O Moço Loiro

Introdução

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Ce livre
Tremble et palpite sous vos pieds.
V. Hugo

SENHORAS!

Para que nascesse O moço loiro influíram fortemente em mim dois sentimentos nobres e profundos.

No empenho de escrever a gratidão.

Na concepção e desenvolvimento do romance a esperança.

Um ano há decorrido desde que um jovem desconhecido, sem habitações, com fracos e limitadíssimos recursos intelectuais, mas rico de vontade e de bons desejos; temeroso e quase à força ofereceu à generosidade do público do Rio de Janeiro um pobre fruto de sua imaginação A moreninha que ele amava, como filha de sua alma. Esse jovem, senhoras, fui eu.

Fui eu, que, com meus olhos de pai, a segui em sua perigosa vida, temendo vê-la cair a cada instante no abismo do esquecimento… fui eu que (talvez ainda com vaidade de pai) cheguei a crer que o público a não enjeitava; e, sobretudo, que minha querida filha tinha achado corações angélicos, que, dela se apiedando, com o talismã sagrado de sua simpatia a levantaram mesmo muito acima do que ela merecer podia. E esses corações, senhoras, foram os vossos.

Oh! mas é preciso ser autor, ao menos pequenino autor, como eu sou, para se compreender com que imenso prazer, com que orgulho eu sonhava vossos belos olhos pretos brasileiros, derramando os brilhantes raios de suas vistas sobre as páginas do meu livro! vossos lábios cor-de-rosa docemente sorrindo-se às travessuras da Moreninha!

E desde então eu senti que devia um eterno voto de agradecimento a esse público, que não enjeitara minha cara menina; e que mais justa dedicação me prendia aos pés dos cândidos seres, que haviam tido compaixão de minha filha.

E, pobre como sou, convenci-me para logo que não daria nunca um penhor dos sentimentos, que em mim fervem, se o não fosse buscar no fundo d’alma, colhendo minhas idéias, e delas organizando um pensamento.

E, acreditando que me não devia envergonhar da oferta, porque dava o que dar podia; e porque, assim como o perfume é a expressão da flor, o pensamento é o perfume do espírito; eu quis escrever…

No empenho de escrever, pois, influiu em mim – a gratidão.

Ora, o pensamento que dessas idéias pretendia organizar era – um romance; mas, fraco e desalentado, o que poderia exercer em mim influência tão benigna e forte, que, mercê dela, conseguisse eu conceber (mesmo deforme como é) O moço loiro, e chegasse a terminá-lo? o quê?… a esperança.

Porque a esperança é um alimento sim! o mais doce alimento do espírito!

E tudo quanto eu esperei, espero ainda.

Espero que minhas encantadoras patrícias vejam em O moço loiro, um simples e ingênuo tributo de gratidão a elas votado; e espero também que o público, que outrora me animou, e a quem muito devo, de tal tributo se apraza; pois sei que sempre lisonjeiro lhe é ver render cultos aos astros brilhantes de seu claro céu, às mimosas flores de seu ameno prado.

Espero ainda que meu novo filho não será lançado ao longe, como fruto verde e ingrato ao paladar… que O moço loiro será, ao menos por piedade, aceito e compreendido.

Espero mais, senhoras, que generosas sempre, perdoando as imperfeições e graves defeitos de O moço loiro, não querereis perguntar a seu débil pai como ousas escrever? Oh! não mo perguntareis; porque há em vós bastante ardor, imaginação e poesia para sentir que às vezes o desejo de escrever é forte, qual o instinto, que manda beber água para apagar a sede, e comer para matar a fome; que às vezes o pensamento arde, e se consome em fogo; e que então é inevitável deixar sair as chamas desse fogo… as idéias desse pensamento…

Espero finalmente que vós, senhoras, dignando-vos adotar O moço loiro, permitireis que ele, coberto com a égide de vosso patrocínio, possa obter o favor e encontrar o abrigo que à sua irmã não foi negado.

Sim! que este pobre menino, saído apenas do tão frio e abatido seio de seu pai, se anime e aqueça à vossa sombra!… que, por uma compensação, pela mais suspirada das compensações, esse passado de gelo e de abatimento para sempre esquecido ante o ardor e a felicidade do futuro!…

Oh! que não seja uma ilusão a minha esperança!…

Consenti, pois, senhoras, que me eu atreva a dedicar-vos O moço loiro, como um primeiro e fraco sinal de reconhecimento, que há de durar sempre…

Inspirado pela gratidão, é ele semelhante a uma inocente flor depositada com religioso respeito no altar e aos pés dos anjos.

Filho da esperança, pode parecer-se com brando suspiro do coração, que almeje cair no seio da beleza…

E, enfim, como um franguinho infante, que medroso dos camaradas corre a acolher-se no materno colo, O moço loiro convosco se apadrinha, senhoras, e a cada uma de vós repete as palavras do salmo:

“Protege-me com a sombra de tuas asas!”

