar-se, levava já a autorização para
continuar por escrito as consolações principiadas vocalmente.

A Sr.ª Teresa não deixou sair Daniel sem que ele visse todas
as obras de crochê das industriosas mãos da menina, e os modelos
caligráficos, que escrevera na mestra. De passagem. disse-lhe também
que ela havia aprendido os verbos, coisa que pouca gente sabia na terra.

A Sr.ª Teresa possuía fé, quase supersticiosa, nesta ciência
dos verbos.

João da Esquina quis obrigar Daniel a beber um cálice de vinho,
do qual ele a muito custo conseguiu dispensar-se.

— Da rua, Daniel voltou-se para cima, e vendo à janela a descendente
dos Esquinas, cortejou-a com um sorriso cheio de amabilidades.

Um cotovelão da Sr.ª Teresa fez notar ao marido esta circunstância.
O homem conseguiu arranjar um gesto de finura, e recomendou gravidade.

Naquela tarde, Daniel, escrevendo a um seu antigo condiscípulo, dizia,
entre outras coisas, o seguinte:

"Participo-te que se está desenvolvendo em mim o gosto pelo gênero
campestre. Principio a achar mais dignas do pincel do artista estas formosuras
expressivas e, quase direi, enérgicas da aldeia, do que as sempre monotonamente
lânguidas maravilhas da cidade. Pena é que o reconhecesse um
tanto tarde. Resta-me já pouco alento para as empresas de rapaz, e,
demais, a minha nova posição social obriga-me a uma seriedade
que me tolhe a ação. Agora só devo aspirar às
doçuras emolientes do lar conjugal. Não obstante, andam-me a
tentar uns olhos pretos, e eu não sei se sustentarei o equilíbrio
por muito tempo. Encomenda a todos os santos a manutenção da
minha sisudez, se não queres ver perdida a fama do teu amigo, no ninho
seu paterno."

As visitas de Daniel à casa de João da Esquina continuaram.

O mulherio da vizinhança falava já.

A Sr.ª Teresa deixava falar o mulherio. Se isso entrava até nos
seus planos.

Uma vizinha, comadre e muito íntima da Sr.ª Teresa – uma só
ocultava à outra o mal que dela dizia pelas costas – falando-lhe um
dia, aludiu a Daniel e às suas visitas.

— Então comadre? pelos modos, o nosso cirurgião gosta
muito destes sítios.

— Cada um vai para onde mais lhe agrada, comadre.

— Isso lá é assim. E quem sabe o que será?

— Que será o que?

— Sim comadre, ele não é de raça que não
seja a sua filha,

— Decerto que não é, não.

— Pois então…

— O futuro só Deus o sabe.

— É verdade. O ponto está que a sua pequena… Se ainda
não lhe passou aquela cisma que teve para o Chico, sapateiro…

— O Chico, sapateiro! – exclamou indignada a Sr.ª Teresa – Não.
que a minha filha é cabedal muito fino, para ir às mãos
de um remendão daqueles.

— Nisso tem razão. Inda se fosse com o Joaquim sacristão.

— Qual sacristão, nem meio sacristão! A comadre pensa
que uma criatura se sustenta com aparas de hóstia e com escorralhas
de galhetas?

A comadre aplaudiu com uma gargalhada o dito, e observou:

— O das estradas é que… está feito… já era
assim mais jeitoso esse.

— Pássaro de arribação! Olhe, enfim não
sei o que será. Esta pequena é muito difícil de contentar.
Que quer? Está estragada de mimo… Mas se ela não o enjeitar…
que tem agora ocasião de fazer um bom casamento, isso tem.

— E ele?

— Ele? pois não vê como o rapaz não nos larga a
porta?

— Mas será… com boas idéias?

— Ora essa, comadre! Então julga que nós somos?…

— Não digo isso. Mas… Dizem que ele foi um estróina
dos meus pecados…

— Pois sim; mas isso é com gente de pouco mais ou menos: mas
nós cá…

Neste estado estavam as coisas, e assim duraram alguns dias mais.

Chegou a ocasião da Sr.ª Teresa ter obtido alguma alavanca para
fazer caminhar o negócio.

Houve neste dia longa conferência entre os cônjuges.

Ficou demonstrado para eles que o "melro estava preso pela asa".

João da Esquina , levantando a sessão, disse com modo solene:

— É ocasião de dar o grande passo!

E, enfiando a sua roupa dos domingos, preparou-se para sair.

Agitava-o certa comoção interior, própria das grandes
ocasiões. Queixou-se disto à mulher; esta observou-lhe:

— O culpado és tu.

— Então? – perguntou o marido.

— Se tomasses o…

João da Esquina não ouviu o resto. Saiu impetuosamente.

A Sr.ª Teresa, vindo à janela para o ver, dizia consigo:

— Mas por que não há este homem tomar o arsênico?

Que circunstância tinha convocado o conciliábulo conjugal, e
o que foi fazer o João da Esquina assim ataviado.

Vê-lo-emos no capítulo seguinte.

Capítulo XXIII

Tomando certos ares de gravidade e de importância, em grande parte
devido a uns estupendos colarinhos engomados, acessório daquele vestuário
típico, dobrou o Sr. João da Esquina a esquina, donde lhe vinha
o nome, e, atravessando a rua adjacente, caminhou em direção
à casa de José das Dornas.

Ao entrar no portão do lavrador, deu o tendeiro ao rosto um jeito
de indignação e procurou simular em seus movimentos uma impetuosidade
e impaciência, contra as quais estava protestando aquele todo bonacheirão.

— Diga ao Sr. José das Dornas que está aqui o João
da Esquina, que lhe quer dizer duas palavras – foi como, em tom desabrido,
ele se mandou anunciar pelo primeiro criado que viu.

José das Dornas que acabaras de dormir uma sesta refociladora, veio
ter com seu vizinho, com o rosto alegre e cantarolando.

Ai, lá ri ló lé lá.
Eu vou pela mansidão

– Olá – bradou o jovial lavrador, vendo o tendeiro – Viva o Sr. João!
Ditosos olhos que o vêem! Como vai essa bizarria? Sente-se; esteja a
seu gosto. Vai um copito de rascante?

— Muito obrigado – respondeu secamente João da Esquina.

— Pois mal sabe o que perde; é daquele de esfolar o céu
da boca. Então que milagre o traz por esta sua casa?

— Um negócio muito sério.

— Temos empréstimo – disse, em parte, José das Dornas;
e alto: – Muito sério?! O caso é que você traz cara de
funeral. Ah! Ah!…

— Tenho pouca vontade de rir, Sr. José.

— Mau é isso. Então que diabo o aflige? Desembuche para
aí. Olhe que eu sou homem para as ocasiões. A sua filha está
pior?

— A minha filha está boa – replicou, com certo mau modo, o tendeiro.

— Boa! Com que então… logo à primeira… hein? O meu
Daniel saiu-se como um homem.

— Saiu-se otimamente – disse João da Esquina duma maneira que
procurou fazer notável.

— Olhe que me tem esquecido emprestar-lhe o livro do rapaz – continuou
José das Dornas, que não notara a tal maneira – aquele em que
lhe falei; mas espere, que eu vou…

Ia a levantar-se, porém um gesto do seu interlocutor fê-lo parar.

— Não tenha incômodo. É de outra obra de seu filho,
que lhe quero falar.

— De outra!

E José das Dornas principiou a dar mais atenção aos
modos esquisitos do tendeiro.

— Homem, você hoje não sei o que tem consigo! Não
o entendo!

Em vez de responder, João da Esquina pôs-se a mexer nos bolsos,
e tirou de lá um papel cor-de-rosa, pequeno, elegante, lustroso e aromatizado;
desdobrou-o, e pondo-o diante dos olhos do lavrador, disse-lhe simplesmente:

— Ora, faça o favor de ler isto.

— Mas isto o que é?

— Leia e verá.

Era fácil dizer: "leia", mas não de pequena dificuldade
para José das Dornas a tarefa, que com essas palavras lhe impunham.

— Homem, é melhor que você me diga o que é isto,
do que…

— Nada, não senhor. Leia.

— Valha-o Deus! – disse o bom lavrador, afastando o papel dos olhos
quatro palmos, para o poder ler; não o conseguindo, tirou do bolso
umas cangalhas, das quais armou o nariz, depois de ter lançado para
o interlocutor um olhar, que valia um recurso, para tribunal de última
instância, contra uma sentença de morte.

— "Trigueira" – leu ele logo no topo da página, e
voltou para o tendeiro os olhos de espanto.

— Trigueira! – Que quer dizer isto?

— Homem, leia, leia que o saberá.

José das Dornas continuou, já se imagina como. Eu evitarei
ao leitor o assistir às verberações, que ele aplicou
à prosódia portuguesa. Eis o que leu:

Trigueira! que tem? Mais feia
Com essa cor te imaginas?
Feia! tu, que assim fascinas
Com um só olhar dos teus!
Que ciúmes tens da alvura
Desses semblantes de neve!
Ai, pobre cabeça leve!
Que te não castigue Deus.

No fim desta primeira estância, José das Dornas, como atordoado,
levantou os olhos para João da Esquina; mas viu-o tão sério,
que continuou:

Trigueira! se tu soubesses
O que é ser assim trigueira!
Dessa ardilosa maneira
Por que tu o sabes ser,
Não virias lamentar-te.
Toda sentida e chorosa,
Tendo inveja à cor-de-rosa,
Sem motivos para a ter.

– Ô vizinho, mas isto… – ia a dizer José das Dornas, que principiava
a suar.

Um gesto do tendeiro obrigou-o a prosseguir:

Trigueira! Porque és trigueira,
É que eu assim te quis tanto

– Repare Sr. José – observou do lado, João da Esquina – "É
que eu assim te quis tanto". Vá reparando.

José das Dornas abriu muito os olhos para reparar, e continuou:

Daí provém todo o encanto
Em que me traz este amor.

– "Este amor" repare, vizinho, "este amor"! – tornou
a dizer João da Esquina, e José das Dornas tornou a abrir muito
os olhos, repetindo, sem saber para quê:

— "Este amor"… é verdade, "este amor…"
Cá está.

E prosseguiu:

E suspiras e murmuras!

– É peta! notou João da Esquina.

— Palavra de honra, que está aqui "E suspira e murmuras",
Sr. João. Ora faça favor de ver.

— Não nego; quero eu dizer que… mas adiante, adiante.

José das Dornas continuou:

E suspiras e murmuras!
Que mais desejavas ainda!
Pois serias tu mais linda,
Se tivesses outra cor?

José das Dornas começou a lançar para o vizinho um olhar
inquieto; estava seriamente pensando que o homem endoidecera.

— Continue – disse-lhe o tendeiro.

E o lavrador continuou, suando cada vez mais:

Trigueira! onde mais realça
O brilhar duns olhos pretos
Sempre úmidos, sempre inquietos
Do que numa cor assim?
Onde o correr duma lágrima
Mais encantos apresenta?
E um sorriso, um só nos tenta,
Como me tentou a mim?

– "Como me tentou a mim" – repetiu João da Esquina.- Vá
vendo.

— Homem! exclamou José das Dornas, estafado – bastará
de leituras.

— Pouco falta. está a acabar – respondeu o outro.

José das Dornas resignou-se e prosseguiu.

Trigueira! E choras por isso!
Choras, quando outras te invejam
Essa cor, e em vão forcejam
Para como tu fascinar?
Ó louca, nunca mais digas,
Nunca mais, que és desditosa,
Invejar à cor-de-rosa,
Em ti, é quase pecar.

– Ó Sr. João! Eu não posso mais! – exclamou José
das Dornas, com acento lastimoso.

— É só um agora; e acabou.

— Mas…

E, ficando na reticência, José das Dornas tomou fôlego
para ler ainda:

Trigueira! Vamos, esconde-me
Esse choro de criança.
Ai, que falta de confiança!
Que graciosa timidez!
Enxuga os bonitos olhos.
Então, não chores, trigueira,
E nunca dessa maneira
Te lamentes outra vez.

– Buff! – bradou José das Dornas, ao terminar a leitura, e limpando
o suor, que o banhava.

— Leu? – perguntou o tendeiro.

— Sim, senhor. Estão bonitos. São seus, Sr. João?

— Meus!? – exclamou o tendeiro, escandalizado quase. – Isto é
mais uma receita do nosso médico novo.

— Hein! – disse José das Dornas, parecendo-lhe que não
tinha ouvido bem – diz vossemecê que é?

— Outra das lembranças do senhor seu filho.

— Do… do meu… do Daniel?!…

— Sim, senhor… Do Daniel.

— Pois o rapaz fez isto?!

— Era com essas e outras que ele andava a tratar a minha filha. O culpado
fui eu, que lhe dei entrada em casa.

José das Dornas esteve a deixar escapar uma gargalhada, mas conteve-se
prudentemente.

— Ó vizinho, por quem é, não ande por aí
a dizer essas coisas, que me desacredita o rapaz. Olhem se o João da
Semana o sabe! Um médico poeta! Para que diabo lhe havia de dar…

— Que faça versos à Lua e ao Sol, se quiser – dizia João
da Esquina – não há de tirar disso grande proveito, mas que
os faça, que os faça; agora andar a inquietar famílias
e …

— Tem razão, vizinho, tem razão, e eu lhe prometo…

— Abusar da confiança de um homem como eu!

— Tem muita razão, vizinho

— Fazer andar à roda a cabeça de uma rapariga de juízo!

Neste ponto, José das Dornas engoliu em seco, mas não deixou
de repetir:

— Tem toda a razão, vizinho…

— É um desaforo!

— Não o nego, Sr. João, não o nego.

— Não é homem em que a gente se fie.

— A falar verdade….não é, não é.

— Enfim, Sr. José – continuou o tendeiro com ar resoluto, e,
depois de uma pausa, concluiu – É forçosa uma satisfação!

— Eu lhe prometo que o rapaz não volta lá.

João da Esquina fez um gesto de quem não se lisonjeava com
a promessa.

— Não é por isso que eu digo.

— Então?

— O vizinho sabe o que são bocas do mundo?

— Sim; e depois?

— O que são línguas chocalheiras?

— Sim; e daí?

— O que são…

— Vamos; adiante.

— Pois bem; para as fazer calar, é preciso…

— É preciso o quê?

— É necessário…

— É necessário o quê?

— É indispensável…

— O quê? Sr. João, o quê?… – exclamou o lavrador,
já impaciente – o que é necessário?

— Que seu filho…

— Que meu filho?

— Case…

— Com sua filha, não?

— Está bem de ver.

Com grande escândalo do tendeiro, José das Dornas pôs-se
a cantarolar:

Ai, lá ri ló lé lá,
Eu vou pela mansidão.

– E foi para isso que teve o trabalho de vir aqui? Ora olhe, Sr. João:
nós somos conhecidos antigos, e eu macaco velho, como deve saber, que
já não me deixo levar por essas. Aqui para nós, por que
não tapou o vizinho da mesma forma as bocas mundo, que tanto falou
do derriço de sua filha com o filho do sineiro? Por que se deu lhe
não deu que elas tagarelassem por ocasião da festa do Coração
de Jesus, quando o Bento do padeiro não tirou os olhos dela, e ela
dele, durante toda a festa? Por que fez ouvidos de mercador, quando o Sr.
Padre Antônio lhe disse que casasse a rapariga com o Chico sapateiro
para não dar que falar a cegueira em que ela andava com ele? Aí
então, não quis: nem lhe importaram as línguas chocalheiras?
Chegaram-lhe agora as febres. Pois veio bater a má porta. Sossegue.
Não tenha susto. Homens, que fazem versos, não são os
piores. Contentam-se com isso. Sabe que mais? Meta a viola no saco; retese
a corda à cachopa, e deixe correr.

— Isso não é resposta que se dê, Sr. José
– exclamou o tendeiro, que via prestes a fugir-lhe uma ótima ocasião
de negócio.

— Não se zangues, Sr. João. Amigos como dantes. Pensemos
em outra coisa. Está um tempo muito criador…

— Sr. José, isto não vai assim.

— Não me mortifique, Sr. João, para que não vá
pior. Os milhos…

— Sr. José!

— Não berre, vizinho.

— Eu quero ver…

— Pois abre os olhos… Mas…

— Quero ver se é capaz…

— Sr. João, vá para casa.

— Sr. José das Dornas! veja o que faz.

— Estou vendo.

— Repare bem para mim.

— Estou reparando.

— Saiba que eu sou…

Não pôde dizer o quê. Interrompeu-lhe o discurso o reitor,
que entrou na sala. Vendo o aspecto dos dois interlocutores, e a vivacidade
do gesto do tendeiro, o padre quis saber a razão da contenda. João
da Esquina desanimou em presença do reitor. Agourou mal da intervenção.

Depois e ouvir as queixas do tendeiro, o reitor perguntou-lhe, com o rosto
severo, se o casamento da filha com empreiteiro das estradas não viria
reparar mais falhas na inteireza da sua boa fama doméstica.

João da Esquina sentiu-se derrotado, e já procurava uma saída
airosa.

— Bem; eu retiro-me, que sou prudente. Levo a consciência de
que fiz o meu dever. Mas o mundo saberá…

O resto da oração pronunciou-a fora da porta. esta circunstância
impossibilita-me de informar o leitor sobre o que o mundo tem de vir a saber
a respeito do tendeiro.

— Que lhe parece esta, Sr. Reitor? – disse José das Dornas,
mal o viu sair. – Havia o meu Daniel de…

— O teu Daniel é um doido; e se isto assim continua, há
de vir a fazer a tua desgraça.

— Mas uns versos que mal fazem? e então àquele cata-vento
da Chica do tendeiro, que é mesmo… o Senhor me perdoe.

— Homem; a coisa não está nos versos. O que eu digo é
que o Daniel tem deveres tão sagrados, entrando no seio das famílias,
como nós os párocos. E se as mãos, que devem levar o
remédio, espalham a peçonha, a maldição de Deus
desce sobre elas. Quem abrirá as portas da alcova, onde padeça
uma filha, uma esposa ou uma irmã, ao médico que não
tem força para sufocar as paixões más do seu coração?
Fá-lo-ias tu? Não nem eu. Quanto mais santa é uma missão
neste mundo, José, mais se rebaixa e avilta quem a aceita sem ter-lhe
compreendido o alcance. O mau padre é o pior dos homens; e parece-te
que será muito melhor o médico imoral? Pensa nisto, e diz-me
se Daniel merece grandes desculpas.

As palavras do reitor tinham o poder de calar no ânimo de José
das Dornas, como as de ninguém.

O lavrador baixou a cabeça, e perguntou humildemente:

— Então acha V.S.ª que Daniel deve casar com a …

— Não digo tanto! – respondeu com vivacidade o reitor – Ali
houve cálculo neles, conheço-os há muito; e espero que
da parte de Daniel nada mais se deu além da loucura dos versos, que
não valem nada afinal. Mas que lhe sirva de aviso.

— Se o Sr. Reitor lhe fosse ralhar…

— Onde está ele?

— Deve estar lá dentro no quarto.

O padre foi ter com Daniel.

Capítulo XXIV

A vida que, por aquele tempo, Daniel passava na aldeia era de uma monotonia
capaz até de saciar as exigências do homem mais indolente e ocioso.

Vejamos em que se ocupava o nosso herói, enquanto, sem o suspeitar,
estava sendo objeto do momentoso diálogo, do qual, no capítulo
antecedente, nos aventuramos a ser cronista.

Para isso tomemos a dianteira ao reitor e entremos, antes dele, no quarto
de Daniel.

Não sei se é a voz da consciência a que me está
a bradar que vou cometer uma indiscrição.

As pessoas mais sisudas e graves têm momentos na vida, durante os quais,
a sós consigo, se entregam a distrações de crianças.

É possível, pois, irmos encontrar Daniel em um dos tais momentos;
e talvez que o possamos, por essa forma, prejudicar no conceito dos leitores.
Mas, por quem são, lembrem-se que, em horas de ócio e enfado,
ouso eu afirmá-lo, não tem sido também demasiado os escrúpulos
na escolha de passatempos; essa consideração decerto os fará
indulgentes.

Àquela hora do dia, Daniel sentia-se morrer de tédio, debaixo
dos telhados paternais.

O calor não o deixava sair.

Quis ler: faltavam-lhe porém os livros. Os seus ainda não tinham
chegado da cidade.

Revistando os cantos e escaninhos da casa, apenas encontrou três repertórios
dos anos findos, uma cartilha de doutrina cristã, uma tábua
de pesos, medidas e dinheiros, e, em gênero mais ameno, o Testamento
do Galo, a confissão do Marujo Vicente e a Vida Milagrosa de não
sei que santo padroeiro da freguesia.

Ainda assim, tudo isto leu Daniel, por motivo análogo aos que levou
os náufragos da nau Catrineta a "deitarem sola de molho para o
outro dia jantar".

Esgotado este pecúlio literário, lembrou-se Daniel de escrever
cartas. Encontrou, porém, o tinteiro muito pobre de tinta; essa, amarela
e bolorenta; e, pior que tudo, uma pena de pato, de tantos caprichos, que
lhe fez perder logo a paciência.

Veio para a janela; e, durante algum tempo, divertiu-se a atirar biscoitos
a um cão, que andava solto pela quinta. As galinhas, patos, pombos
e perus, que havia em abundância na casa, corriam tumultuosamente a
disputar ao quadrúpede as migalhas as quais ele defendia com unhas
e dentes.

Este jogo de circo, em miniatura, encantava Daniel. Afinal cansou-se dele
também, e fê-lo cessar.

Vendo então um gato em pachorrento repouso, no alto duma ramada distante,
tomou um espelho, e, por meio dele, fez cair sobre a cabeça do sonolento
animal os raios ofuscadores daquele sol de agosto.

O gato, assim despertado, abriu os olhos, mas fechou-os logo, e desviou a
cabeça para se furtar àquela pouco agradável impressão.
Depois de vários movimentos, sentindo-se sempre perseguido por o mesmo
reflexo, ergueu-se, espreguiçou-se, aguçou as unhas na madeira
da ramada, e, voltando-se para o outro lado, ajeitou-se com o manifesto intento
de concluir o sono interrompido.

Impossibilitado, por esta evolução do gato, de continuar a
incomodá-lo da mesma forma que até ali, Daniel fez-lhe pontaria
com uma maçã verde, e tão certeira que o projetil foi
bater em cheio nas costas do animal, que num salto desapareceu.

Terminou para Daniel mais este divertimento.

No peitoril da janela descobriu, porém, uma formiga. Uma formiga!
Que valiosos achado naquelas alturas!

A providência dos desocupados velava decerto por ele.

Procurou logo uma migalha de pão e pô-la na passagem do laborioso
inseto.

A formiga parou, tenteou com as antenas o estorvo, assim de repente lançado
no seu caminho, examinou-o de todos os lados, depois, talvez por capricho
– porque até os insetos têm, a meu ver, alguns caprichos – deu-lhe
para desprezar o alimento e deitou a fugir.

Daniel insistiu, colocando-lhe outra vez o p&atiatilde;o na passagem; o mesmo
exame da parte da formiga, e a mesma rejeição final. Nova tentativa
de Daniel foi ainda seguida do mesmo resultado. Era demais para sua paciência;
com um sopro fez voar a migalha e formiga pela janela fora.

E mais uma vez, ficou sem entretenimento.

Pôs-se a passear no quarto; primeiro descrevendo ziguezagues; depois,
procurando conservar os pés na linha de juntura de tábuas do
soalho; em seguida, medindo escrupulosamente a passos regulares o comprimento
e a largura do retângulo do aposento; e, feita esta última operação,
multiplicou os resultados obtidos, como se tomasse muito a peito o cálculo
daquela área.

Completa esta tarefa, e, depois de alguns bocejos expressivos de enfado,
procedeu ao trabalho, não menos importante, de equilibrar na ponta
do dedo mínimo uma vara de marmeleiro.

Cansou-o cedo a violência do exercício, no qual, de mais a mais,
não foi muito feliz; este mau êxito desgostou-o como se naquilo
tivera posto a sua reputação.

Acendeu um cigarro comprado no único e mal fornecido estanco da terra.
O papel parecia, porém, apostado a impacientá-lo: era incombustível;
o tabaco tinha crepitações que aos ouvidos de Daniel soavam
como risadas de mofa; e os lumes prontos, aqueles perfeitos e elegantes lumes
prontos de pau, primitivos modelos da industria nacional, bem conhecidos de
nós todos, perdiam a cabeça à primeiro tentativa feita
para os inflamar… faziam-na perder também a Daniel, diria eu, se
se usassem ainda os trocadilhos.

Chegou a despejar uma caixa para acender o cigarro, e este ardia-lhe só
de um lado. Afinal não fumou.

Para desabafar a sua impaciência, trauteou toda a música italiana
que a memória lhe armazenava, e acabou por cantar em voz alta a ária
de Genaro na Lucrécia:

Di pescator ignobile
Esser figliuolo credei

Nisto, chegando à janela, viu que os moços da lavoura estavam
todos a olhar para cima boquiabertos, admirando aquele acesso de fúria
musical.

— Bom – pensou Daniel – Estou dando escândalo, e a arriscar a
minha reputação de homem sisudo.

E calou-se, tocando com os dedos um rufo no peitoril da janela.

Depois passeou, sentou-se, ergueu-se de novo, e tornou a passear.

Achando por acaso uma pedra de giz, escreveu distraído, na porta da
janela, as seguintes palavras:

Coge-Çofar – Sumatra – Telescópio – Manon Lescaut

O oculto fio lógico, que, encadeava essas quatro palavras na mente
de Daniel, é um mistério que eu não sei decifrar.

O giz gastou-se.

Ó doce vida da aldeia – exclamou por fim Daniel com amargura – Ó
sonho dourado dos poetas de geórgicas e de idílios, como eu
me estou deliciando em ti! Eis a secura quies, os otia in latis fundis e os
molles somni, de que fala o poeta. É isto! Ora eu sempre queria que
aquele bom do Virgílio me dissesse o que se há de fazer no campo
a estas horas do dia? Que vida! que vida esta, meu Deus! e que futuro!

Ao dizer isso, lançou casualmente os olhos para o leito, e, como se
este lhe desse a resposta, ao que ele queria perguntar ao cantor de Enéias,
deitou-se.

Deitou de costas, e pôs-se então a contar as tábuas do
teto.

Contou dezessete.

— Dezessete, noves fora, oito – disse insensivelmente Daniel.

Depois reparou que eram oito os vidros da janela, e admirou lá consigo
muito esta, na verdade admirável, coincidência.

Um resultado tão curioso animou-o a prosseguir em observações
análogas.

Preparava-se para contar as cabeças dos pregos, que viu pelo teto,
porém uma mosca importuna. teimando em pousar-lhe na testa, veio perturbá-lo
neste ponderoso exame, e obrigou-o a desistir.

Por acaso, fitou então os olhos em uma espécie de mancha escura,
que estava na parede fronteira. Ao princípio olhou-a distraído,
mas pouco a pouco, a atenção empenhara-se naquilo, como se em
objeto de grande monta.

A distância não lhe permitia distinguir o que fosse.

— É uma nódoa de umidade, decerto – disse Daniel consigo
– ou não… é um inseto talvez… Mas não se move?…
Seja o que for…

E desviou os olhos.

Daí a pouco estava outra vez a olha r para lá.

— É um inseto, é… mas tão imóvel!…

Não pode deixar de soprar-lhe, ainda que sem probabilidade nenhuma
de o atingir, pela distância a que lhe ficava.

A mancha negra não se movei.

— Não é inseto – pensou Daniel.

E outra vez retirou a vista daquele ponto, para, passados instantes, a levar
de novo lá.

— Mas a forma é de inseto…

E ergueu meio corpo e estendeu a cabeça para o sítio. Não
pode ainda distinguir o que fosse aquilo.

Tornou a deitar-se, simulando a resolução de se não
importar mais com o problema.

Mas a curiosidade irritada subiu a ponto de o constranger a levantar-se.
Aproximou-se então da mancha da parede, e viu que era uma mariposa
escura, em um daqueles estados de imobilidade, em que por tanto tempo se conservam
às vezes. Daniel não resistiu à tentação
de lhe tocar de leve nas asas; a mariposa fugiu.

Perseguindo-a, chegou até a janela.

Neste momento passava no pátio um dos mais velhos criados da quinta.
Daniel chamou-o e mandou-o subir.

Daí a instantes, entrava-lhe o homem no quarto.

Daniel deitou-se e disse-lhe que falasse.

O criado não sabia em quê.

— No que quiseres; mas fala-me para aí.

O velho olhou para a janela, olhou para o ar, e disse:

— Temos vento; aquelas nuvens brancas costumam dar nisso.

— Tu sabes o que é o vento? – disse Daniel, espreguiçando-se

— O vento? O vento é assim um coisa… como um… assopro –
respondeu o homem.

— És um asno. O vento é uma corrente de ar, produzida
pela desigual distribuição de temperatura na atmosfera.

E Daniel dizendo isto, entre dois bocejos, olho para o criado divertindo-se
em estudar-lhe no rosto o efeito da definição científica.

O homem abriu a boca, sorrindo de dúvida.

— Mas aposto que o menino não me sabe dizer uma coisa?

— O quê? – perguntou Daniel, que estava a achar sabor ao diálogo.

— Donde vem o vento e para onde vai?

Esta pergunta, análoga a outra que, ainda não há muito
se fez em lugar mais sério, embaraçou algum tanto Daniel.

— E tu sabes, Antônio?

— Eu!? Não que nem nenhum matemático. E diga-me, sabe
também o que são estes sinais que aparecem, às vezes,
como a semana passada?

— Que sinais?

— Pois não viu aquela noite da semana passada a Lua a sumir-se,
que era uma coisa de estarrecer?

— Ai, isso era um eclipse.

— Um eclis? Pois um eclis, seria. Mas o que é aquilo?

— É a Terra.

— Terra!

— A Terra, a Terra, a sombra da Terra, do mundo.

— A sombra! Então… nós estamos de baixo e a Lua de
cima, como lhe havemos de fazer sombra? Essa não é má!

Daniel, para se distrair, quis experimentar até que ponto podia fazer
compreender a este homem a idéia do fenômeno físico em
questão. Alguma coisa se há de tentar na aldeia, em uma longa
tarde de estio.

— Imagina tu aquela janela, o Sol; eu a Lua; tu a Terra. Ora bem; põe-te
a andar pela esquerda.

— Mas se a janela é que é o Sol, que ande a janela.

— Não há tal; pois a Terra é que anda.

— Como! Então o Sol não é que anda?

— Não. O Sol está parado.

O criado deu uma risada.

— Muito obrigado. Para ver o Sol andar, olhe que não é
preciso ir ao Porto. Vê-se mesmo de cá.

O passatempo principiava já a enfastiar Daniel.

Veio interrompê-lo a propósito uma criança de nove anos,
filha do seu interlocutor, a qual tendo ouvido a voz do pais, entrou sem cerimônia,
pelo quarto adentro. Ao ver, porém, Daniel, parou como hesitando.

— Vem cá, pequena, vem cá – bradou-lhe Daniel, que naquele
momento recebia com prazer toda a qualidade de diversão. – Não
tenhas vergonha, vem cá. Toma um biscoito.

A pequena ganhou ânimo com a oferta, e dentro em pouco estava a comer
biscoitos, familiarmente sentada junto de Daniel.

— Então como se diz? – perguntava o pai; e, como ela não
respondesse, respondeu ele próprio:

— Muito obrigado, Sr. Daniel.

— Tu como te chamas, pequena? – perguntou Daniel.

— Rosa.

— Uma criada de V.S.ª – emendou o pai.

A pequena dispensou-se de repetir.

— Olha – continuou Daniel, tomando-a ao colo – dize-me uma coisa, que
é da tua mãe?

— Está em casa.

— E tu gostas dela?

— Gosto.

— Gosto, sim senhor – emendou o pai.

— E de teu pai?

A criança olhou para o pai e pôs-se a rir.

— Dize assim – disse-lhe este: – Também gosto, sim senhor.

— Também gosto – repetiu a pequena, suprimindo, como uma inútil
excrescência, o resto da frase.

— Mas o teu pai é um tratante.

A criança sorriu.

— Dize: não é, não senhor – ensinou-lhe o pai.

— Não é – repetiu a criança.

— É, é…

— Não é; vossemecê é que …

— Ah! – atalhou o velho. – Feia! isso não se diz.

— Tu sabes adivinhas, Rosa? – perguntou Daniel, rindo.

— Sei.

— Sim, senhor – corrigiu ainda outra vez o velho.

— Ora vamos lá a uma adivinha.

A pequena não se fez rogar.

— Então diga lá o que é esta:

Altos castelos
Verdes e amarelos

Isso é de certo a casa de um brasileiro – respondeu.

A criança pregou-lhe uma risada, e toda satisfeita, exclamou:

— Boa! É uma laranjeira.

— Ah! Ninguém havia de dizer. Vá lá outra.

— Que é, que é, que

Alto está, e alto mora,
Todos o vêem, e ninguém o adora?

Daniel ergueu a cabeça a fingir que meditava no enigma; viu que o
pai da pequena lhe fazia não sei que sinal com o dedo. Seguindo a direção
que lhe pareceu indicada assim, Daniel parou a vista em um pinheiro longínquo,
e disse:

— É um pinheiro.

Pai e filha deram uma risada.

— É um sino – disse a pequena.

— Pois nem viu que eu apontava para a torre.

— E esta – continuou a criança:

Mil marinhinhos, mil marinhões,
Dois parafitas e quatro chantões?

– Isso agora é que tem mais que se lhe diga. Que língua vem
a ser essa? Marinhinhos e marinhões? e que mais? Que mais?

— É um boi, é um boi – respondeu a rapariga, a quem faltava
a paciência para ver estar a pensar muito tempo.

— Um boi! Sempre quero saber como é que isso é um boi.
Mil marinhinhos, um boi?

— Mil marinhinhos, são os pêlos.

— Ah?… E mil marinhões?

— São os pêlos maiores – respondeu o pai.

— Dois parafitas são as gaitas – continuou a filha.

— E então, provavelmente, os quatro chantões… – ia
a dizer Daniel.

— São as pernas – concluíram pai e filha.

— Pois essas, de todas é a mais bonita – disse Daniel, que efetivamente,
no estado de espírito em que se achava, encontrou certo sainete de
originalidade no disparatado enigma, tão popular no Minho.

Neste tempo entrou Pedro no quarto; o criado velho retirou-se, levando a
filha consigo, e os dois irmãos ficaram sós.

Capítulo XXV

Pedro era caçador e dos apaixonados. Dizendo eu isto, já o,
leitor, se não é um homem fadado por Deus para felicidades excepcionais
cá na Terra, em qual assunto falaria ao irmão o primogênito
de José das Dornas.

De fato, quem haverá aí que, por mais de uma vez, não
tenha visto irem-se-lhe duas horas seguidas pelo menos, duas horas de tempo
preciosos a escutar uma dessas intermináveis descrições
de caça, de astúcia de galgos e perdigueiros, de singularidades
de tiros; de manhas de lebre, galinholas, garças e perdizes, com que
Nemrods desapiedados fazem cair sobre seus irmãos em Adão todo
o peso da sua paixão venatória?

