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José de Alencar
Ao Leitor,
São de outro tom os singelos contos que formam este segundo volume
dos Alfarrábios.
Não convidam ao riso, que tão excelente especiaria é
para um livro de entreter. Bem longe disso, talvez que espremam dos corações
mais ternos e sentimentais uns fios de lagrimas.
Caso assim aconteça, será com bem pesar meu, pois sinceramente
acho de mau-gosto lembrar-se alguém de produzir choros d’artifício
à guisa de jogos de vista, quando não faltam motivos reais de
tristeza e aflição.
Prometo porem desde já em expiação deste pecado literário,
que o terceiro volume dos Alfarrábios irá mais brincalhão
do que o primeiro
Rio de Janeiro, maio de 1873.
J. DE ALENCAR
I
AO CORSO
Caía a tarde.
A borrasca, tangida pelo nordeste, desdobrava sobre o oceano o manto bronzeado.
Com a sombra, que projetavam os negros castelos de nuvens, carregava-se o
torvo aspecto da costa.
As ilhas que bordam esse vasto seio de mar, entre a Ponta dos Búzios
e Cabo Frio, confundiam-se com a terra firme, e pareciam apenas saliências
dos rochedos.
Nas águas da Ilha dos Papagaios balouçava-se um barco de borda
rasa e um só mastro, tão cosido à terra, que o olhar
do mais prático marinheiro não o distinguiria a meia milha de
distância entre as fraguras do penedo e o farelhão dos abrolhos.
Pelas amuradas e convés do barco viam-se recostados ou estendidos
de bruços, cerca de dez marujos, que passavam o tempo a galhofar, molhando
a palavra em um garrafão de boa cachaça de São Gonçalo,
cada um quando chegava a sua vez.
Na tilha sobre alva esteira de coco estava sentada uma linda morena, de olhos
e cabelos negros, com uma boca cheia de sorrisos e feitiços.
Tinha ao colo a bela cabeça de um rapaz, deitado sobre a esteira;
numa posição indolente, e com os olhos cerrados, como adormecido.
De momento a momento, a rapariga debruçava-se para pousar um beijo
em cheio nos lábios do moço, que entreabria as pálpebras
e recebia a carícia com um modo, que revelava quanto já se tinha
saciado na ternura da meiga cachopa.
– Acorde, preguiçoso! dizia esta galanteando.
– Teus beijos embriagam, amor! Não o sabias? respondeu o moço
fechando os olhos.
Nesse instante um homem, que descera a abrupta encosta do rochedo com extrema
agilidade, atirou-se á ponta da verga, e travando de uma driça,
deixou-se escorregar até o convés.
O desconhecido, que assim chegava de modo tão singular, era já
bem entrado em anos, pois tinha a cabeça branca e o rosto cosido de
rugas; mas conservara a elasticidade e nervo da idade viril.
Com a arfagem que o movimento do velho imprimiu ao navio, sobressaltou-se
toda a maruja; e o moço que estava deitado na esteira, ergueu-se de
golpe, como se o tocara oculta mola.
Nesse mancebo resoluto, de nobre e altivo parecer, que volvia em torno um
olhar sobranceiro, ninguém por certo reconheceria o indolente rapaz
que dormitava pouco antes no colo de uma mulher.
Na postura do moço não havia a menor sombra de temor nem de
surpresa, mas somente a investigação rápida e o arrojo
de uma natureza ardente, pronta a afrontar o perigo em toda a ocasião.
Do primeiro lanço viu o velho que para ele caminhava:
– Então, Bruno?
– Aí os temos, Senhor Aires de Lucena; é só fisgar-lhes
os arpéus. Uma escuna de truz!
– Uma escuna!… Bravo, homem! E dize-me cá, são flamengos
ou ingleses?
– Pelo jeito, tenho que são os malditos franceses.
– Melhor; os franceses passam por bravos, entre os mais, e cavalheiros! A
termos de acabar, mais vale que seja a mãos honradas, meu velho.
A esse tempo já a maruja toda a postos esperava as ordens do capitão
para manobrar.
Aires voltou-se para a rapariga:
– Adeus, amor; talvez nunca mais nos avistemos neste mundo. Fica certa porém
que levo comigo duas horas de felicidade bebidas em teus olhos.
Cingindo o talhe da rapariga debulhada em lágrimas, deu-lhe um beijo,
e despediu-a atando-lhe ao braço uma fina cadeia de ouro, sua derradeira
jóia.
Instantes depois, uma canoinha de pescador afastava-se rapidamente em demanda
da terra, impelida a remo pela rapariga.
De pé, no portaló, Aires de Lucena, fazendo à maruja
um gesto imperioso, comandou a manobra.
Repetidas as vozes do comando pelo velho Bruno, colocado no castelo de proa,
e executada a manobra, as velas desdobraram-se pelo mastro e vergas, e o barco
singrou veloz por entre os parcéis.
II
ÚLTIMO PÁREO
O ano de 1608 em que se passam estas cenas, a cidade de São Sebastião
do Rio de Janeiro tinha apenas trinta e três anos de existência.
Devia de ser pois uma pequena cidade, decorada com esse pomposo nome desde
o primeiro dia de sua fundação, por uma traça política
de Estácio de Sá, neste ponto imitado pelos governadores do
Estado do Brasil.
Aos sagazes políticos pareceu da maior conveniência semear de
cidades, e não de vilas, e menos de aldeias, o mapa de um vasto continente
despovoado, que figurava como um dos três Estados da coroa de Sua Majestade
Fidelíssima.
Com esse plano não é de admirar que um renque de palhoças
ás faldas do Pão de Açúcar se chamasse desde logo
cidade de São Sebastião, e fosse dotada com toda a governança
devida a essa jerarquia.
Em 1608 ainda a cidade se encolhia n a crista e abas do Castelo; mas quem
avaliasse da sua importância pela estreiteza da área ocupada,
não andaria bem avisado.
Estas cidades coloniais, improvisadas em um momento, com uma população
adventícia, e alimentadas pela metrópole no interesse da defesa
das terras conquistadas, tinham uma vida toda artificial.
Assim, apesar de seus trinta e três anos, que são puerícia
para uma vila, quanto mais para uma cidade, já ostentava o Rio de Janeiro
o luxo e os vícios que somente se encontram nas velhas cidades, cortesãs
eméritas.
Eram numerosas as casas de tavolagem; e nelas, como hoje em dia nos alcáçares,
tripudiava a mocidade perdulária, que esbanjava o patrimônio
da família ao correr dos dados, ou com festas e banquetes a que presidia
a deusa de Citera.
Entre essa mocidade estouvada, primava pelas extravagâncias, como pela
galhardia de cavalheiro, um mancebo de dezoito anos, Aires de Lucena.
Filho de um sargento-mor de batalha, de quem herdara dois anos antes abastados
haveres, se atirara a vida de dissipação, dando de mão
à profissão de marítimo, a que o destinara o pai e o
adestrara desde criança em sua fragata.
Nos dous anos decorridos foi Aires o herói de todas as aventuras da
cidade de São Sebastião.
Ao jogo os maiores páreos eram sempre os seus; e ganhava-os ou perdia-os
com igual serenidade, para não dizer indiferença.
Amores, ninguém os tinha mais arrojados, mais ardentes, e também
mais volúveis e inconstantes; dizia-se dele que não amava a
mesma mulher três dias seguidos, embora viesse no decurso de muito tempo
a amá-la aquele número de vezes.
Ao cabo dos dous anos achava-se o cavalheiro arruinado, na bolsa e na alma;
tinha-as ambas vazias.- estava pobre e gasto.
Uma noite meteu na algibeira um punhado de jóias e pedrarias que lhe
restavam de melhores tempos, e foi-se á casa de um usurário.
Apenas escapou a cadeia de ouro, que tinha ao pescoço e de que não
se apercebeu.
Com o dinheiro que obteve do judeu se dirigiu à tavolagem resolvido
a decidir de seu destino. Ou ganharia para refazer a perdida abastança,
ou empenharia na última cartada os destroços de um patrimônio
e uma vida mal barateados.
Perdeu.
Toda a noite passara-a na febre do jogo; ao raiar da alvorada, saiu da espelunca
e caminhando à-toa foi ter á Ribeira do Carmo.
Levava-o ali o desejo de beber a fresca viração do mar, e também
a vaga esperança de encontrar um meio de acabar com a existência.
Naquele tempo não se usavam os estúpidos suicídios que
estão hoje em voga: ninguém se matava com morfina ou massa de
fósforo, nem descarregava em si um revólver.
Puxava-se um desafio ou entrava-se em alguma empresa arriscada, com o firme
propósito de dar cabo de si; e morria-se combatendo, como era timbre
de cavalheiro.
III
A BALANDRA
Embora expulsos das terras da Guanabara, e destruída a nascente colônia,
não desistiram os franceses do intento de se assenhorearem de novo
da magnífica baía, onde outrora campeara o Forte Coligny.
Esperando azo de tentar a empresa, continuavam no tráfego do pau-brasil,
que vinham carregar em Cabo Frio, onde o trocavam com os índios por
avelórios, utensis de ferro e mantas listradas.
Havia naquela paragem uma espécie de feitoria dos franceses, que facilitava
esse contrabando e mantinha a antiga aliança dos Tamoios com os Guaraciabas,
ou guerreiros de cabelos do sol.
A metrópole incomodava-se com a audácia desses corsários,
que chegaram algumas vezes a penetrar pela baía adentro e bombardear
o coração da cidade.
Bem longe porém de prover de um modo eficaz à defensão
de suas colônias, tinha por sistema deixar-lhes esse encargo, apesar
de estar constantemente a sugar-lhes o melhor da seiva em subsídios
e fintas de toda a casta.
Baldos de meios para expurgarem a costa da cáfila de piratas, os governadores
do Rio de Janeiro, de tempos em tempos, quando crescia a audácia dos
pichelingues a ponto de ameaçarem os estabelecimentos portugueses,
arranjavam com os minguados recursos da terra alguma expedição,
que saía a desalojar os franceses.
Mas estes voltavam, trazidos pela cobiça, e após eles os flamengos
e os ingleses, que também queriam seu quinhão e o tomavam sem
a menor cerimônia, arrebatando a presa ao que não tinha forças
para disputá-la.
Felizmente a necessidade da defesa e o incentivo do ganho tinham despertado
também o gênio aventureiro dos colonos. Muitos marítimos
armaram-se para o corso, e empregaram-se por conta própria no cruzeiro
da costa.
Fazendo presa nos navios estrangeiros, sobretudo quando tornavam para Europa,
os corsários portugueses lucravam não somente a carregação
de pau-brasil, que vendiam no Rio de Janeiro ou Bahia, mas além disso
vingavam os brios lusitanos, adquirindo renome pelas façanhas que obravam-
Precisamente ao tempo desta crônica, andavam os mares do Rio de Janeiro
muito infestados pelos piratas; e havia na ribeira de São Sebastião
a maior atividade em se armarem navios para o corso, e municiarem os que já
estavam nesse mister.
Uma lembrança vaga desta circunstância flutuava no espírito
de Aires, embotado pela noite de insônia.
Afagava-o a esperança de achar algum navio a sair mar em fora contra
os piratas; e estava resolvido a embarcar-se nele para morrer dignamente,
como filho que era de um sargento-mor de batalha.
Ao chegar à praia, avistou o cavalheiro um batel que ia atracar. Vinha
dentro, além do marinheiro que remava, um mancebo derreado à
popa, com a cabeça caída ao peito em uma postura que revelava
desânimo. Teria ele vinte e dois anos, e era de nobre parecer.
Logo que abordou em terra o batel, ergueu-se rijo o mancebo e saltou na praia,
afastando-se rápido e tão abstrato que abalroaria com Aires,
se este não se desviasse pronto.
Vendo que o outro passava sem aperceber-se dele, Aires bateu-lhe no ombro:
– Donde vindes a esta hora, e tão pesaroso, Duarte de Morais?
– Aires!… disse o outro reconhecendo o amigo.
– Eu vos contava entre os felizes; mas vejo que também a aventura
tem suas névoas.