O autor

I

Teatro italiano

Declinava a tarde do dia 6 de agosto de 1844: o tempo estava chão e bonançoso; e, contudo, meia cidade do Rio de Janeiro profetizava tempestade para o correr da noite. Como isso era, estando como de feito estava o Pão de Açúcar com sua cabeça desnublada e livre da tal carapuça de fumo com que se agasalha quando prevê mau tempo, é o que ainda agora mesmo poderiam muito bem explicar os habitantes desta bela corte, se não fossem, honrosas exceções para um lado, tão esquecidos dos acontecimentos que se passam em nossa terra, como às vezes finge sê-lo das contradanças, que prometeu a cavalheiros, que lhe não são do peito, uma mocinha do grande tom.

Mas, pois que, segundo cremos, o caso em questão não se acha suficientemente lembrado justo é, mesmo para que por tão pouco a ninguém pareça ter cabido honras de profeta, dizer que, se a atmosfera não estava carregada, a antecipação e o espírito de mesquinho partido haviam exalado vapores, que, condensando-se sobre o ânimo do público, deixavam prognosticar uma borrasca moral.

Ora, assim como muitas vezes sucede, que rosnam surdamente as nuvens, quando está prestes para rebentar alguma trovoada, assim também notava-se que na tarde de que se fala, ouvia-se um zunido incessante, e do meio dele por vezes ressaltavam as palavras teatro… direita… esquerda… aplausos… pateada… e muitas outras tais quais as que deram lugar à cena seguinte passada em um hotel, que nos é muito conhecido, e que se acha estabelecido na rua, que, por se chamar Direita , efetivamente representa a antítese do próprio nome.

Dois moços acabam de entrar nesse hotel. Um deles, que para o diante melhor conheceremos, trajava casaca e calças de pano preto, colete de seda de xadrez cor de cana, sobre o qual se deslizava finíssima corrente de relógio; gravata também de seda e de uma bela cor azul; trazia ao peito um rico solitário de brilhante; na mão esquerda suas luvas de pelica cor de carne, na direita uma bengala de unicórnio com belíssimo castão de ouro; calçava finalmente botins envernizados. Esse moço, cuja tez devia ser alva e fina, mas que mostrava ter sofrido por muitos dias os ardores do sol, era alto e bem-apessoado; seu rosto, sem ser verdadeiramente belo, causava ainda assim um interesse; ele tinha os cabelos pretos, os olhos da mesma cor, mas pequenos, e sem fogo. Entrou no hotel, como levado à força pelo seu amigo; e, sentando-se junto a uma mesa defronte dele, tomou um jornal e começou a ler.

O outro, que nos não deverá obséquio de ser aqui descrito, estava dando as suas ordens a um servente do hotel, quando ouviu a voz do seu amigo.

Ana Bolena!… Bravíssimo!… caiu-me a sopa no mel! ardia por chegar ao Rio de Janeiro, principalmente para ir ao teatro italiano, e eis que, apenas chegado há duas horas, já leio um anúncio que realiza meus desejos; vou hoje à ópera.

Já tens bilhete?…

Não, mas saindo daqui mando ver uma cadeira.

Não há mais.

Então não há remédio… um camarote.

Estão todos vendidos.

Oh, diabo! irei para a geral.

Nem um só bilhete resta, meu caro.

Pois, deveras, o furor é tal?… paciência, vou encartar-me no camarote de algum amigo.

Não, que desse susto te livro eu: toma lá um bilhete de cadeira.

E tu?…

Eu hoje tenho muito o que fazer na platéia.

Aceito, que não sou pobre soberbo; porém, que história é essa?… oh, Antônio, seria possível que te fizesses cambista?…

Por quê?

Vejo-te aí com um maço de bilhetes, que a menos que não seja agora moda dar aos porteiros uma dúzia de cada vez, que se entra para o teatro…

Nada… nada… isto é para uns camaradas, que pus de mão para ir comigo à ópera.

Como estás tão rico!… muitos parabéns!…

Ah!… já sei que nada sabes do que por aqui vai: há dez meses fora do Rio de Janeiro, acabas de entrar na cidade tão simples e bisonho como um caLoiro nas aulas. Ora, dize lá; tu és Candianista ou Delmastrista?…

O Sr. Antônio fez esta pergunta em voz bastante inteligível; pois, um movimento quase geral se operou no hotel; os olhos do maior número dos que aí se achavam, fitaram-se nos dois parladores; um moço que na mesa fronteira jogava o dominó, ficou com uma peça entre os dedos e a mão no ar, imóvel, estático, como um epiléptico; um velho militar que próximo estava, e que para assoar-se já tinha posto o nariz em posição, deixou-se estar com o lenço estendido diante do rosto e preso entre as duas mãos, não desarranjou mesmo a horrível careta que se habituara a fazer na ação de limpar-se do monco, e assim como se achava, lançou os olhos por cima dos óculos, e os pregou na mesa da questão.

Dize-me tu primeiro, o que significa isso, respondeu aquele a quem fora dirigida a pergunta.

Otávio, tornou com muito fogo o Sr. Antônio, pergunto-te de qual das duas primas-donas és tu partidário, se da Delmastro, se da Candiani.

Mas se eu ainda não ouvi nenhuma, homem!

