O que é Casamento?

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José de Alencar

Comédia em Quatro Atos

1861

PERSONAGENS

AUGUSTO MIRANDA, 36 anos.
HENRIQUE, 21 anos, sobrinho de MIRANDA.
SALES, 25 anos.
SIQUEIRA, 50 anos, sogro de MIRANDA.
ALVES, 33 anos, negociante.
JOAQUIM, 45 anos, preto escravo.
ISABEL, 23 anos, mulher de MIRANDA.
CLARINHA, 17 anos, prima de ISABEL.
RITA, 38 anos, parda escrava.
IAIÁ, 3 anos.

A cena é no Rio de Janeiro e Petrópolis, de 1859 a 1860.

ATO PRIMEIRO

Em casa de MIRANDA – Sala de visitas.

CENA PRIMEIRA

MIRANDA e ALVES

(ALVES entrega o cartão a JOAQUIM e espera)

MIRANDA – Lendo o teu nome, duvidei que estivéssemos em outubro.

ALVES – Como passas? Por quê?…

MIRANDA – Não é só pelo Natal que temos o prazer de
ver de ano em ano o teu cartão de visitas?… Quanto à tua pessoa,
essa apenas de passagem em alguma reunião.

ALVES – Tens razão! Mas acredita que sou o mesmo.

MIRANDA – Devias dar-me ocasiões de verificá-lo. Dois velhos
amigos como nós sentem de tempos a tempos necessidade de conversar.

ALVES – Que queres?… A fortuna teve inveja de nos ver tão unidos,
e separou-nos. Estás brilhando na política.

MIRANDA – E tu enriquecendo no comércio.

ALVES – Estás casado.

MIRANDA – Por que não fazes o mesmo? É tempo.

ALVES – Confesso-te que já me sinto gasto para esta vida de celibatário.
Às vezes nem sei o que fazer de minha liberdade. Mas quando me lembro
do casamento, só a idéia me assusta.

MIRANDA – Pouco a pouco te irás habituando a ela, e um belo dia, quando
menos pensares, estarás casado.

ALVES – Duvido. Fazer a felicidade de duas criaturas de gênios, de
ocupações, de idades diversas é um problema social que
na minha opinião ainda não foi resolvido, e não me sinto
com forças de o tentar.

MIRANDA – São idéias que todos temos quando profanos. O casamento,
Alves, é o que foi entre nós há algum tempo a maçonaria,
de que se contavam horrores, e que no fundo não passava de uma sociedade
inocente, que oferecia boa palestra, boas ceias. Há dois prejuízos
muito vulgares: uns supõem que o casamento é a perpetuidade
do amor, a troca sem fim de carícias e protestos; e assustam-se com
razão diante da perspectiva de uma ternura de todos os dias e de todas
as horas.

ALVES (rindo) – Na verdade é desanimadora; sobretudo nesta época
de vapor e eletricidade.

MIRANDA – Justo!… O outro prejuízo é daqueles que supõem
o casamento uma guerra doméstica, uma luta constante de caracteres
antipáticos, de hábitos, e de idéias. Esses, como os
outros mas por motivo diferente, tremem pela sua tranqüilidade, Entretanto
a realidade está entre os dois extremos. O casamento não é
nem a poética transfusão de duas almas em uma só carne,
a perpetuidade do amor, o arrulho eterno de dois corações; nem
também a guerra doméstica, a luta em família. É
a paz, firmada sobre a estima e o respeito mútuo; é o repouso
das paixões, e a força que nasce da união.

ALVES – Concordo. Mas que dificuldade para conservar essa paz matrimonial…
Não é preciso que o homem sacrifique a sua individualidade e
se dedique todo à família?

MIRANDA – Como te iludes! É quando o homem goza da plena tranqüilidade
do seu espírito; quando lhe sobra todo o tempo para as ocupações
sérias da vida… julgo por mim.

ALVES – E o tempo para amar a sua mulher e fazer a sua felicidade?

MIRANDA – Não me compreendeste então, Alves. O amor conjugal
é calmo e sério; vive pela confiança recíproca,
e alimenta-se mais de recordações do que de desejos. Um exemplo:
nós já não somos os companheiros inseparáveis
de estudos e de prazeres que fomos outrora; apenas nos encontramos de longe
em longe, e trocamos rapidamente uma palavra, ou um aperto de mão.
Entretanto isto basta: nenhum duvida da amizade do outro. Ambos temos a certeza
de que possuímos um amigo dedicado; e essa certeza é um gozo
superior a qualquer demonstração frívola e banal. Pois
bem: perfuma essa amizade com a graça e a ternura inseparável
da mulher, e terás a imagem perfeita de um casamento feliz. Vou te
fazer uma confidência… (Entra ISABEL) É minha mulher… já
a conheces…

ALVES – Conheço-a; mas ainda não tive o prazer de falar-lhe.

CENA II

Os mesmos e ISABEL

MIRANDA – Bela!… Apresento-te um ingrato, sim, porque nos desdenha. É
o Alves, meu mais íntimo amigo, a quem devo tudo… sabes?

ISABEL – Ah! foi o senhor que salvou Henrique!

ALVES – Apenas ajudei-o a salvar-se.

MIRANDA – Lançando-te ao mar com risco de tua vida. Chamas a isto
ajudar?

ALVES – Perdão! Augusto estava me convertendo ao casamento, minha
senhora.

ISABEL – É lisonjeiro para mim.

MIRANDA – Queres saber o que mais o horrorizava, Bela? Era a idéia
de ficar hipotecado corpo e alma à sua mulher.

ALVES – Não; não é isso que me assusta, mas o receio
de não poder ou não saber fazê-la feliz.

MIRANDA – Não te hás de casar com uma mulher que não
tenha inclinação por ti e que não te estime. Portanto
que receio é este?

ISABEL – Decerto, Sr. Alves. Não nos suponha tão difíceis.
Fazer a felicidade de uma mulher é cousa que custa tão pouco,
àqueles que o desejam!

ALVES – Enfim, tratarei de seguir o teu conselho, Augusto.

MIRANDA – Já nos deixas?… Nem por serem tão raras as tuas
visitas?…

ALVES – Esta é de despedida. Por isso desculpa.

MIRANDA – Como assim?…

ALVES – Vou a S. Paulo e de lá a Minas. (Entra CLARINHA.)

MIRANDA – D. Clarinha, prima de minha mulher. O Sr. Alves, meu amigo. (Cumprimentos.)

ALVES – Talvez possa te ser útil nesta viagem. Tenho amigos que não
duvidarão interessar-se pela tua candidatura.

MIRANDA – Quando partes?

ALVES – Nestes dois dias.

MIRANDA – Bem; havemos de nos ver ainda. Eu te procurarei. Pretendes demorar-te
até o tempo das eleições? (CLARINHA e ISABEL conversam.)

ALVES – Talvez seja obrigado a ficar por lá um ano.

MIRANDA – Que resolução tão repentina foi esta?

ALVES – Eu te digo. Os meus negócios não andam bem; tenho-me
visto em sérios embaraços. Se não conseguir até
o fim do ano próximo realizar o nosso ativo, não sei o que sucederá.
Por isso resolvi deixar a casa sob a direção de meu sócio;
e ir eu mesmo fazer essas cobranças.

MIRANDA – Sinto que estejas em dificuldades. Lembra-te que nessas ocasiões
é que servem os amigos. O meu casamento trouxe-me alguma fortuna. Far-me-ás
obséquio dispondo dela.

ALVES – Obrigado, Augusto, obrigado. Não será necessário;
tenho fé nos meus devedores. Até amanhã. Minhas senhoras!

ISABEL – Boa viagem, senhor Alves! Dizem que as paulistas são bonitas;
é natural que o convertam.

ALVES – Não creia. minha senhora! Quem resistiu às fluminenses,
é um herege que já não tem salvação.

CENA III

ISABEL e CLARINHA

(ISABEL sentada, CLARINHA em pé)

CLARINHA – Verás que ele ainda não vem esta noite. ISABEL –
Quem?

CLARINHA – Onde estás com a cabeça, Bela? de quem falávamos
nós?

ISABEL – Ah! De Henrique?

CLARINHA – Dele mesmo.

ISABEL – E dizias que ele não virá esta noite?

CLARINHA – É o mais certo. Com o pretexto da chuva… Tu não
quiseste mandá-lo chamar para que nos acompanhasse ao teatro… Era
o único meio de fazê-lo passar a noite conosco.

ISABEL – Sabes que eu não gosto de sair sem Augusto!

CLARINHA – Se formos a esperar por ele, não sairemos nunca! Então
agora que lhe meteram na cabeça ser deputado! O verdadeiro é
ires te habituando. Quem nos acompanhava quando estivemos em Petrópolis,
não era Henrique?

ISABEL – Sim… mas hoje não estava com disposição de
sair, Clarinha.

CLARINHA – Quem te obrigava a sair? Ele vinha… Dava-se uma desculpa…

ISABEL – Ele virá independente disso.

CLARINHA – O que perdes?

ISABEL – O quê?… Perco o teu vestido de noiva.

CLARINHA – Deveras, minha senhora?… Também quer zombar de mim? (Beijando-a)
Ah! Se a dificuldade estivesse no vestido!

ISABEL – Não há dificuldade alguma.

CLARINHA – Ah! para ti é como se estivesse feito.

ISABEL – E há de fazer-se, Clarinha, eu te prometo.

CLARINHA – Ora! Se ele não quiser, menos eu.

ISABEL – Ele quer; não te tenho dito tantas vezes!

CLARINHA – Tu, muitas; mas Henrique nem uma só.

ISABEL – Se foges dele!

CLARINHA – Então eu é que lhe hei de fazer a corte?

ISABEL – Fazer, não; mas aceitar, Clarinha.

CLARINHA – Ora, Bela, o tal sonso do senhor Henrique bem sabe que uma moça
quando se esquiva é para ser perseguida.

ISABEL – Nem sempre. (JOAQUIM traz luzes.)

CLARINHA – Eu falo das moças; não falo das senhoras casadas.
(Olhando a pêndula) Mais de oito horas!

ISABEL – Não é tarde.

CLARINHA – Querem ver que foi ao teatro?

ISABEL – Estás impaciente.

CLARINHA – Não sabes a razão?… É que hoje isso se
decide.

ISABEL – Com toda essa pressa!

CLARINHA – Pois hei de estar gastando à toa o meu coração?
Que contas darei depois a meu marido? Eu só pretendo querer bem uma
vez… Mas essa há de valer por todas.

ISABEL – Se não encontrares a indiferença e o abandono!…

CLARINHA – Asseguro-te que não hei de sofrê-lo por muito tempo.

ISABEL – Será ele?

CLARINHA – Ah! (Afastando-se.)

ISABEL – Que é isso? Em que ficou a resolução de há
pouco?

CLARINHA (Gesto de silêncio) – Queres que ele suspeite que o estava
esperando? (Folheia as músicas no piano.)

CENA IV

As mesmas e HENRIQUE

HENRIQUE – Boa noite, Clarinha!

CLARINHA – Ah! que susto que eu tive! Não o vi entrar. (Aperta-lhe
a mão.)

HENRIQUE – Bela!

ISABEL – Adeus, Henrique! (CLARINHA na janela.)

HENRIQUE (Meia voz) – Incomodo?

ISABEL – Clarinha!

CLARINHA – O que é?

ISABEL – Vem conversar!

CLARINHA – Quem me quer, me procura, minha senhora.

ISABEL (a HENRIQUE) – Sabe com quem é aquilo.

HENRIQUE – Clarinha gosta dos girassóis. (A ISABEL, baixo) Desejo
falar-lhe.

CLARINHA – Tenho esse mau gosto.

HENRIQUE – Pois eu prefiro as saudades. (Olha ISABEL.)

ISABEL (meia voz) – Não!

CLARINHA – Já sabia disso.

HENRIQUE (a meia voz) – Pela última vez!…

ISABEL (idem) – Lembre-se do seu tio!

HENRIQUE (idem) – Espere-me nesta sala!

ISABEL (idem) – Que loucura é esta?

CLARINHA – Se é de mim, podem falar alto.

HENRIQUE – Estávamos tão longe daqui!

CLARINHA – No mundo da lua talvez.

HENRIQUE – Tem razão, Clarinha. Eu sou um louco. (Ergue-se.)

ISABEL – Henrique!

CLARINHA – Zangou-se por um gracejo!

ISABEL – Está hoje triste; vê se o consolas.

CLARINHA – É cousa para que não tenho jeito, Bela.

ISABEL – E dizes que o amas! (Afasta-se.)

CLARINHA (a HENRIQUE) – Ainda está mal comigo?

HENRIQUE – Por quê?

CLARINHA – Pelo que lhe disse.

HENRIQUE – Nem já me lembro o que foi.

CLARINHA – Muito obrigada!… Não esperava tanto da sua amabilidade.
(Afasta-se.)

ISABEL (a CLARINHA) – Vamos jogar!

CLARINHA – Joga com o Sr. Henrique!

HENRIQUE – É verdade! Façamos alguma cousa para passar o tempo.

CLARINHA – Ele passa tão devagar nesta casa!

HENRIQUE (a ISABEL) – Não quer jogar?

ISABEL – Clarinha está arrufada. Não tem graça (Vai
ao piano.)

HENRIQUE – Toque um pouco.

ISABEL – Já esqueci o que sabia.

HENRIQUE – Que desculpa, Bela!

ISABEL – Não ouve? Iaiá está chorando. (Sai.)

CENA V

CLARINHA e HENRIQUE

CLARINHA – Chamou-me?

HENRIQUE – Não.

CLARINHA – Parecia-me ter ouvido o meu nome…

HENRIQUE – Foi engano seu.

CLARINHA – Logo vi que não era possível.

HENRIQUE – Que eu a chamasse?

CLARINHA – Sim! Está para ser a primeira vez.

HENRIQUE – Podia ser hoje.

CLARINHA – Como ontem.

HENRIQUE – Se eu tivesse alguma cousa de agradável a dizer-lhe!

CLARINHA – E não tem, Henrique? (Entra ISABEL.)

HENRIQUE – A minha conversa aborrece de ordinário.

CLARINHA – A mim?

HENRIQUE – A todos. Não ouve Iaiá que está chorando?

CLARINHA – Está mas é brincando.

HENRIQUE – Ora! está chorando: vá acalentá-la, Clarinha.

CLARINHA – Não precisa procurar pretextos para afastar-me, meu senhor!
Faço-lhe a vontade.

CENA VI

Os mesmos, ISABEL e MIRANDA

ISABEL – Henrique, eu lhe suplico!

MIRANDA – Até logo… Como estás, Henrique?

HENRIQUE – Boa noite, meu tio!

MIRANDA – Que tens?

HENRIQUE – Nada.

MIRANDA – Desejo falar-te amanhã. (Vai sair.)

ISABEL – Augusto! (Dirige-se a ele) Queria pedir-lhe uma cousa.

MIRANDA – Dize!

ISABEL – Tens muita necessidade de sair hoje?

MIRANDA – Muita.

ISABEL – Podias passar a noite conosco.

MIRANDA – É impossível, Bela! As eleições estão
próximas, e hoje deve decidir-se a minha candidatura.

ISABEL – Todo o teu tempo agora é tomado pela política. MIRANDA
– Ainda assim tens a melhor parte dele. Não sabes quem me faz tão
ambicioso?

ISABEL – Pois bem; toma chá conosco esta noite; e eu te prometo nunca
mais queixar-me.

MIRANDA – De todo não posso, Bela; acredita-me. Clarinha e Henrique
te farão companhia.

ISABEL – Sim! Mas eu fico só!

MIRANDA – Pouco me demoro.

CENA VII

Os mesmos e SALES

SALES – D. Isabel!… Doutor Miranda!

MIRANDA – Como passou, Sr. Sales?

CLARINHA (a MIRANDA) – Vai passear na forma do costume?

MIRANDA – Não dá licença?

CLARINHA – Se eu fosse Bela, decerto que não.

ISABEL – Ele precisa sair.

CLARINHA – Não se acabam mais essas malditas eleições?

MIRANDA – Oh! não pense que me esqueço daquela nossa conversa.
Amanhã…

CLARINHA – O que tem?

MIRANDA – Pretendo falar a Henrique.

CLARINHA – A respeito?…

MIRANDA – Como está esquecida! Até logo, (a meia voz) minha
linda sobrinha! (Vai sair.)

CLARINHA – Engraçado!… olhe! Faça-se deputado depressa para
que Bela fique descansada; e quando for Ministro, lembre-se que tenho um favor
a pedir-lhe.

MIRANDA – Loterias para teatro lírico?

SALES – Realmente é uma necessidade!

CLARINHA – Não, senhor; é um hábito da Rosa aqui para
o senhor Sales.

MIRANDA (rindo-se) – Ah! (Sai.)

SALES – Agradeço muito, minha senhora!

CLARINHA – Se há de ter o trabalho de comprar todos os dias uma flor
para deitar na gola do casaco…

SALES – Esta flor vale mais para mim do que uma fita.

CLARINHA – E de longe faz o mesmo efeito!

SALES – Nunca reparei nisso, D. Clarinha!

CLARINHA – Acredito! O senhor não se vê senão no espelho!
É muito justo. (Entra SIQUEIRA.)

SALES – Confesso que não entendo.

CLARINHA – É pena! O senhor Siqueira que lhe explique.

SIQUEIRA – O quê, D. Clarinha?

CLARINHA – O Sr. Sales não compreende como a gente se pode ver sem
ir ao espelho.

SIQUEIRA – Ah! Facilmente, Sr. Sales! Nos olhos dos outros…

CLARINHA – Aprendeu?… Estimo muito!

CENA VIII

ISABEL, CLARINHA, HENRIQUE, SALES e SIQUEIRA

SIQUEIRA (a ISABEL) – Miranda saiu?

ISABEL – Neste momento.

SIQUEIRA – Já não pára em casa.

ISABEL – Tem muito que fazer agora!

SIQUEIRA – Sei; a maldita política. O pior vício que há
em nossa terra.

ISABEL – Os homens como Augusto, meu pai, precisam de uma vida agitada.

SIQUEIRA – É verdade. As honras e as altas posições
seduzem, mas fazem esquecer um tanto os amigos e até a família.

ISABEL – Que quer? Ele tem necessidade de uma ocupação séria.
(JOAQUIM coloca diante de ISABEL uma banca volante e a bandeja de chá.)

SIQUEIRA – E a educação dos filhos, e a felicidade doméstica?

ISABEL, (Fazendo o chá) – Que tem?

SIQUEIRA – Não são ocupações sérias e
dignas mesmo de uma grande inteligência?

ISABEL – Ah! Mas não bastam para o homem de talento. Estar sempre
junto da mulher, vivendo para a sua família… Isso seria ridículo
até.

SIQUEIRA – Não digas isso!

ISABEL (com ironia) – Nós as mulheres, sim, é a nossa obrigação!…
Enquanto solteiros é justo que façam sacrifícios por
nós, mas depois! Não sabemos que nos amam? Não se casaram
conosco? Algumas queixam-se porque ficam isoladas e tristes; mas a culpa é
delas. Para que inventaram os bailes, senão para nos divertirem enquanto
eles tratam dos seus negócios? Clarinha vem tomar chá.

CLARINHA – Obrigada! Não quero (Vai ao piano.)

SIQUEIRA – Tens razão, Bela! não no que dizes mas no que sentes.
Atualmente uma moça deixa a família, separa-se dos pais, com
o homem a quem ama para ter um companheiro de sua vida; e o que ela encontra
no casamento é a solidão e a viuvez de todas as afeições.