– E suas noites. A minha creio que de todo escureceu.
– Que falas são estas, homem, que vos desconheço.
Travou Duarte do braço de Aires, e voltando-se para a praia mostrou-lhe
um barco fundeado perto da Ilha das Cobras.
– Vedes aquele barco? Há três dias que ainda era uma formosa
balandra. Nela empreguei todo meu haver para tentar a fortuna do mar. Eis
o estado a que o reduziram os temporais e os piratas: é uma carcaça,
nada mais.
Aires examinava com atenção a balandra, que estava em grande
deterioração. Faltava-lhe o pavês de ré e ao longo
dos bordos apareciam largos rombos.
– Esmoreceis com o primeiro revés!
– Que posso eu? Donde tirar o cabedal para os reparos? E devia eu tentar
nova empresa, quando a primeira tão mal surtiu-me?
– Que contais então fazer do barco? Vendê-lo, sem dúvida?
– Só para lenha o comprariam no estado em que ficou. Nem vale a pena
de pensar nisso; deixá-lo apodrecer aí, que não tardará
muito.
– Neste caso tomo emprestada a balandra, e vou eu à aventura.
– Naquele casco aberto? Mas é uma temeridade, Aires!
– Ide-vos a casa sossegar vossa mulher que deve estar aflita; o resto me
pertence. Levai este abraço; talvez não tenha tempo de dar-vos
outro cá neste mundo.
Antes que Duarte o pudesse reter, saltou Aires no batel, que singrou para
a balandra,
IV
A CANOA
Saltando a bordo, foi Aires recebido ao portaló pela maruja um tanto
surpresa da visita.
– Doravante quem manda aqui sou eu, rapazes; e desde já os aviso,
que esta mesma tarde, em soprando a viração, fazemo-nos ao largo.
– Com o barco da maneira que está? observou o gajeiro.
Os outros resmungaram aprovando.
– Esperem lá, que ainda não acabei. Esta tarde pois, como dizia,
conto ir mar em fora ao encontro do primeiro pechelingue que passar-me por
davante. O negócio há de estar quente, prometo-lhes.
– Isso era muito bom, se tivesse a gente navio; mas numa capoeira de galinhas
como esta?…
– Ah! não temos navio?… Com a breca! Pois vamos procurá-lo
onde se eles tomam!
Entreolhou-se a maruja, um tanto embasbacada daquele desplante.
– Ora bem! continuou Aires. Agora que já sabem o que têm de
fazer, cada um que tome o partido que mais lhe aprouver. Se lhe não
toa a dança, pode-se ir à terra, e deixar o posto a outro mais
decidido. Eia, rapazes, avante os que me seguem; o resto toca a safar e sem
mais detença, se não mando carga ao mar.
Sem a mais leve sombra de hesitação, dum só e mesmo
impulso magnânimo, os rudes marujos deram um passo á frente,
com o ar destemido e marcial com que marchariam á abordagem.
– Bravo, rapazes! Podeis contar que os pichelingues levarão desta
feita uma famosa lição. Convido-vos a todos para bebermos à
nossa vitória, antes da terceira noite, na taberna do Simão
Chantana.
– Viva o capitão!…
– Se lá não nos acharmos nessa noite, é que então
estamos livres de uma vez desta praga de viver!…
– É mesmo! É uma canseira! acrescentou um marujo filósofo.
Passou Aires a examinar as avarias da balandra, e embora a achasse bastante
deteriorada, contudo não demoveu-se por isso de seu propósito.
Tratou logo dos reparos, distribuindo a maruja pelos diversos misteres; e
tão prontas e acertadas foram suas providências, que poucas horas
depois os rombos estavam tapados, o aparelho consertado, os outros estragos
atamancados, e o navio em estado de navegar por alguns dias.
Era quanto dele exigia Aires, que o resto confiava à sorte.
Quando levantou-se a viração da tarde, a balandra cobriu-se
com todo o pano e singrou barra fora.
Era meio-dia, e os sinos das torres repicavam alegremente. Lembrou-se Aires
que estava a 14 de agosto, véspera da Assunção de Nossa
Senhora, e encomendou-se à Virgem Santíssima.
Deste mundo não esperava mais cousa alguma para si, além de
uma morte gloriosa, que legasse um triunfo à sua pátria. Mas
o amigo de infância, Duarte de Morais, estava arruinado, e ele queria
restituir-lhe o patrimônio, deixando-lhe em troca do chaveco desmantelado
um bom navio.
Há momentos em que O espírito mais indiferente é repassado
pela gravidade das circunstâncias. Colocado já no limiar da eternidade,
olhando o mundo como uma terra a submergir-se no oceano pela popa de seu navio,
Aires absorveu-se naquela cisma religiosa, que balbuciava uma prece, no meio
da contrição da alma, crivada pelo pecado.
Uma vez chegou o mancebo a esclavinhar as mãos, e as ia erguendo no
fervor de uma súplica; mas deu cobro de si, e disfarçou com
enleio, receoso de que o tivesse percebido a maruja naquela atitude.
Dobrando o Pão d’Açúcar, com a proa para o norte, e
o vento à bolina, sulcou a balandra ao longo da praia de Copacabana
e Gávea. Conhecia Aires perfeitamente toda aquela costa com seus recantos,
por tê-la freqüentemente percorrido no navio de seu pai, durante
o cruzeiro que este fazia aos pichelingues.
Escolheu posição estratégica, em uma aba da Ilha dos
Papagaios onde o encontramos, e colocou o velho gajeiro Bruno de atalaia no
píncaro de um rochedo, para lhe dar aviso do primeiro navio que aparecesse.
Se o arrojado mancebo tinha desde o primeiro instante arrebatado a maruja
pela sua intrepidez, a presteza e tino com que provera aos reparos da balandra,
a segurança de sua manobra por entre os parcéis, e a sagacidade
da posição que tomara, haviam inspirado a confiança absoluta,
que torna a tripulação um instrumento cego e quase mecânico
na mão do comandante.
Enquanto esperava, Aires vira do tombadilho passar uma canoinha de pescador,
dirigida por uma formosa rapariga.
– Para aprender o meu novo ofício de corsário vou dar caça
á canoa! exclamou o mancebo a rir. Olá, rapazes!
E saltou no bate!, acompanhado por quatro marujos que a um aceno esticaram
os remos.
– Com certeza é espia dos calvinistas! Força, rapazes; carecemos
de agarrá-la a todo o transe.
Facilmente foi a canoa alcançada, e trazida a bordo a rapariga, que
ainda trêmula de medo, todavia já despregava dos lábios
no meio dos requebros vergonhosos um sorriso brejeiro.
Vira ela e ouvira os chupões que lhe atirava à sorrelfa a boca
de Aires apinhada à feição de beijo.
– Tocam a descansar, rapazes, e a refrescar. Eu cá vou tripular esta
presa, enquanto não capturamos a outra.
Isto disse-o Aires a rir; e os marujos lhe responderam no mesmo tom.
V
O COMBATE
Desabava a tempestade, que desde o transmontar do sol estava iminente sobre
a costa.
Passaram algumas lufadas rijas e ardentes: eram as primeiras baforadas da
procela. Pouco depois caiu a refega impetuosa e cavou o mar, levantando enormes
vagalhões.
Aires até ali bordejava com os estais e a bujarrona, entre as Ilhas
dos Papagaios e a do Breu, mascarando a balandra de modo a não ser
vista da escuna, que passava ao largo com as gáveas nos rizes.
Ao cair da refega porém, mandou Aires soltar todo o pano; e meter
a proa direita sobre o corsário.
– Cheguem à fala, rapazes, gritou o comandante.
Cercaram-no sem demora os marujos.
– Vamos sobre a escuna com a borrasca, desarvorados por ela, traquete roto
e o mais pano a açoitar o mastro. Percebeis?.
– Se está claro como o sol!
– Olhai os arpéus, que não nos escape das garras o inimigo.
Quanto às armas, aproveitai este aviso de um homem que ele só
a dormir entendia mais do ofício, que todos os marítimos do
mundo e bem acordados. Para a abordagem não há como a machadinha;
apunhada por um homem destemido, não é arma, senão braço
e mão de ferro, que decepa quanto se lhe opõe. Não se
carece de mais; um cabide d’armas servirá para a defesa, mas para o
ataque, não.
Proferidas estas palavras, tomou Aires a machadinha que lhe fora buscar um
grumete e passou-a na cinta sobre a ilharga.
– Alerta, rapazes; que estamos com eles.
Nesse momento, com efeito, a balandra acabando de dobrar a ponta da ilha
estava no horizonte da escuna e podia ser avistada a cada instante. A advertência
do comandante, os marujos dispersaram-se pelo navio, correndo uns às
vergas, outros às enxárcias e escotas de mezena e traquete.
No portaló Aires comandava uma manobra, que os marinheiros de sobreaviso
executavam ás avessas; de modo que em poucos momentos farrapos de vela
estortegavam como serpentes em fúria, enroscando-se ao mastro; levantava-se
de bordo medonha celeuma; e a balandra corria em árvore seca arrebatada
pela tempestade.
Da escuna, que singrava airosamente, capeando à refega, viram os franceses
de repente cair-lhes sobre como um turbilhão, o barco desarvorado,
e orçaram para evitar o abalroamento. Mas de seu lado a balandra carregara,
de modo que foi inevitável o choque.
Antes que os franceses se recobrassem do abalo produzido pelo embate, arremessavam-se
no tombadilho da escuna doze demônios que abateram quanto se interpunha
à sua passagem. Assim varreram o convés de proa a popa.
Só aí encontraram séria resistência. Um mancebo,
que pelo trajo e aspecto nobre, inculcava ser o comandante da escuna, acabava
de subir ao convés, e precipitava-se contra os assaltantes, seguido
por alguns marinheiros que se haviam refugiado naquele ponto.
Mal avistou o reforço, Aires que debalde buscava com os olhos o comandante
francês, pressentiu-o na figura do mancebo, e arrojou-se avante, abrindo
caminho com a machadinha.
Foi terrível e encarniçada a luta. Eram para se medirem os
dois adversários, na coragem como na destreza. Mas Aires tinha por
si a embriaguez do triunfo que obra prodígios, enquanto o francês
sentia apagar-se a estrela de sua ventura, e já não combatia
senão pela honra e pela vingança.
Recuando ante os golpes da machadinha de Aires, que relampeava como uma chuva
de raios, o comandante da escuna, acossado na borda, atirou-se da popa abaixo,
mas ainda no ar o alcançara o golpe que lhe decepou o braço
direito.
Um grito de desespero estrugiu pelos ares. Soltara-o aquela mulher que lá
se arroja para a popa do navio, com os cabelos desgrenhados, e uma linda criança
constrangida ao seio num ímpeto de aflição.
Aires recuou tocado de compaixão e respeito.
Ela, que chegara à borda do pavês de ré precisamente
quando o mar rasgava os abismos para submergir O esposo, tomou um impulso
para arrojar-se após. Mas o pranto da filha a retraiu desse primeiro
assomo.
Voltou-se para o navio, e viu Aires a contemplá-la mudo e sombrio;
estendeu para ele a criança, e depondo-lha nos braços, desapareceu,
tragada pelas ondas.
Os destroços da tripulação da escuna aproveitavam-se
da ocasião para atacar á traição Aires, que eles
supunham desprecatado; porém o mancebo apesar de comovido, percebeu-lhes
o intento, e cingindo a criança ao peito com o braço esquerdo,
marchou contra os corsários, que buscavam nas vagas, como seu comandante,
a última e falaz esperança de salvação.
VI
A ÓRFÃ
O dia seguinte, com a viração da manhã, entrava galhardamente
a barra do Rio de Janeiro uma linda escuna, que rasava as ondas como uma gaivota.
Não fora sem razão que o armador francês ao lançar
do estaleiro aquele casco bem talhado com o nome de Mouette, lhe pusera na
popa a figura do alcíon dos mares, desfraldando as asas.
À popa, na driça da mezena, tremulavam as quinas portuguesas
sobre a bandeira francesa arreada a meio e colhida como um troféu.