Pois faze de conta que já as ouviste: é preciso decidir-te, e já!…

Essa agora é mais bonita!…

O Rio de Janeiro em peso se acha extremado!…

E isso que me importa?…

Oh! exclamou o Sr. Antônio com voz sepulcral, oh! oh! “quando se diz acerca do negócios do Estado que me importa deve-se contar que o Estado está perdido”!!!

Ora, eis o que se chama uma citação a propósito.

É preciso! é justo, é inevitável!… deves pertencer à esquerda ou à direita do teatro, continuou o diletante com entusiasmo, e sem notar que se fazia o objeto da geral atenção; sim!… Otávio recebe o conselho de um amigo, que não quer ver manchada a tua reputação; nada de sentar-te na direita… nada de Candiani!… escuta: a Delmastro tem por si o prestígio da ciência, e o voto dos peritos; quem diz Candianista, diz criança, estouvado, estudante! A Candiani tem uma voz… e mais nada: e uma voz… triste… sem bemóis, nem sustenidos… lamentável… horrível… detestável… fulminante… que faz mal aos nervos!…

Apoiadíssimo! gritou o velho, concertando os óculos que, com o gosto de ouvir o Delmastrista, lhe haviam caído do nariz no queixo.

O moço do dominó há muito tempo que não dava conta do jogo.

Ora, fico-lhe obrigado, disse-lhe o parceiro, aqui está um seis, e o senhor ajunta-lhe um quatro… inda pior, um dois?… então que é isso?… um três? outro quatro… um cinco? o senhor quer divertir-se à minha custa?… mas… o que tem, meu amigo?… está tremendo… e tão pálido…

Com efeito, o moço tremia convulsivamente. E o Sr. Antônio, sem atender a coisa alguma, prosseguia:

E a Delmastro?… a Delmastro é doce e bela, melodiosa e engraçada: sua voz subjuga, arrebata, amortece, vivifica, encanta, enfeitiça, derrota, fere e mata quem a ouve!… sua voz cai no coração, e de lá toma parte no sangue da vida! e, sobretudo, professora incontestável… professora até à ponta dos cabelos, adivinha os pensamentos de Donizetti, corrige-lhe os erros, adoça-lhe as rudezas, e diviniza-lhe as harmonias! sabe música… muita música… toca a música…

É falso!… é falsíssimo!… é falsíssimmo!… bradou, espumando de raiva o moço do dominó e fazendo voar pelos ares todas as peças do jogo.

O senhor atreve-se a dizer-me que é falso?!!

É falso!… repito, é falso!…

Que diz, senhor?… exclamou o velho, atirando-se sobre o novo diletante, é falso?… essa palavra é motivo suficiente para um duelo: retire, pois, a expressão, e não se peje de o fazer; porque isto de retirar expressões é muito parlamentar.

Retire a expressão! retire a expressão, gritaram alguns.

Não retire!… não retire!… bradaram outros.

Não retiro!… aceito todas as conseqüências!… repito que é falso!… digo que a Delmastro nada sabe de música, estudou pelo método de Jean-Jacques Rousseau, tem voz de assobio de criança em Domingo de Ramos; enquanto a Candiani é um rouxinol!… um milagre de harmonia!… um anjo!…

Apoiado!… bravo!… bravo!… muito bem!…

Não!… não! ali o Sr. Antônio é quem tem razão.

É de notar, que apenas o moço declarou que não retirava a expressão, o velho Delmastrista foi-se pondo pela porta fora, murmurando entre dentes:

Não se pode argumentar com ele!… não é parlamentar…

Senhores, acudiu com muita prudência um servente do hotel, por quem são, não vão às do cabo aqui… isso desacreditaria a casa!…

Não, tornou o Candianista, é preciso dizer a este senhor que estou pronto a sustentar o que avancei, onde, como e quando ele quiser!…

Pois bem, respondeu o Sr. Antônio, até à noite no teatro!

Aceito a luva! Até à noite no teatro. Sim! e lá terei o prazer de rebentar estas mãos a dar palmas, quando ela… quando eu digo ela, já se sabe que é da doce Candiani que falo, entoar com a ternura, com que costuma, o seu

Al dolce guidami

Castel natio.

E o apaixonado do moço começou a cantar acompanhado por todo o rancho de Candianistas, que se achava no hotel; e que, vendo o Sr. Antônio, para nada ficar devendo ao seu competidor, exclamou:

E eu hei de ter a glória de fazer em postas esta língua, dando entusiásticos bravos, quando ela… quando eu digo ela, já se sabe que é da inefável Delmastro que falo, fizer soar a branda voz no seu

Ah! pensate che rivolti

Terra e Cielo han gli occhi in voi;

E com o mais detestável falsete, pôs-se a estropiar o sem dúvida belo Ah! pensate , que não só por ele, como por todos os outros delmastristas presentes, foi completamente desnaturado.

A bons minutos trovejavam de mistura no hotel Al dolce guidami com o Ah! pensate , quando a esforços inauditos dos criados do hotel saíram para a rua os dois bandos, esquecendo-se o Sr. Antônio, no fogo do entusiasmo, que deixava com a maior sem-cerimônia o seu amigo.