Ao princípio acolheu Daniel de bom grado a nova diversão que
lhe oferecia o assunto, ao qual não era adverso também. As duas
primeiras aventuras de caça escutou-as com atenção não
afetada.

Tratava-se de uma caçada de lebres, na qual Pedro obrara maravilhas,
com a coadjuvação de um cão, de que ainda agora sentia
saudades.

Era um longo romance, que daria para muitos capítulos. Permitam-me
que lhes registre aqui ao menos o argumento, o qual, mutatis mutandis, serve
para todos do mesmo gênero.

De como se originou o projeto da caça – O que se disse por essa ocasião
– Escolha da época – Princípios gerais que devem regular o caçador
nessa escolha – Descrição da partida – Enumeração
e descrição dos caçadores – Apreciação
filosófica das suas qualidades venatórias – Divagação
sobre os dotes indispensáveis ao bom caçador – Condições
meteorológicas da madrugada, no dia da surtida – Reflexões sobre
a influência dela nos destinos prováveis da empresa – Esboço
topográfico do campo de ação – Impaciência dos
cães – Sinais característicos de um cão de boa raça
– Projeto inédito do narrador sobre a educação canina
– Algumas considerações sobre a melhor qualidade de espingarda,
de pólvora e vestuário mais acomodado ao gênero de caça
em questão – Exame do problema: "se é preferível
almoçar antes da partida ou no campo" – Primeiros indícios
de caça – Alvitres dos caçadores – Análise crítica
de cada um dos alvitres, concluindo pela demonstração da vantagem
do narrador, o qual prevalece sempre – O primeiro tiro e a primeira lebre
morta – O autor atribui, com a possível modéstia, a glória
de ambos a si próprio – Novos episódios, alguns lances felizes
dos companheiros e muito mais desastrados – De como o autor deu, em certo
caso, prova de grande prudência, contemporizando, e em outro, soube
ser arrojado, como devia. – Notável contraste nisto com todos os companheiros
– Descrição de um aguaceiro, trovoada ou vadeação
de um rio, e efeitos próximos e remotos que teve sobre os caçadores
– De como se jantou – Amarguras estomacais e provações musculares
– Campanha da tarde – Bom emprego do último tiro – Dificuldades que
trouxe a noite – Confusão dos companheiros e frieza de ânimo
no autor – Considerações sobre a maneira de se orientar no caminho
um caçador perdido – Algumas palavras sobre o melhor sistema de cozinha
a caça – Preceitos do regime alimentar do cão – Recapitulação
de tudo quanto se disse – Peroração em honra da casa em geral
e da caça da lebre em particular – Transição para outra
história.

Todos estes capítulos, difusamente desenvolvidos, ouviu portanto Daniel,
com mostras de curiosidade. A terceira história, porém, já
o mais indiferente; a quarta recebeu-a com bocejos, a moda de comentários;
a quinta com impaciência manifesta; a sexta com inquietação;
a sétima com horror – horror que foi crescendo gradualmente até
a duodécima.

Pedro fazia então o elogio fúnebre do perdigueiro, que, havia
um mês, lhe tinha morrido.

— Olha que era um animal aquele, Daniel, que parecia que entendia uma
pessoa! Eu nunca vi bicho mais fino! Se tu o visses no monte! Aquilo era um
azougue. Um dia, tinha ido, eu, o Luís do mestre-escola e o Francisco
do alferes.

— Isto que horas serão? – perguntou Daniel, a ver se desviava
de si a história iminente.

— Vai nas três – respondeu Pedro, e continuou: Mas íamos
nós todos… aí, é verdade, ia também o Domingos
cabo-mor… oh!… mas esse não mata um pardal. Tem aquele diabo um
costume…

— Que insuportável calor! – bradava Daniel, tão pouco
à vontade no leito, como se fora de Procusto.

— Hoje está quente, está – concordou o irmão,
e continuou: – Mas tem aquele diabo um costume, que por mais que eu lhe diga,
não é capaz de perder.

Daniel colocou a almofada do travesseiros sobre os ouvidos para não
ouvir.

— O costume é o seguinte: Tu sabes que no tempo das perdizes…

Foi neste momento que entrou o reitor no quarto.

— No tempo as perdizes, no tempo das perdizes, tanto mentes, quanto
dizes. É manha velha de caçador. Gabo-te os vagares, Pedro!
Nem que um homem viesse a este mundo para andar de arma, ao ombro e polvorinho
a tiracolo, por montes e vales, tiro aqui, tiro acolá, vida de galgo,
atrás da lebre; e a casa por aí sabe Deus como!

— Isto era para conversar um bocado – disse Pedro, sorrindo a esta
objurgatória do padre.

Daniel ia erguer-se; o reitor não lho permitiu.

— À vontade, à vontade; quem acabou de ouvir uma ladainha
de Santo Huberto, como eu imagino… ainda se fosse só imaginar; –
como eu infelizmente, sei por experiência também – não
deve sentir-se com grandes forças para se ter em pé.

Daniel sorriu.

— Mas veja lá, Daniel – continuou o padre – veja você
este seu irmão. Que homem de casa aqui se está preparando! Esquecido
a taramelar, e o trabalho da eira entregue aos criados que, quando eu passei,
bem pouco se cansavam com ele. Tudo vai ao deus-dará nesta casa, depois
que o maldito vício da caça virou a cabeça a este homem!
Olha que um chefe de família, Pedro, não é só
responsável por si, mas também por toda a sua gente – parentes
e criados. – Ele é que deve dar o exemplo. e eu, para te dizer a verdade,
não gostei nada de ver aquela doida da Maria, lá embaixo com
os meliantes dos teus criados, que só sabem tanger violas e dançar,
como ainda agora o fazem. Eu, apesar da coisa não ser comigo, que não
sou dono da casa, sempre lhes fui ralhando, para de todo não perder
o tempo. Agora tu…

— Pois os vadios estavam a cantar, e com o trabalho por fazer?

— Boa dúvida! Onde o patrão dorme, ressonam os criados.
E fazem muito bem.

— Ora eu lhes vou ar já a cantiga.

E, distraído da sua paixão favorita, Pedro saiu do quarto,
com direção à eira.

— É um bom rapaz! – disse o reitor ao vê-lo sair.

— Isso é. Pedro há de vir a dar um excelente pai de família
– acrescentou Daniel.

— Para isso basta-lhe o grande fundo de moralidade daquela alma! –
replicou o padre, indo buscar uma cadeira que aproximou da cabeceira do leito,
no qual Daniel, a instâncias dele, se conservava ainda.

Daniel seguia com a vista e os movimentos e gestos do padre, e suspeitava
que ele tinha alguma coisa a dizer-lhe.

— A moralidade – continuava este – é a primeira condição
para a felicidade do homem. Como pode querer que o respeitem, o que não
sabe respeitar os outros, nem respeitar-se a si próprio?

— Temos sermão – pensava Daniel. – Onde quer ele chegar?

De repente o reitor, como se lhe acudira uma idéia imprevista, disse,
fitando os olhos em Daniel e em tom que procurou fazer natural:

— É verdade, ó Daniel, então você tem casamento
contratado, e não dá parte à gente?

— Eu!?… Casamento?… – exclamou Daniel, deveras admirado, e sentando-se
no leito.

— Casamento, sim. Ainda agora me asseguraram.

— E quem é a noiva que me destinam?

— Uma vizinha sua. É aqui a filha do João da Esquina.

— Ah! Isso sim – disse Daniel, sorrindo-se e deitando-se outra vez.

— Isso sim? Não leve o caso a rir, que o negócio é
muito sério. Porventura não haverá fundamentos para a
notícia que me deram?

— Eu tenho ido a casa dela, é verdade.

— Ah!

— Mas… como médico…

— Não está má medicina a sua! Então que
tratamento lhe aconselhou?

— Confortativo – respondeu Daniel gracejando.

— Ah! e o boticário entenderia as receitas que escreveu?

— Nem todos os conselhos médicos precisam do auxílio
do boticário. Os banhos do mar, os passeios, os leites de jumenta,
e as diferentes prescrições do tratamento moral, por exemplo.

— Estou vendo que foi um tratamento moral que fez.

— Exatamente.

— Olhem que cegueira a do João da Esquina, e a de seu pai, e
a minha até, que não vimos que era uma carta de guia para bom
caminho, uns mandamentos para a salvação do corpo, e não
sei se da alma também, o que ainda há pouco lemos!

— O quê? Pois leram?… – perguntou Daniel com vivacidade, e
erguendo-se outra vez.

— Lemos, sim. Mas não entendemos. Veja lá: a mim pareceu-me
aquilo uma coisa desaforada; e ao João da Esquina, então? Esse
não descansou enquanto não teve de nós a promessa solene
de que o obrigaríamos, a si, uma reparação.

Daniel tinha já os pés no pavimento.

— Uma reparação? Por quê?… A quem?…

— Olhem que inocência! precisa talvez que eu lhe responda?

— E que espécie de reparação hei de eu…

— A única devida a uma rapariga, a quem…

— A quem?…

— Cuja boa fama se perdeu!

— Então acusam-me de ter perdido a boa fama daquela menina,
e querem constranger-me talvez a casar com ela! – exclamou Daniel sobressaltado,
e pondo-se a pé num ímpeto, como se o picasse uma víbora.

— Quem mais o constrangerá há de ser a consciência,
que ainda não emudeceu de todo em si.

— Não constrange, não. Não me julgo moralmente
obrigado a reparação de qualidade alguma. A menina Francisca…
tem uma cabeça… bonita, na verdade, realmente bonita.

— Está bom, está bom. Que tenho eu com essas bonitezas?
Isso não vem agora a nada.

— Bonita, digo eu, mas leve, leve como uma bola de sabão – continuou
Daniel.

— É defeito de muita gente.

— Achei-a triste, tão triste por ser trigueira… veja que doidice
aquela!… que entendi… – não entraria isso nos meus deveres de médico?
– entendi que a devia curar. Ora, pensando que para este efeito valeria mais
um galanteio do que todas as drogas medicinais…

— Então, então… – disse o reitor, um pouco despeitado
com o tom leviano de Daniel – deu agora em gracejar comigo?

— Não gracejo. É que realmente o meu procedimento…
não digo que fosse de uma sisudez exemplar, mas não merece as
cores negras com que lho pintaram, nem reclama as medidas extremas e violentas
que me propõem. Um casamento impossível!

— Impossível! O que aí vai! Não o fazia tão
fidalgo! Com que então…

— Olhe, Sr. Reitor – disse Daniel, tomando ar mais sério – vou
falar-lhe com toda a sinceridade. Eu sou bastante leviano; conheço
que o sou. De ordinário, não me canso muito a calcular conseqüências,
antes de dar um passo qualquer. Caminho de olhos fechados em muitos atos da
vida, e sobretudo quando só eu lhe posso vir a sentir os efeitos maus.
Mas há uma coisa em que não me costumo a pensar levianamente.
É no casamento. Se um dia me vir casado…

— Rezarei a todos os santos por sua mulher? Estou certo que será
bem preciso.

— Se um dia me vir casado, suponha que encontrei uma mulher, por quem
sinto alguma coisa além do amor, por quem sinto o respeito e a confiança
que se devem a uma mãe de família. Não tenho sido muito
escrupuloso em contrair certa ordem de ligações, é verdade;
porém nunca me lembrei de fazer dessas mulheres que amei, nem quando
a paixão me cegava mais, os anjos familiares a quem entregamos o nosso
futuro inteiro. Neste sentido tem-me espantado o arrojo de muitos. E não
é isto tenção formada em mim contra o casamento; mas
é que acho muito grave a missão de esposa e de mãe, para
a entregar assim levianamente em quaisquer bonitas mãos, só
porque são bonitas.

— Isso lá é verdade – disse o reitor, que não
previa que nestas palavras aprovadoras assinava sua capitulação.

Daniel, ainda que tivesse sido sincero no que dizia, não desestimou
ver assim o reitor quase voltado para o seu lado e prosseguiu com mais ardor:

— Ora quem quiser que tente fazer daquela menina, que sabe os verbos,
uma boa mãe de família; eu por mim é que não farei
a experiência. Era uma tremenda responsabilidade que tomava para com
meus futuros filhos.

— Não, não vamos também agora a fazer da pequena
pior que o que ela é, – observou o reitor. A cabeça é
um pouco estouvada, sim, mas o fundo é bom, e passados anos… Mas,
homem dos meus pecados, se você pensa assim – e nisso não serei
eu que lhe diga que pensa mal – para que se mete nestes enredos? Para que
dá ocasião a que os outros se julguem com direito a…

— Tem razão, Sr. Reitor. Eu não me quero apresentar como
inocente. Digo humildemente: peccavi. Mas que quer? Onde se encontram as facilidades…
nem todos tem força para se vencer. E depois, olhe que nos faz falta
deveras a capa egípcia de José, para a sacudir dos ombros em
ocasiões de aperto.

— Adeus! Aí torna com as suas! – disse o reitor, custando-lhe
a disfarçar um sorriso.

O certo é, porém, que o padre estava aplacado. Tranqüilizou
Daniel, contando-lhe tudo que tinha sucedido. Fez-lhe um longo sermão
de moral, afirmando-lhe no fim que, se não fosse por saber a família
Esquina "useira e vezeira" nestas tentativas de especular casamentos
de vantagem, e nem sempre por meios justificáveis, seria menos indulgente.

Daniel fez voto de emenda, e protestou ser aquela a sua última rapaziada.

Graças, porém, à loquacidade da Sr.ª Teresa a história
dos versos transpirou e causou escândalo na aldeia. Não se falou
em outra coisa, durante algumas semanas. Os pais olharam Daniel com desconfiança;
os rapazes, com ciúmes; as raparigas, com curiosidade. O trio de línguas
da casa dos Esquina cantou a palinódia a respeito de Daniel, e com
valentia não menor que a empregada nas loas, com que primeiro o tinham
celebrado.

Por todos os lados da aldeia ressoaram os coros. O nível da reputação
de João Semana subiu no conceito público. Daniel confirmou sua
reputação de libertino e de homem perigoso. Ele é que
era indiferente a isso tudo. Dava-lhe poucos cuidados o futuro de sua vida
clínica assim tão ameaçado. Continuava gozando, com resignação,
se não com prazer, os ócios daquele viver de morgado. As suas
maiores distrações eram o passeio, a caça e a pesca.

Na menina Francisca já não pensava. Desprestigiou-a de todo
aquela conspiração matrimonial. Do ódio, com o qual daí
em diante o honraram os progenitores da menina, nunca ele se lembrou.

Capítulo XXVI

Quando contaram a João Semana o que se passou entre Daniel e a família
dos Esquinas, o velho cirurgião não o quis acreditar. Teve,
porém, de ceder à unanimidade das opiniões, e então
não se fartou o nosso bom homem de benzer-se, de espantado.

João Semana era intolerante em coisas de moral, e principalmente médica.
Para bons ditos, anedotas e contos, ainda que às vezes temperados com
o sal de Bocácio, de La Fontaine e da rainha da Navarra, tinha grande
indulgência o velho clínico, que, por toda parte, os contava
também, sem escolha de auditório, nem de ocasião; mas
a menor aventura que de longe sequer se aproximasse do gênero das que
ele fazia crônica de tão boa vontade, dificilmente encontraria
remissão no seu tribunal. Se o réu era um colega, crescia então
de ponto a austeridade. Por isso o procedimento de Daniel encontrou nele um
severíssimo juiz.

Forçoso é, porém, dizer que uma circunstância
havia em todo aquele episódio, que, mais que nenhuma, o escandalizava.
De fato, conquanto manifestamente não o dissesse, o que em extremo
o irritava era Daniel ter caído na fragilidade de fazer versos. João
Semana não tinha em grande conta de coisa séria a poesia; e
então poesia daquela? Inda se fosse um soneto, vá. O soneto
tem um aspecto sério, grave e discreto, que não derroga a dignidade
de ninguém. Qualquer desembargador, cônego, ministro de estado
honorário, ou lente jubilado – quatro das mais sérias entidades
sociais – pode fazer um soneto, sem agravo da sisudez oficial; mas aquela
poesia travessa, ligeira, folgazã, de Daniel, poesia de um gênero
novo para João Semana, poesias sem musas nem Apolo, fê-lo sair
fora de si.

Joana teve que o ouvir naquele dia.

— Aí está o que você faz, aí está
– dizia ele – por sua causa, pela desastrada lembrança que teve de
mandar aquele doido em meu lugar, é que tudo isto sucedeu. Sempre tem
lembranças!

— Deixe lá, Sr. João, olhem a grande coisa! – respondia
a criada. – Ora! afinal de contas não passa de uma brincadeira. Fosse
a rapariga seriazinha, e não tivesse aquela cabeça que nós
todos sabemos, que já nada disso acontecia.

— Ela não é que tem a culpa.

— Não tem? Pois quem? Ele? Não que ele é rapaz.
Nada lhe fica mal.

— Que diz você? Nada lhe fica mal? Então um cirurgião
ou médico pode lá ter essas liberdades? Onde é que se
viu um homem da nossa posição fazer versos? Não tem vergonha.

— Ora adeus! São rapazes.

— E a dar-lhe! São rapazes, são rapazes, e acabou-se.
Boa desculpa! Essas e outras é que deitam a perder a classe.

— Mas que perde o Sr. João Semana com isso?

— Que perco?

O facultativo, por mais que fez, não conseguiu efetivamente dizer
o que perdia; por isso passado algum tempo, continuou:

— Não é bonito aquilo, não; não é.

— Pois sim, não digo que seja; mas com os anos passa-lhe o fogo.
Verá.

Em geral, nos tribunais femininos os delitos da natureza daqueles de que
João Semana acusava Daniel, são julgados como Joana acabava
de julgar este. Grande magnanimidade para com o homem e severo rigor para
com a mulher. Entrem lá na explicação do fato os que
tiverem estudado. Eu, por mim, registro-o apenas.

Houve longa discussão entre a criada e o amo, a este respeito; discussão
que não deu em resultado a vitória a nenhum dos contendores
– fato vulgar em quase todas as discussões. – Ela suscitou, porém,
em Joana o desejo de se informar melhor das particularidades do delito e da
extensão dele.

Em cumprimento desse desejo, tomou a criada do João Semana a sua capa
de pano e partiu, logo que pôde, a colher noções.

Depois de muito andar, de muito perguntar e ouvir, e de muito ralhar, em
defesa de Daniel, ainda que de si para si, a lisonjeasse um pouco a comparação,
que todos estabeleciam entre e João Semana, em grande proveito do último,
deu consigo a Sr.ª Joana… onde? Em casa das duas pupilas do reitor.

Foi Margarida quem lhe falou. Passados os usuais cumprimentos, e depois de
tentar recusar o oferecimento do cálice de vinho que Margarida lhe
fazia, e que afinal sempre aceitava, trouxe a Sr.ª Joana à conversa
o assunto que a procurava.

— Então, diga-me cá uma coisa, menina. Que lhe parece
o nosso cirurgião novo.

Margarida fitou os olhos em Joana, como para adivinhar-lhe nas feições
o sentido da imprevista pergunta.

— Que me parece? Que me há de parecer?

— Sim; não acha que está um bonito médico para
uma rapariga doente o mandar chamar? – continuou Joana, sorrindo.

Ignorando ao que a velha criada de João Semana queria aludir, a pupila
do reitor, a seu pesar, sobressaltou-se com esta interrogação.

— Mas por que me pergunta você isso?

— Pois não sabe?! Ora a menina, há de andar sempre fora
deste mundo! Aposto que não sabe o que por aí vai com Daniel?

— Não – respondeu Margarida, sem já, poder disfarçar
a sua curiosidade, à qual certa inquietação, por ela
mesmo mal explicada, se vinha misturar.

— É o que eu digo! tornava Joana.

— Mas então que há?

A Sr.ª Joana com a melhor boa vontade informou Margarida da história
da menina Francisca; já se sabe com muita severidade de comentários
para ela, e a costumada indulgência para com Daniel.

— Aquela bandeira de torre – dizia ela – volta-se para onde lhe sopram.
Louvado seja Deus! Não há olhos para que se não enfeite.
E ainda o acusam a ele! Faz muito bem: é rapaz. Eu sei que para cirurgião
devia ter mais juízo; devia, mas ora!… Hoje em dia, já se
não repara nessas coisas. E depois, ele é uma criança
e se a Chica não lhe desse trela… estou que se não atreveria
a…Em todo o caso, menina, é sempre bom traze-lo de olho. Aquela cabeça,
benza-a Deus, não vale grande coisa, não. Sempre assim foi.
Como a Clarita lhe casa agora na família, é natural que ele
venha por aqui. Cautela menina! Eu bem sei que com certa gente não
faz ele farinha, mas…

Margarida forcejou por sorrir às recomendações de Joana,
mas conseguiu-o mal. Aquelas palavras atravessavam-lhe o coração.

Afligia-a a leviandade de Daniel.

Estava-lhe, pois, destinada a cruel provação de um desengano
destes?

As almas delicadas, como a dela, sofrem intensamente, sempre que vêem
projetar-se uma sombra na imagem daqueles, a quem as suas afeições
iluminavam de ideal. Ver abaixar-se à região das paixões
menos elevadas e nobres, o coração que se tinham costumado a
fantasiar, palpitando-o só de generosos instintos, é para as
ferir de desalento, ou para as atormentar de desespero.

Joana continuava:

— A menina ri-se! É o que lhe digo. Não lhe dêem
muita confiança. Não que ele tenha mau coração.
Credo! Conheço-o desde pequeno. Aquilo não faz mal a uma pomba,
mas enquanto ao mais… O Padre Santo Antônio nos acuda! Eu digo, que
se eu fosse a rapariga… Mas… que tem, que está tão falta
de cor, menina? Não está bem?… Que sente?

— Nada – respondeu Margarida, procurando mostrar-se tranqüila.
– Não tenho nada. É que está aqui muito abafado…

E, levantando-se, caminhou para a janela, a disfarçar a sua perturbação
e a respirar o ar mais livre, que chegava dali, batido pela folhagem das árvores.

— Não que olhe que sempre hoje está um calor! – disse
Joana – Mas isso também há de ser debilidade. A menina foi sempre
de pouco comer. Beba uma água de caldo, que isso passa-lhe. Ou serão
vertigens? Olhe que não é outra coisa. Eu também as tenho
e daquelas! As vezes parece que se me parte a cabeça. É como
se me tropitasse cá dentro um regimento de cavalaria. O que é
muito bom para isso… sabe?

Não se pode calcular para que longa enumeração de receitas
tomava fôlego a Sr.ª Joana, cujos conhecimentos terapêuticos
a convivência com João Semana enriquecera, se Margarida a não
interrompesse, dizendo-lhe da janela:

— Mas quem sabe lá se a inclinação do Sr. Daniel
por essa rapariga é sincera?

E, ao dizer isto, passava a mão pela fronte, como se de fato a tivesse
tomado uma vertigem.

— Boa! – exclamou Joana. – Sempre tem coisas! A menina então
não sabe nem quem é o Daniel, nem a Chica da Esquina.

— Então ele é assim incapaz de gostar de alguém?
– perguntou Margarida, com afetada indiferença.

— Ele? Ele gosta de todas. Lá por isso… Vá perguntar
ao sobrinho do regedor, que viveu com ele quando andou lá no Porto
a estudar para padre… e olhe que também saiu um padre!… de se lhe
tirar o chapéu; não tem dúvida nenhuma… mas vá-lhe
perguntar quem é o menino. Gostar da Chica?

Neste ponto a Sr.ª Joana fez um gesto, muito de seu; fungou ruidosamente,
torcendo o nariz, fechando o olho esquerdo e prolongando o lábio inferior
– conjunto de sinais fisionômicos, que valia um discurso.

Em seguida continuou:

— Olhe que ele soube-me muito bem dizer, no outro dia, que só
lhe fazia conta mulher que tivesse cem mil cruzados e que a queria da cidade.
E ia agora gostar da Chica? estava indo! A menina está a ler.

Esta conversa torturava Margarida. Joana sem o saber, era de uma crueldade
inquisitorial. A sua loquacidade prometia longa duração, se
as badaladas do meio dia, na torre da igreja paroquial, a não viessem
por em sustos de chegar a casa depois de seu amo.

— Aí, meio dia já! Senhor me dê paciência
– exclamou ela, juntando as mãos. – E eu que tenho o jantar tão
atrasado! Adeus, menina, adeus, sem mais.

E tomando, toda açodada, a capa que tinha pousado, e ajeitando à
pressa o lenço engomado que trazia na cabeça, ia a sair, rosnando
a oração meridiana:

— Bendita e louvada seja a hora em que meu Deus, Nosso Senhor Jesus
Cristo, padeceu e…

Mas, ao transpor o limiar da porta, achou-se inesperadamente em frente de
Clara, que a obrigou a parar.

Segundo o costume, vinham radiantes de alegria as simpáticas feições
da irmã de Margarida.

Ao ver Joana, saiu-lhe dos lábios uma exclamação de
prazer:

— Viva! Já não há quem a veja, Sr.ª Joana!
Eu até principiei a rezar-lhe todas as noites por alma um padre-nosso
e uma ave-maria.

Joana, a quem tanto quadrava este gênio folgazão e descuidado
de Clara, tinha por costume fingir, na presença dela, que o não
podia sofrer; mas o jeito que, a seu pesar, lhe tomava a boca, inutilizava-lhe
a dissimulação.

— Olhem os meus pecados! – disse ela, voltando para a sala. – Inda
mais esta! Boa te vai? Estou bem aviada!…

Clara pusera a olhá-la com atenção e espanto afetado!…

— Então que tafularia é esta?! Lenço novo de cassa!
Já reparaste, Guida? E arrecadas! Ai! Estou para morrer. O mundo perde-se!
Agora é que o digo.

— É para que você veja – disse Joana, custando-lhe a manter
a serenidade.

— Ó Joana, você irá casar-se?

— Olhem, olhem… ela aí vem com as suas tolices! Tenha juízo.

— Não, mas… sério, isto tem que se lhe diga… E penteada!
Ai, e penteada!

— Que penteada? que penteada? Cuida que todas são como ela.
Sempre está uma mulher casada.

— Ainda não, se faz favor.

— Pobre do homem! melhor sorte merecia aquele Pedro, que tão
bom mocinho era… e é.

— Ah! Como ela diz isto! Querem ver que… Queres tu ver Guida, que…
Pois será com ele? Veja o que faz Joana, olhe que eu…

— Adeus! Sabe o que mais? Não estou para a aturar. Deixe-me
ir embora, ande.

— Embora? Isto é que não vai daqui tão cedo.

— E Jesus, Senhor! Deixe-me ir, que é meio dia, e faz-se-me
tarde. O meu amo está a espera… Valha-me deus! Ora o que me havia
de aparecer?

— O seu amo? Ainda há pouco ele ia para a banda dos Casais.

— Num momento põe-se em casa. Deixe-me ir menina.

— Não vai.

— Olhem que praga! Então? Isto não tem graça nenhuma.
Não vê ali a Margarida como tem juízo.

— Venha com isso a ver se me mete em brios.

— Ai, cuida que eu tenho os seus cuidados? menina, deixe-me ir embora.
Que seca!

— Deixe-a ir, Clara, deixa, que pode fazer falta – disse por fim Margarida,
que as estivera escutando distraída.

— Vá lá; em atenção à Guida. Mas
há de vir então pelo quintal que lhe quero dar um ramo para
o Sr. João Semana.

— Não que ele está agora mesmo à espera dos seus
ramos; nem dorme com a lembrança.

— Há de levar-lhe um ramo de meu mando. Já disse. Amores
antigos não esquecem.

— Olhe, deixe antes isso para o cirurgião novo, que esse é
que não lho enjeita.

— Quem? o Sr. Daniel! Ai, é verdade… Tu sabes, Guida? – disse
Clara, rindo – A Chica do tendeiro…

— Sei, sei – respondeu Margarida, levantando-se com vivacidade.

— Sempre tem uma cabecinha o tal senhor meu cunhado! Mas eu por mim
sou ainda pelo João Semana. Olha, Joana, diz-lhe você que me
faças uns versos também? Assim como os do outro.

— Ai, vai já fazê-los; pode esperar por isso.

— Uns versos como os tais da… trigueira… Não eram os da
trigueira?

— Sim, sim; tudo se há de arranjar.

— É verdade, que já sei uns que serviam.

E, saindo com Joana para o quintal, Clara pôs-se a cantar: Morena,
morena

Dos olhos rasgados

Teus olhos, morena

São os meus pecados.

Capítulo XXVII

Margarida ficou só na sala.

Viera aumentar-lhe a turbação, em que estava já , esta
cantiga de Clara.

Andava-lhe muito ligada a idéias do passado, para a poder escutar
com indiferença.

Aquela toada era para Margarida como as palavras misteriosas que em certos
contos de fadas, se diz terem o condão de evocar dos páramos
mais agrestes, jardins, florestas e palácios encantados; povoara-se-lhe
a imaginação ao ouvi-la, um pouco de recordações
ao princípio, e depois muito de fantasias…

Encostada ao peitoril da janela, e apoiado o rosto nas mãos, assim
ficou por muito tempo com o olhar vago e o pensamento mais vago do que o olhar
ainda.

Se o espírito, ao sair dessas exaltadas abstrações,
se volta de súbita para as realidades do presente, o desencantamento
é fatal e amargo. Entra-nos então no coração um
profundo desgosto da vida, e como que se nos quebram as forças para
continuar a ação.

Estava passando por um desses estados o espírito de Margarida.

As vozes joviais da irmã e os risos de Joana chegavam-lhe aos ouvidos;
e afligiam-na aqueles sinais de alegria.

As vivas cores das rosas e dos cravos atraiam-lhe a seu pesar, as vistas
para os alegretes do jardim, e impacientavam-na; quase lhes queria mal por
aquele aspecto festivo.

Quando, em épocas de provação para a alma, a sós
com os nossos pesares e as nossas lágrimas, escutamos lá fora
o ruído ou divisamos o esplendor das festas alguma coisa estremece
dolorosamente em nós.

Sentia-o Margarida naquele instante, e tanto lhe crescia o mal que, para
fugir-lhe, ergue-se e passeou com agitação por algum tempo na
sala.

— E por que não hei de eu também distrair-me, como se
distrai a Clara!? – pensava ela – Virão já de nascimento estes
gênios assim? Mas como se há de acreditar que os Senhor queira
fazer cair sobre a criatura que ainda não o ofendeu, este grande castigo
de uma tristeza tamanha? Não, não pode ser. – Antes creio…
isso sim, que o gênio de cada um toma a feição da vida,
que em criança se teve… Uma pessoa, afinal, é como uma árvore;
enquanto nova, é que se pode dobrar, que depois… Ali estão
aqueles cedros que, de pequenos, Clara vergou em arco; ganharam essa forma,
e hoje já não se erguem direitos como os outros. É assim.
Quem abriu os olhos, começou a pensar, sem ver grandes alegrias em
volta de si, pode lá aprender a sorrir? As crianças então,
que tudo aprendem dos outros, a falar, a andar, a brincar… como não
aprenderiam também alegria ou a tristeza?

Nisto fizeram-na ir à janela algumas vozes infantis.

Eram quatro crianças, quase nuas, que rodeavam uma pobre mulher, coberta
de andrajos e macilenta. E elas, apesar de sua nudez e dos rostos pálidos,
riam e brincavam em redor da mãe, que nem tinha pão para lhes
dar.

À porta das duas irmãs estava sempre sentada a caridade. Não
se fechou vazia ainda desta vez a mão da indigência, aberta a
implorar por ali. A pobre mãe chorava de gratidão ao retirar-se;
as crianças brincavam ainda.

E calou-se por algum tempo; depois prosseguiu a meia voz:

— Pois sim, mas há uma riqueza que elas têm e eu não
tive. Aquele olhar da mãe. Não vi eu sorrir-lhes a mãe?
Coitada, no meio da sua desgraça ainda não desaprendeu de sorrir;
precisa de risos para os filhos. É ver como eles olhavam para ela.
É isso… deve ser isso.

E tornava a passear no quarto; depois parando junto da janela ao lado do
quintal, continuou como antes:

— Deve ser isso, sim. No meio da pobreza, no meio da miséria,
pode nascer ainda a alegria, mas é preciso que haja um olhar de afeição
para a criar… um olhar de mãe, sobretudo. Ai, um olhar de mãe
deve ser para agente quase como um raio de sol para as flores. É ver
aquela rosa, que nasceu acolá, à sombra do muro. Como é
desmaiada! Enquanto que as outras… Bem faltas de cuidado cresceram por entre
a horta aquelas papoulas vermelhas; quem pensava nelas? Mas lá ia o
sol animá-las… Clara teve uma mãe que estremecia, teve o seu
raio de sol… eu, de bem pequena, perdi a minha… Quem tão cedo se
viu órfã, como há de ser para alegrias?

Neste ponto, entrou na sala uma rapariga, que as servia, trazendo um ramo
de flores na mão.

— Veja menina, – disse ela – Veja o bonito ramo que eu trouxe do campo
de baixo. Vou já, já daqui pô-lo ao Santo Antônio,
lá dentro.

—Pois vai, vai, Maria.

E a rapariga, que era uma exposta, saiu cantando alegremente.

— E esta então – continuou pensando Margarida, quando ela se
retirou. – Que mãe teve esta para lhe semear a alegria, que nunca perde?
A pobre nem família conhece; a gente que a criou não a tratava
com carinhos. E como ela vive! e como ri! Não há dúvida
pois; não há dúvida que se vem ao mundo assim. Então
eu… Ó Senhor! mas isto não pode ser. Que condenação,
meu Deus!

E como se procurasse convencer-se de outra solução menos desconsoladora,
do problema em que meditava, prosseguiu pouco depois:

— Mas quem me diz que é isso uma condenação? Por
que não hei de ver se posso tirar de mim estas idéias negras?
Olhando-se bem claro dentro de nós, talvez… vejamos: Estou hoje triste;
é verdade. E por que? Esta manhã não estava. lembra-me
que até ri com Clara… Parece que é mau agouro esta alegria,
que sentimos às vezes ao acordar! Depois… Há pouco… foi
depois que veio aquela mulher… E que me disse ela? Tudo que eu lhe ouvi
não era para isto. Não, decerto. Afinal que tenho eu com…

Aqui o pensamento quebrou o jugo que o constrangera a seguir o caminho estreito
da reflexão, e entregou-se insofrido à mais extravagante carreira.

Na posição e nos gestos de Margarida nada acusava a revolução
mental que se operara; mas instantes depois ela murmurava já:

— Quem sabe se aquela rapariga? Mas não, não pode ser…
E ele? Que mudanças traz o tempo! Eu não sei como são
certas memórias também… Mas que admira? A vida da cidade…
Quem havia de pensar?… Parece-me que ainda estou a ver, quando ele era criança
e vinha… Dez anos!

Absorvida em pensamentos desta ordem a veio encontrar o reitor que raro deixava
de visitar as suas pupilas.