No seu posto de comando, Aires embora atento à manobra, não
podia de todo arrancar-se aos pensamentos que de tropel lhe invadiam o espírito,
e o disputavam com irresistível tirania.
Fizera o mancebo uma presa soberba. Além do carregamento de pau-brasil
com que sempre contara, e de um excelente navio mui veleiro e de sólida
construção, achara a bordo da escuna avultado cabedal em ouro,
quinhão que ao capitão francês coubera na presa de um
galeão espanhol procedente do México, e tomado em caminho por
três corsários.
Achava-se pois Aires de Lucena outra vez rico, e porventura mais do que o
fora; deduzida a parte de cada marujo e o preço da balandra, ainda
lhe ficavam uns cinqüenta mil cruzados, com os quais podia continuar
por muito tempo a existência dissipada que levara até então.
Com a riqueza, voltara-lhe o prazer de viver. Naquele momento respirava com
delícia a frescura da manhã, e seu olhar afagava amorosamente
a pequena cidade, derramada pelas encostas e faldas do Castelo.
Apenas fundeou a escuna, largou Aires de bordo, e ganhando a ribeira, dirigiu-se
á casa de Duarte de Morais.
Encontrou-o a ele e a mulher à mesa do almoço; alguma tristeza
que havia nessa refeição de família, a chegada de Aires
a dissipou como por encanto. Era tal a efusão de seu nobre semblante,
que do primeiro olhar derramou um doce contentamento nas duas almas desconsoladas.
– Boas-novas, Duarte!
– Não carecia que falásseis, Aires, pois já no-lo tinha
dito vosso rosto prazenteiro. Não é, Úrsula?
– Pois não fora?… O Senhor Aires vem que é uma páscoa
florida.
– E não lhe pareça, que foram páscoas para todos nós.
Referiu o mancebo em termos rápidos e sucintos o que havia feito nos
dois últimos dias.
– Aqui está o preço da balandra e vosso quinhão da presa
como dono, concluiu Aires deitando sobre a mesa duas bolsas cheias de ouro.
– Mas isto vos pertence, pois é o prêmio de vosso denodo. Eu
nada arrisquei senão algumas tábuas velhas, que não valiam
uma onça.
– Valiam mil, e a prova é que sem as tábuas velhas, continuaríeis
a ser um pobretão, e eu teria a esta hora acabado com o meu fadário,
pois já vos disse uma vez: a ampulheta de minha vida é uma bolsa;
com a derradeira moeda cairá o último grão de areia.
– Porque vos habituastes à riqueza; mas a mim a pobreza, apesar de
sua feia catadura, não me assusta.
– Assusta-me a mim, Duarte de Morais, que não sei que há de
ser de nos quando se acabar o resto das economias! acudiu Úrsula.
– Bem vedes, amigo, que não deveis sujeitar a privações
a companheira de vossa vida, por um escrúpulo que me ofende. Não
quereis reconhecer que esta soma vos é devida, nem me concedeis o direito
de obsequiar-vos com ela; pois sou eu quem vos quero dever.
– A mim, Aires?
– Faltou-me referir uma circunstância do combate. A mulher do corsário
francês arrojou-se ao mar, após o marido, deixando-me nos braços
sua filhinha de colo. Roubei a essa inocente criança pai e mãe;
quero reparar a orfandade a que voluntariamente a condenei. Se eu não
fosse o estragado e perdido que sou, lhe daria meu nome e a minha ternura!…
Mas para um dia corar da vergonha de semelhante pai!… Não! Não
pode ser!…
– Não exagereis vossos pecados, Aires; foram os ardores da juventude.
Aposto eu que já vão arrefecendo, e quando essa criança
tornar-se moça, também estareis de todo emendado! Não
pensas como eu, Úrsula?
– Eu sei!… Na dúvida não me fiava, acudiu a linda carioca.
– O pai que eu destino a essa criança sois vós, Duarte de Morais,
e vossa mulher lhe servirá de mãe. Ela deve ignorar sempre que
teve outros, e que fui eu quem lhos roubei. Aceitem pois esta menina, e com
ela a fortuna que lhe pertencia. Tereis ânimo de recusar-me este serviço,
de que preciso para repouso de minha vida?
– Disponde de nós, Aires, e desta casa.
A um apito de Aires; apareceu o velho Bruno, carregando nos braços
como uma ama-seca, a filha do corsário. Era um lindo anjinho louro,
de cabelos anelados como os velos do cordeiro, com os olhos azuis e tão
grandes, que lhe enchiam o rosto mimoso.
– Oh! que serafim! exclamou Úrsula tomando a criança das mãos
rudes e calosas do gajeiro, e cobrindo-a de carícias.
Nessa mesma noite o velho Bruno por ordem do capitão regalava a maruja
na taberna do Simão Chanfana, ao Beco da Fidalga.
Aires ai apareceu um momento para trincar uma saúde com os rapazes.
VII
O BATISMO
Domingo seguinte a bordo da escuna tudo era festa.
No rico altar armado á popa com os mais custosos brocados, via-se
a figura de Nossa Senhora da Glória, obra de um entalhador de São
Sebastião que a esculpira em madeira.
Embora fosse tosco o trabalho, saíra o vulto da Virgem com um aspecto
nobre, sobretudo depois que o artífice tinha feito a encarnação
e pintura da imagem.
Em frente ao altar achavam-se Aires de Lucena, Duarte de Morais e a mulher,
além dos convidados da função. Úrsula tinha nos
braços, envolta em alva toalha de crivo, a linda criancinha loura,
que adotara por filha.
Mais longe, a maruja comovida com a cerimônia, fazia alas, esperando
que o padre se paramentasse. Este não se demorou, com pouco apareceu
no convés e subiu ao altar.
Começou então a cerimônia do benzimento da Virgem, que
prolongou-se conforme o cerimonial da Igreja. Terminado o ato, todos até
o último dos grumetes foram por sua vez beijar os pés da Virgem.
Em seguida se passou ao batismo da filha adotiva de Duarte de Morais. Foi
madrinha Nossa Senhora da Glória, de quem recebeu a menina o nome que
trouxe, pela razão de a ter Aires salvado no dia daquela invocação.
Esta razão porém calou-se; pois a criança foi batizada
como filha de Duarte de Morais e Úrsula; e a explicação
do nome deu-se com ter ela escapado de grave doença no dia 15 de agosto.
Por igual devoção tomou-se a mesma Virgem Santíssima
para padroeira da escuna, pois à sua divina e milagrosa intercessão
se devia a vitória sobre os hereges e a captura do navio.
Depois da bênção e batismo da escuna, acompanharam todos
em procissão o sacerdote que de imagem alçada dirigiu-se à
proa onde tinham de antemão preparado um nicho.
Por volta do meio-dia terminou a cerimônia, e a linda escuna desfraldando
as velas bordejou pela baía em sinal de regozijo pelo seu batismo,
e veio deitar o ferro em uma sombria e formosa enseada que havia na praia
do Catete, ainda naquele tempo coberta da floresta que deu nome ao lugar.
Essa praia tinha dois outeiros que lhe serviam como de atalaias, um olhando
para a barra, o outro para a cidade. Era ao sopé deste último
que ficava a abra, onde fundeou a escuna Maria da Glória, à
sombra das grandes árvores e do outeiro, que mais tarde devia tomar-lhe
o nome.
Aí serviu-se lauto banquete aos convivas, e levantaram-se muitos brindes
ao herói da festa, Aires de Lucena, o intrépido corsário,
cujos rasgos de valor eram celebrados com um entusiasmo sincero, mas decerto
afervorado pelas iguarias que trascalavam.
É sempre assim; a gula foi e há de ser para certos homens a
mais fecunda e inspirada de todas as musas conhecidas.
Ao toque de trindades, cuidou Aires de voltar à cidade, para desembarcar
os convidados; mas com pasmo do comandante e de toda a maruja não houve
meio de safar a âncora do fundo.
Certos sujeitos mais desabusados asseguravam que sendo a praia coberta de
árvores, na raiz de alguma fisgara a âncora, e assim explicavam
o acidente. O geral, porém, vendo nisso um milagre, o referiam mais
ou menos por este teor.
Segundo a tradição, Nossa Senhora da Glória agastada
por terem-na escolhido para padroeira de um navio corsário, tomado
aos hereges, durante o banquete abandonara o seu nicho da proa e se refugiara
no cimo do outeiro, onde à noite se via brilhar o seu resplendor por
entre as árvores.
Sabendo o que, Aires de Lucena botou-se para a praia e foi subindo a encosta
do morro em demanda da luz, que lhe parecia uma estrela. Chegado ao tope,
avistou a imagem da Senhora da Glória em cima de um grande seixo, e
ajoelhado defronte um ermitão a rezar.
– Quem te deu, barbudo, o atrevimento de roubares a padroeira de meu navio,
gritou Aires irado.
Ergueu-se o ermitão com brandura e placidez.
– Foi a senhora da Glória quem mandou-me que a livrasse da fábrica
dos hereges e a trouxesse aqui onde quer ter sua ermida.
– Há de tê-la e bem rica, mas depois de servir de padroeira
à minha escuna.
Palavras não eram ditas, que a imagem abalou do seixo onde estava
e foi sem tocar o chão descendo pela encosta da montanha. De bordo
viram o resplendor brilhando por entre o arvoredo, até que chegado
à praia deslizou rapidamente pela flor das ondas em demanda da proa
do navio.
Eis o que ainda no século passado, quando se edificou a atual ermida
de Nossa Senhora da Glória, contavam os velhos devotos, coevos de Aires
de Lucena. Todavia não faltavam incrédulos que metessem o caso
à bulha.
A crê-los, o ermitão não passava de um mateiro beato,
que se aproveitara da confusão do banquete para furtar a imagem do
nicho, e levá-la ao cimo do outeiro, onde não tardaria a inventar
uma romagem, para especular com a devoção da Virgem.
Quanto ao resplendor era em linguagem vulgar um archote que o espertalhão
levara de bordo, e que servira a Aires de Lucena para voltar ao navio conduzindo
a imagem.
VIII
A VOLTA
Dezesseis anos tinham decorrido.
Era sobre tarde.
Grande ajuntamento havia na esplanada do Largo de São Sebastião,
ao alto do Castelo, para ver entrar a escuna Maria da Glória.
Os pescadores tinham anunciado a próxima chegada do navio, que bordejava
fora da barra à espera de vento, e o povo concorria para saudar o valente
corsário cujas surtidas ao mar eram sempre assinaladas por façanhas
admiráveis.
Nunca ele tornava do cruzeiro sem trazer uma presa, quando não eram
três, como nessa tarde em que estamos.
Tornara-se Aires com a experiência um consumado navegante, e o mais
bravo e temível capitão de mar entre quantos sulcavam os dois
oceanos. Era de recursos inesgotáveis; tinha ardis para lograr o mais
esperto marítimo; e com o engenho e intrepidez multiplicava as forças
de seu navio a ponto de animar-se a combater naus ou fragatas, e de resistir
ás esquadras de pichelingues que se juntavam para dar cabo dele.
Todas estas gentilezas, a maruja bem como a gente do povo as lançava
à conta da proteção da Virgem Santíssima, acreditando
que a escuna era invencível, enquanto sua divina padroeira a não
desamparasse.
Aires tinha continuado na mesma vida dissipada, com a diferença que
a sua façanha da tomada da escuna lhe incutira o gosto pelas empresas
arriscadas, que vinham assim distrai-lo da monotonia da cidade, além
de lhe fornecer o ouro que ele semeava a mãos-cheias por seu caminho.
Em sentindo-se aborrido dos prazeres tão gozados, ou escasseando-lhe
a moeda na bolsa, fazia-se ao mar em busca dos pichelingues que já
o conheciam às léguas e fugiam dele como o diabo da cruz. Mas
dava-lhes caça o valente corsário, e perseguia-os dias sobre
dias até fisgar-lhes os arpéus.