Mas, nem por tal se escandalizou Otávio, que antes deu parabéns da boa fortuna com que havia escapado do meio daquela corte de maníacos; e, deixando o hotel, procurou passar divertidamente duas horas, que lhe faltavam, para ir ouvir Ana Bolena.

Passaram elas, e Otávio se achou no teatro de S. Pedro de Alcântara.

Não se via um só lugar desocupado; as cadeiras estavam todas tomadas, a geral cheia e abarrotada, e de momento a momento ouviam-se as vozes de alguns diletantes que bradavam: travessas! travessas!…

As quatro ordens de camarotes se mostravam cingidas por quatro não interrompidas zonas de belas; desejosas todas de testemunhar desde o começo o combate dos dois lados teatrais, tinham vindo ornar, ainda antes da hora suas felizes tribunas; nenhuma mesmo, dentre as que ostentavam mais rigor no belo tom, se havia adrede deixado para chegar depois de começado o espetáculo, e, fazendo, como é por algumas usado, ruído com as cadeiras e banco ao entrar nos camarotes, desafiar assim as atenções do público.

No entanto, elas derramavam a luz de seus lumes sobre essas centenas de cabeças ferventes, que debaixo se agitavam; desassossegadas e ansiosas, como que com seus olhos inquiriam daquele público, até onde levaria sua exaltação, e com a ternura de suas vistas pareciam querer aquietar a hiena, que a seus pés rugia.

Finalmente, o primeiro violino, com toda a sua respeitável autoridade de general daquele imenso esquadrão harmônico, deu o sinal da marcha, batendo as três simbólicas pancadas com sua espada de crina: daí a momentos o pano se havia levantado, e a ópera começado.

Não se passou muito tempo sem que o nosso conhecido Otávio se convencesse de que sairia do teatro como havia entrado, isto é, sem ouvir a sua tão suspirada Ana Bolena.

Alguns diletantes da capital, depois talvez de haver muito parafusado, tinham descoberto um meio novo de demonstrar o seu amor pelas inspirações de Euterpe e a sua paixão pelas duas primas-donas. Eram sem mais nem menos isto: para aplaudir ou patear não é necessário ouvir; de modo que se batia com as mãos e com os pés, ao que ainda não se tinha ouvido; aplaudia-se e pateava-se, apenas alguma das pobres cantoras chegava ao meio de suas peças; não se esperava pelo fim… aplaudia-se e pateava-se o futuro. Era uma assembléia de profetas; uma assembléia que adivinhava se seria bem ou mal executado o que restava para sê-lo.

Otávio tinha, por sua má sina, ficado entre dois extremos opostos: o que estava do seu lado direito, Candianista exagerado, era um mocetão com as mais belas disposições físicas; porém, desgraçadamente gago, e tão gago, que, quando desejava soltar o seu bravíssimo, fazia tão horríveis caretas, que em redor dele ninguém podia deixar de rir-se, e, por conseqüência, era isso motivo para dar-se ruído tal, que a mesma predileta, por interesse próprio, deveria, se adivinhasse que estava de posse de tão infeliz diletante, conseguir que ele engolisse silencioso os assomos do seu entusiasmo.

Se, pela parte direita, Otávio via-se mal acompanhado, pela esquerda estava talvez em piores circunstâncias. Sentava-se aí um ultradelmastrista, homem de quarenta anos, barbudo e gordo, que fazia ressoar por todo o teatro seus bravos e aplausos, mal começava a sua querida prima-dona; razão por que o moço gago, de quem a pouco se falou, já o tinha chamado ao pé do rosto: “monstro!… alma danada!… e fera da Hircânia”! Felizmente, porém, disso não podia surdir resultado algum desagradável; pois o ultradelmastrista era completamente surdo; e tanto o era, que uma vez em que a sua predileta, devendo guardar silêncio, mas, para o devido desempenho da cena, tendo de demonstrar admiração ou não sabemos quê, abriu um pouco a boca, arregalou os olhos e dobrou-se para diante, o nosso apaixonado, que só por tais sinais conhecia quando ela cantava, pensou que, com efeito, o estava então fazendo, e exclamou todo a remexer-se: Assim!… assim, sereia!… derrota-me esta alma petrificada!…

Em tais circunstâncias, mal podendo gozar as brilhantes inspirações do imortal Donizetti, e menos ainda apreciar as duas cantoras, por quem tão fora de propósito, e desajuizadamente, pleiteava o público do teatro de S. Pedro de Alcântara, Otávio resolveu-se a empregar o seu tempo em alguma coisa proveitosa e entendeu que o que melhor lhe convinha era admirar os triunfos da natureza em algum rosto bonito, que por aqueles camarotes deparasse.

Não gastou Otávio muito tempo em procurar objeto digno de suas atenções: em um camarote da primeira ordem, que lhe ficava um pouco para trás, viu ele um engraçado semblante que atirava seu tanto para o moreno (tipo com que, aqui para nós, simpatiza muito certo sujeito do nosso conhecimento), e que, além do mais, era animado por dois olhos vivos… belos… faiscantes… enfim, dois olhos brasileiros; porque, seja dito de passagem, tanto orgulho podem ter as espanholas de seu pequeno pezinho, e delgada cintura, como as brasileiras de seus lindos olhos pretos, que parecem haver passado para suas vistas todo o ardor da zona em que vivemos.