ISABEL – Estava gracejando, meu pai. Não tenho razão de queixa.
Meu marido cerca-me de tantas atenções. (Pausa.)

SIQUEIRA – Que é da minha afilhada? Não me esqueci dela. (Tira
balas do bolso.)

ISABEL – Está lá dentro. Joaquim, dize a Rita que traga Iaiá.
(JOAQUIM vai à porta. Tomam chá.)

CLARINHA – Sr. Sales!

SALES – Minha senhora!

CLARINHA – O senhor não canta?

SALES – Não, D. Clarinha.

CLARINHA – Mas eu creio que já o ouvi na Campesina.

SALES – Nem sou sócio.

CLARINHA – Então seria alguém que se parece com o senhor.

ISABEL – Canta com Henrique.

HENRIQUE – Estou rouco.

CLARINHA – Não faz mal. É o seu estado natural.

HENRIQUE – Excelente razão. Serve para hoje e para outra vez.

CLARINHA – Oh! Guarde na carteira, que eu terei o cuidado de não convidá-lo
mais.

ISABEL – Estão sempre brincando.

SIQUEIRA – Já me parecem casados.

JOAQUIM – Iaiá está dormindo, sim senhora.

SIQUEIRA – Deixe-a dormir.

CLARINHA (a SALES) – Deveras o Sr. não canta?

SALES – Não tenho voz, D. Clarinha.

CLARINHA – Pois ensaiemos o dueto conversando. Aí vai o acompanhamento.
(Pausa.)

SIQUEIRA (a HENRIQUE) – Está jogando a paciência? É jogo
de velho.

HENRIQUE – Ao contrário. Os velhos já não esperam; e
por isso não precisam de paciência.

SIQUEIRA – Oh! se precisam! Sobretudo neste tempo de cosméticos e
chinós, em que já não se tolera o desleixo daquele que
parece velho.

CLARINHA – Então, Sr. Sales, não diz nada?

SALES – Estou ouvindo.

CLARINHA – O Sr. dava um bom deputado. Por que não se apresenta agora?

SALES – A senhora tem lembranças!

CLARINHA – Seriamente! Não dizem que todas as opiniões e todas
as classes devem ser representadas no parlamento? Pois a moda ainda não
tem o seu órgão; pelo menos uma vez que fui á Câmara
não vi lá nenhum figurino. Quanto ao Senado, não se fala;
são quarentões. Ora, se o senhor se apresentasse, era sem contestação
candidato pela Província da Rua do Ouvidor.

SALES – Está brincando, D. Clarinha? Pois olhe; não me faltam
elementos. Se o governo quiser!

CLARINHA – Ora se quiser! Assim achasse ele uma dúzia como o Sr.

SIQUEIRA (a HENRIQUE que baralha as cartas) – E negam que este mundo não
anda às avessas! Quando eu tinha sua idade, deixava o baralho às
velhas que se ferravam na bisca, e nós os rapazes armávamos
um joguinho de prendas, ainda que não fosse senão para ter o
prazer de abraçar uma moça bonita como Clarinha, e pôr
o tal senhor Sales de lampião de esquina.

HENRIQUE – Ele representa melhor de candeeiro de sala. Não vê
como está tão lustroso!

SALES – Estava admirando o seu vestido. É realmente de muito bom gosto.

CLARINHA – Sinto não poder lhe agradecer… Foi um presente.

SALES – Não importa. A senhora é que lhe dá realce.

CLARINHA – Desta vez, sim senhor, obrigada. Mas agora reparo. Está
com umas luvas muito lindas.

SALES – Quer zombar de mim.

CLARINHA – Não sou capaz. Deveras são muito elegantes.

SALES – Talvez a senhora não acredite! Atualmente não se encontra
um par destas luvas em todo o Rio de Janeiro. Pode correr toda a Rua do Ouvidor.

CLARINHA – São tão raras assim?

SALES – É uma cor muito distinta. Não acha?

ISABEL – Que conversa tão animada!

SALES – D. Clarinha não quer cantar.

CLARINHA – O Senhor Sales estava contando-me a história de suas luvas
gris-perle. (Deixa o piano.)

ISABEL – Ah! devia ser interessante.

SALES – D. Clarinha tem muito espírito.

CLARINHA – Parece-lhe?… Estou quase duvidando. (HENRIQUE ergue-se e consulta
o relógio.)

SIQUEIRA – Que horas tem?

HENRIQUE – Quase dez.

SIQUEIRA – Boa noite!

ISABEL – Ainda é cedo, meu pai!

SIQUEIRA – Vou amanhã para Petrópolis…

ISABEL – Tão depressa! Eu tenho muitas queixas suas. Agora quando
vem à cidade, apenas passa conosco um ou dois dias. Já não
nos quer bem!

SIQUEIRA – Estou velho… Custa-me a passar muito tempo fora de casa.

CENA IX

HENRIQUE, SALES, ISABEL e CLARINHA

HENRIQUE – Ainda fica, Sr. Sales?

SALES – Não, senhor. Vamos juntos.

ISABEL – É muito cedo. Para serem amáveis, deviam ficar fazendo-nos
companhia até que Augusto voltasse.

HENRIQUE – Não posso. São mais de dez horas.

CLARINHA – Tão tarde. Deve estar caindo de sono!

SALES – Na sua presença?… Não é possível, D.
Clarinha.

CLARINHA – Isto quer dizer que a minha presença produz o mesmo efeito
que o chá verde! Ataca os nervos. Obrigada pela fineza, Sr. Sales.

SALES – Perdão! Eu não tive intenção de dizer
semelhante cousa.

HENRIQUE – Bela!

ISABEL – Adeus!

HENRIQUE (baixo) – Até logo!

ISABEL (alto) – Até amanhã!

HENRIQUE (baixo) – Eu voltarei, Bela! Para vê-la uma última
vez!

ISABEL – Não! Não volte! Eu lhe suplico.

SALES – D. Isabel!

ISABEL – Passe bem, Sr. Sales.

HENRIQUE – Adeus, Clarinha!

CLARINHA – Adeus! Pode voltar amanhã, que já não terá
o desgosto de encontrar-me aqui.

HENRIQUE – Nem amanhã, nem depois, Clarinha. Talvez nunca mais. Quem
sabe o que pode suceder? Adeus!

SALES – Minhas senhoras!

CENA X

ISABEL e CLARINHA

CLARINHA – Tu me emprestas o teu carro?

ISABEL – Onde queres ir? Está às tuas ordens.

CLARINHA – Vou para o Andaraí.

ISABEL – Que quer dizer isto?

CLARINHA – Há oito dias não vejo minha tia. Demais tu já
deves estar aborrecida de mim.

ISABEL – Henrique te disse alguma cousa?

CLARINHA – Pois não viste?

ISABEL – O que? que te disse ele?

CLARINHA – Não disse nada! É o seu costume.

ISABEL – Mas escuta…

CLARINHA – Faça-me um especial favor, minha prima. Não falemos
mais disto.

ISABEL – Estás agastada e não tens razão.

CLARINHA – Nenhuma. Eu já sabia.

ISABEL – Não tens razão, não, Clarinha. Se Henrique
te trata com indiferença, a culpa é tua.

CLARINHA – Cada vez a melhor.

ISABEL – Que necessidade tinhas de chamar o Sales para junto de ti, e conversar
com ele daquele modo?

CLARINHA – Havia de estar muda?

ISABEL – Anda lá! Querias te vingar de Henrique. Não sabes
quanto isso é perigoso.

CLARINHA (rindo-se) – Com o Sales? (Toma o lenço no piano e acha uma
rosa.)

ISABEL – Com qualquer. Dessas conversas inocentes nasce muitas vezes uma
inclinação.

CLARINHA – Não calunies o pobre moço. Coitado! Ficou tão
atrapalhado que deixou cair a rosa da casaca. (Atira a rosa ao chão.)

ISABEL – Talvez Henrique se ressentisse de ver a intimidade com que o tratavas.

CLARINHA – Não faz mal. Já não me inquieto com isso.

ISABEL – Falas sério?

CLARINHA (beijando-a) – Está tudo acabado, Bela. Vou dormir tranqüila.

ISABEL – Olha para mim, Clarinha!

CLARINHA – Deixa-me!

ISABEL – Estás chorando!

CLARINHA – Eu, não!… até amanhã. (Foge.)

ISABEL – Vem cá! Ouve!

CENA XI

ISABEL e JOAQUIM

(ISABEL toca o tímpano e entra no seu toucador.)

ISABEL (de dentro) – Joaquim!

JOAQUIM – Minha senhora!

ISABEL – Vai fechar a porta; teu senhor volta mais tarde.

JOAQUIM – Eu posso esperar por ele.

ISABEL – Não! Fecha a porta. Quero deitar-me.

JOAQUIM – Minha senhora está doente?

ISABEL – Estou me sentindo constipada. Se Henrique vier… Talvez ele volte
para falar com teu senhor… Se ele vier, tu lhe dirás que já
estão todos recolhidos. Ouviste?

JOAQUIM – Sim, senhora. (Fecha as janelas e apaga as luzes. ISABEL sai de
roupão de dormir, trazendo uma luz.)

ISABEL – Toma o dinheiro para as compras. Vê se nos dão amanhã
melhor jantar. Teu senhor hoje passou mal.

JOAQUIM – Eu reparei, sim senhora!

ISABEL – Está bem. Vai!

JOAQUIM – Deus dê boa noite à minha senhora.

ISABEL – Obrigada! (Pausa.)

CENA XII

ISABEL e HENRIQUE

(ISABEL vai recolher; HENRIQUE aparece.)

HENRIQUE – Perdão, Bela!

ISABEL – Fuja desta casa, Henrique!

HENRIQUE – O que receia?

ISABEL – Oh! não é por mim, é por ele, é pelo
senhor que eu receio… que eu temo. O amor de uma mulher encontra-se a cada
momento; a afeição de um amigo como ele, de um pai, só
Deus a pode dar.

HENRIQUE – Onde vai? ouça-me por compaixão.

ISABEL – Vou mandar abrir as portas e trazer luzes.

HENRIQUE – Bela, a mulher de meu tio, devia saber que é para mim sagrada.

ISABEL – Não parece

HENRIQUE – Não tenho fugido da sua presença? Há quantos
dias não vinha aqui?

ISABEL – Não devia vir a esta hora.

HENRIQUE – É tão grande ofensa vê-la pela última
vez!

ISABEL – Não o compreendo.

HENRIQUE – Amanhã…

ISABEL – Acabe!

HENRIQUE – Amanhã parto para Montevidéu. Deixo a paz e a felicidade
nesta casa, na qual nunca mais devo entrar.

ISABEL – E Clarinha?

HENRIQUE – Que tenho eu com ela? Que me esqueça.

ISABEL – Mas ela o ama!

HENRIQUE – Ela!…

ISABEL (severa) – Henrique!

HENRIQUE – Ah! Eu sinto que sou um miserável. Não vê?
A vergonha me queima as faces.

ISABEL – Ame Clarinha! Aceite esse primeiro amor de um coração
puro. Ela lhe dará a felicidade.

HENRIQUE – Pede-me um impossível. Não lhe basta deixar de ver-me
e para sempre, Bela!

ISABEL – Mas esse projeto é uma loucura.

HENRIQUE – Que importa, se é a sua tranqüilidade.

ISABEL – Comprada com a desgraça do seu tio. A afeição
que Augusto lhe tem, só eu a conheço. É uma ternura de
mãe, disfarçada pela severidade de um pai. Como sofrerá
essa ausência?

HENRIQUE – Se ele pudesse suspeitar o que se passa em mim, seria o primeiro
a exigir que partisse. Há muito o devia ter feito.

ISABEL – Reflita, Henrique!

HENRIQUE – Não posso arrancar minh’alma aos pedaços e atirá-la
para longe de mim. É preciso que eu a arraste comigo, Bela: e a desterre
deste lugar onde cada um dos seus pensamentos é uma infâmia.
Não devia ter vindo… Mas partir sem dizer-lhe uma palavra, sem dizer-lhe
adeus… o último adeus..

ISABEL – Ainda nos veremos um dia!

HENRIQUE – Nunca!

ISABEL (comovida) – Não me roube essa esperança, Henrique!

HENRIQUE (terno) – Bela!

ISABEL (recobrando-se) – Adeus! (Estende-lhe a mão com frieza e esforço.)

HENRIQUE – Tem razão! Adeus, minha irmã.

ISABEL (ouvindo bater à porta da rua) – Meu marido! Eis o que eu temia,
Henrique!

HENRIQUE (quer sair) – Não posso vê-lo!

ISABEL (com império) – Fique!

HENRIQUE – Não sei fingir, Bela!

ISABEL – Mas esse mistério pode condenar-me, Henrique!

HENRIQUE – A ti, a mais pura e a mais santa das mulheres!… Impossível.
(Abre uma janela.) Ninguém me verá. A noite está escura
e o jardim deserto.

ISABEL – Mas é uma imprudência…

HENRIQUE (na janela, já oculto pelas cortinas) – Lembre-se alguma
vez do mísero que enlouqueceu porque teve a desgraça de amá-la
mais do que a um pai…

ISABEL – Adeus! E esqueça-me…

(MIRANDA entra e ouve as últimas palavras de ISABEL que enxuga uma
lágrima e voltando-se acha-se em frente do marido que se tendo precipitado,
a arreda violentamente e corre â janela.)

CENA XIII

ISABEL e MIRANDA

(MIRANDA corre â janela e já não vê o vulto; luta,
perplexidade entre o ímpeto

de lançar-se pela janela e dirigir-se â mulher.)

MIRANDA (rindo convulso) – Que importa! É um homem qualquer… o instrumento
da desonra! O pretexto do crime!

ISABEL (espanto) – Ah! (Pausa.)

MIRANDA (toma a luz e esclarece o rosto de ISABEL) – Ainda cora!

ISABEL – De indignação, senhor!

MIRANDA – Nem uma palavra!

ISABEL – Oh!. não me defendo… Se eu fosse criminosa, já estava
morta de vergonha a seus pés.

MIRANDA – Quem era esse homem?

ISABEL – Oh! Não! Nunca!

MIRANDA – Quem era esse homem, senhora? (Pausa.) É escusado o silêncio.

ISABEL – Que diz, senhor?

MIRANDA (mostrando a rosa, que apanha aos pés de ISABEL) – Por quem,
meu Deus!… Por um Sales!… (Cobre o rosto com as mãos e soluça.
ISABEL olha-o com desespero.)

ISABEL – Eu sou inocente, Augusto!

MIRANDA – Vi tudo, senhora!… Vi… Não cuide que a espiei. Oh não!
minha confiança era cega. Mas disseram-me que se tinha recolhido incomodada,
e eu abafei os meus passos para não perturbar o seu sossego! (Ri-se.)
Imbecil! (MIRANDA fecha as portas, vai ao gabinete; traz um par de pistolas.
ISABEL, enquanto ele sai, ajoelha.)

ISABEL – Dá-me coragem… meu Deus!

MIRANDA – Ele vai julgar-nos. (Carrega as pistolas.)

ISABEL – É um crime inútil, senhor. Sei respeitar a sua e a
minha honra.

MIRANDA – Inútil é a vida que me deixou depois de calcar aos
pés a minha felicidade. (Aponta.)

ISABEL – Oh! (Grito de pavor. IAIÁ bate na porta, chamando: papai.)

MIRANDA – Minha filha! Ah! é preciso viver para ela… e para o mundo!
Quanto a vos… morremos um para o outro.

ATO SEGUNDO

Em casa de MIRANDA – Varanda interior.

CENA PRIMEIRA

RITA e JOAQUIM

(JOAQUIM deita jornais e cartas sobre a mesa. RITA sai da janela.)

RITA – O carro já está pronto, Joaquim?

JOAQUIM – Quem mandou aprontar?

RITA – Ninguém. Iaiá não passeia todos os dias?

JOAQUIM – Passeia com você.

RITA – Pois então?

JOAQUIM – Ninguém deu ordem.

RITA – Se a gente for esperar por isso, não se faz nada. Você
vê quando é para deitar o jantar; pergunta-se ao Senhor, ele
diz: "Se a Senhora mandar". Vai-se perguntar à Senhora, ela
diz: "Se o Senhor mandar". E assim é tudo.

JOAQUIM – Que tem você com isso?

RITA – É que se a gente não fizer as cousas, ninguém
manda fazer.

JOAQUIM – Branco lá se entende. Vá vivendo sua vida, Rita,
que Senhor é muito bom.

RITA – Quem não sabe disto? Minha Senhora, essa é mesmo uma
santa. Olhe, Joaquim! Tenho uma pena de ver como ela se amofina. E é
por causa de seu Senhor!

JOAQUIM – Cale a sua boca, Rita. Não se meta onde não é
chamada.

RITA – Mas, diga uma cousa! Antes de Nhanhã Clarinha casar, não
andava tudo tão direito?

JOAQUIM – Tal e qual, como agora.

RITA – Que história! Esta casa era uma alegria!… Sinhá brincava
que parecia uma mocinha: Nhanhã estava sempre rindo e cantando; e Senhor
moço Henrique esse nem se fala. Depois daquela doença grande
de meu Senhor é que tudo mudou.

JOAQUIM – Aí vem Senhora; bico!

CENA II

Os mesmos, ISABEL e IAIÁ

ISABEL (trazendo IAIÁ pela mão) – Senhor já saiu?…
JOAQUIM – Não Senhora. Está no gabinete falando com um caixeiro
do Sr. Souto.

ISABEL – Agora Iaiá vai passear, sim?… Passear no carro com Rita!

RITA – Venha, Iaiá!

ISABEL – Olhe, Rita está chamando. Não dá um beijo na
sua Mamãe, não?… beija. Ah!… Agora vá dar um em Papai
para Iaiá ficar bonita. (RITA toma a menina.)

RITA – Diga – Mamãe adeus!… Diga… Ora Iaiá é feia.

ISABEL – Tem cuidado com o vento! Ela não está boa.

RITA – Eu abaixo sempre as vidraças do carro.

JOAQUIM – O tempo está muito bom, sim Senhora.

RITA – Vamos tomar a benção a Papai?

ISABEL – Adeus!… (A RITA) não te demores muito.

CENA III

ISABEL e JOAQUIM

JOAQUIM – Esta carta é para minha Senhora.

ISABEL – Entrega a teu Senhor.

JOAQUIM – Mas ele não gosta.

ISABEL – Reuna com as outras.

JOAQUIM – Minha Senhora quer ler os jornais?

ISABEL – Depois, se ficarem aí.

JOAQUIM – Mando pôr o almoço?

ISABEL – Teu Senhor já pediu?

JOAQUIM – Ainda não, Senhora.

ISABEL – Escuta! ele anda doente?

JOAQUIM – Não, Senhora.

ISABEL – Ontem estava tão pálido…

JOAQUIM – Meu Senhor trabalha muito.

ISABEL – Passa as noites a escrever! E isso faz-lhe tanto mal!

JOAQUIM – Esta noite ele dormiu cedo!

ISABEL – Cedo! Às três horas ainda estava trabalhando.

JOAQUIM – E minha Senhora viu?

ISABEL – Não lhe digas isto. Acordei por acaso; pareceu-me ouvir gemer…
Vim escutar naquela porta…

JOAQUIM – Quem sabe se não foi minha Senhora que passou ali a noite
chorando.

ISABEL – Chorando por quê?… Não tenho motivos de chorar. Vivo
tão satisfeita! Tu não vês?…

JOAQUIM – Minha Senhora me perdoa. Eu não disse.