— Em que cismas tu, rapariga? – disse-lhe o padre – Santo Nome de Jesus!
não posso atinar o que tanto tens para cismar. Nem que te cansassem
aos ombros grandes canseiras de família! Deita o coração
ao largo. Não vês a Clarita? Faz assim como ela. Lembra-te que
tens vinte e três anos. Aos sessenta é que é natural pensar
assim.

Margarida beijou-lhe a mão dizendo:

— Isto julgo que nem é pensar. É quase ume esquecimento
de tudo, e de nós mesmos, em que às vezes se cai. Mas faz bem
ralhar comigo, Sr. Reitor, faz muito bem. Este costume é mau. É
quase uma doença da qual hei de ver se me curo.

— E tem juízo. Olha, minha filha, isto de pensar muito… Enfim,
o Senhor para isso nos deu a razão, mas… Queres tu saber? Um dia,
veio aqui um homem que, pelos modos, é um grande sábio, um desses
filósofos da cidade. Era domingo e eu tinha que fazer a minha prática.
O tal sujeito foi para a igreja. Quando o vi lá fiquei assustado. Enfim…
com esta boa gente daqui, entendo-me eu bem, mas, pobre cura da aldeia que
sou há vinte anos, o que queres tu que eu possa dizer diante de gente
instruída e ilustrada, como era o tal? Estive para desanimar, Margarida,
olha que estive; mas disse comigo: "Não senhor, eu não
devo recear. Não tenho lido muitos livros, é verdade; mas os
Evangelhos leio-os todos os dias. Eles me ajudarão. Pois não
tenho eu lá aquele sermão da montanha?" E fui para a igreja,
e abri o S. Mateus, e li: "Amai a vossos inimigos, bendizei aos que vos
maldizem, fazei bem aos que vos tem ódio, e orai pelos que vos maltratam
e vos perseguem". Bastou-me isto, e pus-me a falar, assim que te falo
agora, Margarida. Achava-me à vontade. Pois sabes – que é ao
que eu trouxe isto – o tal homem, de que eu me receava, foi ter comigo à
sacristia para me abraçar, e disse-me: "Gostei de ouvir; deram-me
a suas palavras, por algum tempo, mais sãs consolações
do que as minhas noites de estudo". Ficou-me este dito do homem, e pareceu-me
que ele tinha consigo grande coisa a afligi-lo. Pensava demais talvez. Corre-se
o risco de endoidecer. Nada, não tem jeito.

Margarida sorriu, assegurando ao reitor que evitaria esse perigo, fazendo
por se distrair.

No decurso da conversa ulterior, falou-se em Daniel. O padre aludiu à
entrevista que tinha tido com ele, e procurou atenuar a culpa do rapaz, expondo
as idéias que lhe ouvira em relação ao casamento e à
escolha de uma esposa.

O resultado de tudo quanto disse foi deixar Margarida mais pensativa do que
antes.

Capítulo XXVIII

Passou todo o mês de agosto e parte do de setembro, sem que se celebrasse
o casamento de Pedro e de Clara.

Pequenos estorvos, os quais será inútil referir aqui, baldaram
a diligência com que andara o reitor em obter os papeis necessários
às duas partes contraentes.

O padre estava ansioso por proclamar, à missa conventual, os primeiros
banhos, e não cessava de interrogar o lavrador sobre o andamento em
que iam os preparativos domésticos para as bodas do filho.

José das Dornas dava a entender que depois do S. Miguel era a ocasião
mais favorável para a solenidade, visto que a cobrança das rendas
lhe permitiria então fazê-la com o esplendor devido.

A ansiedade na aldeia era imensa, porque todos conjeturavam já quanto
teriam de memoráveis uma bodas em casa do abastado e liberal lavrador.

Achava-se terminada a principal colheita de milho e não se fixara
ainda o dia em que tão falada e prometedora festa devia realizar-se.

Em conseqüência de tais delongas, à primeira esfolhada
em casa de José das Dornas assistia ainda Pedro como rapaz solteiro.

Esta circunstância não foi sem influência na sucessão
dos acontecimentos que temos por narrar.

Concorramos nós também para este serão campestre, que
assim nos é necessário.

Julgo que pequeno será o número dos leitores, que não
tenham assistido a uma esfolhada na aldeia, ou que pelo menos de tradição,
não saibam a índole folgazã e traquinas deste gênero
de trabalho, do qual ninguém procura eximir-se: pois antes espontaneamente
correm de toda a parte a oferecer-lhe os braços.

E não há outros serões mais divertidos também.

Ali todos riem, todos cantam, todos se abraçam, e se beijam até;
e fala-se ao ouvido, e graceja-se e dança-se, e com franqueza se apontam
defeitos, e sem ofensa se recebem censuras, e até são mal colhidas
as lisonjas; e tudo isto então, toda esta apetecível desordem,
todo este abandono de etiqueta, à vista da porção sisuda
da companhia, à qual a tolerância fecha deste vez excepcionalmente
o olhos; e, a alumiar uma tal azáfama, meio festiva, meio laboriosa,
apenas a luz mortiça de um modesto lampião, pendurado de uma
trave do teto, ou, ainda melhor, a suave claridade do luar em campo descoberto!

Aquelas liberdades todas são permitidas, ordenadas até, pelo
código das esfolhadas.

Cada espiga vermelha, cada espiga de milho rei – como por lá lhe chamam
– é a sentença promulgada contra o feliz, a cujas mãos
ela chegou.

Cabe-lhe distribuir por toda a assembléia, ou receber de toda ela,
um abraço, mais ou menos apertado; sentença que ele de boa vontade
cumpre, principalmente quando ente tantos abraços, há um pelo
qual em vão suspira nas outras épocas do ano.

Esta lei, digna das ordenações daquelas joviais "Cortes
de amor" da Idade Média, é a alma das esfolhadas.

Dela provém os risos, os arrufos, as recusas, as insistências,
as queixas, as acusações, os despeitos, e os ciúmes,
que, ao mesmo tempo, desordenam o serão, excitam os trabalhadores e
adiantam a tarefa.

Quando um dia a máquina agrícola fizer ouvis nas aldeias portuguesas
o silvo estridente do vapor; quando a força prodigiosa de suas alavancas,
o movimento de suas rodas gigantes e complicadas articulações
dispensar o concurso de tantos braços, nestes trabalhos rurais; quando
a musa pastoril, resignada, trocar as vestes primitivas por a glouse do artista,
e esquecer as antigas cantilenas, para aprender as canção das
fábricas; lembrar-se-ão com saudades das esfolhadas os felizes
que as puderam ainda gozar.

A onda econômica adianta-se rápida; dentro em pouco inundará
os campos. Dêem-se pressa os que ainda quiserem conhecer as velhas usanças,
para as quais está já a soar a derradeira hora.

De há muito gozavam de apregoada fama as esfolhadas em casa de José
das Dornas.

A impulso do seu gênio prazenteiro, o velho lavrador pusera em costume
o observar-se pontualmente o rito destas festividades campestres.

Não havia ali isentar-se de cumprir a sentença a que a sorte
o sujeitasse, sob pena de ignominiosa expulsão do grêmio e perpétua
exclusão de festas semelhantes.

Homens e mulheres, crianças e velhos, amos e criados, todos fraternizavam,
todos se nivelavam aquela noite para se abraçarem ou beijarem e até
dançarem por fim.

Quem não gostava disso era o reitor, o qual todos os anos, por este
tempo, mimoseava com uma longa pregação o seu amigo José
das Dornas mas sempre sem nada conseguir.

Os costumes populares, as práticas tradicionais encontravam no lavrador
um apego, quase igual ao que tinha para as crenças religiosas. Parecia-lhe
um sacrilégio o infringi-los.

Debalde o reitor lhe dizia:

— Acaba-me com essas folganças, José. Isso é a
perdição de muita gente. Não sei como tu, homem sisudo,
te pões assim a brincar com as crianças e com os moços,
em termos de te perderem o respeito.

José das Dornas limitava-se a responder-lhe:

— Ó Sr. Reitor, deixe lá. Uma vez não são
vezes. Beijos e abraços, quanto mais às claras, menos perigosos
são. Daqueles que se dão ás escondidas, é que
é ter medo. Enquanto ao respeito, sossegue, que quando for preciso,
eu sei como ele se faz ter aos atrevidos. E depois, que quer? Eu fui criado
nisto.

Este último argumento é sempre o mais irresistível da
lógica do nosso homem dos campos.

Qual dos dois velhos tinha razão? Eu sei lá! A falar a verdade,
não acredito demasiado na inocência daqueles abraços beijos
e muito menos na de alguns que, por motivos particulares, se dão mais
do coração e mais tempo se prolongam; mas é também
certo que, evitando as esfolhadas muitas ocasiões se oferecem ainda
de uma pessoa se perder, e alguma razão tinha José das Dornas
ao dizer que estas coisas, na presença de espectadores, se despojam
de grande parte da sua gravidade.

Desta vez deviam ser as esfolhadas em casa da família Dornas dignas
da sua tradicional nomeada.

A pedido de Pedro, foi convidada muita gente. Encarregou-se ele mesmo de
formar a lista, a qual naturalmente abriu com o nome de Clara.

Clara recebia sempre com alegria convites da natureza deste.

Margarida quis dissuadi-la de aceitar.

— Que vais fazer, Clarinha? – disse-lhe ela. – Olha, eu, se fosse a
ti, não ia. Afinal, por mais que digam, sempre nestas esfolhadas há
liberdades e costumes, que… que…

— Sabes, Guida? – respondeu-lhe Clara – se todos se fosse a elevar
por os teus conselhos, e a dar atenção aos teus medos, pode
ser que o mundo andasse muito bem guiado – e andava decerto – porém
morria-se de aborrecimento por aí. É ver que nem me queres deixar
ir à esfolhada em casa de meu marido, e quando é ele mesmo que
me convida!

— E quem sabe se mais estimaria se não fosses?

— Qual? Estás enganada. Supõe-lo como tu. Eu bem o digo!
Olha, minha Guida, tu não servias para casada. Fazias-te ainda mais
sisuda do que és, sisuda e séria que nem uma abadessa de convento,
e depois havias de querer que o teu homem fosse sisudo e sério como
tu.

— Vai, vai, Clarinha; nem eu to posso impedir. Mas, se queres que fale
a verdade, fico sempre a tremer, quando te vejo sair para estes serões.
Às vezes há por lá desordens, rixas…

— Ai, sossega. Eu te prometo que não me meterei em nenhuma.

— Promete-me também que não dará causa a nenhuma
– tornou Margarida sorrindo.

— Como queres que eu dê causa a uma desordem, doida?

— Como há de ser! Eu digo-te, mas não te arrenegues.
Tu tens um bocadinho de ruindade, confessa; e às vezes para te divertires,
gostas de fazer perder a paciência aos outros. Ora, Pedro tem um gênio
assomado e…

— Deixa-te disso. O Pedro não é homem para se finar por
ciúmes só por ver receber ou dar um abraço em noite de
esfolhada! Era o que me faltava também!

— Pois Deus vá contigo, filha; mas lembra-te que dentro em pouco
és mulher casada e que o teu noivo está ao pé de ti.

— Estás descansada. E depois, sabes o que o Pedro me disse em
segredo? O irmão também faz tenção de ir à
esfolhada.

— Quem? O Sr. Daniel?!

— É verdade. Que graça! Mas o Pedro não quer que
isto se saiba para que não lhe faltem as raparigas, com medo ou com
vergonha. Estou morta por ver como elas ficam, assim que o virem lá.
Ora diz tu se isto se podia perder!

— Ainda pior.

— Que dizes? Ainda pior! Pois também és das que o pensam
excomungado? Pobre rapaz! Quem ouvir falar a essa gente por aí, há
de fazer dele uma idéia!… Pois não tem nada do que dizem.
É amigo de rir, isso, sim, mas também sabe falar sério,
quando é preciso. E não ouves o que muitas vezes o Sr. Reitor
tem dito a respeito dele? Que é um excelente coração,
afinal.

— Nem eu digo o contrário, mas…

— Mas és uma medrosa, é o que tu és; uma medrosa,
que me andas por aí sempre a sonhar sonhos negros. Um dia hei de fazer-te
falar com ele, e verás…

— Ai, não, não – exclamou Margarida, quase assustada.

— E como dizes isso! Que medos! Estás como a outra gente, já
vejo. Pois admira-me em ti que não é dessas coisas. É
uma cisma que te hei de fazer perder, assim como tu me fizestes perder as
das bruxas que eu dantes tinha. Lembras-te?

Horas depois, Clara despedia-se da irmã, dizendo-lhe:

— Então, Guida, até logo. Ei bem queria que viesses,
mas fizestes voto…

— Bem sabes que nunca sinto alegria nestas festas.

— Como hás de tu senti-la, se nunca vais lá?

E Clara partiu, e pulsava-lhe o coração de contente, quando
ia pelo caminho.

O gênio de Clara pedia-lhe isto. Era uma necessidade para ela a alegria
e as festas.

Não se lhe coadunavam com a índole as melancolias de Margarida.

Quando só, saia-lhe dos lábios tão depressa o canto,
como os suspiros do seio da irmã.

E a alegria de uma, como a tristeza de outra, nem sempre tinham motivo definido.

Vinham-lhes do coração, que parecia espontaneamente exalá-las.

Na natureza há fenômenos assim. O canto de algumas aves parece
uma lamentação, repassada de profunda melancolia; o de outras
soa brilhante como hino festivo, nos coros da criação; e nem
as primeiras têm pesar de que se carpirem, nem estas júbilos
a celebrar.

O canto sai-lhes da boca modulado por uma disposição natural;
pois quase de igual forma, acudiam os sorrisos aos lábios de Clara
e as lágrimas aos olhos de Margarida.

Capítulo XXIX

A esfolhada fez-se na eira espaçosa e desafogada de José das
Dornas, e por formosíssima noite de luar claro como o dia. O ser alumiado
pelo luar é uma circunstância que redobra o valor da festa.

Eu creio nas influências planetárias – perdoem-me a fragilidade
astrológica os homens da ciência positiva. Bem sei que passou
já de moda esta crença tão arraigada nos mais severos
espíritos de outros tempos; mas por mim, ainda não pude resolver
a romper com ela de todo.

Penso em que o moral e o físico da humanidade andam sob o império
de forças multiplicadíssimas, muitas das quais ainda estão
por descobrir ou estudar, e não vejo que se possa desde já excluir
do rol delas a luz desse planeta pálido, tão querido aos amantes
e poetas.

Digam-me por exemplo, se uma esfolhada ao meio dia pode ter nunca a índole
jovial das que se fazem à claridade da Lua? – se nela se concedem beijos
e abraços com tão poucos escrúpulos? – se a gente se
ri com igual vontade e franqueza? E não me venham explicar isto só
pelo efeito da meia obscuridade, que serena as repugnâncias dos tímidos,
e excita a audácia dos arrojados; porque nunca vi elevaram-se ao mesmo
grau de intensidade essas ruidosas alegrias e folguedos, quando a luz, ainda
menos limpa de sombras, de uma só lâmpada ilumina o lugar do
serão.

Forçosamente tem a Lua parte nisso. Não sei o que há
na atmosfera em uma noite assim!

O espírito mais embotado para as suaves comoções da
poesia, parece receber então um raio de lucidez e acreditar vagamente
na existência de alguma coisa, acima dos prosaicos interesses da vida
positiva; os corações mais fechados a arroubamentos de amor,
sentem-se embrandecer, e de mais de um consta haver infringido, em noites
dessas, velhos e porfiados protestos de isenção.

E negam a influência da Lua?! No coração dão-se
fluxos e refluxos de sentimento, cuja teoria pode ter alguma coisa de comum
com a do fluxo e refluxo dos mares. É uma velha crença esta,
que me leva a supor a Lua favorável ao amor e indispensável
à alegria das esfolhadas.

E do meu lado encontro José das Dornas, que esperou por uma noite
de lua cheia, para celebrar a sua festa.

Um monte enorme de espigas ocupava o meio da eira. Abertas de par em par
as portas do cabanal aguardavam as amplas canastras para onde se iam lançando
as espigas esfolhadas.

Sentados em círculo, à volta daquela alta pirâmide, trabalhavam
azafamados, parentes, criados, vizinhos, amigos e conhecidos, que sempre afluem
aos serões desta natureza, ainda que não convidados.

Não havia lugares de distinção aí. Cada qual
se sentava ao acaso, ou, quando muito, conforme as suas secretas preferências.

A mais completa igualdade se estabelecera na companhia, desde o princípio
dos trabalhos.

José das Dornas, que sabia, como ninguém, manter, nas ocasiões
devidas, a sua dignidade de chefe de família, dava, desta vez o exemplo
a sem-cerimônia, praticando jovialmente, até com o mais novo
dos seus criados; e estes usavam para ele de liberdades que, fora do tempo,
lhes sairiam caras. Pedro, rapaz sempre atencioso e grave no seu trato para
com os velhos, naquela noite, tendo por vizinha uma séria e madura
matrona da aldeia, requebrava-se em galanteios para com ela, e afetava rendidos
extremos, com grande riso dos circunstantes e de Clara, a qual, pela sua parte,
fingia uns ciúmes igualmente aplaudidos da assembléia.

Uma velha, querendo aproveitar o seu tempo, tentou regular ali as suas contas
com Nossa Senhora rezando uma das muitas coroas, de que lhe estava em dívida;
e, a cada passo, rompia em vociferações contra duas raparigas
entre as quais ficara e cuja palestra a fazia perder na fieira de padre-nossos
e ave-marias da sua interminável reza.

Os arrufos da velha eram estímulo para risadas.

As vezes saltava ao meio do círculo uma criança com grandes
bigodes, feitos de barba de milho, e a idéia era logo apoiada e imitada
por todas as outras, com grande embaraço ao bom e pronto andamento
da tarefa do serão. As mães ralhavam, rindo; os pais faziam
os mesmo; e disfarçadamente punham, ao alcance dos pequenos, novos
instrumentos para idênticos delitos.

As raparigas e rapazes tiravam uns aos outros o gorgulho, que por acaso encontravam
nas espigas, o que introduzia grande alvoroço na assembléia,
e enchia os ares de gritos e de vozerias atroadoras.

E ia assim animado o serão, quando uma circunstância, para quase
todos inesperada, veio subitamente esfriar esta fervura.

Esta circunstância foi a chegada de Daniel.

Eram nove horas quando ele apareceu na eira, ainda em trajos de jornada,
pois voltava, naquele momento, de uma excursão distante.

Saudando alegremente a companhia, Daniel pediu para si um lugar no círculo
dos serandeiros.

José das Dornas, Pedro e Clara, que havia já muito o aguardavam
com impaciência, sorriam entre si, ao verem o embaraço em que
todos ficaram com aquele reforço.

A reputação que Daniel adquirira não era de fato para
lhe preparar um lisonjeiro acolhimento.

Os homens franziam as sobrancelhas e exprimiam em rosnados apartes, o seu
desagrado; as mulheres de idade fitavam no recém-chegado um olhar,
como o que lhes merecia um lobisomem; as raparigas acotovelavam-se, cochichavam
umas com as outras; sufocavam os risos e olhavam às furtadelas para
Daniel; porém, não houve quem se afastasse para dar lugar; antes
apertavam uns contra os outros, para lhe evitarem a vizinhança.

Daniel repetiu a reclamação, e, ao mesmo tempo, corria com
os olhos as diferentes figuras ali reunidas, como a procurar aquela cuja proximidade
mais agradável lhe pudesse ser.

O tácito indeferimento do seu pedido continuou porém. Os risinhos
mal abafados, as murmurações a meia voz e o som do esfolhar
das espigas, tarefa em que todos pareciam com dobrada vontade empenhados,
era o que se ouvia, em seguida à requisição que ele pela
segunda vez fizera.

— Então que é isso? – dizia José das Dornas, meio
a rir, meio despeitado. – Que diabo! Não haverá ai lugar para
mais um? Olhem que o rapaz não está empestado.

Houve um movimento geral, como para conceder o lugar requerido, movimento
simulado porém, que, longe de abrir brecha no círculo, ainda
mais o estreitou.

Daniel principiava a preparar-se para conquistar terreno, que lhe negavam,
e com esse intuito fitava já um espaço entre duas galantes raparigas,
que naquele momento falavam ao ouvido e riam, quando escutou a voz de Clara,
que lhe dizia do outro lado da eira:

— Venha para aqui, Sr. Daniel, se lhe agrada a companhia.

E, arredando-se de uma velha meia mouca e cega, que tinha à direita,
Clara ofereceu a Daniel o lugar que ele pedia.

A este não desagradou a colocação e apressou-se a tomar
assento, junto de sua futura cunhada.

Uma tal solução foi para todos satisfatória – a não
termos de executar talvez muitas das raparigas, que mais repugnância
tinham mostrado em conceder junto de si o lugar perdido, mas que não
desestimariam vê-lo usurpado – contradições da natureza
essencialmente feminina.

Daniel compreendeu a necessidade de angariar simpatias na assembléia,
que o olhava desconfiada.

Principiou por distribuir cigarros por alguns dos circunstantes, que fumavam,
e chamando-os a cada um pelos seus nomes – para o que interrogava primeiro
disfarçadamente Clara – a todos dirigiu um cumprimento, que algum tanto
os abrandou.

Às velhas ofereceu uma animada descrição vocal da procissão
de Cinzas, no Porto, descrição modelo, embora não primasse
em exatidão, nem no número de andores, nem na designação
dos santos. No fogo do seu raptus inventivo, chegou a falar em um certo S.
Macário, bispo, com grande espanto duma velha, cujas reminiscências
da procissão dos franciscanos nada lhe diziam de tal santo. Daniel
inventou-lhe uma biografia, digna de Ribadaneira. As velhas abrandaram-lhe
a acrimônia dos seus olhares.

E os rapazes? Para com estes experimentou Daniel a receita de Orfeu para
abrandar as pedras; tentou a música.

Achou à mão uma viola, e tirou alguns harpejos e executou umas
variações sobre motivos da Cana-Verde, que atraíram a
si as simpatias dos que tinham no coração verdadeiros instintos
artísticos.

Para as raparigas não procurou arte de se fazer valer, porque estava
ele persuadido – não sei se com fundamentos – que qualquer que fossem
as aparências, não lhe deviam ter elas muito má vontade,
sabendo-o um dos mais entusiastas admiradores do sexo.

Apesar de tudo não se animava o serão. Reinava ainda certo
constrangimento, a conversa fazia-se por grupos, e em voz quase baixa, e mantinha-se,
por assim dizer, desencadeada.

Os únicos a falarem alto, além de Daniel, que por muito tempo
fez, como costuma-se dizer, a despesa da conversação, eram,
às vezes, Pedro , José das Dornas e Clara.

Esta ria ao ver a dificuldade com que Daniel conseguia esfolhar uma espiga,
enquanto ela aviava uma dúzia.

— Que desastrado! – dizia Clara. – Nesse andar tem que fazer.

— Então como é que se arranja esta coisa?

— Assim, ora repare. Pega-se num prego…

— Mas o que é do prego?

— Então não sabia pedi-lo? Aí tem um. Mas pega-se
num prego, e atravessa-se o folhelho assim, e depois…

A execução substituiu o resto do preceito. Em um momento estava
a espiga esfolhada e na canastra.

— Está pronto – acrescentou Clara.

— Vamos a ver se eu sei – disse Daniel.- Seguro o prego, pronto…
Atravesso o folhelho, ou folhido , ou lá o que é… Até
aqui vai bem. E depois… e depois… e depois…

Esta repetição era devido à dificuldade que ele encontrou
a executar a última parte da operação.

Clara não se fartava de rir, e as outras raparigas riam também
com ela. Algumas faziam ouvir o seu epigrama, com menos rebuços já.

Ainda assim, não se declarara abertamente a confiança, nem
se generalizara a conversa. O que cada um tinha a dizer, comunicava-o ao vizinho
mais próximo; este se julgava a coisa digna de referência, transmitia-o
ao imediato, de maneira que todos vinham a saber, mas sucessivamente, e pouco
a pouco; cada qual ria por sua vez, e sem aquelas súbitas, unânimes
e estrepitosas manifestações de alacridade, desafiadas por um
bom dito, ao soar imprevista e simultaneamente aos ouvidos de uma assembléia
inteira.

Havia em todos vontade de modificar esta feição séria
e retraída do serão; mas ninguém tinha coragem de empreender
a revolta.

De mais a mais, nem uma só espiga vermelha aparecia a oferecer pretexto
à realização desse desejo tácito de todos.

Clara foi a única, nestas condições, a quem sobraram
ânimos para fazer alguma coisa decisiva. Levantando a voz argentina
e sonora, que todos os presentes conheciam bem, principiou a cantar:

Andava a pobre cabreira
O seu rebanho a guardar.

Todas as vozes de raparigas, como por impulso comum, juntaram-se em coro,
e terminaram na mesma toada a quadra:

Desde que rompia o dia
Até a noite fechar.

Clara continuou:

De pequenina nos montes,

E prosseguiu o coro:

Nunca teve outro brincar
Nas canseiras do trabalho

Seus dias vira passar A letra e a música desta cantiga ou xácara
popular comoveram intimamente Daniel, despertando-lhe memórias amortecidas,
avivando-lhe imagens quase apagadas, entre as quais uma, mais suave que todas,
o enleava. Era a da pequena Guida, da sua companheira de infância, a
que tantas vezes ouvira aquela simples canção, que falava também
de uma guardadora de rebanhos, como ela era. Na voz de Clara alguma coisa
julgou Daniel descobrir da inocente criança que recebera então
as primícias do seu coração infantil, mas apaixonado
já. Esta primeira analogia fez-lhe notar que no olhar também,
no gesto e no rir a havia igualmente, e isto obrigava Daniel a fitar em Clara
olhos mais observadores que nunca.

Dentro em pouco esqueceu-se do que primeiro o levara à contemplação,
e, sem já pensar na pequena guardadora de rebanhos, continuava a olhar
para Clara com uma atenção não encoberta.

No entretanto Clara continuava cantando:

Sentada no alto da serra
Pôs-se a cabreira a chorar.

E as raparigas todas seguiam:

Por que chorava a cabreira
Agora haveis de…

– Milho rei! milho rei! milho rei! – rompeu uma voz, e esta tríplice
exclamação tudo pôs em desordem; interrompeu o canto,
e arrebatou Daniel à doce contemplação em que se deixara
cair.

Aquele grito partira de José das Dornas, que fora o primeiro a cujas
mãos concedera a sorte, enfim, uma espiga vermelha.

A festa mudou súbita e completamente de caráter.

À exclamação do lavrador respondeu grande alarido na
assembléia. De todos os lados se pedia o cumprimento da lei da esfolhadas.
Cabia pois a José das Dornas fazer a primeira distribuição
de abraços.

O alegre lavrador não se fez rogar.

Seguiu-se então um espetáculo iminentemente cômico. José
das Dornas ergueu-se do lugar onde estava para correr um por um, todos os
outros, e, com profusão de abraços, dar o exemplo de observância
à lei reguladora da festa.

Todo este cerimonial foi acompanhado das gargalhadas dos espectadores, e
entremeado de observações jocosas do oficiante, o qual fazia
valer sobremaneira o ato, graças ao gênio folgazão que
Deus lhe dera.

A cada rapariga que abraçava, José das Dornas, prolongando
mais o abraço, dizia com visagens e gestos, que faziam estalar de riso
os circunstantes.

— Na minha idade, aos sessenta anos, só o milho rei me podia
dar destas fortunas! Ainda bem que a sorte mo trouxe às mãos.

Ao abraçar os homens, exclamava ele, com certo ar de desconsolação,
comicamente expressivo.

— Que belo abraço desperdicei agora!

Passando pelos filhos, abraçou-os também, dizendo-lhes:

— Rapazes, tenham paciência. Eu sei que são destes abraços
que vós quereis. Mas é lei, é lei. Os outros virão
a seu tempo.

A um criado disse, meneando a cabeça:

— Ah! maroto! Ser obrigado a abraçar-te, quando tanta vontade
tinha de te apalpar de outra maneira as costas! Ora vá, que talvez
te não gabes de outra.

O certo é que, depois disso, começou a animar-se a esfolhada.
As espigas vermelhas como se atraídas pelo bom colhimento feito à
primeira, apareceram sucessivamente a diferentes mãos, e cada uma que
aparecia dava lugar a episódios graciosos e a prolongada hilaridade.

Às vezes era uma rapariga tímida e acanhada, que não
queria cumprir a sentença; e então todas as vozes se reuniam
a exigi-la; e ela a recusar-se, e os vizinhos a empurrá-la, e todos
a aplaudirem a rapariga, sorrindo e enleada de confusão, a correr a
roda, e alta vozeria a celebrar com ovações a vitória
sobre a rebelde; outras, era um velho ou velha, a que faziam tropeçar,
ou abaixar-se para dar o abraço, e que depois cobriam desapiedadamente
de montes e folhelho com aprovação e coadjuvação
geral da parte jovem dos serandeiros; outras, um rapaz destemido, que, pela
terceira vez, reclamava abraços, e contra o qual se tramava uma conspiração
mulheril, a contestar-lhe a legalidade das pretensões, acusando-o de
fraude e de trazer de casa as espigas vermelhas, de que se valia; animava-se
então a discussão, mas afinal sempre se davam os abraços.

Todos porém, aceitavam as excepcionais liberdades desta noite de tradicional
folgança, com a consciência de que não poderiam nunca
fazê-las valer a justificar ulteriores e mais arrojadas aspirações.

Havia porém um espectador e ator destas cenas noturnas que, por circunstâncias
fáceis de prever, não estava muito de ânimo a receber
com a mesma frieza as concessões do estilo.

Era Daniel.

Havia muitos anos que ele não tomara parte nestes serões, de
forma que, aos participar dos privilégios que, só em ocasiões
tais, lhe podiam ser concedidos, não conservava no mesmo grau que os
seus companheiros a tranqüilidade de espírito e a frieza de ânimo
com que os outros contavam, ao sair dali, dormir um sono sossegado e livre
de pesadelos.

Todos poderiam receber de uma rapariga um abraço e esquecê-lo
logo depois; Daniel é que dificilmente conseguiria afazer-se a isso.

Além de que, a noite era de luar; daquele luar de que falei, magnético,
inebriante, que exalta a imaginação, que a inquieta, e nos predispõe
a sonhar! E então uma imaginação como a de Daniel.

Havia de mais a mais uma outra circunstância, que concorria para produzir
nele estes efeitos excepcionais. As raparigas não lhe concediam os
abraços, marcados pelo estatuto da festa, com a mesma pronta familiaridade,
com que os outros os obtinham. Não obstante ter cessado já o
constrangimento do princípio da noite, e não pesarem em ninguém
as primeiras prevenções contra o cantor das trigueiras, contudo,
na ocasião crítica, no momento do abraço, havia nas menos
tímidas um ar de pudica hesitação, nas faces adivinhavam-se-lhes
um rubor, no baixar dos olhos uma eloqüência, que centuplicavam
o valor dos tais abraços e, forçoso é confessá-lo,
alteravam-lhe também um pouco a significação.

Quando se concede ou se recebe um abraço, corando, é porque
palpita o coração; e cada palpitação do coração
é um fenômeno cheio de grandes mistérios, que perturbam
o pensamento de quem neles considera.

O de Daniel não estava muito sereno já, quando chegou a vez
de Clara de cumprir a sentença também.

Levantou-se imediatamente a irmã de Margarida, e, com o desembaraço
que lhe era próprio, começou pela esquerda a sua "via sacra",
como ela, rindo, lhe chamou. pela ordem que levava, devia ser Daniel o último,
a quem tinha de abraçar. Ao chegar junto dele, parte da natural audácia
a abandonou.

Já antes notara ela alguma coisa de particular nos olhares e nas maneiras
do irmão do seu noivo, que tinha diminuído a familiaridade,
com que ao princípio o acolhera, e diminuindo na proporção
em que nas outras crescia.

Foi quase a tremer que ela o abraçou.

Daniel percebeu-lhe a agitação, e sorriu.

Clara, sentando-se outra vez junto dele, sentia-se constrangida e não
ousava erguer os olhos.

Daniel achava deliciosa aquela súbita timidez, e começou logo
a formar castelos no ar, quase esquecido de que era a prometida esposa de
seu irmão, de quem nunca mais desviou os olhos, nem distraiu as atenções.

Apareceu afinal, a ele também, uma espiga de milho vermelho.

Daniel mostrou-a, sorrindo, a Clara.

— Visitou-me enfim a ventura – disse-lhe ele. – Graças a Deus!
porém mais feliz seria se me fosse permitido cumprir da sentença
só aquela parte que não me obriga a levantar.

Clara quis responder-lhe, mas nada lhe ocorreu, que dissesse.

Nisto, uma criança que estava próximo deles, denunciou à
assembléia que o Sr. Daniel tinha achado um milho rei.

Agora, já todos foram unânimes a exigir, em grandes brados,
que pagasse ele também o tributo estabelecido.

Daniel não procurou eximir-se; abraçou porém a todos
à pressa e distraidamente, até chegar à Clara. A essa,
apertou-a ao peito de maneira a redobrar o enleio em que se achava já
a rapariga.

Desse momento por diante, Daniel ficou inteiramente dominado por a sua irreprimível
imaginação.

Feliz mente as atenções de todos estavam atraídas pelas
peripécias da esfolhada, que a não ser isso, teriam dado que
falar as maneiras do estouvado rapaz em todo o resto da noite.

Clara sentia uma acanhamento nela pouco habitual, procurava vencê-lo,
para refrear a imprudente exaltação do seu vizinho, mas todos
os seus esforços eram baldados. Nem parecia a mesma, de tímida
que estava.

Daniel, por mais de uma vez, serviu-se das fraudes usadas pelos serandeiros
e freqüentadores de esfolhadas, para renovar os abraços; e isto
sem procurar ocultar-se de Clara.

Esta, não lhe denunciando o artifício, deixava assim imprudentemente
estabelecer-se, entre ambos, certa cumplicidade, que estimulava Daniel.

A isto sucederam-se frases de galanteio, ditas a meia voz, e olhares que
a não deixavam; por acaso encontravam-se-lhes às vezes as mãos,
e Clara sentia que Daniel lhas apertava nas suas.

A pobre rapariga, inquieta, irresoluta, senão fascinada, nem tentava
fugir-lhe nem ousava repreendê-lo; sentia-se triste, no meio de uma
festa em que todos riam. Triste, ela!

Pela meia noite terminou a esfolhada. Seguiram-se as danças. Clara
não quis dançar; veio sentar-se junto de José das Dornas.
Daniel sentou-se outra vez do lado dela.

Dentro em pouco o lavrador dormia. Daniel falava. Falou sem cessar., mas
ele próprio dificilmente poderia dizer em quê. Clara escutava-o
em silêncio, quase atordoada pelas comoções da noite.

Aquela maneira de conversar, o que ele dizia, e as palavras de que usava,
tudo lhe era desconhecido; impressionavam-na e agradavam-lhe, como uma novidade.
Ela mal poderia explicar o estado do seu espírito naquele momento.

Alguma coisa a obrigava a escutar Daniel, enquanto outra a mandava desconfiar
daquelas palavras, que lhe soavam bem, como música melodiosa.