O tal camarote, onde estava a moça morena, era, sem pôr nem tirar, um viveiro de originais. Junto dela ostentava seu brilho, esplendor, e não sabemos que mais, uma senhora, que pelo que mostrava, e não pelo que diria, devia andar roçando pelos seus cinqüenta anos, e que, apesar de tal, endireitava-se na cadeira e tais ademanes fazia, como poucas meninas que querem casar, os fazem. Vestia um vestido de seda verde cruelmente decotado, tinha na cabeça uma touca de cassa da Índia, ornada com laços de fitas azuis etc.; segurava com a mão direita em um ramo de belos cravos, e conservava a esquerda esquecida sobre o elegante óculo, deposto no parapeito do camarote.

A segunda e última fila era formada por três marmanjos: começando pela esquerda, via-se um homem avelhentado, magro, alto, de rosto comprido, a cuja barba fazia sombra um enorme e afilado nariz, muito cuidadoso das senhoras, e tendo sempre derramada no semblante uma espécie de prazer, que a mais simples observação descobria ser fingido, era necessariamente o pobre pecador que, de antemão, curtia todos os seus pecados, passados, presentes e futuros, com a penitência de ser o chefe daquela família.

O que estava no meio era por força um daqueles homens que pertencem a todas as idades, que são conhecidos de todo o mundo, e aparecem em todos os lugares: tinha cara de hóspede daquele camarote.

O terceiro, enfim, era um rapaz de seus vinte e seis anos, amarelo, cabeludo, de enorme cabeça, e não fazia senão dar à taramela e comer doce.

Em menos de cinco minutos a atenção de Otávio foi sentida no camarote, e quase ao mesmo tempo pela menina morena, e pela senhora… idosa (velha é palavra que está formalmente reprovada, sempre que se trata de senhoras).

Rosinha, disse aquela ao ouvido da primeira, não vês como aquele moço de gravata azul-celeste tem os olhos embebidos no nosso camarote?

Não, minha mãe, respondeu a moça com fingimento, ainda não reparei.

Pois atente, menina.

Sim, parece que sim, minha mãe.

Chamem-me velha, se aquilo não é com alguma de nós.

E a boa da senhora idosa levou até ao nariz o seu ramo de belos cravos, que fizeram um terrível contraste com o seu infeliz semblante.

Oh, Sr. Brás, continuou ela falando com o segundo dos homens que foram descritos, conhece aquele moço que está ali de gravata azul-celeste?…

Perfeitamente, é o senhor…

Basta; dir-me-á depois; há um mistério na minha pergunta, que só mais tarde lhe poderei descortinar…

No entanto, a moça morena já tinha olhado seis vezes para o moço, três cheirando suas flores, e duas limpando a boca com seu lenço de cambraia.

Pela sua parte Otávio vingava-se do furor dos ultradiletantes, lembrando-se poucas vezes de que viera ouvir Ana Bolena.

O fim do primeiro ato veio suspender por momentos tudo isso; Otávio saiu do teatro para tomar algum refresco, e ainda mais para ter ocasião de mudar de vizinhos. Versado em todos os segredos da arte, mercê da qual os homens conhecem se têm ou não merecido particular atenção das senhoras, ele, entrando de novo para as cadeiras, tomou uma em direção contrária àquela que o primeiro ocupara. Um instante depois de levantar-se o pano, tirou logo resultado de seu estratagema; a senhora idosa e a moça morena davam tratos aos olhos para descobri-lo; depois de algum trabalho, deram por fim com ele; desgraçadamente, porém, o moço achava-se em piores circunstâncias do que no primeiro ato.

Com efeito, Otávio via-se então sitiado pela direita, pela esquerda, pela frente, e pela retaguarda: eram quatro diletantes de mão-cheia.

À direita, ficava-lhe um diletante sentimental, que no meio das melhores peças puxava-lhe pelo braço e exclamava: ouça! como é belo isto! aquela volata! esta tenuta! então de qual das duas mais gosta?… olhe, eu gosto de ambas… sou epiceno… quero dizer, comum-de-dois: e enfim falava, falava e falava mais que três moças juntas, quando conversam sobre seus vestidos.

À esquerda, estava um diletante estrangeiro, que apontava ao infeliz Otávio os lugares onde mais brilhava a Grisi, aqueles em que primava a Pasta, e os pedaços harmônicos em que se fazia divina a Malibran, que ele tinha ouvido em Paris ainda em 1843.

Na frente, sentava-se um diletante perito, que era um eco de quanto se cantava; tinha a Ana Bolena de cor e salteada, e ia por entre os dentes estropiando em meia voz todas as peças que se executavam; de modo que, de redor dele, ouvia-se Ana Bolena dupla.