ISABEL – Sabes o que me aflige? É que falte alguma cousa a teu Senhor.
Ele nunca se queixa! Mas deves ver o que ele deseja, para se fazer imediatamente.
A roupa está pronta: vou dar-te daqui a pouco. Por que não trazes
a outra?

JOAQUIM – A outra?…

ISABEL – Sim; para mandar lavar.

JOAQUIM – A outra… já foi, sim, Senhora.

ISABEL – Joaquim!… Que ordem te dei eu?

JOAQUIM – Que minha Senhora mesma é que queria tomar conta da roupa
de meu Senhor.

ISABEL – E não fizeste caso?…

JOAQUIM – Meu Senhor a semana passada me disse: – "Joaquim, não
quero que tua Senhora tenha motivo de afligir-se. Ela não deve se amofinar
com tantas cousas. Manda lavar minha roupa fora".

ISABEL – E tu mandaste?

JOAQUIM – Que havia de fazer, minha Senhora?

ISABEL – Tens razão. (Enxuga a furto uma lágrima.)

CENA IV

Os mesmos e MIRANDA

(JOAQUIM afasta-se vendo o Senhor. MIRANDA cumprimenta friamente ISABEL:
senta-se e lê as cartas)

MIRANDA – Joaquim! Esta carta é de tua Senhora.

JOAQUIM – Veio com as outras. (Entrega a ISABEL.)

ISABEL (a meia voz) – Espera!… (Alto, lendo) É uma carta de Nhanhã
D. Clarinha!… Ah! Ela vem hoje de Petrópolis.

JOAQUIM – Então não pode tardar.

ISABEL – Talvez venha almoçar aqui. (Deita a carta aberta sobre o
aparador.)

MIRANDA (a JOAQUIM) – Esse bilhete de camarote… a tua Senhora. O cartão
do Clube… É hoje!… Hás de preparar o carro!

JOAQUIM – Mando aprontar o carro do Senhor moço Henrique?

MIRANDA – Já pediste licença a tua Senhora? Faze o que ela
mandar. (ISABEL acena a JOAQUIM que sim.)

CENA V

ISABEL e MIRANDA

MIRANDA – Senhora!… Nesta carteira encontrará toda a sua legítima.

ISABEL – Não entendo! Que significa isto?

MIRANDA – Quando nos… Quando seu pai ma entregou, ela estava em apólices
e prédios. Foi necessário vender tudo, vender pelo seu justo
preço. Por isso esperei quase um ano!… Só agora acabo de recebê-la.
Deus sabe quantos amargores me custou cada dia que demorei esta restituição.

ISABEL – Senhor! Esta riqueza lhe pertence e à nossa filha! Eu não
a quero, não a aceito.

MIRANDA – É verdade que uma lei me daria o direito à metade
dela, se ainda fosse seu marido. Não o sou!… Esta riqueza é
sua, unicamente sua. Pode dispor dela como entender: está em vales
ao portador. Para minha filha e para mim basta o meu trabalho.

ISABEL – Mas, Senhor! Quer isto dizer… que me despede?

MIRANDA – Não lhe merecia semelhante suposição! Isto
quer dizer que não é minha intenção condená-la
a sofrer-me. Nesta casa sabe que é Senhora; todos lhe obedecem. Como
Senhora viverá nela enquanto for de sua vontade; como Senhora a deixará
quando lhe aprouver.

ISABEL – Senhora, é verdade!… E antes me queria escrava, do que
sofrer o luxo desse generoso desprezo que me cerca de tantos cuidados… E
eu não o mereço, não, Senhor!

MIRANDA – Não falemos do passado. (Apontando para a carteira) Acabo
de resgatá-lo.

ISABEL – Oh! Não há razão que me faça consentir
neste sacrifício.

MIRANDA – Há uma, Senhora, que a fará consentir: e é
que eu não recebo esmolas de estranhos.

ISABEL – De estranhos!

MIRANDA – Se não aceita seu dote, neste caso sou eu que me vejo obrigado
a deixar esta casa.

ISABEL – Dê-me, Senhor! Não tivesse eu uma filha, sei o que
faria desse papel.

CENA VI

Os mesmos e SALES

SALES – Desculpe-me se usei da antiga liberdade!

MIRANDA – Oh! É o Senhor Sales, minha mulher! (A SALES) Esta casa
é sua. (Apertando a mão.)

SALES – Obrigado. Vossa Excelência tem passado bem? D. Isabel! (Cumprimenta.)

MIRANDA – É uma surpresa agradável a sua visita.

SALES – Há quase um ano que não tinha o prazer de vê-lo.

MIRANDA – Quase um ano! Oh! lembro-me perfeitamente (A ISABEL) Falamos tantas
vezes do Senhor; não é verdade?

ISABEL – Ah!…

SALES – Está incomodada, D. Isabel?

MIRANDA – Sofre agora dos nervos. Não é nada.

SALES – Deve passar algum tempo em Petrópolis com seu cunhado. D.
Clarinha está tão corada!

MIRANDA – Esteve com eles?

SALES – Vejo-os todos os dias. Logo que cheguei da Europa, aconselharam-me
que fosse passar lá o verão.

MIRANDA – Ah! Foi à Europa! Não sabia.

SALES – Pois eu despedi-me! É verdade que não tive a honra
de encontrar a Vossa Excelência.

MIRANDA (sorrindo) – Mas encontrou a Senhora.

SALES – Também não. Disseram-me que Vossa Excelência
estava gravemente doente, e que a Senhora não recebia. Deixei um cartão.
Não lho entregaram?

MIRANDA – É natural.

SALES – Depois soube que tinham ido para a fazenda.

MIRANDA – Estivemos algum tempo, logo depois do casamento de Henrique.

SALES – Que se fez tão de repente!

MIRANDA – Como todos os casamentos!… Pois agora está de volta, Senhor
Sales, espero que continue a honrar esta casa.

SALES – Com muito gosto.

MIRANDA – Minha… mulher aprecia infinitamente a sua amável companhia.
E eu… sabe quanto o estimo… meu amigo… (Aperto de mão.)

SALES – Tanta bondade!

MIRANDA – Ia sair… Dá-me licença. (ISABEL ergue-se.)

SALES – Pois não! Sem cerimônia.

MIRANDA – Fique conversando com minha mulher… Ela estimará muito
saber notícias… de Petrópolis. Use nesta casa de toda a franqueza.

ISABEL – O almoço…

MIRANDA – Ah! não esperem por mim. (Sai.)

CENA VII

SALES, ISABEL, CLARINHA e HENRIQUE

SALES – Sua filhinha está muito crescida, D. Isabel?

ISABEL – Oh! como sofro, meu Deus! Sinto-me realmente doente.

SALES – Deve tratar-se.

ISABEL (a sair) – Desculpe-me; mas eu não posso!…

SALES – Desejo que se restabeleça. (Corteja.)

CLARINHA – Abraça-me outra vez. Que saudades, ingrata!

ISABEL – E tu?

CLARINHA – Queixa-te de Henrique.

HENRIQUE – Adeus, Bela. Não creia.

ISABEL – São desculpas.

HENRIQUE – Augusto?

ISABEL – Saiu.

CLARINHA – Eu te contarei tudo. Temos muito que conversar; como está
meu tio?… E Iaiá?…

ISABEL – Todos bons. (Afastam-se.)

SALES – Voltou ontem muito tarde?

HENRIQUE – Era noite já.

SALES – Foi feliz?

HENRIQUE – Oh! uma batida cheia!… Os cães levantaram uma anta, a
maior que tenho visto! Os outros atalharam no rumo em que vinha a caça:
mas eu fiquei junto de um córrego. "E aqui a espera!" Nisto
vejo relampear entre folhas. Mal tive tempo de faiscar. Um tiro soberbo!

SALES – É a sua paixão!

HENRIQUE – É quando vivo. Quem não é caçador,
não pode compreender as emoções de uma espera.

SALES – Mas D. Clarinha anda sempre assustada.

HENRIQUE – Mulheres!…

CLARINHA – Já está por aqui?

SALES – Vim ontem mesmo.

CLARINHA – E retira-se com a nossa chegada!

SALES – Ia sair, quando entravam. D. Isabel está incomodada.

CLARINHA – Ah! que tens?

ISABEL – Não sei, sinto-me melhor.

SALES – A Senhora também deve estar fatigada da viagem. Voltarei à
noite.

CLARINHA – Até logo. Já notaste, Bela, o Senhor Sales, depois
que foi à Europa, perdeu o hábito da rosa!…

SALES – A minha rosa abandonou-me, D. Clarinha.

HENRIQUE – Onde deitariam a nossa mala?

ISABEL – Está no seu quarto. Quer entrar?

CENA VIII

ISABEL e CLARINHA

CLARINHA – Agora é que reparo. Estás realmente pálida.

ISABEL – Não faças caso! Ando muito nervosa.

CLARINHA – Será algum irmãozinho de Iaiá?

ISABEL – Coitadinha! Este prazer nunca há de ela sentir.

CLARINHA – Sério?… Mas vamos a saber. Que vida é a tua?

ISABEL – Sempre a mesma.

CLARINHA – Não é o que me disseram em Petrópolis.

ISABEL – O que te disseram?

CLARINHA – Que já não sais, não passeias, e estás
sempre metida em casa. Depois que me casei, nunca mais foste ao teatro.

ISABEL – Não tenho tempo agora! Preciso cuidar de minha casa, vivo
para minha filha…

CLARINHA – Ora não vejam esta mãe de família com 23
anos e com este rostinho de menina… Está me parecendo uma cousa.

ISABEL – Podes acreditar…

CLARINHA – Está me parecendo que o Senhor meu tio depois que se viu
deputado, comendador e não sei que mais, já não se lembra
que tem uma mulherzinha tão bonita, e deixa-a ficar em casa enquanto
ele anda por aí todo repimpado na sua farda.

ISABEL – Como és injusta! Não há divertimento no Rio
de Janeiro em que ele se esqueça de mim. Quando fores à sala
verás… Os vasos estão cheios de cartões de bailes,
concertos e teatros. Olha! (mostra os cartões) ficam aí porque
já não tenho gosto.

CLARINHA – Ou porque não tens com quem ir?

ISABEL – Como no tempo em que estavas aqui!

CLARINHA – Parecia de propósito. Não havia noite de baile,
em que não se tratasse de eleições.

ISABEL – Agora não e assim… Antes fosse!

CLARINHA – Por que razão?

ISABEL – Não sai noite alguma, sem primeiro saber se eu quero ir a
alguma parte.

CLARINHA – Bravo! Assim é que eu entendo. Está tomando jeito.

ISABEL – Mas isso aflige-me. Deixa de distrair-se por minha causa.

CLARINHA – Não faz mal. Um marido bem procedido não se diverte
quando sua mulher fica em casa. Nem sei donde te vieram semelhantes idéias.

ISABEL – Tu amas teu marido, Clarinha?

CLARINHA – Que pergunta!

ISABEL – Então deves compreender que ele tem necessidade de alguma
cousa que preocupe o seu espírito. Um homem não vive só
pelo coração como nós.

CLARINHA – O que eu compreendo é que eles têm de obrigação
de nos fazer felizes.

CENA IX

As mesmas e HENRIQUE

ISABEL – Está ouvindo?

HENRIQUE – É comigo?

CLARINHA – Chegou muito a propósito, meu Senhor.

HENRIQUE – Cousa rara nos maridos.

CLARINHA – Participo-lhe que estes oito dias passo com Bela.

HENRIQUE – Não eram três?

CLARINHA – Mudei de opinião.

ISABEL – Fizeste muito bem.

HENRIQUE – Neste caso virei buscá-la na segunda-feira.

CLARINHA – Que tem a fazer lá? Deixe que os pássaros e as pacas
descansem este tempo.

HENRIQUE – E que fico eu fazendo aqui?

CLARINHA – Fazendo-me companhia.

HENRIQUE – Ora! Há oito meses não faço outra cousa.

CLARINHA – Era bom que tomasse algumas lições com seu irmão,
e visse como um marido deve tratar sua mulher.

HENRIQUE – Ah! É por isso que deseja que eu fique?

CLARINHA – Não se lhe pode ocultar cousa alguma.

HENRIQUE – Pois eu faço-lhe a vontade, mas com uma condição.

CLARINHA – Conforme for ela.

HENRIQUE – Há de pedir a Bela, que lhe ensine como a mulher deve amar
seu marido, desculpar-lhe todas as faltas…

ISABEL – Eu dispenso o meu elogio, Henrique.

CLARINHA – Acrescente: porque ele lhe faz todas as vontades.

HENRIQUE – Oh! ela merece tudo.

CLARINHA – Muito obrigada. Eu não mereço nada.

ISABEL – Deixem-se disso.

HENRIQUE – Então está decidido. Ficamos oito dias.

ISABEL – Nem os deixo ir antes.

CLARINHA – E quando for levo-te comigo: já vou te avisando!

ISABEL – Se Augusto quiser.

HENRIQUE – Até já.

CLARINHA – Onde vai?

HENRIQUE – Vou dar um passeio, enquanto meu tio não chega.

CENA X

ISABEL e CLARINHA

CLARINHA – Viste?

ISABEL – Vi, Clarinha! Vi que Henrique não é feliz. E não
foi isto o que me prometeste.

CLARINHA – Que posso eu fazer, Bela? Fomos felizes nos primeiros meses. Tu
sabes como ele me amava, quando nos casamos.

ISABEL – Sei e não fazes idéia do alívio que eu sentia
durante a moléstia de Augusto vendo nascer esse amor.

CLARINHA – Não pensavas decerto que havia de acabar tão cedo?
Henrique já não me ama, Bela.

ISABEL – Porque não queres.

CLARINHA – Sou eu que não quero?

ISABEL – Uma mulher bonita e inteligente como tu, Clarinha, que não
teve a desgraça de perder a estima de seu marido, só o não
obriga a amá-la, quando não quer.

CLARINHA – Gosto de te ouvir falar!… Henrique não pára em
casa: anda sempre em caçadas, ou passeios. Volta fatigado e aborrecido;
tudo lhe enjoa; tudo o contraria.

ISABEL – E tu em vez de agradá-lo, e satisfazer-lhe todos os caprichos,
ficas arrufada, não é?

CLARINHA – Quem pode suportar isto, Bela?

ISABEL – Foi por esta razão, que eu te perguntei se amavas teu marido.

CLARINHA – Quem o sabe melhor do que tu?

ISABEL – Não me compreendeste. Não te perguntei se amavas Henrique;
porém, se amavas teu marido. Parece-te uma extravagância, não
é assim?

CLARINHA – Deveras não te entendo.

ISABEL – Como amamos nós o homem que escolhemos e com quem nos casamos?
Como moças que não conhecem o mundo, e apenas sabem da vida
os sonhos doirados. É um bonito romance que fazemos, todo cheio de
emoções, de sorrisos, e de flores. Foi assim que eu amei Augusto
e que tu amaste Henrique.

CLARINHA – E ainda não mudei.

ISABEL – Estás bem certa disso?… O casamento mata esse primeiro
amor que dura alguns meses, o primeiro ano quando muito. Desaparece a ilusão:
o marido não é mais um herói de um bonito romance, torna-se
um homem como qualquer outro, e às vezes mais ridículo, porque
o vemos de perto. Então sente-se n’alma um vácuo imenso que
é preciso encher.

CLARINHA – Porém tu me justificas.

ISABEL – Ouve. Nesse momento é preciso toda a coragem senão
o tédio e a monotonia de uma vida já sem esperanças nos
invade. A imaginação procura no mundo o que não acha
na família! E sabes o que se encontra?… Pelo menos o martírio
de uma vida inteira.

CLARINHA – E tu sentiste isso, Bela?

ISABEL – Eu?… Oh! não o digas a ninguém! Senti os desenganos
das minhas mais doces esperanças, senti morto o meu primeiro amor,
e tive medo que uma afeição estranha se insinuasse em meu coração.
Via fugir a pouco e pouco esse amor de que tinha vivido tanto tempo e ao qual
dedicara toda a minha existência. Achava-me tão só no
mundo, longe da família que eu tinha deixado, e mais longe da nova
família que eu ainda não sabia compreender. Era um deserto,
em que minha alma vagava sem abrigo. Oh! nunca sofras, tu, Clarinha, o que
eu sofri!… Mas Deus salvou-me. Amei meu marido.

CLARINHA – Como?

ISABEL – Amando minha filha. Refugiei-me nessa afeição. Aí
encontrei de novo o homem que eu tinha amado: associei-me a essa vida que
outrora me parecia tão seca e tão egoísta: acompanhei-o
de longe, e vi quanta generosidade e quanta delicadeza encobre a sua reserva.
A minha solidão foi-se povoando: o governo da casa, os cuidados domésticos,
o desejo de tornar doce e cômoda a existência daquele que se dedicava
à felicidade da família, deram-me as emoções mais
agradáveis e mais puras que tenho sentido. Queres que te confie uma
cousa? O meu maior prazer é ler os discursos de Augusto. Não
te rias!

CLARINHA (rindo) – Hás de entendê-los perfeitamente!

ISABEL – Não os entendo, não! Mas no modo de dizer, na maneira
digna por que ele ataca um adversário, no generoso entusiasmo com que
defende uma idéia, na firmeza e sinceridade de sua palavra, aprendo
a conhecer a nobreza de seu caráter; e descubro muitas vezes uma qualidade
que ainda não se me tinha revelado. Olha, Clarinha: é um erro
nosso, muito comum. Admiramos os estranhos pela consideração
de que eles gozam na sociedade; e entretanto uma mulher, em vez de acompanhar
o marido em seus trabalhos, em suas empresas, em suas glórias, quer
achá-lo tal qual ela o sonhou, na obscuridade e no repouso da vida
doméstica!

CLARINHA – Assim tu tens hoje por teu marido uma verdadeira paixão.

ISABEL – Mais do que paixão; porque é também estima,
respeito e admiração.

CLARINHA – E teu marido te paga com o mesmo amor?

ISABEL – Ele?… Não sei, Clarinha… Nunca lhe perguntei…

CLARINHA – Ah! não sabes!… Sentes tudo isto, dizes que uma mulher
bonita e inteligente basta querer para ser amada por seu marido, e não
sabes se teu marido te ama?… Pois minha rica prima, a tua história
é muito bonita, mas não me agrada!

ISABEL – Asseguro-te que sou mais feliz do que mereço.

CLARINHA – Ora, pois não está se vendo nos teus olhos! Se a
felicidade doméstica – não e assim que se chama? – tem esse
sorriso triste, e esse rosto pálido, podes ficar certa que não
a deixo entrar na minha casa. Não! Prefiro mil vezes as espingardas,
os cães de caça e os aborrecimentos de Henrique.

ISABEL – Escuta!

CLARINHA – Vamos ver se Augusto já veio. (Pausa.) Então não
vens?

ISABEL – Não!… Inda não chegou!

CLARINHA – Não importa! Quero correr a casa! Há tanto tempo!…
Eu também tenho aqui as minhas recordações! Vou te mostrar
o lugar onde Henrique confessou a primeira vez que me amava… quando os médicos
declararam que Augusto estava salvo! Vem!

ISABEL – Não! Não posso agora… Não gosto de entrar
lá.

CLARINHA – Por que motivo?

ISABEL – Ele pode suspeitar que desejo conhecer os seus segredos!…

CLARINHA – Meu Deus! Quanto mistério para se amar seu marido. Deste
modo Henrique pode ficar descansado.

CENA XI

As mesmas e MIRANDA

MIRANDA (entrando) – Adivinhei que já estava aqui.