— Mas, Clarinha, repare que ainda não teve uma palavra que me
dissesse! – segredou-lhe Daniel, por fim, com afetuosa inflexão de
voz

— E que quer que eu lhe diga?

— Pois não se lembra de nada?

— De nada. A minha cabeça não tem neste momento muito
para me dar.

— Oh! mas não lhe peça nada também, peça
antes ao seu coração.

— Que posso eu pedir ao meu coração que lhe sirva? –
perguntou Clara, procurando sorrir, mas com visível constrangimento.

— Se ele não tiver que dar, que se dê a si próprio
– respondeu Daniel em voz baixa.

— Sr. Daniel! – exclamou Clara, conseguindo, enfim, por um maior esforço,
vencer o seu enleio, e pondo-se subitamente a pé.

Pedro, que lhe escutara a voz, aproximou-se dos dois.

A vista do irmão fez cair Daniel em si, e alentou-lhe a razão
no eterno combate que sustentava com a fantasia.

Curvou a cabeça e sentiu quase uns assomos de remorsos por o seu estouvado
procedimento naquela noite.

— Que tens, Clarinha? – perguntava nesse tempo Pedro à sua noiva.
– Parece-me que te ouvi…

Clara ainda agitada, apertou o braço de Pedro, como se a procurar
proteção, talvez contra si mesma.

— Que tens? dize! continuou Pedro, já mais inquieto.

— Não é nada.

— Mas tu gritaste.

— Não; é que… a falar a verdade, não sei o que
sinto.

A inquietação de Pedro aumentava.

— Mas então… Dói-te alguma coisa?

— Não… Olha, sabes? Queria ver-me em casa. Se soubesse nem
tinha vindo.

— Nesse caso vamos acompanhar-te.

Daniel aproximou-se.

— Está doente, Clarinha?

A vista de Daniel exacerbou o estado nervoso, em que se achava Clara.

— Por amor de Deus! Deixe-me! – exclamou ela, com um grito, cheio de
impaciência, quase febril.

Esse grito chamou as atenções.

Todos se aproximaram dela.

— Que é?

— Que foi?

— Deu-lhe alguma coisa?

— Está mal?

— O Clara, então, isso o que é?

— Que tens, filha?

E cada qual perguntava a seu modo, e cada qual a seu modo respondia e dava
um conselho e uma conjetura.

Amigas obsequiosas preparavam-se para desaperta-la. Houve algumas que a quiseram
obrigar a beber água fria! outras esforçavam-se para lhe untar
as fontes com vinagre.

— Aquilo são bichas – dizia uma velha muito entendida em diagnósticos.

— É flato – sustentava em divergência com esta, outra
colega.

— Com vinagre passa-lhe – dizia a primeira

— Um gole de chá de cidreira, é um instante – emendava
a segunda.

Clara sentia-se deveras mortificada, e tanto que a viam chorar.

— O melhor é acompanharmo-la a casa – disse José das
Dornas – Isso não há de valer nada. Se não puder por
seu pé, o João que vá aparelhar a ruça.

A primeira parte do alvitre foi posta em execução.

Clara partiu, servindo-lhe de escolta Pedro, Daniel e um moço da casa.

E a festa da esfolhada acabou assim.

Capítulo XXX

Ao voltar para casa. na companhia de Pedro e de Daniel, Clara caminhava
silenciosa e triste. Os dois irmãos não se achavam com mais
ânimo do que ela para tentar conversa.

Pedro ia pensativo e desassossegado com o súbito incômodo de
sua noiva; e Daniel, ainda sob o domínio das comoções
recebidas naquela noite, que entre memórias agradáveis, lhe
deixava alguma coisa do amargor dos remorsos.

Sem terem trocado uma só palavra, chegaram assim à porta das
duas irmãs. Uma luz no quarto de Margarida era sinal de que ela não
dormia ainda.

Clara, erguendo para ali os olhos, suspirou. Parecia estar invejando o sossego
daquela vigília, a paz da consciência que velava assim. Ao despedir-se
de Clara, Pedro disse-lhe afetuosamente:

— Boas noites, Clarinha; amanhã espero encontrar-te melhor.

Daniel aproximou-se dela também:

— Sossegue – disse-lhe. – Não se assuste. Tenha confiança
em mim; asseguro-lhe que pode estar tranqüila.

E, como visse que a rapariga o fitava com um gesto de estranheza e de interrogação,
acrescentou:

— Sim; então não vê que sou médico? Afirmo-lhe
que pode estar descansada; adeus.

E separaram-se.

De todos os três posso assegurar que nenhum teve bom sono.

Pedro toda a noite lidou com o receio de que o incômodo e Clara fosse
de gravidade; vieram-lhe à imaginação as mais negras
apreensões a respeito do futuro do seu amor; a cada momento levantava
a cabeça do travesseiro para espreitar se, através das frestas
da janela, já aparecia a primeira luz do alvorecer. Em Daniel foi uma
luta do senso íntimo que o não deixou repousar. Odiava-se e
acusava-se com severidade, por haver de alguma sorte abusado, deslealmente,
da confiança de seu irmão; mas, cedo deixava de ouvir esta voz
da consciência como se distraído por um espírito maligno,
que lhe recordava os encantos de Clara; e a seu pensar, sentia-se às
vezes quase desvanecido com esperanças, às quais ele próprio
tentava cerrar o coração.

Alguma cosa semelhante perturbava também naquele momento o espírito
de Clara. A cada passo se esquecia a pensar nos diversos episódios
do serão e em tudo quanto Daniel lhe dissera; e logo se arrependia
e acusava, como de uma traição feita a Pedro, de ter assim escutado
e recordar agora as falas apaixonadas daquele louco imprudente.

Margarida, antes de deitar-se, veio ter com ela.

— Então, divertiste-te? – perguntou-lhe

— Não.

— E por quê?

— Por quem és, Guida, não me perguntes hoje nada, se
é minha amiga. Estou doente.

Margarida assustou-se pela maneira como foram ditas estas palavras.

— Doente! – exclamou ela com verdadeira inquietação;
e apalpando-lhe a fronte, que escaldava:

— E tens febre, Clarinha! Bem me dizia o coração: antes
não fosses!

— E antes! – disse Clara, suspirando. E calou-se, fingindo que adormecia.

Margarida não conseguiu mais serenar a turbação que
lhe produzia o estado da irmã.

— Que sucederia lá? – perguntava ela a si mesma.

Foi mais um que não dormiu naquela noite. Levou-a toda a cismar e
a escutar se algum rumor chegava do quarto de Clara.

A madrugada, porém, opera milagres. Não há luz como
a da manhã para dissipar as visões de uma imaginação
preocupada. Como esses vultos sinistros, que os sentidos alucinados das crianças
medrosas descobrem em cada canto escuro de um quarto de dormir, as criações
do espírito aflito desvanecem-se aos primeiros raios da aurora.

Rimo-nos então das nossas apreensões da véspera, nem
compreendemos os nossos terrores. As sombras de uma floresta, que a noite
nos representa pavorosa, tomam ao amanhecer um aspecto festivo, e mostram-se-nos
recamadas de flores; é também a essa hora que uma transformação
análoga parece operar-se nas sombras do nosso futuro; temos mais esperança
na vida então; aclara-se-nos a nuvem cerrada que caminha diante de
nós, quando ouvimos cantar alvoradas às aves, que o dia desperta.

Este fenômeno íntimo do nosso espírito, realizava-se
em Daniel e Clara.

O desgosto em si, os vagos remorsos da véspera, as inquietações
mal definidas, dissipou-os o surgir da manhã.

Clara olhou para a irmã, que lhe espiava o despertar, com os olhos
expressivos de desassombrada alegria.

Daniel vestiu-se, cantando jovialmente; e, sem vislumbres de pensamentos
negros, preparou-se para sair.

Os acontecimentos da noite anterior eram já sem a menor importância
aos olhos de ambos. E que importância podia ter uma noite de esfolhada?
Quem se lembraria de atribuiu valor às liberdades consentidas então?

Clara perguntava a si própria as causas daqueles seus excessivos terrores,
e não os podia justificar.

Quando Margarida, ainda cheia de cuidados, e olhando-a com solicitude, lhe
falou nisso, Clara pôs-se a rir.

— Que queres tu que te diga? Nem eu mesma já sei o que me afligia
ontem. Não te sucede às vezes isso?

— Em ti é que me admira. É tão pouco do teu gênio!
– respondeu Margarida, olhando-a fixamente.

— E também te prometo que nunca mais me tornarás a ver
assim.

— Deus o queira.

Margarida disse isto, como quem se não dava por satisfeita com a explicação
ou com as palavras de evasiva Clara. Ela suspeitava ainda que alguma coisa
se tinha passado durante a esfolhada, que a irmão lhe não queria
revelar.

Mas Clara conservou tão bem, em todo o dia, a jovialidade do costume,
que as apreensões de Margarida acabaram por dissipar-se de todo.

Correram alguns dias depois destes acontecimentos. Persistindo ainda os mesmos
estorvos ao projetado e decidido casamento de Pedro, passava este o tempo
em trabalhos campestres, e Clara ocupando-se da feitura do enxoval, em que
era ajudada pela irmã.

Daniel, ainda sem cuidado de clínica, prosseguia nas excursões
venatórias pelos arredores. Havia, porém, muitas ocasiões
em que ele voltava a casa sem ter disparado um tiro, o que não o afligia
demasiadamente.

Pedro renovava então as suas preleções sobre a caça,
e instruía Daniel a respeito dos lugares da aldeia, mais abundantes
nela.

Do que Daniel não se esquecia era de passar todos os dias à
porta das duas irmãs, que ambas o viam, e, pode-se até dizer,
o esperavam já. Margarida ocultava-se, porém, mal o sentia;
Clara, pelo contrário, inclinava-se no peitoril, e, sorrindo, correspondia
à saudação do caçador.

Era mais outra inconsideração de Clara. Conseguiu persuadir-se
esta boa rapariga que era obrigada àquilo. Para compensar a demasiada
severidade, com a qual, no seu entender, tratara Daniel na noite da esfolhada,
e sem se lembrar que, não obstante o seu próximo parentesco
com ele justificar estas familiaridades, a má reputação
que Daniel gozava na aldeia e a fértil imaginação dos
noveleiros locais as faziam um pouco imprudentes.

De fato, já nos círculos da terra constava da predileção
de Daniel pela rua em que moravam as duas raparigas; e falava-se disto com
certos olhares, com certas reticências e sorrisos, mais malignamente
eloqüentes do que murmurações explícitas.

Escusado será dizer que na loja do Sr. João da Esquina encontravam
estas meias vozes um eco admirável.

Daniel concorreu para exacerbar esses vagos rumores populares.

Um dia, em que se entretivera meia hora conversando da rua para Clara, passou,
ao retirar-se, por um jornaleiro, que trabalhava a pouca distância dali.
Este homem, com aquele ar de simpleza velhaca, tão vulgar na gente
do campo, pôs-se a cantar:

Caçador que vais à caça;
Muito bem armado vais;
Os olhos levais por armas,
E, em vez de tiros, dás ais.

Ora esta era uma das vezes em que Daniel voltava a casa sem uma vitima da
sua espingarda, que nem chegara a descarregar.

A cantiga do aldeão irritou-o, pareceu-lhe que era uma alusão
insolente; mas teve a prudência de se não dar por entendido e
passou sem dizer nada.

No da seguinte, porém, reproduziu-se o fato.

Voltando outra vez e à mesma hora, de uma caçada, igualmente
incruenta, ouviu de novo o jornaleiro a cantar.

Singular caçada a tua,
Arrojado caçador,
Que, em lugar de penas de aves,
Só trazes penas de amor.

Era demasiada a ousadia, para que Daniel a sofresse. Parou e olhando para
o homem, o qual, de atento que estava na tarefa, nem pareceu dar por ele,
dirigiu-lhe a palavra:

— Ó maroto!

O jornaleiro fingiu reparar então pela primeira vez em Daniel, e,
levando a mão ao chapéu, disse cortejando:

— Nosso Senhor lhe dê muito boas-tardes. O patrão quer
alguma coisa?

— Quero avisar-te que andarás com juízo se deres outro
jeito ás tuas cantigas quando eu passar por aqui.

— Então que cantava eu? Já não me lembra, se quer
que lhe fale a verdade.

— Pois, se na terceira vez te escutar, eu te prometo que to gravarei
melhor na memória.

E dizendo isto prosseguiu Daniel no seu caminho.

A prudência do homem aconselhou-o a que não cantasse mais; porém,
em compensação, foi um dos mais atendidos oradores dos diferentes
círculos, onde a vida de Daniel era discutida com aquele ardor de curiosidade
e bisbilhotice próprias da aldeia.

À Margarida não dava também pouco que pensar a freqüência
com que Daniel lhe passava à porta. Sabia já que ele tinha tomado
parte na esfolhada, e quase tudo o que sucedera então. O resto talvez
que o adivinhasse, conhecendo, como conhecia , o caráter de Clara e
os seus atos irrefletidos que por vezes a prejudicavam. Além disso,
certos indícios que não escapam à perspicácia
de vistas de uma mulher que observa outra, começavam a dar-lhe canseiras.
E tinha razão para estes receios. Mas alguém os concebera já.

Um dia, o reitor, voltando para casa, encontrou Daniel, a cavalo, debaixo
das janelas de Clara, e conversando animadamente com ela. O padre não
gostou muito disto; e logo lhe veio à idéia a primeira e as
sucessivas proezas do seu antigo discípulo. Cortejou-os e passou adiante
sem dizer palavra.

Encontrando-se, porém, a sós com Clara, pouco tempo depois,
foi-lhe dizendo com diplomático ar de naturalidade, estas palavras
ambíguas:

— Escuta, ó Clara: olha que um enxoval é uma coisa séria.
Todos os cuidados e atenções são poucos, quando se está
trabalhando nisso; e tu, minha filha, distrais-te algum tanto. Se eu estivesse
no teu lugar, nem trabalhava à janela. É tão fácil
a distração aí.

Clara respondeu de um modo galhofeiro, como costumava. Era-lhe difícil
tomar alguma coisa a sério.

O padre procurou depois Margarida, e disse-lhe:

— Lembras-te do que te recomendei há tempos, Margarida? Não
tires as vistas de Clara. É uma espionagem necessária e para
bem dela; por isso, não deves ter escrúpulo em fazê-la.

— E por que me repete agora outra vez essa recomendação,
Sr. Reitor?

— Eu cá me entendo. Faze o que eu te digo, Margarida.

E ao retirar-se, dizia consigo o bondoso pároco:

— Também não sei que demoras são estas com o casamento!
É preciso dar aviamento a isto!

As palavras do reitor aumentaram a preocupação de Margarida,
parecendo vir justificá-la. Mas como aconselhar a irmã, se ela
lhe furtava todos os ensejos de confidências? Margarida fez o que o
padre lhe ordenara. Pôs-se a espiar Clara. Foi uma amarga prova para
aquele caráter feminino, e por dois motivos diversos – repugnava-lhe
o papel que se viu obrigada a desempenhar, e depois a execução
dele a cada instante estava lhe valendo descobertas, que dolorosamente lhe
rasgavam o coração.

Ela percebeu que em Clara se passava alguma coisa singular.

Ao aparecer Daniel, ou quando ao longe lhe soavam os passos, já os
olhos de Margarida viam espalhar-se, pelas faces da irmã, uma turbação
pouco discreta; era com vivacidade não disfarçada que se curvava
para o ver passar e com voz alterada de sobressalto que lhe respondia e conversava
com ele.

Todas estas observações inquietavam Margarida. Padecia pela
felicidade de Clara, que via ameaçada assim, e por si, cujas antigas
ilusões, cujo sonho oculto, que, apesar de não ter confiança
na sua realização, ela acalentava ainda, se iam pouco a pouco
desvanecendo, – e em que desprestigiosa realidade.

Capítulo XXXI

Uma tarde, estavam as duas irmãs sentadas a trabalhar, à janela
do lado da rua.

A luz do sol apenas dourava já os cimos dos montes mais elevados e
longínquos. Aproximavam-se as horas, às quais Daniel costumava
passar ali.

Já por mais duma vez dirigira Clara a vista pelo caminho que ele ordinariamente
seguia: era uma vereda íngreme e tortuosa que vinha do alto da colina
à planura, onde estava situada a casa, e daí descia ao vale
– centro principal do povoado.

Porém, sempre que os olhares de Clara tomavam aquela direção,
encontravam-se com os da irmã, e instintivamente se abaixavam logo.

Margarida não estava também tranqüila naquela tarde. Em
toda a fisionomia dela, em todos os gestos e palavras, denunciava-se, por
sinais evidentes, um violento desassossego interior.

De quando em quando, voltava-se para Clara, como se resolvida a falar-lhe,
a comunicar-lhe alguma coisa que a preocupava; mas, num momento, parecia abandoná-la
a resolução e permanecia silenciosa.

O estado de espírito de uma e de outra mal lhes permitia sustentar
a conversa, a qual procedera frouxa e interrompida, a todo instante, por freqüentes
pausas.

De uma vez, porém, a impaciência de Clara, ao observar o caminho,
por onde era de esperar Daniel, desenhou-se-lhe tão expressiva na fisionomia,
que isto deu ânimo a Margarida para vencer a hesitação
com a qual lutara até ali. Fixando a vista na costura em que trabalhava,
principiou dizendo, em tom de gracejo:

— É na verdade uma pena, Clara, que tu, que tens tão
bonitos olhos, teimes em os trazer assim fechados,

— Fechados? Que queres tu dizer, Guida?

— Que os fecha para muitas coisas, que é sempre perigoso não
ver, filha.

—Não te entendo – disse Clara, sorrindo.

Margarida prosseguiu:

— Mas isso é gênio teu. Tu andas no mundo, como de noite
pelos caminhos da aldeia. Não te lembras, quando, no outro dia, saímos
mais tarde de casa do nosso pobre mestre? Fazia muito escuro. Eu, a cada passo,
estava a parar; parecia-me por toda a parte ver fojos e barrancos, tu rias-te
de mim e seguia sempre para diante, com uma confiança naquela escuridão,
como se realmente fosse estrada direita.

— E olha que não cai! – acudiu intencionalmente Clara, que julgou
principiar a compreender o sentido das palavras da irmã.

— Não; é certo que não. Parece que há uma
estrela que protege quem assim é animoso; como se todo esse ânimo
não fosse outra coisa senão a mão do Anjo da Guarda a
guiá-lo, sem se mostrar. Mas olha: lembras-te quando uma vez, voltando
assim de noite a casa, e sem escolher caminho, vieste dar aos lameiros dos
Casais? Viste-te obrigada a tornar para trás, e, como se adiantava
a noite, tiveste de ir ficar a casa da tua madrinha, nos Cabeços. Que
susto que eu tive, Santo Deus! se eram já altas horas, e tu sem chegares?

— É verdade. E por sinal que me mandaste procurar.

Mandei. Imagina lá como eu fiquei, como ficamos nós todos quando
sendo já madrugada, nos voltaram a casa com uma das argolas das orelhas,
que tinham encontrada meio enterrada nos lameiros.

— Tinha-me caido lá, tinha.

— Julgamos-te perdida, morta. Ainda não havia muito que lá
morrera afogado aquele pobre cabreiro. Hás de estar certa? Que noite
passei, Nossa Senhora! E tu…

— E eu a dormir muito descansada em casa de minha madrinha. Pudera
não. Imagina tu que eu tinha andado… léguas, talvez.

— Mas aí está como, sabendo-te salva como dessa vez te
sabias, os outros, por alguns sinais mentirosos, como aquele, te podem julgar…
perdida.

E Margarida calou-se, depois de fazer esta observação.

Clara olhou algum tempo para a irmã, sem dizer palavra: em seguida
replicou, parando de trabalhar:

— Fala-me claro, Guida. Dize o que me tens a dizer. Que precisão
tinhas de vir com isso, para me dares um conselho? Alguma coisa fiz eu, que
te desagradou. Vamos, dize o que é. Acaso já deixei de escutar-te
alguma vez como tu mereces?

— Tens razão, Clarinha. Eu devia ter mais ânimo para te
falar… para te dizer certas coisas, vendo como tu me atendes sempre… Mas,
que queres? Ao mesmo tempo, tenho tanta confiança em ti, que pergunto
a mim mesma, se valerá a pena estar a mortificar-te assim…

— Mas então que mal tenho eu feito?

— Ora! que te responda a tua consciência, Clarinha; pergunta-lho.

— Não sei… – disse Clara, um pouco perturbada.

— Não é de nenhum pecado mortal que ela te acusará,
de nenhum crime muito negro; sossega. Mas de uma culpazita… de uma fraqueza
dessa cabeça, um pouco mais leve, do que para uma noiva se queria.

— Bom. É o sermão de costume. Já vejo – disse
sorrindo, Clara. – Sabes ao que acho graça? É a não ser
o Pedro que o prega. Esse tinha mais desculpa. Mas então que fiz eu
de assim de maior?

— Ora vamos. Para que precisas que eu to diga? Ia afirmar que, agora
mesmo, o estás a dizer baixinho a ti própria.

Houve um pequeno silêncio entre as duas.

No fim dele, Clara ergueu a cabeça, dizendo:

— Sim, parece-me que sei o que é. O Sr. Reitor já no
outro dia me deu a entender o mesmo. É por eu falar com o Sr. Daniel
quando ele passa por aqui? Santo nome de Maria! Como há de ser isto,
então? Não me dirás, Guida? – continuava Clara jovialmente.
– Como hei de eu, depois de casada, deixar de conversar com o irmão
do meu marido? Que idéia fazem de mim, tu, o Sr. Reitor e todos os
que nisso repararam?

— Bem vês, Clarinha, que não é de ti que eu receio.
Conheço-te. mas tu bem sabes, o Sr. Daniel é… dizem dele…
passa por…

E Margarida hesitava, ao procurar exprimir a opinião pública
a respeito de Daniel, porque todas as frases lhe pareciam demasiadamente duras
e severas para com o caráter dele.

— Nem sei o que me parece ouvir-te dizer isso. Ainda que ele fosse
o que por aí dizem, conserve-se uma pessoa no seu lugar, que nada pode
temer. Querias talvez que eu fizesse como aquela gente , no outro dia, na
esfolhada, que toda se encolhia quando ele chegou?

— Na esfolhada? – disse Margarida, ainda sem olhar para a irmã.
– Ora tu que ainda me não contaste nada do que se passou naquela noite!

Esta alusão embaraçou manifestamente Clara, que se apressou
a dizer, como se a não tivesse ouvido.

— E demais, não tens tu escutado todas ou quase todas as conversas
do Sr. Daniel comigo? Aí tens estado, por dentro da janela, e sem que
ele o saiba. De que o ouves falar? Diz-me alguma coisa que eu não deva
ouvir? Conta-me o que viu na cidade, o que leu, histórias, versos…
– e como conta bem! – e queres que eu me não entretenha a ouvi-lo,
quando tu mesma, às vezes, sim, que eu bem tenho reparado, deixas de
trabalhar, e ficas quieta a escutá-lo também! Então que
há nisto de mal?

— Mas então? Já se fala… Que se lhe há de fazer?
O mundo tem maldades, e nós vivemos no mundo… Há gente de
tão más tenções, que, só pelo gosto de
fazer mal, pode ir às vezes inquietar o espírito de Pedro, com
histórias mentirosas, e daí sabe Deus…

O ruído de uma cavalo a trote, que vinha do lado dos montes, interrompeu
o diálogo. Clara dirigiu para lá os olhos, e viu um cavaleiro
que se aproximava, saudando-a de longe.

Era Daniel.

— Olha; falai no ruim… – disse ela para Margarida, que instintivamente
retirou a cadeira da janela.

— Vais ver – prosseguiu Clara – como eu sou amiga de fazer vontades.
Vou acabar com isto, já que assim o querem… isto é, já
que assim o queres; pois dos outros bem me importava a mim.

— O melhor é… – ia dizer Margarida, quando a voz de Daniel,
falando da rua para a janela, a obrigou a calar.

— Muito boas-tardes Clarinha – dizia ele. – Receava não a ver
já hoje; por isso obriguei este pobre animal a um trote por estes caminhos
de cabras abaixo, que muito pouco lhe agradou.

— Então tinha o que me dizer?

— Nada. Era para não perder o meu dia. Quando vi fechadas as
folhas da mimosa da Quinta da Feira, temi vir encontrar já fechada
também a sua janela, Clarinha.

— Era pena! – disse Clara, sorrindo; e depois, debruçando-se
ao peitoril, acrescentou, lançando com disfarce, um olhar para a irmã:
– Tenho a pedir-lhe um favor, Sr. Daniel.

— Que felicidade para mim! Diga.

— Quando de hoje em diante, voltar para casa, não há
de vir por este sítio.

— Clara! – disse Margarida em voz baixa, puxando pelo vestido da irmã.

Clara não a atendeu.

— Por que me faz este pedido? – perguntou Daniel, admirado.

— Porque, segundo me dizem, deram-lhe para reparar por aí nestes
seus passeios, e então, para não inquietar o mundo…

— Clarinha, que estás a dizer! – murmurava Margarida, escondendo-se
por detrás da irmã.

Clara fingia não ouvi-la.

— Tenho-a ofendido por acaso alguma vez? – perguntou Daniel.

— Em coisa nenhuma. Bem vê que eu digo que é pelo mundo…

— Então deixe falar o mundo.

— Não é tanto assim. Talvez o fizesse se não fosse
noiva. Parece-me até que o fazia, mas assim…

— Esta vida de aldeia! … exclamou Daniel, num tom de supremo enfado.
– esta vida de mexericos e de maledicências velhacas! Praga maldita
das terras pequenas, onde faltam coisas sérias em que pensar! Ora vejam
no que esta gente se ocupa? Em saber o que eu faço, como vivo, para
onde vou, com quem converso; e isto entretêm-na! Então repararam
já em eu passar por aqui? Como se não fosse coisa muito natural
conversar consigo, Clarinha. Pois não somos nós parentes quase?

— Isso dizia eu à…

Um sinal de Margarida obrigou-a a interromper-se. Limitou-se a dizer, mutilando
a frase e mudando a inflexão:

— Isso dizia eu.

— Afinal, não há como viver na cidade – continuou Daniel
– Lá pode um homem conversar com uma senhora, apertar-lhe a mão
até, que ninguém repara nisso. Aqui andam a espiar tudo o que
se faz e a tomar tudo a mal. Que costumes estes!

E Daniel prosseguiu numa longa imprecação contra a vida campestre,
exaltando a urbana, o que demorou, ainda por muito tempo a conversa.

No fim dela, renovou Clara o pedido, e conseguiu que Daniel, depois de alguma
resistência, lhe dissesse a sorrir:

— Pois bem; esteja certa que eu farei com que não falem de mim.
Não me hão de ver mais aqui.

E partiu.

— Estás satisfeita? – perguntou Clara, voltando-se para a irmã,
logo que o perdeu de vista.

— Não – respondeu esta.

— Por que não?

— Queria que fosses tu a que deixasses de aparecer, e não lhe
falasses assim.

— Por outra – tornou Clara – levemente despeitada – querias que eu
fosse grosseira.

— Não – respondeu Margarida, abraçando-a – queria que
fosses prudente.

Capítulo XXXII

Daniel cumpriu a promessa que fizera.

No dia seguinte, à hora costumada, não passou por casa das
duas raparigas.

Era para admirara nele esta pronta condescendência às opiniões
do público.

A própria Clara não tinha esperado encontrá-lo tão
dócil; não ousamos dizer que também o não tinha
desejado, ainda que dos freqüentes olhares que dirigia para o sítio,
donde todos os dias costumava vê-lo aparecer, alguém tiraria
talvez esta ilação.

Cerrava-se a noite. Havia muito tempo que o toque das ave-marias tinha ido
perder-se nas mais distantes serras, que limitavam o horizonte. O fumo das
choças e das herdades difundira-se sobre a aldeia. O zumbido dos ralos,
essa incômoda sinfonia, com que rompem no estio as harmonias do crepúsculo,
era atordoador.

Principiavam a cintilar as estrelas no céu, apenas muito para o ocidente,
uma estreita faixa restava ainda do dia que fenecera.

Clara saiu de casa, em direção a uma pequena fonte que havia
nas proximidades dela, e ao final da estreita rua, que acompanhava o muro
dom quintal.

De dia, era esta fonte muito procurada, em virtude da excelência das
águas, gabadas de tempos imemoriais, pelos clínicos da localidade,
quase como milagrosas em infinitos casos de doenças. Não obstante
a absoluta carência de princípios medicinais não justificar
a nomeada.

Depois das trindades, porém, o solitário e sombrio do lugar
afugentava a gente supersticiosa do campo.

Clara, criada de pequena por aqueles sítios, e desde então
costumada a não os temes, de propósito escolhia estas horas
para mais à vontade fazer sua provisão de água, e demorava-se
ali sem a menor sombra de terror, antes cantando sempre, com ânimo desafogado.

Como o leitor decerto prevê, não era nenhum monumento arquitetônico
a fonte de que falamos.

Imagine-se uma boca de mina, aberta na base de um pequeno outeiro, que, todo
assombrado de pinheirais, se alongava a distância, na direção
do norte da aldeia; uma telha, meia quebrada, servindo de bica; e a receber
o abundante e inesgotável jorro de água límpida, uma
bacia natural por ele mesmo cavada, e onde, à vontade, vegetavam os
agriões ávidos de umidade.

Do pinhal sobranceiro descia-se à fonte por alguns degraus grosseiramente
abertos, havia muito tempo, no terreno saibroso do outeiro, e aperfeiçoados
pelo trilho cotidiano dos que se serviam dos atalhos do monte com o fim de
encurtar distâncias dali a diversos pontos da aldeia.

Ao lado, e separado alguns passos da fonte, abria-se um desses enormes barrancos
rasgados pelas torrentes de sucessivas invernos e cuja entrada quase disfarçavam
os troncos robustos dos fetos e das giestas que, crescendo livremente, haviam
atingido proporções quase tropicais.

Quando Clara chegou à fonte, não havia lá ninguém.

A cantar, aproximou-se dela, e ajoelhando, principiou a encher o cântaro
de barro que trazia.

A água caiu ao princípio ressoante no interior do vaso; depois
amorteceu gradualmente o som, à medida que subia o nível do
líquido; este dentro em pouco transbordava.

Clara ia levantar-se. Na posição em que estava, tinha voltadas
as costas para a entrada do barranco. Neste momento pareceu-lhe ouvir algum
rumor daquele lado.

Não foi superior a um vago sentimento de susto. Voltou-se inquieta.
Deu com os olhos numa forma escura, e em breve reconheceu mais claramente
ser um vulto de homem, que se aproximava dela.

Soltando um grito, Clara ergueu-se de súbito para fugir.

Segurou-a a tempo um braço e falou-lhe uma voz conhecida:

— Que vai fazer? Não se assuste. Sou eu.

Era a Voz de Daniel.

— Santo nome de Jesus! – exclamou Clara ao reconhecê-lo e ainda
tomada de susto. – O que faz por aqui?

— Vim vê-la – respondeu Daniel, com a maior naturalidade.

— Então é assim que cumpre o que ontem me prometeu?

— Pois que prometi eu, senão fazer com que me não vissem?
É o que faço, vindo agora só e aqui.

— É pior, muito pior isto – disse Clara, lançando-se
em volta de si olhares de inquietação.

— Não é – continuou Daniel. – Pois não me disse
que não desconfiava de mim? Não foi só por condescender
com os reparos tolos de meia dúzia de curiosos e de velhacos que me
pediu… que exigiu de mim que não viesse? Falando-me assim, neste
sítio e a esta hora, não pode recear alguém. Lembra-se
de me haver dito que o povo tinha medo de passar de noite por aqui?

— Mas, apesar disso. Jesus, meu Deus! – continuava Clara sobressaltada.
– E para que havia de procurar falar-me? que tem que me dizer?

Daniel sorriu.

— Que pergunta a sua Clara! Imagina lá a minha vida na aldeia?
devoram-me desejos de conversar. Mas não tenho com quem. Privando-me
de a ver, Clarinha, afastava-me da única pessoa, das que até
agora tenho encontrado, com quem se pode sustentar uma conversa seguida e
agradável. Veja se não seria crueldade proibir-me…

— Não diga isso – respondeu Clara – Eu entendo-o às vezes,
sim; mas é quando todos o entendem também; quando a sua conversação
mais me entretém, tenho notado que muitos o escutam como eu, com atenção.
Mas doutras vezes…

Neste ponto Clara reteve-se, como se receasse terminar.

— Doutras vezes? … repetiu Daniel sorrindo.

— Doutras vezes não o entendo, e é sobretudo quando fala
só para mim.

— Não me entendes? – perguntou Daniel, com uma inflexão
de voz, que fez estremecer Clara.

— Não, não o entendo porque não posso… porque
não quero… porque não devo acreditar na verdade do que me
parece entender.

— E quando lhe falei assim, diz-me?

— Um dia, começava a falar-me desse modo em casa daquele doente
que foi ver. Doutra vez… Oh! e dessa!… foi aquela noite da esfolhada,
em casa de seu pai.

— E não me entendeu nessa noite?

— E queria que o entendesse?

— Pois não deve ser o desejo de quem fala? – perguntou Daniel
dum modo jovial.

— Eu ouço dizer que há muitas pessoas que falam a dormir,
quanto dariam esses por não serem entendidos, então?

— Mas eu nunca fui sonâmbulo, Clarinha.

— Tanto pior para si.

— Por quê?

— Porque então é mau.

— Mau!

— Mau, sim. Eu não sei de maior maldade do que a daqueles que
andam por aí a inquietar o sossego das famílias, a alegria dos
corações, e só por gosto e fazer infelizes.

— Então eu…

— Basta, Sr. Daniel. Se é homem de bem, retire-se ou deixe-me
retirar – disse Clara, com arde seriedade e nobreza que o impressionou.

Dando também às suas palavras mais grave tom, Daniel respondeu:

— Escute, Clara. Acredite que não fala com um homem de sentimentos
perdidos; escute-me e tranqüilize-se. Eu conheço em mim um princípio
mau, é verdade; mas creia que não lhe ando tão sujeito
que nem compreenda já a força dos meus deveres. Conceda-me ainda
um pouco de consciência. As vezes, muitas vezes até, deixo-me
arrastar por esta força, que me leva a loucuras, que chega talvez a
aproximar-se de uma vileza… mas, ao chegar ai, até hoje tenho resistido
e espero… Perdoem-me isto, por quem são. Cedo me verão arrependido.

— Cedo! e quando é cedo ou tarde? sabe-o lá? Quem lhe
há de dizer que é cedo? Cedo para si poderá ser; e para
outros também? Há poucos dias, que todos por aí só
falavam de uma pobre rapariga, a quem , por divertimento o Sr. Daniel trazia
quase doida. Está arrependido, não é verdade? Mas arrependeu-se
cedo para ela? Amanhã poderiam dizer de mim…

— Que hão de dizer, Clarinha? Essa rapariga de que fala, não
fui eu que a fiz doida; engana-se; encontrei-a já assim. Eu não
trabalhei para a perder; também se engana; os seus é que se
esforçaram por a darem por perdida. A Clarinha esquece que a si todos
respeitam e que…

— Não é verdade. Em que sou eu mais que as outras? Ninguém
está acima das vozes do mundo. E se até agora tinha razão
para não me importar com elas, por me não julgar culpada, teria
de as temer, se continuasse a ouvi-lo aqui. Adeus.