Na retaguarda, enfim, um diletante parlamentar resmungava com o seu compadre sobre a marcha dos negócios públicos; exasperava-se de que esse mesmo povo, que tanto se exaltava por duas cantoras, deixasse em esquecimento as eleições, e por tal forma que ele, que se fizera candidato a juiz de paz, mal tinha podido até esse dia fazer assinar trinta e duas listas muito conscienciosamente.

Em tal posição o pobre Otávio nem mesmo tinha licença de olhar para o camarote; pois, se voltava para ele a cabeça, logo o diletante da direita puxava-lhe do braço, e dizia quase gemendo:

Não perca… não perca este pedacinho… oh, que agudos!…

O da esquerda dava-lhe uma cotovelada e exclamava:

Aqui a Grisi! eu a ouvi na cidade de Moscou, meses antes da invasão de Bonaparte… olhe que fez furor! um furor tal, que o próprio imperador de todas as Rússias mandou-lhe o seu querido cavalo, para que ela fugisse, duas horas antes do incêndio.

Com semelhante companhia não era possível nem ouvir música, nem ver moças. Otávio resignou-se; porém, apenas veio o pano abaixo, sem se dar com os gritos de: Candiani, à cena! à cena! com que os Candianistas celebravam o triunfo de sua maioria firme, compacta, decidida, e o que é mais, patriótica, correu para fora com tenção de esperar à saída dos camarotes a moça morena.

Mas parece que o destino estava de candeias às avessas com o pobre moço; ao passar pela parte da platéia o Sr. Antônio agarrou-o pelo braço.

Larga-me, deixa-me, Antônio.

Não! é impossível! é preciso dizer a qual das duas pertences.

Eu a nenhuma, deixa-me.

Mas é preciso! é justo!… é inevitável!…

Pois amanhã te direi; peço-te esta noite para resolver-me.

Não, não! é necessário dizer já!

Então… sou Candianista.

O Sr. Antônio recuou três passos, e disse com voz lúgubre:

Otávio, fala sério, quero dizer, sisudo, com seriedade!

Sou Candianista, repetiu Otávio.

Sr. Otávio, exclamou depois de momentos de reflexão o Sr. Antônio, todas as nossas relações estão quebradas! esqueça-se de que sou vivo: e lembre-se que tem um amigo de menos, e um inimigo de mais.

E dito isto, retirou-se; mas talvez que tivesse de voltar mais exasperado que nunca, se a algazarra que faziam os Candianistas dentro do teatro não cobrisse a gargalhada que soltou Otávio, ouvindo as últimas palavras do Sr. Antônio.

Quase ao mesmo tempo saía a família que Otávio vinha esperar; ele correu para junto da escada, e a moça morena apenas o viu, olhou para trás e disse com voz bem alta ao ancião que mostrou ser seu pai:

Ora esta, meu paizinho; por que eu digo que vir ao teatro tem seus prazeres e seus desgostos é, na verdade, um desgosto ter de ir a tais horas e a pé, à rua de… onde nós moramos.

E apenas acabou, olhou para Otávio, e sorriu-se. O moço tirou do seu álbum e escreveu: rua de… A senhora idosa, a quem nada escapava, bateu com o leque no ombro da filha, e disse-lhe ao ouvido:

Tu és a minha glória! honras a bela árvore de que és vergôntea.

No resto da noite apenas se fazem dignos de lembrar-se dois atos praticados pelo Sr. Antônio, e pelo moço com que havia disputado no hotel.

O moço, acompanhando a sege que conduziu a sua Candiani a casa, viu-a apear-se, e quando a porta se fechou, e a rua ficou solitária, ele chegou-se àquela, ajoelhou-se, e beijou três vezes a soleira em toda a sua extensão, depois erguendo-se, e, retirando-se, disse:

Agora já posso dormir: beijando toda a soleira da porta, por onde ela entrou, beijei por força o lugar onde tocou com seu sapato o pé de um anjo!…

O Sr. Antônio levou adiante o seu sacrifício: ficou todo o resto da noite grudado com a porta da casa de sua inefável Delmastro, tendo o nariz enterrado na fechadura; ao amanhecer, ele a custo abandonou o difícil posto, e retirou-se, murmurando:

Não dormi; porém, ao menos com o meu nariz metido na fechadura daquela porta, respirei por força alguma molécula de ar, que já tivesse sido respirada por aquela Musa do Parnaso.

II

Agastamentos conjugais

Um homem de cinqüenta anos, magro, alto, pálido, calvo, e de grande nariz, é o Sr. Venâncio, marido da Sr.ª D. Tomásia, e pai do Sr. Manduca e da Sr.ª D. Rosa.

Venâncio é um empregado, sem exercício, não nos lembra de que espécie; na vida que vive, vê-se obrigado a ser somente isso; pois que em tudo o mais é a sombra de sua mulher. Aos vinte e oito anos casou-se, porque seu pai lhe disse que era preciso fazê-lo, com uma senhora que se acompanhava de alguns mil cruzados de dote, como de fato os trouxe a Sr.ª D. Tomásia, que, pela sua parte, segundo ela mesma o diz, casou-se para se casar.