Como o povo, também ele acreditava que à intercessão
de Nossa Senhora da Glória devia a constante fortuna que uma só
vez não o desajudara; e por isso tinha uma devoção fervorosa
pela divina padroeira de seu navio, a quem não esquecia de encomendar-se
nos transes mais arriscados.
Tornando de suas correrias marítimas, Aires, da parte que lhe ficava
líquida depois de repartir a cada marujo o seu quinhão, separava
metade para o dote de Maria da Glória e a entregava a Duarte de Morais.
A menina crescera, estava moça, e a mais prendada em formosura e virtude
que havia então neste Rio de Janeiro. Queria-lhe Aires tanto bem como
à sua irmã, se a tivesse; e ela pagava com usura esse afeto
daquele que desde criança aprendera a estimar como o melhor amigo de
seu pai.
O segredo do nascimento de Maria da Glória fora respeitado, conforme
o desejo de Aires. Além do corsário e dos dois esposos, só
o gajeiro Bruno, agora piloto da escuna; sabia quem realmente era a gentil
menina; para ela como para os mais, seus verdadeiros pais foram Duarte de
Morais e Úrsula.
Nas torres os sinos a repicarem trindades, e da escuna um batel a largar
enquanto roda o cabrestante ao peso da âncora. Vinha no batel um cavalheiro
de aspecto senhoril, cujas feições tostadas ao sol ou crestadas
pela salsugem do mar respiravam a energia e a confiança. Se nos combates
o nobre parecer, assombrando-se com a sanha guerreira, infundia terror no
inimigo, fora, e ainda mais neste momento, a expansão jovial banhava-lhe
o semblante de afável sorriso.
Era Aires de Lucena esse cavalheiro; não mais o gentil e petulante
mancebo; porém o homem tal como o tinham feito as pelejas e trabalhos
do mar.
Na ponta da ribeira, que atualmente ocupa o Arsenal de Guerra, Duarte de
Morais com os seus, ansioso esperava o momento de abraçar o amigo,
e seguia com a vista o batel.
De seu lado Aires também já os avistara do mar, e não
tirava deles os olhos.
Úrsula estava à direita do marido, e á esquerda Maria
da Glória. Esta falava a um mancebo que tinha junto de si, e com a
mão lhe apontava o batel já próximo a abicar.
Apagou-se o sorriso nos lábios de Aires, sem que ele soubesse explicar
o motivo. Sentira um aperto no coração, que se dilatava naquela
abençoada hora da chegada com o prazer de volver á terra, e
sobretudo á terra da pátria, que é sempre para o homem
o grêmio materno.
Foi pois já sem efusão e com o passo moroso que saltou na praia,
onde Duarte de Morais abria-lhe os braços. Depois de receber as boas-vindas
de Úrsula, voltou-se Aires para Maria da Glória que desviou
os olhos, retraindo o talhe talvez na intenção de esquivar-se
ás carícias que sempre lhe fazia o corsário á
chegada.
– Não me abraça, Maria da Glória? perguntou o comandante
com um tom de mágoa.
Corou a menina, e correu a esconder o rosto no seio de Úrsula.
– Olhem só! Que vergonhas!… disse a dona a rir.
No entanto Duarte de Morais, pondo a mão na espádua do mancebo,
dizia a Aires:
– Este é Antônio de Caminha, filho da mana Engrácia,
o qual vai agora para três semanas nos chegou do reino, onde muito se
fala de vossas proezas; nem são elas para menos.
Dito o que, voltou-se para o mancebo:
– Aqui tens tu, sobrinho, o nosso homem; e bem o vedes que foi talhado para
as grandes cousas que tem obrado.
Saudou Aires cortesmente ao mancebo, mas sem aquela afabilidade que a todos
dispensava. Esse casquilho de Lisboa, que de improviso e a titulo de primo
se introduzira na intimidade de Maria da Glória, o corsário
não o via de boa sombra.
Quando a noite se recolheu a casa, levou Aires a alma cheia da imagem da
moça. Até aquele dia não vira nela mais do que a menina
graciosa e gentil, com quem se habituara a folgar. Naquela tarde, em vez da
menina, achou uma donzela de peregrina formosura, que ele contemplara enlevado
nas breves horas passadas a seu lado.
IX
PECADO
Ia agora Aires de Lucena todos os dias á casa de Duarte de Morais,
quando de outras vezes apenas lá aparecia de longe em longe.
Havia ai um encanto que o atraía, e este, pensava o corsário
não ser outro senão o afeto de irmão que votava a Maria
da Glória, e crescera agora com as graças e prendas da formosa
menina.
Mui freqüente era encontrá-la Aires a folgar em companhia do
primo Caminha, mas á sua chegada ficava ela toda confusa e atada, sem
ânimo de erguer os olhos do chão ou proferir palavra.
Uma vez, em que mais notou essa mudança, não se pôde
conter Aires que não observasse:
– Estou vendo, Maria da Glória, que lhe meto medo?
– A mim, Senhor Aires? balbuciou ai menina.
– A quem mais?
– Não me dirá por quê?
– Esta sempre alegre, mas é ver-me e fechar-se como agora nesse modo
triste e…
– Eu sou sempre assim.
– Não; com os outros não é, tornou Aires fitando os
olhos em Caminha.
Mas logo tomando um tom galhofeiro continuou:
– Sem dúvida lhe disseram que os corsários são uns demônios!…
– O que eles são, não sei, acudiu Antônio de Caminha;
mas aqui estou eu, que no mar não lhes quero ver nem a sombra.
– No mar têm seu risco; mas em seco não fazem mal; são
como os tubarões, replicou Aires.
Nesse dia, deixando a casa de Duarte de Morais, conheceu Aires de Lucena
que amava a Maria da Glória e com amor que não era de irmão.
A dor que sentira pensando que ela pudesse querer a outrem. que não
ele, e ele somente, lhe revelou a veemência dessa paixão que
se tinha imbuído em seu coração e ai crescera até
que de todo o absorveu.
Um mês não era passado, que apareceram franceses na costa e
com tamanha audácia que por vezes investiram a barra, chegando até
a ilhota da Laje, apesar do Forte de São João na Praia Vermelha.
Aires de Lucena, que em outra ocasião fora dos primeiros a sair contra
o inimigo, desta vez mostrou-se tíbio e indiferente.
Enquanto outros navios se aprestavam para o combate, a escuna Maria da Glória
se embalava tranqüilamente nas águas da baía, desamparada
pelo comandante, que a maruja inquieta esperava debalde, desde o primeiro
rebate.
Uma cadeia oculta prendia Aires à terra, mas sobretudo à casa
onde morava Maria da Glória, a quem ele ia ver todos os dias, pesando-lhe
que o não pudesse a cada instante.
Para calar a voz da pátria, que ás vezes bradava-lhe na consciência,
consigo encarecia a necessidade de ficar para a defensão da cidade,
no caso de algum assalto, sobretudo quando saía a perseguir os corsários,
o melhor de sua gente de armas.
Sucedeu porém que Antônio de Caminha, mancebo de muitos brios,
teve o comando de um navio de corso, armado por alguns mercadores de São
Sebastião; do que mal o soube, Aires, sem mais detença foi se
a bordo da escuna, que desfraldou as velas fazendo-se ao mar.
Não tardou que se não avistassem os três navios franceses,
pairando ao largo. Galharda e ligeira, com as velas apojadas pela brisa e
sua bateria pronta, correu a Mana da Glória a bordo sobre o inimigo.
Desde que fora batizado o navio, nenhuma empresa arriscada se tentava, nenhum
lance de perigo se afrontava, sem que a maruja com o comandante à frente,
invocasse a proteção de Nossa Senhora da Glória.
Para isso desciam todos a câmara da proa, já preparada como
uma capela. A imagem que olhava o horizonte como a rainha dos mares, girando
na peanha voltava-se para dentro, a fim de receber a oração.
Naquele dia foi Aires presa de estranha alucinação, quando
rezava de joelhos, ante o nicho da Senhora. Na sagrada imagem da Virgem Santíssima,
não via ele senão o formoso vulto de Maria da Glória,
em cuja contemplação se enlevava sua alma.
Por vezes tentou recobrar-se dessa alheação dos sentidos e
não o conseguiu. Foi-lhe impossível arrancar d’alma a doce visão
que a cingia como um regaço de amor. Não era a Mãe de
Deus, a Rainha Celestial que ele adorava nesse momento, mas a loura virgem
que tinha um altar em seu coração.
Achava-se ímpio nessa idolatria, e abrigava-se em sua devoção
por Nossa Senhora da Glória; mas ai estava seu maior pecado, que era
nessa mesma fé tão pura, que seu espírito se desvairava,
transformando em amor terrestre o culto divino.
Cerca de um mês Aires de Lucena esteve no mar, já combatendo
os corsários e levando-os sempre de vencida, já dando caça
aos que tinham escapado e castigando o atrevimento de ameaçarem a colônia
portuguesa.
Durante esse tempo, sempre que ao entrar em combate, a equipagem da escuna
invocava o patrocínio de sua madrinha, Nossa Senhora da Glória,
era o comandante presa da mesma alucinação que já sentira,
e erguia-se da oração com um remorso, que lhe pungia o coração
pressago de algum infortúnio.
Pressentia o castigo de sua impiedade, e se arrojava na peleja receoso de
que o desamparasse enfim a proteção da Senhora agravada; mas
por isso não lhe minguava a bravura, senão que o desespero lhe
ministrava maior furor e novas forças.
X
O VOTO
Ao cabo do seu cruzeiro, tornara Aires ao Rio de Janeiro onde entrou à
noite calada, quando já toda a cidade dormia.
Havia tempos que soara no mosteiro o toque de completas; já todos
os fogos estavam apagados, e não se ouvia outro rumor a não
ser o ruído das ondas na praia, ou o canto dos galos, despertados pela
claridade da lua ao nascer.
Cortando a flor das ondas alisadas, que se aljofravam como os brilhantes
reçumos da espuma irisada pelos raios da lua, veio a escuna dar fundo
em frente ao Largo da Polé.
No momento em que ao fisgar da âncora arfava o lindo navio, como um
corcel brioso sofreado pela mão do ginete, quebrou o silêncio
da noite um dobre fúnebre.
Era o sino da Igreja de Nossa Senhora do Ó que tangia o toque da agonia
Teve Aires, como toda a equipagem, um aperto de coração ao ouvir
o lúgubre anúncio. Não faltou entre os marujos quem tomasse
por mau agouro a circunstância de ter a escuna fundeado no momento em
que começara o dobre.
Logo após abicava à ribeira o batel conduzindo Aires de Lucena,
que saltou em terra ainda com o mesmo soçobro, e a alma cheia de inquietação.
Era tarde da noite para ver Duarte de Morais; mas não quis Aires recolher
sem passar-lhe pela porta, e avistar-se com a casa onde habitava a dama de
seus pensamentos.
Alvoroçaram-se os sustos de sua alma já aflita, encontrando
aberta àquela hora adiantada a porta da casa, e as frestas das janelas
esclarecidas pelas réstias de luz interior.
De dentro saía um rumor soturno como de lamentos, entremeados com
reza
Quando deu por si, achava-se Aires, conduzido pelo som do pranto, em uma
câmara iluminada por quatro círios colocados nos cantos de um
leito mortuário. Sobre os lençóis e mais lívida
que eles, via-se a estátua inanimada, mas sempre formosa, de Maria
da Glória.
A nívea cambraia que lhe cobria o seio mimoso, afiava com um movimento
quase imperceptível, mostrando que ainda não se extinguira de
todo nesse corpo gentil o hálito vital.
Ao ver Aires, Úrsula, o marido e as mulheres que rodeavam o leito,
ergueram para ele as mãos como um gesto de desespero e redobraram o
pranto
Não os percebia porém o corsário; seu olhar baço
e morno se fitara no vulto da moça e parecia entornar sobre ela toda
sua alma, como uma luz que bruxuleia.
Um momento, as pálpebras da menina se ergueram a custo, e os olhos
azuis, coalhados em um pasmo glacial, volvendo para o nicho de jacarandá
suspenso na parede, cravaram-se na imagem de Nossa Senhora da Glória,
mas cerraram-se logo.