— Vejo que me enganava ainda ontem, dizendo-me que tinha confiança
em mim. Esses receios…

— Enganaria; mas enganava-me a mim mesma, também. Eu não
sei mentir. E a prova é que sinceramente lhe digo agora que desconfio.

— De mim?

— De si, sim, por que não? As suas ações não
são leais. Vê que, vindo procurar-me aqui, me pode perder, e
não se importa fazê-lo; peço-lhe que se retire, e teima
em ficar; peço-lhe que me deixe retirar, e impede-mo. Brinca assim
com minha reputação sem se lembrar que sou quase já a
mulher de seu irmão, quase a filha de seu pai, quase sua irmã
também. Diz que sabe quais são seus deveres… e como é
que os cumpre então? Se Pedro passasse por si, neste momento, e lhe
abrisse os braços, como a irmão que é, teria valor para
o abraçar, diga? Não fugiria antes dele como um criminoso? Fale.

Daniel curvava a cabeça, sem coragem para responder.

Clara prosseguiu:

— Peço-lhe pela alma de sua mãe, que nunca mais me procure
aqui, que nunca mais me procure em parte nenhuma. Ontem ainda me ri eu dos
avisos que recebia para me acautelar; hoje, já não sinto vontade
de me rir. Tinham razão eles, tinham; agora o vejo; e este meu gênio
é que me podia perder. Se por mim não é bastante pedir-lhe,
peço-lhe por seu irmão, por sue pai, e por si mesmo, que assim
anda a perder o crédito de um nome, que nenhum dos seus nunca deixou
de honrar.

— Está sendo muito cruel para mim, Clarinha. Concordo que fui
imprudente, inconsiderado, mas… Confesso-lhe que a impressão que
me causou e que me causa…

— Sr. Daniel, eu não quero saber os seus segredos. Deixe-me
retirar.

—Pois bem, será esta a última vez que a procuro, que
lhe falo até, que a vejo, se tanto exigir de mim; mas ao menos desta
vez há de escutar-me.

— Mas, para que preciso eu escutá-lo? – dizia Clara pelo tom
de exaltação que ele falava.

Daniel continuou:

— Todos só têm palavra para me censurar, e ninguém
há de ver um dia claro no meu coração? Ninguém,
melhor do que eu, conhece a fraqueza ingênita deste caráter,
que não sabe lutar; mas o que eu não sei, o que eu peço
que me digam é o remédio para este mal. Clara, não procure
fugir sem ouvir-me. Retirar-se-ia supondo pior do que sou, como todos que
me conhecem. Eu quero que ao menos uma pessoa saiba a verdade a meu respeito.
Escute.

E, ao dizer isto, segurava o braço de Clara, que temia de inquietação.

Neste momento, os passos de uma cavalgadura a trote rasgado soaram próximos,
no caminho que vinha terminar defronte do lugar onde esta cena se passava.

Clara não pode reprimir um grito de susto.

— Jesus, que estou perdida! – exclamou ela; e soltando o braço
que Daniel lhe segurava ainda, fugiu na direção de casa.

Antes, porém, de transpor a esquina que a devia ocultar às
vistas de quem quer que era que se aproximava , e de conseguir fugir pela
porta do quintal, o cavaleiro, tendo-a avistado e conhecido bradava rijo:

— Ó Clara, Clarita! Rapariga! Ó pequena! Pichiu! Eh!
Onde vais com essas pressas? Não são os franceses, sossega.

O homem que bradava assim, era João Semana, que voltava de uma visita
distante. Vendo a Clara a fugir tão apressada, conjeturou que ela se
assustara, supondo-o algum facinoroso ou mal intencionado, e por isso berrava
para lhe fazer perder o medo.

Mas ao aproximar-se da fonte, o velho cirurgião descobriu alguma coisa,
que lhe pareceu procurava ocultar-se dele.

— Hum! – murmurou consigo o velho. – Pelos modos, o susto da rapariga
era de outra espécie… Há de ser o Pedro.

E acrescentou em voz alta:

— Olá, não fujas, rapaz; não é crime nenhum
vir falar assim com uma noiva; ainda que, para dizer a verdade, escusava de
ser tanto às escondidas, escusava.

E com isto foi dirigindo o cavalo para aquele vulto, que parara, desde que
viu que não podia fugir sem ser percebido. À medida que se aproximava,
João Semana principiou a duvidar que fosse Pedro, o homem da entrevista
noturna.

Parecia-lhe menos corpulento do que o primogênito de José das
Dornas.

A esta suspeita, sulcou uma ruga profunda o longo da fronte do honesto celibatário,
que decidiu consigo averiguar aquele mistério.

Capítulo XXXIII

Tendo formado esta resolução, João Semana picou a espora
de sua égua, a qual, estranhando a insólita amabilidade, de
um salto o apresentou junto de Daniel que era, como o leitor sabe já,
o vulto em questão.

Daniel, vendo-se descoberto, julgou que o melhor partido era entrar em jogo
rasgado.

— Boas-noites, colega – disse ele em tom prazenteiro, e caminhando
para João Semana.

Este deu um estremeção na sela ao reconhecer o seu jovem confrade.
O não muito favorável conceito que ultimamente formava dele,
em relação a certas qualidades morais, fê-lo agourar mal
de sua presença naquele lugar.

— Ah! Ah! Você por aqui! Anda a fazer versos?

— Ou a inspirar-me para isso.

— Não é mau o sítio, não. E ao mesmo tempo
pode dar-se a estudos de química também; a água desta
fonte…

— Já me disseram que é medicinal.

— É excelente.

— Para que moléstias?

— Para muitas. Agora o que não sei é se para certos esvaimentos
de cabeça também servirá. Bom era que sim, que anda por
aí muito disso.

Daniel fingiu não entender a alusão, e observou com modo natural.

— Está aqui muito agradável.

— Ai, o sítio é bom, lá isso é. E para
a caça?! Não gosta de caçar?

— Alguma coisa.

— Pois por estes montes há caça famosa. Ainda agora,
quando eu vinha, fugiu daqui uma…lebre, e com uma pressa admirável.
Não a viu?

— Não, não vi.

— O que é ser poeta! Não se vê coisa nenhuma. Com
os meus oitenta anos vejo eu melhor. Pois é verdade; atravessou neste
mesmo instante por esta rua… ia a jurar até que se escondeu ali no
quintal; pareceu-me vê-la escapar através daquela porta.

— Tens boa vista, João; mas não tão boa, que te
não passe por alto um amigo velho.

A voz, que dissera estas palavras, parecia vir do ar.

João Semana levantou a cabeça e deu com os olhos do reitor
muito pachorrentamente estabelecido sobre o tronco de um pinheiro derrubado
no topo das escadas que desciam do outeiro.

João Semana ficou espantado com a tal descoberta, e só isso
o impedia de notar que Daniel o não ficara menos. Quando, porém,
desviou para este os olhos, encontrou-o já sem sinal de perturbação,
e até anediando os cabelos com toda a naturalidade.

As suspeitas, vagamente concebidas pelo cirurgião, desfizeram-se.

— Que diabo fazeis vós ambos aqui? e tu então de poleiro,
abade?!

— É que isso aí embaixo é úmido como um
charco, e eu não quero dar-te o que fazer com o meu reumatismo, João.
Mas eu desço, eu desço.

— Não, não, deixa-te lá estar. Lá por isso..

— Não que vão sendo horas também de me chegar
até casa. Pois é verdade – continuava o pároco, apoiando-se
na bengala, e descendo, com vagar, e cautelosamente, aos poucos suaves degraus,
cavados no saibro do monte – pois é verdade; estávamos nós
aqui, eu com o Daniel e a Clarita, a conversar…

— Ah! bem me pareceu que era ela…

— Era ela, sim. Então que dúvida? Olha que sempre fizeste
uma descoberta!

— Mas para que diabo fugia a rapariga, então?

— Diz antes por que diabo não fugimos nós. Mas o meu
reumatismo é que me não deixou. Quando me hás de tu dar
um remédio para isto, homem?

— É pregar com os ossos nas Caldas, querendo. Mas, dizias tu
fugir? Para que haviam de fugir de mim?

— De todos. Quando se conspira…

— Então vocês?

— Conspirávamos, sim, senhor. Aqui mesmo onde nos vê,
estávamos a combinar uma coisa…

— Que diabo era o que combinavam?

— Combinávamos…

O reitor achava-se um pouco embaraçado por nada lhe ocorrer a propósito;
por isso exclamou para contemporizar:

— Que maldito costume tu tens, João, de estar sempre com o nome
do inimigo na boca! Perde-me esse jeito.

— Pois sim, sim; hei de fazer por isso, apesar de que já vou
um pouco tarde. Eu digo agora como aquele franciscano a quem repreendiam por,
já na idade avançada, cair anda na fraqueza, em que Noé
caiu: "Já agora hei de morrer com isto, dizia ele; porque de duas
uma: ou já estou condenado, e então não sei que lhe faça;
não vale a pena a emenda; ou não estou, e quem pode perdoar
uma bebedeira de quarenta anos, não deve por dúvida em perdoar
a de meia dúzia mais". – Mas então o que combinavam vocês?

A renovação da pergunta, depois da referência do caso,
fez perder ao reitor as esperanças de eximir-se a responder. Quando
João Semana conservava uma idéia fixa, través da narração
de qualquer anedota de frades, era para dificilmente a deixar.

Conhecendo isto por experiência, o reitor resignou-se; e, ainda sem
saber o que dizia, principiou a responder:

— Combinávamos…

E fingindo arrepender-se, exclamou:

— Mas é boa essa! Não há senão perguntar.
Tu não deves entrar no segredo. A coisa é entre nós três.

— Homem, diz lá o que é. Que diabo…

Um gesto dom pároco obrigou João Semana a corrigir-se.

— Que S. Pedro de escrúpulos são esses agora?

A substituição do nome do espírito maligno pelo do apóstolo
não lhe valeu a resposta que pedia, e que o reitor de boa vontade lhe
dera, se a tivesse para dar.

— E a teimar – dizia o padre ganhando tempo. – Sempre és um
curioso.

Daniel interveio enfim

— Olhe, Sr. João Semana, basta que saiba, e depois não
pergunte mais nada, que estávamos preparando uma surpresa a meu irmão
Pedro, para o dia do casamento dele.

O reitor franziu as sobrancelhas, ao ouvir Daniel. Apesar do auxílio
que ele viera lhe dar, desgostou-o a presença de espírito que
mostrava, quando devia estar enleado de confusão e de vergonha; foi
por isso que acrescentou com num evidente tom de severidade e irritação:

— Casamento que, se Deus quiser, hei de brevemente abençoar.
Estás agora satisfeito, João semana? Pois é verdade.
Daniel meditava grandes novidades para o dia do casamento do irmão,
grandes festas por causa dele e da noiva, et cetera, et cetera. Mas o seu
projeto não mereceu, nem merece a minha aprovação.

Daniel baixou os olhos ao ouvir estas palavras do padre.

Este prosseguiu:

— Clara pensa como eu, mas este homem é obstinado, e através
de tudo, teima em seguir sua vontade; mas eu protesto que…

— Vejo que não me entendeu, Sr. Reitor – disse Daniel com vivacidade.

— Entendi, entendi, homem. E julgo que não acho a propósito
entrar agora em maiores explicações.

Daniel guardou silêncio.

— Mas não podiam tratar disso em casa? teimou João Semana,
que não largava assim facilmente uma idéia, de que se tivesse
apossado.

— E a dar-lhe! Não há que se lhe faça – dizia
o reitor. – Homem, nós não queríamos que a Margarida
soubesse nada disto, porque… porque… Mas tu vais a cavalo, e nós
a pé. Segue o teu caminho, e apressa-te, que a Joana já há
de estar com cuidado pela tua demora.

— E eu com vontade à ceia.

— Então, por que esperas? Vai com Deus, homem.

— Até amanhã, abade. Adeus, Daniel. Olhe lá como
se porta, rapaz. Juizinho!… senão está mal servido com a sua
vida. Lembre-se daquele frade…

— Aí, se te pegas a contar histórias, não chegas
a casa à meia noite.

— Pois já não conto.

E fustigando a égua, desapareceu cedo da vista dos dois.

Logo que se afastou, Daniel ia dirigir-se ao padre.

— Sr. Reitor, foi providencial a sua vinda. Acredite porém…

O gesto cheio de severidade, com que o reitor o acolheu, não o deixou
continuar.

— Basta. Não quero escutá-lo. Explicações
não as preciso, por que ouvi tudo; justificações não
as tem, não as pode ter, para dar. Boas-noites.

E, colocando-se diante da porta de suas pupilas, à frente da qual
haviam chegado, afastou-se para deixar passar Daniel.

— Mas… – ia este a dizer.

— Boas-noites – repetiu secamente o reitor, e tão secamente,
que fez perder a Daniel a coragem de insistir.

Curvando-se com respeito diante do velho, retirou-se dali.

O reitor, ficando só, entrou em casa das raparigas.

Depois de trocar algumas palavras com Margarida, chamou de parte Clara, e
em tom um pouco desabrido, disse-lhe:

— Julgo que recebeste hoje um aviso do teu Anjo da Guarda, Clara. Olha
agora se o aproveitas.

Quando a rapariga, levantando para ele os olhos, ia a interrogá-lo,
o padre afastou-se, dizendo-lhe simplesmente:

— Adeus.

Dissera bem o reitor.

Clara ouvira de fato o seu Anjo da Guarda.

Aquela noite conheceu o perigo do caminho que seguira, a sorrir; e resolveu
fugir-lhe. E iria já a tempo? pensava ela.

Da involuntária entrevista, que tivera com Daniel, saíra salva
de todo? de todo livre de suspeitas?

A voz de João Semana, chamando-a de longe, mostrava-lhe que ela fora
reconhecida. Mas que se passara depois? O reitor parecia também estar
informado do sucedido. Como o teria suspeitado ou previsto?

Mas, por outro lado, o tom moderado das palavras que lhe dissera, levou-a
a crer que ele conhecia a verdadeira extensão da sua culpa, e não
a exagerava.

No meio desta corrente de pensamentos, Clara, às vezes estremecia.

Se no dia seguinte, lembrava-se então, se levantasse contra si um
desses boatos surdos, rápidos a propagar-se, prodigiosos a crescer,
que infama, que mancham de lodo as mais firmes reputações, e
inoculam seu veneno sutil numa existência inteira?

A esta lembrança, Clara erguia as mãos com terror.

Aos pés de uma imagem da Virgem, pedia então misericórdia,
e prometia evitar, dali em diante, todas as ocasiões de novos perigos.
Daquela condenação, cuja lembrança bastava só
para a assustar assim, a salvara um acaso… ou antes a Providência.

O reitor, a cujos ouvidos continuavam a chegar todos os dias vozes desfavoráveis
a respeito de Daniel, andava inquieto por causa da assiduidade com que o vira
freqüentar as proximidades da casa das suas pupilas.

Aquelas prolongadas palestras, da rua para a janela, podiam dar que falar,
receava ele; e cedo viu que efetivamente iam já dando.

Qual não foi, pois, o seu desassossego, quando da casa de um pobre
enfermo que fora confessar, viu às trindades daquele dia, passar furtivamente,
e meio disfarçado, um homem, que, apesar e todo o disfarce, o reitor
logo conheceu ser Daniel.

Deu-lhe uma pancada o coração, e, mal que pôde, desobrigou-se
de sua santa tarefa, saiu apressado, e correu à casa de Margarida,
a quem perguntou pela irmã.

Sabendo que naquele momento tinha ela saído para a fonte, para ali
se dirigiu também o velho, mas por outro caminho, que o levou ao próximo
pinheiral.

Chegou ali justamente quando Daniel aparecia a Clara; e pôde, sem ser
visto, assistir a todo o diálogo entre os dois.

Foi por esta forma que o reitor, a quem muitas vezes estava confiado o papel
de Providência na sua paróquia, conseguiu salvar oportunamente
a boa fama de Clara, no conceito de João Semana, e provavelmente, na
opinião geral da terra.

Se as recordações desta noite agitavam o espírito de
Clara, não deixavam mais indiferente e tranqüilo o de Daniel.

Cruzando a passos largos o pavimento do quarto, velou grande parte da noite.

Poucas provações mais amargas há para os caracteres
humanos do que a de se sentirem desprezados pela própria consciência.

Experimentava-o Daniel, então.

— Têm razão os que desconfiam de mim – pensava ele – conhecem-me
melhor que eu próprio. Que sutis distinções ando eu a
marcar por aí, entre o meu proceder e o de muitos miseráveis,
que me causam tédio e desprezo? Que ridículas lamentações
de homem não compreendido são as minhas? É no que se
vingam sempre aqueles, cujos sentimentos inspiram aversão geral…
Clamam-se que ainda não encontraram o espírito ou coração
de harmonia com o seu. Vejamos. Pois não é infame o meu procedimento?
Que lhe falta para ser completamente infame? Que espero eu de Clara? Para
que a persigo? Para que a procurei hoje? – Não hesitei em dar estes
passos, que, na aparência, a podem perder… E hesitaria em perdê-la
na realidade? Quem mo assegura? tenho acaso certeza disso?

E, passeando mais agitado ainda, conservou-se por muito tempo sob o domínio
desta idéia. depois continuou com mais exaltação:

— Tenho, sim. Não rebaixemos também a tal ponto os nossos
sentimentos. Eu sou volúvel, imprudente, inconsiderado; conheço
e odeio-me, quando me vejo assim; porém não sou perverso, porém,
não sou capaz de uma traição infame… Queria que me
acusassem de tudo, mas que não me suspeitassem disso, e muito menos
Clara, essa generosa rapariga, e muito menos o reitor, esse homem honrado…
Mas o que importam as minhas intenções, se dou lugar a que se
diga, a que se possa pensar em calúnia! Se não fosse hoje o
reitor, a quem a Providência parece haver inspirado, que se diria amanhã
nesta mexeriqueira terra? – de mim, digam lá o que quiserem; mas daquela
rapariga… É tempo de me fazer outro homem. E poderei consegui-lo?
este meu temperamento é de uma mobilidade! pequenas coisas fazem-lhe
perder o equilíbrio, que por momentos a razão consegue dar-lhe.
Será pois isto em mim um mal incurável! É verdade que
os médicos falam de certos estados nervosos, que pequenas impressões
sustentam e exacerbam, e que, muitas vezes, uma profunda comoção
consegue serenar, dando a esses pensamentos a estabilidade que não
tinham. O estado de meu coração é assim. Talvez ainda
não experimentasse a têmpera, que tem de o fortificar; talvez.
Em todo o caso devo lutar comigo mesmo. Mas poderei resignar-me à má
opinião que de mim conserva aquela rapariga? Não; preciso falar-lhe
uma vez ainda para que me perdoe e restitua a sua confiança; serei
depois para ela um amigo sincero, um verdadeiro irmão. Hei de falar-lhe.

Capítulo XXXIV

Uma noite, depois de dormido o primeiro sono, ergueu-se Pedro, como solícito
proprietário, para ir rondar um pinhal, distante da casa, onde, segundo
informações recebidas, se tinham ultimamente praticado alguns
roubos de pinheiros.

Ao vê-lo sair, o criado mais velho da casa, o mesmo ao qual vimos Daniel
disposto a fazer compreender a teoria dos eclipses, quis acompanhá-lo.

— Deixe-me ir contigo, Sr. Pedrinho.

— Vai-te daí, homem; eu não sou nenhuma criança,
para precisar de companhia.

— Mas…

— Deita-te; já te disse.

E o noivo de Clara saiu, de espingarda ao ombro, e assobiando uma toada popular.

Apesar da quase certeza que tinha de se não encontrar àquela
hora com o principal e constante objeto dos seus mais gratos pensamentos,
dirigiu o itinerário, com prejuízo da economia de tempo, pela
rua em que morava Clara.

É que é já um prazer contemplar os muros, a cujo abrigo
se sabe repousar a mulher que se ama; prazer inocente, entre os que mais o
são, e que, desde tempos imemoriais, os amantes saboreiam.

Fique a leitora sabendo que, muitas vezes, enquanto dorme, se lhe estão
fixados nas janelas, desapiedadamente cerradas e obscuras, os olhos ardorosos
de alguns desses tresnoitados passeadores.

À medida que se aproximava do lugar, que o obrigara a este rodeio,
ia diminuindo Pedro a velocidade da marcha.

Chegou perto do muro do quintal, e, insensivelmente parou. Lembrou-lhe que
bem podia ser que, apesar do adiantado da hora, Clara estivesse acordada,
pensando nele talvez. Que amante deixaria de fazer, nas mesmas circunstâncias,
iguais suposições?

Como meio de verificação, pôs-se a cantar: Meia noite,
tudo dorme;

Só eu não posso dormir;

Pois não me deixa este amor,

Que me fizeste sentir. Depois de pequena pausa, continuou:

Este amor que é minha vida,

Vida do meu coração,

Atrás do qual meus… A interrupção foi devida a certo
rumor, que Pedro julgou ouvir dentro do quintal. Calou-se por isso, e pôs-se
a escutar.

Tudo caiu em silêncio.

Aplicando, porém, o ouvido à fechadura, pareceu-lhe perceber
o murmúrio de vozes abafadas.

— Quem anda aí dentro?! – perguntou em voz alta Pedro, batendo
à porta.

Ninguém lhe respondeu.

Continuou a escutar, e de novo julgou distinguir o mesmo som.

Ia interrogar outra vez, mas, refletindo mudou de plano.

Continuou o seu caminho cantando: Este amor, que é minha vida,

Vida do meu coração,

Atrás do qual meus suspiros

E meus pensamentos vão. E seguiu, cantando assim, até certa
distância da casa; e depois, retrocedendo, voltou com todas as cautelas,
para junto da porta donde viera o rumor que o estava inquietando.

— Se fossem ladrões – pensava Pedro – que haviam de fazer as
pobres raparigas, neste sítio solitário, e sem braço
de homem em casa para as defender?

E este pensamento decidiu-o a não sair dali sem averiguar aquilo.

O seu estratagema prometia produzir efeito. Desta vez não era possível
a ilusão. As vozes percebiam-se distintamente , e como em conversa
acalorada, e, entre elas. Pedro julgou reconhecer uma de mulher.

Então, sentiu ele um doloroso constrangimento de coração.
Uma idéia terrível, súbita e sinistra, como a luz do
relâmpago, lhe iluminou o espírito, e, pela primeira vez, concebeu
suspeitas que o fizeram estremecer.

— Se Clara… – murmurou, subjugado por aquela idéia. E um tremor
convulso passou-lhe pelos membros com tal violência, que o constrangeu
a apoiar-se à ombreira da porta para não cair. Naquele estado,
a pulsação febril das artérias das fontes, impediu-o
de escutar mais nada; o coração palpitava-lhe tão agitado
que o ouviu bater.

O som das vozes tornava-se mais audível, como se aproximassem da porta
as pessoas que assim conversavam. Pedro levou maquinalmente a mão ao
gatilho da espingarda e ficou à espera com a vista fixa e a respiração
reprimida. Era terrível o seu olhar naquele momento.

Ouviu-se o voltar da chave na fechadura, a porta abriu-se lentamente, e um
diálogo, travado a meia voz, chegou aos ouvidos de Pedro; mas a energia
da vertigem, que lhe tomara os sentidos, não lhe deixava perceber,
senão de maneira confusa.

— Foi para lhe dizer isto, só para lhe dizer isto, que consenti
em ouvi-lo aqui – dizia a voz feminina – Bem vê que seria uma loucura
, se continuasse; mais do que uma loucura, seria um pecado até. Agora
espero que cumpra a sua promessa. Mostre que é homem de bem. Adeus.

— Adeus – respondia-lhe outra voz – E perdoe-me se não posso
ainda dizer friamente esta palavra. Mas verá se saberei emendar-me.
Obrigado pela confiança que teve em mim. Adeus.

E, depois disto, um homem, todo envolvido numa capa comprida, saiu da porta
do quintal, tendo antes apertado a mão, que se lhe estendia de dentro.

Pedro mal tinha ouvido, e mal conseguia ver tudo aquilo; passava-lhe pelos
olhos como que uma nuvem de fogo. Correu para este visitador noturno com a
impetuosidade, de que o animava a raiva e, apontando-lhe ao peito a espingarda,
gritou com um rugido aterrador:

— Alto, miserável! Pára, ou está morto!

O homem ficou imóvel.

Dentro do quintal ouviu-se então um grito dilacerante, e a porta,
violentamente impelida, veio fechar-se de encontro aos batentes.

Pedro rompeu para o desconhecido, que recuou diante dele.

— Quem és? Quero conhecer-te antes de te matar, infame!

E como o embuçado cada vez procurasse ocultar-se mais, Pedro lançou-lhe
a mão, e, com um movimento rápido, descobriu-lhe o rosto, arrojando
no chão a capa com que se envolvia. O luar bateu em cheio nas feições
do outro.

Reconheceu Daniel.

É inexprimível em linguagem conhecida o que neste momento se
passou no coração do pobre rapaz.

— Daniel! – bradou ele sufocado, pela intensidade da comoção
que recebera.

Daniel conservava-se mudo e abatido. Dir-se-ia fulminado.

Houve um longo espaço de silêncio.

Pedro sentiu que se lhe formava no coração uma tempestade medonha;
um raio de razão que lhe luzia ainda, inspirou-o para dizer em voz
já cava e abafada:

— Por alma de nossa mãe, Daniel, por alma de nossa mãe,
sai daqui, se não queres que suceda alguma desgraça.

— Ouve Pedro, escuta-me – tentou dizer Daniel; mas as palavras a custo
se lhe articulavam, e a voz prendia-se na garganta.

— Daniel, foge, foge daqui, se me não queres perder! foge, irmão!
– bradava Pedro, e, como que já sem consciência, contraiam-se-lhe
espamodicamente os dedos sobre o gatilho da espingarda.

Daniel ia falar-lhe ainda, quando sentiu uma mão pousar-lhe no ombro,
e, em seguida, um homem que, durante o ocorrido se aproximara do lugar, veio
interromper-se entre ele e o irmão.

— Retire-se – exclamou este homem com voz severa, voltando-se para
Daniel – Eu tinha previsto esta desgraça.

Era o reitor.

Ia a dirigir-se depois a Pedro, mas já não o encontrou ali.

O padre estremeceu.

— Meu Deus, é preciso evitar algum crime. O rapaz vai louco.

Pedro batia violentamente com a coronha da espingarda na porta do quintal,
que pouco lhe poderia resistir.

Daniel vendo-o ia correr em defesa da mulher, cujo futuro perdera talvez
irreparavelmente.

O padre susteve-o com energia, pouco de esperar naquela idade avançada.

— Retire-se – bradou com voz vibrante exaltada – Não está
ainda satisfeito com a sua obra? Quer acabar de perder aquela pobre rapariga?

— Mas ele vai matá-la!

— Estou eu aqui para velar por ela. Cabe-me esse direito, que me foi
conferido por sua mãe no leito, onde agonizava. Retire-se.

O reitor naquele momento transformara-se; sublimara-se a ponto de exercer
um império completo na vontade de Daniel; no olhar do velho parecia
haver não sei que influxo magnético, que obrigou Daniel a baixar
a cabeça e a retirar-se, constrangido por irresistível impulso.

Pedro tinha arremetido contra a porta do quintal com verdadeira desesperação.
Um pensamento sinistro o dominava; a raiva do ciúme e da vingança
perturbava-lhe a razão.

Afinal a porta cedeu. Pedro penetrou no quintal como verdadeiro louco; empeceu-lhe,
porém, os passos uma mulher que lhe caiu aos pés, bradando:

— Pedro, Pedro, não cause, não queira causar a minha
perdição.

Este grito fê-lo recuar. A voz desta mulher, que o implorava assim.
Pedro passou da agitação do delírio à imobilidade
do letargo.

— Que é isso? – bradou, enfim, como ao acordar de um mau sonho.
– Margarida aqui?

Era efetivamente Margarida a mulher, que de joelhos e mãos erguidas
lhe jazia aos pés.

Desenhava-se no rosto da simpática irmã de Clara o mais violento
desespero; e quem sabe o que lhe ia no coração.

Era pois Margarida a que tivera a entrevista com Daniel? Abençoada
suspeita iluminou pela primeira vez as trevas do espírito atribulado
do pobre Pedro! Abençoada lhe chamei, pelo conforto que gerou; porque
na horrível tortura de coração daquele desgraçado,
foi um bálsamo consolador.

— Margarida – disse-lhe ele, trêmulo de incerteza e de esperança
– fale-me a verdade. Em nome de Deus, diga-me; quem estava aqui com Daniel?
Diga-me, diga-me tudo pelo Salvador.

Houve um momento de silêncio. Margarida parecia hesitar; por fora da
porta apareciam já alguns rostos curiosos, que chegavam atraídos
pelo ruído.

— Quem estava aqui com Daniel? – perguntou Pedro.

Na alma de Margarida alguma coisa se passou de terrivelmente doloroso que
quase a fez desfalecer.

Fechando os olhos, como quem adota uma resolução desesperada,
como quem se despenha num abismo, respondeu com voz tremula, mas perfeitamente
inteligível:

— Era eu!

A turbação em que estava não lhe impedia de perceber
o sussurro das vozes que, de fora da porta, acolheu esta resposta.

Pedro, alheio a tudo que o rodeava, ergueu as mãos para o céu;
e rebentando-lhe as lágrimas dos olhos, exclamou:

— Bendito seja Deus! Sirva de remissão dos meus pecados o tormento
destes poucos instantes.

Quando o pároco chegou, encontrou-os nesta posição.

Caminhou com o rosto severo para a mulher que via ajoelhada, mas recuou também,
espantado, ao reconhecer Margarida.

— Margarida! Pois era?… O reitor suspendeu-se, antes de concluir,
como se um pensamento súbito lhe ocorrera. – Não pode ser, não
pode ser. – E aproximando-se de Margarida, tomou-lhe o braço, com energia,
bradando-lhe: – Que quer dizer isto, minha filha? Que fazes tu aqui?

Margarida juntou as mãos, e, olhando para o reitor com uma expressão
particular, respondeu:

— Peço misericórdia!

— Para que culpa, minha filha?! – perguntou o padre, que não
tirava os olhos dela.

— Para a minha…

— Para a… Entendo! – disse ele, como falando para si. – E devo eu
consentir que?… Talvez que tenha razão – continuou, fitando em Margarida
um olhar de bondade e quase de respeita, e acrescentou a meia voz: – Seja
como quiseste, como Deus to inspirou decerto. – Depois voltando-se para Pedro:
– E que tens mais que ver aqui, homem!

— Tenho que pedir perdão a todos.

O reitor empurrou-o amigavelmente pelos ombros, dizendo-lhe:

— Vai, vai. Deixa isso para outra vez. Não temos agora vagar
para justificações.

— Mas, Sr. Reitor.

— Então! Vai para a tua vida, Pedro. E não me andes mais
de espingardas, que são más companhias.

Dando depois com os olhos nos poucos espectadores desta cena, que se conservavam
boquiabertos à porta, exclamou, todo irritado:

— E vocês que fazem aí pasmados? Quem vos chamou cá?
Não sois tão prontos para o trabalho. Andar! e ter cautela com
a língua. Ouviram?

Pedro saiu cabisbaixo. Os grupos dispersaram.

Logo que os viu retirar, o padre levantou Margarida, que se conservava de
joelhos e quase exânime e disse-lhe comovido.

— Foi um sacrifício heróico, Margarida, para o qual poucas
teriam fortalezas.

— Um sacrifício?

— Sim, não é a mim que iludiste, filha, que te conheço
bem e há muito. Vai ter com a verdadeira culpada e…

— Não a condene , Sr. Reitor; o seu anjo bom não a abandonou
ainda esta vez.

— Bem sei – respondeu o reitor. – Pois não te vejo eu aqui?
Mas vai, e acaba a tua obra abençoada, confortando-a e chamando-a ao
caminho do arrependimento. Eu também tenho a minha tarefa. E dou graças
a Deus por ter permitido que os meus deveres paroquiais me conservassem por
fora até estas horas. Até amanhã, minha filha;

E o reitor saiu, mas em vez de tomar o caminho de casa, voltou na direção
oposta.

Capítulo XXXV

A cena a que, um tanto imprevistamente, fizemos, no último capitulo
assistir o leitor, exige de nós algumas palavras de explicação.
Releve-se-nos, portanto, a rápida digressão retrospectiva, em
que vamos entrar.

Daniel, como tínhamos dito, prometera a si próprio falar uma
vez ainda a Clara, para atenuar a má impressão que a sua última
entrevista pudesse ter deixado no espírito da rapariga, e inspirar-lhe
de novo a confiança perdida.

Parecerá talvez um meio singular este de corrigir os efeitos de um
passo imprudente por outro mais imprudente ainda; mas a razão humana,
sofismando com a maior candura do mundo, concebe muitas vezes projetos assim.

Em Daniel, sobretudo, eram freqüentes estas resoluções
irrefletidas. Inspirava-lhas um sentimento de mal fundado brio; mas nem sempre
era bastante a força do seu caráter para briosamente as sustentar
até ao fim.

Não aprendera ainda a desconfiar de si, a ponto de fugir como devia,
a essas ocasiões de tentação.

Foi por isso que, esquecido já das suas promessas a Clara, renovou
outra vez os antigos passeios pelas circunvizinhanças da casa dela,
sempre com esperança de obter a entrevista, que imaginara necessária
à reivindicação do seu crédito.

Clara evitava, porém, todos os ensejos de se encontrar com ele, constrangendo-se
até, para isso, a um estreita reclusão.

Depois da cena da fonte, prometera ela a sua irmã e ao reitor não
falar com Daniel, até estar efetuado o casamento, que o pároco,
mais do que nunca, procurou acelerar.

Assim todas as tentativas de Daniel para vê-la e falar-lhe, ou na rua
ou na janela, saíam-lhe baldadas.

Longe de o desanimar, este mau êxito antes o estimulou, e irritado
pelas dificuldades que encontrava, formou a resolução mais audaz.

Um dia, entrando no quarto, Clara encontrou no chão e próximo
da janela, que deixara aberta, um papel dobrado.

Abriu e leu. Era um bilhete de Daniel a pedir-lhe, nos termos mais respeitosos,
uma entrevista – a única. Alegava em favor da sua pretensão,
o não poder resignar-se à desconsoladora idéia de ser
mal conceituado por Clara; prometia e jurava respeitá-la como irmã,
pois como tal a considerava já; e acrescentava que não deixaria
de a perseguir , até que ela condescendesse a escutá-lo. Se
receava, dizia ele no fim, que essa entrevista desse lugar a interpretações
injuriosas, regulasse e impusesse elas as condições debaixo
das quais a concederia.