E este casal representou logo e continuou a representar o mais interessante contraste. Venâncio é débil, condescendente e pacato; se algumas vezes se empina, é para logo dobrar-se mais humildemente que nunca. Tomásia é forte, decisiva, arrogante e valentona. Não sabe senão mandar e quer sempre ser obedecida. Vendo de longe a sociedade elegante, trata de arremedá-la, e faz-se uma completa caricatura do que ela chama grande tom. Conhecendo cedo o gênio e caráter de seu esposo, tornou-se a déspota, a tirana do pobre homem; e para servirmo-nos de um pensamento dela mesma, escreveremos suas próprias palavras: “Venâncio, diz ela mil vezes, nesta casa a tua vontade é uma colônia, de que a minha voz é a metrópole.” E o pobre Venâncio, casado há vinte e dois anos, há vinte e dois anos que faz inúteis planos de independência; todos os dias levanta-se com disposição de sustentar a pé firme uma batalha decisiva, mas às primeiras cargas do inimigo larga as armas, bagagens e tudo, e põe-se em retirada, ou as mais das vezes ajoelha-se e implora anistia.

Ultimamente havia escaramuças diárias: a razão aqui vai. Tomásia tivera nos primeiros cinco anos dois filhos; depois parece que a natureza lhe gritou stop; passaram-se dezesseis e ao correr o décimo sétimo veio, contra a expectativa de Venâncio, mais uma menina, para fazer a conta de três. Tomásia saudou com entusiasmo esse acontecimento. Segundo certa aritmética exclusivamente feminina, algumas senhoras quando chegam aos quarenta anos contam a sua idade no sentido inverso do que até então praticaram: isto é, no ano que se segue àquele em que fizeram quarenta, contam trinta e nove; no outro que vem, trinta e oito, até que chegam segunda vez aos trinta, em que costumam fazer uma estação de um lustro. Ora, Tomásia, mais velha que seu marido três anos, já tinha exatamente três anos de estação, mas, vindo inopinadamente a nova menina, entendeu lá consigo que era preciso contar menos de trinta para ter filhos, e, pois, foi dizendo que se enganara na conta de sua idade; pois que não tinha mais que vinte e nove anos. Todavia, essa importante revelação não ficava bem-sabida, confiando-se somente às visitas e vizinhas, e, portanto, Tomásia declarou a seu marido que sua filha seria batizada com estrondo; e que se daria um elegante sarau em honra da recém-nascida. Venâncio opunha-se a isso pelo mau estado em que se achavam seus negócios financeiros; a mulher bradava; Rosa votava pelo sarau, Manduca também; e a casa andava de poeira levantada. Também jamais Venâncio se mostrara tão valente.

Na manhã do dia que se seguiu à noite tempestuosa descrita no capítulo antecedente, Venâncio achava-se na sala de sua casa, sentado no canapé, triste e silencioso como um marido infeliz, que se vê a sós; vestia uma calça de brim escuro, e uma niza branca, tinha no pescoço um lenço de seda, de dentro do qual surdiam enormes e pontiagudos colarinhos; junto dele descansavam seus óculos sobre o Jornal do Commercio e, tendo de esperar que se levantasse sua mulher, Venâncio com uma perna descansada sobre a outra e exalando sentidíssimos suspiros, empregava o tempo em passar meigamente os dedos sobre o grande nariz, que devia à natureza, e que, depois de seus filhos, era o objeto que mais idolatrava no mundo.

No dia anterior, Venâncio tinha tido uma acalorada questão com sua mulher; porque, ao vê-la entrar na sala com os cabelos desgrenhados, não lhe fizera a menor reflexão sobre isso: daí passaram à discussão da ordem do dia, e gritou-se sobre o batizado, como se grita em certo corpo coletivo, quando se trata de eleições.

As idéias do dia passado assustavam, portanto, ao pobre Venâncio, que temia ver reproduzidas as mesmas cenas; além disso, tinham batido dez horas, e Tomásia com suas filhas dormiam a sono solto. O infeliz homem sofria em silêncio todas as torturas da fome, quando, passada ainda meia hora, uma porta se abriu, e por ela entrou Tomásia com os cabelos soltos e o vestido desatado. Venâncio lembrou-se logo que, por não reparar nesse desalinho, fora já acometido, e, pois, ergueu-se para receber nos braços o seu flagelo, e, cruelmente risonho, exclamou:

Oh, querida Tomasinha!… pois assim te ergues e sais do teu gabinete sem te penteares, e…

E que tem o senhor com isso?… bradou a mulher, porventura quer que durma penteada, ou já me facilitou um cabeleireiro para toucar-me apenas me levanto da cama?… é impossível!… não se pode viver sossegada com um velho impertinente como o senhor.

Está bem, minha Tomásia… não te aflijas… eu disse aquilo só para falar.