Estremeceu Aires, e ficou um instante como alheio a si, e ao que passava
em torno.
Lembrava-se do pecado de render ímpia adoração a Maria
na imagem de Nossa Senhora da Glória, e via na enfermidade que lhe
arrebatava a menina, um castigo de sua culpa.
Pendeu-lhe a cabeça acabrunhada, como se vergasse ao peso da cólera
celeste; mas de chofre a ergueu com a resolução de ânimo
que o arrojava ao combate, e por sua vez pondo os olhos na imagem de Nossa
Senhora da Glória, caiu de joelhos com as mãos erguidas.
– Pequei, Mãe Santíssima, murmurou do fundo d’alma; mas vossa
misericórdia é infinita. Salvai-a; por penitência de meu
pecado andarei o ano inteiro no mar para não a ver; e quanto trouxer
há de ser para as alfaias de vossa capela.
Não- eram proferidas estas palavras, quando estremeceu com um sobressalto
nervoso o corpo de Maria da Glória. Entreabriu ela as pálpebras
e exalou dos lábios fundo e longo suspiro.
Todos os olhos se fitaram ansiosos no formoso semblante, que ia se corando
com uma tênue aura de vida.
– Torna a si! exclamaram as vozes a um tempo.
Ergueu Aires a fronte, duvidando do que ouvia. Os meigos olhos da menina
ainda embotados pelas sombras da morte que os tinham roçado, fitaram-se
nele; e um sorriso angélico enflorou a rosa desses lábios que
pareciam selados para sempre.
– Maria da Glória! bradou o corsário arrastando-se de joelhos
para a cabeceira do leito.
Demorou a menina um instante nele o olhar e o sorriso, depois volvendo-os
ao nicho, cruzou as mãos ao peito, e balbuciou flebilmente algumas
palavras de que apenas se ouviram estas:
– Eu vos rendo graças, minha celeste Madrinha, minha Mãe Santíssima,
por me terdes ouvido…
Expirou-lhe a voz nos lábios; outra vez cerraram-se as pálpebras,
e descaiu-lhe a cabeça nas almofadas. A donzela dormia um sono plácido
e sereno. Passara a crise da enfermidade. Estava salva a menina.
XI
NOVENA
A primeira vez que Maria da Glória saiu da câmara para a varanda,
foi uma festa em casa de Duarte de Morais.
Ninguém se cabia de contente com o regozijo de ver a menina outra
vez restituída às alegrias da família.
De todos o que mostrava menos era Aires de Lucena, pois por instantes sua
feição velava-se com uma nuvem melancólica; mas sabiam
os outros que dentro d’alma ninguém maior, nem tamanho júbilo
sentira, como ele; e sua tristeza naquele momento era a lembrança do
que sofrera vendo a moça a expirar.
Aí estava entre outras pessoas da privança da casa, Antônio
de Caminha que se houvera galhardamente na perseguição dos franceses,
embora não lograsse capturar a presa a que dera caça.
Não escondia o moço o regozijo que sentia com o restabelecimento
daquela a quem já tinha chorado, como perdida para sempre.
Nesse dia revelou Maria da Glória aos pais um segredo que escondia.
– É. tempo de saberem o pai e a mãe que fiz um voto a Nossa
Senhora da Glória, e peço sua licença para o cumprir.
– Tu a tens! disse Úrsula.
– Fala; dize o que prometeste! acrescentou Duarte de Morais.
– Uma novena.
– O voto foi para te pôr boa? perguntou a mãe.
Corou a moça e confusa esquivou-se á resposta. Acudiu então
Aires que até ali ouvira calado:
– Não se precisa saber o motivo; basta que o voto se fez, para se
dever cumprir. Tomo sobre mim o que for preciso para a novena, e não
consinto que ninguém mais se encarregue disso; estais ouvindo, Duarte
de Morais?
Cuidou Aires desde logo nos aprestos da devoção, e para que
se fizesse com o maior aparato, resolveu que a novena seria em uma capela
do mosteiro, para a qual se transportaria de seu nicho da escuna a imagem
de Nossa Senhora da Glória.
Diversas vezes foi ele com Maria da Glória e Úrsula a uma loja
de capelista para se proverem de alfaias com que adornassem a sagrada imagem.
O melhor ourives de São Sebastião incumbiu-se de fazer um novo
resplendor cravejado de brilhantes, enquanto a menina com suas amigas recamava
de alcachofras de ouro um rico manto de brocado verde.
Nestes preparativos consumiam-se os dias, e tão ocupado andava Aires
com eles, que não pensava em outra cousa, nem já se lembrava
do voto que fizera; passava as horas junto de Maria da Glória, entretendo-se
com ela dos adereços da festa, satisfazendo-lhe as mínimas fantasias;
essa doce tarefa o absorvia por modo que não lhe sobravam nem pensamentos
para mais.
Afinal chegou o dia da novena, que celebrou-se com uma pompa ainda não
vista na cidade de São Sebastião. Foi grande a concorrência
de devotos que vieram de São Vicente e Itanhaem para assistir à
festa.
A todos encantou a formosura de Maria da Glória, que tinha um vestido
de riço azul com recamos de prata, e um colar de turquesas com arrecadas
de safiras.
Mas suas jóias, de maior preço, as que mais a adornavam, eram
as graças de seu meigo semblante que resplandecia com uma auréola
celeste.
– Jesus!… exclamou uma velha beata. Podia-se tirar dali, e pô-la
no altar que a gente havia de adorá-la como a própria imagem
da Senhora da Glória.
Razão, pois, tinha Aires de Lucena, que toda a festa a esteve adorando,
sem carecer de altar, e tão absorto, que de todo esqueceu o lugar onde
se achava, e o fim que ali o trouxera.
Só quando, terminada a festa, ele saía com a família
de Duarte de Morais, acudiu-lhe que não rezara na igreja, nem rendera
graças à. Senhora da Glória por cuja milagrosa intercessão
escapara a menina da cruel enfermidade.
Era tarde porém; e se passou-lhe pela mente a idéia de tornar
à igreja para reparar seu esquecimento, o sorriso de Maria da Glória
arrebatou-lhe de novo o espírito naquele enlevo, em que o tivera preso.
Depois da doença da menina dissipara-se o enleio que ela sentia na
presença de Aires de Lucena. Agora com a chegada do corsário,
em vez de acanhar~e, ao contrário expandia-se a flor de sua graça,
e desabrochava em risos, embora roseados pelo pudor.
Uma tarde que passeavam os dous pela ribeira, em companhia de Duarte de Morais
e Úrsula, Maria da Glória, vendo embalar-se airosamente sobre
as ondas a escuna, soltou um suspiro e vo1tando-se para Lucena, disse-lhe:
– Agora tão cedo não vai ao mar!
– Por quê?
– Deve descansar.
– Somente por isso? perguntou Aires desconsolado.
– E também pelas saudades que deixa aos que lhe querem, e pelos cuidados
que nos leva. O pai que diz? Não é assim?
– Certo, filha, que o nosso Aires de Lucena ia tem feito muito pela pátria
e pela religião, para dar-nos também aos amigos alguma parte
da sua existência.
– Toda vo-la darei doravante; ainda que tenha eu também saudades do
mar, das noitadas de bordo, e daquele voar nas asas da borrasca, em que o
homem acha-se face a face com a cólera do. céu. Mas, pois. assim
o querem, seja feita a vossa vontade.
Estas últimas palavras proferiu-as Aires olhando para a menina.
– Não se pese disso, tornou-lhe ela; que em lhe apertando as saudades,
embarcaremos todos na escuna, e iremos correr terras, onde nos levar a graça
de Deus e de minha Madrinha.
XII
O MILAGRE
Correram meses, que Aires passou na doce intimidade da família de
Duarte de Morais, e no enlevo de sua admiração por Maria da
Glória.
Já não era o homem que fora; os prazeres em que outrora se
engolfava, de presente os aborrecia, e tinha vergonha da vida dissipada que
levara até ali.
Ninguém mais o via por tavolagens e folias, como nos tempos em que
parecia sôfrego de consumir a existência.
Agora, se não estava em casa de Duarte de Morais, perto de Maria da
Glória, andava pelas ruas a cismar.
Ardia o cavalheiro por abrir seu coração àquela que
já era dele senhora, e muitas vezes fora com o propósito de
falar-lhe do seu afeto.
Mas na presença da menina o desamparava a resolução
que trazia; e sua voz afeita ao comando, e habituada a dominar o rumor da
procela e o estrondo dos combates, balbuciava tímida e submissa uma
breve saudação.
Era o receio de que a menina voltasse à esquivança de antes,
e viesse a tratá-lo com a mesma reserva e acanhamento que tanto o magoava
então.
Não se apagara de todo n’alma do corsário a suspeita de ser
o afeto de Antônio de Caminha bem acolhido, se não já
retribuído, por Maria da Glória.
É certo que a menina tratava agora o primo com afastamento e enleio,
que mais se manifestava quando este a enchia de atenções e finezas.
Ora, Aires que se julgava aborrecido por merecer um tratamento semelhante,
agora que todas as efusões da gentil menina eram para ele, desconfiava
desse acanhamento, que podia encobrir um tímido afeto.
Assim é sempre o coração do homem, a revolver-se no
constante ser e não ser em que se escoa a vida humana.
De sair ao mar, era cousa em que Aires já não tocava aos marujos
da escuna, que mais ou menos andavam ao corrente do que havia. Se alguém
lhes falava de fazerem-se ao largo, respondiam a rir, que o comandante encalhara
n’água doce.
Muito tempo já era passado depois de sua última viagem, quando
Aires de Lucena, querendo acabar com a incerteza em que vivia, animou-se a
dizer à filha adotiva de Duarte de Morais, uma noite ao despedir-se
dela:
– Maria da Glória, tenho um segredo para contar-lhe.
O lábio que proferiu estas palavras era trêmulo, e o olhar do
cavalheiro retirou-se confuso do semblante da menina.
– Que. segredo é, Senhor Aires? respondeu Maria da Glória também
perturba da.
– Amanhã lho direi.
– Olhe lá!
– Prometo.
No dia seguinte por tarde encaminhou-se o corsário para a casa de
Duarte de Morais; ia resolvido a declarar-se com Maria da Glória e
confessar-lhe o muito que a queria para sua esposa’. e companheira.
Levava o pensamento agitado e o coração inquieto como quem
vai decidir de sua sorte. Às vezes apressava o passo, na sofreguidão
de chegar; outras o retardava com receio do momento.
À Rua da Misericórdia encontrou-se com um ajuntamento, que
o fez parar. No meio da gente via-se um homem idoso, com os cabelos já
grisalhos da cabeça e da barba tão longos, que lhe desciam aos
peitos e caiam sobre as espáduas.
Caminhava ele, ou antes se arrastava de joelhos, e levava em bandeja de metal
um objeto, que tinha figura de mão cortada acima do punho.
Pensou Aires que era esta a cena, muito comum naqueles tempos, do cumprimento
solene de uma promessa; e seguiu a procissão com olhar indiferente.
Ao aproximar-se porém o penitente, conheceu com horror que não
era um ex-voto de cera, ou milagre, como o chamava o vulgo, o objeto posto
em cima da salva; mas a própria mão cortada do braço
direito do devoto, que às vezes levantava para o céu o coto
mal cicatrizado ainda.
Inquiriu dos que o cercavam a explicação do estranho caso;
e não faltou quem lha desse com particularidades que hoje fariam rir.
Tivera o penitente, que era mercador, um panarício na mão direita;
e sobreveio-lhe grande inflamação de que resultou a gangrena.
No risco de perder a mão, e talvez a vida, valeu-se o homem de São
Miguel dos Santos, advogado contra os cancros e tumores,. e prometeu-lhe dar
para sua festa o peso em prata do membro enfermo.
Exalçou o Santo a promessa, pois sem mais auxílio de mezinhas,
veio o homem a ficar inteiramente são, e no perfeito uso da mão,
quando no juízo do físico pelo menos devia ficar aleijado.