Esta carta, que não primava em laconismo, parecia, em boa lógica,
dispensar a entrevista requerida e na qual pouco mais restava a fazes do que
desenvolver o tema, já tão extensamente assim parafraseado por
escrito. mas a lógica não domina de ordinário situações
daquelas.

Clara não respondeu ao bilhete e continuou, mais que nunca, a evitar
Daniel.

De parte deste continuaram as imprudências, às quais servia
de novo estímulo o despeito, esse poderoso fermento de paixões
nas almas mais sujeitas a elas.

Outro bilhete, recebido por Clara da mesma maneira, instava ainda com maior
veemência pela entrevista pedida.

Clara estava para referir tudo a Margarida, mas faltou-lhe o ânimo.

Este estado de coisas continuou por algum tempo mais; até que um dia
Clara, animada de confiança em si, que não perdia nunca, e na
boa fé, que depositava nas promessas dos outros, resolveu consentir
em escutar Daniel.

Não lhe prometia ele ser essa a condição indispensável
para não a perseguir de novo?

— Acabe-se pois este constrangimento em que vivo – dizia ela. – Que
posso recear? A minha boa estrela não me abandonará. Formada
essa resolução, seguia-se a regular maneira de a levar a efeito.

A curiosidade pública trazia muito vigiada a casa das duas irmãs;
era pois difícil iludi-la. Demais, a promessa feita ao reitor e à
Margarida embaraçava Clara. Daí, diversos expedientes lembrados,
pesados e postos de lado, até enfim terminar pela adoção
do pior de todos.

O excesso de prudência e as cautelas conduz muitas vezes a imprudências
mais perigosas.

Clara comunicou a sua resolução a Daniel; este, exultando pela
confiança que nela via transluzir, agradeceu-lhe com efusão,
e prometeu a Clara, e a si próprio, mostrar-se digno dela.

Assim se preparava a entrevista, cujos resultados o leitor conhece já.

Margarida porém, que, observando as recomendações do
pároco, continuava a espiar a irmã, não era de todo alheia
ao que se passava.

Naquele dia sobretudo julgou perceber nos modos de Clara certa preocupação,
que a fez mais vigilante.

Eram trindades quando Margarida ia, como costumava, fechar por suas próprias
mãos a porta do quintal. Clara não lho permitiu; e com tal instância
teimou em se encarregar desse cuidado, aquela noite, que Margarida teve pressentimento
do que se estava preparando. Isto obrigou-a a ficar de pé, depois de
se recolher ao quarto.

Apagou a luz para que lhe não suspeitassem a vigília, e não
abandonou a janela.

Passado tempo, viu – e com que amargor da alma! confirmadas as suas suspeitas.
Clara saia furtivamente de casa. Margarida não hesitou; e com passos
incertos e o coração oprimido de tristeza, seguiu-a, sem ser
sentida. Valeu-lhe para isso a espessura das árvores que orlavam os
arruados do quintal.

Naquele momento, mais comovida das duas não era decerto Clara.

Enfim, ouviu-se o ruído de passos na rua exterior; a porta abriu-se,
e Daniel apareceu.

A impressão que neste momento experimentou Margarida, foi tal, que,
quase a fez sucumbir.

Cedo, porém, a reação daquela vontade enérgica,
apesar de feminil, dominou a luta. Margarida continuou a observar.

Daniel, ao princípio, foi grave, e mostrou-se fiel à promessa
que fizera; mas, pouco a pouco, influíram nele as condições
singulares daquela entrevista. As palavras ganharam fogo e, em breve, animava-as
já o entusiasmo impetuoso de vinte anos. Esquecia-se que viera para
justificar-se, e ia agravando a culpa.

Clara, escutando-o, não conseguia disfarçar completamente a
turbação que a dominava; mas foram sempre dignas da noiva de
Pedro as palavras com que lhe respondia; assim a não traísse
o tremor da voz, a ânsia de respirar, e, mais que tudo isso, o fato
de se achar ali, só, naquela hora da noite, embora lhe atenuasse o
delito o pensamento da generosidade, que a animara a cometê-lo.

Mas os instintos nobres de Daniel só por momentos se deixavam adormecer
com as insidiosas carícias da fantasia; pouco bastava para os acordar
vigorosos.

Desta vez produziu efeito a salutar cantiga de Pedro.

Escutando-o, ambos se sentiram arrependidos de se acharem ali. Viram claro
toda a futilidade de motivos que, momentos antes, para eles justificavam de
sobra este passo irrefletido, e curvaram a cabeça.

— É meu irmão – murmurou – que fará aqui por estas
horas?

— Trazido talvez pela mão de Deus para… – disse, quase para
si, Clara, no mesmo tom de voz.

— Adeus, Clara; perdoe esqueça mais esta imprudência minha.
prometo-lhe que será a última. E de hoje em diante…

— Adeus.

Foi neste momento que Pedro os interrompeu pela primeira vez.

O resto já é sabido.

Quando, no momento em que Daniel saía, Clara reconheceu a voz do noivo,
soltou um grito de terroso, e, fechando instintivamente a porta, caiu desfalecida
na rua do quintal.

Foi então que Margarida correu, que a arrastou nos braços para
longe daquele sítio, e depois, sacrificando a sua reputação
ao futuro da irmã, veio cair aos pés de Pedro, como a verdadeira
culpada.

O conceito que Pedro formava do caráter de Margarida não o
tinha deixado imaginar sequer que pudesse ser ela a que aceitara a entrevista
com o irmão. Apesar de todo o seu amor por Clara, era maior ainda a
confiança que depositava em Margarida.

O que viu depois espantou-o, mas deu-lhe grande alívio.

Clara ignorou tudo quanto ultimamente se passara, pois durante todo este
tempo, não recuperara os sentidos. A noite toda levou-a num quase delírio,
no qual imaginava ver Pedro e Daniel travando uma luta fratricida.

Margarida, velando a cabeceira da doente, torcia as mãos de desespero.

— Meu Deus! Meu Deus! – dizia ela. – Se lhe não passa este delírio,
tudo está perdido. Pedro saberá a verdade.

Pela madrugada, porém, Clara sossegou; um sono reparador acalmou-lhe
a febre e, após ele, só ficou o abatimento e uma palidez geral
que denunciava a crise terrível que tinha vivido.

Margarida, ao despertar dum sono, também inquieto, por que mal passara,
encontrou-a acordada e já aparentemente tranqüila. Receando renovar-lhe
a crise em nada lhe falou. Clara olhava-a em silêncio, mas como que
não ousava também interrogá-la.

Afinal fez um esforço, fitou a irmã nos olhos arrasados de
lágrimas e disse com desalento.

— Tudo está acabado! De hoje em diante, todos me apontarão
ao dedo e me chamarão uma rapariga perdida.

Margarida não pode também reprimir as lágrimas.

— Que estás a dizer, Clarinha? Foi mau o passo que deste, foi;
mas sossega. Eu, que te ouvi, sei que estás inocente.

— Ouviste?

— Tudo… Eu sabia… Eu suspeitava a verdade.

— Mas ele…

— Ele… Pedro? Nada sabe ainda.

— Nada sabe? Queres enganar-me, Margarida? Pois não surpreendeu
ele o … outro, quando…

— Mas ignora que fosses tu…

— Então quem julga que era?

Margarida calou-se embaraçada, e desviou a vista do olhar fixo da
irmã.

— Não sei, mas… tenho a certeza de que ele não suspeita
de ti… E sabes? é preciso fazer agora por te levantares, e alegrares-te,
para que, se ele vier por aí, não conheça ao ver o estado
em que estás, a verdade, ou suspeite mais do que a verdade; que é
ainda muito pior. Vamos, veste-te; foi uma nuvem a de ontem; uma nuvem que
passou. Hoje está um sol tão vivo – acrescentou, abrindo as
portas das janelas – que dá força e alegria. Vê. Ora anda,
levanta-te.

Enquanto Margarida assim falava, Clara parecia engolfada em profunda abstração.
Afinal, como se nada tivesse percebido de quanto ultimamente Margarida lhe
dissera, exclamou com vivacidade:

— Guida, eu quero saber como isto é. Pedro soube que estava
uma mulher ontem à noite no jardim. Se, como dizes, ele não
suspeita de mim, de quem pode pois suspeitar?

Margarida não respondeu, e abaixou os olhos perturbada.

— Guida, dize-me a verdade – continuou Clara mais inquieta já.
– Pedro julga-me inocente.

— Julga.

— Quem é pois a seus olhos a culpada?

A confusão de Margarida serviu de resposta.

De pálidas que estavam, tingiram-se então de um rubor de indignação
as faces de Clara. meia erguida no leito, os olhos animados, os lábios
trêmulos, exclamou:

— Ele suspeita de ti! de ti! Margarida? Pedro suspeita de ti? E pôde
ter um pensamento… e pôde imaginar que tu serias… Atreveu-se a acusar-te!
Ele? Pedro! Mas diz-me, Guida, Como ele fez isso? Quem lhe deu esse direito?

— Fui eu.

— Tu!

— Sim, fui eu. Não lho poderei eu dar? – acrescentou Margarida,
quase sorrindo, e, afastando os cabelos desordenados, que cobriam a fronte
da irmã.

— Entendo. Perdeste-te para me salvar. Limpaste com os teus vestidos
a lama dos meus, para me apresentares pura aos olhos do meu noivo, que com
razão me supunha culpada! Entendo. Viste-me perdida, e fizeste como
aquela criança que, há tempos, se afogou para livrar um irmão
da corrente; salvaste-me, mas afundando-te. E havia eu de consentir nisso,
Margarida? Tão má idéia fazes tu de mim, para imaginares
que aceitaria tu um sacrifício igual? Não; quero que Pedro saiba
tudo; que me perdoe ou que me despreze depois; a uma ou outra coisa me sujeitarei;
mas sacudir sobre a tua cabeça a vergonha que chamei sobre mim, Oh!
isso…

Margarida tomou-lhe afetuosamente as mãos e em tom persuasivo pôs-se
a dizer:

— Ora escuta, Clarinha. Hás de primeiro ouvir-me com muito sossego
e muito juízo e depois dirás se eu tenho razão. Queres
contar a verdade a Pedro, dizes tu. Que fazes com isso? Torna-lo infeliz ,
fazes com que entre ele e o irmão exista sempre, daí por diante,
um motivo para aversão; e a ti, que amas Pedro, apesar de uma leviandade
de momentos, e a mim, que te amo, e a nós ambas, e a todos, a todos
vais fazer infelizes. Eu que posso perder em que Pedro continue na mesma suspeita?
Se ninguém mais a tem? – forçou-se ela a dizer, mas baixando
os olhos, porque bem sabia que mentia. – Ele não é capaz de
a divulgar. E depois, olha, Clarinha, quem nunca pensou em grandes futuros,
não tem que ter saudades de projetos desfeitos. Eu já não
formo projetos há muito; acredita. Cansei-me. Hoje recebo tudo da mesma
maneira. E olha – continuou sorrindo – que dentro em pouco, chego a não
diferenciar o que é bem do que é mal. Tenho-me feito assim.
Que lhe hei eu de fazer? Mas tu, minha pobre irmã, que ainda fazes
tantos projetos, não te custaria a perder o mais risonho de todos?
De mais a mais, eu tenho uma dívida antiga a pagar-te, e não
sossego enquanto a não pago. Lembras-te quando me vinhas ajudar nas
tarefas, e repartias comigo a tua ração de merenda? São
serviços que nunca mais esquecem. Deixa-me pagar-tos da maneira que
posso. Se soubesses como é uma consolação para os pobres
achar um meio de saldar as suas dívidas! Então, vamos, prometes
não dizer nada?

— Guida, Guida! O que me pedes é impossível. Seria um
grande pecado, se eu deixasse assim a outra expiar a falta que é toda
minha.

— Clarinha, não vês que, de outra sorte, causas a desgraça
de tantos?

Clara levou as mãos às faces e calou-se.

Neste momento, o reitor entrara de mansinho na sala. Pousara o chapéu
e a bengala, e pusera-se a contemplar as duas irmãs, que lhe não
sentiram a entrada.

Passado algum tempo de silêncio, Clara levantou de novo a cabeça,
e com voz lacrimosa, exclamou:

— Pois deverei aceitar este sacrifício, meu Deus?

— Deves – respondeu o reitor, adiantando-se. – É necessário
respeitar inspirações dos anjos como este! – e apontava para
Margarida. – Eu também hesitei ao princípio, mas, depois que
julguei melhor, resolvi obedecer-lhe. Minha filha, o que se passou na noite
de ontem, tem-no por um aviso do céu. Dá graças a Deus
por te não haver abandonado a tua boa estrela, e faz por nunca mais
incorrer em um perigo daqueles. Mas aceita; não é só
a tua felicidade que recebes do sacrifício da tua irmã, é
a de Pedro e a de uma família inteira, é a da própria
sacrificada, pois não é assim, Margarida?

— Se for preciso que lho peça de joelhos… respondeu a bondosa
rapariga.

— Não há de ser. Agora vou procurar Daniel. A Pedro já
eu confortei. Consegui dissuadi-lo de vir aqui, porque suspeitei que sua vinda
podia ser funesta, enquanto se não desvanecessem naqueles olhos todos
os sinais e lágrimas. Daniel não pude encontrar ainda… O pobre
rapaz errou toda a noite por esses caminhos, e Deus queira….

— Jesus, meu Deus – exclamou Margarida fazendo-se pálida. –
Acaso receia que ele… ?

— Tenho fé que nenhuma desgraça sucederá; mas
é mister olhar por isto. Adeus.

Capítulo XXXVI

As vagas apreensões do reitor, em relação à Daniel,
comunicaram-se a Margarida, e nela adquiriram maior intensidade. As afeições
arraigavam-se profundamente naquele bom coração; baldado era
impedir que viessem à luz e florescessem; a cada momento, recebiam
elas uma vida nova, e desenvolviam-se, como estas árvores que, cortadas
todos os anos, rebentam a cada primavera, brotando jovens renovos.

Vão lá cobrir de gelo um coração assim. Tem vida
de sobra para o fundir todo em lágrimas, e inflamar-se depois ainda.

Tendo salvado a irmã, a generosa rapariga só tinha agora, orações
para pedir ao Senhor a salvação de Daniel. De si esquecera-se!
– Sublime esquecimento!

Cumprindo o que dissera, pusera-se o reitor a caminho, a procurar Daniel.
Levava o coração apertado o bom do pároco, ao atravessar
lugares, onde, segundo os seus cálculos, mais provável seria
encontrá-lo.

Muitos desses lugares eram os mesmos que, havia anos, seguira com uma intenção
análoga – a de espiar os passos do seu pequeno discípulo, que
já então mostrava o que viria a ser.

Lembrava-se agora o reitor daquele dia, e de como fora encontrar o rapaz,
no mais remoto sítio da aldeia, em diálogo pueril com a pequena
pastora, que hoje, por notável coincidência, tão intimamente
se achava ligada outra vez ao seu destino.

Não sei que idéias associadas estas trouxeram consigo, que,
muito contra o que era de esperar, o reitor pôs-se a sorrir.

Dir-se-ia que estava entrevendo um desenlace feliz a todo este enredo, e
que, a pensar naquilo se esquecera das críticas circunstâncias
presentes.

Mas as idéias negras voltaram cedo a assombrar-lhe o semblante.

— Que será feito do rapaz? – dizia o padre consigo. – Esta gente
da cidade é tão sujeita a loucuras! É ver aquele infeliz,
de quem falaram as folhas do Porto, que, não sei porque histórias
de amores, se atirou das Virtudes abaixo. Quem me diz a mim que Daniel…
em um momento de desespero… Nossa Senhora nos valha! Mas tem-se visto coisa!…
Que gênio aquele! A quem sairá este rapaz? A mãe, uma
santa mulher, o Senhor a tenha em glória; o pai, um homem sério…
Mas, na verdade, dá-me que pensar este desaparecimento! Ele não
dormiu em casa… Não teve ânimo de se encontrar com o irmão,
talvez… Santo Antônio nos acuda! Quem sabe se iria para o Porto? Pode
ser. Antes fosse.

Ia pensando nisto o velho pároco, quando ao tomar por a ponte de madeira,
que atravessava um despenhadeiro, de cujo fundo pedregoso chegava aos ouvidos
o fragor medonho de uma torrente , se encontrou, face a face, com o objeto
de sua pesquisa.

Passou um calafrio pelo reitor ao ver Daniel naquele lugar, e ao reparar-lhe
nas feições.

Daniel estava excessivamente pálido e com o rosto desfigurado pela
vigília, e mais ainda pelas angústias do espírito que
naquela noite o torturavam.

Olhava com a vista espantada, e numa espécie de fascinação
o abismo a que ficava sobranceiro, e pareci atento a uma voz interior, que
o impelia ao suicídio.

O reitor parou, fixando nele um olhar perscrutador.

— Que faz aqui? – perguntou-lhe, segurando com força pelo braço,
como se pretendesse desviá-lo do precipício.

Daniel levantou para o padre os olhos entorpecidos, e em seguida, baixando-os
de novo para o fundo do despenhadeiro, respondeu com uma frieza que fez estremecer
o velho:

— Estava a fazer contas comigo mesmo; assistia a meu julgamento e…

— Ora, vamos. Não seja criança. Deixe-se de loucuras.
Venha-se embora. Não queira fazer a infelicidade dos mais, dos que
os estimam, já que a sua lhe merece tão pouca importância.
Lembre-se do seu pai, e veja lá se quer pagar-lhe assim os sacrifícios
que tem feito para si. Venha comigo.

— Sr. Reitor, não se ocupa de mim. Repare que está falando
com um miserável. Não creia que me pode regenerar pelo arrependimento.
Eu sou relapso. A minha alma fraca sabe sentir mas não sabe vencer-se.
Sabe sentir, disse eu? Nem isso. Em mim já se apagou todo o sentimento
moral.

— Não diga blasfêmias, filho, não descreia assim.
A fé é o primeiro passo para a regeneração de
que fala.

— A fé? Agora?… Tenho-a na quietação da morte.
– E outra vez fitou a vista na torrente.

— Chama quietação à morte? Engana-se; depois dela
é que principia muitas vezes o maior movimento, o movimento sem fim,
sem remissão, o eterno. Mas oiça, Daniel; eu concebo o desespero
do seu coração neste momento. Pesa-lhe o que fez? Tanto melhor.
Não o quisera ver tão endurecido, que dormisse tranqüilo
depois das cenas desta noite. Sente doloroso o pungir dos remorsos; pois é
essa a porta da expiação.

— Remorsos! E daqueles que só acabarão, quando este amaldiçoado
coração deixar de bater.

— Que durem como preservativo de novas loucuras, e não virá
mal daí. Mas escute: julga haver destruído o futuro de seu irmão,
imagina que lhe espremeu a esponja de fel no copo que o pobre moço
preparava para levar aos lábios? E assim esteve para ser; e, se fosse,
também eu não sei que vida se prepararia para esse seu coração
incorrigível. Mas tranqüilize-se: Deus foi misericordioso; enviou
um de seus anjos protetores. Tudo está salvo.

— Salvo?! – Que salvação pode haver? Como desviar a desgraça
iminente sobre a cabeça deles?

— Então não lhe estou eu a dizer? Esquece-se das asas
do anjo? Clara foi protegida por elas. Pedro ignora que fosse a noiva dele
a que esteve no jardim a noite passada.

— Não queira iludir-me; Pedro surpreendeu-me quando…

— Bem sei. Mas não a viu.

— Não se precipitou ele contra mim, com a raiva do ciúme?

— A estas horas está arrependido.

— Arrependido? Não o vi eu ainda correr, cego de paixão,
para o quintal? Diga-me o que sucedeu depois. Clara?…

— Já não estava lá quando ele entrou.

— Pedro?

— Retirou-se passado tempo, manso e pesaroso.

— Mas…

— Em uma palavra, Pedro julga haver-se enganado.

— Enganado? E como podia enganar-se?

— Sendo outra a mulher da entrevista.

— E quem mais podia ser?

— Margarida, a irmã de Clara.

— Mas ela pugnará pela sua inocência?

— Pelo contrário. Foi ela quem se acusou.

— Ela? E levou-a a isso?

— A felicidade da irmã leviana, mas não criminosa, cujo
futuro viu ameaçado.

— E existem ainda anjos assim neste mundo, Sr. Reitor?

— Existem, existem, homem descrente e desalentado, existem – respondeu
o padre com gesto severo – e sirva-lhe esse exemplo heróico, para lhe
dar crença e fortaleza.

— E há quem lhe aceite a abnegação?

— Assim é preciso. Ninguém pode recusar sem sacrificar
alguma coisa, além da própria felicidade.

Daniel calou-se. Olhou mais uma vez para a espuma da torrente; mas eram já
menos poderosas as seduções do abismo. Levantou depois os olhos
ao céu, e, a meia voz, disse, quase só para si:

— Como me sinto pequeno e miserável, diante daquele exemplo!
E há quem julgue em decadência moral o mundo, ao qual descem
ainda almas assim.

E calou-se outra vez.

O reitor observava-o.

Depois de algum tempo de silêncio, o padre, pousando a mão no
ombro de Daniel, disse-lhe afavelmente.

— E por que não pede a essa alma, que admira tanto, um pouco
da sua angélica fortaleza? Por que não procura purificar a natureza
demasiado terrena, do seu malfadado coração, na abençoada
influência dela?

— E ser-me á concedido?

— É; siga-me – respondeu o reitor, não disfarçando
o seu contentamento. E, dirigindo o caminho, prosseguiu: – Talvez que vendo-a,
tenha memórias a avivar. Mais oiça, Daniel; se, como diz, desconfia
do coração – e tem razão para isso – faça por
o subjugar, e deixe dominar a consciência, a consciência, que
ontem mesmo, através da loucura – que foi loucura decerto aquilo –
que ontem mesmo lhe devia estar exprobrando o seu mau proceder. Agora veja
também como se apresenta a seu irmão. Olhe que é necessário
que ele viva na crença em que está, ou morre para a felicidade.
Veja o que faz. Vamos.

Daniel, com a cabeça inclinada sobre o peito seguiu maquinalmente
o velho reitor.

Capítulo XXXVII

Pelas dez horas da manhã desse dia, estava Margarida na sala, onde
ordinariamente trabalhava, tendo à volta de si, uma turba de rapariguinhas,
ocupadas em diversos trabalhos de costura.

Em pé, junto dela, dava uma destas lições de leitura.
Margarida seguia o texto, olhando por cima dos ombros da criança, corrigindo-lhe
os erros, às vezes, com um sorriso de afabilidade, outras com uma voz
inflexão de voz maternalmente severa.

Era nos Evangelhos que a pequena lia.

O reitor recomendara o livro à Margarida, dizendo-lhe que o ensinasse
às discípulas, que era guia seguro.

A criança lia naquele momento a parábola do filho pródigo,
em S. Lucas.

— "E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o Céu e diante
de ti; e daqui em diante não sou digno de ser chamado teu filho.

"Disse, porém, o pai aos seus servos: Tirai o melhor vestido
e vesti-lho, e metei-lhe um anel no dedo e os sapatos nos pés:

"E trazei o bezerro gordo, e matai-o, e comamos e alegremo-nos;

"Porque este meu filho era morto e reviveu, e tinha-se perdido a achou-se.
E começaram a alegrar-se"

O reitor, que não usava cerimônias em casa de suas pupilas,
entrou neste momento com Daniel, na sala imediata. Percebendo que Margarida
ainda estava ocupada com a tarefa, que de tão boa vontade tomara sobre
si, disse a Daniel, convidando-o com um gesto a sentar-se, e fazendo-lhe ao
mesmo tempo sinal para que não interrompesse a lição.

— Esperemos. São perto de onze horas. Deve estar a acabar. –
E acrescentou, suspirando:

— Que rapariga esta, meu Deus! Depois do que passou ontem, já
hoje a cumprir as suas obrigações, com aquela serenidade do
costume! É admirável, na verdade! – E depois – continuou ele,
falando ainda a meia voz – se soubesse, Daniel, como nobremente se votou ao
trabalho, ela, a quem a irmã franqueava tudo quanto possuía?
Outra que fosse… mas aquele coração é de um quilate!
Que penetração de espírito, que luz e inteligência
aquela! Fez quase por si só a sua educação.

— E foi esta a que se sacrificou? – perguntou Daniel.

— Foi.

Ambos de novo se calaram.

A criança concluía neste momento o texto bíblico:

— "Ele, porém, lhe disse: Filho, tu sempre estás
comigo, e todas as minhas coisas são tuas.

"Convinha-nos, porém, alegrar-nos e folgar; porque este teu irmão
era morto e reviveu, e tinha-se pedido e achou-se"

Um beijo, que o reitor e Daniel ouviram distintamente, foi a recompensa concedida
por Margarida à discípula, ao terminar a leitura, que ela fizera
com inteligência e numa quase expressiva melopéia, perfeitamente
adequada à poesia dos versículos.

Depois foi a voz de Margarida, que lhe chegou aos ouvidos; sonora, suave,
melancólica, cheio de sentimento e bondade, ecoou saudosamente no coração
de Daniel, que mal podia explicar a natureza da comoção que
experimentava ao ouvi-la.

— Olha, Ermelinda, – dizia ela – Hás de ver se decoras, para
que nunca te esqueçam, aquelas palavras de Cristo: "Há
mais alegria no céu sobre um pecador, que se arrepende do que sobre
noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento". Diz
isto mesmo a história que leste. Jesus Cristo falava ao povo de maneira
que o povo todo o entendesse; por isso lhe contou a história do filho
pródigo. O Céu é também a casa do pai, onde se
recebem com festas e alegrias, os pecadores arrependidos, esses filhos pródigos
do Senhor. É uma grande consolação o saber que não
há pecados, que uma contrição sincera não possa
remir; alma tão perdida do mal, que não possa ainda voltar-se
com esperança para o Céu.

O reitor trocou neste momento um olhar significativo com Daniel, que parecia
recolher com avidez todas as palavras de Margarida. Estavam elas exercendo
em seu coração o efeito dum bálsamo salutar.

Margarida, depois de breve pausa, prosseguiu, como deixando-se levar pela
corrente de seus pensamentos, e falando mais para si, do que ainda para as
crianças que a escutavam:

— Cada alma perdida, que se arrepende, é uma vitória
do nosso Anjo da Guarda sobre o espírito do mal. A paixão, que
nos trazia cega, deixa-nos enfim, e calcamo-la então aos pés,
como aquela Nossa Senhora da Conceição fez à serpente
tentadora. E nunca é tarde para o arrependimento. Quem caminhasse com
os olhos tapados para um despenhadeiro, podia salvar-se ainda, abrindo-os
junto da borda. Junto? Às vezes até um ramo, a que nos seguremos
na queda, nos pode salvar. A fé na misericórdia de Deus é
como esse ramo. Seja o arrependimento sincero, e um olhar do Senhor nos amparará.
Uma oração bem sentida, bem da alma, à borda do túmulo,
pode chamar sobre uma vida inteira de pecados a luz do perdão divino.

Margarida dissera estas palavras, pausada, serenamente e com tanta unção
religiosa, que Daniel sentiu-se comovido. Olhou para o reitor, viu-o atento,
imóvel; o padre parecia estar escutando ainda aquela voz, que o prendia,
como se pregasse uma doutrina nova e diversa da que tantas vezes ele próprio
proclamara do altar à leitura dos Evangelhos.

Daí a alguns instantes, Margarida despedia-se das suas pequenas discípulas
com um beijo, e uma palavra afetuosa para cada uma. Seguiu-se o rumor que
elas faziam ao saírem tumultuosamente e depois o silêncio.

Margarida ficara só.

— Agora chegou a nossa vez de sermos doutrinados – disse o reitor para
Daniel. – E esteja certo que é são a doutrina que vier daquela
boca.

Aproximando-se da porta de comunicação entre as duas salas,
abriu-a de mansinho, e disse, metendo a cabeça pela abertura.

— Licença para dois.

Margarida que estava sentada, com a cabeça entre as mãos, e
absorta em profundo meditar, ergueu-se de súbito, à voz do reitor,
e caminhou para ele, repetindo:

— Licença para dois? Pois quem nos traz consigo?

Mas, antes de receber resposta divisou por entre a porta, meia aberta o rosto
pálido de Daniel.

Ao reconhecê-lo, Margarida estremeceu, e voltou para o reitor o olhar
interrogativo e inquieto.

O Padre entrara já na sala.

— Que foi fazer? – disse-lhe Margarida, a meia voz e quase assustada.

— Deixa-me. Fiz o que entendia – respondeu o pároco; e voltando-se
para Daniel, que hesitava em entrar, acrescentou: – Entre, Daniel, entre.
Aqui tem a santa e corajosa rapariga que…

— Senhor!… – exclamou Margarida, erguendo para ele as mãos,
como a implorar caridade.

Daniel deu alguns passos na sala.

— O que há de dizer o irmão ingrato e perverso, à
irmã sublime e generosa? – disse ele fixando em Margarida um olhar
de simpatia e de respeito que a obrigou a desviar o seu.

Seguiu-se um silêncio constrangedor para ambos.

Foi ela a que primeiro sentiu a necessidade de pôr termo a esta situação.

Para isso era-lhe preciso um esforço poderoso, enérgico, que
rompesse todas as peias da timidez que a enleava.

Não a abandonou ainda desta vez a força com que sabia dominar-se.
Foi já com aparente firmeza que, dentro em pouco, conseguiu responder:

— Sr. Daniel, esses cumprimentos não são de ocasião,
nem eu sou para eles. Coisas mais sérias nos devem ocupar. A felicidade
de duas pessoas está-nos confiada; está de alguma sorte nas
nossas mãos. Uma palavra só a pode perder; bem o sabe. É
preciso que nós todos três tratemos de segurar-lha. Por mim,
fiz o que estava ao meu alcance. Mas não dê ao sacrifício
maior valor que o que ele tem. Eu pouco tinha a sacrificar, além da
paz da consciência. Essa, já vê que a conservei; o mais…

— A paz da consciência! Foi essa mesma que eu perdi e perdi-a
para sempre! – disse Daniel com abatimento.

— Não diga isso – continuou Margarida, com a presença
de espírito que, passada a primeira turbação, pudera
readquirir. – Não diga isso. Pedro ignora tudo. É o principal.
Clara está arrependida de sua imprudência. Mais alguns dias,
para esquecer de todo o abalo a noite de ontem, e tornará a ser alegre
como dantes. Sossegue, pois. O Sr. Daniel há de continuar a gozar da
estima de todos, dos que mais ama, e… ninguém haverá sacrificado.

— Esqueceu-se de si, Margarida. E julga que a devem, ou a podem esquecer
os outros?

— Os outros? Quando eu não me queixo, ninguém tem o direito
de me lamentar.

Estas palavras saíram-lhe dos lábios como irresistivelmente,
e com uma amargura, que o reitor julgou perceber.

— Aí, Margarida, filha – disse o velho, meneando a cabeça
com um modo expressivo, e sorrindo entre afável e descontente – olha
que até aos infelizes, até na desventura, é um pecado
o orgulho; sabes?

— Orgulho, Sr. Reitor? aí, creia que não o sinto. Orgulho
de quê? Mas é que de fato pouco tinha eu a sacrificar, e pouco
sacrifiquei. As vozes do mundo… – será orgulho isto, será
– mas é certo que não penso no que dirão. Além
de que, quando me fosse mil vezes mais custoso o sacrifício, como havia
de evitá-los? Achava melhor que a sacrificassem a ela, que tem mais
a perder? a ela, por quem prometi velar quando ás portas morte, mo
pediu, chorando, sua mãe? Bem vê que não.

O reitor, de olhos no chão, alisava com a manga do casaco o chapéu,
sem atinar palavras que respondesse.

— Mas não falemos em mim – continuou Margarida, dum modo cada
vez mais sereno. – Clara está melhor; temo porém ainda que possa
receber com firmeza e a sangue frio a visita de Pedro. Será possível,
sem causar desconfianças deles, adiar para mais tarde essa primeira
visita?

— É possível, é – respondeu o reitor, enquanto
que Daniel folheando maquinalmente um livro, parecia nem atentar no que se
estava dizendo. – O pobre rapaz está com remorsos de ter suspeitado
de Clara , e treme só com a lembrança de a ver.

— É necessário que se lhe faça acreditar que minha
irmã ignora e deve ignorar tudo o que se passou, ou pelo menos que
nada sabe das suspeitas de Pedro…

— Mas… – ia o reitor a dizer.

Margarida interrompeu-o continuando:

— É indispensável. Eu conheço muito bem Clara;
pode sujeitar-se a tudo, menos a ouvir Pedro, cheio de arrependimento, pedir-lhe
perdão, a ela, que é… que se julga a verdadeira culpada.

— Tens razão, Margarida – disse o reitor, depois de ter estado
algum tempo a ponderar sobre o caso – tens razão. E assim é
melhor, até porque se evitam explicações que não
poderiam ter muito bons resultados. Mas…

— E agora permitam-me que vá ver Clara, sim?

— Pois vai; mas… – insistiu o reitor, seriamente embaraçado
com alguma coisa, que ele queria dizer, sem encontrar maneira conveniente.

— Que é? – perguntou-lhe Margarida, percebendo aquela hesitação;
e acompanhava a pergunta com um sorriso de habitual tranqüilidade.

— Mas… isto com’assim não me pode sair da idéia – continuava
o padre.

— O quê?

— Sim… a falar a verdade… tu, minha filha…

— Eu… que tenho?

— Tu… assim… Valha-me Deus! não se pode fazer nada…

— Por quem é, Sr. Reitor. Não torne a falar nisso. Não
vê que pouco se me importa? Não lho disse já tantas vezes?

— Porém, Margarida, eu sou teu tutor, assim como de Clara; quero-te
como pai e não posso, não devo consentir que o castigo caia
sobre a cabeça inocente, sobre a tua cabeça, filha. É
contra a justiça, é contra a religião.

— Inocente! – redargüiu Margarida, a sorrir. – Que está
a dizer, Sr. Reitor? Quem é inocente neste mundo? Deixe, deixe cair
em mim isso que chamam de castigo, que encontrará pecados a remir;
e quisesse Deus que mos remisse todos.

— Ainda assim… Eu nem sei o que faça… Valha-me Nossa Senhora,
valha! Sempre é uma esta!

E, ao dizer isto, o reitor olhava Daniel, como que a ver se lhe viria auxílio
dali.

Daniel, de braços cruzados e cabeça inclinada, parecia alheio
ao diálogo dos dois.

Margarida aproximou-se do reitor.

— Não sabe o que há de fazer? Digo-lho eu . Siga o seu
primeiro pensamento; foi o de ajudar-me. Por que há de agora desconfiar
daquilo que parecia aceitar com tamanha fé esta manhã? Não
tinha desculpa, se assim me deixava só a salvar Clara. Mas é
tempo de ir ter com ela. Adeus.

E dizendo isto, tomou-lhe a mão, que respeitosamente beijou, e ia
retirar-se.

Diante da porta encontrou Daniel, que a fez parar.