CLARINHA – Oh! Excelentíssimo!

MIRANDA – Sempre bonita e sempre alegre!

CLARINHA – É o que me vale!… Se eu não trouxesse a alegria
comigo, morria de tristeza naquele desterro de Petrópolis.

MIRANDA – Como está Henrique?

CLARINHA – Bom; já anda passeando. Mas que é isto, meu tio?
Cabelos brancos?…

MIRANDA – Estou velho, Clarinha.

CLARINHA – Com trinta anos!… E de repente!… Quando aqui estava, não
tinha nenhum!

MIRANDA – Tinha e muitos.

CLARINHA – Não, Senhor. Nunca vi.

MIRANDA – Porque os pintava! Era uma fraqueza minha… Ainda fazia a corte
a… Bel… a sua prima. Não queria parecer velho.

CLARINHA – Mas, agora está homem sério: já não
se ocupa com essas ninharias. Só trata de ser ministro!

ISABEL (a meia voz a CLARINHA) – E há de ser!

MIRANDA – Não tenho semelhantes aspirações! A política
faz-me as vezes de um vício. Dá-me as emoções
que os outros encontram no jogo, ou na embriaguez. Atordoa-me: nada mais!…

CLARINHA – Não lhe gabo o gosto.

MIRANDA – Este mundo, Clarinha, é um precipício que todos devemos
atravessar pelo estreito passo da vida. O imprudente pára no meio e
olha o fundo, vacila e cai. É preciso fechar os olhos e correr, para
não sentir a vertigem.

CLARINHA – Mas essa teoria é só para os homens.

MIRANDA (sorrindo) – Não a aconselho a ninguém.

CLARINHA – O que é verdade é que a política tem-no feito
velho, magro, feio, e até distraído.

MIRANDA – Sei que tenho todos os defeitos, mas ainda não tinha reparado
nesse último.

CLARINHA – Pois não, sempre que vinha da rua apertava a mão
de Bela.

MIRANDA – Não apertei agora! Ah! foi realmente uma distração.
Outra vez não cairei nesta falta.

CLARINHA – Ainda está em tempo.

MIRANDA – Minha mulher…

CLARINHA – Minha mulher?… Diga a Senhora. É mais aristocrático!

MIRANDA – Be…la dispensa. (Afasta-se.)

CLARINHA – Mas eu não dispenso.

ISABEL (gesto implicante) – Deixa-te disso.

CLARINHA – Se é uma cousa que eu achava tão bonito! E tinha
pedido a Henrique que tomasse com o Senhor umas lições de bom
marido!… Mas estou vendo que o mestre desaprendeu!…

MIRANDA – Não diga isto. (Vai a ISABEL.) Está satisfeita? (Estende
a mão e toca apenas a de ISABEL.)

CLARINHA – Deveras, meu Senhor!… Era assim que apertava a mão de
Bela? Tenha a bondade! (MIRANDA recua vivamente.)

ISABEL – Clarinha!

CLARINHA – Ora! Não vejam que sacrifício beijar uma testa tão
bonita?

MIRANDA – Já estamos velhos: essas ternuras são ridículas.

CLARINHA – Diga o que quiser. Há aqui alguma cousa que eu hei de descobrir.

MIRANDA – Que lembrança… Por uma ninharia?… Faço-lhe a
vontade. (Acena que beija.)

ISABEL (a meia voz) – Perdão!… Eu não tenho culpa!

CLARINHA – Assim é que se acabam com esses arrufos… Agora, Bela,
dá-me de almoçar que estou caindo de fome. Henrique que almoce
onde estiver!

ISABEL – Não queres mudar o vestido?… Teu quarto está pronto!
(Vai saindo, entra HENRIQUE da rua.)

CLARINHA – Vamos. (A MIRANDA) Vossa Excelência permite. (Chegando-se
a meia voz.) Não me queira mal. Sei que os homens nunca devem ceder;
mas, não posso vê-lo agastado com Bela! E por quê? Por
alguma zanguinha! Alguma teima que nada vale…

MIRANDA – Justamente!… Ela teima em não dar uma ordem, com receio
de contrariar-me; e o que me contraria é que esperem por mim. Tudo
quanto ela mandar acho bem feito!

CLARINHA – Delicadeza da parte de Bela… Não repare nisso… Ela
lhe quer muito bem!

MIRANDA – Muito! Eu tenho provas!

ISABEL (na porta) – Não vens, Clarinha?

CLARINHA – Aqui me tens! (A HENRIQUE.) Oh! depressa voltou!

CENA XII

MIRANDA e HENRIQUE (abraçam-se.)

MIRANDA – Com estás?

HENRIQUE – De saúde, bem.

MIRANDA – E do resto?

HENRIQUE – Vive-se.

MIRANDA – Falas de um modo! Acaso não és feliz?

HENRIQUE – Feliz?… Não sei.

MIRANDA – Não o és decerto. A felicidade sente-se, e com tal
exuberância, que derrama-se em torno por quanto nos cerca.

HENRIQUE – Segue-se que ainda não me chegou; mas também asseguro-lhe,
meu tio, que não tenho o mau gosto de considerar-me desgraçado.

MIRANDA – Na tua idade, casado com uma bonita moça, tão prendada
pela natureza, como pela fina educação que recebeu; possuidor
de uma abastança que te poupa a humilhação do serviço
mercenário; sem entorpecer os nobres estímulos do trabalho;
amado pelos teus, estimado por todos, que te falta para ser feliz, Henrique?

HENRIQUE (a rir) – Nada, meu tio! Eu sou, e o confesso para minha confusão,
o filho pródigo da fortuna. Essa deidade caprichosa, guiada pela mão
do melhor dos homens, de um pai extremoso (aperta a mão de MIRANDA)
encheu-me de benefícios; e o ingrato, apesar de todos os carinhos da
sorte, ainda deseja.

MIRANDA – Mas em suma, que desejo é esse? Não poderemos satisfazê-lo?

HENRIQUE – É o meu sonho. No meio dessa ventura, que lhe devo, meu
tio, sinto às vezes um grande vácuo dentro d’alma: e esse vácuo
vem enchê-lo o tédio e o desânimo… Lembro-me que sou
um ente inútil, que as horas e os dias monótonos gastos em consumir
a existência, podia eu dar-lhes um emprego útil, na ciência,
nas letras, em qualquer outra ocupação. Minha distração
é a caça; não podia ser a política?

MIRANDA (a rir) – Que é ainda uma espécie de caça, a
de alteneria. (Sério.) Meu querido Henrique, caíste na mesma
ilusão que infelizmente nos arrasta a todos nós, os filhos pródigos
da fortuna, como disseste há pouco.

HENRIQUE – Qual?

MIRANDA – Na mocidade, a vida abre-se diante de nós como um jardim;
entramos por essa mansão risonha com a alma cheia de desejos e esperanças.
Uns, famintos de riqueza, divisam o pomo de ouro, e arrojam-se por entre abrolhos
e fraguedos para alcançá-lo. Outros, sedentos de glória,
deslumbram-se com os esplendores dessa rosa mágica riçada de
espinhos, que desabrocha nos cimos inacessíveis dos rochedos, à
borda dos abismos.

HENRIQUE – Meu tio é um desses!

MIRANDA (com expressão) – Fui!… Outros finalmente caminham dia e
noite, extenuados de fadiga, rompendo a espessura, para descobrirem o fruto
da ciência. Entretanto, lá está logo à entrada
do jardim, rasteira e oculta, a flor modesta, a violeta celeste que Deus plantou
na terra para derramar sobre a alma o bálsamo divino. Alguns a olham
de longe, desdenhosamente; muitos aproximam-se um instante atraídos
pelo suave perfume; mas todos passam além; nenhum põe aí
o termo dessa jornada que se chama a vida; nenhum faz dessa flor agreste o
seu primeiro cuidado e o seu melhor tesouro.

HENRIQUE – Quanto a mim, não tem razão, meu tio!

MIRANDA – Ouve! Quando chega o inverno, que os expulsa do jardim encantado,
lá voltam os viajantes alquebrados, com a alma seca e árida
como um deserto; um mordeu o pomo de ouro, e viu que estava cheio de cinza;
outro quando pensava colher a rosa, ela transformou-se em chama que o abrasou
e desfez-se em fumo; o terceiro, mal tocava no fruto da ciência, este
se desfazia em pó. Todos ao passarem pela moita rasteira, buscam com
os olhos a florzinha; e já não a acham; murchou.

HENRIQUE – Não há de murchar para mim, como não murchou
para o Senhor.

MIRANDA – Oh! para mim, não, decerto! Essa flor, já compreendeste,
Henrique, é a felicidade conjugal; que embalsama com sua divina fragrância
o seio da família, que adorna de festões e grinaldas o lar doméstico,
e cobre de uma eterna primavera a nossa existência. Hás de ter
visto, em tuas excursões pelas matas de Petrópolis, esses troncos
decepados e carcomidos, verdadeiros anciãos da floresta; rebentam-lhe
os renovos pelas raízes, e a folhagem brilhante do jovem arvoredo os
veste de galas. É assim o velho que sonha cultivar a felicidade conjugal;
os filhos e as famílias que lhe crescem em torno o cobrem de sorrisos
e carinhos.

HENRIQUE – E cuida meu tio que eu não tenho as mesmas idéias?

MIRANDA – Tu, Henrique, és daqueles que se aproximam da flor, aspiram-lhe
um momento o perfume, mas passam, deixando-a agreste como nasceu. Não
confessaste que, ao lado de tua mulher, sentes um vácuo n’alma; e tão
grande que passas dias longe de casa, pelos matos a caçar? Queres ocupá-lo
com a política! Isto é, queres encher o coração
de cascalho.

HENRIQUE – Não vivemos unicamente para a família; o espírito
carece de uma ocupação.

MIRANDA – Decerto; devemo-nos todos à pátria e à humanidade.
Mas, acredita-me, a primeira ocupação e a mais séria
do homem é a sua felicidade doméstica. Não há
neste mundo mais sagrado sacerdócio do que seja o do pai de família;
ele assemelha-se ao Criador, não somente quando reproduz a sua criatura,
mas quando desses anjos (entra RITA com IAIÁ) que Deus lhe envia, ele
prepara as futuras mães e os futuros cidadãos. É só
depois de cumprida esta santa missão, que temos o direito de dar a
outros misteres as sobras da nossa alma.

HENRIQUE – Não haverá exageração nesse modo tão
exclusivo de considerar a família, sobretudo no século em que
vivemos, meu tio?

MIRANDA (confuso) – É possível. Fui daqueles que se deixaram
arrastar pela vertigem; felizmente esbarrei a tempo; mas, por isso mesmo talvez
influa em mim o perigo que ameaçou a minha felicidade.

HENRIQUE – Mas hoje nada a perturba?

MIRANDA – Nada.

HENRIQUE – Quanto isso me alegra! E eu disse que não sabia se eu era
feliz. Posso não sê-lo, vendo-o cercado de todas as venturas,
e coberto das glórias conquistadas na política?

MIRANDA – Quando te brotarem essas vergônteas, Henrique, (mostra IAIÁ
que tem nos braços) então me hás de compreender; terás
uma alma nova saída da refusão da alma velha; é a alma
do pai.

HENRIQUE – Como está bonita, Iaiá! Então já não
conhece o primo Henrique?

CENA XIII

Os mesmos, RITA, IAIÁ e JOAQUIM

JOAQUIM – O almoço está pronto.

MIRANDA (para HENRIQUE) – Vai almoçar, é tarde. Não
te há de faltar apetite.

HENRIQUE – E meu tio, não vem?

MIRANDA – Já tomei alguma cousa.

HENRIQUE – Até já. (Sai.)

MIRANDA (senta-se com a menina no colo) – Então, minha filha, passeou
muito? Estava bonito o passeio? Por que não convidou Mamãe?
Olhe! sempre que Iaiá for passear, há de convidar Mamãe,
sim?

RITA – Sinhá não quer sair nunca, por mais que eu lhe diga…

MIRANDA – Agora como Clarinha está aqui…

RITA – Ah! Nhanhã D. Clarinha chegou?

MIRANDA – Pode ser que ela a acompanhe. Se precisar de alguma cousa… Talvez
os vestidos já não estejam bons.

RITA – Estão novinhos em folha no guarda-roupa. MIRANDA – Naturalmente
porque não são do gosto dela. Também tu não lhe
perguntas o que ela deseja.

RITA – Sinhá acha tudo bom! Tudo lhe agrada mas não quer que
se compre… Aquelas jóias, meu Senhor não sabe ainda, estão
por abrir.

MIRANDA – Não teve a curiosidade de vê-las?

RITA – Viu, sim, Senhor, e achou muito bonitas. Mas de que serve?… Ninguém
vê Sinhá com elas. Estão guardadas. Diz que hão
de ser para Iaiá quando ficar moça. (Pausa. MIRANDA brinca com
a menina.)

MIRANDA – Quem sabe se ela não está aborrecida do Rio de Janeiro.
Talvez deseje fazer uma viagem, ir à Europa; e não me diz por
acanhamento.

RITA – Qual, meu Senhor.

MIRANDA – Nunca a ouviste falar nisto?

RITA – Nunca, não, Senhor!

MIRANDA – Mas é preciso que faças com que tua Senhora se divirta
um pouco. Ela anda muito triste e muito abatida: não tem distração!

RITA – Nem uma mesmo. Ela não quer sair: também aqui ninguém
vem, senão quando meu Senhor…

MIRANDA – Basta! Não te perguntei por isso. (Amimando a menina que
tira o chapéu.) Não desmanche os seus cachos! Quem foi que penteou
Iaiá? Foi Rita? Não. Foi Mamãe? Foi! E quem vestiu?…
Também foi Mamãe? (A RITA) Outra cousa! Por que deixas que tua
Senhora se mate a coser a roupa de Iaiá? Não tem vindo constantemente
roupa feita da casa da Cretin?

RITA – Sinhá não quer! Diz que isso é o seu divertimento!…

MIRANDA – O que é, minha filha? (Entra ISABEL sem ser vista) Quer
Rita?… Não.

RITA – É o brinquedo!

MIRANDA – Ah! Iaiá trouxe o seu brinquedo!… Quer que dê corda?…
Muito bonito!… Quem deu a Iaiá?… Quem?… Senhor… diga… diga
no ouvido do Papai!…

RITA – Foi aquele moço que encontramos na rua… Não se lembra…
que beijou Iaiá… Senhor Sales.

MIRANDA – Senhor Sales… Ah! Foi ele!… (Afastando a menina.)

CENA XIV

MIRANDA e ISABEL

MIRANDA (voltando-se, vê ISABEL) – Senhora! Eu lhe suplico! Uma dúvida
horrível!

ISABEL – Oh! Por piedade!

MIRANDA – Esta menina…

ISABEL – Cale-se!… não vê que me está matando?

MIRANDA – É… É minha?…

ISABEL – Eu sou pura, Senhor! Juro!

MIRANDA (respira) – Ah!… (Angustiado) Mas que vale o juramento de quem
esqueceu o mais santo!…

ATO TERCEIRO

Na casa de HENRIQUE, em Petrópolis.

CENA PRIMEIRA

ISABEL, CLARINHA, SIQUEIRA e SALES

(SALES entra quando os outros têm chegado do passeio. Formam-se dois
grupos separados CLARINHA e SALES – ISABEL e SIQUEIRA).

SALES – Como andam depressa!… Desde Vila Teresa que os sigo sem poder alcançar.
Minha Senhora. (Cumprimenta ISABEL.)

CLARINHA – Ora! Por que tomou tanto incômodo!

SALES – Permite que lhe ofereça estas flores?

CLARINHA – O meu médico não permite, não, Senhor: fazem-me
dor de cabeça!

SALES – À vista disso condeno-as à prisão. (Esconde
no peito.)

CLARINHA – Era melhor que lhes desse a liberdade!

ISABEL – O passeio fatigou-me.

SIQUEIRA – Então já viste o lucro que se tira da política?

ISABEL – Fala comigo, meu pai?

SIQUEIRA – Não leste o jornal de ontem?

ISABEL – Não, já veio?

SIQUEIRA – Estava sobre a mesa. Traz uma correspondência bem forte
contra Augusto. Entre outras cousas, diz que ele esbanjou a sua fortuna e
de tua filha, e foi obrigado a vender quanto tinha para pagar dívidas
de jogo.

ISABEL – Mas, é uma calúnia, meu pai.

SIQUEIRA – Quem o sabe melhor do que eu, Bela, que conheço Augusto,
como a mim mesmo? É um homem de bem, na extensão da palavra!

ISABEL – Como lhe há de ter doído, meu Deus! Ver-se insultado
assim, e por quê?

SIQUEIRA – Ele já deve estar habituado! São as flores da carreira
política.

ISABEL – Não! Só eu sei o que ele terá sofrido.

SIQUEIRA – O melhor é não dar valor a isso! Não vale
a pena chorar por tão pouco. Estou arrependido de ter falado nisso.

ISABEL – Por quê? Eu lhe agradeço. Podia não ler o jornal
e escapar-me.

SIQUEIRA – Não perdias nada.

ISABEL – É justo que tenha a minha parte nesse desgosto. Não
sou eu a causa dele?

SIQUEIRA – A causa?… E de que modo?…

ISABEL – Foi para satisfazer um desejo meu; talvez um capricho, que meu marido
vendeu os nossos bens. Se não me fizesse a vontade não o caluniariam
agora.

SIQUEIRA – Achariam outro pretexto. Não faltam! CLARINHA – Meu tio!…
O Senhor nunca teve ciúmes de sua mulher?

SIQUEIRA – Como, Clarinha? Não ouvi.

CLARINHA – Pergunto se o Senhor nunca teve ciúmes de sua mulher.

SIQUEIRA – Ah! Estou viúvo há tanto tempo!… A falar verdade,
não me lembro.

CLARINHA – Ora! não quer responder.

SALES – O Sr. Siqueira já não entende desta matéria.

SIQUEIRA – Confesso que nunca fiz profissão dela.

CLARINHA – Pois querendo, pode tomar lições com o Senhor Sales.

SALES – Comigo! Ainda estou solteiro!

CLARINHA – Felizmente para sua futura mulher.

SALES – Explique-me a razão, D. Clarinha.

CLARINHA – Não quero ofender a sua modéstia. (A SIQUEIRA) Decididamente
não responde?… Meu tio tem na consciência algum pecado…

SIQUEIRA – O de ter querido bem a minha mulher.

CLARINHA – Não se pode querer bem, sem ter ciúmes.

SIQUEIRA – Conforme! Quando se está a merecer, é natural; mas
depois que se tem a certeza de uma estima recíproca, me parece até
uma ofensa.

SALES – Não concordo!.

CLARINHA – Nós já sabíamos a sua opinião, Senhor
Sales, antes do Senhor dizê-la. E tu; Isabel, pensas como meu tio?

ISABEL – Perdoa, Clarinha! Estou tão aflita agora.

CLARINHA – Que foi! O que sucedeu? (Correndo a ela.)

ISABEL – Recebi uma notícia bem desagradável.

CLARINHA – De quem? De Augusto? E não me dizias! (SALES aproveita
o momento em que CLARINHA se afasta para deitar no chapéu dela o ramo
de flores.)

SIQUEIRA – Não é nada! Uma calúnia anônima contra
Augusto.

CLARINHA – Não dês importância a isto! É tudo inveja!…

SALES – Em minha opinião o código só devia admitir o
anônimo nas correspondências amorosas…

SIQUEIRA – Essas estão fora da lei. (A ISABEL). Augusto virá
hoje?

ISABEL – Estou esperando por ele.