Isso sei eu; porque o senhor é um desenxabido… tanto lhe faz que eu ande malvestida, mal toucada ou não… para o senhor é a mesma coisa… não tem gosto… não presta para nada…

Pois mulher… eu já não disse, que…

Pois se disse, é o mesmo que se não dissesse, porque o senhor não sabe dizer senão asneiras…

Tomásia… estás hoje cruelmente impert… infe… zanga…

O que é que diz?… o que é que eu estou?… hem?…

De mau humor, Tomásia, de mau humor…

Por sua culpa! vivemos em uma guerra aberta… como dois inimigos; mas deixe estar, que hei de perder um dia a paciência; eu sou uma pomba, tenho o melhor gênio do mundo; mas o senhor é um dragão, uma fúria!…

Venâncio já torcia-se até não poder mais; finalmente, depois de muito espremer-se, contentou-se com dizer:

Sim… sou eu que sou a fúria… há de ser assim mesmo.

Isto é um martírio!… uma tentação!…

O velho não respondeu palavra.

O silêncio de Venâncio contrafazia talvez a Tomásia, que, sentando-se em uma cadeira longe do marido, deixou-se ficar por muito tempo muda, como ele; depois, como se tomasse nova resolução, soltou um suspiro, e disse:

Quando eu estou pronta a viver em paz eterna com ele, o cruel volta-me as costas!…

Eu, Tomásia?!…

Sim, tu, tornou ela com voz menos áspera, e eu não posso viver assim… isto me envelhece… tu me fazes cabelos brancos.

Venâncio olhou espantado para Tomásia, que, deixando o lugar que ocupava, foi sentar-se ao lado do marido, passando-lhe amorosamente o braço em derredor do colo. O fenômeno espantava: tão rápida mudança da rabugem para os afagos era para admirar; mas Tomásia o fazia de plano.

Vendo, contra os hábitos de vinte e dois anos, que o marido resistia à sua vontade, e que apesar de todo o esforço a festa do batizado continuava duvidosa, a mulher pensou, durante a noite, em um ataque de nova espécie contra Venâncio: ela devia estar enfadada na sala, exasperar o marido até fazê-lo gritar, fingir-se, então, pela primeira vez, temerosa, humilhar-se, enternecê-lo, e depois a poder de lágrimas conseguir o que, então, não havia podido o seu quero absoluto.

A paciência de Venâncio tinha neutralizado o estratagema de Tomásia: o cordeiro, sem saber e sem querer, opôs-se admiravelmente à raposa; e, conhecendo a mulher que seu marido não se assomava com as loucuras que lhe foi dizendo para levar a efeito o plano que concebera, fez-se por si mesma carinhosa e meiga.

O pacato velho começou por espantar-se do que observava; quando, enfim, Tomásia passou gradualmente da meiguice à submissão, ele mirou-se todo inteiro a ver se havia alguma novidade de meter medo em sua pessoa; não descobrindo nada que lhe explicasse o fenômeno, e, tendo de dar-se necessariamente uma explicação, imaginou que nesse dia a sua voz tinha um timbre assustador, que de seus olhos talvez partissem vistas magnéticas… fulminantes… terríveis.

Sucedeu a Venâncio o que acontece a todo o homem medroso: apenas acreditou que sua mulher recuava, concebeu a possibilidade de chegar a sua vez de valentão, e determinou aproveitar-se dela; ele! a bigorna de vinte e dois anos passar milagrosamente a ser martelo!… semelhante idéia desenhou-se brilhantemente aos olhos do velho, que bem depressa cerrou as sobrancelhas, fez-se carrancudo e dispôs-se a representar o papel de mau.

Tomásia, que tinha assentado de pedra e cal fechar a discussão calorosa, que há tantos dias era debatida entre seu marido e ela, não perdia um só dos movimentos deste, bebia-lhe todos os pensamentos com vistas fingidamente tímidas, e, ao conhecer que o adversário caía nas suas redes, disse com voz terna:

Pois bem, meu Venâncio, de hoje avante viveremos em completa harmonia.

Se a senhora o quiser… seja! respondeu com mau modo o pobre homem.

Tomásia reprimiu a custo uma gargalhada; tal era o pouco-caso que fazia do marido. Venâncio levantou-se, e, cruzando as mãos atrás das costas, começou a passear ao longo da sala; a mulher levantou-se também e, acompanhando-o de perto, travou com ele o diálogo seguinte:

Estimo achar-te disposto à paz, disse ela; portanto, meu amigo, tratemos de estabelecê-la com bases sólidas: queres?…

Se a senhora o quiser… isso para mim é quase indiferente.

Venâncio não cabia em si de alegre com a sua inopinada vitória, e prometia aproveitar-se dela.

Pois, para isso, continuou Tomásia, troquemos penhores de paz: devemos pedir um ao outro uma prova de amor… um extremo de ternura: então, tu o que exiges de mim?…

Coisa nenhuma.

Não sou eu assim: tenho que te pedir, meu amigo…

Vá dizendo.

E ainda não adivinhaste, ingrato?…

Ora, adivinhem lá o que quer a Sr.ª D. Tomásia! então não está boa?…

Cruel, não compreendes que quero falar do batizado de nossa filha?…

Batizar-se-á.

E daremos um sarau digno de nós, não é assim?…

Não é assim, não senhora.

Ah! já vejo que estás brincando! tu não havias de querer que o batizado de nossa querida filhinha se fizesse como o de qualquer lheguelhé.

Indeferido.

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