— Margarida – disse-lhe ele, com profunda agitação, manifestada
na voz e no gesto – essa resolução não é tão
unicamente de sua responsabilidade, como diz; sacrifica-se a sorrir, mas não
reparara que mais alguém pode sentir o sacrifício.

— Quem?

— Eu.

— Como?

— Que se dirá de mim, do meu caráter, vendo destruída,
por minha culpa a sua reputação, Margarida, e eu ocioso, tranqüilo,
descuidado… e feliz?

— E que se diria, se se soubesse a verdade? Qual acha de preferir?

— Pois bem. Oculte-se muito embora a verdade. Não quer sacrificar
sua irmã? Compreendo e admiro a nobreza dessa resolução,
creia. Mas não posso consentir que uma indesculpável leviandade
da minha parte seja a causa desse imenso sacrifício, sem que…

— Já lhe disse que não era imenso: mas que fosse, como
queria evitá-lo?

O reitor repetia a interrogação com os olhos.

— Pois não vê que a única maneira, Margarida, é…
Eu sei que sou indigno de aspirar a tanto, mas perdoe-me, a única maneira
é não me recusar a reparação que lhe devo: permita-me
que reuna ao seu o meu destino, já que a Providência…

— Bravo! atalhou o Padre, batendo com a bengala no chão – Isso
mesmo é que eu tinha aqui dentro a pesar-me; até que enfim respiro.

Margarida estremeceu ao ouvir Daniel, e instintivamente levou as mãos
ao coração como se fora ferida aí. Em poucos instantes,
as faces, de ordinário pálidas, passaram-lhe por cambiantes
rápidas de cor. Trêmula de ansiedade, sentiu vergarem-lhe os
joelhos e enevoar-lhe a vista. Valeu-lhe o apoio de um móvel próximo
para não cair. Por algum tempo tentou em vão responder; a voz
não lhe saía da garganta.

Daniel olhava-a ansioso. O padre esfregava as mãos exultando de júbilo.

Afinal, vencendo esta violenta comoção, e assumindo outra vez
a placidez habitual, respondeu com uma voz, onde sem dificuldade se podia
descobrir ainda um indiscreto tremor:

— Obrigada. É generoso o oferecimento… mas não posso
aceitá-lo.

— Que diz? exclamou Daniel.

O padre passou do júbilo à estupefação.

— Pois queria que aceitasse? Aceitá-lo-ia se estivesse no meu
lugar? Diga? Qual será o maior martírio; sofrer as murmurações,
as injúrias, os desprezos até, de milhares de pessoas, que afinal
de contas, nos são indiferentes, ou aceitar a compaixão de quem
nos é… de quem nos devia ser tudo no mundo? Daquele, a quem teremos
de dar todos os afetos, todos os cuidados, todos os pensamentos. Imagina bem
essa tortura?

— Mas, Margarida, quem lhe disse que é por compaixão
que eu lhe faço o oferecimento? Se o aceitar, creia que o agradecido
serei eu.

— Se essas palavras fossem sinceras, Sr. Daniel, era bem certo então
que possuía um desgraçado caráter! Receie sempre de si,
desses primeiros movimentos, a que obedece tão depressa. Já
que é tão fácil em mudar, ao menos faça por ser
mais forte contra si mesmo. Vença-se. Não está ainda
vendo o mal que pode fazer assim?

— Tem razão em duvidar de mim. O meu passado condena-me, porém
talvez seja injusta demais para comigo. Julga-me capaz de…

— Perdão; não julgo, não tenho o direito de julgar,
bem sei. Em todo caso, não posso aceitar.

— Margarida! – disseram-lhe a um tempo o padre e Daniel.

— Não, não posso aceitar – repetiu Margarida, já
com maior veemência. – Nunca me julgaria mais desonrada e perdida, do
que quando aceitasse uma proposta como essa, feita por outro qualquer motivo,
que não fosse a força do coração.

— Mas eu lhe juro que o meu coração…

— Oh, não diga mais! – disse Margarida, interrompendo-o. – Até
me faz mal ouvir-lhe esses juramentos; lembra-me os que ainda ontem fazia
a Clara. Repare no que ia a dizer; assim abre o coração, a quem,
momentos antes, nem conhecia sequer?

— Não há tal; – disse o reitor – diz tu que, desde criança,
já te conhece ele, e até…

— Oh! por quem é – atalhou Margarida, que previu logo onde o
reitor queria chegar. -Por quem é! O que ia dizer!

— Margarida – continuou Daniel – perdoe, se a consciência das
minhas culpas… e acredite que a estou sentindo bem amarga, mas perdoe-me,
se ela me não constrange ainda ao silêncio. Eu vejo que tem razão
para duvidar de mim; mas será só isso? Por que não me
confessa também que recusa porque sentindo insensível o coração,
desconfia dele igualmente?

— Desconfiar do meu coração! – disse Margarida, com uma
leve inflexão de ironia na voz, a qual os dois não perceberam,
e continuou: – Mas… é que não desconfio.

— Então?

— Conheço-o; e o que sei dele, como o que aprendi do seu, Sr.
Daniel, levam-me a recusar.

— Quer dizer que me não pode amar?

— Sim… julgo que sim. Eu desconfio que nem tenho coração!
Eu sei lá! Não o sinto bater, pelo menos. Bem vê que não
devo aceitar. Adeus.

E com um singular sorriso nos lábios saiu da sala, onde ficaram os
dois, atônitos e silenciosos.

Quem, naquele momento, pousasse a mão no coração de
Margarida, como veria desmentidas as suas últimas palavras.

Capítulo XXXVIII

Chegou talvez para mim o momento do castigo – murmurou Daniel, passado algum
tempo, depois de Margarida se retirar.

— Que está a dizer? – perguntou o reitor, olhando-o admirado.

— Que talvez àquelas mãos, das quais até hoje
só tem saído o bem, vá Deus confiar a arma de uma vingança
cruel.

— De que maneira?

— Pois não ouviu a firmeza daquela resposta?

— E então?

— E então? É que eu tenho o pressentimento de que, se
um dia se atear em mim uma paixão violenta e fatal, e tiver de ser
repelida assim, sucumbirá com ela este coração que…

— Ora adeus! Sabe os objetos que se partem batendo de encontro às
rochas? São os fortes e rijos; porque os outros, os moles, o mais que
podem é tomar nova forma; quebrar é que não quebram;
e o seu coração é de umas branduras!

— Reconheço que o meu passado me não dá o direito
de ofender-me da ironia; custa-me até a entrar de novo em justificações,
que só me valem sorrisos, mas..

— Mas, ainda assim, sempre vai tentar mais uma vez – disse o reitor
sorrindo. – Ora ande lá.

— Ouça-me. É uma triste confissão para o meu orgulho,
a que vou fazer, mas é verdadeira. Há muito que tenho este pensamento;
até no tempo em que mais procurava evitá-lo, ele me acudia.
É por certo arriscado para qualquer mulher confiar em mim o seu amor,
menos em um caso, que até aqui se não dera ainda comigo.

— Então qual é esse caso?

— É se ela conseguir dominar-me; se a meus olhos se conservar
sempre à altura que dê à paixão, que me inspirar
a natureza de um culto. Há caracteres, para os quais é isto
necessidade. De ordinário, todos os meus esforços são
despojar desses prestígio, que me enleia, a mulher a quem amo; porém,
desde que o consigo, já não respondo por mim. Sei-o por experiência.
Mas, previa-o há muito tempo, se me encontrar com uma destas naturezas
superiores, para as quais nunca se extingue o resplendor que as rodeia, há
de fixar-se este coração volúvel, e não haverá
para elas o risco, de que das minhas afeições lhe possam resultar
lágrimas.

— E conclui daí? – perguntou o padre, no mesmo tom, quase zombeteiro,
em que sustentava o diálogo.

— Que Margarida não podia recear do meu amor. Eu, que duvidava
já que viesse a amar seriamente, porque me julguei superior a todo
o predomínio, hoje…

— Hoje, mudou de opinião.

— E mudei, creia-o. Nunca me conheci assim. Ainda antes de a ver, quando
da sala imediata a estivemos escutando, não sei por quê, sentia
ao ouvi-la, reviver todo o meu passado, a parte mais pura dele.

— Sei eu – resmoncou para si o reitor.

— Depois que a vi, foram sensações novas para mim, as
que experimentei. Eu, que por tantas vezes, e a sorrir, tenho dado passos
na vida, que fazem recear os mais audazes; eu, que, para ser arrojado, não
careci nunca do forte impulso de uma paixão, pois me bastava o simples
estímulo de um capricho, hesitei há pouco, como viu, ao fazer
a proposta a que o dever e o coração me impeliam, hesitei de
timidez, como se fosse um sacrilégio de minha parte. Depois, ao receber
aquela recusa, pareceu-me sentir escurecer-se-me o futuro, e, pela primeira
vez na minha vida, senti-me desalentado com este mau êxito, em lugar
de encontrar nele incitamento para persistir, como tantas vezes o tinha encontrado.

— Desconfie dessas impressões súbitas e violentas, desconfie.
Margarida tem razão. Eu próprio já não me atreveria
a aconselhar-lhe o contrário. É melhor deixarmo-nos guiar pelas
inspirações daquela alma de anjo.

— Mas se eu a amo?

— Paixão de quinze dias! – disse o reitor encolhendo os ombros.

— Aí, não, não. Sinto-me seguro desta vez a jurar-lhe…

— Não jure, – atalhou o padre – não jure nada, homem
de Deus, que almas de outra têmpera, que não é a sua,
têm falhado, depois de jurarem. Lembre-se do que diz o Evangelho: "Seja
o vosso falar: sim, sim, não, não. Porque tudo o que daqui passe,
procede do mal". – Se não perder a idéia desse amor, trabalhe
por merecê-lo; mas não faça juras. Que, se alcançar
aquele coração, grande riqueza granjeia, isso lhe afirmo eu.
E não tenha escrúpulos de se deixar dominar, que melhor é
a cabeça de Margarida do que… Mas que fazemos ainda aqui? Vá,
vá ter com seu irmão. E veja como se porta. Não entre
em grandes explicações. Abrevie-as, quanto puder, que é
o mais prudente.

Daniel saiu da sala vagaroso e triste. O reitor, ficando só, conservou-se
por algum tempo pensativo.

Esta tácita meditação acabou-a ele, murmurando não
sei que mal distintas palavras, e depois, em tom mais perceptível:

— Contudo é pena. Remediava-se este enredo assim, e bem. Seria
talvez uma providência para o rapaz. E eu iria mais descansado deste
mundo, a dar contas da minha tutela no outro aos pais das raparigas. Mas lá
se a Margarida tem os seus escrúpulos… e a falar a verdade, com alguma
razão; e depois, o que é mais e muito mais, se ela não
se sente com inclinação para aí? Aquilo é uma
santa. Coração possui ela, mas para a caridade, que não
para amores. Paciência!

E, falando assim, caminhava lentamente o reitor de sala em sala, de corredor
em corredor, até se encontrar. quase sem saber de que maneira – tão
distraído ia – junto do quarto de Margarida cuja porta viu meio aberta.
Entrou.

Ao rumor de seus passos, ergueu-se, de súbito, uma mulher, que estava
de joelhos no chão, e debruçada sobre o leito com em um genuflexório.

Era Margarida.

Colhida de improviso, não teve tempo de enxugar as lágrimas
que em fio lhe corriam pelas faces descoradas. Em vão se esforçava
por desvanecer com sorrisos o efeito daquelas lágrimas e da expressão
de tristeza, que tinha profundamente gravada no semblante.

O reitor surpreendeu-a assim e olhou para ela inquieto.

— Que é isto? Lágrimas? Choros? – exclamou ele, levantando-lhe
a fronte, que Margarida inclinava, para esconder dos olhos do seu velho amigo
aquele indiscreto pranto. – Aí, filha, filha, que me dizias tu a pouco?
Era então mentira a indiferença que asseguravas? Eu logo vi…
Mas… valha-me… Deus… neste caso… para que fui eu?… Então
Margarida! – então! – então Nossa Senhora te valha, filha! Não
chores, olha que não sou teu amigo. Mas para que dizias tu?… Pois
está bem de ver, sempre custa… Vamos, sossega, mais vale dizer a
verdade. Isto assim não tem jeito. Sossega. Vá o mal a quem
o toca. Nem todos podem ser santos. Os santos?… Os santos estão nos
altares, ora adeus. Há coisas que são superiores ás forças
humanas. Não chores, filha; isso até é uma vergonha.
Pedro é bom e perdoará Clara, e, perdoando ele, quem tem o direito
de condenar? E se não perdoar… não sei o que lhe faça.
Quem mal a cama faz, nela se deita: ora é muito boa! Quanto ao mundo…
adeus, minha vida, o mundo é o mundo; importa lá o mundo! Era
o que faltava se por causa dele te ias agora sacrificar. Na verdade, que valia
a pena. Deixa estar, que tudo de há de arranjar. Verás. Mas
não chores; parece-me uma criança! Então, então,
Margarida? E aí estás chorando mais.

E o bom homem quase chorava também.

Efetivamente. como a todos nós sucede, quando dominados por a tristeza,
encontramos um coração compadecido, uma voz meiga a pretender
consolar-nos, quando reconhecemos verdadeira simpatia nas palavras de conforto
que nos dirigem, cada vez era mais violenta a explosão de sentimentos
em Margarida, mais abundantes as lágrimas,, mais sufocadores os soluços.

— Então, Margarida, filha, então?… – dizia o reitor,
deveras aflito, e, tentando todos os meios de acalmar aquela dor, acrescentou,
contra o seu costume: – Guida! Guida! Isso não é bonito.

Só passados alguns momentos é que Margarida conseguiu falar,
e, ainda com a voz entrecortada de soluços, disse para o reitor:

— Perdoe-me, perdoe-me, por quem é. Mas não pude, não
posso mais. Não julgue que me arrependo do que fiz, que me lembro de
recuar. Creia-me, pouco importa o mundo, o que dizem, o que virão a
dizer. Pouco me importa.

— Mas então este choro?

— Nem sei porque choro, eu mesmo não o sei. Mas faz-me bem o
chorar. Deixe-me, deixe-me por piedade.

— Mas, minha orgulhosa, por que não aceitaste tu a proposta
de Daniel?

— Isso é que nunca! – exclamou com impetuosidade Margarida,
e de novo lhe saltaram as lágrimas dos olhos.

— E aí estás a chorar cada vez mais! Mas isto não
deve ficar assim. É preciso dar-lhe remédio. Tua irmã
não pode querer…

— Mas se eu lhe juro que não choro por isso! Se eu lhe afianço
que pouco me importa o mundo!

— Mas, então, ó Virgem Santa, então por que choras
tu? Eu endoideço ainda hoje… endoideço. Sacrificas a tua reputação
para salvar a da Clara, e não choras por isso; tiveste na tua mão
o meio de remediar tudo, aceitando o leal oferecimento de Daniel, e que afinal
o pobre rapaz fazia do coração, recusaste sorrindo. E agora
venho encontrar-te neste estado, e dizes-me, e juras que não é
nada! Recusas confiar-me a causa! Margarida, é preciso saber, quero
saber por que choras assim!

— Agora não posso, não sei até dizer-lho. Se me
estima, se me quer, como diz, não me pergunte nada; não. Deixe-me
só, peço-lhe, por favor, por alma de minha mãe! Logo
volte, e, quando voltar, verá que me há de achar contente, prometo-lhe.
Que mais quer? Os abalos da noite passada causaram-me isto. Não sei
o que tenho. Vá, peço-lhe que vá. Então não
vai?

O padre olhou por muito para ela, e depois, tomando o chapéu, saiu
sem dar palavra, mas limpando uma lágrima também.

Margarida, vendo-o sair, deixou-se cair outra vez de joelhos sufocada pelo
choro.

— Fraca! fraca! – dizia ente soluços – que não tive forças
para me sustentar até o fim! Vá, vá, acabem de correr
por uma vez estas lágrimas; e que sejam as últimas; que ninguém
mas veja mais nos olhos. A causa… a causa… Oh! essa ninguém a há
de adivinhar.

— Enganas-te, Guida. Adivinhei-a eu já.

Margarida ergueu-se de repente, ao escutar estas palavras, que foram ditas
quase ao ouvido. Voltou-se. era Clara.

— Que dizes, Clara, que estás a dizer, filha?

No rosto de Clara, onde uma pouca costumada tristeza se desenhava ainda,
havia um ligeiro sorriso de malícia, da que se poderá chamar
angelical, se alguma vez for lícito associar estas palavras.

— Digo que te adivinhei, Guida. Que mais queres? estás descoberta,
minha reservada. Não tinhas confiança em tua irmã, e
assim te perdias por uma pessoa de quem desconfiavas! É ação
de santa, é; mas eu te prometo que isto não há de ficar
assim.

— Clara, tu não sabes o que dizes.

— Escuta. Que promessas, que oferecimentos eram aqueles do… do Sr.
Daniel? E por que não os aceitaste tu?

— Clarinha!

— Vamos. Eu ouvi tudo o que disse agora o Sr. Reitor. Não mo
queres dizer? Digo-te eu. Daniel propôs-te…

— Basta, Clara, basta. Bem sabes que não aceitei.

— E por quê? Isso mesmo é o que eu mais quero saber.

— Porque… não devia aceitar.

— Não devias?

— Não, não devia. És tu a que me vens dizer que
se pode, que se deve aceitar um esposo a quem…

— A quem? – interrogou Clara, fitando na irmã, um olhar inquisitorial.

— A quem não … amamos?

— E então é certo que não amas o Sr. Daniel? –
perguntou Clara, conservando em Margarida o mesmo olhar, e demorando intencionalmente
a articulação de cada sílaba.

— Que pergunta! – disse Margarida, abaixando os olhos confusa.

— E ainda não queres que te ralhe? Ora ouve, Guida. Desde hoje
que o desconfio. Passaste a noite na minha cabeceira. Eram três horas
quando dormias, e eu estava acordada então. Ora tu também tinhas
febres, também sonhaste em voz alta, e alguma coisa disseste.

— Que disse eu?- perguntou Margarida, com perturbação.

— Alguma coisa, algumas palavras soltas, certo nome, de que eu ao princípio
fiz pouco ou nenhum caso, mas em que depois me deu para cismar. E tanto cismei,
que afinal descobri, minha pobre Guida.

— O quê?

— Que esse teu coração não era por fim, o que
se supunha; não era o que eu e o que todos supúnhamos. E olha
que mais te quis por isso; porque eu gosto de quem tenha coração.

— Mas enfim, que queres tu dizer?

— Quero dizer que tu amas, que tu amavas, e, há muito, o Sr.
Daniel.

— Estás louca, filha?

— Não negues, ou ficamos de mal. Eu depois recordei-me do que
dizia o Reitor, de que Daniel foram em pequeno o teu conversado. Muitas vezes
te vi corar ainda, quando o Sr. Reitor, a rir, te caçoava com isso.
Ora eu sei como tu és… isto é, hoje é que me lembrei
que tens um gênio singular, tu;. Eu podia esquecer-me da minha afeição
de criança. Tu não, que tu tomas a sério. É teu
costume. Eu sei. Depois, certa maneira de falar… certo acanhamento… e
as lágrimas de há pouco… e as palavras de agora… e essa
má vontade com que me estás… e esse olhar que se não
atreve a levantar-se para mim… é certo, amá-lo; e por isso
pergunto: por que recusaste o seu oferecimento?

Margarida conservou-se por algum tempo silenciosa. Depois, por uma dessas
resoluções, que são raras em caracteres como o dela,
mas, enérgicas quando chegam a formar-se, disse com uma espécie
de desespero, revelado nas palavras, no gesto, nos movimentos, e tomando com
ímpeto as mãos da irmã, que apertou convulsivamente nas
suas:

— Por quê? Queres sabê-lo? Porque o amo. Entendeste agora?

— Não – respondeu Clara, que surpreendida por aquela exaltação,
não podia desviar os olhos do rosto de Margarida.

— Pois não vês, criança – continuou esta – não
vês, louca, que seria um martírio horrível, um tormento
que nem se imagina aceitar a compaixão do homem a quem se ama? Saber
que só para generosamente nos salvar a reputação, só
para isso, ele nos fez o sacrifício do seu futuro, das suas ambições;
que se abaixou condoído, para do chão nos levantar até
si! Há nada mais doloroso? Diz, desejas esse martírio? Conheces
o coração de tua irmã, dizes tu; e pensas que ele não
estalaria de angústia? E depois, se fosse só isso; mas quem
sabe? Um dia sempre entraria uma suspeita naquela alma; se a delicadeza fechasse
os lábios, lá estava o olhar talvez a revelar-lhe o pensamento
secreto de que tudo isto em mim fora um propósito, interesseiro e vil,
de abusar dos seus brios… Ai, Clara, e cuidas que se resistiria a esta idéia?
Cuidas que eu teria coragem para… Oh! deixa-me, deixa-me; fizeste-me já
dizer o que eu nem a mim mesma dissera ainda. Nunca mais me ouvirás
falar nisto, e, se é minha amiga, nuca mais me falarás também.

E, dizendo estas palavras, saiu arrebatadamente do quarto.

Capítulo XXXIX

Ao abrir as janelas do seu quarto de dormir, e ao franquear os pulmões
ao ar fresco da madrugada, a Sr.ª Teresa, a fiel esposa do nosso conhecido
João da Esquina, recebera, de mistura com o perfume das flores, que
andava nos ares, não sei que cheiro de escândalo de lhe desafiar
a curiosidade.

Para estas coisas tinha inquestionavelmente a Sr.ª Teresa um sexto sentido,
apurado como nenhum dos outros.

Segundo era seu costume, quando percebia em si tais manifestações,
pegou na cesta da meia, e veio tomar assento por detrás do mostrador,
e entre as sacas de arroz da loja de seu marido.

A menina Francisca, aquela mesma trigueira celebrada em octossílabos
por Daniel, viera sentar-se também ao lado da sua mãe. Era a
primeira vez que tal sucedia depois dos episódios que terminaram as
visitas do estouvado clínico.

Com os seus olhos travessos, e o sorriso malicioso já de volta aos
bem talhados lábios, valeu naquele dia aos pais uma afluência
maior de fregueses à loja.

A cada nova personagem que entrava, a Sr.ª Teresa dirigia, com um sorriso
de afabilidade, a pergunta sacramental:

— Então que se diz de novo?

E de cada vez esperava achar justificativa a voz do instinto de escândalo,
que, naquela manhã, tão alto berrava em si.

Por muito tempo foram , porém, malogradas estas esperanças.

Mas, aí pelas nove horas, entrou na loja o sacristão da freguesia,
a comprar cigarros – porque o Sr. João da Esquina, como é costume
nas terras pequenas, vendia tudo, desde o doce de chá, à vela
de sebo; e os cigarros entravam também na lista dos objetos do seu
negócio.

Era este sacristão um rapaz de cara rapada, e tipo de velhacaria,
sempre em olhares e suspiros diante da menina Francisca, em quem estes sintomas
de afeto não encontravam demasiado agrado.

— Ora aqui vem quem nos traz novidades fresquinhas – exclamou, ao vê-lo
entrar, a Sr.ª Teresa que, apesar da opinião que lhe ouvimos sobre
o poder nutritivo das aparas de hóstias e escorralhas de galhetas,
não era, ultimamente, de todo desfavorável às pretensões
do sacristão.

— A Sr.ª Teresa é que mas devia dar, – disse este – pois
está mais perto do sítio onde elas ferveram.

— Não te entendo, Joaquim, então que há? – perguntou,
já ralada de curiosidade, e poisando a meia, a esposa do Sr. João;
e os olhos daquela família toda convergiram para os lábios do
homem.

Este sentiu-se lisonjeado com as atenções, e muito principalmente
com as da menina Francisca, cujo olhar fixo por pouco lhe fazia perder a frieza
da ânimo.

— Então deveras não sabem o escândalo desta noite?

— Não; que houve?… Conta lá isso, Joaquim, conta lá.

E o Sr. João da Esquina, no ardor da curiosidade, e para fazer a boca
doce ao orador, trouxe-lhe uma mão cheia de figos secos de uma seira
encetada e rejeitada por freguês pechoso; e a Sr.ª Teresa esfregou
as mãos, e ajeitou-se para ouvir melhor; e a menina Francisca puxou
a cadeira em que estava para junto do mostrador.

O sacristão principiou:

— O filho do seu vizinho… o doutor novo…

Neste ponto despediu um olhar certeiro à menina Francisca, a quem
um acesso de tosse acometeu; a Sr.ª Teresa espirrou, e o Sr. João
deixou cair não sei o quê, e abaixou-se para apanhar o que deixou
cair. O orador prosseguiu:

— Pois o tal Sr. doutorzinho… esteve para o levar o diabo esta noite.

— Que me dizes, homem? – perguntou a Sr.ª Teresa, já debruçada
no mostrador.

— É verdade.

— Mas como foi isso?

— Foi o irmão, o Pedro, que esteve para o matar.

— Ora, contos! – disse o Sr. João da esquina, encolhendo os
ombros, a afetar uns ares de dúvida, mas dando um pau de canela ao
sacristão que era perdido por gulodices.

— É o que lhe digo – insistiu este, chupando a casca aromática.

— Mas então por quê?

— A mim contou-me esta manhã a tia Brásia, à missa
primeira, que o Pedro pilhou o irmão a sair da cada das do Meadas,
e disparou contra ele a espingarda. A tia Brásia afirmou-me que tinha
ouvido o tiro.

— Agora me lembro que também ouvi um tiro esta noite – disse
a Sr.ª Teresa; e acrescentou com a maior fleuma do mundo:- E matou-o?

— Não, não o matou; mas julgo que o feriu.

— Não se perde nada – disse laconicamente o Sr. João
da Esquina.

— E é de perigo? – perguntou, um tanto inquieta, a menina Francisca.

— Sossegue, menina – respondeu o sacristão, despeitado pelo
tom da voz, em que ela dissera isto. – Sossegue, que, ainda que lhe tirasse
um olho, ficava-lhe o outro para ver as raparigas da terra, que todas lhe
fazem conta.

A petulância foi repelida por a menina com um gesto de soberano desdém.

— Mas então… – continuou a mãe – diz-me cá,
então o Daniel tinha assim entrada em casa das do Meadas? Como se entende
isso?

— Ora, como se entende isso? Pois não conhece ainda aquele melro?

— Mas era com a Clarita então?

— Pelos modos, era com a Margarida, ao que dizem, mas … eu por mim,
inclino-me a crer que era com ambas – respondeu o sacristão, com a
firmeza do historiador crítico, que decide ecleticamente entre duas
versões de um fato controvertido.

— Com a Margarida?! – exclamou João da Esquina. – Pois com aquela
cara de Nossa Senhora de Soledade… aqueles ares de Santa… Eu sempre vejo
coisas!

— São as piores – sentenciou a esposa. – Bem me fio eu em santidades.

— Não sei como se pode gostar daquilo – disse desdenhosamente
a menina Francisca.

— Deixe lá, menina – notou com ironia o sacristão, ainda
despeitado. – A Margarida não é para desprezar assim. É
trigueirinha, mas nós todos sabemos que Daniel não desgosta
delas, ainda mais trigueiras.

Francisca mordeu os beiços ao escutar a alusão, e espetou a
agulha no novelo de linhas; o pai lançou ao sacristão um olhar
furibundo, e descarregou com o martelo uma forte pancada nos pintos falsos,
que, para escarmenta de velhacos, tinha cravados no mostrador; e a própria
Sr.ª Teresa armou-se de um sorriso constrangido, pouco animador para
o sacristão, e ao mesmo tempo apertou nervosamente uma orelha ao gato
maltês, que dormitava acocorado junto dela, sobre uma saca de arroz.

Muda, mas expressiva linguagem simbólica, que se podia traduzir assim:

A menina Francisca – Tinha alma de atravessar o coração com
esta agulha, maldito.

O Sr. João da Esquina – Não sei o que me contém, que
te não quebre com este martelo quantos dentes tens na boca, brejeiro.

A Sr.ª Teresa – O que tu merecias era um puxão de orelhas, bem
puxado, maroto.

No entretanto, o sacristão prosseguia, imperturbavelmente:

— A tia Brásia disse-me que havia muito que o Daniel não
largava a porta das do Meadas. E isso é fato. Pelos modos, o Pedro
soube-o, e então, se lho não tiravam das mãos, dava cabo
dele.

— Mas então sempre havia alguma coisa com a Clara também?
– insistiu a Sr.ª Teresa, a quem a opinião crítica do sacristão
agradava, por mais escandalosa.

— Pois isso para mim é de fé – disse o sacristão.

Por este tempo tinha entrado na loja um jornaleiro, o qual, tendo ouvido
as últimas palavras do diálogo, percebeu logo do que se tratava.

— Houve mosquitos por cordas esta noite lá para as minhas bandas,
houve – disse o homem com um sorriso malicioso.

— Ah! também já sabe? – perguntou o sacristão.

— Ora se já sei! Pois eu não estive lá?

— Ai, pois viu?

Os quatro, que em comum fizeram esta pergunta, fitaram avidamente os olhos
do jornaleiro.

— Eu lhe digo – disse o homem, tirando o chapéu e coçando
na cabeça. – Eu tinha chegado de fora, havia meia hora. Tinha sido
rogado para uns trabalhos aí para longe. Por sinal, que me pagaram
como a cara deles. Sempre lhe digo, Sr. João, que isto de jornais está
uma pouca vergonha. Deu o que tinha a dar. Eu lembro-me dantes… Mas vamos
ao caso, eu chegava a casa; e tinha dito lá à minha patroa…
que, coitada, também não tem andado lá essas coisas,
não – mas tinha-lhe eu dito que me fritasse uns ovos com presunto –
e deixe-me dizer, que os ovos este ano também são uma peste.
Parece que deu o arejo nas galinhas. Diabos as levem. Daqui a pouco, da maneira
que isto vai, ficamos sem ter que comer e a fazer cruzes na boca. Mas estava
lá a minha patroa a fritar-me os ovos… É verdade, ó
Sr. João, que diabo de azeite me deu vossemecê o outro dia, que
nem a mão de Deus padre se pode levar.

— Homem, pois ninguém mais se me tem queixado dele. É
você o primeiro.

As mulheres e o sacristão começavam a impacientar-se.

— Eu não sei o que lhe acho, sabe-me a chapéu velho,
o maldito. Mas estava lá a minha Quitéria ao lume, eis senão
quando eu ouço uns gritos de "Aqui del-rei".

— Então eles gritaram "Aqui del-rei"?

— Que os ouvi eu, sim senhor, tal qual. Pus-me logo na rua. Porque
eu cá sou assim. Olhe o Sr. João, quando foi daquela espera,
que fizeram ao escrivão da fazenda, eu lá estava.

— Na espera? – perguntou o sacristão, em tom de zombaria.

— Não que eu não sou desses – respondeu o jornaleiro
carregando a sobrancelha – quando quero fazer mal a alguém não
me escondo. Vou ter com ele, esteja onde estiver, na sacristia que seja. Ora
fique sabendo, que pode ser que lhe sirva.

— Então acaba ou não acaba a sua história, Sr.
Manuel? – disse a Sr.ª Teresa, desfazendo a alteração nascente.

— Salto para a rua – continuou o jornaleiro – e como o barulho vinha
do lado dos Juncais, tomei por lá. Vi-me em calças pardas. Não
fazem idéia como está aquilo nos Juncais. Uma coisa é
ver, e outra é dizer. Sempre temos uma Câmara, louvado seja Deus!
Deixa estar aquele mar nos Juncais… porque é um mar, sem tirar nem
pôr. Eu queria que a Sr.ª Teresa passasse por lá de noite,
como eu, que sempre havia de dar ao diabo a cardada.

— Mas depois que viu? – perguntou a Sr.ª Teresa exausta de paciência
com as intermináveis digressões do orador; e acrescentou baixinho:
– Sume-te demo mau!

— Quando cheguei perto da casa das do Meadas, passou por mim um homem,
e eu meti-me num canto para, se fosse preciso, agarrá-lo…

— Deixá-lo fugir – continuou impenitentemente o sacristão
sorrindo.

O Manuel do Alpendre, que era a graça do jornaleiro, nem se dignou
a responder. continuou:

— Vi que era o Daniel ou o diabo por ele, mas pareceu-me que levava
alguma coisa quebrada. Ia assim como a mancar. Olhe que sempre se vai saindo
o tal, menino! Eu digo, que se ele escapa de tantas que faz! Mas há
gente assim! Uns a cavar pés de burro por este mundo, outros então
a levar a vida com uma perna às costas. Este é um dos que parece
ter nascido em um fole, o tal Sr. Daniel… Bem fez cá o Sr. João,
em lhe fechar a porta na cara, e pôr termo às visitas que ele
fazia por aqui; já se sabe por que, sim, já à boca cheia
se dizia…

— Vamos ao caso, vamos ao caso – interrompeu a Sr.ª Teresa – Você
que fez depois?

— Eu? Segui o caminho e cheguei à porta das raparigas. estava
já lá o Pedro do Abade, o João das Pontes, o tio Gaudêncio
das Luzes… por sinal que anda escangalhado o velho. Perdigão perdeu
a pena, não há mal que lhe não venha. Não sei
que diabo aquilo é. Eu ponho as mãos numas Horas, se o homem
deita o ano fora. Quem viver, verá. Mas vai, chego-me a ele… "Ó
tio Gaudêncio, digo-lhe eu, que é isto aqui?" – Olha, diz-me
ele. – E vai, eu olho, e vejo o Pedro das Dornas com uma espingarda na mão,
e o Sr. Reitor ao pé dele, e no chão uma mulher.

— Morta? – perguntou com vivacidade a Sr.ª Teresa.

— Morta não, senhora. A mulher estava viva.

— Mas o tiro que ele deu?

— Eu já disso não sei!… Pois ele deu algum tiro?

— Pois eu não ouvi um tiro? – disse a Sr.ª Teresa. – E
não fui eu só, houve mais quem ouvisse.

— Que ele tinha a espingarda, isso lá, tinha.

— E deu o tiro; não tem dúvida que deu. Mas então
era a Clara?

— Nada, não era; era a irmã, a mestra. Eu bem a vi. E
vai ao depois, o Sr. Reitor não sei o que disse e tal, sim senhores,
e pega e vai ao Pedro e manda-o embora, e volta-se para o, povo que por ali
estava, e manda-o também embora, dizendo que não dessem à
língua; e com razão, porque a rapariga é bem afamada,
e, se se principiasse agora por aí a falar… Sempre me há de
lembrar que quando minha mulher…

— Mas o Pedro o que disse à saída?