SIQUEIRA – Então não pode tardar.

CENA II

ISABEL, CLARINHA e SALES

CLARINHA – Está bom! Não quero que meu tio te ache triste!

ISABEL – Augusto!… E este homem aqui!

CLARINHA – Não te importes com ele.

ISABEL – Tu sabes que eu não posso suportá-lo.

CLARINHA – Mas, que te fez ele, que não tens querido dizer-me!

ISABEL – Nada… uma repugnância invencível… Uma dessas antipatias
que não se explicam… Não posso vê-lo.

CLARINHA – Espera. (Alto). Senhor Sales!

SALES – Estava admirando esta cabana! É muito poética!

CLARINHA – Pois deixe a cabana tranqüila, e faça-me o favor de
ir até a Rua do Imperador.

SALES – Com muito gosto. Fazer o quê?

CLARINHA – Fazer-me a vontade.

SALES – A Senhora está gracejando.

CLARINHA – Ora! Por gracejo, não o obrigava a ir tão longe.
É muito sério.

SALES – Então não percebo.

CLARINHA – Porque não lhe faz conta. Tenha a bondade de ir até
lá e contar quantas janelas tem o Hotel de Bragança. Foi uma
aposta que fiz com Henrique e quero ganhar.

SALES – O seu desejo é ordem para mim.

CLARINHA – Por saber disto é que tomei a liberdade.

SALES Quantas janelas a Senhora disse que tinha?

CLARINHA – Não me lembro.

SALES – Então é inútil!

CLARINHA – Não há meio de lhe fazer compreender as cousas.
Henrique é teimoso, Sr. Sales, mas acredita no que lhe digo.

SALES – Perdão! Vou imediatamente: hoje mesmo venho lhe trazer a resposta!

CLARINHA – Enfim… O Senhor é muito amável… Mas é
escusado vir hoje… Vamos sair.

SALES – Então… será amanhã. (Com intenção)
Uma e outra cousa.

CENA III

ISABEL e CLARINHA

CLARINHA – Estás sossegada?

ISABEL – Tu me prometeste que eu nunca o encontraria aqui; e sem isso não
vinha a Petrópolis.

CLARINHA – Henrique e teu marido é que são os culpados. Não
há dia em que o não convidem.

ISABEL – Se o tratasses secamente!

CLARINHA – Trato-o como tens visto. Às vezes me aborrece; outras confesso
que, na insipidez em que vivo, me serve de divertimento! É tão
ingênuo!

ISABEL – Zombas dele, bem sei! Mas tu não vês que esse moço
não te compreende, e supõe que o distingues? Não vês
que ele só vem aqui por tua causa?

CLARINHA – Reparaste nisto?

ISABEL Não é de agora: quando solteira já ele te fazia
a corte.

CLARINHA – Com uma rosa no peito: agora traz-me ramos de violetas. Vai em
progresso.

ISABEL – Mas, Clarinha, bastava esse motivo para não consentires que
ele freqüentasse a tua casa.

CLARINHA – Quem governa aqui? Não sou eu? Henrique tem olhos como
tu.

ISABEL – Talvez ainda não tenha percebido.

CLARINHA – Tu percebeste?

ISABEL – Eu sou mulher, Clarinha!

CLARINHA – Qual, Bela. Não é essa a razão. É
porque ele me estima.

ISABEL – Porque confia em ti.

CLARINHA – Confiança que se parece tanto com indiferença, não
me agrada. Preferia que ele me julgasse uma cabecinha de vento!…

ISABEL – Ah! que não avalias o que agora desprezas.

CLARINHA – Pode ser!… Mas dize!… Que grande merecimento tem uma virtude
da minha idade, que não acham muito feia, quando o marido entende que
ela é inabalável?

ISABEL – Essa virtude tem o gozo imenso de inspirar a fé e a serenidade
n’alma daquele que escolhemos para companheiro de nossa existência.
Tem a satisfação íntima que lhe dá a consciência
de sua força para resistir a qualquer desvario. O amor que produz o
ciúme e as contrariedades, Clarinha, é uma excitação,
que passa deixando a fadiga, o tédio e às vezes a dúvida:
o amor que vive da confiança é uma afeição calma
e doce. Há ocasiões em que parece fugir; mas volta sempre pela
atração irresistível das recordações puras.

CLARINHA – Já me disseste tudo isto; mas o que eu sei é que
se as perdizes viessem sem cerimônia passear neste jardim, Henrique
não teria as tais emoções de caçador!… Pois
eu valho menos do que uma perdiz, Bela!

ISABEL – Não estás hoje com o teu bom humor. O que tens?

CLARINHA – O que eu tenho?… Tenho um marido que não se importa comigo.
Tenho dezoito anos que não voltarão: e tenho a fraqueza de querer
bem a quem não me quer. Achas que é pouco?

ISABEL – Está bom! Tudo isto passa com um abraço de Henrique.
Não é Joaquim? Lá… (Aponta.)

CLARINHA – Parece. (Afasta-se.) Estás vendo! O Senhor Sales não
fez a gracinha de deixar o seu ramo de flores no meu chapéu!

ISABEL (sem voltar-se) – É a conseqüência de teus gracejos!
Quando te digo quê ele não compreende…

CLARINHA – Não é de admirar! Outros que deviam… (Vai atirar
o buquê, cai um bilhete que lê rapidamente e esconde.) Que é
isto? (Pausa.)

ISABEL – O que dizias?

CLARINHA (comovida) – Nada; não falei contigo.

ISABEL (chegando-se) – É preciso acabar com este brinquedo! Aquele
moço pode te comprometer!

CLARINHA – Oh! Fique descansada! Vai acabar.

CENA IV

As mesmas e JOAQUIM

ISABEL – Teu Senhor não veio?

JOAQUIM – Veio, sim, Senhora. Ficou na estação.

ISABEL – Ele está bom? Passou bem na cidade? Não achou a casa
muito desarranjada, não?

JOAQUIM – Sempre faltava minha Senhora lá; mas ele não sentiu
nem um incômodo, não, Senhora. (Apresenta uma cestinha.)

ISABEL – O que é isto?

JOAQUIM – São umas frutas que meu Senhor mandou trazer.

ISABEL – Para Iaiá?

JOAQUIM – Para minha Senhora.

ISABEL – Ah! Ele não se esqueceu de mim!

JOAQUIM – E é isto só?… Quando minha Senhora voltar para
a cidade há de ver!… A casa nem se parece!… A sala de minha Senhora
está que faz gosto!

ISABEL – Antes não lhe tocassem!… Vivi feliz ali por tanto tempo.

CLARINHA ( a JOAQUIM) – Quem te perguntou por isso? (A ISABEL) Era uma surpresa
que Augusto queria te fazer. Agora já não é segredo!
Foste tu mesma que escolheste os trastes, a cor do papel, as cortinas, tudo,
até as perfumarias!

ISABEL – Estás sonhando, Clarinha; nunca falei de semelhante cousa.

CLARINHA – Deveras! Não te lembras do meu projeto?… E dos conselhos
que me deste para arranjar a minha casa?… Pois era da tua, que se tratava!

ISABEL – Que maldade!

CLARINHA (a JOAQUIM) – Já está tudo pronto?

JOAQUIM – Está quase. Hoje foi o armador deitar os retratos.

ISABEL – Quais retratos?

JOAQUIM – O da minha Senhora, o de Iaiá, o de Nhanhã e o de
Senhor moço Henrique.

ISABEL – E o dele?

JOAQUIM – O de meu Senhor?… Esse não vi, não, Senhora.

CLARINHA – Quer que tu o peças!… Faceirice desses meus Senhores:
gostam de se fazer desejados!

ISABEL (a JOAQUIM) – Dize a Rita que traga Iaiá.

CLARINHA – Joaquim, ouve! Logo que escurecer hás de rondar pela parte
de fora desta grade para que ninguém se aproxime. Estão-me roubando
as flores.

JOAQUIM – Deixe estar, Nhanhã. Eu descobrirei quem é.

CENA V

ISABEL e CLARINHA

CLARINHA – Ficas esperando por mano?

ISABEL – E tu por que não esperas também por Henrique?

CLARINHA – Não merece destas finezas! Não se deixou ficar ontem,
por lá?… Que venha quando quiser!

ISABEL – Fez mal; porém vinga-te com generosidade. Se o receberes
com meiguice, se te mostrares alegre, e carinhosa, ele terá remorsos,
e outra vez não passará assim dois dias fora de casa, sem necessidade.

CLARINHA – Não passará dous não! Passará oito!
Nada. Este sistema não me serve.

ISABEL – Experimenta-o.

CLARINHA – Há outro melhor!

ISABEL – E não se pode saber?

CLARINHA – Não, Senhora! Também tenho os meus segredos!

ISABEL – Guarda-os: não sou curiosa senão da tua felicidade.

CLARINHA – Não te demores, este jardim é muito úmido.
E tu ainda não estás boa…

ISABEL – Quem fechou isto?… (Na porta da cabana.)

CLARINHA – Fui eu! Que vais fazer aí?

ISABEL – Meu chapéu!…

CLARINHA – Ah! Não vi. Toma. (Fecha de novo e guarda a chave.)

CENA VI

ISABEL e MIRANDA

MIRANDA (cortejando de longe) – Boa tarde, está melhor?

ISABEL – Melhor, muito obrigada. O Senhor passou bem?

MIRANDA – Passo sempre bem na cidade.

ISABEL – Decerto. Está mais tranqüilo: não é obrigado
a constranger-se a todo momento. Mas foi o Senhor quem exigiu que eu viesse
a Petrópolis!

MIRANDA – Perdão! Não exigi. Clarinha convidou-a.

ISABEL – Se eu não percebesse o seu desejo teria vindo?

MIRANDA – Este passeio deve fazer bem à sua saúde: é
uma distração. Em companhia da sua prima, ao menos a Senhora
não está tão só e tão triste.

ISABEL – A minha tristeza é natural; é gênio. Ninguém
já repara nela. Mas o Senhor… Joaquim me disse… Tem feito tantas
despesas em preparar a casa.

MIRANDA – Ah! Mandei fazer alguns consertos… Desculpe-me se não
a preveni. Pensei que a casa como estava podia trazer-lhe lembranças
desagradáveis…

ISABEL – Guardava as mais doces recordações de minha vida!
Não importa!… Nela viverei sempre feliz! O que sinto é que
tome tanto incômodo por minha causa.

MIRANDA – Não, Senhora. A nossa posição exige uma certa
decência, mesmo com sacrifício.

ISABEL – E por que não consente que sua filha tenha uma parte nesses
sacrifícios?… A glória de seu nome, os seus serviços,
a estima pública que o cerca, não deve pertencer a ela algum
dia? Por que não usa de sua fortuna?… Ela é rica!

MIRANDA – Minha filha é pobre… Quanto a essa fortuna, acredite-me,
não a coloque nunca entre nós ambos… Se a felicidade de uma
menina, e a sua honra, Senhora, só pudessem ser compradas por tal preço…
Não teria a força.

ISABEL – E tem a força de se ver caluniado, de ver pesar sobre a sua
probidade uma suspeita infame! Quando podia destruí-la com uma palavra!

MIRANDA – Injúrias anônimas! Quem está livre delas?…
Ah! Se fossem esses os espinhos de minha vida! Cuida que ainda resta sensibilidade
para esses pequenos dissabores nas almas devastadas pelas grandes dores!

ISABEL Se eu pudesse restituir-lhe a felicidade a custo de minha vida inteira…
Mas tenho medo de morrer deixando-lhe essa idéia… É o que
ainda me tem conservado neste mundo. Nunca, até hoje, o Senhor me quis
ouvir uma palavra…

MIRANDA – Para quê?… É melhor não revolver esta cinza…
seria mais uma humilhação para ambos, para o iludido, e para
o que iludisse.

ISABEL – Senhor!… Sinto que pouco tenho a viver!… O que eu lhe digo agora,
direi com meu último suspiro, quando Deus já não deixa
mentir!… Sou inocente!…

MIRANDA – E eu não o sei?…

ISABEL – Ah!…

MIRANDA – A todo o momento o repito a mim mesmo… Estou ouvindo sempre,
sempre, dentro de minha alma, essa palavra que já me disse uma vez…
E quero crer… quero enganar-me a mim mesmo! Mas… não posso!

ISABEL – Há em tudo isto um mist&eeacute;rio que me condena!… Mas
acredite! uma mulher criminosa, por mais vil que fosse, não vivia assim
atada à sua vergonha, e esmagada por esse desprezo tão cruel,
que a procura colocar a cada passo em face de um homem ridículo, que
supõe seu amante! Oh! essa coragem só a dá consciência
pura.

MIRANDA – Tenho-a feito sofrer muito! Por que não me deixou a mim
só esse martírio!…

ISABEL – Não cumpro o meu dever?

MIRANDA – Dever!… A Senhora não tem deveres para comigo!

CENA VII

Os mesmos e ALVES

ALVES – Permissão para um viajante!

MIRANDA – Oh! Alves!… Quando chegaste?

ALVES – Esta manhã. (A ISABEL) Minha Senhora! Soube agora que estavas
aqui!

MIRANDA – Foste feliz na tua viagem? Gozaste sempre saúde?

ALVES – Por esse lado não tenho razão de queixa. Passa-se perfeitamente
em Minas: mas os negócios não correm bem.

MIRANDA – Creio que agora correm mal por toda a parte.

ALVES – É verdade!… Mas, por lá não fazes uma idéia…
Vai para um ano, hás de te lembrar, que ando nas minhas cobranças,
e de oitenta contos de réis não cheguei a arrecadar vinte!.

MIRANDA – Não desanimes por isso! Continua a trabalhar, e espera por
melhores tempos.

ALVES – Sim; porém os meus credores, a quem passei letras ao prazo
de um ano, não esperam mais! Meu sócio já me escreveu,
participando-me isso, e eu não sei o que fazer… Acho-me como vês
numa situação bem crítica.

MIRANDA – Realmente para um homem do teu caráter a posição
é terrível. Faltar aos seus compromissos.

ALVES – Ver declarar-se a falência da sua casa, e apesar de sua boa
fé, fica sujeito a suspeitas injustas! Isso tem-me feito sucumbir!
O prejuízo enfim, vá feito. Tenho forças para suportar
a pobreza.

MIRANDA – Oh! A pobreza não assusta aos homens honestos. Dá-lhes
estímulo ao contrário. Mas, dize-me que posso eu fazer em teu
favor?

ALVES – Obrigado por esta palavra! Não esqueci o oferecimento sincero
que me fizeste na ocasião de minha partida; mas, se não o lembrasses,
não teria ânimo.

MIRANDA – Sim, eu te disse que podias recorrer a mim, no caso de qualquer
embaraço…

ALVES – É o que eu faço e com bastante acanhamento. Nestes
negócios vexo-me mais em dirigir-me a um amigo, do que a um estranho,
a quem obrigo a minha firma, e não o meu reconhecimento.

MIRANDA – Não devias ter acanhamento comigo. A minha fortuna estava
toda à tua disposição…

ALVES – És um verdadeiro amigo.

MIRANDA – Atende! Não mereço os teus elogios. O que eu te oferecia
há um ano não o posso agora.

ALVES – Perdeste a fortuna?

MIRANDA – Não a tenho.

ALVES – Mas tuas propriedades, tuas apólices.

MIRANDA – Vendi-as todas.

ALVES – E o produto?

MIRANDA – Não sei!…

ALVES – Roubaram-te?…

MIRANDA – Não.

ALVES – Mas como se consome assim mais de cem contos de réis em um
ano!…

MIRANDA – A vida é cara na atualidade… A política faz descuidar
os negócios… Mil cousas que fora longo dizer!

ALVES – Ah! Desculpa-me! Vejo que te incomodo!

MIRANDA – Não! O que sinto é não poder servir-te.

ALVES – Por isso não deixaremos de ser amigos… Nada valho e agora
menos; mas sou sempre o mesmo: na fortuna como na adversidade. Ao menos a
franqueza acharás sempre em mim.

MIRANDA – Agradeço-te. Se alguma vez recorresse aos meus amigos, não
lhes faria a injúria de duvidar de sua palavra; nem exigiria deles
os motivos de seu procedimento. Há reservas que se respeitam.

ALVES – Acabemos com isso, Miranda. Perca-se tudo embora; mas o que eu não
quero perder é a tua amizade.

ISABEL – Senhor Alves.

ALVES – Perdão, minha Senhora.

ISABEL – Atenda-me um instante. Eu lhe explico!

ALVES – Não é necessário.

ISABEL — Não posso deixar que o Senhor conserve uma queixa de seu
amigo e por minha causa… Foi um erro meu; as mulheres são às
vezes tão imprudentes…

MIRANDA – Não se trata disso agora.

ISABEL – Tive a fraqueza de falar na riqueza de meu pai, uma vez que meu
marido não quis satisfazer um capricho meu, uma extravagância…
Ele perdoou-me; mas jurou que não tocaria nessa fortuna… Compreende
agora… um escrúpulo… uma susceptibilidade… Dele pois, ou de mim,
aceite, Senhor Alves.

ALVES – Não devia duvidar de ti!… (A ISABEL) Eu admiro e agradeço,
minha Senhora. Mas não posso aceitar sem o consentimento de Miranda.
(Entra HENRIQUE.)

MIRANDA – Ela pode dispor livremente do que lhe pertence, Alves.

ISABEL – Ouve? Não deve recusar.

ALVES – Mas, D. Isabel, eu tenho escrúpulos… Luto com embaraços;
posso ser infeliz, e causar-lhe graves prejuízos.

ISABEL – Que importa!… Então deverei tudo a meu marido. É
um orgulho de mulher, Senhor Alves.

ALVES – Pois bem, se for absolutamente necessário, aceitarei. Vou
amanhã à Corte! verei o estado dos meus negócios e me
resolverei.

CENA VIII

Os mesmos e HENRIQUE

HENRIQUE – Oh! Estás de volta enfim.

ALVES – É verdade! E venho achar-te casado e feliz. O que são
protestos de homem solteiro! (A MIRANDA) Na véspera de minha partida
disse-me que nunca se casaria; e isso com um tom que me Convenceu.

MIRANDA – E um mês depois estava casado!

HENRIQUE – Todos fazemos o mesmo. Quando se protesta é porque já
o negócio está decidido.

ALVES – Fizeste bem; o casamento é uma necessidade. HENRIQUE – Aos
trinta anos: antes é um luxo. (Vão se afastando.)

ALVES – Estarás arrependido?

HENRIQUE – Não! Minha mulher vive satisfeita de seu lado, eu gozo
de toda a liberdade… Nem um aborrece ao outro. Compreendemos o casamento,
não achas?

ALVES – Teu tio me parece que o compreende de outra maneira!

HENRIQUE – Temos gênios tão diferentes! Já sei que ficas
conosco alguns dias.

ALVES – Não posso nem passar a noite aqui; tenho que pôr em
ordem as contas de minhas cobranças para amanhã seguir. (Afastam-se.)

MIRANDA (a ISABEL) – Obrigado, Senhora. (Aperta a mão.)

ISABEL – Me agradece, meu Deus!… Mas eu sinto não possuir outra
fortuna para ter a felicidade de perdê-la, Senhor!

CENA IX

ISABEL e CLARINHA

(No fundo do portão vê-se HENRIQUE, AUGUSTO e ALVES.)

CLARINHA – Bela!… Não viste Henrique?

ISABEL – Está aí conversando com o Senhor Alves.

CLARINHA – Não sei quem é?

ISABEL – Um amigo de Augusto. Vamos ter com ele?