Restituído à saúde, o mercador que era muito agarrado
ao dinheiro, espantou-se com o peso que lhe haviam tomado do braço
enfermo; e achando salgada a quantia, resolveu de esperar pela decisão
de certo negócio, de cujos lucros tencionava tirar o preciso para cumprir
a promessa.
Um ano decorreu porém sem que o tal negócio se concluísse,
e ao cabo desse tempo começou a mão do homem a mirrar, a mirrar,
até que ficou de todo seca e rija, como se fora de pedra.
Conhecendo então o mercador que estava sendo castigado por não
haver cumprido a promessa, levou sem mais detença a prata que devia
ao Santo; mas este já não a quis receber, pois ao amanhecer
do outro dia achou atirada à porta da igreja a oferenda que ficara
sobre o altar.
O mesmo foi da segunda e terceira vez, até que o mercador vendo que
era sem remissão a sua culpa e devia expiá-la, decepou a mão
já seca e vinha trazê-la, não só como símbolo
do milagre, mas como lembrança do castigo.
Eis o que referiram a Aires de Lucena.
XIII
AO MAR
Já tinha desfilado a procissão e ficara a rua deserta, que
ainda lã estava no mesmo lugar Aires de Lucena quedo como uma estátua.
Seus espíritos se tinham afundado em um pensamento que os submergiam
como em um abismo. Lembrara-se que também fizera um voto e ainda não
o havia cumprido, dentro do ano que estava quase devolvido.
Horrorizava-o a idéia do castigo, que talvez já estava iminente.
Tremia não por sua pessoa, mas por Maria da Glória, que a Virgem
Santíssima ia levar, como São Miguel secara a mão que
antes havia sarado.
Quando o corsário deu acordo de si e viu onde se achava, correu à
praia, saltou na primeira canoa de pescador, e remou direito para a escuna,
cujo garboso perfil se desenhava no horizonte iluminado pelos arrebóis
da tarde.
– Prepara para largar! Leva âncora!… gritou ele apenas pisou no tombadilho.
Acudiu a maruja à manobra com a presteza do costume e aquele fervor
que sentia sempre que o comandante a conduzia ao combate.
No dia seguinte ao amanhecer tinha a escuna desaparecido do porto, sem que
houvesse noticia dela, ou do destino que levara.
Quando em casa de Duarte de Morais soube-se da nova, perderam-se todos em
conjeturas acerca dessa partida súbita, que nada explicava; pois não
havia indícios de andarem pichelingues na costa, e nem se falava de
qualquer expedição contra aventureiros que porventura se tivessem
estabelecido em terras da colônia.
Maria da Glória não quis acreditar na partida de Aires, e tomou
por gracejo a notícia.
Afinal rendeu-se à evidência, mas convencida de que ausentara-se
o corsário por alguns dias, senão horas, no ímpeto de
combater algum pirata, e não tardaria voltar.
Sucederam-se porém os dias, sem que houvesse novas da escuna e de
seu comandante. A esperança foi murchando no coração
da menina, como a flor crestada pelo frio, e afinal desfolhou-se.
Apagara-se-lhe o sorriso dos lábios, e o brilho dos lindos olhos empanou-se
com o soro das lágrimas choradas em segredo.
Assim foi se finando de saudades pelo ingrato que a tinha desamparado levando-lhe
o coração.
Desde muito quê a gentil menina estremecia o cavalheiro; e daí
nascera o soçobro que sentia em sua presença. Quando a cruel
enfermidade assaltou-a, e que ela prostrada no leito, teve consciência
de seu estado, o primeiro pensamento foi pedir a Nossa Senhora da Glória
que não a deixasse morrer, sem dizer adeus àquele por quem somente
quisera viver.
Não só ouvira seu rogo a Virgem Santíssima, como a restituíra
à vida e ternura do querido de sua alma. Este era o segredo da novena
que se tinha feito logo depois do seu restabelecimento.
A aflição de Aires durante a moléstia da menina, os
desvelos que mostrava por ela, ajudando Úrsula na administração
dos remédios e nos incessantes cuidados que exigia a convalescença,
mas principalmente a ingênua expansão d’alma, que em crises como
aquela, se desprende das misérias da terra, e paira em uma esfera superior:
tudo isso rompera o enleio que havia entre os dous corações,
e estabelecera uma doce correspondência e intimidade entre eles.
Nesse enlevo de querer e ser querida, vivera Maria da Glória todo
o tempo depois da moléstia. Qual não foi pois o seu desencanto
quando Aires se partiu sem ao menos dizer-lhe adeus, é quem sabe se
para não mais voltar.
Cada dia que volveu foi para ela o suplício de uma esperança
a renascer a cada instante para morrer logo após no mais cruel desengano.
Cerca de um ano era passado, em São Sebastião não havia
novas da escuna Maria da Glória.
Para muita gente passava como certa a perda do navio com toda a tripulação:
e em casa de Duarte de Morais já se trazia luto pelo amigo e protetor
da família.
Maria da Glória porém tinha no coração um pressentimento
de que Aires ainda vivia, embora longe dela, e tão longe que nunca
mais o pudesse ver neste mundo.
Na crença do povo miúdo o navio do corsário andava no
oceano encantado por algum gênio do mar; mas havia de aparecer quando
quebrasse o encanto: o que tinha de suceder pela intrepidez e arrojo do destemido
Lucena.
Essa versão popular ganhou mais força com os contos da maruja
de um navio da carreira das Índias, que fazia escala em São
Sebastião, vindo de Goa.
Referiam os marinheiros que um dia, sol claro, passara perto deles um navio
aparelhado em escuna, cuja tripulação compunha-se toda de homens
vestidos de compridas esclavinas brancas e marcadas com uma cruz negra no
peito.
Como lhes observassem que talvez seriam penitentes, que iam de passagem,
afirmavam seu dito, assegurando que os viram executar a manobra mandada pelo
comandante; também vestido da mesma maneira.
Acrescentavam os marinheiros que muitos dias depois, em uma noite escura
é de calmaria, tinham avistado ao largo o mesmo navio a boiar sem governo;
mas todo resplandecente das luminárias dos círios acesos em
capelas, e à volta, de uma imagem.
A tripulação, vestida de esclavina, rezava o terço;
e as ondas banzeiras gemendo na proa, acompanhavam o canto religioso, que
se derramava pela imensidade dos mares.
Para o povo, eram estas as provas evidentes de estar o navio encantado; e
se misturava assim o paganismo com a devoção cristã,
tinha aprendido este disparate com bom mestre, o grande Camões.
XIV
A VOLTA
Um ano, de dia a dia, andou Aires no mar.
Desde que se partira do Rio de Janeiro, não pusera o pé em
terra, nem a avistara senão o tempo necessário para enviar um
batel em busca das provisões necessárias.
Na tarde da saída, deixara-se Aires ficar na popa do navio até
que de todo sumiu-se a costa; e então derrubara a cabeça aos
peitos e quedara-se até que a lua assomou no horizonte.
Era meia-noite.
Ergueu-se e vestindo uma esclavina, chamou a maruja, a quem dirigiu estas
palavras:
– Amigos, vosso capitão tem de cumprir um voto e fazer uma penitência.
O voto é não tornar a São Sebastião antes de um
ano. A penitência é passar esse ano todo no mar sem pisar em
terra, assim vestido, e em jejum rigoroso, mas combatendo sempre os inimigos
da fé. Vós não tendes voto a cumprir nem pecado a remir,
sois livres, tomai o batel, recebei o abraço de vosso capitão,
e deixai que se cumpra a sua sina.
A maruja abaixou a cabeça e ouviu-se um som rouco; era o pranto a
romper dos peitos duros e calosos da gente do mar:
– Não há de ser assim! clamaram todos. Juramos acompanhar o
nosso capitão na vida e na morte; não o podemos desamparar,
nem ele despedir-nos para negar à gente a sua parte nos trabalhos e
perigos. Sua sina é a de todos nós, e a deste navio onde havemos
de acabar, quando o Senhor for servido.
Abraçou-os o corsário; e ficou decidido que toda a tripulação
acompanharia seu comandante no voto e na penitência.
No dia seguinte cortaram os marujos o pano de umas velas rotas que tiraram
no porão e arranjaram esclavinas para vestirem, fazendo as cruzes com
dous pedaços de corda atravessadas.
Ao pôr do sol cantavam o terço ajoelhados à imagem de
Nossa Senhora da Glória, ao qual levantou-se um nicho com altar, junto
do mastro grande, a fim de acudirem mais prontos à manobra do navio.
Ao entrar de cada quarto, também rezavam a ladainha, à imitação
das horas canônicas dos conventos.
Se porém sucedia aparecer alguma vela no horizonte e o vigia da gávea
assinalava um pichelingue, de momento despiam as esclavinas, empunhavam as
machadinhas, e saltavam à abordagem.
Destroçado o inimigo, tornavam à penitência e prosseguiam
tranqüilamente na reza começada.
Quando completou um ano, que tinha a escuna deixado o porto de São
Sebastião, à meia-noite, Aires de Lucena aproou para terra,
e soprando fresca a brisa de leste, ao romper d’alva começou a desenhar-se
no horizonte a costa do Rio de Janeiro.
Por tarde, a escuna corria ao longo da praia de Copacabana, e com as primeiras
sombras da noite largava o ferro em uma abra deserta que ficava próxima
da Praia Vermelha.
Saltou Aires em terra, deixando o comando a Bruno, com recomendação
de entrar barra dentro ao romper do dia; e a pé seguiu para a cidade
pelo caminho da praia, pois ainda se não tinha aberto na mata-virgem
da Carioca a picada que mais tarde devia ser a rua aristocrática do
Catete.
Ia sobressaltado o corsário com o que podia ter acontecido durante
o ano de sua ausência.
Sabia ele o que o esperava ao chegar? Tornaria a ver Maria da Glória,
ou lhe teria sido arrebatada, apesar da penitência que fizera?
As vezes parecia-lhe que ia encontrar a mesma cena da vez passada, e achar
a moça de novo prostrada no leito da dor, mas desta para não
mais erguer-se; porque a Senhora da Glória para o punir não
ouviria mais a sua prece.
Eram oito horas quando Aires de Lucena chegou à casa de Duarte de
Morais.
A luz interior filtrava pelas frestas das rótulas; e ouvia-se rumor
de vozes, que falavam dentro. Era ali a casa de jantar, e Aires espiando viu
à mesa toda a família reunida, Duarte de Morais, Úrsula
e Maria da Glória, os quais estavam no fim da ceia.
Passado o soçobro de rever a menina, Aires foi à porta e bateu.
Duarte e a mulher se entreolharam surpresos daquele bater fora de horas; Maria
da Glória porém levou a mão ao seio, e disse com um modo
brando e sereno:
– É ele, o Senhor Aires, que está de volta!
Que lembrança de menina! exclamou Úrsula.
– Não queres acabar de crer, filha, que meu pobre Aires há
muito que está com Deus! observou Duarte melancólico.
– Abra o pai! respondeu Maria da Glória mansamente.
Deu ele volta à chave, e Aires de Lucena apertou nos braços
ao amigo atônito de o ver depois de por tanto tempo o haver por morto.
Grande foi a alegria de Duarte de Morais e a festa de Úrsula com a
volta de Aires.
Maria da Glória porém, se alguma cousa sentiu, não deu
a perceber; falou com o cavalheiro sem mostra de surpresa, nem de contentamento,
como se ele a tivesse deixado na véspera.
Este acolhimento indiferente confrangeu o coração de Aires,
que ainda mais se afligia notando a palidez da moça, a qual parecia
estar-se definhando como a rosa, a quem a larva devora o seio.
XV
O NOIVO
Em um mês, que tanto fazia desde a volta de Aires, não lhe dissera
Maria da Glória uma palavra sequer acerca da longa ausência.
– Tão alheio lhe sou, que nem se apercebeu do ano que passei longe
dela. De seu lado também não tocava o cavalheiro nesse incidente
de sua vida1 que desejava esquecer. Quando Duarte de Morais insistia com ele
para saber a razão por que se partira tão inesperadamente, e
por tanto tempo sem dar aviso aos amigos, o corsário esquivava-se à
explicação e apenas respondia:
– Tive notícia do inimigo e fui-me sem detença. Deus Nosso
Senhor ainda permitiu que tornasse ao cabo de um ano, e eu lhe rendo graças.