— Não disse nada. Parecia nem dar por a gente. Ia assim a modo
de estarrecido. Se lhe parece! Sempre um homem às vezes se encontra
nelas boas! Uma ocasião tinha eu ido…

— Mas então está bem certo que era a Margarida a que…

— Ora se era! Pois eu não conheço a Margarida? Ainda
o pai era vivo, que eu, indo um dia com ele a uma patuscada… que nós
dávamo-nos muito; aí está que, faz pelo S. Martinho doze
anos… Dantes é que o S. Martinho era S. Martinho… Lembra-se, Sr.
João, daquela vez que nós fomos todos?… que tempo! Ainda era
vivo o tio André de Mortosa… Que homem tão divertido! Aquilo
era uma coisa por maior… pois quando ele ia de serandeiro às esfolhadas!
Dantes sim, é que se faziam esfolhadas… Agora já se não
fazem que se prestam… Aí está que eu fui no outro dia à
do Damião… pois, senhores, parecia-me um enterro… Ele também
teve fraco S. Miguel este ano… O homem não sabe dar amanho ás
terras… As terras querem-se bem tratadas, não há que ver…
É como uma pessoa; quem não tem o sustento devido não
pode medrar. Olhem aquela rapariga, filha da João Ferreiro… Quem
a viu e quem a vê.

E, de incidente em incidente, corria à vela cheia o pensamento de
Manuel do Alpendre pelo vasto mar de suas recordações, afastando-se
cada vez mais do assunto primitivo, e cada vez desesperando mais a curiosidade
do auditório.

O sacristão cortou o fio da digressão.

— Mas aí vem quem nos pode dar informações exatas
– disse ele, vendo entrar na loja nova personagem.

Era uma mulher cor de cera, muito macilenta, de olhos meio fechados, e sorriso
de beatitude nos lábios. Usava o cabelo curto penteado para diante
da testa, a qual ficava coberta por ele até às sobrancelhas;
cingia-lhe a cabeça um lenço branco, posto à maneira
de barrete; sobre o primeiro, outro de cor escura, atado por baixo da barba,
e puxado para diante, até deixar-lhe o rosto como no fundo de uma gruta,
e, ainda por cima, a capa de baeta, sem cabeção.

Das mãos pendia constantemente um comprido rosário.

Era enfim um desses tipos de beata, comuns nas nossas aldeias; mulheres cuja
vida se passa em devoções contínuas, em novenas e vias-sacras,
e em perene confissão; obra dos gordos missionários, que deixam
a outros o cuidado de desbravar a gentilidade das nossas possessões,
para andar na tarefa mais cômoda de tolher o trabalho e a atividade
na casa do lavrador.

Imbuindo o espírito das mulheres de preceitos de devoção
absurda, afastam-nas do berço dos filhos, da cabeceira do marido enfermo,
do lar doméstico, para as trazer ajoelhadas pelos confessionários
e sacristias; com uma brava eloqüência, perigosa para quem não
tiver o senso preciso para a achar ridícula, incutem-lhe falsas doutrinas
desmentidas e condenadas em cada página do Evangelho, tão severo
sempre contra fariseus e hipócritas.

Numa localidade, não muito distante do Porto, ainda há pouco
um desses apóstolos, que andam por aí reformando escandalosamente
a moral dos povos, pregou do púlpito "que a salvação
de um homem casado era tão difícil, como o aparecimento de um
corvo branco".

É triste e desconsolador o aspecto da terra, onde esta praga farisaica
tem feito maiores estragos. A alegria do povo, esse reflexo de alegria das
mulheres, porque das mães se reflete nos filhos, das esposas nos maridos,
das raparigas nos amantes, desaparece pouco a pouco.

Com os trajos escuros, os cabelos cortados, os olhos baixos, as mulheres
têm por pecado rir; o cantar como um crime; ou se cantam, são
umas certas cantigas do Divino, ensinadas pelos missionários, nas quais
a austeridade do conceito nem sempre é mais respeitada do que a eufonia
da forma. Algumas ouvi eu, em que a vinda de missionários era saudada
com um vigor de imagens quase oriental; eram arremedos grosseiros do Cântico
dos Cânticos, que fariam rir, se lhes não percebessem piores
intenções.

E, no meio destas ostentações de ascetismo, quantas vezes se
esconde folgada a devassidão, que não dúvida ornar o
pescoço de camândulas e bentinhos, e vê na excitação
nervosa, produzida pelos jejuns, um alimento a favorecê-la?

O horror ao escândalo, eis o que caracteriza esta moral de Tartufo.
Salvem-se as aparências , rezem-se as devoções todas,
e a culpa será atenuada.

Traz-se, por exemplo, o pulso cingido por uma cadeia de aço benzida
de certa forma – distintivo das escravas de Nossa Senhora – cadeia milagrosa,
que, asseguram os missionários por lá, tem a propriedade de
se alargar ou apertar de per si, de modo a andar sempre justa ao braço,
quer este engorde, quer emagreça; pois já o diabo não
se atreve contra quem usa este talismã.

Ora digam se, quando não seja senão para aperrear o diabo,
não dá logo vontade de experimentar a eficácia da cadeia
cometendo um delito?

Era pois a Sr.ª Josefa da Graça a mais famigerada vergôntea
deste viveiro de aspirantas a santas, que se estava organizando na aldeia.
O reitor, que não era para imposturas, tratava-as a todas com aspereza,
o que não lhe granjeava muitas simpatias neste beato congresso.

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo – disse ao entrar na loja,
e com voz dolentemente melodiosa, a santa de que falamos.

— Para sempre seja o Senhor louvado – respondeu-lhe menos beatamente
a Sr.ª Teresa.

— Faz-me favor de me vender duas velinhas de cera para uma promessa
que fiz ao Divino Coração de Maria, Sr. João, e que seja
pelas Divinas Chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo.

João da Esquina satisfez prontamente a requisição, mas
enquanto o fazia, perguntou:

— Então que houve esta noite lá pelas suas vizinhanças,
ti’Zefa?

— Eu sei, filho? Eu de portas para fora nada posso dizer. Já
não é pouco tratar cada um da sua alma, e dirigi-la no caminho
do Céu. O Padre José ainda ontem o disse.

— Pois sim; mas, quando se faz muito barulho na rua, sempre se abre
um cantinho da janela – disse João da Esquina, piscando o olho para
o sacristão, que lhe sorriu em resposta.

— Abrir a janela? Para que há de uma pessoa abrir a janela?
Para se meter em trabalhos? Não que eu, filho, todas as noites rezo
ao meu devoto padre Santo Antônio, para que me livre de perigos e de
trabalhos, de maus vizinhos de ao pé da porta, e de ferros de el-rei.

— Mas pelos modos o santo não a tem ouvido, porque enquanto
a maus vizinhos…

— Nem por isso a deixam dormir, não é assim, ti’Zefa?
– perguntou a Sr.ª Teresa, entrando na conversa.

— Vizinhos… o que se diz vizinhos, não tenho eu; a casa mais
perto é das pequenas do Meadas, e dessa à minha ainda é
um bocadinho.

— Mas ouvia-se lá o barulho?… perguntou o sacristão.

A beata fez um gesto afirmativo e acrescentou.

— Olhe, Sr. Joaquim, pecados deste mundo, sabe?

— Vamos lá. A ti’Zefa sempre tem inclinação pelas
raparigas. São suas conhecidas há muito tempo e por isso…

— Eu?! Olhe ainda esta manhã o disse o Padre José, aquilo
são tentações do demônio, sabe o Sr. João
da Esquina o que são tentações do demônio; pois
é aquilo. Não que dizem que não vale nada ser escrava
de Nossa Senhora. Não, não vale, Já se está a
ver. As coisas estão a saltar aos olhos.

— Mas, afinal que houve? O caso foi com a Clara ou com a irmã?

A pergunta era feita pelo sacristão, por quem a beata tinha essas
contemplações, e por isso respondeu:

— Foi com a Margarida, Sr. Joaquim. Aquilo estava de ver! Então
admirou-se? Pois olhe, eu… A gente não deve murmurar do seu próximo,
mas enfim… isto é por conversar e não passa daqui. Aquela
rapariga vai mal; ainda hoje mo disse o Padre José; tirando lá
a sua missa ao domingo, já ninguém a vê mais na igreja.
Olhe a Sr.ª Teresa que, ali onde se vê, não quis pertencer
à confraria do Sagrado Coração de Maria! Já viram?
Mas, como disse o Sr. Padre José, e é assim, a culpa não
é dela.

— O nosso reitor é quem a aconselha – insinuou João da
Esquina.

— Julgo que sim, Sr. João, e… Enfim, dada um sabe de si, e
Deus de todos, mas a falar a verdade… – isto não é agora por
dizer do Sr. Reitor, que é muito boa pessoa, assim não fosse
aquela zanga que ele tem ao Padre José e à confraria; mas que
ele não as traz bem guiadas, isso não traz…

— Mas vamos a saber – disse interrompendo-a, a Sr.ª Teresa, e
tomando um tom de íntima familiaridade, que provou admiravelmente,
em soltar a língua à beata – mas se o caso era com Margarida
só, como é então que o Pedro quis matar o irmão?
Que tinha o Pedro com isso?

— Pelos modos – disse o jornaleiro, que estivera calado – ele julgou
ao princípio que era Clara, e… Faz-me lembrar quando, há de
fazer três anos…

— Nada, não, senhor, não foi isso – emendou a beata.
– O que me disseram foi que a Margarida quis lançar as culpas à
Clara, que foi então que o Pedro espetou a navalha no irmão.

— Então ele espetou-lhe alguma navalha? – perguntou a menina
Francisca.

— Pois não espetou? E diz que, por pouco, lhe chegava ao coração…

— Santo nome de Jesus! Isso é crime de degredo, pelo menos.

E, dizendo isto, a Sr.ª Teresa parecia satisfeita por o escândalo
ir assumindo maiores proporções.

O jornaleiro notou do lado:

— Ó ti’Zefa, isto é que me não parece verdade.
Eu julgo que ele nem o feriu.

— Pois eu não vi, Sr. Manuel?

— Com as janelas fechadas, ti’Zefa?

A beata mordeu os beiços.

— Vi esta manhã o sangue, é o que eu queria dizer. E
por sinal que não era tão pouco.

— Quem havia de dizer que aquela sonsinha da Margarida… observou
o tendeiro.

Neste ponto entraram na loja mais alguns fregueses que já informados
do que se passava prestaram logo ouvidos à conversa.

Entre eles achava-se também a criada de João Semana, a qual
viera comprar arroz para o jantar de seu amo.

Não foi de todo auditório a menos atenta esta nossa conhecida;
mas uma contração de lábios e sobrancelhas , e o olhar
que fixou na beata mostravam que não era de ânimo satisfeito,
que ela escutava os boatos daquela manhã.

A confessada do Padre José continuava:

— Olhe, Sr. João da Esquina, isto de viver assim ao deus-dará,
não é lá grande coisa. Aquilo naquela casa é uma
república, sabe? Falta ali uma pessoa de juízo e de temor a
Deus. O Sr. Reitor… enfim, eu não quero dizer mais nada.

— Pois é pena – resmungou a Sr.ª Joana.

— É assim, ti’Zefa, é assim. O Sr. Reitor dá toda
a liberdade àquelas raparigas. Aquilo mais tarde ou mais cedo estava
para suceder – disse a Sr.ª Teresa.

— Melhor tu olhasses por o que te vai por casa – continuava a resmonear
Joana.

— Olhem que mestra de crianças! – observou uma gorda oleira,
que viera comprar uma quarta de sabão. Não, filha minha não
mandava eu lá.

— Deixa estar, que contigo havia de aprender boas prendas – comentava
ainda Joana.

— Não há de ser a minha que há de lá voltar.

— Nem a minha – disseram algumas mulheres presentes.

A Sr.ª Joana principiou a ser acometida de uma tosse seca, tão
significativa, que desviou para ela as atenções.

Mas a Sr.ª Joana, na qualidade de governante do velho, era na terra
uma potência, com que poucos se atrevia a arrostar. Fizeram-se por isso
desentendidos.

— E quem vê aquilo então! – disse João da Esquina.
Toda de mantos de seda, toda Sant’Antoninho onde te porei.

— Tentações do inimigo mau, sabem? tentações
do inimigo mau, é o que é. Não, que dizem que não
serve de nada confessar-se a gente a miúdo, e rezar as orações
dos missionários.

— Aí, serve para livrar de maleitas depois da morte – respondeu,
já em voz mais alta, a Sr.ª Joana preparando-se para sair.

A beata, fingindo não entender, continuou:

— Ainda esta manhã o Padre José…

— Oh! – disse expressivamente a criada de João Semana, já
da porta.

A beata fitou nela uns olhos chamejantes de cólera. Aquela interjeição
irritara-lhe os nervos.

— A Sr.ª Joana tem alguma coisa a dizer do Padre José?

— E você que lhe importa? – retorquiu-lhe Joana embespinhada,
voltando para dentro.

— Eu sempre queria saber…

— Ora meta-se com sua vida, que não é de muitas canseiras,
e não tome tanto fogo pelo que se passa nas casas alheias. Não
está mau o descoco? Olhem agora o estafermo!

— Não se zangue, Sr.ª Joana; lembre-se que a ira é
o quarto pecado mortal.

— Dê conselhos, a quem lhos pedir, que eu, quando precisar deles,
sempre hei de ter, graças a Deus, outras barbas melhores que as suas,
para mos dar.

— Presunção e água benta, cada qual toma a que
quer – disse a beata, com um sorriso de sarcasmo.

O nariz de Sr.ª Joana afogueou-se de vermelhidão, sinal de borrasca
iminente.

— Ó Sr.ª Zefa da Graça, repare bem com quem se mete.
Olhe que eu não sou das da sua igualha, para tomar comigo esses ares
de confiança. Veja que lhe pode sair caro o risinho.

Ninguém falava com a Sr.ª Joana. Quem não quer ouvir as
coisas…

— Então, então, isso não vale nada – disse, intervindo
pacificamente, a mulher do João da Esquina.

— Que não vale nada, sei eu – continuou Joana – porque tenho
bastante juízo para receber as coisas, como da mão de quem vêm.
Mas na verdade que lá custa a uma pessoa estar a ouvir semiscarúnfias
destas a porem a baba na fama de uma rapariga, de quem um só cabelo
da cabeça vale por todas as beatas fingidas desta terra, por todas
de cambalhota, e por tal padre também.

— Veja o que diz! depois não se queixe de ouvir..

— Que hei eu de ouvir, sua desavergonhada, sua papa-novenas, que hei
eu de ouvir? – exclamava já de punhos cerrados e olhar cintilante,
a irascível Joana. – Eu não tenho medo das verdades, e para
as mentiras tenho estas mãos desempenadas graças a Deus. Diga
o que sabe, diga para aí. Não, minha amiga, a mim não
me engana você. Cuida que o rosário é fiada de alcatruzes
que a há de levar ao Céu? Está servida.

— Quem chega à missa depois do credo… não pode falar…
– murmurou, já intimidada, a beata.

— E você, sua rata de sacristia, tem alguma coisa com isso? Que
lhe importa saber se eu chego tarde ou cedo? Não, que não tenho
a sua vida, sabe? Deus, que lê nos corações, bem conhece
que não é de propósito que eu… Mas vejam esta santinha
com que atenção está a missa, que repara para quem entra
e quem sai. São todas assim. Estas e outras coisas é que elas
vão dizer ao confessor. E há de ser isto que há de pôr
a boca em Margarida?

— Então julga que é peta o que toda a gente sabe por
aí já?

— Não, a verdade deve dizer-se – observou João da esquina
– É fato que esta noite…

— Histórias! isso não há de ser tanto como dizem.
Sabem que mais? Eu só lhes desejo, aos que tiverem filhas, que Deus
lhes dê a elas um bocadinho do juízo da Guida dos Meadas. Adeus.

E a Sr.ª Joana ia a retirar-se

— Espere, espere – exclamou a Sr.ª Teresa, ofendida – isso que
quer dizer?

— Não posso estar a taramelar das vidas alheias, que tenho a
olhar por a minha.

E saiu

Não lhe ficaram fazendo muito boas ausências as mulheres que
se conservaram na loja.

A beata sobretudo espalhou todo o seu fel em palavras acerbas, apesar da
costumada doçura da pronúncia, com que lhe saíam dos
lábios.

Afinal retirou-se também da loja, para ir contar a outra parte o escândalo
da noite passada, já mais ampliado talvez.

Dentro em pouco não se falava de outra coisa na aldeia. Cada imaginação
se encarregava de variar o boato..

Houve quem desse Daniel quase morto, e o irmão fugido; outros que
pelo contrário ungiam Pedro e desterravam Daniel.

De Margarida dizia-se que tinha querido sacrificar a irmã, e que esta
a punha fora de casa, deixando-a assim a pedir esmola; e mil outras variantes,
que o leitor pode conjeturar.

— Este rapaz não acaba bem. Ora verão – concluiu, no
fim de tudo isto, o Sr. João da Esquina.

A Sr.ª Teresa apenas observou:

— Mas como lhe deu para olhar para aquela rapariga? Vejam agora as
grandes bonitezas!

A menina Francisca, inclinada sobre o mostrador da loja, escrevia nele distraidamente,
com um gancho de cabelo, diferentes palavras sem nexo, e no fim suspirou.

Capítulo XL

A tarde desse dia empregou-a o reitor em casa de José das Dornas,
onde, com a sua diplomacia, conseguiu evitar as dificuldades da primeira entrevista
entre os dois irmãos.

Pedro, cheio de remorsos, abraçava Daniel, e este, que com mais razão
os estava sentindo, a custo podia suportar essas provas de arrependimento
de uma culpa imaginária.

Repugnava-lhe afetar maneiras de quem perdoa, quando força interior
o impelia a ajoelhar e confessar-se culpado. Por mais de uma vez esteve para
revelar tudo; susteve-o o olhar, que o reitor, pressentindo essa tentação,
nunca dele desviava.

— Mas – dizia Pedro, já em ponto adiantado da entrevista – se
tu gostas de Margarida, por que não hás de casar com ela?

— E julgas que ela o consentiria? – perguntou Daniel

— Por que não? Não te estima também? Eu julgo
que bem claro to mostrou ontem.

Daniel achava-se embaraçado. A observação do irmão
era, na aparência, tão razoável, que ele não sabia
o que havia de responder. Valeu aqui a tática do reitor.

— Ora que sabes tu dos outros, Pedro? – disse ele. – Tem graça!
Cada um sabe de si, e é quando Deus quer, que, às vezes, nem
de nós sabemos também. O melhor é falarmos de outra coisa,
ou tratar cada qual de sua vida.

Daniel da melhor vontade seguiu o conselho do reitor e a conferência
terminou.

Porém, quando o padre ia transpor o limiar da porta da rua, Daniel
aproximou-se dele.

— E Margarida? – perguntou-lhe com certa ansiedade.

— Margarida? Margarida está boa…

— Falou-lhe depois que hoje nos apartamos?

— Falei.

— E persiste na resolução?

— Que resolução?… Na de salvar a irmã?… Pois
está de ver que sim.

— Não falo disso.

— Então? – perguntou o reitor com afetada simplicidade.

— Na recusa que esta manhã…

— Ah!… já nem me lembrava… não se falou mais em tal.

Daniel baixou a cabeça. O reitor julgou perceber-lhe no rosto sinais
não simulados de tristeza, e condoeu-se dele.

— E nós cá – disse, batendo-lhe no ombro – como vamos?
A que paixão se traz agora aforado o coração? Aí
nunca pode medrar coisa que preste; um terreno movediço como o das
areias.

— As plantas de fundas raízes também se sabem prender.

— Mas levam um tempo!… E nem sempre vingam. Aí está
que bem antiga foi a primeira sementeira dessa, que traz agora no coração,
se é que a traz, mas não vingou dessa vez, ao que parece.

— Que quer dizer? – perguntou Daniel, olhando para o reitor a quem
não entendia.

— Homens que não têm sempre presentes os tempos de criança,
os mais felizes, e mais inocentes tempos da vida – Deus me livre deles. Há
de haver dez anos… – E de repente parecendo interromper o pensamento, que
ia exprimir, o reitor saiu, e, já da rua, cantou a meia voz e afastando-se
lentamente:

Andava a pobre cabreira

O seu rebanho a guardar.

Desde que rompia o dia

Até a noite fechar. – Ah! – exclamou Daniel, como se naquele instante
lhe ocorresse um pensamento inesperado.

O reitor tinha já desaparecido.

Aquela exclamação abriu no espírito do antigo companheiro
de Guida um longa sucessão de memórias e de pensamentos, aos
quais o deixaremos entregue.

Às dez horas da manhã seguinte o pároco, passando por
casa de Margarida, resolveu entrar, não obstante saber serem aquelas
horas de ocupação para sua pupila.

O reitor muitas vezes gostava de assistir às lições
das crianças, e até de auxiliar Margarida tomando algumas também.

Com esse projeto subiu vagarosamente as escadas; ao subi-las, estranhou o
silêncio que havia em casa, de ordinário àquela hora,
ruidosa de vozes infantis.

— Isto será mais tarde do que eu supunha? – disse o reitor,
parando no patamar e consultando o relógio. – Dez horas. Só
se o relógio se atrasou; mas esta manhã ainda…

As pancadas sonoras da campainha de um pequeno relógio de sala interromperam-lhe
o monólogo.

— Quatro, cinco, seis; são dez, não há que ver
– dizia o reitor, contando-as – sete, oito… é isso; nove e dez. São
dez horas, são. Mas então…

E subia, mais apressado já, um segundo lanço de escadas.

— Margarida estará doente? Porém se fosse de cuidado,
tinha-me mandado parte; e não sendo, não era ela a que por qualquer
coisa…

E entrou na primeira sala. Escutou – o mesmo silêncio.

— Oh! Estou admirado!

Desta sala passou à do trabalho.

Estava deserta, postas de lado as pequenas cadeiras das crianças,
arrumados os cestos de costura e os livros, e na sala aquele ar de tristeza,
que parecem ter, quando desertos, todos os lugares ordinariamente concorridos.

Sentiu esta impressão o reitor; foi agitado de secreto receio que
atravessou os corredores e abriu a porta do quarto de Margarida.

Encontrou-a sentada, a ler, com a fronte encostada à mão, o
semblante sereno, mas abatido, e nos olhos vestígios de lágrimas
enxugadas de pouco.

— Que significa isto? – disse o reitor, dando às suas palavras
um tom jocoso, mas conservando no olhar a mesma inquietação.
– É hoje dia de sueto?

Margarida fechou o livro, ergueu-se para beijar a mão ao reitor, e
com uma voz onde, quem estivesse excitado a estudá-la, podia perceber
ainda um desvanecido tremor, respondeu:

— As mães das minhas discípulas quiseram dar-me tempo
para o arrependimento e para a penitência. Dispensaram os meus serviço.
E eu… aproveitei o conselho, que me deram, assim. Veja.

E mostrou o livro que lia, Era o dos Salmos.

O reitor bateu impetuosamente com a bengala no chão.

— Mas isso é indigno! Isso é… é… Ora deixa
estar que eu lhes vou falar…

— Não vá… eu já esperava por isto. De que se
admira? Por que as censura? Então não era da sua obrigação
fazer o que fizeram?

— Margarida, isto é demais! É preciso dar-lhe algum remédio,
ou então…

— E aí voltamos à nossa demanda – disse Margarida, sorrindo.
– Não sabe já que não há melhor remédio
a dar-lhe?

— Há de haver; isto é que há de haver por força,
que to digo eu. Tu estás a obrigar o teu coração a coisas
que não são para corações humanos. Hás
de acabar por o esmagar. Sabe Deus o que ele padece já!

— Ora diga, quando o coração padece, pode-se estar a
sorrir como eu? Vê?

E Margarida obrigava-se a sorrir.

— E as lágrimas de ontem? – prosseguiu o reitor. – E as de hoje.
Terás coragem para, olhando bem para mim, me afirmares que ainda hoje
não choraste, quando eu tas estou a ver nos olhos?

— É certo. Chorei.

— Ah?

— Mas de saudades. Cerrou-se-me o coração de tristeza
ao pensar que me separava daquelas crianças que todas me queriam, que
eu via crescer, que eu ensinava a falar. Mas… paciência! A tudo se
acostuma o pensamento, e dentro em pouco…

— Nada, nada – continuou o reitor – não entendo isso de tal
forma. Tudo tem seus os limites. Isso agora bole-me com a consciência.
Eu vou perguntar a essa gente…

— O que lhe vai perguntar?

— O que significa este desaforo! Quero lançar-lhe em rosto os
seus escrúpulos patetas e estúpidos. Olhem as presumidas!

— Não faça isso.

— Margarida, é um pecado levar as coisas tão longe. E
cuidas que tua irmã sabendo disto…

— Clara não o saberá. Para que há de saber? Tinha
saído quando eu recebi o recado dessa pobre gente. Eu lhe direi…

— Que lhe hás de tu dizer?

— Qualquer coisa… o que me lembrar. Dir-lhe-ei que estou cansada
desta vida afinal; que lhe dou agora razão… e que aceitarei… a
caridade… de minha irmã.

E a estas palavras a comoção dominava outra vez Margarida.

— A caridade! Quem fala de receber caridades? Tu, que foste pródiga
de benefícios? Tu, que te despojaste da tua capa para cobrires com
ela os ombros nus da tua irmã? Aí Margarida, que é isso
menos abnegação, que orgulho já. Não, desta vez
não cederei. Vem, filha, vem comigo.

— Eu?! Aonde?…

— Vem; encosta-te ao meu braço. Quero ver agora quem se atreve
a murmurar daquela que passa apoiada no braço do seu reitor. Sempre
quero ver.

— Não me obrigue a…

— Vem, Margarida; tens os pobres do costume a visitar, e entre eles…
e até, se queres despedir-te do teu mestre, não deves adiar
a tua visita, porque…

— Pois está pior?!

— Está próximo a obter o alívio de todos os seus
males. Ora então vem, e veremos se elas também… se essa pobre
gente, que socorres, recusa a esmola que lhes sabe dar.

— Mas… Jesus, meu Deus! não sei se terei forças agora…

— Pede-as à consciência. Ela tas dará. Não
me recuses o que te peço, Margarida; ou então Clara saberá
tudo. Eu te prometo que isto não fica assim como está.

O pároco mostrou-se desta vez exigente. Margarida cedeu às
reiteradas insistências dele.

Passados momentos, iam ambos silenciosos pelos caminhos da aldeia.

A apreensão de que se possuíra Margarida, fazia-lhe vacilar
os passos. teve de segurar-se por isso ao braço do seu velho amigo
e protetor

Chegaram assim ao largo, onde morava o enfermo.

À sombra das árvores brincava, a saltar e a dançar,
um bando de crianças, a cujas vozes joviais respondiam da copa da alameda
os gorjeios das aves escondidas.

As crianças, ao verem aproximar-se Margarida, mestra de quase todas,
correram, soltando gritos de alegria, a beijar-lhe a mão.

As mães, porém, que estavam sentadas, fiando e conversando,
nas soleiras das casas, que circundavam o largo, obrigaram-nas a parar a meio
do caminho.

— Vem cá, Luisa! – bradou uma

— Ó Maria, onde vais tu? Para aqui, já, corre! exclamava
outra.

— Ó Ana, ó Ana! Então isso é o que eu te
disse? salte para casa. Ande!

— Ó Ermelinda, tu não ouves? Não ouves, Ermelinda?
Olha se queres que eu vá lá.

E no mesmo sentido partiram de todos os lados vozes, que constrangeram as
crianças a pararem irresolutas.

A significação injuriosa daquelas palavra s, daquelas ordens
maternas, foi logo compreendida por Margarida e por o reitor.

Aquela tremeu, e instintivamente apertou o braço do seu velho tutor;
este tremia também, mas de indignação.

— Olá! – bradou ele, não lhe sofrendo o ânimo mais
reservas.

— Olá, Luisa, Maria, Ermelinda, Ana; aqui já, já,
todas aqui já! Então não ouvem?

As crianças aproximaram-se tímidas. Ele continuou, com voz
rija e já alterada pela cólera.

— Já que as vossas mães vos ensinam a ser desobedientes
e malcriadas, aqui estou para vos dar a educação. Beijem a mão
à sua mestra, já. Ouvem-me.

— Senhor! – murmurou Margarida.

— Deixa-me – respondeu o reitor, desabridamente. – Então, vamos!

As crianças tomaram a mão de Margarida e beijaram-na com timidez.
Margarida abraçou-as soluçando.

— E vocês lá? – continuou o padre, dirigindo-se às
mães. – Tudo a pé! Que modos são esses de estar diante
do seu reitor?

As mulheres levantaram-se respeitosas e mudas.

— Agora aproximem-se, e venham aqui pedir por favor a esta rapariga,
à minha pupila; entendem? à minha pupila; venham pedir-lhe que
lhes abençoe as filhas. Vamos!

O orgulho feminino revoltou-se contra a intimação.

— Essa agora!

— Era o que me faltava!

— Olhem os meus pecados!

— Não, que ele não há mais…

— Disso o livrará o senhor.

— Não há de ser a filha do meu pai.

— Para longe a tentação…

— Que é? que é? que é lá isso? – exclamou
o reitor, interrompendo este zunzum de má vontade e insubordinação.
– Que virtuosíssimas criaturas sois vós todas? Olhem lá
que não manchem os lábios a pedir! Não vos custa manchá-los
a jurar em vão o santo nome de Deus, não vos importa manchá-los
a assoalhar as vidas alheias, a caluniar as amigas, a insultar as vizinhas;
mas fazei escrúpulos de os empregar a pedir a benção
para vossas filhas, a quem, mais e melhor do que vocês todas juntas,
lha pode e deve dar.

— Ora! – disseram algumas vozes.

— Ora! Ora o que? Saibam então que todas, todas vocês,
nem são dignas de lhe beijarem as bordas dos vestidos. O que sabeis
é engrolar padre-nossos, e roçar com a testa pelo chão
das igrejas; mas não tendes coração para a doutrina do
Senhor, não. Vós, as santas criaturas envergonhais-vos de pedir
como se vos desonrásseis com isso? Pois eu não me reconheço
tão puro; sou um pobre pecador, e por isso não devo ter essas
soberbas de bem aventurados.

E o padre, dominado pela exaltação que se lhe apoderara do
espírito irritado, curvou-se, descobrindo-se; e tomando a mão
de Margarida, levou-a respeitosamente aos lábios, apesar dos esforços
daquela.

A assembléia feminina baixou toda os olhos de confusão.

As crianças rodearam a sua jovem mestra, e desta vez, espontaneamente
lhe cobriram de beijos as mãos.

Margarida, banhada de lágrimas, baixou-se, e uma por uma as apertou
ao seio, sem poder falar de comovida.

— Bem, minhas filhas, bem – disse o reitor. – Dais assim nobre e belo
exemplo a vossas mães; é decerto a mão de Deus, que vos
tocou os corações. Quem se recusará a imitá-las.

— Eu não – disse uma voz por detrás do reitor.

Este voltou-se e viu José das Dornas, que se aproximara havia alguns
momentos, e assistira à cena que descrevemos.

O velho lavrador, depois de responder assim ao pároco. aproximou-se
também de Margarida, e, pegando-lhe na mão, disse:

— Minha filha, eu tenho setenta anos. Desde que minha mãe morreu…
há cinqüenta anos quase, nunca mais beijei a mão a ninguém.
Pois digo-lhe que o faço agora, ainda com mais respeito, do que o fazia
então.

E o rude, mas generoso lavrador, baldando a resistência de Margarida,
imprimiu-lhe na mão um beijo, em que ia toda a franqueza e lealdade
daquele caráter.

Ao endireitar-se, achou-se nos braços do reitor.

— Bravo, José; bravo, meu homem! Isso esperava eu de ti, que
te conheço há muito. Bravo! Bravo! – dizia ele, entusiasmado
até às lágrimas.

O exemplo obrigava. Algumas mulheres aproximavam-se já de Margarida,
e houve uma que lhe segurou a mão.

Margarida porém retirou-lha, e, esquecida da injúria passada,
recebeu-a nos braços.

As outras, livres assim da ação que mais lhes magoava o orgulho
de mulher, correram já de boa vontade a abraçarem a pupila do
reitor.

Enquanto se passava esta cena, o padre, chamando à parte José
das Dornas, perguntara-lhe:

— Então soubeste?..

— Esta manhã foi que mo disseram. Creia, Sr. Reitor, que não
pus más suspeitas na rapariga. Eu sei de que diamante é feito
aquele coração. Corri a procurá-la para lhe dizer isto
mesmo; soube que tinha saído com o Sr. Reitor; vim-lhes na pista…

— E então que pensas tu de tudo isto, José?

— O que penso? Já o tenho dito por aí. Eu não
sei lá como as coisas se passaram, porque segundo o costume, cada um
conta a seu modo; mas que a culpa é toda de Daniel, isto para mim é
de fé. Tem diabo o rapaz! Já vejo que é impossível
deixá-lo ficar aqui na terra. Lá me custa que sempre é
filho; mas não há outro remédio. Que vá para o
Brasil.

Estas palavras chegaram aos ouvidos de Margarida e fizeram-na estremecer.

— Para o Brasil? – disse o reitor, abanando com a cabeça em
sinal de desaprovação. – Então que há de ir o
rapaz fazer para tão longe?

— Pode enriquecer por lá, que é terra para isso. Que
dúvida? E pelo menos escusa de andar por aqui a desacreditar as raparigas
da aldeia. É sestro que não perde, ao que estou vendo. Escuso
de me arriscar a mais desgostos.

— Mas…

— Para que diabo lhe havia de dar! Logo então esta, a mais sisuda,
a mais santa das nossas raparigas!

— E se os casássemos? – disse em voz baixa o padre a José
das Dornas.

— O quê?! – perguntou este, espantado com o alvitre.

— Sim, que dúvida? Pois que melhor noiva podes querer para teu
filho, do que aquela a quem já pensaste poder beijar a mão?

— Decerto, mas… Não conhece o rapaz, Sr. Reitor! Aquilo casado!
Ó santo nome! E então com esta!… Pobre rapariga!

— Enfim pensaremos e conversaremos. Olhe-me que a dificuldade parece-me
ainda mais dela do que dele.

— Que diz?!

Apesar do elevado conceito em que José das Dornas tinha o caráter
de Margarida, não podia conceber como fossem possíveis as repugnâncias,
da parte dela, para casamento tão vantajoso.

— Então que queres – disse o reitor – orgulhos de pobres…
Não compreendes isto?

E tomando o braço do lavrador, como quem tinha a comunicar-lhe alguma
coisa importante, afastou-se com ele um pouco para o lado.

Depois de darem assim juntos alguns passos, voltou-se de novo o reitor, e
dirigindo-se a Margarida, disse-lhe:

— Olha lá; se queres vai agora visitar o teu mestre enquanto
eu converso aqui com o José das Dornas. Quando saíres, vem ter
conosco à alameda, que lá andamos.

E, caminhando na direção da alameda indicada, prosseguiu na
sua conversa com o lavrador.

— Pois é o que te digo, José. Eu tenho pensado neste
negócio e tão embrulhado o vejo, que não sei de outra
saída melhor, do que essa que te disse. Mas enfim, pensa tu, e se te
lembrares, de alguma preferível…

Não obstante as tolerantes disposições de espírito,
de que fazia assim ostentação, o reitor estava preparado para
achar péssima toda a solução que não concordasse
com a sua.

Deixando-os no passeio da alameda, e na conferência, tão prometedora
de importantes resultados, que iam encetar, seguiremos antes Margarida, a
qual, ainda sob o domínio das últimas e violentas impressões
recebidas, entrou em casa do seu mestre.

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