CLARINHA – É o que faltava!… Chegou depois de dois dias e ainda
nem me procurou!…

ISABEL – Chegou agora mesmo!… Olha! ali vem ele.

CLARINHA – Deixa-me só! Se estiveres aqui, ele nada me dirá!

ISABEL – Tens razão. (A meia voz a HENRIQUE) Clarinha está
zangada: abraça-a.

HENRIQUE – Adeus, Clarinha!

CLARINHA – Ah! Já não o esperava!

HENRIQUE – Também era demais. Duas noites pode-se passar fora de casa,
porém três… Era um escândalo!

CLARINHA – Ora! que tinha isso! Podia se divertir! Não reparo nestas
cousas.

HENRIQUE – Então não está zangada comigo? CLARINHA –
Zangada por quê? Não nos casamos para aborrecermo-nos todos os
365 dias do ano… Divertiu-se muito?

HENRIQUE – Nem por isso!… Perdi o meu tempo e o melhor perdigueiro.

CLARINHA – Que desgraça!… Pois nós brincamos e passeamos
muito. Mano ficou na cidade; porém o Senhor Sales fez-nos sempre companhia.
Esteve muito amável.

HENRIQUE – Faço idéia! Quantas vezes falou da viagem à
Europa?

CLARINHA – Uma vez só! Não sabes! Confessou-me que tinha feito
essa viagem por causa de um desgosto que sofrera. Um casamento… Não
sei o quê!…

HENRIQUE – Estou muito fatigado para ouvir agora as histórias de Sales,
Clarinha. Manda-me preparar alguma cousa para jantar… Venho morto de fome
e de sono.

CLARINHA – Pode dormir estes dois dias… Amanhã temos um passeio
ajustado para a Cascatinha; a casa fica bem sossegada. Ah! Guarda-me esta
chave! Não perca!

HENRIQUE – Que passeio é esse tão fora de propósito?

CLARINHA – Já convidei Bela, o tio Siqueira, e o Senhor Sales. Cuidei
que não viesse hoje.

HENRIQUE Se eu soubesse disso decerto que não vinha cá.

CLARINHA – Foi pena!… Quando quiser, chame Augusto e venha jantar. (Sai
correndo, e deixa o lenço com o bilhete de SALES, que HENRIQUE apanha.)

CENA X

MIRANDA, HENRIQUE, ISABEL e IAIÁ

(ALVES despede-se no fundo e sai. MIRANDA dirige-se a HENRIQUE, enquanto
ISABEL recebe de RITA a menina e senta-se com ela à porta.)

ISABEL (a RITA) – Podes ir. (A IAIÁ) Vamos ver papai!… Minha filha
há de dizer que teve muitas saudades de Papai! Diga sim! Para Mamãe
lhe querer bem!…

MIRANDA (Vendo o papel que HENRIQUE lhe apresenta) – Que papel é este?

HENRIQUE – Leia! (ISABEL atende.)

MIRANDA – Está tão escuro já!… (Lendo) "Se me
ama..

espere-me ao escurecer… na…

HENRIQUE – Na cabana do jardim!… Ah!… (Aponta.)

MIRANDA – Mas que é isto?

HENRIQUE – Uma carta de amor! Não vê?

MIRANDA – Onde a achaste?

HENRIQUE – Neste lugar: ela deixou-a cair quando saiu!

MIRANDA – Ela quem?

HENRIQUE – Não adivinha?… Minha mulher!

MIRANDA – É impossível, Henrique!

HENRIQUE – O seu lenço, veja.

MIRANDA – Conheces esta letra?

HENRIQUE – Perfeitamente! É do Sales. (ISABEL corre para a casa.)

CENA XI

HENRIQUE e MIRANDA

MIRANDA – Do Sales?…

HENRIQUE – É verdade!… Um ente desprezível!

MIRANDA – Esta carta será realmente para tua mulher, Henrique… Quem
sabe!

HENRIQUE – Eu vi-a cair. Ela a tinha no seio.

MIRANDA – Que fatalidade, meu Deus!

HENRIQUE – Se ouvisses o que me dizia há pouco, não duvidarias.
Traía-se sem querer… O nome desse homem lhe vinha constantemente
aos lábios! A infame!… Cuspia-me na face a desonra!… Mas enganou-se!
(Deita dois quartos de bala nos canos da espingarda.)

MIRANDA – Que vais fazer?

HENRIQUE – O miserável não tarda!… Se ele vier… Se o esperar…
Tenho dois tiros e a minha honra salva!

MIRANDA – A honra não se discute!… Mas, Henrique, tens a certeza
de que tua mulher seja criminosa?

HENRIQUE – E estas provas?

MIRANDA – Não bastam.

HENRIQUE – E se ela vier?

MIRANDA – Ainda assim! Pode não ser criminosa; pode cometer apenas
uma falta, uma falta bem grave não nego! Porém a tua consciência
está calma e tranqüila neste momento?… Não te acusa ela
de teres deixado entregue às suas próprias forças sem
apoio e sem proteção a virtude de uma menina inexperiente?…
Responde! Se cumpriste o teu dever, cruzo os braços e calo-me.

HENRIQUE – Não há razão que justifique semelhante falta,
meu tio!

MIRANDA – Decerto nada a justifica. Mas qual é a razão que
justifica o marido que trai seus deveres?

HENRIQUE – Há uma grande diferença…

MIRANDA – Sei o que pretendes dizer! Não é dessa fidelidade
material do homem, que eu falo. O nosso grande dever é o de proteger
e fazer a felicidade da mulher que nos sacrificou tudo, que é a mãe
de nossos filhos, e a companheira inseparável da nossa existência.
Como procedemos nós depois que passam os primeiros gozos de um amor
partilhado? Voltamos às ocupações habituais. No nosso
orgulho de homens, entendemos que a inteligência da mulher não
pode acompanhar-nos nessa porção mais importante de nossa vida,
e só deve ocupar-se dos arranjos domésticos, das modas e dos
bailes. Deixamos no isolamento esses entes fracos a quem arrancamos da casa
de seus pais, às festas da família, à ternura materna,
às afeições dos seus!… Gastos pelos amores fáceis
nem um se lembra que a alma, ainda virgem, de sua mulher, tem necessidade
de viver!… Esquecemos enfim o tesouro que nos foi confiado, e cujo valor
só sentimos nos momentos de sua perda!

HENRIQUE – Nunca deixei de amar Clarinha… Tinha toda a confiança
nela, e supunha que era feliz…

MIRANDA – Caíste no erro de todos os maridos. Não associaste
completamente tua mulher à tua vida, não a interessaste nos
teus projetos e sonhos do futuro… Não há nada que a mulher
não compreenda pelo coração; nas cousas as mais áridas,
elas acham o encanto que dá o amor e a imaginação. Tu
gostas da caça, por exemplo. Se Clarinha partilhasse contigo, mesmo
de longe, as tuas emoções e os teus prazeres, não se
julgaria abandonada quando a deixas por este passatempo. O seu espírito
te acompanharia.

HENRIQUE – É noite!… Eu lhe peço… Retire-se!

MIRANDA – Quando estiveres mais calmo.

HENRIQUE – Agora, perdoe-me, não o atendo.

MIRANDA – É agora que me deves ouvir!

HENRIQUE – Deixe-me só!…

MIRANDA – Não!… Não posso deixar-te nesse estado.

HENRIQUE – Pois bem, fique! Mas não me contenha… Há ocasiões
em que o homem não se domina.

MIRANDA – Uma última vez, Henrique…

HENRIQUE – É debalde… A minha resolução está
tomada! (HENRIQUE arma a espingarda. AUGUSTO medita.)

MIRANDA (lento) – Vou te revelar o segredo de um amigo. Também ele
amava sua mulher, também ele cometera o mesmo erro. Recolhendo-se alta
noite, entrou na sala no momento em que um homem que ele não pode conhecer
se despedia de sua mulher e saltava pela janela.

HENRIQUE – Que fez ele?…

MIRANDA (idem) – Chorou a sua felicidade perdida. Agarrou uma arma como agora
fizeste… Uma menina… sua filha, balbuciou seu nome, e salvou-os a ambos!…
Salvou-os da morte, mas que vida, Henrique! A sociedade, a reputação
impôs a estas duas criaturas um suplício horrível! Viveram
no mesmo teto, odiando-se ou desprezando-se. (Anima-se) Desprezando-se? Não!…
Porque o marido amava a mulher culpada! E como nunca a amara… Amor odiento,
paixão vergonhosa, que o rebaixava aos seus próprios olhos,
Que tortura, Henrique!

HENRIQUE – Não sucederia isto, se tivesse seguido o seu primeiro impulso!

MIRANDA – E quando ele visse essa mulher que julgou criminosa dar o exemplo
da virtude a mais austera! Quando visse o heroísmo e a dignidade com
que essa alma nobre suportou todas as afrontas; não estremecia lembrando-se
que podia ter assassinado a inocente? Oh! Quantas vezes depois de a haver
insultado vilmente, não estive quase lançando-me a seus pés,
e pedindo-lhe perdão!…

HENRIQUE – Que diz? O Senhor?

MIRANDA – Eu?… Disse eu?… Falava-te como esse amigo me falou… Ele duvidava!…
Que provas tinha? Sua mulher guardava o silêncio, é verdade!
Mas, não havia nisso algum mistério?… Demais também
sentia-se culpado! Aquela primeira falta foi irreparável? Quem sabe
se ela não é pura ainda e se não houve precipitação
em cavar o abismo que nos… que os separa!… E agora… Henrique, julgas
que seja impossível? (ISABEL aparece do lado da cabana.)

HENRIQUE – Silêncio!… Não ouve? Ali por entre as árvores…
0 seu vestido!… Não é?

MIRANDA – Espera! Cuidas que apesar de tudo esse homem de quem te falei tinha
o direito de matar sua mulher?… Onde vais?

HENRIQUE – Não me siga, meu tio! Se me preza não se coloque
entre mim e a minha honra.

MIRANDA – Não consentirei nunca, Henrique! (HENRIQUE foge entre as
árvores. MIRANDA corre a ISABEL.)

CENA XII

ISABEL e MIRANDA, (depois CLARINHA)

ISABEL (dirige-se à cabana em voz baixa) – Clarinha!… (Na porta
da cabana) Clarinha!…

MIRANDA (á meia voz) – Não se perca!… Seu marido, Clarinha….
(Ouve-se um tiro. ISABEL cai nos braços de MIRANDA que a tem arrebatado.)

ISABEL – Ah!…

MIRANDA – Minha mulher!…

ISABEL – Ouvi a carta… Era preciso salvar..

MIRANDA – A quem?… A seu amante?…

ISABEL – Por que não me deixou morrer! (CLARINHA aparece.)

CLARINHA – Que foi isto? Ouvi um tiro!

MIRANDA – Nada! Henrique descarregou a espingarda e… e… ela assustou-se.

ATO QUARTO

Em casa de SIQUEIRA em Petrópolis. Sala interior.

CENA PRIMEIRA

SIQUEIRA, RITA e IAIÁ

(Iaiá brinca no jardim acompanhada de RITA. SIQUEIRA aparece como
quem

vai a passeio.)

RITA – A bênção?

SIQUEIRA – Não me dirás o que há de novo nesta casa,
desde ontem à noite?

RITA – Nada, não, Senhor. (A IAIÁ) Tome a bênção
a vovô.

SIQUEIRA – Ora! Há aqui alguma cousa necessariamente. Clarinha e Henrique
fogem um do outro. Bela não aparece; e Augusto, esse não diz
palavra.

RITA – Nhanhã D. Clarinha está zangada com Senhor moço
Henrique, porque ele ficou muito tempo caçando!

SIQUEIRA – Arrufos de namorados! Bem, disso já sabia eu. E os outros?

RITA – Meu Senhor?… Esse já veio maçado ontem da cidade.

SIQUEIRA – E tua Senhora?

RITA – Vosmecê não sabe que Sinhá não anda boa?
Esta noite passou muito mal; não dormiu.

SIQUEIRA – E foi ela só? Creio que ainda ninguém dormiu nesta
casa. Toda a noite ouvi Augusto passear nesta sala. Clarinha às duas
horas ainda estava no piano fazendo um concerto com os cães que ladravam
desesperadamente; Henrique, esse deu-lhe a vontade de passear de madrugada
com a chuva. Parece que estava morrendo de calor. Já voltaria?

RITA – Ainda não vi ele hoje, não Senhor.

SIQUEIRA – Talvez tenha armado outra caçada. É muito capaz,
só para fazer pirraça à mulher.

CENA II

ISABEL e SIQUEIRA

(RITA e IAIÁ no jardim; às vezes aparecem.)

ISABEL – Bom dia, meu pai.

SIQUEIRA – Passou mal a noite; já sei.

ISABEL – Perdi o sono, não sei porquê.

SIQUEIRA – Também eu. Com o rebuliço que havia nesta casa,
não é de admirar. Que tem Augusto? Acho-o triste.

ISABEL – Uma contrariedade… os seus negócios. Ele contou-me ontem
quando chegou. Talvez seja obrigado a voltar amanhã.

SIQUEIRA – Amanhã, domingo?

ISABEL – Quis ir hoje; mas creio que Joaquim já não achou bilhete.

SIQUEIRA – Para isso não valia a pena ter vindo. – Quer dar um passeio?
A manhã está tão bonita!

ISABEL – Não posso, não, meu pai.

SIQUEIRA – Vamos até a Vila Teresa; em caminho tomas um copo de leite;
há de fazer-te bem. Não me desacredites os ares de Petrópolis.
Andas tão pálida, e eu quero que voltes corada para a corte.
Rita, vai ver o chapéu de tua Senhora.

ISABEL (a RITA) – Deixa estar. (A SIQUEIRA) Desculpe-me, não tenho
disposição. Depois, quando o sol abrir. (Toma IAIÁ.)

SIQUEIRA – Fica muito tarde; mas eu posso esperar.

ISABEL – Não, Senhor, vá, meu pai. Se me dispuser, eu irei
com Clarinha. (RITA afasta-se.)

CENA III

ISABEL, IAIÁ e MIRANDA

ISABEL – Minha filha!… Onde esteve?… Já viu Papai?… Ele beijou
Iaiá hoje?… Beijou: onde? aqui! (Beija com efusão a face da
menina.) Iaiá vai ficar sem sua Mamãe… Vai… Ela não
pode viver muito tempo não!… Já lhe faltam as forças.
(Pausa.) Quando Mamãe morrer, Iaiá chora?… Não?…
Inocente. (Entra MIRANDA). Não sabes, não saberás nunca,
o que tua mãe sofreu neste mundo, minha filha! Por que Deus consentiu
que me salvasses a vida, naquela noite fatal?…

MIRANDA – Por que, Senhora? Eu respondo por ela.

ISABEL – Não o tinha visto; desculpe-me, Senhor.

MIRANDA – Deus, salvando-nos a vida naquela noite, queria que aqueles que
já não podiam viver um para o outro, vivessem ao menos para
esta menina inocente; que a mãe respeitasse a pureza de sua filha,
já que a mulher não tinha respeitado o nome de seu marido. Mas
assim não aconteceu.

ISABEL – É preciso, meu Deus, que eu tenha descido muito para que
o meu juramento, as minhas lágrimas, os meus protestos, tudo, até
o meu suplício não possa destruir uma simples suspeita. (Deixa
IAIÁ.)

MIRANDA – O que eu vi há um ano, o que tornei a ver ontem é
uma simples suspeita, Senhora?

ISABEL – Viu aquele homem?… Não, não é possível.
Viu uma flor que ele deixara cair por acaso, quando ali estávamos todos;
uma flor que Clarinha atirara ao chão gracejando. Ah! eu não
podia pressentir que espinhos tinha aquela rosa para minha alma. É
a prova que. me condena; e eu não posso dizer contra ela, uma palavra,
sem mentir!

MIRANDA – Mas, ali, naquela noite, estava um homem. Vi-o, desta vez não
é uma suspeita; vi-o saltar da janela; não ouvi as palavras
que lhe disse; creio, porém, que lhe apertou a mão, e a Senhora
tinha lágrimas nos olhos. Aquele homem não era o fátuo
desprezível..

ISABEL – Pelo que há…

MIRANDA – O fátuo que apesar de a haver esquecido, a Senhora quis
ontem salvar com risco de sua vida?…

ISABEL Pelo que há de mais sagrado para mim neste mundo, por sua honra,
e por minha filha, Senhor… Aquele homem não era o Sales.

MIRANDA – Quem era ele então?… Quem?… (Pausa.) Não responde!…
É a terceira vez que lhe pergunto, que lhe peço… E sempre
a mesma mudez. O nome desse homem, Senhora?

ISABEL – Não exija isto de mim. Esse nome, nunca, nunca o ouvirá
de minha boca. Prefiro morrer julgando-me o Senhor culpada, a defender-me
por tal preço.

MIRANDA – E quer que a acredite?… Meu espírito não pode compreender
semelhante enigma. A Senhora é inocente: o que eu vi foi apenas ilusão,
uma aparência, um fato sem significação. Que motivo pode
haver para ocultar o nome desse homem? Para que esse mistério? (Pausa.)
Não mo diz? Fale! Convença-me, Senhora!… Não desejo,
não peço outra cousa; arranque-me esta suspeita! Eu lhe suplico!
Por piedade!… Invente um pretexto, engane-me se for preciso! Talvez eu possa
iludir-me! (Pausa.) Bem sei que tenho razão quando quero, e não
posso crer. Sua alma é nobre, revolta-se contra a falsidade: não
pode, nem mesmo sabe mentir!

ISABEL – E por que não me julga assim, quando lhe juro por minha alma
que nunca traí meus deveres? É justo isso? Diga, Senhor!

MIRANDA – Mas por que razão se obstina em guardar silêncio?…
Teme acaso que eu assassine esse homem? Que perpetre um crime?… Já
o teria feito há muito!… nesse miserável que eu suspeito?…
Outro motivo… Qual pode ser?… Não posso atinar! Encerra porventura
esse nome algum segredo terrível para mim?

ISABEL – Oh! não procure adivinhar!…

MIRANDA – Explique-se, Senhora. Eu lhe imploro! Uma palavra ao menos, uma
só… Não por mim. A tranqüilidade de uma família
vale bem esse sacrifício.

ISABEL – Quer saber?… Quer saber, Senhor, a razão por que não
lhe revelo esse nome?… É porque tenho medo… Sim, tenho medo! Em
face do outro… daquele que o Senhor viu, não poderia sofrer o seu
desprezo, como teria forças para o suportar diante desse… desse que
o Senhor supõe e não é não, eu o juro!… O suplício
seria mais cruel ainda! Sinto que não resistiria, não, meu Deus!…
É esta a razão. Está vendo; não há segredo,
nem mistério algum… Fraqueza minha…

MIRANDA – Então?… Esse outro… Verdadeiro, cujo nome oculta…
Esse… a Senhora ama-o?

ISABEL – Eu?…

MIRANDA – Não acaba de confessá-lo?

ISABEL – Eu, Senhor! Tenho eu mais o direito de amar alguém? Meu amor
não seria um insulto para o único homem que mo poderia inspirar?…
Amo minha filha, é verdade! Única afeição para
que a mulher, a mais vil, nunca se torna indigna.

MIRANDA – Basta, Senhora; sei o que resta fazer.

ISABEL – O que lhe peço, Senhor, é que ao menos de hoje em
diante perca essa idéia cruel que o tortura e que me esmaga. Não
suponha que o engano, não! Para que, meu Deus?… Acredita que fui
culpada uma vez; um instante; não me posso defender; é a minha
desgraça! Teria razão para acusar-me se fosse verdade, mas para
desprezar-me assim, não!… Pode-se ter caído numa falta, e
conservar-se ainda um resto de pudor… Ao menos um pouco de orgulho para
não mentir.