Convenceram-se quantos o ouviam falar assim, que havia um mistério
na ausência do cavalheiro; e o povo miúdo cada vez mais persistia
na crença de que a escuna estivera encantada todo aquele tempo.
O primeiro cuidado de Aires, logo depois de sua chegada, foi ir com toda
a sua maruja levar ao mosteiro de São Bento o preço de tudo
quanto haviam capturado, para ser aplicado à festa e ornato da capela
de Nossa Senhora da Glória.
Acabado assim de cumprir o seu voto e a penitência a que se tinha sujeitado,
não pensou Aires senão em viver como dantes para Maria da Glória,
bebendo a graça de seu formoso semblante.
Mas não tornaram nunca mais os dias abençoados do íntimo
contentamento em que tinham vivido outrora. Maria da Glória mostrava
a mesma indiferença pelo que passava em torno dela; parecia uma criatura
já despedida deste vale de lágrimas, e absorta na visão
do outro mundo.
Dizia Úrsula que essa abstração de Maria da Glória
lhe ficara da doença, e só havia de passar em casando; pois
não há para curar as meninas solteiras como os banhos da igreja.
Notara porém Aires que especialmente com ele tornava-se a menina mais
arredia e concentrada; e vendo a diferença de seu modo para com Antônio
de Caminha, de todo convenceu-se que a menina gostava do primo, e estava-se
finando pelo receio de que ele, Aires, pusesse obstáculo a seu mútuo
afeto.
Dias depois que essa idéia lhe entrou no espírito, achando-se
em casa de Duarte de Morais, sucedeu que Maria da Glória de repente
debulhou-se em pranto, e eram tantas as lágrimas que lhe corriam pelas
faces como fios de aljôfares.
Úrsula que a viu nesse estado, exclamou:
– Que tens tu, menina, para chorar assim?
– Um peso do coração!… Chorando passa.
E a menina saiu a soluçar.
– Tudo isso é espasmo! observou Úrsula. Se não a casarem
quanto antes, vai a mais, a mais, e talvez quando lhe quiserem acudir, não
tenha cura.
– Já que se oferece a ocasião, carecemos tratar deste particular,
Aires, em que desde muitos dias atrás ando para tocar-vos.
Perturbou-se Aires a ponto que faltou-lhe a voz para retorquir; foi a custo
e com esforço que, vencida a primeira comoção, pôde
responder.
– Estou ao vosso dispor, Duarte.
– É tempo de saberdes que Antônio de Caminha quer bem a Maria
da Glória e já nos confessou o desejo que tem de a receber por
esposa. Também a pediu o Fajardo, sabeis, aquele vosso camarada; mas
esse é muito velho para ela; podia ser seu pai.
– Tem a minha idade, com diferença de meses, observou Aires com uma
expressão resignada.
– Assentei não decidir sobre isso em vossa ausência, pois embora
vos considerássemos perdido, não tínhamos essa certeza;
e agora que nos fostes felizmente restituído, a vós compete
decidir da sorte daquela que tudo vos deve.
– E Maria da Glória?… perguntou Aires já senhor de si. Retribui
ela o afeto de Antônio de Caminha; e o quer por marido?
– Sou capaz de jurar, acudiu Úrsula.
– Não consenti que se lhe falasse nisto, sem primeiro sabermos se
era de vosso agrado essa união. Mas ela ai está; podemos interrogá-la
se o quereis, e será o melhor.
– Avisais bem, Duarte.
– Ide, Úrsula, e trazei-nos Maria da Glória; mas não
careceis de preveni-la.
Com pouco voltou a mulher de Duarte acompanhada pela menina.
– Maria da Glória, disse Duarte, vosso primo Antônio de Caminha
pediu vossa mão, e nós desejamos saber se é de vosso
agrado casar-vos com ele.
– Já não sou deste mundo, para casar-me nele, respondeu a menina.
– Deixai-vos de idéias tristes. Haveis de recobrar a saúde;
e com o casamento voltará a alegria que perdestes!
– Essa mais nunca!
– Enfim decidi de uma vez se quereis Antônio de Caminha por marido,
pois melhor não creio que possais achar.
– É do agrado de todos, este casamento? perguntou Maria da Glória
fitando os olhos em Aires de Lucena.
– De todos, começando por aquele que tem sido vosso protetor, e que
tanto, se não mais do que vossos pais, tinha o direito de escolher-vos
um esposo.
– Pois que foi escolhido por vós, Senhor Aires, aceito.
– O que eu ardentemente desejo, Maria da Glória, é que ele
vos faça feliz.
Um triste sorriso desfolhou-se pelos lábios da menina.
Aires retirou-se arrebatado, porque sentiu romper-lhe do seio o soluço,
por tanto tempo recalcado.
XVI
A BODA
Eram cerca de 4 horas de uma formosa tarde de maio.
Abriam-se de par em par as portas da Matriz, no alto do Castelo, o que anunciava
a celebração de um ato religioso.
Já havia no adro de São Sebastião numeroso concurso
de povo, que ali viera trazido pela curiosidade de assistir a cerimônia.
À parte, em um dos cantos da igreja, recostado ao ângulo, via-se
um velho marujo que não era outro senão o Bruno.
O contramestre não estava nesse dia de boa sombra; tinha um semblante
carrancudo, e às vezes fechando a mão calejada ferrava um murro
em cheio na carapuça.
Quando seus olhos, espraiando-se pelo mar, encontravam a escuna, que de âncora
a pique balouçava-se sobre as ondas, prestes a fazer-se de vela, o
velho marujo soltava um suspiro ruidoso.
Depois voltava-se para a Ladeira da Misericórdia, como se contasse
ver chegar desse lado alguma pessoa, por quem estivesse esperando.
Não se passou muito, que não apontasse no alto da subida, um
préstito numeroso, o qual seguiu direito á portaria da Matriz.
Vinha no centro Maria da Glória, vestida de noiva, e cercada por um
bando de virgens, todas de palma e capela, que iam levar ao altar a sua companheira.
Seguiam-se Úrsula, as madrinhas e outras damas convidadas para a boda,
a qual era sem dúvida das de maior estrondo que se tinham celebrado
até então na cidade de São Sebastião.
Aires de Lucena assim o determinara, e de seu bolso concorreu com o cabedal
necessário para a maior pompa da cerimônia.
Logo após as damas, caminhava o noivo, Antônio de Caminha, entre
os dois padrinhos, e no meio de grande cortejo de convidados, dirigido por
Duarte de Morais e Aires de Lucena.
Ao entrar a portada da igreja, Aires destacou-se um momento para falar a
Bruno, que avistando-o, viera a ele:
– Aprestou-se tudo?
– Tudo, meu capitão.
– Ainda bem; daqui a uma hora partiremos, e para não mais voltar,
Bruno.
Ditas estas palavras, Aires entrou na igreja. O velho marujo que adivinhara
quanto sofria naquele momento o seu capitão, ferrou outro murro na
carapuça, e tragou o soluço que lhe estava estortegando na garganta.
Dentro da Matriz já os noivos tinham sido conduzidos ao altar, onde
os esperava o vigário paramentado para celebrar o casamento, cuja cerimônia
logo começou.
O corsário, de joelhos em um dos ângulos mais obscuros do corpo
da igreja, assistia de longe ao ato; mas de momento a momento acurvava a fronte
sobre as mãos esclavinhadas, come absorvido em fervente oração.
Não rezava, não; bem o quisera; mas um tropel de pensamentos
se agitava em seu espírito abatido, que o arrastava ao passado, e o
fazia reviver os anos devolvidos.
Repassava na mente seu viver de outrora, e acreditava que Deus lhe enviara
do céu um anjo da guarda para o salvar. No caminho da perdição,
ele o encontrara sob a forma de uma gentil criança; e desde esse dia
sentira despertarem em sua alma os estímulos generosos, que o vício
nela havia sopitado.
Mas por que, tendo-lhe enviado essa celeste mensageira, lha negara Deus quando
a quis fazer a companheira de sua vida, e unir ao dele o seu destino?
Aí lembrou-se de que já uma vez Deus a quisera chamar ao céu,
e só pela poderosa intercessão de Nossa Senhora da Glória
a deixara viver, mas para outro.
– Antes não houvésseis atendido ao meu rogo, Virgem Santíssima!
balbuciou Aires.
Nesse instante Maria da Glória, de joelhos aos pés do sacerdote,
voltou o rosto com súbito movimento e fitou no cavalheiro estranho
olhar, que a todos surpreendeu.
Era o momento em que o padre dirigia a interrogação do ritual;
e Aires, prestes a ouvir o sim fatal, balbuciava ainda:
– Morta, ao menos ela não pertenceria a outro.
Um grito repercutiu pelo âmbito da igreja. A noiva caíra desmaiada
aos pés do altar, e parecia adormecida.
Prestaram-lhe todos os socorros; mas embalde, Maria da Glória rendera
ao Criador sua alma pura, e subira ao céu sem trocar a sua palma de
virgem pela grinalda de noiva.
O que tinha cortado o estame da suave bonina? Fora o amor infeliz que ela
ocultava no seio, ou a Virgem Santíssima a rogo de Aires?
São impenetráveis os divinos mistérios, mas podia nunca
a filha ser a esposa feliz daquele que lhe roubara o pai, embora tudo fizesse
junto depois para substitui-lo?
As galas da boda se trocaram pela pompa fúnebre; e á noite,
no corpo da igreja, ao lado da essa dourada via-se ajoelhado e imóvel
um homem que ali velou naquela posição, até o outro dia.
Era Aires de Lucena.
XVII
O ERMITÃO
Dias depois do funesto acontecimento, a escuna Maria da Glória estava
fundeada no seio que forma a praia junto às abas do Morro do Catete.
Era o mesmo lugar onde vinte anos antes se fazia a festa do batismo, no dia
em que se dera o caso estranho do desaparecimento da imagem da Senhora da
Glória, padroeira da escuna.
Na praia estava um ermitão vestido de esclavina, seguindo com o olhar
o batel que largara do navio e singrava para terra.
Abicando à praia saltou dele Antônio de Caminha, e foi direito
ao ermitão a quem entregou a imagem de Nossa Senhora da Glória.
Recebeu-a o ermitão de joelhos e erguendo-se disse para o mancebo:
– Ide com Deus, Antônio de Caminha, e perdoai-me todo o mal que vos
fiz. A escuna e quanto foi meu vos pertence: sede feliz.
– E vós, Senhor Aires de Lucena?
– Esse acabou; o que vedes não é mais que um ermitão,
e não carece de nome, pois nada mais quer e nem espera dos homens.
Abraçou Aires ao mancebo, e afastou-se galgando a íngreme encosta
do outeiro, com a imagem de Nossa Senhora da Glória cingida ao seio.
Na tarde daquele dia a escuna desfraldou as velas e deixou o porto do Rio
de Janeiro onde nunca mais se ouviu falar dela, sendo crença geral
que andava outra vez encantada pelo mar oceano, com seu Capitão Aires
de Lucena e toda a maruja.
Poucos anos depois dos sucessos que aí ficam relatados, começou
a correr pela cidade a nova de um ermitão que aparecera no Outeiro
do Catete, e fazia ali vida de solitário, habitando uma gruta no meio
das brenhas, e fugindo por todos os modos à comunicação
com o mundo.
Contava-se que, alta noite, rompia do seio da mata um murmúrio noturno,
como o do vento nos palmares; mas que aplicando-se bem o ouvido se conhecia
ser o canto do terço ou da ladainha. Esse fato, referiam-no sobretudo
os pescadores, que ao saírem ao mar, tinham muitas vezes, quando a
brisa estava serena e de feição, ouvido aquela reza misteriosa.
Um dia, dous moços caçadores galgando a íngreme encosta
do outeiro, a custo chegaram ao cimo, onde descobriram a gruta, que servia
de refúgio ao ermitão. Este desaparecera mal os pressentiu;
todavia puderam eles notar-lhe a nobre figura e aspecto venerável.