MIRANDA – É preciso que isto tenha um termo. (Entra CLARINHA) Depois
lhe comunicarei a minha resolução.

CENA IV

Os mesmos e CLARINHA

CLARINHA – Já sei que os incomodei esta noite! (Beija ISABEL.) Não
tinha sono, e estava tão nervosa. (Aperta a mão de MIRANDA.)

MIRANDA – Bom dia.

CLARINHA (a ISABEL) – Tu sabes que o piano é que sofreu com os meus
nervos. Lembras-te do teu? Quebrei esta noite não sei quantas cordas…
É um prazer que sinto; aquele estalo faz-me o efeito de um choque elétrico!…
Mas vejo que era preciso que eu aparecesse por aqui. Sua Excelência
está carrancudo, como um ministro demitido; e tu nem me ouves! Estás
descorada, que metes medo!

ISABEL – Não passei bem.

CLARINHA – Com aquele susto, tu que já não andas boa! (A MIRANDA)
Meu tio, faça-me o favor de ralhar com o Senhor seu sobrinho para ver
se ele toma algum jeito de homem sério. Eu já cansei.

MIRANDA – Acho-a muito alegre esta manhã.

CLARINHA – E não se engana. Estou saltando de contente; acordei cantando,
faça idéia! E também vou já prevenindo-o; não
consinto que ninguém hoje esteja triste nesta casa. A sua respeitável
personagem pode ir já começando a desenrugar a testa.

MIRANDA – Suponho que não há motivo para tanta alegria; ao
contrário, parece-me que Henrique tem alguma cousa que o aflige profundamente.

CLARINHA – Deveras, meu tio já reparou? E eu ainda nem dei por isso.
Mas deixá-lo; são venetas; passam depressa; não lhe dê
cuidado. (A ISABEL) Vai fazer o teu toilette; quero que fiques ainda mais
bonita, para ver se teu marido torna-se amável. (A MIRANDA) Não
me agradece?

MIRANDA – Desculpe-me; tenho que escrever. (Vai a mesa.)

CLARINHA – Ninguém o impede; mas olhe que a política não
me entra daquela porta para dentro. Já não é pouco que
a mania de caçar se tenha feito dona da casa, para ainda em cima receber
hóspedes tão desenxabidos como a tal Senhora, que traz a cabeça
dos Senhores todos a juros.

MIRANDA – E é só a política o mau hóspede que
a freqüenta?

CLARINHA – Qual é o outro? Diga!

MIRANDA – Foi apenas uma pergunta. Nada sei, nada devo saber.

CLARINHA – Pois eu sei, meu Senhor, e não faço mistério.
É o pouco caso dos maridos, por suas mulheres. Mas, não há
de durar muito, eu lhe prometo.

MIRANDA – Não há de durar, não; diz bem.

CLARINHA – Explique-se. (MIRANDA prepara-se para escrever; arrepende-se e
sai no começo da cena seguinte.)

CENA V

CLARINHA e ISABEL

CLARINHA (corre a ISABEL e dá-lhe dois beijos na face) – Não
sabes por que estou contente, tão contente, não? Pois não
adivinhas?… Henrique está desesperado de ciúmes!

ISABEL – E tem razão, Clarinha.

CLARINHA – Que é isso? Ele te contou?… Está furioso, não
é verdade? Passou a noite a fumar e a arrancar os cabelos, e eu morrendo
com vontade de rir-me às gargalhadas! Mas depois tive uma pena!…
Saiu com toda aquela chuva, e de madrugada: agora é que voltou.

ISABEL – Mas que fizeste tu, Clarinha?… Não te entendo!

CLARINHA – Pois ele não te contou!… O bilhete daquele bobo do Sales,
que eu deixei cair de propósito…

ISABEL – De propósito?…

CLARINHA – Sim!… Para fazer cócegas a Henrique; e mostrar ao Senhor
meu marido a quanto fica sujeita sua mulherzinha, que ele abandona para andar
se divertindo.

ISABEL – Então tudo isto foi um gracejo da tua parte?

CLARINHA – Oh! Bela! Esta não esperava! Fizeste semelhante idéia
de mim!

ISABEL – Perdoa-me, Clarinha. Perdoa-me! mas, se tu soubesses…

CLARINHA – O quê?… Dize-me… O que sucedeu?

ISABEL – O bilhete…

CLARINHA – Sim.

ISABEL – Henrique acreditou que você o perdera por acaso!

CLARINHA – O ingrato! (Rindo) Mas era justamente o que eu queria.

ISABEL – Conheço a letra…

CLARINHA – Isso sabia eu.

ISABEL – Mostrou-o a Augusto…

CLARINHA – Ah! Por isso meu tio há pouco estava tão sério.

ISABEL – Deixa-me acabar. Ouvi o nome desse homem que nunca devera ter entrado
em nossa casa: não pensei, não refleti… Lembrei-me da tua
perturbação!…

CLARINHA – Receava que adivinhasses o meu projeto. Não consentirias
nele.

ISABEL – Tinha-te visto guardar a chave da cabana… Esse cuidado, a conversa
com o Sales, tantas circunstâncias… Já te pedi perdão,
mas tive medo de ti.

CLARINHA – É engraçado! Quando eu te explicar!…

ISABEL – Não me preveni… Corri a casa, procurei tudo e não
te encontrando…

CLARINHA – Estava passeando com meu tio para dar tempo a Henrique de ter
ciúmes. Se o visse naquele momento não me poderia conter; ria-me
por força.

ISABEL – Quanta circunstância! Vês… Não te achando,
pensei: "Já escureceu! Estará ela na cabana?" Corro
como uma louca. Augusto também ia salvar-te; viu-me, julgou que eras
tu… E foi então…

CLARINHA -. Foi então que tiveste aquele susto. Mas… Bela, aquele
tiro foi realmente a espingarda que disparou por acaso?

ISABEL – Tu acreditas, Clarinha?

CLARINHA – Ias morrendo, meu Deus; e eu era a causa!

ISABEL – Augusto salvou-me, a morte não me quer. Está passado,
não te agonies por isso, nem mesmo dês a entender que o sabes.
Se te revelei este horrível segredo, foi para que toda a tua vida te
lembres da noite de ontem, e das conseqüências que podia ter esse
gracejo.

CLARINHA – E podia eu supor, Bela, que Henrique tivesse por mim essa paixão
furiosa! Lembrar-se de matar-me como um passarinho!… Já se viu que
extravagância! Só um marido caçador tem destas idéias!
E por quê? Por uma brincadeira.

ISABEL – Com a tua virtude e a honra de teu marido não brinques nunca.
São cousas tão santas e tão delicadas… Um sopro pode
destruir para sempre a tua felicidade! (HENRIQUE entra.)

CLARINHA – Fiz mal, confesso; mas, ele não foi um monstro de ingratidão
em acreditar logo e sem dificuldade, que. eu lhe era infiel?… Oh! verás
como me hei de vingar. (Sem voltar-se) É ele? Deixa-o vir.

ISABEL – Fala-lhe e conta-lhe tudo.

CENA VI

As mesmas e HENRIQUE

CLARINHA – Deixa-me gozar primeiro deste prazer. É tão bom
a gente sentir-se amada e com paixão… Queres que te diga! Eu o acho
tão bonito assim! Agora só pensa em mim; só se ocupa
comigo.

ISABEL – Eu te compreendo: deve ser realmente um gozo imenso depois da indiferença
e do abandono. Mas, ele já sofreu muito.

CLARINHA – Não faz mal; que sofra mais um instante! Eu não
tenho sofrido dias inteiros? É moléstia que não mata,
o ciúme. Demais eu tenho o remédio infalível.

ISABEL – Não abuses, Clarinha. Sabes o que é uma desconfiança
que se agarra ao espírito e o rói sem cessar? Tranqüiliza-o
hoje.

CLARINHA – É bom que ele sinta o que custa o desprezo.

ISABEL – Se não lhe disseres já, eu falo.

CLARINHA – Tu nada sabes! No momento em que disseres uma palavra, fico muda.

ISABEL – Ao menos não o deixes sair daqui sem confessar-lhe.

CLARINHA – Isso te prometo. (A HENRIQUE) Melhor cara nos traga o dia de amanhã.
Já acabou de descarregar as suas espingardas, meu Senhor?

HENRIQUE – Preciso falar-lhe.

CLARINHA – Estou às suas ordens. Uma conversa íntima com meu
marido!… É honra que há muito tempo não recebo.

HENRIQUE – Desejo falar à Senhora só. (BELA ergue-se.) CLARINHA
(a ISABEL) – Espera. (A HENRIQUE) Bela sabe todos os meus segredos, os passados,
os presentes e também os futuros. Ela me conhece! Portanto o Senhor
pode falar com toda a liberdade. (Baixo a ISABEL) Estou com uma vontade de
rir-me.

ISABEL (idem) – Tem pena dele!

HENRIQUE – Não há segredo para Bela, no que vou dizer-lhe;
mas, talvez a Senhora se acanhe de responder-me diante dela. Queria poupar-lhe
o vexame de corar em presença da virtude.

CLARINHA – Neste caso, fica, Bela. Toma papel e tinta; bem vês que
é um interrogatório em regra.

HENRIQUE – A ocasião não é própria para gracejos,
Senhora!

ISABEL – Mas, não está vendo, Henrique, que tudo foi um gracejo?

HENRIQUE – Nas almas puras como a sua, Bela, custa a entrar uma suspeita;
mas eu tenho provas. (A CLARINHA) E a Senhora devia saber que as suas zombarias
neste momento são mal cabidas.

CLARINHA – Oh! Reconheço que a situação é grave…
gravíssima! (Ri-se) Perdão! não é culpa minha!
Posso conservar-me séria, vendo-o com esses ares de João Caetano
no Otelo?…

HENRIQUE – Que significa isto, Senhora?…

ISABEL – Isto significa que quando eu voltar, as pazes estarão feitas.

CENA VII

HENRIQUE e CLARINHA

CLARINHA – Estou à espera, meu Senhor.

HENRIQUE – Se isto é uma comédia, acho-a de mau gosto.

CLARINHA – Não se trata de comédia: estou na presença
de meu juiz, se não me engano isto se chama um processo.

HENRIQUE – Acabemos de uma vez. Este papel…

CLARINHA – Estou vendo: é um bilhete do Senhor Sales.

HENRIQUE – Que esteve tão amável estes dois dias…

CLARINHA – Como se lembra do que lhe disse!… E fiz-lhe a injustiça
de supor que a minha conversação o aborrecia!

HENRIQUE – A Senhora sabe a quem escreveu esse… homem?

CLARINHA – Se não é muita fatuidade de minha parte, creio que
foi a esta sua criada.

HENRIQUE – Ainda o confessa?…

CLARINHA – Suponho que o Senhor deseja saber a verdade; se quer que o engane
é escusado perguntar.

HENRIQUE – Como veio este papel parar às suas mãos?

CLARINHA – Achei-o ontem dentro do meu chapéu num ramo de flores.
Não está mal escrito, não?

HENRIQUE – Senhora!… Não me faça perder a calma de que tanto
preciso nesta ocasião. Não brinque com a desgraça de
uma família inteira!… Sabe de que excessos é capaz um homem
de brio para vingar a sua honra ultrajada?…

CLARINHA – Já esperava por isso. É o discurso de rigor! Sei
de que é capaz, meu Senhor; sei que me quis matar ontem…

HENRIQUE – Quem lho disse?

CLARINHA – Talvez ainda lhe venham tentações de o fazer. Mas
pensa que tenho medo de seus tiros e de seus furores?… Não! Do que
eu tenho medo… E o Senhor não o merece!… Do que eu tenho medo é
de que se esqueça de mim e deixe de querer-me bem.

HENRIQUE – Eu lhe suplico! Seja franca; diga-me toda a verdade, Clarinha.

CLARINHA – Muito bem! Eis uma palavra que muda as posições:
já não está aqui o juiz; é meu marido! Agora,
sim Senhor, tenha a bondade de ouvir-me. Eu podia punir como toda a Senhora
honesta deve fazer, a insolência daquele homem, sem que o Senhor o soubesse;
mas quis que aprendesse à sua custa. O Sales não teria a audácia
de escrever-me se visse que meu marido me amava e que eu vivia feliz.

HENRIQUE – Eu não te amo, Clarinha?… Podes duvidar?

CLARINHA – Há quanto tempo não mo dizias?… É uma palavra
que nunca se repete demais à sua mulher…

HENRIQUE – E para isso era preciso me fazeres sofrer tanto? Ainda tremo!

CLARINHA – Oh! Já me arrependi! Confesso que foi uma imprudência.
Que desgraça não ia acontecendo; a desgraça de minha
vida inteira! Se Bela morresse!…

HENRIQUE – E tu, Clarinha!

CLARINHA – Eu?… Pouco se perdia; o Senhor depressa se consolaria.

HENRIQUE – Ingrata!

CLARINHA Quem me chama! Quem acreditou que eu o enganava, e me quis matar!

HENRIQUE – Não me lembres mais essa loucura, eu te peço.

CLARINHA – Por que razão?… Se não a tivesse feito, creio
que não te quereria tanto, como te quero agora.

HENRIQUE – Mas, era um crime, Clarinha.

CLARINHA – Um crime por muito amor! Que mulher não o perdoa!

CENA VIII

Os mesmos e JOAQUIM

JOAQUIM – Está aí o Sr. Sales.

HENRIQUE – Ah!… tão cedo.

JOAQUIM – Ele disse que Nhanhã D. Clarinha pediu para passar hoje
por aqui.

CLARINHA – É verdade.

HENRIQUE (a meia voz) – A farsa é divertida; mas não estou
disposto a representar nela o jocoso papel que me destina. Ouviu, Senhora?

CLARINHA (a meia voz) – Ouvi, Senhor, e já lhe respondo. (Alto) Joaquim,
vai buscar o ramo de violetas que achaste no jardim. (Baixo a HENRIQUE) Não
quer que lhe traga também a espingarda?… É prudente; talvez
esteja carregada! (JOAQUIM tem saído.)

HENRIQUE – Basta de zombarias.

CLARINHA – Perdão; o gracejo terminou; agora sou eu que lhe falo seriamente.
Se a minha palavra não lhe basta e é preciso que eu desça
a explicações, vou satisfaze-lo já. Porem acredite!…
É a sua honra unicamente que eu justificarei; a minha não existe
desde o momento que duvidou dela.

HENRIQUE – Não duvido, Clarinha, mas quando tudo parece combinar-se
de propósito para me iludir, o que posso eu fazer?

CLARINHA – Usar do seu direito; exigir que me justifique.

HENRIQUE – Não supunha que te amava tanto! A menor cousa me faz tremer
agora pela minha felicidade.

CLARINHA – Finalmente!… Pois agora sou eu que tas quero dar; tu as mereces.
Que fizeste da chave que te dei ontem a guardar? Era a chave da cabana.

HENRIQUE – Má! Não me podias ter dito logo! (Entra JOAQUIM.)
CLARINHA (faz gesto a JOAQUIM para deitar o ramo num vaso dos consolos) –
Outra prova.

HENRIQUE – Não preciso de mais, não precisava nenhuma.

CLARINHA (a JOAQUIM) – Esqueci-me de te perguntar. Rondaste ontem ao escurecer
pela grade do jardim? Viste quem me roubava as flores?

JOAQUIM – Não vi ninguém, não Senhora. (HENRIQUE aperta
a mão de CLARINHA.)

CLARINHA – Está bem; manda o Senhor Sales entrar para aqui mesmo.
(JOAQUIM sai.)

HENRIQUE – Não! Eu vou encontrá-lo.

CLARINHA – Ainda! (Introduz o bilhete do SALES no ramo.)

HENRIQUE – Não desconfio de ti, Clarinha! Quero punir este miserável.

CLARINHA – Isto é apenas uma questão de amor-próprio
para mim. Deixe-me o prazer de corrigir essa criançada.

HENRIQUE – Não me poderei conter.

CLARINHA – Quer fazer ao Sales a honra de suspeitá-lo? Reflita. Seria
uma injúria à sua mulher! Nem dê a perceber que sabe cousa
alguma. Promete-me.

HENRIQUE – Tu o queres!

CENA IX

HENRIQUE, CLARINHA e SALES

SALES (a HENRIQUE) – Ah! Não sabia que já tinha voltado! Como
lhe foi de caçada?

HENRIQUE – Viva, Senhor.

SALES – D. Clarinha! (Estende a mão.)

CLARINHA (disfarçando, recusa a mão) – Não repare, Senhor
Sales. Henrique está maçado porque eu lhe acabei de provar que
lhe queria mais bem a ele, do que ele a mim. O Senhor tem sido testemunha;
quando ele não está em casa fico tão aborrecida que não
dou fé de cousa alguma.

SALES – É verdade, tenho observado isso.

HENRIQUE – Também eu de agora em diante pretendo observar, Senhor
Sales.

CLARINHA – E a minha aposta? Quantas janelas tem o hotel?

SALES – Contei quinze, se não me engano, D. Clarinha.

CLARINHA – Bravo!… (A HENRIQUE.) Perdeu, meu Senhor! Não se lembra?
(A SALES) Foi uma aposta muito interessante. Se eu ganhasse, Henrique ficava
obrigado a viver um ano inteiro unicamente para mim, não receberíamos
visitas; não sairíamos senão juntos.

SALES – E quando ele sair para negócios?

CLARINHA – Oh! Fique descansado, Senhor Sales! Durante este ano ele não
tem negócios. (A HENRIQUE) Está disposto a cumprir?

HENRIQUE – Como! Ainda que eu não perdesse. Era minha intenção.

CLARINHA – Que fineza que lhe devo, Senhor Sales!

SALES – Nem por isso, minha Senhora.

CLARINHA – O Senhor não faz idéia! Vou passar o ano mais feliz
da minha vida! Viver só para meu marido… Quando Henrique quiser trabalhar,
irei cuidar dos arranjos da minha casa, do jardim. Ah! por falar em jardim…
O Senhor esqueceu ontem um ramo de flores.

SALES – Um ramo de flores?… Não, Senhora; não me recordo!…

CLARINHA (toca a campainha) – Joaquim o achou esta manha no jardim. (Entra
um escravo) Chama Joaquim. (A SALES) A pessoa a quem o Senhor o destinava
não lhe há de perdoar semelhante esquecimento.

SALES – Não o destinava a ninguém. Deram-me e não tinha
nem um apreço para mim.

CLARINHA (a JOAQUIM) – Entrega o ramo do Senhor Sales.

SALES – Não precisa. (JOAQUIM entrega.)

CLARINHA – Inda pode aproveitá-lo. É bom guardar! (JOAQUIM
sai.) O Senhor não sabe que desgraça ia causando esse ramo inocente.

HENRIQUE (a meia voz) – Clarinha!

CLARINHA – O Senhor Sales é de segredo. (A SALES) Eu lhe conto. Henrique
chegou da caça e estava no jardim conversando, quando não sei
como tropeçou no seu ramo. A espingarda embaraçou-se no bolso
do paletó e disparou!

SALES – Estava carregada?

HENRIQUE – E com um quarto de bala, Senhor Sales.

CLARINHA – É verdade! Foi um estrondo. A bala atravessou de banda
a banda a cabana… Aquela, o Senhor sabe, que há no jardim. Se estivesse
dentro alguma pessoa, morria decerto.