Trajava uma esclavina de burel pardo que lhe deixava ver os braços
e artelhos. A longa barba grisalha lhe descia até o peito, misturada
aos cabelos caídos sobre as espáduas e como ela hirtos, assanhados
e cheios de maravalhas.
No momento em que o surpreenderam os dous caçadores, estava o ermitão
de joelhos, diante de um nicho que ele próprio cavara na rocha viva,
e no qual via-se a imagem de Nossa Senhora da Glória, alumiada por
uma candeia de barro vermelho, grosseiramente fabricada.
Na gruta havia apenas uma bilha do mesmo barro e uma panela, na qual extraia
o ermitão o azeite da mamona, que macerava entre dous seixos. A cama
era o chão duro, e servia-lhe de travesseiro um toro de pau.
Estes contos feitos pelos dous moços caçadores excitaram ao
último ponto a curiosidade de toda a gente de São Sebastião,
e desde o dia seguinte muitos se botaram para o outeiro movidos pelo desejo
de verificarem por si mesmos, com os próprios olhos, a verdade do que
se dizia.
Frustrou-se-lhe porém o intento. Não lhes foi possível
atinar com o caminho da gruta; e o que mais admirava, até os dous caçadores
que o tinham achado na véspera, estavam de todo o ponto desnorteados.
Ao cabo de grande porfia, descobriram que havia o caminho desaparecido pelo
desmoronamento de uma grande rocha, a qual formava uma como ponte suspensa
sobre o despenhadeiro da íngreme escarpa.
Acreditou o povo que só Nossa Senhora da Glória podia ter operado
aquele milagre, pois não havia homem capaz de tamanho esforço,
no pequeno espaço de horas que decorrera depois da primeira entrada
dos caçadores.
Na opinião dos mestres beatos, a Virgem Santíssima queria significar
por aquele modo sua vontade de ser adorada em segredo e longe das vistas pelo
ermitão; o que era, acrescentavam, um sinal de graça mui particular,
que só obtinham raros e afortunados devotos.
Desde então ninguém mais se animou a subir ao píncaro
do outeiro, onde estava o nicho de Nossa Senhora da Glória; porém
vinham muitos fiéis até o lugar onde se fendera a rocha, para
verem os sinais vivos do milagre.
Foi por esse tempo também que o povo começou a designar o Outeiro
do Catete, pela invocação de Nossa Senhora da Glória;
donde veio o nome que tem hoje esse bairro da cidade.
XVIII
O MENDIGO
Estava a findar o ano de 1659.
Ainda vivia Duarte de Morais, então com sessenta e cinco anos, mas
viúvo da boa Úrsula que o deixara havia dez para ir esperá-lo
no céu.
Era por tarde, tarde cálida, mas formosa, como são as do Rio
de Janeiro durante o verão.
O velho estava sentado em um banco à porta de casa, tomando o fresco,
e cismando nos tempos idos, quando se não distraia em ver os meninos
que folgavam pela rua.
Um mendigo, coberto de andrajos e arrimado a uma muleta, aproximou-se e parando
em frente ao velho esteve por muito tempo a olhá-lo, e à casa,
que aliás não merecia tamanha atenção.
Notou afinal o velho Duarte aquela insistência, e remexendo no largo
bolso da véstia, lá sacou um real, com que acenou ao mendigo.
Este com um riso pungente, que lhe contraiu as feições já
decompostas, achegou-se para receber a esmola. Apertando convulso a mão
do velho, beijou-a com expressão de humildade e respeito.
Não se demorou porém, arrancando-se à comoção
e afastou-se rápido. Sentiu o velho Duarte ao recolher a mão
que ela ficara úmida do pranto do mendigo. Seus olhos cansados da velhice
acompanharam o vulto coberto de andrajos; e já este havia desaparecido,
que ainda eles estendiam pelo espaço a sua muda interrogação.
Quem havia no mundo ainda para derramar aquele pranto de ternura ao encontrá-lo
a ele, pobre. peregrino da vida que chegava só ao termo da romagem?
– Antônio de Caminha! murmuraram os frouxos lábios do velho.
Não se enganara Duarte de Morais. Era de feito Antônio de Caminha,
quem ele entrevira mais com o coração do que com a vista já
turva, entre a barba esquálida e as rugas precoces do rosto macilento
do mendigo.
Que desgraças tinham abatido o gentil cavalheiro nos anos decorridos?
Partido do porto do Rio de Janeiro, Antônio de Caminha aproou para
Lisboa, onde contava gozar das riquezas, que lhe havia legado Aires de Lucena,
quando morrera para o mundo.
Caminha era dessa têmpera de homens, que não possuindo em si
bastante fortaleza de ânimo para resistir ao infortúnio, buscam
atordoar-se.
O golpe que sofrera com a perda de Maria da Glória o lançou
na vida de prazeres e dissipações, qual outrora a vivera Aires
de Lucena, se não era ainda mais desregrada.
Chegado à Bahia,. por onde fez escala, foi Antônio de Caminha
arrastado pelo fausto que havia na então capital do Estado do Brasil,
e de que nos deixou notícia o cronista Gabriel Soares.
A escuna, outrora consagrada à Virgem Puríssima, transformou-se
em uma taverna de bródios e convívios. No tombadilho onde os
rudes marinheiros ajoelhavam para invocar a proteção da sua
Gloriosa Padroeira, não se via agora senão a mesa dos banquetes,
nem se escutavam mais que falas de amor e bocejos de ébrios.
A dama, em tenção de quem se davam esses festins, era uma cortesã
da cidade do Salvador, tão notável pela formosura, como pelos
escândalos com que afrontava a moral e a igreja.
Um dia teve a pecadora a fantasia de trocar o nome de Maria da Glória
que tinha a escuna, pelo de Maria dos Prazeres que ela trouxera da pia, e
tão próprio lhe saíra.
Com o espírito anuviado pelos vapores do vinho, não teve Antônio
de Caminha força, nem vontade de resistir ao requebro d’olhos que lançou-lhe
a dama.
Bruno, o velho Bruno, indignou-se quando soube disso, que para ele era uma
profanação. À sua voz severa, os marujos sentiram-se
abalados; mas o capitão afogou-lhes os escrúpulos em novas libações.
Essas almas rudes e virís, já o vício as tinha enervado.
Naquela mesma tarde consumou-se a profanação. A escuna recebeu
o nome da cortesã; e o velho, da amurada onde assistira à cerimônia,
arrojou-se ao mar, lançando ao navio esta praga:
– A Senhora da Glória te castigue, e aqueles que te fizeram alcouce
de barregãs.
XIX
A PENITÊNCIA
Antes de findar a semana largou a escuna Maria dos Prazeres do porto do Salvador,
com o dia sereno e mar de bonança, por uma formosa manhã de
abril.
Tempo mais de feição para a partida não o podiam desejar
os marujos; e todavia despediam-se eles tristes e soturnos da linda cidade
do Salvador, e suas formosas colinas.
Ao suspender do ferro partira-se a amarra, deixando a âncora no fundo,
o que era mau agouro para a viagem. Mas Antônio de Caminha riu-se do
terror de sua gente, e meteu o caso à bulha.
– Isto quer dizer que havemos de tornar breve a esta boa terra, pois cá
nos fica a âncora do navio, e a de nós outros.
Singrava a escuna dias depois com todo o pano, cutelos e varredouras. Estava
o sol a pino; os marujos dormitavam abrigados pela sombra das velas.
À proa assomava dentre as ondas um rochedo que servia de pouso a grande
quantidade de alcatrazes ou corvos do mar, cujos pias lúgubres ululavam
pelas solidões do oceano.
Era a ilha de Fernando de Noronha.
Ao passar fronteira a escuna, caiu um pegão de vento, que arrebatou
o navio e o despedaçou contra os rochedos, como se fora uma concha
da praia.
Antônio de Caminha que sesteava em seu camarim, depois de muitas horas,
ao dar acordo de si, achou-se estendido no meio de uma restinga sem atinar
em como fora para ali transportado, e o que era feito de seu navio.
Só ao alvorecer, quando o mar rejeitou os destroços da escuna
e os corpos de seus companheiros, compreendeu ele o que era passado.
Muitos anos viveu o mancebo ali, naquele rochedo deserto, nutrindo-se de
mariscos e ovos de alcatrazes, e habitando uma gruta, que usurpara a esses
companheiros de seu exílio.
Às vezes branquejava uma vela no horizonte; mas debalde fazia ele
sinais, e lançava não gritos já, mas rugidos de desespero.
O navio singrava além e perdia-se na imensidade dos mares.
Afinal o recolheu um bergantim que tornava ao reino. Eram passados anos,
dos quais perdera a conta. Ninguém já se lembrava dele.
Várias vezes, tentou Caminha a fortuna, que se de todas lhe sorriu,
foi só para mais cruel tornar-lhe a malogro das esperanças.
Quando ia medrando, e a vida se embelecia aos raios da felicidade, vinha o
sopro da fatalidade que de novo o abatia.
Mudava de profissão, mas não mudava de sorte. Afinal cansou
na luta, resignando-se a viver da caridade pública, e a morrer quando
esta o desamparasse.
Um pensamento porém o dominava, que o trazia constantemente à
ribeira, onde suplicava a todos os marítimos que passavam, a esmola
de levá-lo ao Rio de Janeiro.
Achou enfim quem dele se comiserasse; e ao cabo de bem anos aportara a São
Sebastião. Chegara naquela hora e atravessava a cidade, quando viu
o tio à porta da casa.
Deixando o velho Duarte, seguiu além pelo Boqueirão da Carioca,
e foi até a abra que ficava nas fraldas do Outeiro do Catete, no mesmo
ponto em que trinta anos antes se despedira de Aires de Lucena.
Galgou a encosta pelo trilho que então vira tomar o corsário,
e achou-se no tope do outeiro. Aí o surpreendeu um gemido que saía
da próxima gruta.
Penetrou o mendigo na caverna, e viu prostrado por terra o corpo imóvel
de um ermitão. Ao ruído de seus passas, soergueu este as pálpebras,
e seus olhas baços se iluminaram.
A custo levantou a mão apontando para a imagem de Nossa Senhora da
Glória, posta em seu nicho à entrada da gruta; e cerrou de novo
os olhos.
Já não era deste mundo.
EPÍLOGO
Antônio de Caminha aceitou o legado de Aires de Lucena. Vestiu a esclavina
do finado ermitão, e tomou conta da gruta onde aquele vivera tantos
anos.
Viera àquele sítio como em santa romaria para obter perdão
do agravo que fizera à imagem de Nossa Senhora da Glória, e
chegara justamente quando expirava o ermitão que a servia.
Resolveu pois consagrar o resto de sua vida a expiar nessa devoção
a sua culpa; e todos os anos no dia da Assunção, levantava uma
capela volante, onde celebrava-se a glória da Virgem Puríssima.
Toda a gente de São Sebastião e muita de fora ia em ramagem
ao outeiro levar as suas promessas e esmolas, com as quais pôde Antônio
de Caminha construir em 1671 uma tosca ermida de taipa, no mesmo sítio
onde está a igreja.
Com o andar dos tempos arruinou-se a ermida, sobretudo depois que, entrado
pelos anos, rendeu alma ao Criador o ermitão que a tinha edificado.
Antônio de Caminha finou-se em cheiro de santidade, e foi a seu rogo
sepultado junto do primeiro ermitão do outeiro, cujo segredo morreu
com ele.
Mais tarde, já no século passado, quando a grande mata do Catete
foi roteada e o povoado estendeu-se pelas aprazíveis encostas, houve
ali uma chácara, cujo terreno abrangia o outeiro e suas cercanias.
Tendo-se formado uma irmandade para a veneração de Nossa Senhora
da Glória, que tantos milagres fazia, os donos da chácara do
Catete cederam o outeiro para a edificação de uma igreja decente
e seu patrimônio.
Foi então que se tratou de construir o templo que atualmente existe,
ao qual se deu começo em 1714.
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