HENRIQUE – Quando o Senhor sair examine por fora que há de ver o rombo.

SALES – Acredito, não é necessário.

CLARINHA – Foi uma felicidade ter eu fechado a cabana logo que o Senhor saiu,
e dado a chave a Henrique, senão podia alguém entrar e acontecer
uma desgraça.

SALES – Que perigo!… A Senhora me dá licença?

CLARINHA – Pois não!…. Mas agora é que reparo; o Senhor está
hoje tão pálido, Senhor Sales.

SALES – Não é nada, minha Senhora. É o meu natural.

CLARINHA – Não; o Senhor anda doente. Aconselho-lhe que faça
outra viagem à Europa.

SALES – Agradeço muito o conselho, D. Clarinha.

CLARINHA – E desta vez, demore-se uns cinco anos pelo menos. Com a saúde
não se brinca.

SALES – Passe muito bem, minha Senhora. Senhor Henrique.

HENRIQUE – Então até a volta da Europa.

SALES – Se for eu virei despedir-me.

CLARINHA – Mas ele já não pode receber visitas, Senhor Sales;
perdeu a aposta.

HENRIQUE (rindo) – Que tirania!

CENA X

Os mesmos e MIRANDA

HENRIQUE – E era disto que querias que eu tivesse ciúmes?

CLARINHA – Então!… Se fosses a esperar por um que te valesse, nunca
terias. (Entra MIRANDA.)

HENRIQUE (a AUGUSTO) – Está vendo como se zomba de um marido!

CLARINHA – Aqui o Senhor, também acreditou! Estou-lhe muito obrigada!

HENRIQUE – Divertiu-se à nossa custa! Vingou-se dos dois dias que
passei fora de casa.

MIRANDA – Assim estás completamente dissuadido? Esse bilhete não
era para Clarinha?

HENRIQUE – Esse bilhete foi uma insolência daquele tolo, e a Senhora
sem dó, nem compaixão, aproveitou-se dele para zombar de mim!…
Diga-lhe o que eu sofri.

CLARINHA – Chamou-me de pérfida, cruel, perjura e indigna!… Acusou-me
de ter traído o seu amor, de não ter respeitado a sua honra…
Não foi?…

MIRANDA – Ainda bem que não passou de um gracejo. Compraste, com algumas
horas de inquietação, o que muitos não conseguem com
anos de experiência e sofrimento… Visto como todo o teu futuro podia
ter sido devorado por um momento de alucinação!… Vela sobre
a tua felicidade, Henrique. Ela vale bem a pena.

CLARINHA – Mas, por isso não precisa ficar triste! Ralhe comigo que
fui a causa de tudo; porém tenha dó de Bela.

HENRIQUE – Realmente, acho-o abatido, meu tio!

MIRANDA – Trabalhei muito esta noite; sinto-me fatigado.

HENRIQUE – Talvez a emoção que ontem sentiu.

CLARINHA – Vamos dar um passeio pelo jardim. O ar da manhã lhe fará
bem.

MIRANDA – Não; preciso estar só. (Toca a campainha.)

HENRIQUE (a meia voz) – Diga-me, meu tio, diga-me com franqueza… Nada o
aflige, neste momento?

MIRANDA – Não faças caso disto. É fadiga apenas.

CLARINHA (a HENRIQUE) – Vamos ver Bela; também não a acho boa
hoje! Aquele susto…

HENRIQUE (baixo) – E pensas que fosse somente o susto…

CLARINHA – Sabes de alguma cousa?

HENRIQUE – Não, não sei nada.

CENA XI

MIRANDA e JOAQUIM

MIRANDA – Compraste os bilhetes para amanhã?

JOAQUIM – Sim, Senhor. (Entrega.)

MIRANDA – Bem: vai arrumar tudo o que me pertence na mala. Hás de
levá-la daqui a pouco à Estação.

JOAQUIM – Meu Senhor não volta mais a Petrópolis?

MIRANDA – Não sei… Preciso do que é meu na cidade… Talvez
volte; porém mais tarde.

JOAQUIM – Minha Senhora viu os bilhetes, e disse que não queria ficar
aqui.

MIRANDA – Tua Senhora precisa ficar por causa de sua saúde; os médicos
aconselham. Não quero que em casa saibam de minha resolução.

JOAQUIM – Sim, meu Senhor.

MIRANDA – Dize a tua Senhora que eu desejo falar-lhe. Dize-lhe baixo que
D. Clarinha não ouça. (MIRANDA fecha uma porta lateral da Esq.,
escreve o sobrescrito e vai lacrar quando ISABEL aparece.)

CENA XII

MIRANDA e ISABEL

ISABEL – Mandou-me chamar, Senhor?

MIRANDA – Disse-lhe há pouco que mais tarde lhe comunicaria minha
resolução… Já a tomei: é necessário que
nos separemos, Senhora.

ISABEL – Para que, Senhor?… Essa separação não tardará
muito. Eu lhe prometo que breve, mais breve do que pensa, ficará livre
de mim.

MIRANDA – Já confessei que a tenho feito sofrer muito. Perdoe-me esta
vez que é a última que lhe falo!… Com a tranqüilidade
e o sossego que trará a nossa separação, há de
restabelecer-se. O que a estava matando era esse suplício de todas
as horas, esse martírio causado pela presença constante de uma
pessoa odiada.

ISABEL – Causado pelo receio de ofendê-la e só com a minha presença!…
Foi um martírio, foi; mas também era a única alegria
que Deus me permitia neste mundo, acompanhá-lo, servi-lo e estimá-lo,
apesar de seu desprezo. Eu lhe suplico, Senhor! Deixe-me esse martírio
até o último sopro de vida. Quero morrer a seu lado, não
para amargurá-lo; a agonia será curta; mas, para que possa dizer-lhe
a minha última palavra.

MIRANDA – Não se aflija, Senhora. Esta separação lhe
pesa porque receia talvez pela sua reputação. Ela não
sofrerá, eu lhe juro.

ISABEL – Que vale a minha reputação desde que a perdi para
o Senhor?… Eu já não vivo neste mundo; que me importa o que
se passa nele?

MIRANDA – Uma Senhora precisa sempre de sua reputação; quando
não seja para si ou para o seu marido, será para sua família,
para sua filha. Fique descansada, porém eu preciso fazer uma viagem
à Europa; a Senhora não pode naturalmente acompanhar-me por
causa de sua filha; fica em sua casa, ou na fazenda com seu pai…

ISABEL – Quando parte, Senhor?

MIRANDA – No próximo paquete.

ISABEL – Depois de amanhã?

MIRANDA – Desejava, mas já não é possível. Será
no seguinte.

ISABEL – Daqui a um mês!… Antes disso terei eu partido, e para mais
longe!… É inútil a sua viagem.

MIRANDA – Deixe estas idéias tristes! Prometo-lhe que não voltarei!…
Um dia chega-lhe a notícia de que está livre, viúva;
pode ainda ser tão feliz! Neste momento, só lhe peço
que me perdoe e me acredite. Aceitando a sua mão, pensei que poderia
fazer-lhe a sua felicidade!…

CENA XIII

Os mesmos e SIQUEIRA

SIQUEIRA – Que é isto? Continua a cena de ontem? De que estás
chorando, Bela?

MIRANDA – As Senhoras choram por qualquer motivo. Comuniquei-lhe o meu projeto
de ir à Europa…

SIQUEIRA – Ah! Mas é cousa nova!

MIRANDA – Resolvi agora na cidade. A minha saúde, a minha carreira
mesmo, exigem esta viagem.

SIQUEIRA – Acho-a fora de propósito. É mau tempo, deve deixar
para maio.

MIRANDA – E a Câmara?… Por esse tempo pretendo estar de volta. Quero
aproveitar o intervalo da sessão: será uma viagem precipitada,
e muito incômoda para Bela.

SIQUEIRA (a ISABEL) – Então já está chorando de saudades?…
É uma ausência de sete meses apenas.

ISABEL – De sete meses!… E que fosse, para quem nunca se separou, mais
do que alguns dias!…

MIRANDA – Convém habituarmo-nos; ninguém sabe quando chega
o momento da separação eterna.

SIQUEIRA – Deixemos isso; a viagem não é agora.

ISABEL – É no próximo vapor.

SIQUEIRA – Havemos de ver.

MIRANDÂ – Em todo caso é cedo para afligir-se, não é
verdade, meu sogro?

SIQUEIRA – Decerto. (A ISABEL) Não te agonies; no fim das contas isso
não passa de projeto.

MIRANDA (saindo) – Já volto.

ISABEL – Peça-lhe que não faça esta viagem; mas como
cousa sua!… Augusto lhe quer bem: há de atendê-lo.

SIQUEIRA – Eu te prometo falar com ele. Fique descansada.

ISABEL – Mas não lhe fale hoje, não; depois outro qualquer
dia. Oh! Eu sinto que essa viagem me mataria.

HENRIQUE (entrando) – Senhor Siqueira, preciso falar a Bela. Me dê
licença.

SIQUEIRA – Outro!… Veja se também a faz chorar como seu tio.

CENA XIV

ISABEL e HENRIQUE

HENRIQUE – Chorava?… E foi ele que a fez chorar? Já sei o que isto
quer dizer.

ISABEL – É um capricho meu, uma sem-razão.

HENRIQUE – Há um ano é esta a primeira vez que nos achamos
sós, Bela. O amor de Clarinha curou a minha loucura; e contudo evitei
sempre essas ocasiões pelo respeito que lhe tenho. Hoje, porém,
é necessário que lhe fale.

ISABEL – Estou agora tão agoniada.

HENRIQUE – Por isso mesmo!… Que adivinho o motivo. (Grave) Bela, o que
se passou naquela noite… Na noite em que eu cometi a imprudência…

ISABEL – Nada, Henrique, nada.

HENRIQUE – Responda-me a verdade.

ISABEL – Já lhe disse. Que idéia é essa?.

HENRIQUE – Dá-me sua palavra de que nada se passou com seu marido?
(Pausa.) Não pode dá-la. Eu suspeito, eu sei tudo, Bela!

ISABEL – É impossível! Quem lho diria?

HENRIQUE – Então o segredo existe? Bem vê que não o pode
ocultar.

ISABEL – Cale-se, Henrique! Podem ouvir-nos! Senti empurrarem aquela porta!

HENRIQUE – Foi engano seu; está fechada. Ontem, Bela, quando me supus
traído por Clarinha, tinha uma arma na mão e meu primeiro movimento
foi um crime! Meu tio quis chamar-me à razão e eu não
o atendi. Enfim, impelido por uma recordação funesta, contou-me
ele uma história; a história de um amigo que como eu se julgava
desonrado, e como eu ia matar sua mulher, quando o grito de sua filha…

ISABEL – Que tem esta história comigo, Henrique?

HENRIQUE – Ele falava de si, Bela!

ISABEL – Como!… Pode supor?…

HENRIQUE – Duas vezes traiu-se; a palavra saiu-lhe sem querer. Disfarçou!…
Mas ontem eu apenas o ouvia; a minha alma estava absorvida numa só
idéia. Depois, esta noite, tudo o que ele me disse me voltou ao espírito,
lembrei-me de sua emoção quando me falava… Inda há
pouco as palavras lhe ouvi!… Não me resta a menor dúvida.

ISABEL – De que, Henrique?

HENRIQUE – Seu marido entrando naquela noite viu-me saltar pela janela. Não
me conheceu e tomou-me por outro. Ambos iam morrer. Iaiá os salvou;
mas desde então vivem como estranhos, vítimas de meu erro, condenados
a um suplício horrível! Aquela febre repentina que nos fez temer
por sua vida e que me privou de partir para Montevidéu foi conseqüência
dessa emoção violenta! Diga-me! Não é essa a verdade?

ISABEL – Não o compreendo, Henrique. Já observou a mínima
desinteligência entre mim e meu marido? (MIRANDA bate na porta envidraçada,
ouve-se a voz de IAIÁ.) É Iaiá. (Quer abrir, HENRIQUE
a retém.)

HENRIQUE – Oh! Quantas circunstâncias que passaram desapercebidas,
e das quais agora me recordo! Porém é escusado negar! Se não
me refere o que se passou, Bela, juro-lhe que vou ter imediatamente com meu
tio e confesso-lhe tudo. Dir-lhe-ei a verdade; que eu fui um louco; que tive
a infâmia de conceber uma paixão insensata, à qual sua
mulher repeliu sempre com indignação! Dir-lhe-ei que naquela
noite, resolvido a abandonar tudo, e ir morrer longe daqui para me punir do
meu crime, e não ofender, nem por pensamento sua honra e sua felicidade…
Que naquela noite tive a audácia de voltar a sua casa e de surpreendê-la
para dizer-lhe o último adeus!… Confessarei tudo… Ele não
me perdoará, estou certo! Mas, conhecerá a alma nobre de que
teve a desgraça de suspeitar!

ISABEL – Pois bem. Já que não lhe posso arrancar essa convicção,
é necessário que saiba o segredo que eu contava levar comigo.
E tudo verdade, Henrique; Augusto me julga culpada. Viu-o naquela noite e
tomou-o por outro homem.

HENRIQUE – Quem?… Não me ocultes!

ISABEL – 0 Sales!

HENRIQUE – Ah! por isso ele ontem duvidou! E não lhe bastava uma palavra,
Bela, para destruir uma suspeita?

ISABEL – Essa palavra era o seu nome.

HENRIQUE – Assim, por causa da afeição que ele me tinha, e
de que eu era indigno, não lhe importou sacrificar a sua felicidade,
a de sua filha e de seu marido!… Sim! Porque meu tio quer-lhe mais, mil
vezes mais do que a mim.

ISABEL – Ele me despreza… E tem razão!

HENRIQUE – Ele a ama, com paixão, como nunca a amou. Confessou-me
ontem!

ISABEL – Será possível, meu Deus! Oh! Não me engane,
Henrique!

HENRIQUE – Bela, é necessário que meu tio saiba tudo.

ISABEL – Nem uma palavra! Foi uma fatalidade que passou sobre mim; já
não há remédio neste mundo.

HENRIQUE – Então, porque eu cometi uma imprudência fugindo pela
vergonha de me achar em face de meu tio, sua mulher, um anjo de virtude, há
de sofrer semelhante tortura?… E eu a causa dessa desgraça, cuida
que consentirei nela? Nunca!

ISABEL – Se conhecesse como eu o caráter de seu tio!… Quantas vezes
não estive a ponto de cair aos pés de Augusto e confessar-lhe
tudo!… Porque, deixe dizer-lhe, Henrique, depois que meu marido me despreza,
é que eu senti toda, a força do amor que eu lhe tinha. Esse
mesmo desprezo com que ele me esmagava vinha cheio de tanta nobreza, de tanta
paixão, que o revelavam a meus olhos bem diferente daquele que eu via
através da indiferença e do abandono. Nunca amei meu marido
com tanto respeito e admiração, como nesse ano que se acaba
de passar!… É verdade!… E quando ele estava possuído da
idéia de que eu amava outro homem… Meu Deus! Não teria coragem
de resistir, se não me lembrasse…

HENRIQUE – De quê?… Da amizade que ele me tem?

ISABEL – Augusto, como todos os homens de grande inteligência e de
caráter enérgico, é inflexível em suas convicções.
O coração pode querer o contrário; a razão não
cede. Ele duvida de mim; se eu pronunciasse o seu nome e revelasse enfim todo
o segredo, pensa que ele acreditaria na minha inocência?…

HENRIQUE – Por que não, desde que eu mesmo me acusasse?

ISABEL – Não se iluda! Ele perderia a sua afeição e
seria mais desgraçado ainda; porque se julgaria desonrado pelo homem
a quem amou sempre, e ainda ama como um filho. Essa desconfiança seria
horrível; e eu duvido que sua alma pudesse resistir a esse golpe. Oh!
meu silêncio mata-me, é verdade, mas a mim somente; e eu devo
morrer!

HENRIQUE – Desonrada por mim! Não profira esta palavra!… Por mim
que se tivesse outrora a infâmia de conceber uma esperança, me
teria punido desse crime! Por mim que seria o primeiro a odiá-la, Bela,
se a sua justa severidade não me repelisse!

ISABEL – Podemos nós, Henrique, dar provas disso?… Provas que convençam
Augusto e afastem de seu espírito toda a suspeita?

HENRIQUE – Que maior prova do que a minha felicidade de hoje? Quem foi que,
para nos salvar de uma paixão criminosa, me fez amar Clarinha? Quem
nos inspirou a ambos com uma bondade angélica esse amor puro?… Entre
todos que a amam e veneram, só ele, só aquele nobre coração
não reconhecerá o anjo que Deus lhe deu por mulher? (CLARINHA
abre a porta da direita com estrépito.)

CENA XV

Os mesmos, CLARINHA e SIQUEIRA

CLARINHA – Bela, que dê o Miranda?

ISABEL – Não sei, por quê?

CLARINHA – O Senhor Siqueira me disse que ele ia amanhã para a cidade;
e que Joaquim já levou a mala para a Estação!

ISABEL – Mas há pouco Augusto saiu daqui.

SIQUEIRA – Esteve na varanda conversando conosco; e deixou-nos para vir buscar
uma carta que esquecera.

ISABEL – E verdade, quando cheguei vi-o escrevendo. HENRIQUE (correndo à
mesa, acha uma carta lacrada) – Uma carta para mim? Que quer dizer isto? (Batem
na porta da esquerda que MIRANDA tem fechado.)

SIQUEIRA – Abre!…

HENRIQUE (lendo) – "Henrique… Há muito tempo… resolvi esta
viagem… (ISABEL lê igualmente) para não…"

CLARINHA (simultâneo com a leitura) – Que viagem?

SIQUEIRA – Uma viagem à Europa. (Batem de novo.)

HENRIQUE – "Para não agoniar Bela, tenho ocultado esse projeto;
direi que pretendo partir no seguinte paquete… mas quando leres esta terás
recebido… as minhas despedidas…" (Esta leitura é rápida.)

ISABEL – Meu Deus!… Não o verei mais? (SIQUEIRA ouvindo bater terceira
vez, dirige-se à porta.)

CLARINHA – Não é possível!

HENRIQUE – Clarinha tem razão: tranqüilize-se, Bela. (SIQUEIRA
tem aberto a porta de vidraça à esquerda, MIRANDA aparece.)

SIQUEIRA – Ora aqui está o Miranda!…

CENA XVI

Os mesmos e MIRANDA

ISABEL (vendo MIRANDA) – Ah!..

MIRANDA (comovido, HENRIQUE tem o papel na mão) – Esta carta só
te devia ser entregue amanhã. Vinha buscá-la e achei a porta
fechada. (Apertando-lhe a mão) Tudo ouvi, Henrique!

CLARINHA – Tudo o quê?

MIRANDA (cingindo com o braço a cintura de ISABEL, a meia voz) – Bela!…
Me perdoarás tu algum dia? (ISABEL reclina a cabeça sobre o
peito de MIRANDA e quase desmaia; MIRANDA beija-a na fronte.)

CLARINHA – Bravo! (A HENRIQUE) Não tens inveja? Abraça-me,
eu dou licença!

HENRIQUE – Com muito prazer; em paga da alegria que fizeste entrar hoje nesta
casa!

MIRANDA (apresentando IAIÁ pela mão) – Nossa filha, Bela. (Conhece
que está desmaiando.)

SIQUEIRA – Uma vertigem!…

HENRIQUE – Já passou.

MIRANDA (aflito) – Bela!

ISABEL – Ah!…

CLARINHA – Que tens?

ISABEL – Não sei… A felicidade!…

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